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Organização social e corporativa dos pedreiros, canteiros e carpinteiros no termo de Vila Rica (1730-1800) Fabiano Gomes da Silva Mestrando – Universidade Federal de Minas Gerais Nessa comunicação, pretendemos apresentar novos dados a respeito da orga- nização social dos trabalhadores manuais do termo de Vila Rica (730-800), com atenção ao agrupamento de construtores (pedreiros, canteiros, carpinteiros e cara- pinas). Justifica-se essa proposta em face de dois problemas, que são o emprego indistinto do termo oficial mecânico e as limitações da documentação produzida pelas câmaras para a constituição do quadro de trabalhadores manuais disponíveis nas cidades e vilas coloniais. O primeiro problema está relacionado ao ordenamento social cabível a essa qualidade de indivíduo, pois, na sociedade portuguesa, em fins do século XVI, os trabalhadores que se dedicavam ao exercício de profissões consideradas manuais, por fazerem uso das mãos, eram comumente conhecidos por oficiais mecânicos. Tais atividades eram qualificadas como vis e maculavam os seus praticantes com o defeito mecânico. Isso os inabilitavam para cargos municipais como vereadores, juizes almotacés e oficiais de milícias, além de viverem de acordo com as leis da nobreza. O uso da categoria de oficiais mecânico serviu para orientar o entendi- mento da estratificação social no Antigo Regime, mas o seu manuseio generalizado Professor substituto na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e Mestrando em histó- ria na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Agradecemos ao apoio da Oficina de Cantaria(DEMIN-UFOP), que via financiamento da Petrobrás auxiliou parte dessa pesquisa. GODINHO, Vitorino Magalhães. Estrutura da antiga sociedade portuguesa. 3 a edição. Lis- boa: Editora Arcádia, 977, p.7-6; verbete ofícios mecânicos em VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 000, p. 434.

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Page 1: Organização social e corporativa dos pedreiros, canteiros ... · Códigos e práticas: o processo de constituição urbana de Vila Rica colonial (1702-1748). São Paulo: Annablume:

Organização social e corporativa dos pedreiros, canteiros e carpinteiros no

termo de Vila Rica (1730-1800)

Fabiano Gomes da Silva� Mestrando – Universidade Federal de Minas Gerais

Nessa comunicação, pretendemos apresentar novos dados a respeito da orga-nização social dos trabalhadores manuais do termo de Vila Rica (�730-�800), com atenção ao agrupamento de construtores (pedreiros, canteiros, carpinteiros e cara-pinas). Justifica-se essa proposta em face de dois problemas, que são o emprego indistinto do termo oficial mecânico e as limitações da documentação produzida pelas câmaras para a constituição do quadro de trabalhadores manuais disponíveis nas cidades e vilas coloniais.

O primeiro problema está relacionado ao ordenamento social cabível a essa qualidade de indivíduo, pois, na sociedade portuguesa, em fins do século XVI, os trabalhadores que se dedicavam ao exercício de profissões consideradas manuais, por fazerem uso das mãos, eram comumente conhecidos por oficiais mecânicos. Tais atividades eram qualificadas como vis e maculavam os seus praticantes com o defeito mecânico. Isso os inabilitavam para cargos municipais como vereadores, juizes almotacés e oficiais de milícias, além de viverem de acordo com as leis da nobreza.� O uso da categoria de oficiais mecânico serviu para orientar o entendi-mento da estratificação social no Antigo Regime, mas o seu manuseio generalizado

� Professor substituto na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e Mestrando em histó-ria na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Agradecemos ao apoio da Oficina de Cantaria(DEMIN-UFOP), que via financiamento da Petrobrás auxiliou parte dessa pesquisa.� GODINHO, Vitorino Magalhães. Estrutura da antiga sociedade portuguesa. 3a edição. Lis-boa: Editora Arcádia, �977, p.7�-��6; verbete ofícios mecânicos em VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, �000, p. 434.

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pouco informava sobre os desníveis sociais e materiais dos membros dos corpos de ofícios3, bem como das experiências e estratégias desses trabalhadores livres.4

Entretanto, esse quadro de generalização, recebeu importantes reparos nas últimas décadas. Atualmente, várias pesquisas abordam a experiência dos diversos grupos dos oficiais mecânicos nos grandes centros coloniais como Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais (Vila Rica e Mariana). Muitos desses estudos ajudaram a descortinar o complexo processo de recriação dos mecanismos de or-ganização corporativa e social desses oficiais, tais como as relações com as autori-dades locais, a inserção e a diferenciação entre os ofícios, a posse de escravos e a formação de identidades dentro e fora do universo dos trabalhadores manuais.5

Parte considerável dos pesquisadores citado acima pondera que as câmaras coloniais e os corpos de ofícios buscaram um modelo de organização laboral nas instituições congêneres da Metrópole, mas com resultados diferentes do alcançado pelas suas matrizes. Parece que no ultramar essas normas mostraram níveis de efi-ciência oscilantes demais de um lugar para outro. Contudo, essa constatação surtiu poucos efeitos nas pesquisas brasileiras, porque ainda buscam exclusivamente na documentação produzida pelas câmaras e por seus juízes de ofícios — licenças de

3 Uso o termo corpos de ofícios, como era usado no período estudado, e não termo corpo-ração, que só apareceu no final do século XVIII, na França, no contexto de crise e supressão dessas associações profissionais monopolistas pela lei Le Chapelier, em �79�. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, �998, vol. � , p.�74. 4 Para uma crítica ao uso de categorias socioprofissionais e a pretensa hegemonia das corpora-ções de ofício no Antigo Regime na Europa ver: CERUTTI, Simona. A construção das categorias sociais. In: BOUTIER, J. e JULIA, Dominique(orgs). Passados recompostos: campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ: Editora FGV, �998, p. �33-�4�; CERUTTI, Simona. Du corps au métier: la corporation des tailleurs a Turin entre XVIIe et XVIIIe siècle. Annales ESC, nº �, p. 3�3-35�, mars-avril, �988; LEVI, Giovanni. Carrières d’artisans et marché du travail à Turin ( XVIIIe et XIXe siècle). Annales ESC, nº 6, p. �35�, novembre-decembre, �990. 5 FLEXOR, Maria Helena. Oficiais mecânicos na cidade do Salvador. Salvador: Prefeitura de Salvador, �974; FLEXOR, Maria Helena. Oficiais mecânicos e Vida cotidiana no Brasil. Ocea-nos, Lisboa, nº4�, p.70-84, �000; LIMA, Carlos Alberto Medeiros. Trabalho, negócios e escra-vidão: artífices na cidade do Rio de Janeiro (c. 1750- c. 1808). Rio de Janeiro (RJ): Dissertação (Mestrado em História) – IFCS/UFRJ, �993; SILVA FILHO, Geraldo. O oficialato mecânico em Vila Rica no século dezoito e a participação do escravo e do negro. São Paulo (SP): Dissertação (Mestrado em História) – FFLCH/USP, �996; RIOS, Wilson de Oliveira. A lei e o estilo. A inser-ção dos ofícios mecânicos na sociedade colonial brasileira: Salvador e Vila Rica (1690-1750). Niterói (RJ): Tese (Doutorado em História) – UFF, �000; MENESES, José Newton Coelho. Artes Fabris e Serviços Banais: ofícios mecânicos e as Câmaras no final do Antigo Regime. Minas Gerais e Lisboa (1750-1808). Niterói (RJ): Tese (Doutorado em História) – UFF, �003; TRIN-DADE, Jaelson Bitran. A produção de arquitetura nas Minas Gerais na província do Brasil. São Paulo (SP): Tese (Doutorado em História) – FFLCH/USP, �00�; SILVA, Fabiano Gomes da. Trabalho e escravidão nos canteiros de obras em Vila Rica no século XVIII. In: PAIVA, Eduar-do França. (org.) BRASIL-PORTUGAL: sociedades, culturas e formas de governar no mundo português – séculos XVI a XVIII. São Paulo: Annablume, �006, p.�79-307.

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ofícios e cartas de exame — indícios para inferir sobre o predomínio desse ou da-quele grupo nos setores da produção manual.

Para os fins propostos para essa comunicação, utilizaremos as documentações fiscais (Derrama) e as jurídicas (Devassas Civis) como fontes adicionais para recompor e problematizar o universo dos trabalhadores manuais atuante no termo de Vila Rica. Também faremos uso dos inventários post-mortem e os testamentos de um grupo de arrematantes de obras para perceber facetas do cotidiano das equipes de trabalho e como elas auxiliavam na busca por distinção entre alguns desses construtores.

Organização corporativa e social dos trabalhadores manuais

A criação de Vila Rica (�7��), com todas as prerrogativas e privilégios conce-didos pelo estatuto de vila, visou conferir legalidade aos arraiais e lugarejos que surgiram ao sabor da extração do ouro nos leitos dos córregos e encostas dos mor-ros.6 Tal medida vinha acompanhada do imediato estabelecimento da Câmara e da eleição dos vereadores, que deveriam garantir a imposição da lei e da ordem, além de conservar e aumentar a extração aurífera e os quintos de Sua Majestade.7

Por volta de �7�3, os vereadores da Câmara convocaram os oficiais mecâni-cos para se organizarem e elegerem os juízes dos ofícios de carpinteiro, ferreiro, alfaiate e sapateiro, bem como estabelecerem os regimentos a serem seguidos pelo corpo de oficiais de suas respectivas especialidades, orientando quanto aos valores dos serviços prestados à população.8

6 Sobre a formação da povoação, Ver: VASCONCELLOS, Sylvio. Vila Rica: formação e de-senvolvimento – residências. São Paulo: Perspectiva, �977; BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. � ed. rev. São Paulo: Companhia Editora Nacional, �969, p. �83-���; BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. Códigos e práticas: o processo de constituição urbana de Vila Rica colonial (1702-1748). São Paulo: Annablume: Fapesp, �004. 7 RUSSELL-WOOD, A. J. R. O governo local na América Portuguesa: um estudo de divergên-cia cultural. Revista de História, nº �09, p. 34-45, �977. Outros textos sobre administração colonial Ver: BOXER, Charles R. O Império colonial português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, �969, p.�63-�8�; SALGADO, Graça (org.). Fiscais e meirinhos: a administração no Bra-sil colonial. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, �985; WEHLING, Arno. A administração Portuguesa no Brasil de Pomba a D. João(1777-1808). Brasília: FUNCEP, �986; BICALHO, Maria Fernanda. As Câmaras Ultramarinas e o Governo do Império. In: FRAGOSO, João, BI-CALHO, Maria Fernanda, GOUVÊA, Maria de Fátima(orgs). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, �00�, p. �89-���; 8 ACTAS da Câmara Municipal de Ouro Preto (�7��-�7�5). Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, p. �58-60, �9�7.

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O oficial mecânico que quisesse trabalhar ou abrir loja/oficina/tenda no termo da vila precisava solicitar à Câmara uma licença temporária para atuar publicamente. A princípio, esse candidato deveria passar por algum tipo de aprendizado e, conseqüen-temente, pelo crivo do juiz e do secretário do seu ofício, que atestariam, via exames (teóricos e práticos) o seu domínio nos segredos da arte do ofício pretendido.9

A simples licença, com fiador pelo período de seis meses ou de um ano, foi o instrumento de controle do trabalho manual que mais se utilizou em Vila Rica, du-rante a maior parte do Setecentos.�0 As licenças temporárias foram tão recorrentes que possivelmente serviam mais como fonte de renda e controle fiscal do que como um mecanismo corporativo. Isso reforçava a importância dos mecânicos nas teias tributárias do Estado, pois eles contribuíam para impostos lançados tanto pela coroa (quintos reais, donativos e taxas de capitação) quanto pela Câmara (licenças de ofí-cios, lojas e sobre os pesos e medidas).

A Câmara concedia a licença com fiador, sem prévia apresentação da carta de exame, alargando a ação do fiscalismo português e jogando para as figuras do ofi-cial e do fiador a responsabilidade dos possíveis danos materiais que fossem cau-sados pela imperícia ou pela irresponsabilidade do oficial à população. Isso quase sempre acontecia em detrimento de um dos preceitos básicos das corporações: o exame feito pelo juiz de ofício para atestar as habilidades técnicas do candidato a oficial, o que garantiria a qualidade dos serviços prestados à comunidade e restrin-giria o acesso ao corpo de profissionais desse oficio.��

Juntamente com o intento dos vereadores de regular o dia-a-dia dos oficiais mecânicos — obrigando-os a elegerem juízes de ofícios, estabelecerem regimentos, retirarem licenças com fiador e carta de exame para atuarem — observa-se certo desleixo e desconfiança por parte de muitos oficiais que não compareciam à eleição dos juizes de seus ofícios e na definição dos seus regimentos; poucos se submetiam ao exame junto aos juízes e outros não retiravam a licença semestral.�� Assim, deve-mos ficar atentos ao fato de que a existência de uma série de prescrições das autori-

9 RUSSELL-WOOD, A. J. R. O governo local na América Portuguesa.... op. cit. p.45.�0 VASCONCELLOS, Salomão. Ofícios mecânicos em Vila Rica durante o século XVIII. Re-vista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (RSPHAN), Rio de Janeiro, nº 04, p. 33�, �940. Na cidade de Évora, no século XVIII, também registramos o uso de licenças concedi-das a trabalhadores não examinados. Essas licenças “davam ao seu possuidor a categoria de mestre e a possibilidade de abrir loja, antes de ser examinado. O que demonstra uma maior elasticidade dentro da absorvente regulamentação profissional.”BAPTISTA, Maria Margarida de Oliveira Frota. Organização dos mesteres em Évora no século XVIII (subsídios para a sua história). Évora: Tese de Licenciatura – FLL/ Universidade de Lisboa, �964, p. 7�-73 e 95.�� Germain Bazin também assinalou a respeito dos protestos dos oficiais habilitados sobre o abuso das licenças temporárias. BAZIN, Germain. Arquitetura religiosa Barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, �983, p. 4�. �� Para oficiais presos por não comparecerem à eleição dos juízes de seus ofícios ver ACTAS da Câmara... op. cit., p. 306; oficiais exercendo seus ofícios sem licenças APM / CMOP – DNE, caixa �3, doc. �6, 30/08/�74�.

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dades em relação a esses ofícios poderia representar mais uma intenção de regula-mentação do que um rígido e eficaz controle.�3

Quanto aos construtores (pedreiros, canteiros, carpinteiros e carapinas), poucos retiraram ou registraram cartas de exames entre �73�-�74�; não mais que quatro car-pinteiros satisfizeram tais requisitos para atuarem em Vila Rica.�4 A negligência desses oficiais fica mais evidente na eleição dos juízes de ofícios de �747, em que compare-ceram 49 trabalhadores dos ofícios de carapina, pedreiro, alfaiate, sapateiro, ferrador e ferreiro, sendo a maioria constituída de alfaiates e sapateiros. Entre os presentes, regis-trou-se somente 3 pedreiros e 7 carapinas como representantes do grupo que se dedi-cava à construção civil.�5

Uma leitura inicial tenderia a julgar reduzido o número de construtores e de oficiais mecânicos existentes no termo da vila. Contudo, é importante observar que o reduzido número deve ser atribuído aos limites dessa documentação que não abar-ca a totalidade dos trabalhadores manuais do período. Isso fica bem explícito quando se diversifica as fontes. Na lista de Pagamento da capitação referente aos 1º e 2º se-mestres de 1746, com registros de multas — documentação fiscal destinada a regis-trar o pagamento dos impostos devidos à Coroa —, mais de 30 tipos de ofícios foram capitados, sendo 5� oficiais carpinteiros, �� oficiais carapinas e �� oficiais pedrei-ros.�6 Como se observa, muitas são as diferenças entre a documentação camarária destinada à eleição dos juízes e secretários dos ofícios mecânicos e a documentação fiscal, sugerindo limites e lacunas significativas no primeiro tipo de fonte.

Igualmente lacunar é a presença escrava e forra nas licenças de ofício e cartas de exame produzidas pelas instâncias da Câmara, pois apenas 7 artífices forros (ex-escravos) apareceram nos registros das taxas em �7�5 e �7�6, sendo � com o ofício de carpinteiro.�7 Esse quadro pouco se alterou no avançar do século. Entre �749 e �80�, foram identificados �6 escravos e 4� forros — somente � carpinteiro forro

�3 HOLANDA, Sérgio Buarque. Metais e pedras preciosas. In:._____. História geral da ci-vilização brasileira – A época colonial: administração, economia e sociedade. São Paulo: DIFEL, �977, vol.�, t.�, p. �95. �4 APM/CMOP (Cartas de exame passadas e registradas, �73�-�74�), vol. �7- Microfilme �8, gaveta E-�. �5 APM/CMOP – DNE, caixa �0, doc. 03, fl. �-�v, 09/0�/�747. �6 Ver APM/CASA DOS CONTOS. Pagamento da capitação referente aos 1º e 2º semestres de 1746, com registro de multas. Nº �0�7. Outros autores com preocupações próximas à nossa já utilizaram essa fonte como MENESES, José Newton Coelho. Artes Fabris e Serviços Banais: ofí-cios mecânicos e as Câmaras no final do Antigo Regime. Minas Gerais e Lisboa (�750-�808). Niterói (RJ): Niterói: Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UFF, �003; ARAÚJO, Jeaneth Xavier. A pintura de Manoel da Costa Ataíde no contexto da época moderna. In: CAMPOS, Adalgisa Arantes (org.). Manoel da Costa Ataíde: aspectos históricos, estilísticos, iconográficos e técnicos. Belo Horizonte: C/Arte, �005, p. 3�-6�. �7 Ver cap. sobre a organização social do setor médio em RAMOS, Donald. Social History of Ouro Preto: Stresses of Dynamic Urbanization in Colonial Brazil (1695-1726). The Univer-sity of Florida-Ph.D., �97�.

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apareceu entre os construtores — em um conjunto de 478 registros levantados nos diversos livros de cartas de exames e provisões de ofícios do período.�8

Novamente, acreditamos que a parcimônia nos registros acima reflete muito mais as limitações e peculiaridades das fontes do que uma efetiva ausência cativa ou forra nos ofícios mecânicos. Tais observações servem de alerta sobre a necessidade de diversificarmos as fontes para captar parcela tão dinâmica da população. É preciso ir além dessa documentação camarária usualmente utilizada por muitos pesquisadores, relacionando-a com outras, como a fiscal (quintos, subsídios, captações, derramas), notarial e judicial. A título de exemplo, a documentação judicial permite ao pesquisa-dor mapear um conjunto de artífices e de oficiais mecânicos bem heterogêneo. Des-tacam-se nessa documentação as Devassas Civis, que são contendas jurídicas que envolvem testemunhas ligadas aos mais diversos setores, como mineração, justiça, comércio, ofícios mecânicos e outros. Os escravos pouco aparecem na documenta-ção, mas o destaque fica para a enorme quantidade de forros.

Nas Devassas Civis da Comarca de Vila Rica (�750-�808), tem-se uma interes-sante amostra dos trabalhadores que atuaram nesse período no termo da vila, espe-cialmente porque a maioria não foi registrada nos clássicos estudos sobre trabalha-dores manuais e artífices de Salomão de Vasconcellos e de Judith Martins.�9 Foram identificados �83 artífices, sendo �44 declarados como forros e o restante como não-especificados (usualmente se considera como parte do grupo de homens nas-cidos livres). Para o universo dos construtores, temos ��8 profissionais distribuídos entre os seguintes ofícios: 38 pedreiros (�� forros), 56 carpinteiros (30 forros), 34 carapinas (�� forros).�0 Ora, essas informações mostram um conjunto considerável de pedreiros, carpinteiros e carapinas ex-escravos justamente no momento em que as irmandades e ordens terceiras construíam, reformavam ou ampliavam suas ca-pelas na Comarca, mas que dificilmente poderíamos localizá-los se nos limitásse-mos às cartas de exame, licenças de ofícios e aos contratos de arrematações. E mais, tais dados não confirmam a tese do predomínio dos oficiais brancos (diga-se

�8 RIOS, Wilson de Oliveira. A lei e o estilo... op. cit., p.���. Outro levantamento dos oficiais mecânicos registrados pela documentação camarária, entre �7��-�803, arrolou 5�9 oficiais no termo de Vila Rica. Foram 44� oficiais manuais que se declararam livres, 44 negros livres (mulatos e pardos), �3 escravos e �0 forros. Ver SILVA FILHO, Geraldo. O oficialato mecânico em Vila Rica no século dezoito e a participação do escravo e do negro. Disser-tação (Mestrado em História) – FFLCH/USP, São Paulo, �996. p.8�. Os dois levantamentos possuem marcos temporais diferentes e alguns dados divergentes, mas não destoam quanto à pequena participação forra e cativa entre os oficiais mecânicos. Por isso, não julguei ne-cessário arrolar os dois levantamentos no texto. �9 MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Ge-rais... op.cit. e VASCONCELLOS, Salomão. Ofícios mecânicos... op. cit., p.33�-360. Para uma confrontação entre os oficiais listados nos trabalhos desses autores e a relação das De-vassas Civis ver SILVA, Fabiano Gomes. Construtores Mineiros: os canteiros de Vila Rica no século XVIII. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, �4: �004 jul: Juiz de Fora (MG). [Anais Eletrônicos...] Juiz de Fora: ANPUH (MG), �004. CD-ROM. �0 LEMOS, Carmem Silvia. A justiça Local: os juízes ordinários e as devassas da Comarca de Vila Rica... op.cit.

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reinóis) nas atividades construtivas defendidas por Jaelson B. Trindade e Maria He-lena Flexor para o caso de Minas Gerais.��

Outro tipo de fonte a ser utilizada pelos pesquisadores é aquela produzida pela máquina fiscal do Estado português, que nos informa sobre as dificuldades da mine-ração e, também, a respeito da diversidade das ocupações exercidas pela população mineira. Os registros do primeiro Lançamento de Derrama (�764), recurso destinado a complementar a quota de �00 arrobas de ouro devida à Coroa, servem para tais propósitos. Neles, constam todas as freguesias e arraiais que compunham o termo de Vila Rica, informando o nome de 3.53� contribuinte, com o valor do tributo pago, a condição (se livre ou forro) e a qualidade (branco, pardo/mulato/crioulo ou preto) de boa parte dos moradores tributados.��

Foram localizados nos mesmos registros mais de 594 trabalhadores que aten-diam demandas especializadas, como carpinteiros, pedreiros, seleiros, ferreiros, ferradores e outros, seja na urbe ou em outras áreas do termo de Vila Rica. Outros-sim, 5�9 trabalhadores semi-especializados e não-especializados declararam viver de jornais, sua agência e seu trabalho.�3 Eles atuavam como serventes nas obras, forneciam madeira, transportavam água dos chafarizes para as residências particula-res, vendiam quitutes nas ruas e em locais próximos às datas minerais, abrangendo ainda toda gama de atividades cotidianas nas freguesias da vila.

�� Na verdade, Maria H. Flexor reproduz as pesquisas de Trindade para Minas Gerais. Ver TRINDADE, Jaelson B. Arte colonial: corporação e escravidão. In: ARAUJO, Emanoel (org.). A mão afro-brasileira, significado da contribuição artística e histórica. São Paulo: Tenenge, �988, p. ���; FLEXOR, Maria H. O. Oficiais mecânicos e Vida cotidiana no Brasil...op.cit, p. 77. Para uma perspectiva próxima da defendida nesse trabalho veja BOSCHI, Caio C. O barroco mineiro: artes e trabalho. São Paulo: Brasiliense, �988, p.�3. �� APM/CMOP – Lançamento de Derrama de �764. Códice 8�, rolo 35, gaveta E-�. �3 A palavra agência no século XVIII era o termo usado como “officio, cuidado, occupação daquelle, que faz o negocio de alguém, como seu agente.” Ver BLUTEAU, Raphael. Voca-bulário Português e Latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, �7��-�7��. vol. 0�, p. �65. Nesse caso, a expressão sua agência também serve para designarmos as pessoas que viviam genericamente de ofícios ou ocupações. Elas ofereciam suas habilidades como qualquer trabalhador que vivia de jornal ou do pequeno comércio.

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Na Tabela �, temos os ofícios que mais apareceram na lista de contribuintes da referida derrama. São dez os ofícios que abarcam 537 trabalhadores manuais. Os oficiais de sapateiro e de alfaiate representavam uma parcela considerável dos oficiais mecânicos, destacando-se o grande número de forros nesse universo. Quanto aos construtores (pedreiros, carpinteiros e carapinas), temos ��0 oficiais (livres e forros) trabalhando em obras na vila, arraiais, lugarejos e fazendas, como agregados ou trabalhadores livres. Vinculados de forma subsidiária ao setor da construção, temos ainda telheiros, oleiros, madeireiros e fabricantes de cal.

Nessa documentação, a participação dos que foram declarados forros passa do número de �000 contribuintes. Nos setores da mineração (a maior parte era de faisca-dores) e de jornaleiros, os libertos chegavam a quase dois terços do número de pesso-as listadas, com maioria de africanos sobre os nascidos na colônia. Nos ofícios mecânicos, a presença dos libertos não fica muito longe de um terço, mas os par-dos predominam sobre os africanos. Junto aos construtores, o número de forros deve estar subestimado. É possível que uma parte esteja dentro do grupo de pessoas

Tabela 1

Pagamento da Derrama no termo de Vila Rica (�764)

Ofícios (com mais ocorrências)

OcupaçãoCondição declarada

forro livre n/c total

Sapateiro 30 � ��4 �45

Alfaiate 4� - 75 ��6

Carpinteiro, carapina emarceneiro

�5 � 63 79

Ferreiros �� � 46 68

Pedreiro � - 39 4�

Ferradores 9 - �6 35

Barbeiro �4 - � �6

Seleiro 4 - �0 �4

Caldeireiro, latoeiro eserralheiro

� - �0 ��

Cabeleireiro � - �0 ��

Total �39 3 395 537

Fonte: APM/CMOP – Lançamento de Derrama de �764 [n/c = não consta]

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que não declararam a condição ou dentro dos que declararam viver de jornal (usual-mente diluídos nas designações: viver de jornais, sua agência e seu trabalho).

Para o termo de Vila Rica, os números apresentados nas Devassas Civis e no Lan-çamento de Derrama permitem reavaliar a presença dos forros na população dos ofi-ciais mecânicos. Após �780, a forte presença desse grupo entre os mecânicos e artífices mineiros é inscrita em uma conjuntura de diminuta presença dos oficiais reinóis, de retraimento do mercado urbano na Vila e de outras dificuldades advindas da crise da economia mineradora.�4 Entretanto, é possível que um terço dos trabalhadores manuais disponíveis no mercado fossem ex-escravos já no início da segunda metade do século XVIII. Isso matiza a conjuntura de crise construída para explicar a ascensão de forros e pardos no mundo do trabalho manual.�5

A significativa participação dos forros no pagamento dos quintos reais e o exercí-cio de atividades especializadas e semi-especializadas na diversificada economia local sugerem que as alforrias eram obtidas em plena capacidade produtiva desses trabalha-dores. As manumissões registradas nos livros de notas dos tabeliães do termo de Vila Rica, entre �758 e�799, mostram que dos ��5� alforriados, quase 86% eram adultos (mais africanos que nascidos na Colônia), com um tênue equilíbrio entre homens e mulheres. Quanto à forma de aquisição das alforrias, verificou-se que a maioria pagou pela carta de alforria, usando largamente do pagamento parcelado(coartação), com recursos quase sempre obtidos por meio de ganhos diversos e doações obtidas no co-tidiano dos arraiais e lugarejos da vila.�6 Outrossim, o aprendizado e o exercício de atividades manuais qualificadas parecem ter figurado entre as mais importantes estra-tégias utilizadas pelos cativos na obtenção da alforria.

Parte das considerações apresentadas até aqui não divergem das pesquisas reali-zadas por alguns estudiosos da história social do trabalho em sociedades de Antigo Regime, como a da França ou da cidade italiana de Turin. Para esses historiadores, o mundo do trabalho naquele período não se resumia às investidas dos corpos de ofícios (corporações), com seus regimentos e regulamentos, existindo trabalhadores de toda sorte para além da pretendida hegemonia do modelo corporativo. Em seu estudo sobre os alfaiates de Turin nos séculos XVII e XVIII, Simona Ceruti afirma que o trabalho re-gulamentado era uma prática limitada, pois as “corporações” não abarcariam mais do que uma parte dos oficiais e dos mestres.�7

�4 TRINDADE, Jaelson Bitran. A produção de arquitetura nas Minas Gerais... op.cit. p. 70.�5 Os dados que levantamos para o termo de Vila Rica, também, relativizam a afirmação de que “o número maior de escravos e pardos, que exerciam ofícios, aparece no século XIX, quando os poderes da Câmara já não eram exercidos no controle dos que ingressavam nas profissões mecânicas e as irmandades profissionais não possuíam mais sua antiga organi-zação ou, então, haviam desaparecido.” FLEXOR, Maria H. O. Oficiais mecânicos e Vida cotidiana no Brasil... op. cit., p. 76. �6 AGUIAR, Marcos Magalhães de. Negras Minas Gerais... op.cit. p. 8-9 e �6-��. �7 “Le travail jure était, en réalité, un phénomène limite. Les corporations n’ont touché qu’une petite partie de la population des métiers, et, par ailleurs, tous les métiers n’ont pas connu d’organisation corporative” CERUTTI, Simona. Du corps au métier... op. cit. p.3�3;

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Em síntese, a significativa presença dos ex-escravos entre os oficiais mecânicos e os padrões de manumissão do termo de Vila Rica sugerem um nível de participação de escravos e libertos não percebido na documentação da câmara (licenças e cartas de exame) e nos contratos das obras arrematadas pelos construtores junto ao Estado, or-dens terceiras e irmandades leigas. Falta-nos explicar esse aparente descompasso. Por isso, propomos explorar as formas de organização dos construtores, em equipes ou fábricas, que agrupavam cotidianamente toda sorte de trabalhadores escravos, libertos e livres, bem como analisar a composição dos bens de alguns construtores, o que lhes possibilitava viver na fronteira da vileza do fazer mecânico e o viver de seus cativos ou qualquer outra fonte que não as próprias mãos.

Os construtores de Vila Rica (1730-1800)

No século XVIII, milhares de portugueses cruzaram o Atlântico sonhando com melhores dias na afamada região das pedras e dos metais preciosos do Brasil. Muitos desses homens eram oficiais e mestres em suas comunidades, com experiência em ofícios necessários para as vilas e arraiais mineiros.

Junto com eles vieram as formas de organização social do trabalho, que foram adaptadas à vida local. O termo fábrica fazia parte desse universo laboral transposto para a colônia. Usado para aferir a idéia de casa ou de oficina, relacionada ao fazer mecânico, o termo nos serve para designar o conjunto de trabalhadores, equipamen-tos, materiais e infra-estruturas mobilizadas pelos construtores nas obras arremata-das.�8 Essa forma coletiva de trabalho ajuda a entender como um grupo reduzido de pedreiros/canteiros e carpinteiros arrematava várias obras simultaneamente. Um des-ses homens, o mestre pedreiro José Pereira dos Santos, da Freguesia de São Salvador de Grijó, Comarca do Porto, instalado em Minas Gerais, desde os anos 30 do Sete-centos, arrematante de obras como as igrejas de plantas elípticas, São Pedro dos Clérigos (Mariana) e N.S. do Rosário dos Pretos (Vila Rica), nos legou em seu testa-mento o fragmento de uma fábrica. O mestre pedreiro declarava que possuía

(...) na obra de São Pedro os aparelhos, que nella se acharem, como são huma roda de guindar, taboados, paus, moitões de ferro, cordas, duas alavancas, huma grande e outra mais pequena, quatro ou cinco enxadas, algum carumbé

KAPLAN, Steven. Les corporations, les “faux ouvriers” et le Faubourg Saint-Antoine au XVIII siècle...op. cit. p.353; LEVI, Giovanni. Carrières d’artisans et marché du travail à Turin (XVIII e XIX siècle)... op. cit., p.�35�-�.�8 Esse termo aparece na documentação do período colonial, sendo usada, também, no mes-mo sentido por TRINDADE, Jaelson Bitran. A produção de arquitetura nas Minas Gerais na província do Brasil... op.cit. p. �.

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e gamellas, dois caixões de guardar farinha, e feijam, e seis porcos huns maio-res e outros mais pequenos, como também pratos, candeias, e barris.�9

É possível que Santos tenha relacionado apenas uma parte dos bens, pois faltaria listar os oficiais, os aprendizes e os serventes que trabalhavam nas obras, sendo que uma parte deles constituía-se de escravos. Normalmente, oficiais livres também eram contratados como jornaleiros (diaristas) para auxiliarem e, em certas ocasiões, eram incorporados temporariamente à fábrica do arrematante, o que oferecia boas oportunidades de trabalho para ex-escravos e oficiais não licenciados.30

Os construtores usavam fartamente do expediente de arrematar grandes obras e contratar a jornal os oficiais necessários. Às vezes, os ajustes duravam meses, quando não anos, sendo acordado o fornecimento de moradia, alimentação e as ferramentas necessárias para o oficial incorporado à fábrica, mas comumente o oficial jornaleiro era o responsável por sua alimentação e ferramentas.

Quanto à presença de cativos nas fábricas de Vila Rica, tanto a câmara quanto os juízes de ofícios não controlavam a posse e o uso dos mesmos, muito menos o número dos que poderiam ser incorporados à fábrica, seja como aprendizes ou oficias. O compromisso e o regimento dos pedreiros e carpinteiros da Bandeira e da Confraria de São José de Lisboa determinava que “não poderá mestre algum ter mais de dous aprendises”, sob risco de multa no valor de 4$000 (quatro mil réis).3� Em Salvador, na Bahia, a confraria congênere desses trabalhadores, estabelecia que incor-reria em falta “qualquer Mestre que tomar aprendis que seja Negro; nem ainda Mulato cativo; pois só ensignará Brancos, ou Mulatos forros”.3� Como veremos, essas prescri-ções estiveram distantes da prática de muitos construtores em Vila Rica.

Isso pode ser verificado nos inventários post-mortem e testamentos de alguns des-ses construtores.33 Na análise dos �4 documentos localizados, identificamos �39 escra-

�9 Testamento de José Pereira dos Santos (�76�). Anuário do Museu da Inconfidência (AMI). Ouro Preto, nº 3 p.�4�, �954.30 Contratos de jornais entre oficiais por consideráveis períodos: ARQUIVO HISTÓRICO CASA SETECENTISTA DE MARIANA(AHCSM)/ Ação Cível, �º oficio, cód. 564, auto �0835, ano �74�; AHCSM/ Ação Cível, �º oficio, cód. �39, auto 5960, ano �747; AHCSM/ Ação Cível, �º oficio, cód. 595, auto ��55�, ano �763; AHCSM/ Ação Cível, �º oficio, cód. 505, auto �7367, ano �757. 3� LANGHANS, Franz-Paul de Almeida. As corporações dos ofícios mecânicos: subsídios para a sua história. Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, �943, vol �, p.�79. 3� FLEXOR, Maria H. O. Oficiais mecânicos e Vida cotidiana no Brasil... op. cit., p. 95.33 AHCSM/ Inventário -�º ofício, códice 9, auto 34�, Antônio Coelho da (A)Fonseca – Ma-riana, 9/�0/�74�; MUSEU DA INCONFIDÊNCIA CASA DO PILAR DE OURO PRETO (MICP) /Inventário – �º ofício, cód. 4�, auto 486, Diogo Alves de Araújo Crespo -Vila Rica, �4/��/�746; AHCSM/ Inventário – �º ofício, cód. 7�, auto �5�0, Antonio da Silva – Maria-na, �5/6/�750; MICP/ Inventário – �º ofício, cód. �3�, auto �66�, Salvador Rodrigues – Vila Rica, �/6/�760; MICP / Inventário – �º ofício, cód. 6�, auto 746, João da Silva – Vila Rica, �9/��/�785; MICP / Inventário – �º ofício, cód. 36, auto 43�, Domingos da Silva -Vila Rica, �6/�/�786; MICP/ nventário – �º ofício, cód. ��, auto �06, Francisco Rodrigues Lages – Vila

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vos, entre os quais �3,�% (36) foram declarados com ofícios de pedreiro, calceteiro, carpinteiro e/ou carapina, ferreiro e alfaiate. E a grande maioria, 76,9% (�03), era com-posta de escravos sem ofício declarado. Parte dos cativos arrolados sem especificação do ofício pode, também, incluir cativos especializados, o que é sugerido pelos valores atribuídos a eles. Além disso, escravos tanto do sexo masculino quanto do sexo femini-no — adultos e sem ofício declarado —, acabavam atuando em serviços menos quali-ficados dentro da fábrica de seus proprietários.

Nesse conjunto de cativos identificados, há o predomínio dos africanos, 67,9% (�06), em relação aos nascidos na Colônia (mulatos, crioulos e pardos), �3,7% (37), sendo que 8,3% (�3) do total não tiveram origem declarada. Junto aos 36 escravos com ofícios declarados, identificamos �4 de procedência africana (benguela, con-go, angola e mina). Quanto à distribuição desses cativos entre os proprietários, �6,6% (4) dos construtores não possuíam escravos, �9,�% (7) até 3, 37,7% (9) entre 4 e �0 e �6,6% (4) acima de �0 cativos.34

Em relação ao conjunto de bens registrados nos inventários post-mortem des-ses construtores, o dispêndio de recursos com escravos e bens profissionais (ferra-mentas, equipamentos e estoques) chegou à metade da riqueza de alguns constru-tores. Em certas situações, os percentuais superavam esse valor, como o caso do construtor Antônio Coelho da Afonseca.35 Ele fora proprietário de 30 escravos (entre carpinteiro, carapina, ferreiro e alfaiate) e deixou um monte-mor de 7:65�$38� (sete contos, seiscentos e cinqüenta e dois mil, trezentos e oitenta e dois réis), sendo que 5:56�$5�0 réis eram referentes aos escravos e bens profissionais. Os escravos espe-cializados acabavam contribuindo na elevação dos percentuais, como no caso do mulato Miguel Aires, natural do Rio de Janeiro, 39 anos, oficial de carpinteiro, que valia 360$000 réis; e o preto Anacleto Angola, 3� anos, oficial de alfaiate e carapina, casado com Maria Mina, que valia 307$�00.

Rica, 7/4/�788; MICP / Inventário – �º ofício, cód. 66, auto 730, Theotonio José de Oliveira – Ouro Branco – termo Vila Rica, �/5/�789; MICP/ Inventário – �º ofício, cód. 57, auto 649, Antônio José da Costa -Vila Rica, 3/7/�790; MICP/ Testamento – �º ofício, cód. 3�3, auto 68�8, José Carvalho Fontes – Vila Rica, �9/09/�787; AHCSM/ Inventário – �º ofício, cód. �49, auto 3��5, José Antônio de Brito – Mariana, ��/�/�793; AHCSM/ Inventário –�º ofício, cód. 9, auto 34�, Domingos Moreira Oliveira – Mariana, �5/8/�794; MICP/ Inventário – �º ofício, cód. �06, auto �339, Miguel Moreira Maia – -Vila Rica, �7/6/�80�; AHCSM/ Inventá-rio – �º ofício, cód. �5, auto 654, Antônio da Silva Herdeiro-Mariana, �0/��/�80�; AHCSM/ Testamento – cód. �83, auto 36�6, José da Silva Pereira -Mariana, 4/6/�8�0; MICP/ Inven-tário – �º ofício, cód. �9, auto �98, José Barbosa de Oliveira – Vila Rica, �0/��/�8�0. Testa-mento de José Pereira dos Santos (�76�). AMI... op. cit, p.�40-�48. 34 Essa distribuição de cativos entre os proprietários se aproxima dos resultados localiza-dos nos inventários e testamentos em outras regiões mineiras no século XVIII. Ver PAIVA, Eduardo França. Escravidão e Universo Cultural na Colônia...op.cit., p. �34 e FURTADO, Júnia Ferreira. O livro de capa verde: o regimento Diamantino de 1771 e a vida no distrito Diamantino no período da Real Extração. São Paulo: Annablume, �996, p.5�. 35 AHCSM/Inventário – �º ofício, códice 9, auto 34�, Antônio Coelho da (A)Fonseca – Ma-riana, 09/�0/�74�.

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Notamos, entretanto, que o investimento preferencial era dirigido para a aquisição de escravos. Investir em escravos se tornara decisivo na área de atuação dos construto-res e arrematantes de obras, principalmente por oferecer condições diferenciadas a quem os possuísse. Por vezes, a compra ou o fornecimento de escravos especializados já fazia parte das sociedades que esses construtores estabeleciam.36 Em outros momen-tos, a venda dos cativos oficiais da fábrica de algum construtor falecido também fun-cionava como mecanismo de alimentação de um provável mercado de trabalhadores escravos especializados. Por exemplo, o pedreiro Antônio Fernandes de Barros adqui-riu 4 escravos calceteiros, � serventes e � escrava da fábrica do falecido pedreiro, Diogo Alves de Araújo Crespo, por preços que variavam entre �00$000 e �70$000 réis para os oficiais, comprometendo-se a pagá-los no prazo de um ano, com juros fixados em 6 e ¼ por cento. Na oportunidade, Barros também adquiriu as ferramentas e equi-pamentos da mesma fábrica, o que possivelmente contribuiu para sua entrada no rol de arrematantes do contrato de conservação e consertos de calçadas, pontes e quartéis de Vila Rica quatro anos depois.37

As condições criadas pela posse de cativos poderiam auxiliar no surgimento de distinções entre os pedreiros, canteiros e carpinteiros que se dedicavam à arre-matação de obras em Vila Rica. Contudo, a posse de escravos não seria o único elemento de diferenciação profissional e social entre eles. Para assegurar uma par-cela do mercado de trabalho, esses oficiais precisavam não só possuir bens e fábri-ca como formar redes de sociabilidade e de camaradagem para fora das fronteiras dos seus ofícios. Nesse contexto, tornava-se imperativo possuir boas relações com os principais clientes da capitania (Estado, ordens terceiras e irmandades leigas) e fiadores respeitáveis. Na hora de construir, tanto a Câmara quanto as irmandades e as ordens terceiras exigiam do arrematante a apresentação de fiadores que pode-riam ser outros oficiais, negociantes ou autoridades, o que favorecia a formação de redes clientelares e criava pré-condições para a arrematação dos contratos em pra-ça pública.38 A ação desses fiadores e a disponibilidade de cativos especializados possibilitaram a determinados construtores oferecerem valores menores nas arre-matações, chegando a monopolizarem demandas específicas.

36 Isso fica evidente no libelo cível movido por Manoel Barbosa de Mello contra o construtor Antônio Pereira de Souza, por conta da sociedade firmada entre eles para a construção de uma capela no distrito de Bento Rodrigues, termo da Vila de Nossa Senhora do Carmo, no valor de �.�55 oitavas de ouro. Na sociedade, cabia ao construtor administrar os trabalha-dores e comprar dois escravos especializados “hum negro serrador e hú mulato carpinteiro” para ajudá-lo, acordo não cumprido inteiramente. Ver AMI, Ouro Preto, nº 3, p. 8�, �954.37 Ver contas em MICP/Inventário – �º ofício, cód. 4�, auto 486, Diogo Alves de Araújo Crespo – Vila Rica, �4/��/�746. fls. 53, 55, 65 e 67. Antônio Fernandes Barros comprou esses cativos em �747 e, em �75�, encontramos uma socilitação para que a Câmara indicasse os avaliadores para as obras que ele executou no paredão da Rua dos Quartéis, na ponte de madeira e na calçadas em Santa Quitéria e Padre Farias. APM / CMOP – DNE, caixa �6, doc. �8, 03/��/�75�. 38 XAVIER, Ângela Barreto e HESPANHA, Antônio Manoel. As redes clientelares... op. cit. p.38�-393.

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A trajetória do pedreiro Diogo Alves de Araújo Crespo pode clarear um pouco essa relação de monopolização de demandas. Em �733, localizamos o nome dele na relação de oficiais que trabalharam no conserto das calçadas de Vila Rica.39 O seu trabalho parecia render frutos, pois em �74� já possuía escravos, casas, uma roça e fazia parte do rol de grandes arrematadores da câmara, ocupando, ainda, as funções de louvador40 de obras e arrematante do contrato de conservação e conser-tos das calçadas, quartéis e cadeia da vila durante vários anos.4� No plantel desse pedreiro, identificamos �9 escravos, dentre os quais temos �0 africanos (benguela, mina, congo, sabaru, angola, cobu) com o ofício de calceteiro, trabalhadores espe-cializados em calçamentos e pequenos serviços de pedreiros. As demandas por tal tipo de mão-de-obra especializada eram consideráveis, principalmente pela cres-cente urbanização assistida, a partir de �730, em Vila Rica.

No final da vida, o pedreiro Diogo Alves de Araújo Crespo havia acumulado um montante de 5:��6$407, entre casas, escravos, animais, ferramentas, móveis e créditos. Patrimônio conseguido graças ao seu trabalho e ao de seus oficiais, mas também às suas redes de sociabilidade, como as que ele mantinha com as autori-dades e arrematantes locais, especialmente com o seu compadre, o sargento-mor Manoel de Souza Portugal e com o procurador do senado no período de vigência do contrato, o sargento-mor Manoel da Costa Guimarães, que não só fiava algumas obras como nomeava os oficiais que deveriam fazer a louvação das obras arrema-tadas por Diogo Crespo.4�

É importante lembrar que tais relações de favorecimento não são novidade para os estudiosos das câmaras no império marítimo português. Por exemplo, Charles R. Boxer e A.J.R. Russell-Wood registram que o nepotismo, a corrupção e o desvio de fundos fizeram, em algum momento, parte das ações cotidianas da pequena burocra-cia municipal (juízes ordinários, almotacés, escrivães e procuradores).43

Para alguns pedreiros, canteiros e carpinteiros, o enriquecimento não se dava apenas pelos ganhos diretos com suas atividades profissionais, mas também via diversificação em áreas como mineração, agricultura, comércio e, ainda, no mer-cado de pequenos empréstimos a juros. O pedreiro João da Silva, natural da fregue-sia de São João de Balance, termo e bispado de Braga, irmão da Ordem Terceira de N.S. do Monte do Carmo, tinha na relação de dívidas o carpinteiro Manoel José Velasco, que lhe devia um crédito de �30$000 réis, ou o proprietário de uma ven-

39 APM / CMOP – DNE, caixa 04, doc. 46, fl. 6, �7/06/�733. 40 Nomeado pela câmara para verificar se a obra foi executada conforme os autos de arrematação. Recebia por dia uma oitava de ouro, valor acima da diária de um oficial no canteiro de obras.4� APM / CMOP – DNE, caixa �7, doc. ��, ��/08/�745; APM / CMOP – DNE, caixa �7, doc. �4, 0�/�0/�745. O valor do contrato era de seis mil cruzados e duzentos mil réis por um ano.4� APM / CMOP – DNE, caixa �7, doc. ��, ��/08/�745. O documento apresenta solicitações de pagamento do pedreiro Diogo Crespo à câmara de Vila Rica e a nomeação do louvador da obra.43 RUSSELL-WOOD, A. J. R. O governo local na América Portuguesa... op.cit; BOXER, Char-les. O império marítimo português... op.cit. p.�77.; WEHLING, Arno. A administração Por-tuguesa no Brasil... op.cit. p.34.

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da grande, José Francisco Fernandes, pelo crédito de �90$000 réis.44 Já o mestre e juiz do ofício de carpinteiro, José Carvalho Fontes, natural da freguesia de São Pedro da Cova no bispado do Porto, solteiro (mas registra em testamento que teve dois fi-lhos naturais com a crioula forra Izabel Machado da Conceição) e oficial em vários cargos da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Freguesia de Antônio Dias, era proprietário de duas sesmarias e emprestava pequenas quantias a juros.45 O mestre pedreiro José Antônio de Brito, natural da freguesia de São Felix da Marinha, comar-ca da Feira, bispado do Porto, também registrou a prática de empréstimo de dinheiro a juros, inclusive para o mestre pedreiro José Pereira dos Santos — filiado à Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Mariana — que declarou em recibo:

Devo que pagarei a Joze Ant.o Brito a Coatia de sento e trinta e hu mil e coa-tro sentos e cincoenta reis porsedidas de outra tanta Coatia que o d.o me emprestou a Coal Coantia pagarei aelled.o ou aq.m este memostrar da factura deste ahu anno sem ahisco por duvida algua p.a oque hoBrigo m.a pesoa e Bens ad.a satisfação e declaro que lhe pagarei os juros de seis e Coatro por Sento te rial sastifação e p.a sua clareza lhe pacei este dem.a letra esignal Cid.e Marianna Cete de Cebr.o de �756.46

Até mesmo o mestre Manoel Francisco Lisboa, irmão da Ordem Terceira de Nos-sa Senhora do Monte Carmo, tentou ampliar o seu leque de atividades econômicas. Ele exerceu atividades de pedreiro, carpinteiro e mestre-de-obras reais, arrematando obras tanto para o Estado, quanto para as irmandades e ordens religiosas. Mas também se dedicou ao comércio, adquiriu em sociedade uma mina e, ao final da vida, aparece como proprietário de casas, roça e escravos, sem qualquer referência com as atividades de pedreiro e de carpinteiro, as quais lhe conferiram fama e prestígio.47

Parece que a atuação profissional desses construtores possibilitou-lhes consi-deráveis ganhos econômicos, especialmente por monopolizarem determinadas de-mandas por obras. Essas atividades também foram combinadas com investimentos em áreas como mineração, agropecuária e o pequeno mercado de empréstimos, o que possivelmente contribuiu para dilatar os espaços sociais ocupados por tais profissionais. Talvez, eles buscassem espaços para fora das categoriais de homens vis ou de oficiais mecânicos que os limitavam socialmente. Uma identidade assen-tada na experiência do trabalho manual poderia não coincidir com as aspirações de senhores de escravos e administradores de fábricas e obras. Por isso, a participa-

44 MICP / Inventário – �º ofício, cód. 6�, auto 746, João da Silva – Vila Rica, �9/��/�785. fl. 7. 45 MICP/ Testamento – �º ofício, cód. 3�3, auto 68�8, José Carvalho Fontes. Sobre o perfil dos credores no termo de Vila Rica confira SILVEIRA, Marco Antonio. O universo do indistinto: Estado e sociedade nas Minas Setecentistas (1735-1808). São Paulo: Hucitec,�997, p. �00. 46 Esse e outros recibos passados por José Pereira dos Santos foram transcritos em AMI, Ouro Preto, nº3, p.�37, �954. 47 APM/CMOP – Lançamento de Derrama de �764... fotograma 939, p. 75V.

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ção em ordens terceiras e em irmandades importantes coroava uma etapa decisiva nessa estratégia rumo a distinção.

Na vida associativa, eles pertenceram às mais destacadas associações religiosas como a Irmandade do Santíssimo Sacramento, Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmo, Ordem Terceira de São Francisco de Assis e Irmandade de São Miguel e Almas, servindo como irmãos, consultores especializados e arrematantes de obras da própria irmandade e de seus irmãos mais destacados. Participar dessas associa-ções de ajuda mútua também funcionava como uma espécie de carta de apresenta-ção, que abria oportunidades locais.48 Às vezes, a irmandade podia adiantar créditos, quitar débitos das obras com escravos legados por irmãos e, até mesmo, emprestar dinheiro a juros para esses construtores.

Nesse sentido, os fragmentos da vida de alguns dos mais importantes construto-res do termo de Vila Rica, no século XVIII, mostram homens enriquecidos e produ-zindo relações para além da categoria social que pertenciam. Isso reflete a comple-xidade de uma sociedade escravista mineradora que necessitava preservar minimamente uma estrutura estamental e, ao mesmo tempo, satisfazer as necessida-des de indivíduos que triunfavam em primeiro lugar pela fortuna.49 Talvez, não seja adequado classificá-los como simples oficiais mecânicos, o que limitaria suas expe-riências apenas a um estatuto ocupacional, especialmente tendo em vista o objetivo de investigar, de maneira mais alargada, as estratégias de vida desses homens.

Conclusão

A diversificação nas fontes parece ser uma premissa importante no trabalho do pesquisador, especialmente quando se pretende recompor o mundo do trabalho em uma sociedade escravista. Para o caso do termo de Vila Rica, a documentação sobre licenças e cartas de exame mostrou não abarcar um universo social muito amplo e ficou longe de representar a totalidade dos trabalhadores manuais. Possi-velmente, os valores cobrados e as exigências dos testes impediram muitos artífices de regularizarem sua atividade junto às autoridades. Por outro lado, é possível que outros tenham estrategicamente optado por permanecerem como simples jornalei-ros e sem registro, circulando ao sabor das oportunidades e atuando em obras arre-matadas ou sob a responsabilidade de mestres mais prestigiados.

Por sua vez, a constituição de redes de sociabilidade e de camaradagem para fora das fronteiras dos seus ofícios — como pertencer a importantes irmandades e/ou ordens terceiras, ter a proteção de fiadores importantes e/ou autoridades e

48 BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, �986, p. �6�.49 Ver MESGRAVIS, Laima. Os aspectos estamentais da estrutura social do Brasil colônia. Estudos Econômicos, nº �3, p.8�0, �983.

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diversificada gama de atividades (empréstimos a juros, propriedades rurais, lojas e vendas)—, bem como a posse de escravos especializados em suas fábricas, podem ter contribuído para dilatar os espaços sociais ocupados por tais profissionais. Como disse antes, talvez, uma identidade assentada na experiência do trabalho manual poderia não coincidir com as aspirações de senhores de escravos e admi-nistradores de fábricas e obras.