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Organizadores Ana Paula Silva dos Santos

Durval Muniz de Albuquerque JúniorRicardo Augusto Pessoa Braga

Rozeane Albuquerque LimaSalomão de Sousa Medeiros

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Governo do Brasil

Presidência da RepúblicaMichel Miguel Elias Temer Lulia

Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e ComunicaçõesGilberto Kassab

Instituto Nacional do Semiárido

DiretorSalomão de Sousa Medeiros

Projeto Gráfico e CapaWedscley Melo

Revisão GramaticalSamelly Xavier da Cruz

Comitê EditorialAldrin Martin Perez Marin

Geovergue Rodrigues de MedeirosJucilene Silva Araújo

OrganizadoresAna Paula Silva dos Santos

Durval Muniz de Albuquerque JúniorRicardo Augusto Pessoa Braga

Rozeane Albuquerque LimaSalomão de Sousa Medeiros

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O livro Encolhimento das Águas: o que se vê e o que se diz sobre crise hídrica e convivência com o Semiárido atende à necessidade de sistematização de conhecimentos, da publicidade de resultados de pesquisas, bem como de revisita a autores de textos clássicos que contemplam, direta ou indiretamente, o tema água nos cenários dos semiáridos.

A nova perspectiva política e epistemológica instaurada pelo tema da possibilidade de convivência com o Semiárido, lançada inicialmente por Organizações Não Governamentais, que posteriormente constituíram a Articulação do Semiárido-ASA foi também encampada pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária- EMBRAPA e, em seguida, por outras instituições, dentre elas o Instituto Nacional do Semiárido-INSA, fazendo, assim, emergir no cenário brasileiro novas imagens e formas de se narrar a história desse espaço, valorizando as estratégias utilizadas pelas comunidades que, tradicionalmente, convivem com a escassez hídrica no Semiárido.

No cenário nacional, e, portanto, afetando também a região semiárida, o crescimento econômico faz emergir maior demanda por água, o que gera conflitos na gestão deste recurso. A demanda, muitas vezes culturalmente fabricada, por novos produtos, quer na agricultura, quer na indústria, ou ainda no uso doméstico, faz surgir um histórico de contaminantes que afetam diretamente a saúde da população. A distribuição fundiária e a emergência de todo um aparato legal para proteger o meio ambiente, com destaque para os recursos hídricos, também se inserem de forma intensa neste debate, assim como o crescimento das zonas urbanas e a consequente degradação de rios e riachos, assim como o desmatamento da vegetação nativa e de matas ciliares.

Ao se estabelecer o recorte do Semiárido, em lugar do Nordeste e da caatinga – dois recortes também possíveis e contemplados nesta proposta – abre-se espaço para um diálogo internacional. Afinal, o semiárido existe em países de várias regiões do globo. Como se apropriar de experiência de manejo dos recursos hídricos e de convivência com o Semiárido, exitosas em outros espaços? Como interconectar as populações e formas de convivência? Como dar voz a estas comunidades?

A proposta foi sistematizar pesquisas realizadas (ou em andamento) em várias instituições e disponibilizar, em um único livro, conhecimentos sobre a água e seus usos em uma abordagem histórica e social, além de dar visibilidade a novas problemáticas e alternativas para as questões postas pela crise hídrica e pela necessidade de convivência com o Semiárido.

APRESENTAÇÃO

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Para oferecer mais abrangência a este esforço, convidamos também pesquisadores de outras áreas que não humanas e sociais, tais como Engenharia Agrícola, Agronomia, Biologia, desafiando-os a pensar seus respectivos temas em um diálogo com a História e a Sociedade.

Portanto, a publicação tem caráter interdisciplinar e interinstitucional, tendo por eixos: O que se vê e o que se diz do Nordeste Semiárido; Perspectivas política, jurídica e étnica das águas do Semiárido; Povos e comunidades do Semiárido; Águas do Semiárido e os diálogos sobre gênero e educação; Águas do Semiárido – aspectos técnicos; e Troca de experiência com outro semiárido do mundo.

A você, leitor e leitora, deixamos o convite para imergir na leitura e mergulhar no mundo de conhecimentos, ideias, sensibilidades e provocações que o Semiárido nos propicia.

Os organizadores

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Estamos, neste ano de 2018, ainda convivendo com uma crise hídrica longa, angustiante. Uma crise que esperamos que termine no próximo bom inverno, o qual tem teimado em não chegar.

Este é um livro bastante oportuno. Ao contrário de tantos outros que, no passado, analisaram as crises a posteriori, este é dado a público ainda durante a atual crise hídrica. Leva o leitor a refletir sobre a crise em andamento, a crise que ainda vive, a crise que ainda sofre. Impulsiona o leitor não apenas a refletir, mas também a reagir, a atuar, a enfrentar a crise a partir da mudança de olhar com que vê o Semiárido. O livro empurra o leitor a conviver com a aridez ao invés de combatê-la, discurso antigo que precisa sempre ser revisitado, relembrado, reposto na mesa, degustado e experimentado novamente, para ser prática efetiva de toda a gente.

Essa revisita da convivência com o Semiárido tem que ser abrangente: não é só água, não é só planta, não é só gado, mas é principalmente gente, gente na terra, que se move, se relaciona, se comunica. E por isso, é também um livro plural. Traz contribuições de várias perspectivas disciplinares, de olhares distintos. Olhares para aspectos e facetas e gentes diferentes que muitas vezes são esquecidas, invisíveis em meio a discursos astutos que as tiram da paisagem do Semiárido.

Tempo de crise é tempo sempre de novos messias, ali, à espreita, para entrar em ação. Querem que se esqueça do simples, do óbvio, do que está na frente da gente, ali, escancarado, dizendo que não precisa de milagre não, que não precisa de messias não. Precisa-se viver como se deve, respeitando o clima, as águas, as plantas, as gentes. Os limites e as possibilidades, reconhecidos e vistos com criatividade e solidariedade. Este livro dá um grito nas oiças da gente: a “solução” está aqui com A GENTE.

A leitura desses 18 capítulos foi muito prazerosa e questionadora. Espero que o leitor os aproveite tanto quanto pude fazê-lo.

Carlos de Oliveira GalvãoUniversidade Federal de Campina Grande

PREFÁCIO

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PARTE 1

O QUE SE VÊ E O QUE SE DIZ DO NORDESTE SEMIÁRIDO

A aridez das ideias: a questão ambiental do Nordeste em busca de práticas e discursos inovadores

Durval Muniz de Albuquerque Júnior

E o mar virou sertãoEurípedes Funes Kênia Rios

A vida do novo Chico depois da morte do velho: gotas de esperançaJuracy MarquesUilson VianaRobson Marques

Campina Grande: por que Campina? Por que Grande? Reflexões sobre história, acesso à àgua e meio ambiente urbano em Campina Grande - PB

Rozeane Albuquerque LimaCristian José Simões CostaCidoval Morais de Sousa

PARTE 2

PERSPECTIVAS POLÍTICA, JURÍDICA E ÉTNICA DAS ÁGUAS DO SEMIÁRIDO

As políticas das águas no Semiárido brasileiroRoberto Marinho Alves da Silva

SUMÁRIO

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Os desafios da ampliação do acesso à água em comunidades rurais do Semiárido nordestino: inovação, governança e democracia no Brasil do século XXI

Luis Henrique Cunha

Políticas hídricas divergentes no Semiárido paraibano: ensaio para uma convergência

Francisco Vilar de Araújo Segundo NetoPedro Costa Guedes Vianna

PARTE 3

POVOS E COMUNIDADES DO SEMIÁRIDO

Os povos indígenas no “Sertão verde”: mobilizações, conflitos e afirmações identitárias no Semiárido pernambucano

Edson SilvaEdivania Granja da Silva OliveiraCarlos Fernando dos Santos Júnior

Ciganos e quilombolas na região Nordeste: formas de vida e desafios constantesMércia Rejane Rangel Batista

PARTE 4

ÁGUAS DO SEMIÁRIDO E OS DIÁLOGOS SOBRE GÊNERO E EDUCAÇÃO

Gestão das águas no Semiárido: reflexões sobre subalternidade e invisibilidade das mulheres do meio rural

Andréa Pacheco de MesquitaAna Paula Silva dos SantosRamonildes Alves Gomes

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A poética do corpo e da água no Semiárido nordestino: uma escrita de si Eronides Câmara de Araújo

Educação contextualizada e recursos hídricos Edmerson dos Santos Reis

PARTE 5

ÁGUAS DO SEMIÁRIDO – ASPECTOS TÉCNICOS

Água de chuva no Semiárido brasileiro: aspectos ambientais, sociais, éticos e técnicosMíriam Cleide AmorimLuiza Teixeira de Lima BritoIug Lopes

Aluviões em rios intermitentes: manancial hídrico e uso históricoRicardo Augusto Pessoa BragaEdneida Rabêlo Cavalcanti

Revisão de efluente de esgoto tratado aplicado na agriculturaClaudia Facini dos ReisMaycon Diego RibeiroFlávio Daniel SzekutMarcio Roberto Klein

Panorama da água residuária do petróleo no estado do Rio Grande do Norte, Brasil Rafael Oliveira BatistaFabrícia Gratyelli Bezerra CostaHudson Salatiel Marques ValeDanilo Isac Maia de Souza

Hérick Claudino MendesIgor Estevão Souza MedeirosRicardo André Rodrigues FilhoAudilene Dantas da Silva

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Contaminação por hidrocarbonetos nas águas superficiais e subterrâneas em regiões semiáridas

Cristian José Simões CostaDjalma Ribeiro da SilvaRaoni Batista dos AnjosNataly Albuquerque dos Santos

PARTE 6

TROCA DE EXPERIÊNCIA COM OUTRO SEMIÁRIDO DO MUNDO

Análise multicriterial da problemática da água em uma região semiárida do mediterrâneo, o caso de Oran, Nordeste da Argélia

Tarik GhodbaniSid-Ahmed BellalTradução: Pedro Costa Guedes Vianna

AUTORES E ORGANIZADORES

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A ARIDEZ DAS IDEIAS: A QUESTÃO AMBIENTAL DO NORDESTE EM BUSCA DE PRÁTICAS E DISCURSOS INOVADORES

Durval Muniz de Albuquerque Júnior Quando se trata de discutir a questão ambiental no Nordeste brasileiro, a temática da seca emerge

como assunto privilegiado e que, praticamente, obscurece o tratamento de qualquer outro tema ou problema, levando ao que poderíamos chamar de uma aridez das ideias sobre esta questão. Tendo sido colocada como tema privilegiado do discurso regionalista das elites nortistas, no final do século XIX, a partir da chamada Grande Seca de 1877-1879, e depois da elite nordestina, no começo do século XX, a seca tem servido como justificativa para a solicitação de recursos, de investimentos, de sucessivos pedidos de cancelamento de dívidas por parte dos produtores rurais e para a criação de órgãos e cargos públicos nos quais vão se alojar pessoas ligadas as elites regionais1. Por isso o discurso da seca – que emergiu antes da própria invenção da ideia de região Nordeste e foi um dos problemas em torno do qual as elites do antigo Norte se articularam politicamente, gestando um discurso e inúmeras práticas regionalistas que terminaram por constituir a identidade regional nordestina – tem contribuído para que se veja a seca como o único grande problema ambiental deste espaço. Até porque este problema, por ser facilmente atribuído à natureza específica desta área do país, retira dos ombros das elites nordestinas e de sua população em geral, qualquer responsabilidade pela forma predatória como os recursos naturais vêm sendo usados historicamente na região.

É interessante chamar atenção para o fato de que esta é a parte do país onde mais cedo as questões ambientais foram colocadas como uma problemática a necessitar intervenção sistemática por parte do Poder Público e mesmo da iniciativa particular. Já no século XIX podemos encontrar os técnicos do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro preocupando-se com o encontro de soluções para o problema da seca do Ceará e, depois, do Norte. Desde a criação do IOCS, em 1909, que técnicos de destaque, como um Guimarães Duque ou um Alberto Loefgren, se dedicam a estudar a flora, a fauna, o solo e o clima desta área, propondo soluções técnicas para o problema2. Ainda na década de 30 do século passado, no livro Nordeste3, escrito por Gilberto Freyre, obra que podemos considerar como a certidão de nascimento definitiva da ideia de Nordeste, o documento final de sua elaboração cultural e política, toma a questão ambiental, a relação entre homem e natureza como a temática nuclear para se entender o processo histórico que se desenrolou nesta área do país. Neste livro, Freyre chamava atenção para a relação predatória que o processo de colonização implantado nas terras da Mata Atlântica significou. Embora idealizando as relações entre homem e meio ambiente nos antigos engenhos banguês já que Freyre busca ressaltar o caráter ainda mais devastador da produção canavieira – agora dominada pelas usinas, cujo avanço tecnológico é acompanhado do

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avanço da capacidade de depredação da natureza – não deixa de admitir que o latifúndio e a produção monocultora e escravista, base de nossa colonização, foi um fator de degradação ambiental, agora potencializado pela chegada da produção em maior escala das usinas. O importante nesta obra é o fato de que Freyre coloca a questão ambiental e, portanto, a relação entre homem e natureza como uma temática que deve ser abordada do ponto de vista da sua historicidade e da sua articulação com outras dimensões da realidade social como a da produção econômica, do estágio tecnológico dos agentes que com ele se relaciona, bem como das relações sociais, de poder e os códigos culturais que embasam essa relação.

Mas, além disso, por situar a formação da sociedade brasileira em torno do complexo ‘Casa Grande e Senzala’ e considerar a produção latifundiária, monocultora e escravista da cana-de-açúcar o núcleo formador de nossa nacionalidade, Freyre já muito cedo chamou atenção para outro grave problema ambiental deste espaço do país e que o discurso da seca não permitia que fosse visualizado, ou pelo menos, percebido em todas as suas dimensões: a destruição sistemática do bioma da Mata Atlântica em toda a região dominada por essa monocultura. A derrubada sistemática das matas para abrir espaço para a plantação extensiva da cana, com o desaparecimento de inúmeras espécies animais e vegetais, muitas delas queimadas quando da abertura da mata ou quando da queima do canavial para o posterior corte da cana – prática tecnologicamente atrasada que continua sendo usada em larga escala na região, contribuindo para o aquecimento global, a poluição da atmosfera e a destruição do solo, da fauna e da flora regionais – se somavam ao emporcalhamento dos principais rios desta área, com a calda podre, o vinhoto e outros dejetos produzidos por esta atividade econômica. Ainda hoje, a maior parte dos rios da região da Mata Atlântica nordestina apresentam alto grau de contaminação, à medida que a poluição, iniciada pelos engenhos e usinas, foi seriamente agravada pelo lançamento de esgotos sem tratamento feito pelas populações das cidades, já que nesta área veio a se concentrar grande parte das maiores cidades da região.

Freyre nos permite perceber que a depredação da natureza foi um elemento da própria estrutura colonial aqui montada. Tendo o lucro rápido e fácil como objetivo, a estrutura de exploração montada aqui pelos portugueses, desde o princípio, caracterizou-se pela utilização sistemática e predatória dos recursos naturais já que, desde a primeira carta escrita sobre a nova terra, esta tinha sido definida como de natureza luxuriante e dadivosa e, portanto, de recursos inesgotáveis e que poderiam ser utilizados sem qualquer política de reposição ou de racionalização do seu uso. Desde o corte indiscriminado do pau-brasil, árvore que dá nome ao país, mas quase desaparece de nossas matas, assim como o posterior uso dos rios, das matas, dos animais, do solo, o país foi presidido por esta urgência em gastar sem qualquer responsabilidade de previsão para o futuro. Formou-se, no Brasil, uma cultura da depredação do meio ambiente baseado na crença de que temos recursos inesgotáveis. O historiador americano Warren Dean4, tratando da história da Mata Atlântica, mostra como esta foi devastada, inclusive, anteriormente à chegada dos brancos, acabando com esta visão idealizada da relação entre índios e natureza, já que como grupos humanos que eram, também

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se utilizavam de recursos naturais para sobreviverem, sendo os introdutores de uma das práticas agrícolas mais nefastas para a natureza brasileira e que continua sendo usada em larga escala, que é a chamada agricultura de coivara, baseada na queima da mata para o posterior plantio. As queimadas, que devastam hoje a Amazônia, têm nesta prática indígena, um dos seus antecedentes. No Norte do Brasil queima-se até o lixo doméstico, a piromania é um elemento cultural, assim como a varrição com água que vemos até onde o líquido é mais escasso como aqui no Nordeste.

O discurso da seca permitiu também que, por muito tempo, fosse ignorada a destruição sistemática dos manguezais da região. Habitados quase sempre pelas chamadas populações tradicionais – caiçaras, pescadores, jangadeiros – os mangues foram sendo cada vez mais ocupados por populações de baixa renda que, empurradas pela especulação imobiliária nas grandes cidades da região, se viram obrigados a ocuparem habitações cada vez mais precárias, construídas sobre estes terrenos desvalorizados. Os alagados de Salvador, os mocambos do Recife e as palafitas de São Luís são exemplos desta ocupação desordenada dos mangues e a consequente destruição destes ecossistemas. Soma-se a isso as inúmeras obras de aterramento para a construção ou ampliação de avenidas, para construção de espaços públicos, de edifícios, de complexos turísticos e de hotelaria que foram feitas em detrimento de áreas de mangues. Grande parte da cidade do Recife foi conquistada às terras dos mangues e este processo ainda não foi concluído. Em São Luís, sucessivos aterramentos vão ampliando o território da ilha em detrimento dos manguezais. A poluição dos rios da região contribui para a desestruturação do ecossistema dos manguezais para onde são carreados um volume imenso de lixo urbano, de dejetos industriais, de esgotos não tratados, de produtos químicos que tornam os mangues lixões a céu aberto, realidades espumantes e fétidas.

A destruição dos manguezais, que se constituíam em importante fonte de renda e de alimento para populações tradicionais e de baixa renda na região, com a cata de mariscos e caranguejos, chama a atenção para outro fator desencadeante dos problemas ambientais do Nordeste e que não pode deixar de ser levado em conta quando se trata de pensar políticas de preservação ambiental na região: o fator social. A miséria, que transforma uma boa parcela da população em predadores da natureza como única alternativa de sobrevivência. Se a natureza no Nordeste foi e é duramente atingida para gerar e manter os lucros de boa parte de suas elites, que têm na exploração descontrolada de seus recursos naturais um dos seus mecanismos principais de acumulação, ao lado da super-exploração da força de trabalho, já que, quase sempre, dispõem de um aparato tecnológico atrasado, quando não obsoleto (como é o caso da produção canavieira, da pecuária extensiva e mesmo alguns setores da produção industrial), as camadas populares da região também são um importante fator de destruição ambiental, por terem na natureza, na sua exploração intensiva, a única forma de sobrevivência. Deste modo, a pesca, a mariscagem e a caça predatórias, a venda de produtos da mata, de animais e de pássaros, a agricultura de coivara, a criação de animais soltos nos centros urbanos, são responsáveis pela destruição da natureza na região, pela poluição urbana, pela transmissão de doenças, etc.

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Mas, talvez, o maior crime ambiental cometido por essa centralização do discurso regional na questão da seca foi a sistemática, invisível e quase irrecuperável, destruição do bioma caatinga. Para termos uma ideia desta invisibilidade basta constatarmos que somente no governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva e na gestão de Marina Silva à frente do Ministério do Meio Ambiente é que se colocou o bioma caatinga no rol daqueles biomas ameaçados de extinção no país5. O mais contraditório e dramático, se não fosse cômico, é que este reconhecimento se faz na gestão de uma ambientalista ligada à luta pela preservação da Amazônia, que por ter enorme destaque, dado, justamente por esta mobilização política feita em torno dela e pelos interesses internacionais então envolvidos, de certa forma encobre e mascara outros sérios problemas ambientais que temos no país, como é o caso da devastação do cerrado, do pampa e da caatinga, quando já tivemos membros das elites nordestinas na gestão do Ministério e que se limitou a tomar o discurso da seca como guia para sua atuação.

A destruição da caatinga, assim como a da Mata Atlântica, é um processo secular, tendo se iniciado com as entradas para o interior, promovidas por colonos interessados em reivindicarem doações de sesmarias e realizarem a criação de gado. Embora sendo uma atividade menos predatória em relação à natureza, a pecuária logo teve que se associar a uma agricultura de subsistência feita nos mesmos padrões aprendidos com os indígenas – o arado é uma novidade nesta área, ainda no começo do século XX – e mais tarde à produção algodoeira que alçada, na segunda metade do século XIX, à condição de importante produto na pauta de exportação, levou a um desmatamento progressivo da área da caatinga. À medida que a população se adensou nesta área, outras exigências passam a ser feita a este bioma, como o de fornecimento de energia com a queima da madeira ou o uso desta para a construção de casas ou mesmo para a feitura de cercas e currais, já que a pecuária extensiva e as fazendas sem limitas vão se extinguindo com o avanço das relações capitalistas, de uma mentalidade mercantil e baseada na ideia de propriedade privada.

Esta depredação da caatinga se acentuava nos momentos de estiagem prolongada porque sua exploração intensiva passava a ser a única alternativa para a sobrevivência de boa parte da população e uma das alternativas encontradas pelos grandes proprietários para alimentarem seus rebanhos de gado e ao mesmo tempo manterem seus trabalhadores. A doação de partes das reservas de caatinga das fazendas para a feitura de carvão vegetal, a venda de madeira para as padarias ou outros tipos de indústrias que usam intensivamente a madeira como fonte energia foram responsáveis pela devastação de boa parte da área de caatinga. A derrubada das xerófilas para a alimentação do gado e até dos homens em momentos mais dramáticos, também contribuiu para a destruição do equilíbrio ecológico neste bioma e a proliferação nas capoeiras e áreas desmatadas de plantas secundárias e de ervas daninhas como o marmeleiro e o mata-pasto, além de pragas como o cupim e a formiga, que se espalham à medida que seus predadores naturais, como os pássaros, desaparecem. O solo nu, submetido a um regime de chuvas que é caracterizado por ser irregular, mas concentrado em dados períodos do ano e marcado pela ocorrência de chuvas torrenciais provoca a erosão e faz

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com que a camada fértil do solo seja levada para dentro de rios, riachos e açudes, aterrando-os, e levando ao afloramento das rochas cristalinas, que nesta área está à pouca profundidade, gerando verdadeiros pedregais e carrascais em processo acelerado de desertificação. A região do Cariri paraibano é um exemplo deste processo que acabo de descrever. No Seridó do Rio Grande do Norte se perpetrou outro grande crime contra a caatinga que foi o uso da camada de solo fértil da região para a fabricação de produtos de cerâmica e o consequente uso da madeira para alimentar os fornos das fábricas, aliado ao uso em larga escala das águas dos açudes para a fabricação de telhas, tijolos e outros produtos cerâmicos. Este é um exemplo claro de falta de planejamento ou de perspectiva de longo alcance das políticas públicas de desenvolvimento industrial ou econômico nesta área do país, mostrando que é bastante correta a diretriz do Ministério do Meio Ambiente de que política ambiental deva ser feita por todos os Ministérios e não só por este Ministério em específico.

O discurso da seca e a própria forma como o Nordeste foi definido, desde o começo do século XX, como uma região rural, fizeram com que também ficassem em segundo plano tanto nas políticas públicas, quanto nos trabalhos acadêmicos e científicos, os sérios problemas ambientais vividos pelas grandes cidades da região6. Tendo, desde a década de 1970, mais de 60% de sua população vivendo em cidades e tendo muitas das grandes cidades do país, o Nordeste ainda continua sendo visto como uma região cujos problemas ambientais localizam-se no campo. Grande parte das cidades nordestinas não contavam, até os anos 2000, com rede de esgoto e uma boa parcela da população dessas cidades não tinham acesso à água encanada, situação que começou a ser resolvida apenas nos últimos governos. Natal, cidade voltada para o turismo, tinha, no início do milênio, apenas 30% de seu perímetro urbano atendido por esgotos, sendo que uma boa parte da tubulação se encontrava obsoleta, facilmente estourando sempre que chovia de forma mais contínua. Parcela significativa dos esgotos da cidade ainda é jogada diretamente nas praias, inclusive em Ponto Negra, cartão postal para a atração de turistas estrangeiros. A falta de educação ambiental da população faz com que ela escolha os rios, praias, lagoas, canais e terrenos baldios como lugares preferenciais para jogarem o lixo doméstico, quando não o atira da janela do ônibus nas ruas e nas pessoas que venham passando.

A especulação imobiliária desenfreada e sem controle do poder público, muitas vezes conivente e muitas vezes agente da construção indiscriminada de prédios, hotéis, resorts e outras edificações, inclusive em terrenos públicos, é responsável por graves problemas ambientais nas cidades nordestinas, a saber: a ocupação e destruição dos manguezais, o aquecimento das cidades por falta de ventilação provocada pelos paredões de prédios construídos à beira mar, como em Boa Viagem, no Recife e Iracema, em Fortaleza, a impermeabilização do solo através do asfaltamento indiscriminado que resulta em alagamentos, cheias e o aquecimento das cidades7. A própria capacidade de atendimento pela rede de água e esgoto se vê comprometida, como ocorre hoje no bairro de Ponta Negra, na cidade do Natal8. A privatização de praias e espaços urbanos e naturais é uma outra consequência, se não ambiental, mas social deste processo. A perfuração incontrolada de

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poços artesianos para o atendimento do consumo d’água destes grandes aglomerados populacionais, que são os grandes edifícios e condomínios urbanos, põem em perigo a própria preservação do aquífero, que passa a ser exigido numa velocidade superior àquela de sua reposição9. Em Natal e em Recife, por exemplo, já chegou a ser proibida a contínua perfuração de poços que estava levando a inviabilização de todo o sistema. A ocupação dos terrenos de vales e platôs por parte das camadas mais abastadas leva as populações mais pobres a ocuparem encostas, mangues e áreas de risco, ocasionando sucessivos desastres ambientais e sociais10. As próprias áreas de floresta ou áreas de preservação, como a área de dunas e lagoas em Natal, São Luís, Maceió, se veem sob forte pressão pelas ocupações irregulares. As margens dos rios e as nascentes que os alimentam se veem pressionadas e poluídas, quando não destruídas. Em Salvador, a própria Lagoa do Abaeté está ameaçada de secar pela ocupação irregular das matas onde se localizam as nascentes que a alimenta11. Canoa Quebrada, antes festejado paraíso para turistas, é hoje um aglomerado de casas sem qualquer planejamento, jogando esgotos a céu aberto, que escorrem por suas lindas encostas vermelhas para desaguar no mar12.

Não significa que as estiagens periódicas não sejam um problema ambiental a ser enfrentado por medidas de cunho governamental ou particular. Mas é preciso superar a falácia do discurso da seca que promete e reivindica a solução para tal problema. Um fenômeno natural e climático como a seca não tem como ser resolvido, o que se pode fazer é se aprender a conviver com ele. Prometer acabar com a seca – promessa que já rendeu tantos votos, que já encheu tantos bolsos de dinheiro, que já deu origem a muitas e duvidosas obras de grande envergadura, como o é agora, a transposição das águas do rio São Francisco, necessária, mas não a panaceia que vai acabar com a seca como foi apresentada, em dado momento, pelo Ministério de Integração Regional, durante a gestão do ministro Ciro Gomes – além de necessitar ser acompanhado de medidas de preservação do próprio rio, seriamente ameaçado há muitos anos, embora só agora as elites dos Estados por onde ele passa tenham descoberto isso é o mesmo que prometer acabar com o deserto ou acabar com a chuva, não sejamos ridículos e falaciosos. Precisamos é aprender a conviver com um dado da realidade, que está aí e que nada pode ser feito se não adotar medidas no campo da economia e da política, medidas sociais, no campo cultural e educacional para poder dar as condições aos diferentes grupos sociais, em seus diferentes ambientes e em suas diversas atividades econômicas, de poderem realizar suas atividades normalmente, apesar da seca. Tecnologia e conhecimentos acumulados para isso já temos, o que falta é vontade e condições políticas para fazê-lo.

A educação ambiental tem um papel importante a desempenhar neste processo, exatamente porque, como venho procurando mostrar nesse texto, o problema ambiental nordestino está envolto a uma série de mitos e cheio de lugares comuns, de tal forma que se torna necessário um trabalho de desconstrução destas elaborações discursivas, antes de qualquer outra atividade feita a partir da própria contestação da visão monolítica que se tem sobre a natureza nordestina. O Nordeste não é só o Semiárido, a Seca e a Caatinga. Existem, no Nordeste, vários biomas e ecossistemas que

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também precisam de atividades de preservação e de sustentabilidade. Além da Mata Atlântica, dos Manguezais, temos a Mata dos Cocais e mesmo parte do Cerrado que estão seriamente ameaçados pela forma como vem se dando a ocupação destas áreas. As cidades nordestinas são hoje ambientes a exigirem medidas ambientais e sociais urgentes, onde a educação tem um importante papel a desempenhar. Há, no Nordeste, as inúmeras questões ambientais ligadas às suas várias atividades econômicas presididas por mentalidades bastante predatórias, que só serão modificadas por processos educativos. As elites nordestinas se caracterizam historicamente pela predação, mesma atitude que podemos encontrar nas camadas populares e nem sempre apenas por estarem premidas por necessidades econômicas inadiáveis. A questão ambiental no Nordeste envolve inúmeras variáveis e uma delas é a cultural, que nasce da forma como os vários grupos sociais deste espaço veem a natureza, a definem, a utilizam, a valoram, a significam e isso é uma discussão a ser levada por atividades culturais e educativas. Existem concepções acerca da mata, do rio, da árvore, do pássaro, do cacto, das abelhas, dos animais, que circulam nas formas e expressões culturais populares ou no senso comum que tanto podem contribuir para atitudes de preservação e respeito em torno do meio ambiente como para a sua destruição. A pesquisa em torno destas concepções sobre o espaço, sobre a natureza, e a posterior educação ambiental, a partir das reflexões aí desenvolvidas, é fundamental como complemento de políticas mais gerais e estruturantes, tais como: a criação de reservas do bioma caatinga, o prêmio com a redução de impostos para quem adotar atitudes preservacionistas em suas terras ou atividades econômicas, bem como a adoção de legislação que discipline a ocupação urbana, das praias, dos mangues, do solo urbano em geral. Legislação que relativize o direito de propriedade ou penalize com impostos progressivos àqueles que contribuírem ativamente em suas propriedades ou atividades econômicas para a destruição ambiental.

No Nordeste, mais do que adoção de uma política de acúmulo de água, é preciso democratizar o acesso às águas já acumuladas e educar as populações para seu uso racional. Evitar a irrigação indiscriminada e a própria contaminação com agrotóxicos dos mananciais de água e rios com sua utilização na produção agrícola empresarial, como é o caso conhecido da produção de tomate em torno do açude José Américo de Almeida, o chamado Boqueirão, contaminando as águas que abastecem a cidade de Campina Grande, na Paraíba. No Nordeste é o monopólio da água, corolário do monopólio da terra, que sustenta esta estrutura social iníqua de profundas desigualdades e de insuportáveis injustiças13. O conhecimento e debate destas questões através de atividades de educação ambiental são fundamentais para a modificação das atitudes de superexploração da natureza que caracterizou até agora a nossa história, como região e como país.

É preciso, nesse processo de educação ambiental, atentar para o caráter histórico e político dos conceitos que sustentam o próprio discurso ambiental na região. Conceitos como Seca, Semiárido, Polígono das secas, Sertão, Nordeste, possuem uma história que deve ser conhecida para entendermos a dimensão política e cultural presente na definição e significação de cada um deles, para se poder atuar no sentido de mudanças nas formas de vê-los e dizê-los, passo importante

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para que a alteração das atitudes e ações que se desenvolvem em torno dessas noções. As elites do chamado Norte seco, no final do século XIX, notadamente a partir da dita Grande Seca de 1877-1879 e as elites nordestinas, no início do século XX, se apropriaram da palavra ‘seca’, de forma a dar a ela um sentido muito particular. Nenhum outro espaço no Brasil parece poder usar essa expressão, ela passou a ser uma exclusividade da região Nordeste. O extremo Sul do Brasil, que vem sofrendo com períodos de escassez de chuvas, assim como outras áreas do país, sofrem estiagens, mas não secas, estas parecem ser exclusividade do espaço nordestino. À seca foi atribuída todos os problemas da região. As elites nordestinas, ao naturalizar os problemas sociais e econômicos vividos pela região, escapavam de suas responsabilidades políticas e sociais. As secas periódicas apenas agravam problemas sociais e econômicos causados por uma estrutura fundiária marcada pela concentração da propriedade da terra, acompanhada pela própria concentração das fontes de água, usadas, inclusive, para se fazer barganhas políticas, sendo que, muitas dessas aguadas, foram fruto de investimentos públicos em propriedades privadas. As secas causam enorme impacto numa sociedade rural, onde uma boa parte da população ainda vive numa economia de mera subsistência, de baixa presença tecnológica, extremamente dependente das variações do clima. Numa economia que só nos últimos anos apresentou uma maior taxa de capitalização, qualquer intempérie climática levava à sua desorganização. Hoje, graças à rede de proteção social construída pelo Estado, na última década, a região e sua população pôde resistir, nos últimos cinco anos, a uma de suas maiores secas, sem que se vissem as cenas de miséria extrema e desespero que eram comum acontecer em outros momentos.

As secas que, ao longo do século XIX, eram consideradas fenômenos específicos do espaço da província do Ceará (até a chamada Grande Seca de 1877-1879, o fenômeno era conhecido como seca do Ceará) tornam-se, no final daquele século, após a comoção nacional que as imagens dos chamados flagelados ou retirantes dessa seca, publicadas pela imprensa da Corte provocam, a seca do Norte. É nessa estiagem que as elites das províncias do Norte descobrem a arma política que têm em mãos. É a mobilização delas em torno desse fenômeno que faz emergir o chamado discurso da seca que, já no início do século XX, fará suas primeiras conquistas ao conseguir que fosse criado um órgão federal voltado exclusivamente para tratar do chamado problema das secas. Em 1909, ao ser criada a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS) é que se vai instituir o chamado Polígono das Secas, área privilegiada de atuação da entidade. Nessa primeira circunscrição, o Polígono das Secas abarcava apenas os estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, o chamado Norte seco. Ele recebe o nome de polígono porque se traça uma espécie de figura geométrica que delimita o que seria a área de ocorrência das secas. Como sabemos, esse Polígono foi sendo ampliado ao longo do século XX, a partir da reivindicação e pressão política das elites dirigentes de outros estados da federação que percebem o quanto era vantajoso pertencer a essa delimitação espacial dita climática e ambiental, pois, afinal, esse pertencimento garantia o acesso a recursos, obras e cargos públicos, o que interessava diretamente aos grupos locais. Hoje, o Polígono das Secas

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abarca toda a região Nordeste e, inclusive, áreas dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. O conceito de sertão foi objeto de elaboração, como um espaço ligado a identidade nacional, como

o espaço onde estaria efetivamente a nacionalidade, ainda no século XIX, com os românticos. Embora fosse objeto de enorme desconhecimento e se referisse a todos os espaços ditos desconhecidos, não civilizados, despovoados ou distantes do litoral, o sertão aparecia em autores como José de Alencar14, como o espaço onde estaria o cerne da nacionalidade. Quando, no início do século XX, Euclides da Cunha e Afonso Arinos15 deram elaborações definitivas e de grande repercussão para esse conceito, este ainda não se encontrava capturado pelo discurso das elites nordestinas. Foi a partir da própria emergência da ideia de Nordeste, no início do século XX, que o conceito de sertão começou a ser instrumentalizado pelos discursos políticos, intelectuais e artísticos de agentes que se identificavam como pertencentes a esse espaço. Notadamente, a partir do sucesso nacional do chamado Romance de 30 e do consequente impacto no imaginário nacional das várias coberturas que a imprensa nacional passou a fazer das agruras do Nordeste, no momento das secas, que o conceito de sertão também começa a ser praticamente monopolizado pelos discursos em torno desse espaço. Cada vez mais, o conceito de sertão passou a ser associado, no imaginário do país, aos conceitos de seca e Nordeste. Os demais espaços do país, progressivamente, deixaram de possuir sertão, e passaram a ter apenas interior, a ponto de que o livro de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas16 ser, muitas vezes, confundido com um livro sobre o sertão nordestino, quando, na verdade, narra a história de personagens alojados nos chamados sertões das Gerais. O conceito de Sertão, constantemente associado, no discurso da seca, a esse fenômeno e ao espaço nordestino, terminou marcado por imagens comuns as noções de seca e de Nordeste, embora ao Sertão também se associe, principalmente no discurso folclórico, a imagem de um espaço marcado por formas de vida tradicionais, por manifestações culturais populares e pretensamente pertencentes a tempos anteriores àqueles do domínio da vida moderna, urbana e burguesa.

A definição do clima dessa área do país como Semiárido vem desde os estudos pioneiros das Comissões Científicas que foram enviadas ao Norte do Império, ao longo do século XX. Embora, no discurso da seca, nas falas de parlamentares, governantes, lideranças políticas, nos trabalhos de intelectuais e artistas, muitas vezes o Norte seco e depois o Nordeste tenha sua natureza comparada ou descrita a partir da imagem do deserto, o clima desse espaço, desde os estudos feitos pelos engenheiros enviados pelo Clube de Engenharia, no século XIX, foi definido como sendo Semiárido. No entanto, se faz necessário que chamemos a atenção para o fato de que esse termo ganhou uma generalidade e uma força de identificação da chamada região Nordeste, a partir de uma estratégia política de suas classes dirigentes, que ao Semiárido foi dado uma amplitude muito maior do que efetivamente possui. No imaginário nacional, todo o território nordestino seria identificado e definido pelo pertencimento a esse clima. Muitas vezes não é necessário sequer se referir ao Nordeste, basta dizer o Semiárido, dando a ele um certo status de realidade em si mesma, para que se entenda que o espaço de que se fala é o Nordeste. Desde os anos 1980, inclusive no discurso de lideranças

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de movimentos populares, nos discursos articulados em torno do enunciado “convivência com o Semiárido”17 , que passa a ser grafado inclusive com letra maiúscula, ele parece adquirir uma espécie de identidade própria, a se constituir numa espécie de entidade autônoma, de realidade à parte em relação à região e ao país. O conceito de Semiárido passa a articular em torno de si muito mais do que uma simples referência a uma dada condição climática, ele passa a agregar outras dimensões como todas aquelas ligadas às chamadas questões ambientais, mas também ao que poderíamos nomear de aspectos antropológicos. Nesses discursos, o Semiárido não é apenas um dado clima, um dado meio ambiente, uma dada natureza, mas ele implica uma dada maneira dos homens viverem e conviverem, ele implica a validade e preservação de dados valores, dadas visões de mundo, de dadas maneiras de produzir, de consumir, de trabalhar, de se relacionar com a natureza, com o tempo e com os espaços. Muito influenciado por um certo discurso cristão, notadamente dada a presença, junto a esses movimentos sociais, de entidades e agentes ligados a Igreja Católica, notadamente aquela influenciada pela chamada Teologia da Libertação, desenvolve-se uma verdadeira mística em torno da noção de Semiárido, que passa a significar, na verdade, um conceito em torno do qual se desenvolvem práticas e discursos de resistência a inserção desse espaço nos fluxos econômicos, culturais e subjetivos trazidos pelo capitalismo internacional18. O Semiárido passa a ser objeto de um certo discurso romântico, que vem acompanhado de práticas que parecem ver nesse espaço uma espécie de possibilidade de manutenção ou retorno a uma vida comunitária, regida por relações mediadas por uma ética e uma estética pré-burguesas ou anticapitalistas. As sementes da paixão, a produção em mandalas, o retorno de atividades comunitárias como os mutirões, as chamadas tecnologias de convivência com o Semiárido vêm, muitas vezes, acompanhadas de um discurso que faz do Semiárido esse espaço especial, onde se poderá articular uma forma de vida resistente e resiliente ao mundo do capital e do trabalho urbano e industrial19. A criação, no governo de Luís Inácio Lula da Silva, do Instituto Nacional do Semiárido (INSA), na cidade de Campina Grande20, advém das reivindicações e pressões políticas desses movimentos sociais que se articularam em torno do conceito de Semiárido, vendo nele uma alternativa aos desgastados conceitos de sertão e de Nordeste, já profundamente investidos por um imaginário politicamente comprometido com as elites dirigentes da região. As esquerdas da região Nordeste, tanto aquelas ligadas aos movimentos sociais, às organizações não-governamentais, quanto aos setores da intelectualidade militante dentro ou fora das universidades, institutos de pesquisa, partidos políticos, sindicatos, têm adotado o conceito de Semiárido como uma alternativa às noções de sertão ou Nordeste, muito marcados pelas elaborações discursivas e pelas atividades políticas dos grupos dirigentes desse espaço. Podemos dizer que as elites políticas e intelectuais das esquerdas, na região Nordeste, descobriram no conceito de Semiárido, sempre escrito com maiúsculas por ser elevado a uma categoria de entidade homogênea, com uma identidade clara e distinta no país e na região, uma categoria disponível para em torno dela se articular novos discursos e práticas que fugissem do e denunciassem o tradicional discurso das secas, feito pelas elites dirigentes dos estados da região

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quando buscavam o que chamavam de: “soluções para as secas”. O enunciado estratégico desse discurso é o da “convivência com o semiárido”, aliado ao conceito

de “desenvolvimento sustentável”, que se opõe, justamente, a ideia de que as secas podem ser solucionadas, como sempre prometeram os discursos das elites dirigentes do Nordeste, que nomeavam de solução para as secas aquilo que demandavam do Estado, em cada momento, como: estradas de ferro, açudes, verbas, instituições, a industrialização etc. e que insere o problema da seca dentro da dinâmica mais geral do desenvolvimento, buscando alternativas ao que seria o típico desenvolvimento nos padrões empresariais capitalistas. A criação do INSA representa a criação de um espaço institucional para a veiculação desse discurso e das práticas de pesquisa, de educação ambiental, de incentivo à adoção de dadas atividades econômicas, de dadas tecnologias, de dadas formas de organização da produção e da comercialização, de dadas atitudes em relação ao meio ambiente que se articulam em torno do conceito de Semiárido, o qual vem para substituir o conceito de Sertão e de Nordeste, que, por sua vez, vem reelaborar o próprio conceito de seca. A veiculação do enunciado da diversidade, tanto dos aspectos naturais, como dos aspectos econômicos, sociais e culturais, do que seria o Semiárido, colide com a própria lógica identitária e homogeneizadora que preside a elaboração de toda e qualquer categoria cuja pretensão seja unificar e dar sentido de conjunto justamente ao que é diverso e disperso. Talvez seja uma dificuldade intransponível de todo e qualquer discurso de cunho político e, até mesmo, intelectual, que se proponha a militar em torno da mudança de uma dada realidade: ela precisará ser nomeada, ela precisará ser caracterizada no que seria sua singularidade, ela precisará ser contraposta e comparada com outras dadas realidades, será preciso sempre que a dispersão da empiria dê lugar ao caráter unificador e abstrato de um conceito, que tornará possível articular dados discursos e práticas em defesa ou buscando a transformação dessa realidade que o conceito circunscreve e nomeia, dando a ela realidade, dizibilidade e visibilidade.

1 Ver: ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Falas de astúcia e de angústia: a seca no imaginário nordestino – de problema à solução (1877-1922). Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1988 (Dissertação de Mestrado em História)2DUQUE, José Guimarães. Solo e água no Polígono das Secas. Rio de Janeiro: Minerva, 1953; LOEFGREN, Alberto. Notas botânicas. Mossoró: Fundação Guimarães Duque, 1982 (Coleção Mossoroense) 3FREYRE, Gilberto. Nordeste. São Paulo: Record, 1989.4DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.5Ver: “Áreas prioritárias para conservação, uso sustentável e repartição de benefícios da biodiversidade brasileira”. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2007. 6Ver: ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5 ed. Paulo: Cortez, 2011. 7TEIXEIRA, Marcionila. Pesquisa inédita mede temperatura em 11 pontos da capital e cria um ranking de calor. Recife: Diário de Pernambuco, 04 de maio de 2015. http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/vidaurbana/2015/05/04/interna_vidaurbana,574613/pesquisa-inedita-mede-temperatura-em-11-pontos-da-capital-e-cria-um-ranking-do-calor.shtml. Acesso em 04 de julho de 2017 e SOUSA FILHO, Mário Pinto e SALES, Maria Celina. Estudo do comportamento dos ventos na cidade de Fortaleza nos

Notas

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últimos trinta e cinco anos (1974-2009). Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2009 (Monografia de Graduação em Geografia). https://www.google.com.br/?gws_rd=cr,ssl&ei=EgRhWe6jAYfwQT_8xw#q=falta+de+ventila%C3%A7%C3%A3o+em+Fortaleza. Acesso em 04 de maio de 2017. 8PAIVA, Laura. Vídeo mostra esgoto sendo jogado em Ponta Negra durante chuva. Natal: Blog Brechando, 04 de março de 2017. http://www.brechando.com/2017/03/video-mostra-esgoto-sendo-jogado-em-ponta-negra-durante-chuva/. Acesso em 04 de julho de 2017. 9Perfuração de poços artesianos reduz água em reservatórios subterrâneos. Jornal Hoje, edição do dia 23 de novembro de 2014 (Rede Globo de Televisão). http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2014/11/perfuracao-de-pocos-artesianos-reduz-agua-em-reservatorios-subterraneos.html. Acesso em 05 de julho de 2017. 10GROSTEIN, Martha Glória. Metrópole e expansão urbana: a persistência dos processos insustentáveis. São Paulo: São Paulo em Perspectiva, v. 15, n. 1, Jan-Mar, 2001. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392001000100003. Acesso em 05 de julho de 2017. 11ANDRADE, Maiza. Lagoa do Abaeté: cartão-postal baiano sofre com falta de infraestrutura e poluição. Rio de Janeiro: Extra, 08 de novembro de 2008. https://extra.globo.com/noticias/brasil/lagoa-do-abaete-cartao-postal-baiano-sofre-com-falta-de-infra-estrutura-poluicao-606959.html. Acesso em 05 de julho de 2017. 12Poluição na praia de Majorlândia. Fortaleza: Diário do Nordeste, 27 de julho de 2012. http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/regional/poluicao-na-praia-de-majorlandia1.554201. Acesso em 05 de julho de 2017. 13Ver: ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Águas privadas movem destinos: o monopólio da água como fonte de poder no Nordeste. Natal: Anais do Seminário Nordeste: o que há de novo?, 1988, p. 75-77. 14Ver: ALENCAR, José. O sertanejo. Rio de Janeiro: Clube do Livro, 1952. 15Ver: CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Nova Cultural, 2002 e ARINO, Afonso. Pelo sertão. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. 16ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. 17No site de uma destas ONG´s, o Instituto Regional da Pequena Agricultura Apropriada (IRPAA), encontramos a seguinte definição para a noção de convivência com o semiárido: “É um modo de vida e produção que respeita os saberes e a cultura local, utilizando tecnologias e procedimentos apropriados ao contexto ambiental e climático, constrói processos de vivência na diversidade e harmonia entre as comunidades, seus membros e o ambiente, possibilitando assim, uma ótima qualidade de vida e permanência na terra, apesar das variações climáticas.” http://www.irpaa.org/modulo/convivencia-com-o-semiarido. Acesso em 06 de julho de 2017. 18Significativamente, nessa mesma página do IRPAA onde se define o que seria uma “convivência com o Semiárido”, aparece em epígrafe, uma frase do bispo emérito da cidade de Juazeiro (BA), D. José Rodrigues, que afirma: “Viver no Semiárido é aprender a conviver!”19Ver: MOREIRA NETO, Mariana. Outro sertão: fronteiras da convivência com o semiárido. Recife: Massangana, 2013. 20Criado pele Lei n. 10.860, de 14 de abril de 2004. https://portal.insa.gov.br/sobre-o-insa. Acesso em 06 de julho de 2017.

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E O MAR VIROU SERTÃO

Eurípedes FunesKênia Rios

“Perto de muita água tudo é feliz”. João Guimarães Rosa

Por volta da era mesozoica, grande parte do atual Nordeste foi coberta por mares interiores. Com o último grande deslocamento das placas tectônicas e o enrugamento da crosta terrestre, as águas foram para fora e o que era mar foi se tornando um grande sertão. As marcas desta transformação, de longa duração, são perceptíveis em vários lugares, como no Cariri cearense onde estudos geológicos e arqueológicos têm revelado dados quanto às temporalidades daquelas formações rochosas, sua flora e fauna: peixes, insetos, e vegetais fossilizados. A céu aberto, encontra-se uma grande “mata” de madeiras fossilizadas. Terra de petrosssauros.

As chapadas sedimentares, com seus topos férteis e vegetação, se diferenciam daquelas de formação graníticas, as quais trazem as marcas de suas idades geológicas, reforçando o imaginário de interiores sertanejos cobertos por água, ou, no mínimo de um grande lago. O mar que virou sertão deixou outras marcas visíveis, basta aguçar o olhar de lince que elas saltam aos olhos. Segundo Rebouças,

Os rios foram criados por Deus para alimentar os homens, os animais e os vegetais; e, sob o ponto de vista social, para serem navegados, para alimentarem os canais e para ensinarem aos engenheiros as direções das grandes vias de comunicação, que devem promover a prosperidade de seu país (REBOUÇAS,1874, p. 51).

Deus ficou devendo esta ao Sertão de caatinga. Ali, mesmo em tempos de estiagens regulares, os rios correm de 4 a 6 meses. Assim, é importante discutir como um curso d’água passa a ser visto por concepções distintas, “como um objeto político, um recurso essencial para o avanço social e econômico do país” (PÁDUA, 2004, p. 28).

Em tempos de novas configurações paisagísticas, os rios foram definindo seus cursos ou tiveram desenhados os seus percursos, como é o caso do São Francisco que teve seu caminho “entortado” em quase 90º – deixa de correr para o norte e ruma ao oeste chegando ao oceano. É interessante observar que, em 1846, o juiz do Crato e deputado provincial, Marcos Antônio de Macedo, apresentou um projeto propondo a construção de um canal ligando as águas do São Francisco ao Jaguaribe, tornando-o perene. Naquele contexto não se falava em combate às secas, mas sim no favorecimento da integração das províncias do Norte dentro de uma política de unidade nacional. O trajeto deste “novo” braço de rio deveria retomar o curso original do São Francisco, passando

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por uma região de depressão formada na chapada do Araripe, seguindo pelo riacho dos Porcos, rio Salgado, caindo por fim no Jaguaribe e, finalmente, alcançando o Atlântico (OLIVEIRA, 2015). O projeto não saiu do papel e ainda hoje as águas do “rio santo” são tidas como aquelas que redimirão o sertão seco, outrora afogado em águas.

O mar virou um sertão de 1 milhão e 200 mil km2 de área. Ecossistema único com vegetação de caatinga, que se torna cada vez mais árida, com sinais de altos níveis de desertificação em várias e grandes áreas, abrangendo, hoje, aproximadamente 340 mil km2. Entre elas as regiões de Irauçuba e partes do sertão central no Ceará. Uma desertificação que se dá por razões naturais, mas sem dúvida, acelerada pelas ações humanas. Há de se considerar que nos referimos ao Semiárido mais densamente povoado. Um contexto que tende a se agravar ainda mais com o avanço do agronegócio que, além dos impactos ambientais, tem desalojado a agricultura familiar. Um processo de desertificação que parece silencioso, mas de efeitos gritantes em especial àqueles que vivem da terra. Lugares onde a vegetação não responde mais às águas das chuvas.

Este fundo do antigo mar que vem à tona traz as qualidades de uma terra árida, seca, com uma camada de solo de pouca fertilidade natural. Falta o que antes havia em abundância – água. O subsolo é cristalino – com temperatura chegando, abaixo dos 10 cm, a 50º – não permitindo o fluxo contínuo dos rios e fragilizando-os já em suas nascentes, diferente dos solos sedimentares.

De acordo com Aziz Ab’Saber:

ao contrário do que acontece em todas as áreas úmidas do Brasil – onde os rios sobrevivem aos períodos de estiagem, devido à grande carga de água economizada nos lençóis superficiais – no Nordeste seco, o lençol se afunda e se resseca e os rios passam a alimentar o lençol. Todos eles secam desde suas cabeceiras até perto da costa. Os rios extravasaram, os rios desapareceram, a drenagem ‘cortou’. Nessas circunstâncias, o povo descobriu um modo de utilizar o leito arenoso, que possui água por baixo das areias de seu leito seco, capaz de fornecer água para fins domésticos e dar suporte para culturas de vazantes (AB’SABER, 2003, p. 87).

Ocupado por sociedades nativas e posteriormente por colonos que ao reocuparem estes espaços, a partir do século XVI, deram a eles novos sentidos de usos e valores, o Sertão configura outras territorialidades, não poupando a sua vegetação de cactáceas, florestas anãs de árvores, com folhas aduncas, e outras de médios portes resistentes às estiagens mesmo quando prolongadas.

Um processo que vem de tempos longínquos, em especial a partir do momento em que esta região teve suas fronteiras devassadas pelo processo colonial lusitano. Espaço experimentado por diversos sujeitos, que lhe dão significados e usos que marcam suas culturas e organizações sociais. Uma expansão marcada pelas guerras de conquistas, contra as sociedades nativas e a natureza sertaneja que se torna um objeto de desejo, com água.

A intervenção colonizadora, agressiva,

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implica no contato direto, físico, com esse meio – em função daquilo que veio buscar. E, nesse sentido, o que o colonizador tem diante de si é a mata ou o sertão bravio – e a ênfase aí vai na expressão do bravio porque o ato realmente dignificante desse indivíduo é o desbravamento. Natureza que aparece como inimigo a ser vencido a ser espoliado. “Fazedores de Deserto” (Euclides da Cunha): a maneira como a prática da ocupação do solo brasileiro foi fundamentalmente predatória, destrutiva e que não só modificou mas, no limite, extinguiu a natureza original e a transformou em ruína. Nesse sentido é possível ver o processo da colonização como sendo comandado por duas cores: o vermelho e o verde (SEVCENKO, 1996, p. 111).

O vermelho representa o fogo e o verde a mata (o perigo), já que terra boa, com valor de produção é a terra limpa de matos, bichos, índios e posseiros. O sertão tornou-se natureza dominada. A guerra contra o sertão foi acontecendo, na medida em que se ia conhecendo os lugares, buscando terras, em especial, aquela com presença, ou sinais de água, mesmo que seja apenas um olho d’água. Lugares que se tornam espaços em disputas.

Lago, lagoa, rio, riacho, olho d’água, nascentes, cabeceiras, poço, cacimba, ribeira, tornam-se referências aos locais, ou de proximidade, às águas que nascem, correm ou que se concentram nos sertões. Lugares preferencialmente requeridos em solicitações de sesmarias.

Logo, em um tempo em que a dependência do homem em relação à natureza era maior, no que tange a sobrevivência e manutenção da vida, não era de se estranhar que além da luta pelo controle da terra e consequentemente, a definição de um território, com a água passava a ser o grande foco das investidas de posses e de poder (MORAES, 2015, p. 173).

Acirrando, assim, as tensões ente os colonos chegantes e os indígenas, cada vez mais desterritorializados pelas guerras de expansão colonial, expulsos de suas terras e de suas águas.

Os chegantes trouxeram seus gados e junto a eles um conjunto de implementos agrícolas e de novas plantas. “A conquista foi, em outras palavras, imensamente ajudada pelo fato de que os invasores humanos trouxeram suas plantas aliadas acidentalmente” (WOSTER, 2002, p. 24). Todavia, muitas não se ambientaram ao semiárido. Houve, quase que de forma natural, um processo de seleção. Faltava a uma agricultura mais intensiva solo fértil e, principalmente, um regime climático que garantisse água. No bioma de caatinga, a seca é certa, a chuva uma espera.

Desde o período colonial, frente às dificuldades de existência e manutenção da água, aos chegantes fazia-se necessário um sistema de ações práticas, sempre orientadas com uma intencionalidade a organizar os humanos em sociedade, economia e cultura (MUIRAKYTAN, 2015). E a principal intervenção diz respeito à capacidade de se reter o precioso líquido - o represamento de águas de riachos era tido como benefícios feitos nas propriedades.

No sertão do Rio Piranhas, PB, à semelhança de outras capitanias do Norte, cerca de 96% dos pedidos de sesmarias, de um total de 155 concessões, registrados entre 1700 e 1750, fizeram referência a terras próximas a lugares de água, ou que pudessem represá-la. Em 1703, o licenciado,

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Francisco Tavares de Mello, e seus companheiros propunham a recepção de terras próximas ao riacho Unebatucú, que ficava na serra da Borborema, com o intuito de represá-lo, dado que no local não havia grande volume de água para a manutenção de seu gado (MORAES, 2015). Outros faziam poços de pedra e cal, para a conservação da água durante o período de estiagem. Ações claras de intervenção do homem ao meio ambiente.

A natureza do sertão, que desponta nas descrições das terras requeridas em sesmarias, oferece um panorama do lugar – uma compreensão de sua natureza ambiental. “Além de conter o detalhamento da localização da área almejada, presentando confrontações e a extensão de seus limites, vários registros, relatavam peculiaridades valiosas dos lugares, utilizando até o aparato linguístico e descritivo dos indígenas. Assim, descortinam-se imagens do sertão e seus rincões”. Essas descritivas nos fazem perceber o quão rico era a flora do bioma da caatinga e que davam vida às veredas, por onde os novos colonizadores se embrenhavam no exercício de guerrear pelas terras e consolidar a colonização lusa (MOREIRA, 2015).

Todavia, deve se ter em conta, que ao lançar olhares para o semiárido nordestino, devemos entender que a paisagem não é una, nem homogênea. Há vários sertões marcados pelos aspectos do solo, elevações, condições climáticas entre outros. Lugares com água, brejos, carrascos, lagoas. Na vegetação baseada no bioma da caatinga predominam aquelas de formas arbustivas, mas se fazia presente uma vegetação mais alta que recobria e recobria alguns dos interiores destes sertões, considerando aí os fatores já mencionados. Espécies vegetais que sinalizam os marcos das terras solicitadas são variadas: angicos, favela, gameleira, juazeiro, cumaru, quixaba, umburana, entre outras e as palmeiras, que denotavam terra molhada – a carnaúba e buriti.

Conforme Manuel Correia de Andrade, áreas de carnaúbais são marcadas pela umidade, além de que, por serem de lugares planos e próximos dos rios, podiam passar por alagamentos, considerados pontos estratégicos, devido à abundância de madeira que fornece estrutura e teto para as habitações, e outras construções necessárias aos empreendimentos agropastoris (ANDRADE, 2011).

São espaços vividos, praticados, experimentados pelos sujeitos. Espaços de cruzamentos e de mobilidades pluriétnicas, onde se gestam novas territorialidades, sociedades, identidades e culturas que qualificam as sociedades sertanejas que vivenciam, interferem, e são interferidas, pelo bioma da caatinga, onde os solos são rasos, pedregosos, de drenagem problemática, salinização exacerbada. Em condições normais de invernos, a vegetação da caatinga brota entre duas semanas depois das chuvas. Todavia, hoje em várias áreas, não importa o quanto chova, a vegetação não responde, não brota mais como outrora. A “mata branca” morre por fora, mas renasce às primeiras chuvas. Um processo natural, esperado pelos sertanejos, mesmo que demore. Um fenômeno para aqueles que a veem verde, quando tudo deveria ser sempre cinza. Para estes, a dinâmica da natureza deveria ser decifrada pelo conhecimento científico que estabeleceria as condições para o seu aproveitamento. Todavia, há de se considerar que há um saber popular que dá conta das inconstâncias desta natureza.

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Profetiza, com rigor, os tempos de chuva e os tempos de secas.

1. A água e a ciência no sertão da caatinga

A experiência de cientistas e viajantes que percorreram no século XIX a província do Ceará, fez com que esses homens dessem especial atenção à água e pudessem presenciar os vários sentidos que o líquido ganha nos modos de vida do lugar.

A chegada da Comissão Científica21, em 1859, coincidiu com o reverso da estação climática, em que uma seca de mais de cinco meses trazia em sustos os habitantes da Província, pois que o inverno do ano anterior tinha sido escasso; e as fracas chuvas do mês de agosto haviam sido insuficientes para a criação de forragens. [...] [A sessão botânica] pôde assistir ao magnífico espetáculo da transformação dos campos e do aspecto da natureza da Província, quando depois de aturada a seca, sobrevêm as primeiras águas. Ao terreno solto, desolado e no parecer infrutífero, dos arredores da Fortaleza, sucedeu em poucos dias, e como por encanto, uma vegetação vivente e luxuriante (TRABALHOS, 1962).

Digno de registro a capacidade regeneradora das terras cearenses após as primeiras chuvas. Admira-se com a metamorfose da vegetação que tão desgraçadamente era noticiada fora da província. O botânico inglês George Gardner, em 1837, descreve o espetáculo que assistiu com a queda das primeiras águas na fronteira entre o Ceará e Pernambuco:

Quando fui para lá, mal começando a estação das águas, pude observar o extraordinário efeito que umas poucas chuvas haviam produzido na vegetação. Três meses antes, ao partir dali, deixara murcha e queimada toda a vegetação rasteira. As árvores tinham cor e aspecto doentio. Agora, porém, tudo estava renovado e verdejante (GARDNER, 1975, p. 47).

O viajante Henry Koster22, de passagem por aqui nos anos 1810, destaca essa “admirável característica da vegetação brasileira” que “caindo chuva à tarde, no outro dia já existe uma leve matiz verde; continuando as chuvas, os renovos da relva medirão uma polegada, e, no terceiro dia, serão suficientemente longos para que o gado possa pastar” (KOSTER, 2003, p.52).

A admiração dos visitantes com o rápido ressurgimento do verde sugere que a falta de água no Norte poderia ser um problema facilmente solucionável. A vegetação, como observaram, renascia sem a necessidade de água abundante e com isso, a construção de reservatórios adequados solucionaria o problema da seca. Não por acaso, grande foi o debate entre cientistas e intelectuais sobre a melhor maneira de guardar água na província, sobretudo a partir do final do século XIX, quando o tema ganha repercussão nacional. Vale salientar que esse valor pátrio já começa a ser produzido na seca de 1825, quando o Império assume esse tema como elemento de agregação, apelando para um sentimento de fraternidade em que todos deveriam ajudar o irmão nortista. Thomaz Pompeu de Sousa Brasil, em seu estudo sobre o clima e as secas do Ceará, destaca a ajuda vinda de outras partes do país. Ressalta o autor, com ares de novidade, que naquela estiagem de

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1825, “nos maiores povoados as vítimas de fome foram raras, porque a alimentação veio de fora da província” (BRASIL, 1877). (grifo nosso).

Naqueles anos, a seca começa a ser usada como tema de comoção nacional. Se um dos membros do corpo estava doente, era então a pátria toda que padecia. Criava-se, portanto, uma tópica discursiva para as secas, o que, evidentemente, estabeleceu uma nova relação de seus habitantes com o fenômeno climático ou ainda, a construção de outras memórias sobre a seca. Vejamos o que relata Gardner, entre os anos 1837 e 1838:

Toda a província é sujeita por vezes a prolongadas secas, a última ocorrida no ano de 1825, durante a qual absolutamente não choveu. Grande foi o sofrimento resultante desta calamidade, de que o povo ainda fala com supremo horror. Extinguiram-se gado e cavalos e a perda de vidas humanas na província avalia-se em trinta mil habitantes. Gente sem conta pereceu quando procurava chegar à costa; animais selvagens e domésticos sucumbiam por falta de água e de alimento (GARDNER, 1975, p. 47).

Certamente, Gardner narra os acontecimentos de 1825, com base em conversas com a população local, o que indica que se havia formado uma memória detalhada da última seca. Desse modo, podemos sugerir que as narrativas sobre estiagem começam a abundar e servir de assunto, com data, entre nativos e viajantes. O que há agora são os acontecimentos da seca de 1825, 1845, 1877. A apropriação que o Império fez da seca de 1825, aliada a olhares e contatos cada vez mais ‘cientificizados’, ajudou a constituir narrativas datadas sobre as estiagens. A aproximação com a ciência reorganiza a narrativa da seca no Ceará.

Os anos passam a fazer parte de uma nova lógica para as histórias das secas, tendo cada uma seu relato próprio e ,mais do que isso, suas estatísticas particulares. Esses estudos, segundo Joaquim Alves, já se iniciam timidamente durante a seca de 1777, quando “nas últimas décadas do século XVIII, os administradores coloniais revelam um certo interesse pelos dados estatísticos, realizando coletas, segundo o recurso de que dispunham” (ALVES, 2003, p. 62).

Não é forçado dizer que o registro da perda de bens, mortes, entre outros itens, tenha sugerido um novo tempo para as memórias da seca. Não mais o tempo das eras e de acontecimentos naturais, mas o tempo do calendário datado e singularizado pela estatística, consolidada como instrumento de registro e controle de dados nos mais variados acontecimentos e aspectos estruturantes do modus vivendi, sobretudo na segunda metade do século XIX, o que se verifica no trato da Grande Seca, de 1877. Vale salientar que mesmo escritos anteriores sobre as estiagens ganham maior repercussão, publicação, espaço na imprensa e em institutos científicos (nacional e internacional) somente depois dessa efeméride.

A campanha por uma irmandade, agora nacional, consegue a adesão pessoal do imperador D. Pedro II, que teria dito, durante a seca de 1877, a seguinte frase: “vendam-se as joias da coroa, mas, não morra de fome um cearense” (STUDART, 1909, p. 23).

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No final do século XIX, as mais variadas formas de registro e comunicação sobre o Ceará destacavam com veemência os desdobramentos advindos com as intempéries. Contudo, viajantes e cientistas desde antes observavam os efeitos da seca e, como ato contínuo, o valor da água para os habitantes da província ressequida. Desse modo, os forasteiros construíram com detalhada atenção suas impressões sobre as águas. Entre a falta e o excesso, sobressaía para os visitantes, o valor extremo que o líquido assumia.

Alguns membros da Comissão Científica de 1859 registraram a relação sagrada dos cearenses com a água. O líquido parecia mais valioso do que o tão procurado ouro. A população mais pobre deixava claro para a Comissão que a água era o bem mais precioso por ali. Capanema, chefe da sessão de geologia, observa: “o potencial fértil destas terras que fazem brotar sem grande esforço; falta-lhes somente a água, que, quando chega, constitui a felicidade da Província” (TRABALHOS, 1962, p.74). No documento de 1878, Capanema detalha o cuidado dos nortistas no trato da água:

Quanto à água, sigam o exemplo dos campistas que bebem a água lodacenta do Paraíba e bebem-na cristalina e saborosa; para isso depositam em grandes talhas e aí a deixam repousar uns poucos dias; outros que dispõem de espaço, em baterias de potes que lhes permitem beber água de quatro, seis e mais meses, e há quem chegue a guardá-la anos, e oferecem um copo dessa água velha como artigo de luxo (CAPANEMA, 1878, p.26).

O geólogo atenta para o fascínio diante da água e seus encantos. E apesar da polêmica entre os estudiosos do final do século XIX, sobre o tamanho do prejuízo causado pela sua escassez, o discurso da carência do líquido modelou, com força, uma imagem para o Ceará e para o cearense. Nesse desenho, há uma relação mais familiar nos assuntos da água que devem ser tratados com base em práticas e princípios culturais locais, o que mais propriamente alguns chamaram de “ciência do povo”23.

A sacralização do líquido se impõe em face do grande dilema na vida do sertanejo sempre angustiado com a possibilidade de ter ou não inverno24. Desse modo, muitas são as formas de leitura do tempo para prognosticar a chuva. A maioria delas revela a intimidade nativa com o elemento natural, sejam plantas ou bichos. Olhares atentos buscam decifrar no comportamento da natureza, sinais de inverno ou seca.

Um dos personagens dessa configuração performática é o profeta da chuva. Indivíduo que, em geral, mora no sertão e conhece as astúcias da natureza semiárida. Através dos movimentos que se manifestam no corpo dos bichos e das plantas, fazem previsões que desafiam os cientistas. Nessa leitura do mundo, a água que cai do céu pode ser anunciada em formas encontradas por homens que olham, antes de tudo, para a terra. Como ressalta Juvenal Galeno, estudioso das práticas de previsão das chuvas no Ceará:

É, pois, da maior importância, saber interpretar o comportamento dos referidos espécimes, durante os meses de verão da maior parte das experiências de inverno. Isso dito, vejamos

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o significado de alguns destes sinais tomados nas experiências de secas e de invernos: a canafístula gotejando água pelas folhas durante os meses de outubro e novembro, ótimo sinal de inverno para o ano seguinte; o pau-de-mocó com boa floração nos últimos meses do ano, também sinal de inverno. A jitirana florando fora de tempo, sinal de seca, o mata-pasto florando em meio ao inverno, sinal de suspensão das chuvas (mata-pasto, inverno acabou, dizem os matutos). Existe a crença, segundo a qual no ano em que o angico deita muita resina, no ano seguinte haverá bom inverno. Se o pau d’arco roxo flora, entre os meses de junho e julho e segura a casca, bom sinal de inverno para o ano seguinte. Por sua vez, o cajueiro se flora no começo do verão, sinal de inverno cedo (GALENO, 1998, p.17).

Mas não é somente a flora que avisa como o sertanejo deve se preparar para o inverno chuvoso, também a fauna fornece os indícios de predição para a vinda das águas. Assim continua Galeno:

No tocante às especulações com os animais, o critério não varia: é o da proliferação. Este ou aquele bicho aparecendo acompanhado de muitas crias em determinada estação do ano sinal de bom inverno para o ano seguinte. Alguns iam mais longe. Davam especial importância ao comportamento dos tatus em fins de ano. Sentenciava o velho sertanejo: ‘quando o carrapato subir da barriga para o sovaco dos tatus, a chuva cairá (GALENO, 1998, p.17).

Certamente, tais técnicas não capturaram a adesão dos vários cientistas e engenheiros que assumiram a missão de amenizar o problema da escassez de água. O território visitado pelos cientistas já tinha um saber organizado para fins meteorológicos, o que gestou disputas e histórias com grande circulação nos livros de memorialistas, a exemplo do ocorrido entre o engenheiro inglês e um caboclo do sertão, contado também por Juvenal Galeno:

O tal engenheiro havia armado o seu instrumental um pouco abaixo da grande barragem, jamais concluída. Eis que chega um trabalhador da construção a preveni-lo:- Doutor, é bom Vossa Mercê retirar seus teréns daí, porque hoje de noite vai chover.- Qual nada, caboclo. Respondeu o doutor.- Isso que você vê ali é um pluviômetro. Ele está acusando: vento leste, tempo seco sem previsão de chuva. O caboclo ia andando quando o inglês o chama.- Diga-me uma coisa: em que se baseia para dizer que hoje vai chover?- Por causa do jumento, doutor. Veja como ele está suado. Jumento suando na sombra é sinal de chuva.O gringo riu a mais não poder do que acabava de escutar. No dia seguinte era o caboclo que ria da sabedoria do doutor, porque durante a noite, caiu uma chuva de matar sapo afogado. E os teréns do doutor foram levados pela correnteza (GALENO, 1998, p. 18).

No Ceará, a tensão entre o saber científico e o popular se acirra quando o assunto transita entre as possibilidades de diagnosticar ou prognosticar a chegada e circulação das águas25. Por se tratar de tema melindroso, entre os sertanejos há uma crença maior na capacidade nativa de prever o inverno. Os chamados profetas da chuva têm a responsabilidade de prognosticar o inverno de cada ano e neles é depositada considerável confiança até hoje.

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A leitura da natureza faz da água o grande tema da vida no sertão cearense. Desse modo, um poder que se experimenta nas terras do Ceará passa por aqueles que advinham, mas é fundamental dizer que o poder político e econômico coincide com a posse da água. Por isso mesmo, a solicitação de terras, desde a colônia, sinalizava a ocupação próxima ao leito dos rios. Como sugere Sobrinho, “embora completamente seco durante os longos meses do verão, visto como estas margens, eram os terrenos mais valiosos pela sua constituição e principalmente porque as fontes de água estavam mui próximas, nos leitos dos rios e riachos” (SOBRINHO, 1940, p. 33). É ainda Thomaz Pompeu Sobrinho que infere: “no Ceará, por toda parte há água abundante na profundeza do solo; mas, para ser usada, requer a abertura de poços ou cacimbas, muitas vezes profundos e dispendiosos” (SOBRINHO, 1940, p. 32). Sobrinho lembra que só alguns podiam fazer brotar a água que corria no subsolo. A concentração do líquido se limita a alguns poucos privilegiados que, desde longas datas, souberam fazer render a sua “sorte”.

Os lugares de boa água garantiam ao proprietário não apenas lucro com a venda, mas o cultivo de diferentes culturas nas terras irrigadas. Freire Alemão registra que: “a água que sai desta fonte é recebida em reservatórios com pequenas comportas e distribuída pelas hortas e canaviais até grande extensão. Aqui, vi plantação de camélias, parreira, etc, etc.” (ALEMÃO, 2006, p. 41). O botânico cita espécimes que necessitam de maior umidade, como é o caso das camélias, vistas, segundo Freire Alemão, somente no sítio do Sr. Pacheco, onde o visitante experimentou, finalmente, uma água digna de ingestão, pois na maioria dos lugares, afirma, “a água é má e leitosa”.

A aproximação com o rio Jaguaribe, ao longo da viagem até o Crato, mostrou as muitas faces desse território fluvial que se constituía, até então, na principal estrada para seguir pelo Ceará. O Jaguaribe ditava o território possível de ser explorado. Suas estradas de ribeira conduziam homens e gado província adentro26. Conforme Pompeu Sobrinho: “a penetração do interior era sobremodo facilitada pela disposição geral da hidrografia regional. Os rios não só indicavam e abriam o caminho do interior, como ainda forneciam elementos para fixação do colonizador” (CORTEZ, 2013, p. 64).

Naquela porção da estrada composta pelo Jaguaribe da vila de Aracati, o diário de Freire Alemão abriu espaço para uma descrição amena e quase idílica sobre as águas e as terras do Ceará. O autor salienta, em vários parágrafos, sua boa impressão sobre o lugar e seus recursos líquidos. Ali, foi-lhe servido “excelente água de que não me fartava”. A ribeira aparecia-lhe “coberta de carnaúbas e árvores soltas de várias naturezas magníficas e esparsadas”. Ali, o conceituado botânico rendeu-se ao poderoso rio. Lançou-se às águas do Jaguaribe como faziam os que aqui viviam: em bandos e nus:

Quando cheguei ao rio já havia muita gente: raparigas, pretos e pretas que apanham água, algumas a lavarem crianças, etc, de sorte que me foi necessário caminhar em muito tempo para achar um lugar, que conviesse e cheguei-me para um dos poços grandes, formados junto a uma lage (sic) mas aí perto estavam uns pescadores estendendo suas redes, e entre eles uma mulher. Não havia mais a escolher, despi-me e banhei-me à vista de Deus e de todo mundo. Grande quantidade de aves ribeirinhas passeava, voava, mariscava e cantava dando animação à paisagem (ALEMÃO, 2006, p. 143).

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2. A água e os profetas

Roque de Macedo era homem conhecido quando o assunto era a previsão das chuvas e secas. Para muitos habitantes de Fortaleza, era para Roque de Macedo que o tempo revelava seus maiores segredos. Aprendeu a soletrar o movimento dos bichos, a cópula dos insetos, o sentimento das ervas e as dores das plantas desde que se viu gente. Como a maioria dos sertanejos, assistia à dança do mundo natural com intimidade e cumplicidade. O olhar desses homens não obedecia às regras do conhecimento científico formal.

Diferente dos objetivos da história natural, que se pautava num conteúdo prático e utilitário27, a ciência desses homens se alimenta da tradição, da experiência que aproxima natureza e cultura, homens e bichos. Não se trata de conhecer para ter o controle e colocar o mundo natural a serviço do homem, mas de travar um diálogo intersubjetivo entre a natureza e o ser humano.

O profeta do tempo só consegue realizar suas previsões porque também ela faz parte da natureza que lhe fala. Não se trata da exterioridade com que a ciência oficial tratou o tema por longas décadas: homens de jaleco recolhendo amostras da fauna e da flora para serem examinadas em laboratórios com fins práticos ou para serem expostas nas vitrines dos museus naturais. Esses homens/profetas apontam não só para o que haverá com as nuvens no período próximo, mas principalmente indicam uma outra postura diante da natureza: conhecer e respeitar a subjetividade presente no mundo natural. Os bichos, as plantas e as águas se comunicam com alguns homens porque reconhecem neles algo familiar. Aquilo que muitos de nós resolvemos ocultar. Afinal, aprendemos com o século XVIII e XIX que o distanciamento da natureza garante aproximação com o mundo civilizado.

Esse afastamento criou a impossibilidade de enxergar a natureza a olhos nus. Binóculos, barômetros, birutas, lunetas e microscópios começaram a estabelecer a exterioridade do homem em relação ao natural. Não é mais o corpo humano que mira o céu, mas um corpo alargado pela técnica. Tentáculos metálicos que começaram a crescer e a devorar o que via em nome do progresso. Movimentos que foram fabulosamente traduzidos por Goethe na obsessão de Fausto pelo desenvolvimento: “natureza infinita, como poderei agarrá-la? Onde estão suas tetas, fonte de toda vida (...) por quem meu coração vazio anseia” (GOETHE, 2000, p. 207).

Na contramão do sentimento de Fausto, ouvi uma declaração que rompe absolutamente com a ideia do homem como o centro de tudo. Em um desses dias de entrevista, nas longínquas paragens da caatinga, encontrei um senhor de mais ou menos 80 anos. Desacostumada a tamanho calor, distraía-me com a visão tremida do sertão imenso e seco. O volume da terra deserta era espantoso. Resolvi reclamar ao senhor a flagrante injustiça da natureza. Em tom de protesto, me dirigi ao velho:

- Tanta terra, e, ninguém pode morar por causa da secura. É muito injusto, o senhor não acha?Sem grandes alardes, me respondeu:- não serve para o bicho homem, mas tem tanta coisa que vive tão bem na secura. Num vê os mandacarus, os xiquexiques, os tatu-peba...28

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Saiu a arrolar os seres com possibilidade de sobrevivência relativamente tranquila naquele lugar. A leitura se realizou a partir de parâmetros que negam o homem como o único protagonista da vida na Terra. Ao seu modo, engendrou uma crítica ao antropocentrismo.

Os profetas da chuva e todos os outros agricultores que, de certo modo, se irmanam com a natureza, sugerem reflexões para além da tradição de previsões do tempo. Colocam-nos em face de uma complexa articulação entre natureza e cultura, técnica e meio ambiente.

O olhar nativo tem base na vivência cotidiana, por isso afirmam que “falam do que observam a vida toda”. Jósa Magalhães, destacado nome no estudo das experiências de sol e chuva, considera que para os sertanejos tais experiências valem mais do que toda a ciência experimental dos doutores, porque são tradições orais que vêm de outras eras, legadas por seus maiores homens experimentados neste mister. Daí a fé inviscerada que depositam em tais tradições e que lhes mantém o tônus da esperança cheio de vitalidade. Quando alguém, em base científica, se aventura a predizer se o ano futuro é seco ou molhado, o caboclo sertanejo costuma ironizá-lo dizendo que “profecia de doutor não vale pra nada: quando diz que vem chuva é seca, quando pensa em seca, o que aparece é inverno grande.” No entender dos sertanejos, ninguém melhor do que eles conhecem os problemas de sua região, porque nela vivem e observam (MAGALHÃES, 1983, p.137).

A possibilidade de prever o tempo é parte da vida. Contudo, isso não garante que todos os sertanejos consigam executar tal proeza. Desse modo, destacam-se aqueles que souberam ler com maior preciosismo o mundo natural. Esses devem sua missão com responsabilidade e grandeza. No Ceará, saber responder sobre chuva é tema sagrado. Nessa perspectiva, os cuidados e disputas se dão também numa esfera interna.

Os profetas sofrem algum tipo de desconfiança por parte dos sertanejos e, além disso, quem tem a última palavra sobre sol e chuva é Deus. Afinal, foi Ele quem inventou os dois fenômenos naturais.

Vale considerar que o entendimento sobre a existência ou não de períodos de seca tem a ver, entre outras coisas, com a condição do merecimento. Seca é castigo. Chuva é mérito. Em face do sofrimento em períodos de escassez, constrói-se uma imagem sagrada com a água, seja pela sua presença ou pela sua falta. Desse modo, é difícil acreditar que a solução para a seca venha dos homens. Em torno desse repertório de interpretações, há reforço da ideia de que a prática da previsão de chuva ou seca é dom dado por Deus. Se alguns profetas não conseguem exercê-lo é porque não conseguiram a aproximação devida com as coisas sagradas e puras, o que inclui certamente, as plantas e os bichos.

3. A água, o Semiárido e a seca

Uma das áreas secas mais populosas do mundo, com mais de 27 milhões de habitantes, é o semiárido brasileiro, formado por dez estados, nove deles pertencentes ao Nordeste (INSA, 2017).

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Com essa caracterização, não há um investimento efetivo em estudos que ajudem a pensar a convivência com o semiárido. Desse modo, sobretudo até os anos 2000, a principal resposta diante dos períodos de seca era a migração para as grandes cidades. Contudo, a saída dessas populações tem acontecido mediante uma rede de sentidos e relações de força entre o Estado, as elites econômicas e políticas, e as astúcias, crenças e saberes de homens e mulheres que formam a população pobre do semiárido.

Mesmo quando o governo deflagra seca, normalmente entre os meses de fevereiro e março, o sertanejo cearense espera chegar o dia de São José, santo padroeiro do Ceará, 19 de março. Se neste dia não chover, aí sim, o sertanejo parte em retirada para as grandes cidades.

Foi assim que aconteceu no ano de 1932. Depois de um inverno tímido em 1930 e 1931, os sertanejos não obtiveram resposta positiva nem de São José nem das experiências nativas para prognosticar as águas do ano vindouro.

A situação de desespero levou milhares de sertanejos para os trens que seguiam rumo a Fortaleza, capital do Ceará. Como a cidade vivia um momento de expansão de suas riquezas, em face do comércio e da indústria têxtil, os ricos da capital sentiram que seu projeto de modernização e embelezamento do espaço urbano estava fortemente ameaçado com a chegada da “horda de famintos”, como diziam nos jornais da época. Apesar dos alardes, crescia a população dos excluídos e marginalizados nas ruas de Fortaleza.

Como em secas anteriores, a tentativa de controlar os flagelados entrou em vigor, mas dessa vez de modo muito mais sistematizado. Em 1932, a prática de manter a cidade dos ricos isolada (ou parcialmente isolada) da miséria concretizou-se na construção de locais para o aprisionamento dos flagelados, frentes de trabalho e políticas de emigração forçada para outros estados. Nessa seca, o poder público confinou parte dos sertanejos em sete Campos de Concentração distribuídos em lugares estratégicos para garantir o encurralamento de um maior número de retirantes.

No final de junho, com pouco mais de um mês de funcionamento, os Campos de Concentração apresentavam uma inesperada quantidade de sertanejos. Conforme as estatísticas oficiais o número de retirantes concentrados nos sete campos chegava a 73.91829.

Os Campos de Concentração possibilitaram-me uma reflexão sobre a construção dos lugares de isolamento da pobreza em face do medo que a multidão faminta causava nas elites de Fortaleza durante as secas.

Como locais de confinamento, os campos ganharam relevância nas páginas dos jornais da cidade, o que tornou possível perseguir o rastro das tensões produzidas nesse momento de confronto entre pobres e ricos.

As matérias jornalísticas detalhavam diversos aspectos da seca: a situação no Sertão; a distribuição de passagens de trem feita pelo governo e o deslocamento de sertanejos rumo à capital; a chegada dos retirantes e o pânico dos ricos ante o flagelo que se aproximava; o emprego de flagelados em obras do governo em andamento nas cidades; os diferentes discursos sobre a necessidade de

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controle dos pobres; a estrutura dos Campos de Concentração e os conflitos entre administradores e concentrados30.

No ano de 1932, as obras de melhoramento da cidade eram justificadas pelo discurso de combate à seca, entendido, nesse caso, como a urgente salvação e controle do flagelado. Nesse ano, a capital deu largos passos em seu desenvolvimento. Obras amplamente solicitadas por seus nobres cidadãos foram construídas em curto prazo. A intensa utilização da mão-de-obra flagelada, aliada a um determinado direcionamento dos recursos federais, davam impulso ao progresso urbano de Fortaleza. A cidade convivia com uma das maiores secas até então registrada, o que não impedia que seus jornais afirmassem em triunfo que: “Fortaleza é uma das capitais mais progressistas do Norte e quiçá do país inteiro”31.

Os discursos eram fervorosos em impulsionar o desenvolvimento da cidade. A relação de benefício com a calamidade climática era explícita. Depois de solicitar providências do governo para o emprego dos flagelados, o jornal O Nordeste afirmava: “As crises climatéricas periódicas têm sido para a nossa terra o factor de destruição das nossas riquezas, mas, ao mesmo tempo, o maior elemento de progresso do nosso meio econômico”32.

A modernização da cidade intensificou a chegada de turistas e, por outro lado, transformou a seca também em atração. O flagelo apareceu, aos excursionistas, cercado por muros e vigiado por guardas:

...em nossa companhia visitaram o Campo de Concentração de Flagelados em Pirambú, recolhendo naquele diminuto mostruário os efeitos da seca (...) Os ilustres viajantes deixaram a quantia de cinco contos de réis em benefício dos flagelados da seca, no Ceará”33.

A miséria tornava-se espetáculo para os excursionistas. Como “tipos exóticos” devidamente

enjaulados, os flagelados eram expostos aos olhares estranhos. Ao que parece, os cinco contos de réis deram aos turistas a sensação de dever cumprido. Mais uma vez, a burguesia amenizava a imagem trágica do sofrimento dos pobres em nome da caridade.

Enquanto isso, os retirantes continuavam a se deslocar do sertão para Fortaleza. A caridade aos miseráveis enjaulados completava-se com um sentimento de guerra aos pobres. O Correio do Ceará, do dia 06 de abril, usa uma terminologia bélica para compor uma imagem aterrorizante dos flagelados: “O exército sinistro dos esfomeados marcha pelas estradas em demanda de Fortaleza.” O texto jornalístico alimentava sentimentos de medo com imagens que ganhavam fácil projeção na cidade. Pouco a pouco, consolidava-se, entre as classes dominantes de Fortaleza, o hábito de temer os pobres da seca34. Subjacente ao pânico estampado nos jornais, havia um irrecusável apelo: é preciso proteger-se. O que configurava a certeza em torno do projeto dos Campos de Concentração.

As regiões mais atingidas pela seca aglomeravam, nas suas estações de trem, uma imensa quantidade de famintos. Desses lugares, saíam, todos os dias, trens com vagões lotados. As estações ferroviárias transformaram-se em espaços de grande tensão entre os retirantes e as forças policiais.

No fim desse mesmo mês, com a construção dos primeiros Campos de Concentração e o início

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do funcionamento das frentes de trabalho, o Governo começou a suspender a distribuição das passagens de trens para Fortaleza. Entretanto, essa medida não foi suficiente para deter a vinda dos flagelados. Decididos a fugir da seca, muitos sertanejos invadiam trens e chegavam ao destino previsto. O Jornal O Povo, de abril de 1932, anunciava: “mais um trem fora invadido pelos flagelados no Sertão central do Estado”. Matérias como essa eram frequentes. No jornal O Nordeste do dia 08 de abril, a manchete era a “tragédia da fome”. Com essa matéria, o periódico destacava os assaltos dos flagelados aos trens no Sertão do Ceará:

Os flagelados estão assaltando os trens. Em Praiano, atacaram um comboio, armados de cacetes e ferramentas. Os famintos tomaram um trem de passageiros em Senador Pompeu. Os famintos já desesperados estão lançando mão de todo tipo de ato como meio de solução para a fome que os devora. (...) Cenas impressionantes como estas, resultantes da grande crise de chuvas em 1932, nos são contadas diariamente...35 .

Entre os anos 1930 e 1947, o Brasil viveu o governo do presidente Getúlio Vargas. A partir de 1932, com a dissolução dos poderes estaduais e a centralização do poder na figura do presidente e seus ministros, o Brasil experimentou um governo ditatorial e populista. Diante do quadro conflituoso desenhado pela seca de 1932, as elites urbanas do Nordeste solicitaram, a partir de discursos humanistas, medidas urgentes para amenizar o problema da seca. No estado do Ceará, os grupos com poder econômico e político sugerem ao Governo Federal a construção dos Campos de Concentração. Tal medida havia sido empregada em 1915 de modo tímido com a construção de apenas um Campo. Em 1932, o Ministério de Viação e Obras públicas autorizou o erguimento de sete Campos de Concentração espalhados no território cearense.

Na estrutura de alguns desses espaços de Concentrações existia um lugar específico para o castigo exemplar. Relatos jornalísticos descrevem detalhadamente o funcionamento dos Campos de Concentração, contudo não aparece qualquer informação sobre esse espaço de punição. Já na memória dos sertanejos que passaram por esses lugares, a lembrança do “sebo” (o nome do lugar de castigo) tornou-se marcante.

Conforme depoimento oral do Sr. José Camurça dentro do Campo do Buriti (no Crato), havia: “uma espécie de cadeia para os desordeiros”, “um cercado de madeira bem alto e seguro”. D. Maria de Jesus, que esteve por cinco meses no Campo de Senador Pompeu, comenta que os rapazes tinham seus cabelos raspados porque temiam o confinamento no “sebo”.

A existência de um lugar para o castigo era mais uma estratégia no disciplinamento dos flagelados dentro dos Campos. Mesmo que não fossem utilizados com frequência, esses lugares conseguiam fortalecer o controle dos flagelados através de uma intensificação da “pedagogia do medo”.

Com os Campos, foi intensificado o controle dos retirantes pelas ruas das cidades, sobretudo Fortaleza. Em 1933, com as primeiras chuvas, o Governo desfez os Campos, ofereceu passagens e distribuiu sementes para o plantio na tentativa de garantir o retorno dos sertanejos para suas

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localidades. Contudo, essas medidas não surtiram o efeito desejado. Mesmo com a oficialização do final da seca, um grande número de retirantes permaneceu em Fortaleza.

Alguns estudos sobre o processo de favelização em Fortaleza assinalam os anos de 1932/33 como marcos na expansão de sua periferia (SILVA, 1992, p. 29). Apesar do rígido controle que se estabeleceu durante essa seca, muitos sertanejos engrossaram as fileiras da pobreza na “Cidade do Sol”. Nesse movimento, os retirantes deixaram de ser flagelados e passaram a ser favelados.

Até aqui, nosso exercício foi o de apresentar a seca não como um fenômeno meramente climático, mas pleno de relações de força em que elementos do poder institucional e privado se conectam e tentam manipular situações em proveito próprio. Contudo, os poderes instituídos enfrentam os sentidos de uma cultura subalterna que articula modos de vida e luta pela sobrevivência.

A tentativa de controle dos pobres encontra resistência nas formas que os vários grupos subalternos inventam para enfrentar as ações repressoras das elites do Nordeste brasileiro. Elites que têm usado a seca como forma de acumular dinheiro e poder por meio de um discurso que barganha favores políticos e que mantém, dessa forma, a pobreza de milhões de indivíduos. Contudo, o que pode ser observado na longa tradição de conflitos no Nordeste é a insubmissão dos grupos populares para garantir o acesso à terra e à água.

Mesmo considerando que a migração possa acontecer por muitos motivos, as multidões que foram apresentadas nos campos de concentração e espalhadas pelas ruas das cidades somente se compõem nesse formato quando há a justificativa mítica e a certeza da seca que só é confirmada pelas formas que os próprios sertanejos usam para prognosticar as águas da estação invernosa. Essa dimensão é importante para compreender que o abandono de suas casas e a saída para outros lugares acontece depois da certeza de que todos os saberes e crenças confirmaram a escassez de água para aquele ano. Ademais, há o entendimento de que a seca é castigo de Deus e não adianta lutar contra os desígnios divinos.

Como presente de Deus, a água estaria sob o seu controle. Assim, a água é uma bênção e a seca, consequentemente, é um castigo. Nas narrativas, os sertanejos demonstram desconfiança diante da ideia de que algum projeto técnico possa resolver o problema da seca.

Eu não acredito que homem nenhum possa resolver o problema da seca, o que ele pode é dar trabalho nas frentes de serviço pra gente não morrer de fome, mas resolver, acho que não. Tem até uns que põe avião pra fazer aquele bombardeio nas nuvens. Aquilo não resolve nada (Seu José, entrevista realizada em 1998).

Em face da escassez, constrói-se uma ligação sagrada com a água. Nessa medida, é difícil acreditar que a solução para a seca venha dos homens. Em torno desse repertório de interpretações sobre a água e suas conexões com a vida e com a morte, há um reforço da ideia de que o problema da seca nunca será resolvido pelo governo ou pela ciência: “é coisa de Deus”.

É necessário manter uma ligação de respeito com a água e com os mistérios que dela derivam.

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Nesse sentido, as narrativas populares contam histórias de castigos para aqueles que ignoraram a ordem do mundo e o lugar da água nessa ordem. Zombar da água é o mesmo que zombar de Deus.

A escassez ou a abundância de água fazem parte do repertório de mistérios divinos e, desse modo, são inquestionáveis. Além das mais variadas histórias exemplares, a água carrega os enredos em torno dos mitos de fundação e fim do mundo.

Com base nessa urdidura de saberes, os sertanejos constroem sua interpretação sobre a ideia de que o “Sertão vai virar Mar e o Mar vai virar Sertão”. A profecia, já muito conhecida, apresenta-se num formato cíclico, pois como dizem alguns, no começo e no final dos tempos, o sertão foi e será a “cama de uma baleia”.

Em Juazeiro do Norte, cidade do Ceará, todos conhecem a mensagem do Pe. Cícero (que é santo popular) que dizia: “Juazeiro ainda será inundado pelas águas do Rio São Francisco” (o maior rio navegável do Brasil). Muito embora as ruas da cidade não tenham sido alagadas pelo “velho Chico”, os devotos constroem uma interpretação própria que confirma a realização da profecia. No depoimento de Seu Jaime, um dos antigos moradores de Juazeiro, o rio São Francisco já teria inundado as ruas da cidade pelos fios da eletricidade, pois a energia elétrica que abastece Juazeiro vem da hidrelétrica de Paulo Afonso, localizada no rio São Francisco.

Se, por um lado, a água significa salvação dos problemas advindos da seca, por outro pode significar problemas para a humanidade: a ideia do dilúvio é constante entre muitos moradores do Sertão nordestino. Assim como dizem alguns, o dilúvio seria causado pelas intervenções técnicas nos rios e açudes, como é o caso das barragens, que quando rompem inundam cidades, causando irreparáveis prejuízos ambientais.

O assombro de alguns sertanejos diante das “criações modernas” aponta para um sentimento apocalíptico. Alberto Galeno, folclorista cearense, destaca que o profeta da chuva Assis Salgado, afirmava que “os aviões afastavam as nuvens provocando as secas. E mais: que a fumaça dos aviões era como se fosse veneno para o gado, causando morrinha nos bois, que ficavam tristes e arrepiados, terminando por se findar” (GALENO, 1998, p. 39).

Nesse contexto, a ordem do tempo é apresentada pelo desenrolar da fauna e da flora. É um saber que vem do atrelamento entre natureza e cultura. Não se trata de uma ligação sobrenatural; ao contrário, tais enunciados codificam-se na natureza que compõe homens, bichos, árvores, frutas, aviões etc. Tudo se realiza numa natureza/cultura que gesta a legitimidade de fenômenos como a seca e as crueldades que dela se desdobram como é o caso dos Campos de Concentração, que pode ser um castigo de Deus, mas era executado pelos homens.

21 A Comissão Científica de Exploração formada por cientistas brasileiros para explorar e conhecer as terras do Império; começou sua expedição na Província do Ceará e dissolveu-se depois dessa primeira experiência, sem visitar outras províncias, como era proposto no projeto original. Sobre a Comissão ver também: BRAGA, 1962; KURY, 2001.

Notas

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22Filho de ingleses, nascido em Portugal, percorreu muitas das províncias do que hoje chamamos de Nordeste. É interessante observar que Koster não era cientista, mas construiu seu relato sobre alguns temas, nas formas ditadas pela ciência. O conhecimento científico molda uma forma de ver e registrar mesmo para aqueles que não eram propriamente cientistas.23 Câmara Cascudo, folclorista do Rio Grande do Norte, chama de “ciência do povo” a tradição e prática popular de adivinhação e prognóstico de inverno (CASCUDO, 1971).24 No Ceará, chove na quadra invernosa, por isso inverno é sinônimo de chuva. Bom inverno (muita chuva), mal inverno ou não há inverno (pouca chuva).25 Vale salientar que em outros temas, havia certa confiança nos cientistas por parte dos habitantes locais. Conforme Kury “a presença desses senhores da Corte não passava, assim, indiferente pelos sertões adentro. Eram procurados pelos habitantes das povoações onde passavam para atender os doentes, já que eram todos “doutores” (KURY, 2012).26 Cf Jucá (2009) O Ceará foi primeiramente conhecido e apreendido pelas margens do rio Jaguaribe que correspondia ao principal caminho para o interior 27 Refiro-me principalmente aos objetivos que fundam a ciência natural, tornando-a uma das principais aliadas do antropocentrismo nos séculos XVIII e XIX. Ver THOMAS (1988, p.33).28 Conversa realizada em 2000 com um senhor que passava por ali, nos sertões de Quixeramobim-CE.29 Conforme o jornal O Povo, Fortaleza, 30 de junho de 1932.30 É bom lembrar que, em 1932, o governo getulista havia dissolvido a Câmara dos Vereadores e a Assembleia Legislativa. Com isso, muitos indícios que poderiam constar nas Atas da Câmara ou da Assembleia foram, em certo sentido, transferidos para os jornais. As notas oficiais e os relatórios administrativos de vários departamentos eram publicados semanalmente nos periódicos.31 Conforme Gazeta de Notícias. Fortaleza, 22 de junho de 1933.32 Conforme o jornal O Nordeste, Fortaleza, 22 de abril de 193233 O Povo, fortaleza, 14 de junho de 1932.34 O estudo de Jean Delumeau sobre “O Medo no Ocidente”, traz contribuições importantes para uma reflexão sobre a construção do medo em face de um determinado grupo social. Sobre o medo que a sociedade francesa criou em torno da mendicância no século XVIII, Delumeau reflete sobre a criação do hábito de temer os mendigos, discutindo os modos pelos quais os boatos sobre seus crimes e perversidades ganhavam rápida credibilidade. Desse modo, adverte que, para entender o medo, era necessário averiguar o processo de construção de repúdio e pânico em face dos habitantes das ruas. Nesse sentido, infere: “Para compreender o Grande Medo, era preciso lembrar esse longo passado e esse pesado passivo. Se, na época, todo mundo acreditou nos salteadores, é que se tinha, com ou sem razão, o hábito de temê-los” (DELUMEAU, 1989, p.201). 35 O Nordeste, 8 de abril de 1932.

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A VIDA DO NOVO CHICO DEPOIS DA MORTE DO VELHO: GOTAS DE ESPERANÇA36

Juracy MarquesUilson Viana

Robson Marques

“Se o pescador for pego pela polícia no rio pescando na época da piracema, o pescador é preso sem fiança. E quem mata tudo no rio? O que acontece?”37

1. A água

A água é um bem natural essencial à manutenção de todas as formas de vida no planeta. 70% da superfície da Terra é coberta por esse precioso líquido. Entretanto, apenas 1% desse grandioso volume de água é potável e adequado ao consumo humano.

Nesse sentido, estima-se que, na Terra, existam 1,37 bilhões de km³ de água. Desse volume, 97% constituem as águas dos oceanos e apenas 3% são de água doce. Do total de água doce, 2/3 estão nas calotas polares e nas geleiras, restando apenas 1% do volume para consumo da população humana do planeta. O Brasil é detentor de 12% da água doce que escorre superficialmente no

Foto: ZINCLAR (2010).

Figura 1 - Indígena do São Francisco.

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mundo; 72% desses recursos estão localizados na região amazônica e apenas 3% no Nordeste. Essa desigualdade de percentuais, com visível desvantagem para o Nordeste brasileiro, é consequência das características geoambientais da região (JOÃO SUASSUNA, 1999 ).

Nesta primeira década do século XXI, o mundo percebeu que a água potável, base para a manutenção da vida, é o maior indicador da riqueza de uma nação. Dos 7 bilhões de habitantes que somos em todo o mundo, 2 bilhões são atingidos pela escassez de água potável. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) (MMA, 2005), se não forem adotadas medidas de preservação dos mananciais e de racionalização do consumo, em 2025, esse percentual pode atingir mais de 4 bilhões de habitantes do planeta, mais da metade da população mundial.

Segundo a UNESCO (MMA, 2005), nos últimos 50 anos, a disponibilidade de água para cada ser humano diminuiu 60%, ao mesmo tempo em que a população cresceu 50%. Cerca de 1,4 bilhões de pessoas não têm acesso à água potável em toda a face da Terra e mais de 2,4 bilhões não têm acesso aos serviços de saneamento ambiental. Isso porque 70% do consumo da água doce no mundo vai para a agricultura, responsável por 40% de todos os produtos agrícolas produzidos no globo, 20% para a indústria e apenas 10% para consumo humano (MALVEZZI, 2010).

A água é, hoje, um bem natural que está no centro das grandes questões da humanidade. A água doce, adequada ao consumo humano, foi apropriada como uma mercadoria, tornando-se objeto de lucro do capital. A água doce juntamente com as terras adequadas ao cultivo de alimentos são hoje o petróleo da humanidade.

2. O clima

Foto: MARQUES (2004).

Figura 2 - Barcos em Remanso-BA.

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A disponibilidade de água no planeta se agravou com as alterações climáticas que mudaram as dinâmicas das águas doce e salgada em todo o mundo, fundamentais para comunidades humanas, animais, plantas e base para a economia global. Desde o fim do século XIX, o planeta está quase 1oC mais quente. Parte desse aquecimento agravou-se após a década de 1960, com o processo de industrialização.

O mundo está preocupado com as mudanças do clima e suas consequências para a vida das pessoas e toda a biodiversidade planetária. Esse assunto foi pauta da 21ª Conferência das Partes das Nações Unidas para Mudanças Climáticas (COP21), que aconteceu de 30 de novembro a 11 de dezembro de 2015, em Paris. Estima-se que até 2020 o clima pode aumentar 1oC, devendo chegar ao alarmante índice de 2oC em 2050. Esse aumento climático é decorrente da excessiva emissão de carbono (CO2) e metano (CH4), gases de efeito estufa, gerados a partir das intervenções humanas na natureza. Consequências como a extinção de espécies vegetais e animais, além do aumento do número de refugiados ambientais, comporão as agendas ambientais neste século.

Importante destacar que as grandes corporações econômicas globais, responsáveis por parte significativa das alterações climáticas, influenciam quase a totalidade das agendas políticas no mundo, particularmente nos Estados Unidos, criando um falso discurso de que as alterações climáticas não estão a acontecer, tornando as resoluções pensadas ainda mais lentas.

Em 1995, havia 25 milhões de refugiados ambientais e 27 milhões de refugiados políticos ou de guerras. Até 2020, o número de refugiados ambientais chegará a 50 milhões. Nos próximos 30 anos, 200 milhões de pessoas deixarão seus lugares em função da falta de água39. No caso do Nordeste brasileiro, estima-se que o processo de desertificação agravado com as mudanças climáticas, que já atinge uma área de 55.236 km2, tem afetado mais de 750 mil brasileiros, parte desse contingente migrou para os grandes centros do país.

Essas novas configurações climáticas, naturais e produzidas pelas ações humanas, somam-se às novas preocupações com o El Ninho, fenômeno caracterizado pelo aquecimento das águas do oceano Pacífico, que provoca a ocorrência de chuvas no Sul e no Sudeste do Brasil e secas no Nordeste.

A Bacia do São Francisco inclui 58% da área do polígono das secas (CBHSF, 2011), espaço geo-humano com períodos críticos de estiagens e diferentes índices de aridez, do qual participam mais de 270 municípios brasileiros, a maioria na região Nordeste. Nesses espaços, temos observado intensos processos de êxodo populacional, sobretudo para Sul e Sudeste do país.

Hoje, a presença humana nas diferentes paisagens da Terra é pensada a partir dessas novas configurações apresentadas pelos problemas ambientais complexos, dentre os quais a questão do clima e seus impactos para a vida humana. Na região do São Francisco, vê-se as consequências de um prolongado ciclo de estiagem, um agravante processo de morte do Cerrado e da Caatinga. Além da história de agressões socioambientais que vem sofrendo, atualmente, o rio agoniza e evidencia sua morte.

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Foto: MARQUES (2003).

Pela primeira vez na história, em 2014, observamos que a nascente do São Francisco, na Serra da Canastra, Minas Gerais, secou. Também pela primeira vez, em novembro de 2015, o maior lago artificial da América Latina, Sobradinho, construído na década de 1970, com taxas de evaporação de água de 250m3/s, três vezes mais que a vazão prevista para o projeto de transposição (FILHO, 2012), atingiu seu limite morto. Esses são apenas dois dados dos que o ecologista José Alves, no seu importante livro “Flora das Caatingas do Rio São Francisco” (2012), analisa como a extinção inexorável do Rio São Francisco. São assustadores os indicadores que ele apresenta, mas impactantemente reais.

Com extensão de 2.700 km, parte no Semiárido brasileiro, a Bacia do São Francisco é formada pelo Velho Chico, principal curso d’água, e um conjunto de afluentes (90 na margem direita e 78 na margem esquerda41) temporários e permanentes. É a terceira bacia do Brasil, única a cortar todo o território nacional, integrando 504 municípios (9% do total de município do país). Percorre os estados de Minas Gerais, Goiás, Distrito Federal, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Tem, hoje, uma população humana estimada em mais de 17 milhões de habitantes (MP, 2014).

O cenário que caracteriza o que se pensa como escassez hídrica no Semiárido foi base para justificar uma das intervenções mais violentas no São Francisco: o projeto de transposição. A

Figura 3 -Toinho Pescador.

3. O rio

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questão em si não diz respeito ao volume de água que cai (se armazenássemos 10% desse volume seria suficiente para o desenvolvimento do Semiárido), mas a capacidade de armazená-la e evitar as altas taxas de evaporação. Segundo Tomaz (2010): A transposição do Rio São Francisco nada acrescenta ao potencial de água do Nordeste, isso porque, o poder regulador das represas através da sua capacidade volumétrica ultrapassa as estiagens e derruba o mito da escassez.

Sobre a transposição, sabemos que o governo sustenta o argumento de que essa obra levará água para 12 milhões de habitantes do Semiárido, contemplando 268 municípios com capacidade para irrigar mais de 300 mil hectares de terras. Tal obra inclui ainda a construção de mais duas barragens hidrelétricas (Pedra Branca e Riacho Seco), 9 estações de bombeamento, 27 aquedutos, 8 túneis e 35 reservatórios. Seu custo ultrapassa o valor de 10 bilhões de reais. É um dos maiores investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (MARQUES, 2006). Luciana Khoury (2010), promotora da área ambiental do MP da Bahia, a respeito dessa obra, esclarece:

O Projeto de Transposição do Rio São Francisco contraria o Estado Democrático de Direito: viola a Constituição Federal, pois não foi ouvido o Congresso Nacional e o projeto afeta terras indígenas; afronta as normas ambientais, pois foram lacunosos os estudos de impacto ambiental quanto aos aspectos do meio físico, biótico e socioeconômico, além das audiências públicas terem sido convocadas para lugares distantes da Bacia, inviabilizando a participação da população afetada; e viola as normas de recursos hídricos, pois fere o Plano de Bacia aprovado pelo Comitê que decidiu que alocação externa das águas do São Francisco é possível apenas para consumo humano e animal, nos casos de comprovada escassez da bacia receptora e é fato notório que a Transposição tem finalidades de uso econômico das águas. O mais grave de tudo é que tramitam no STF 14 ações judiciais ainda sem decisão definitiva e as obras estão acontecendo sob égide de uma liminar, e ao final, certamente serão comprovadas as ilegalidades, mas os danos já estarão consumados.

Além desses indicadores de ilegalidade, a obra da transposição também está na mira dos escândalos de corrupção do Brasil. Em dezembro de 2015, a Polícia Federal prendeu executivos do consórcio de empresas responsáveis por parte da obra, acusadas de desviarem 200 milhões de reais. O Tribunal de Contas da União (TCU) apontou, entre 2005 e 2013, irregularidades que somam R$ 734 milhões nas obras da transposição42.

A região Nordeste tem o maior índice de açudes do mundo. São mais de 70 mil açudes com capacidade para acumular 37 bilhões de m3 de água, suficiente para atender ao uso humano e à dessedentação animal (SAID, 2010).

O Brasil possui uma das maiores redes hidrográficas do mundo, mas a poluição hídrica em todo o país cresceu drasticamente desde seu processo de urbanização e de industrialização. Podemos citar a dramática situação do Rio Tietê, em São Paulo, ou mesmo o assassinato do Rio Doce, a partir do rompimento das barragens de mineradoras em Minas Gerais, um dos maiores desastres ambientais da história da Terra. Mas olharemos para a agonizante situação do Rio São Francisco.

Repetindo: pela primeira vez na história, sua nascente secou. Pela primeira vez na história, o

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lago de Sobradinho, maior da América Latina, construído na década de 1970, atingiu a cota de 0% por causa da seca no rio, quando, em 2014, era de 57%. Pela primeira vez na história, todos os moradores da Bacia do São Francisco ficaram aflitos com a evidente morte do dantes Rio-Mar. Em muitos lugares da Bacia, escuta-se a angustiante pergunta: será que o rio vai morrer?! Será?

Parte dos grandes problemas socioambientais do São Francisco foram causados pela implantação das grandes hidrelétricas. Construídas desde 1913 (Angiquinho), todo o corpo do São Francisco fora acorrentado com paredes de concreto que, além da destruição de dezenas de cidades e da vida de milhares de pessoas, atingiu drasticamente toda a diversidade biológica que dependia do ciclo natural do São Francisco.

Estima-se que no mundo existam mais de 45.000 barragens construídas, responsável pela expulsão de mais de 80 milhões de pessoas43 (MAB, 2007). No caso do rio São Francisco, foram construídas mais de uma dezena de grandes hidrelétricas, atingindo mais de 250.00044 pessoas (MARQUES, 2008). Trata-se do rio com a maior cascata de barragens do Brasil.

Não podemos esquecer: são estruturas que envelhecem e precisam ser removidas com o tempo. Não são obras eternas. Esse complexo de problemas que enfrenta o Velho Chico, requer que se coloque na pauta a retirada desses “ossos de cimentos” que mataram o rio. Isso não é delírio, mas parte da política socioambiental de diversos países do mundo.

O “American Rivers45”, centro de restauração de rios nos EUA, desde 1973 vem restaurando rios, resguardando mais de 150 mil milhas desses corpos d´água. Esse centro de restauração menciona a restauração de mais de 1.100 barragens nos EUA, resultando em benefícios para às águas dos rios, peixes e outras espécies, inclusive, nós humanos.

De acordo com a “Dam Removal Europe”46, a partir dos levantamentos de dados referentes à Suécia, Espanha, Reino Unido, Portugal, França e Suíça, foram removidas 3.450 barragens em território europeu. Até 2008, foram removidas, somente na Espanha, 300 barragens de pequeno e médio portes.

Famílias ribeirinhas, em toda a extensão São Francisco, têm enfrentado dificuldades para o abastecimento humano e a dessedentação animal. As margens do Velho Chico estão secas. A vida, ao longo do seu Vale, está seca, morta. Sacrificá-lo é a alternativa para levar águas aos sedentos?

O São Francisco passa pela pior seca dos últimos 100 anos, mas essa não é a causa da sua morte, nem tampouco a presença da escultura da Sereia, de Ledo Ivo47, em Petrolina, ou mesmo do seu Nego D’água, do lado de Juazeiro, como vêm disseminando alguns fracos e falsos religiosos, que têm investido seu tempo em perseguir símbolos que lembrem religiões de matrizes indígenas e africanas.

Apesar do triste cenário, os projetos econômicos em toda a Bacia não foram paralisados. A indústria, a mineração e a irrigação, juntas, são responsáveis por mais de 80% das águas retiradas do velho Chico. Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA)48, de toda a água retirada do São Francisco, 76% são consumidas pela irrigação. No Vale, essa área é de 120 mil hectares (FILHO, 2012).

No pico da crise hídrica em que vimos atingir a região do rio São Francisco, ao mesmo tempo,

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observamos a lardeada ausência de chuva e baixa dos volumes de água na região Sudeste, mas precisamente em São Paulo e Rio de Janeiro, no ano de 2014. Em virtude disso, verificamos a produção de novos discursos da mídia sobre esta questão, a exemplo a tentativa de conscientizar os usuários de água e energia para uma prática educativa de economia, mobilizando até artistas globais e horários nobres da televisão brasileira, sem que as verdadeiras questões ligadas à escassez hídrica sejam tangenciadas, como, por exemplo, os usos feitos pelas indústrias e o inadequado sistema de irrigação em voga do nosso país.

Qualquer ação, seja ela individual ou institucional, que venha contemplar a conscientização para o uso racional dos recursos naturais é bem vinda e benéfica. O que não se pode é sobrepor a este discurso uma carga de culpabilidade sobre o mau uso das águas dirigida somente ao consumo humano, quando, na verdade, alguns estudos comprovaram que o maior desperdício ou mau uso de água e energia provém dos grandes projetos de irrigação. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), “aproximadamente 70% de toda a água potável disponível no mundo é utilizada para irrigação, enquanto as atividades industriais consumem 20% e o uso doméstico 10%” (TERRA AMBIENTAL, 2013).

O segundo discurso está alicerçado na forma como a grande mídia tratou a estiagem e a consequente baixa do volume dos reservatórios de água potável na região Sudeste do país em comparação à seca na região semiárida brasileira. O que se viu foi um tratamento exclusivo, ou como se conceitua no jargão jornalístico, um agendamento da mídia para questões que até então não tinham sido veiculadas, como: o uso da água nos grandes centros urbanos sem nenhum controle de desperdício, a preocupação em pensar práticas de armazenamento da água, a divulgação de tecnologias simples de aproveitamento e reuso da água. Nós, daqui do “Norte”, como ainda somos tratados por boa parte de quem mora em São Paulo, queremos dizer, nós, daqui do Semiárido, assistíamos pasmos a este tipo de informação.

Tendo em vista a região com abundante volume de chuvas historicamente, seria difícil imaginar agora o apelo da mídia e de fontes governamentais pela volta das chuvas. As práticas de armazenamento e de reuso da água foram tratadas com exclusividade, sem fazer nenhuma conexão com as experiências já existentes no Semiárido brasileiro, o que acabou por reforçar que o que continua sendo priorizado pela mídia (a qual, por sua vez se concentra no Sul e Sudeste do país) são os estereótipos, quando se trata desta região semiárida, a imagem descontextualizada de lavouras e rebanhos inapropriadas para este clima.

Interagindo com o título deste artigo, percebemos recentemente um discurso do novo Semiárido, depois da morte do velho discurso. O velho discurso refere-se ao do “combate à seca”, o qual atravessou séculos se sustentando na falácia da seca apenas como fator climático, o que levou a criar políticas miúdas e pontuais, favoreceu o latifúndio e fez procriar modelos, gestões e governos viciados no discurso de um combate que nunca existiu, tendo em vista, neste sentido, a seca como um fator climático, já que nesta dimensão não se podia combater, mas aprender a viver com ela.

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No contexto da seca da década de 1980, predominava o discurso do combate à seca, sendo para isto, implementados órgãos federais como o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) (CARVALHO, 2011). Estes órgãos implementaram programas e projetos voltados somente para o “combate à seca”, sendo que muitas destas ações não chegaram a cumprir seus objetivos, desacreditadas e questionadas por pesquisadores e estudiosos, como podemos verificar na citação abaixo:

A mesma dificuldade encontrada com relação à ausência de dados no POLONORDESTE se repete com o PROHIDRO. De acordo com o relatório há uma “escassa documentação sobre o programa”. No que se refere ao quantitativo da população atingida, não foi possível avaliar o impacto socioeconômico do PROHIDRO, já que o modo como foram feitas as estimativas da população potencialmente beneficiada podem levar a uma duplicação, caso haja uma totalização. “A falta de registros não permitiu também a avaliação do impacto do programa sobre a distribuição de renda nem sobre a estrutura agrária regional”. Existem as limitações do próprio programa como, por exemplo, abrange áreas bastante diferenciadas no que se refere ao clima, solo, estrutura fundiária e sistemas de exploração (CAMPOS, 2003, p.9).

O direcionamento dos recursos voltados para programas de combate à seca era destinado às prefeituras municipais ou líderes partidários em forma de frentes de serviços, cestas básicas, carros-pipas, fortalecendo velhas práticas assistencialistas e favorecendo grupos políticos e os viciados coronéis no Nordeste.

Recrutava-se a mão de obra desocupada pela estiagem e empregava-se na construção das barragens e das estradas; os resultados deste trabalho concretizavam-se nas barragens feitas nas propriedades dos grandes fazendeiros e nas estradas, às vezes estradas privadas no interior dos grandes latifúndios. Alguns estudiosos críticos dos próprios quadros do DNOCS chegaram a calcular que se essa mão de obra em todas as secas de que há memória no Nordeste, desde a criação do INFOCS, tivesse sido utilizada na construção das barragens públicas, a grande maioria delas estaria construída a muito tempo. Tal acumulação primitiva utilizava os recursos do estado para a implementação de benfeitorias nas grandes propriedades e sua forma de financiamento chegou a constituir-se em outro pilar da força e do poder político dos coronéis, da oligarquia algodoeira-pecuária (OLIVEIRA,1981, p.55).

Albuquerque Junior (2011) considera que estes fatores levaram a constituir uma produção imagética discursiva, pensada de forma tão específica que acabou dificultando, até hoje, a produção de uma nova configuração de verdades, capaz de romper com os estereótipos. Para a Articulação do Semiárido (ASA) (2011), as políticas de combate à seca ajudaram a construir no imaginário popular uma falsa ideia sobre o Nordeste e a mídia contribui para isso, priorizando apenas os fatos ligados à seca.

A construção do imaginário popular, reforçado pela grande mídia, faz desta região e da seca uma representação uniforme, homogênea, desconsiderando que o que existe é uma diversidade de fauna, flora, solos e hábitos culturais e de cultivos diferentes. Uma das principais características do Semiárido brasileiro é sua multiplicidade em se tratando de seca e chuva, ou seja, há uma diferenciação em termos de quantidade de chuvas e de distribuição desta de uma região para outra.

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Assim afirma Favero:

Existem três modos de seca: a hídrica, pequena, dando suporte apenas para a agricultura e a pecuária de subsistência, a seca agrícola, ocorre quando há chuvas abundantes, mas mal distribuídas em termos de tempo e espaço e a seca efetiva, caracterizada pela baixa precipitação e má distribuição de chuvas, tornando difícil a alimentação das populações e dos animais (FAVERO e SEVERO, 2002, p. 73).

Esta é uma perspectiva pouco ou quase nada considerada pelos meios de comunicação e os centros de pesquisa que caracterizam a seca em sua singularidade, sem considerar suas especificidades de lugar, de tempo e de consequências. Neste sentido a imagem da seca do Nordeste é disseminada pelos veículos de comunicação de forma redundante e estereotipada.

O novo discurso está ancorado no paradigma da convivência com o Semiárido, sendo este defendido e protagonizado por movimentos sociais, como ONG’s, Sindicatos e Cooperativas de agricultores familiares. O mesmo cenário de seca que historicamente é mostrado nos veículos de comunicação, como aquele em que predomina a perda de lavouras (milho e feijão), a morte de animais (gado), que expulsa suas gentes para outras regiões produtoras do país é – no campo do discurso e da prática da convivência com o semiárido – o mesmo cenário que produz com fartura as culturas adaptadas ao clima, cultiva pequenos quintais produtivos e áreas de captação de água de chuva, como barragens subterrâneas e cisternas de produção.

Estas tecnologias sociais, disseminadas por este novo discurso, é que, seguramente, dão subsídio para a manutenção dos povos do Semiárido em sua terra, por meio do cultivo, do beneficiamento dos seus produtos e da prática de comercialização sustentada no víeis da economia solidária. Com esse paradigma, se aprende e desenvolve tecnologias de captação de água de chuva, de alimentação animal, de beneficiamento de frutas silvestres, além das formas encontradas de organização comunitária e da geração de renda e comercialização cunhadas numa perspectiva da economia solidária.

Nos últimos anos a perspectiva de combate à seca vem se modificando, visto que os problemas do Nordeste brasileiro não estão restritos à escassez de água. Assim, percebe-se uma modificação de paradigma, se outrora era a luta contra a seca, agora é a convivência com ela, já que é possível coexistir bem com o Semiárido nordestino, desde que através de políticas públicas e práticas sustentáveis (PONTES E MACHADO, 2009, p. 1).

O novo discurso da convivência com o Semiárido, o qual tem se alicerçado na práxis da capacidade do sujeito criar alternativas de continuar vivendo nesta região, tem aparecido também em alguns veículos de comunicação da grande mídia. Viana (2013) em seu trabalho de pesquisa intitulado de “O Que fica no “Ar”? Discursos e Representações da Seca do Semiárido Brasileiro no Telejornalismo da Rede Globo”, mostrou que o discurso da convivência está presente na programação da Rede Globo de Televisão, mas que aparece em horários de pouco acesso e audiência como no Profissão Repórter e Globo Cidadania, em detrimento das matérias que reforçam o combate à seca que vão

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ao ar no horário nobre do Jornal Nacional.Dada a ultrapassada visão, tão disseminada pela mídia, do combate à seca e o contemporâneo

discurso da convivência com o semiárido, que ora tem sido reportado pelas políticas públicas governamentais e pela própria mídia, vimos recentemente surgir um novo discurso midiático de um Semiárido agora viável, promissor e produtivo. É a invenção de uma ascensão do Sertão por vias dos grandes projetos de irrigação, com os cultivos de pomares frutícolas, tendo a manga e a uva como base produtiva, mas especificamente na região do Vale do São Francisco. Está em voga a visão distorcida de desenvolvimento, que se traduz na solução do Sertão aos olhos de quem está distante. “Nessa nova abordagem, o sertão ganha uma nova face, veste-se com o verde das grandes áreas irrigadas (...), vem a promoção das multinacionais (...), os conteúdos jornalísticos apontam uma “saída” para o Sertão, que até então era cenário de desolação” (SILVA, 2013, p. 7-8).

Novamente é a TV que cumpre o papel de divulgar mais uma visão distorcida do Semiárido. Com o discurso do combate à seca já superado pelas experiências de convivência com o Semiárido, desenvolvidas por agricultores e instituições não governamentais, a grande mídia reforça agora o discurso do Semiárido viável por via dos grandes projetos de irrigação. O que há, de fato, neste cenário, é uma prática de cultivo voltada para o agronegócio, onde apenas um pequeno grupo fica com o lucro oriundo de uma produção focada na exportação.

O povo do Semiárido, por sua vez, continua com o ônus deste progresso anunciado: má distribuição das riquezas, concentração do lucro, contaminação dos lençóis freáticos e a consequente morte do Velho Chico com o desacelerado uso da água para o cultivo das monoculturas de cana-de-açúcar de grandes empreendimentos, como a AGROVALE, usuária de um grande percentual de água comparando-se ao de toda a cidade de Juazeiro.

O mesmo problema que começamos a abordar sobre o discurso da conscientização do uso da água e energia, continua sem ser enfrentado. As empresas governamentais e a mídia direcionam-se aos usuários comuns, apelando para o uso consciente, portanto não discute com os grandes empresários do agronegócio sobre o uso em excesso da água e energia que tem causado drasticamente a baixa no volume das águas do Rio São Francisco, da Barragem de Sobradinho que abastece estas áreas.

Sabemos que a gestão das águas do Velho Chico, hoje sobre a responsabilidade do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF), tem na liberação de cotas para usos diversos, o seu maior campo de disputa. Esperamos, não seja, este espaço, pensado para ser democrático e responsável pela Vida do Velho Chico, o lugar do agenciamento de sua morte.

Um exemplo disso é novamente a abordagem distorcida da TV. Recentemente foi noticiado pela TV São Francisco, em Juazeiro, a situação dos perímetros irrigados com as águas do Velho Chico, chamando os grandes produtores de pequenos produtores e até considerando-os agricultores familiares. Na mesma lógica de abordagem, foi ao ar no início do mês de dezembro de 2015, no Jornal Hoje, da TV Globo, uma série de reportagens sobre as condições da Barragem de Sobradinho.

As matérias mostraram o período histórico do surgimento da barragem, as cidades alagadas, algumas lavouras comprometidas, mas não problematiza as grandes questões que estão por trás da questão hídrica desta região, as quais estão enraizadas na construção de grandes adutoras a céu

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aberto, levando a perdas consideráveis de água pela evapotranspiração, como já foi mencionada, além do usos de sistemas de irrigação inapropriados para uma região em que deveria priorizar o baixo desperdício da água, foram outras questões que estruturam o atual quadro dramático em que se encontra o Velho Chico e o lago de Sobradinho. O problema continua sem solução e o discurso do desenvolvimento sustentável é, a cada dia, subutilizado, reproduzido e incutido na massa de que o Sertão do atraso agora é viável.

Diante deste cenário onde prevalece um conceito de desenvolvimento centrado nos grandes projetos de irrigação, da construção de barragens sem pensar nos impactos e nos sujeitos ali imbricados, pensamos que as ações e as políticas públicas voltadas para a convivência com o Semiárido, tendo como foco o acesso e a captação de água de chuva tem se colocado como experiências inovadoras e propositivas diante deste gigante discurso que insiste em operacionalizar de qualquer forma, indo de encontro e peitando de frente qualquer possibilidade de dialogo com a sociedade civil organizada, como é o caso da transposição do Rio São Francisco e junto a ele tantas outras frentes, muitas delas ainda desconhecidas e obscurecidas na profecia e no discurso do desenvolvimento que hora se anuncia.

A Lei nº 9.433 de 1997, Lei Nacional dos Recursos Hídricos, diz que, em situação de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é para o consumo humano e para a dessedentação animal. Isso não é respeitado no rio São Francisco. Um volume substancial de toda a água do velho Chico ainda vai para a irrigação, para a indústria e para a geração de energia, principais usuários da Bacia. A água no Sertão é representada e usada pelo controle dos grupos econômicos que controlam a política no nosso país. Esse debate não é pauta da mídia vendida a serviço do capital.

4. A morte

O Velho Rio agoniza com graves problemas socioambientais intensificados nesses dois últimos séculos de sua história: é hoje o rio com a maior cascata de hidrelétricas do país (Três Marias, Sobradinho, Itaparica, Complexo Paulo Afonso I, II, III e IV e Xingó), que, juntas, impactaram a vida de mais de 250 mil ribeirinhos (MARQUES, 2008).

Além da salinização dos seus solos e a formação de núcleos de desertificação, quase toda a cobertura vegetal das suas matas ciliares foi destruída, restando apenas 4%, o que aumenta os processos erosivos nas suas margens, ocasionando o assoreamento do rio e tornando-o inviável como hidrovia (FILHO, 2012).

Um outro aspecto é que várias espécies desapareceram do Velho Chico, entre as quais, podemos citar: matrinchã (Brycon orthotaenia), o pacamã (Lophiosilurus alexandri) e o pirá (Conorhynchos conirostris). O surubim (Pseudoplatystoma corruscans) e o dourado (Salminus franciscanus) tornaram-se raros (FILHO, 2012).

Em todo o Vale são-franciscano, observamos o uso indiscriminado de agrotóxicos na fruticultura irrigada, o que tem trazido certo nível de vulnerabilidade à saúde do trabalhador e de todos os

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consumidores. Somos o país que mais usa agrotóxicos no mundo, cabendo a cada brasileiro o consumo de 5,2 litros de venenos agrícolas por ano49.

O espelho d’água do Velho Chico, que em parte do ano tem uma bela coloração verde-azulada, antes habitat de centenas de espécies de peixes, plantas e outros organismos, hoje é o tablado para o insano espetáculo de potentes lanchas e de motos náuticas, parte delas, de uma classe média alienada e indiferente às causas socioambientais, classe essa que tomou conta das suas margens e do que, ridicularmente, chamamos de áreas de proteção permanente no nosso país.

Mais de 95% dos municípios situados às margens do São Francisco ainda jogam esgotos urbanos sem tratamento no rio (MARQUES, 2006). Podemos falar ainda dos impactos causados pelas mineradoras, pelas carvoarias, enfim. Parte dos graves problemas socioambientais da Bacia do São Francisco é analisada na obra do Ministério Público da Bahia, “Velho Chico: A Experiência da Fiscalização Preventiva Integrada na Bahia” (2014).

Se olharmos para a história socioambiental do São Francisco, desde a presença de grupos originários de tempos anteriores há mais de 13 mil anos, passando por sua invasão, em 1501, até o início do século XIX, perceberemos que foi nesses dois últimos séculos que a carnificina do Velho Chico se efetivou. Atualmente, o que estamos fazendo com o Velho Chico, a exemplo do projeto de transposição, é apenas o “golpe de misericórdia”. Seo Manoel (2004), pajé do Povo Xocó, disse: “Já tiraram o coro do Rio São Francisco, agora só falta espichar”. A fala de José Alves (2012) também é reveladora dessa morte eminente do Velho Chico:

Estou convencido da extinção inexorável do São Francisco. Eu gostaria de apreciar e documentar com maior precisão a biodiversidade desse pedaço do Brasil, mas não tive esse privilégio. A minha geração falhou na documentação do inventário da diversidade biológica e na conservação dos ecossistemas naturais. Agora resta-nos a restauração e a revitalização, mais dispendiosas, e a consciência de resgatar a condição original é uma impossibilidade.

Apesar da perplexidade e da inoperância de todos diante dessa catástrofe ambiental que seria a morte do São Francisco, ainda se vive com a ilusão de um morto que parece vivo, como é o estado atual do que dantes fora chamado pelos nativos de Opará, Rio-Mar.

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Há que pensarmos: como um rio que agoniza nessa proporção ainda é base para a sustentação direta de um contingente humano de quase 17 milhões de habitantes? O que será da vida dos ribeirinhos se a vida do Velho Chico acabar? Essa vida que, observamos, está morta.

Há uma diferença substancial entre morrer vivo e viver morto. O São Francisco, como tantos outros rios do mundo, está sendo vítima de um modelo civilizacional etno e ecocida, baseado no consumo capitalista e na concentração de riquezas de poderosos grupos econômicos, internacionais e nacionais, que contam com a perversa complacência de corruptos grupos políticos e, assim, legitimam seus planos.

Escancaradamente, estão visibilizados seus enraizamentos. Parte das agendas político-econômicas, falaciosamente, sustentam um discurso pelo cuidado socioambiental do Brasil, que hoje, está entregue ao mais vil e covarde modelo de gestão política e econômica. Como o Madeira, sacrificado pela autorização de hidrelétricas; o Doce, assassinado com a amarga lama das mineradoras de Minas; o São Francisco teve, definitivamente, seu destino selado nas mãos da cruel, estúpida e covarde agenda política ambiental brasileira. Não há saída para o Velho Chico pelas vias governamentais. Só o Povo pode salvar o Rio do Povo. Se nos mobilizarmos, resta-nos uma gota de esperança!

Foto: ZINCLAR (2010).

Figura 4 - Barco no São Francisco.

5. A vida

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Referências Bibliográficas

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CAMPOS, Nivalda Aparecida. A grande seca de 1979 a 1983: um estudo dos grandes projetos de desenvolvimento rural implementados na região semiárida do Nordeste do Brasil. Artigo publicado no XI Congresso Brasileiro de Sociologia - 1 a 5 de Setembro de 2003 – UNICAMP,Campinas –SP

CARVALHO. Luzineide Dourado. Natureza, Território e Desenvolvimento no Semiárido. Educação e Convivência com o Semiárido/reflexões por dentro da UNEB/Edmerson dos Santos Reis, Luciana da Silva Nóbrega e Luzineide Dourado Carvalho (orgs.)Juazeiro-Bahia.2011,173p.

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FILHO, José Alves de Siqueira (Org.). Flora das Caatingas do Rio São Francisco: História Natural e Conservação. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson, 2012.

36 Parte desse texto encontra-se no livro Barrando as Barragens (MARQUES, 2017).37 Fala de um pescador sobre o assassinato do Rio Doce.38 Fonte: http://www.fundaj.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=681&Itemid=376.39 BLANC, Claudio. Refugiados Ambientais. In Guia Aquecimento Global. São Paulo: 2015.40 O Globo, 2015.41 MP (2014).42 Estadão, 2015.43 MAB. Hidrelétricas do Rio Madeira – Energia para Quê e Para Quem? Rondônia: MAB, 2007.44 MARQUES, J. Cultura Material e Etnicidade dos Povos Indígenas do São Francisco Afetados por Barragens: um Estudo de Caso dos Tuxá de Rodelas, Bahia, Brasil. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, Universidade Federal da Bahia-UFBA, Salvador, 2008.45 AMERICAN RIVER. Disponível em:< http://www.americanrivers.org/initiative/dams/projects/2013-dam-removals/>. Acessado em jul. 2017.46 DAM REMOVAL EUROPE. Disponível em:< http://damremoval.eu/>. Acessado em jul. 2017.47 Com tantos graves problemas, essa é a pauta sobre o São Francisco em Petrolina e Juazeiro.48 Fonte: www.ana.gov.br.49 Fonte: http://www.ebc.com.br.

Notas

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KHOURY, Luciana. Um Atentado ao Estado de Direito. In: ZINCLAR, João. O Rio São Francisco e as Águas no Sertão. São Paulo: Silvamarts, 2010.

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MMA. Água é Vida: A Importância da Água para a Vida no Planeta. Rio Grande do Sul: MMA, 2005.

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CAMPINA GRANDE, POR QUE CAMPINA? POR QUE GRANDE? REFLEXÕES SOBRE HISTÓRIA, ACESSO À ÁGUA E MEIO AMBIENTE URBANO EM CAMPINA GRANDE – PB50

Rozeane Albuquerque LimaCristian José Simões Costa

Cidoval Morais de Sousa

1. Reflexões sobre os discursos ambientais emergentes no Brasil e no mundo As astúcias que o ser humano utiliza para burlar as instituições e estruturas sociais (CERTEAU,

1998), não podem ser usadas na sua relação com o ambiente. A natureza tem tido um tempo de resiliência muito pequeno e as consequências são sentidas nas formas de ocupar o planeta e em muitos dos problemas socialmente enfrentados.

Se pensarmos na relação de exploração humana para com a natureza, vemos que tal exploração se intensificou com o desenvolvimento da agricultura e a domesticação de animais. A agricultura “rasgou a terra para alimentar populações cujas demandas (por necessidade ou por luxo) provocaram mais inovações tecnológicas que, por sua vez, ao exaurir os recursos naturais, impulsionaram mais e mais o ciclo exasperado de exploração” (SCHAMA, 1996, p. 23-24). Some-se a esses fatores uma sociedade sedentária, produtora de resíduos orgânicos e inorgânicos e tem-se a emergência de um desequilíbrio ambiental em maior escala.

Pensar a história do ser humano enquanto ser social implica em pensar a utilização dos recursos naturais finitos, ou não renováveis em curto prazo, ou então pensar apenas como serviços para atender às demandas da sociedade sem perceber as complexas redes existentes entre os vários ecossistemas para manutenção da vida. O Brasil se insere neste contexto de uma forma mais intensa, desde a chegada dos colonizadores portugueses que já em seu primeiro ato simbólico para com a natureza, derrubaram uma árvore e com ela fizeram a cruz usada na celebração da primeira missa. A forma de colonização à qual o Brasil foi submetido fez com que os ciclos econômicos brasileiros fossem marcados pelo aumento na devastação do ambiente (DEAN, 1996).

Em um recorte mais contemporâneo, a década de 1960 faz emergir alguns eventos importantes para o debate ambiental: o conceito de ecologia, repensado por Eugene Odum desfaz a ideia de que o micro pode ser estudado como fim em si só. Em franco diálogo com o holismo, influenciado pelo seu pai (o sociólogo Howard W. Odum), Eugene atentou para o macro, para a visão ecossistêmica e integrativa de mundo; os movimentos verdes e o crescimento das cidades provocado pela explosão demográfica e pelo êxodo rural intensificado compõem o cenário que subsidiou o debate ambiental deste período.

A partir da década de 1980, em nome de um discurso que favorecesse o desenvolvimento sustentável51, imprensa e empresas operam um deslocamento do conceito e o utilizam como um

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apelo de consumo: o produto ecologicamente correto surgiu e logo em seguida, o economicamente viável, o culturalmente diverso e o socialmente justo.

Sobre o conceito de desenvolvimento sustentável, Caporal (2013), referência nacional em Agroecologia, em artigo publicado no site do Instituto Carbono Brasil, afirma que não existe, que foi inventado por tecnocratas, que desenvolvimento e sustentabilidade são coisas relativas, não estáticas nem absolutas. “Quando eu falo de sustentável, estou tomando como referência algo que não é sustentável. Quando eu evoco a palavra desenvolvimento tomo como referência o subdesenvolvimento” (CAPORAL, 2013) .

Caporal faz uma crítica ao desenvolvimento sustentável tal qual proposto pela Organização das Nações Unidas, que tem por estratégia o contínuo crescimento econômico como condição para resolver problemas socioambientais. Ele lembra que o crescimento econômico não é necessário em todas as sociedades. Seguindo a sua crítica, Caporal afirma que o conceito de desenvolvimento sustentável foi esvaziado “por ter sido abandonada a ênfase original para a solução das desigualdades sociais, chegando ao Rio+20 com uma noção absolutamente mercantil. Lançou-se a noção de “economia verde”, como se fosse possível um capitalismo verde comandado pelo mercado (CAPORAL, 2013)52.

Atualmente, as discussões sobre ecologia, economia e preservação ambiental ocupam meios acadêmicos nacionais e internacionais e fazem parte das políticas e iniciativas das instituições públicas e privadas. Como consequência, a preservação do ambiente (com direta ligação com a preservação da espécie humana), inspirou atitudes como a instituição de leis específicas e tratados internacionais que estabelecem cumprimento de metas, entre outras ações coercivas.

Depois da década de 1960, com a emergência de várias mobilizações sociais, notadamente os movimentos verdes, aflora no mundo uma nova perspectiva ambiental. O conceito de ecologia repensado, tomando por base as ideias de Eugene Odum, defendia a perspectiva de que qualquer pequena ação em um ecossistema afeta o macro. Em termos ecológicos, as ações e seus efeitos estariam conectados em uma grande trama; o movimento hippie nos Estados Unidos inicialmente defendia uma postura contrária ao consumo exagerado e em seguida passou a levantar a bandeira da não poluição; a utilização dos recursos naturais, inicialmente atrelada ao discurso de exploração de riquezas naturais das nações, no Brasil demonstrado através da preocupação do Código Florestal, de 1934 em gerir o uso destes recursos ao largo de todo o território nacional, passou a ser visto como uma preocupação pela sua possibilidade de finitude. Para tanto se escreve um novo Código Florestal em 1965, com a sensibilidade de preservar e proteger o ambiente.

Nas duas décadas que se seguem, 1970 e 1980, emerge a preocupação a respeito da sustentabilidade do planeta. Iniciam-se, então, debates em torno da redução, da reutilização e da reciclagem de produtos na perspectiva de reduzir o consumo e preservar os recursos naturais. Aliado a esses debates, segue uma preocupação em gerir o crescimento econômico de forma que exista uma política de preservação dos biomas, garantindo a convivência das populações locais com meio

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ambiente em uma relação harmônica, de simbiose. O discurso da sustentabilidade emerge atrelado aos questionamentos feitos sobre o conceito

de desenvolvimento, geralmente medido pela renda per capita e pelo PIB de cada nação, sem considerar outros fatores, tais quais a distribuição de renda e a qualidade de vida da população. A Organização das Nações Unidas estipula então o Índice de Desenvolvimento Humano, baseado em fatores quantitativos e qualitativos de uma determinada nação para melhor definir o que seria um desenvolvimento sustentável (VEIGA, 2008). O economista polonês Ignacy Sachs, referência para quem trabalha com sustentabilidade, opera o conceito através de três variáveis: a social, a ecológica e a econômica (SACHS, 2007).

A partir de então foi promulgada uma ampla legislação com este foco em nível nacional e internacional: a Declaração de Estolcomo -1972, a Política Nacional do Meio Ambiente – Lei 6.938/81, a Agenda 21 – Rio-92, a Política Nacional dos Recursos Hídricos – Lei 9.433/97, o Protocolo de Kyoto – 1997, as Resoluções CONAMA, a Política Nacional de Resíduos Sólidos – Lei 12.305/2010 e a Rio +20 – 2012 estão entre os principais aparatos legais produzidos no país ou por ele recepcionados que exemplificam a preocupação brasileira com a gestão de seus recursos, a proteção de seu meio ambiente e o desenvolvimento de projetos com foco na sustentabilidade.

Modelos criados a partir deste discurso, como os chamados serviços ambientais, tentam deixar, portanto, mais evidentes a relação de dependência existente entre produção e consumo. A Avaliação Ecossistêmica do Milênio, concluída em 2005 pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), sistematizou informações relativas aos serviços ecossistêmicos e sua contribuição para o bem-estar humano e, de acordo com essa avaliação, o ser humano modificou ecossistemas mais rápida e extensivamente nos últimos 50 anos do que em qualquer outro intervalo de tempo equivalente na história da humanidade, o que pode comprometer os serviços para produção de alimentos, água, regulação climática e os ciclos biogeoquímicos como um todo, principalmente em regiões mais sensíveis a alteração do meio como as regiões semiáridas.

2. Caatinga, Sertão e Semiárido – três discursos, o mesmo espaço

Até a década de 1980, as ações antrópicas que tinham por foco o “combate à seca” eram realizadas sem que se levasse em consideração a própria fragilidade da Caatinga, a insegurança hídrica do bioma e a resiliência. Discorrer sobre estes temas em período anterior a 1980, ou mesmo exigir de autoridades preocupações sugere anacronismo, pois estes debates afloram em momentos posteriores. No entanto, é cabível refletir sobre o quanto estas obras afetaram a Caatinga em seu solo, regime pluviométrico, cobertura vegetal e fluxos de água. Vejamos como estes debates emergem no cenário nacional.

Alinhado ao discurso da sustentabilidade em nível mundial, a EMBRAPA, influenciada pelo trabalho de várias Organizações Não Governamentais (algumas que mais tarde comporiam a Articulação do

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Semiárido- ASA) inicia no Brasil pesquisas com o intento de provar que é possível conviver com o Semiárido. Ao discurso que envolve o Nordeste brasileiro se agrega outra dimensão. Agora, já não se fala mais em migração para o Sul como única possibilidade redenção aos problemas que afetam a população nordestina. Criam-se condições para que a população conviva bem no espaço onde mora.

A tentativa é a de operar um deslocamento na construção imagética do espaço conhecido como Nordeste. Expressões como Sertão, Polígono das Secas, Caatinga etc. são incorporadas pelo debate do semiárido brasileiro. Nesta tentativa, a Caatinga, é deslocada também para um não-lugar, para um espaço que é belo mas precisa ser valorizado adequadamente, precisa ser cuidado.

O discurso adotado após 1980 não leva em consideração a desnaturalização do “fenômeno da seca”. Embora a seca seja um fenômeno natural, há muito de construído em torno de seu conceito, das variáveis que sustentam sua definição; não apenas da seca, mas dos outros termos acolhidos pelos recentes debates sobre o semiárido; também não é feita uma análise da intencionalidade dos discursos, tanto dos que defendem a seca como inimigo a ser combatido, como dos que defendem a possibilidade de convivência com o semiárido.

O discurso científico, usado como ferramenta para legitimar as políticas públicas que liberariam verbas para mitigar os “efeitos” da escassez de recursos hídricos no Nordeste, aparece de forma mais incisiva. Estudos de Impacto Ambiental (EIA), pesquisas sobre índice de aridez do solo, delimitação de áreas passíveis de desertificação, acompanhamento de regime pluviométrico, pesquisas sobre as melhores lavouras a ser cultivadas considerando o cenário ambiental, melhoramento genético de espécies animais e vegetais têm sido amplamente desenvolvidos pelas mais diversas instituições que têm por foco a melhoria na qualidade de vida da população do semiárido. Este crescente banco de dados é manipulado de forma a alimentar e gerir as políticas públicas voltadas para o espaço em questão.

A criação da Articulação do Semiárido (ASA), e do Instituto Nacional do Semiárido (INSA) através da Lei 10.860/2004, com sede em Campina Grande-PB, reforçam a ideia de convivência e sustentabilidade neste espaço, buscando alternativas para resolver os problemas que afetam a população, em que pese também as decisões do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Federal que, através de suas obras, fomentam projetos dessa natureza. Um novo discurso sobre o Nordeste brasileiro aflora e convive como uma alternativa ao discurso criado e institucionalizado anteriormente. Perceba-se que um discurso não é excludente a o outro, são perspectivas e visões diferentes sobre o mesmo espaço que convivem mutuamente e transitam pelos mesmos territórios se aproximando ou se afastando, conforme a conveniência do momento.

3. Campina Grande: uma das maiores cidades do semiárido brasileiro

O município de Campina Grande está situado no Agreste paraibano, na parte oriental do planalto da Borborema, em uma área de transição entre a zona da mata, brejo e sertão. Faz parte do semiárido

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paraibano e apresenta uma média de precipitação pluviométrica de 800 mm/ano. Localiza-se numa altitude média de 550 metros acima do nível do mar, a 130 km de distância da capital do estado e abrange uma área territorial de 594,182 Km². A população estimada para 2013 foi de 400.002 habitantes. Atualmente, a população urbana é de 367.209 e a rural 18.004. É a segunda cidade mais populosa do estado (IBGE, 2010).

Nas últimas décadas, houve um crescimento significativo da população, especialmente na área urbana, alcançando uma média de 104% entre os anos 1970 a 2010. Esse crescimento reflete uma realidade nacional e está relacionado a um modelo de desenvolvimento urbano-industrial adotado pelo país.

Um dos fatores que tornam a cidade um espaço passível de estudos é o fato de que nela estão localizadas algumas fontes de água que fluem para o riacho das Piabas, única fonte de água doce de Campina Grande e entorno. Considerando as análises de solo feitas na cidade e o mapa de solos54, Campina Grande e seu entorno tem um solo salinizado. No solo das margens do riacho das Piabas, a salinidade é neutra, o que garante uma água doce de boa qualidade, como mencionado por Elpídio de Almeida em seu livro História de Campina Grande (ALMEIDA, 1978). Lima (2010), sobre os solos do riacho das Piabas afirma “a região possui a particularidade de ter solos Regosol, que diferem de grande parte dos solos do município de Campina Grande, que apresentam solos Solonedez Solodizado, com alto teor de sódio, o que deixa as águas com sabor salgado e amargo” (LIMA, 2010, p. 9).

O riacho das Piabas é a fonte que abastece o açude Velho, corpo hídrico construído para abastecer Campina Grande por causa da seca que o Norte enfrentou de 1824 a 1828. Sua construção foi concluída em 1830 e o manancial foi de grande importância para a cidade nas secas de 1845 e 1877. Atualmente, o açude é um cartão postal e uma das zonas de proteção da cidade. Assim, durante o século XIX e início do século XX, até a construção do açude de Bodocongó, em 1917, o riacho das Piabas era a principal fonte de abastecimento de água para a população da cidade.

Sobre o açude Velho, é importante destacar que naquele espaço já havia uma lagoa abastecida pelo riacho das Piabas e que a construção do açude apenas aumentou a capacidade de retenção com o barramento. A região do entorno do açude Velho já era conhecida como uma ‘campina grande’: uma planície com gramíneas, um alagado com capim em abundância e água doce. Brito, 2012, discorre sobre estes fatos:

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Campina Grande era um lugar perfeito para pouso de viajantes e negociantes por estar situado bem no meio do caminho que ligava o sertão ao litoral (Estrada Real do Sertão), em terras adequadas à cultura de vários cereais indispensáveis à vida dos colonos e junto a uma lagoa no remanso do Riacho das Piabas, que bem mais tarde viria a ser o Açude Velho. A evidência de que havia uma lagoa na povoação indígena de Campina Grande pode ser encontrada numa sesmaria de 1781 onde menciona: “... até toparem com a lagôa das terras que foram dos índios da Missão da Campina Grande...” (TAVARES, 1982 p. 394) e na obra de Aires de Casal, editado em 1817, que ao tratar de Campina Grande, diz: “seus habitantes bebem duma lagoa contígua, a qual, faltando água nos anos de grande seca, os obriga a ir buscá-la ali a duas léguas” (CASAL, 1976 p. 276). Como sabemos, o Açude Velho só começou a ser construído em 1829 (...) (PINTO, 1977 p. 110) e, portanto, nada mais é do que paredes de retenção erguidas para aumentar a capacidade hídrica de uma lagoa, ou alagado, já existente no lugar... (BRITO & OLIVEIRA, 2012, p.12).

Portanto, o nome da cidade – Campina Grande – como tantas outras cidades e estados brasileiros (a exemplo de Bahia, Alagoas, Serra Branca, Recife, entre outros) se relaciona diretamente com as condições naturais do lugar no qual a cidade emergiu. Nos períodos de seca, a população ia se abastecer diretamente nas fontes do riacho das Piabas, que se localizam no Louzeiro, uma zona de proteção, na zona urbana de Campina Grande, a aproximadamente 10 quilômetros da lagoa que o autor menciona no texto.

Tentando descrever o espaço do açude Velho e seu entorno e dialogando com o mito de origem de Campina Grande, Brito (2012) afirma:

Chegando a uma imensa planície, coberta de gramíneas e plantas herbáceas, ou subarbustivas, os Ariú trazidos por Oliveira Ledo foram acomodados numa aldeia de índios Cariri que ali existia. Pois, a passagem “juntos aos Cararys, onde chamão (sic) a Campina Grande” deixa claro que um grupo de etnia Cariri já habitava àquela pradaria, e certamente eram Bultrins os senhores daquele agreste, que já deviam ser bem conhecidos do famoso capitão-mor (possuidor da fazenda Santa Rosa próximo dali), e muito possivelmente esta aldeia Bultrim já era bem frequentada pelos boiadeiros nesta época, pois o lugar já constava registrado num mapa publicado em Roma desde 1698, elaborado por Andreas Antonius Horatiy (BRITO & OLIVEIRA, 2012, p.11)

A descrição acima dialoga diretamente com a arborização de Campina Grande: uma cidade cuja paisagem pode ser analisada a partir de um vídeo que utiliza fotos do acervo do blog Retalhos Históricos de Campina, organizadas por décadas, desde 1910, por Carlos Magno Marcelo de Lacerda, e disponibilizadas na Internet através do Youtube em 27/07/201355. Tais fotos demonstram a existência de poucas árvores compondo o seu cenário urbano. Esta percepção é sentida em conversa com Bruno Vaz Diniz, consultor de projetos da Secretaria de Cultura, que, em entrevista, afirmou:

O que me vem à cabeça quando se fala em paisagismo urbano de Campina Grande é justamente que a cidade surge numa grande campina, ou seja, sua paisagem original era um grande descampado com vegetação basicamente rasteira e poucas manchas arborizadas.

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Quando as populações do Brasil foram abruptamente se urbanizando, a nossa cidade cresce em cima dessa realidade anterior. Ou seja, surge uma extensa mancha urbana com pouquíssimas árvores em seu interior. Some-se a isso a inexistência de preocupação com meio ambiente e ao modelo desenvolvimentista explorador que sempre ensinou a extrair os recursos naturais (inclusive as árvores) que tivéssemos disponíveis. Está aí o caldo que trouxe pra campina a paisagem de uma cidade com tamanho déficit arbóreo (BRUNO VAZ, 2013).

Uma outra reflexão sobre o tipo de solo da cidade nos auxilia na compreensão de sua arborização. Campina Grande é constituída, de uma forma geral, de solos rasos, impermeáveis e cristalinos, isso impede que tenhamos aqui a presença constante de árvores de grande porte. Foram estes solos os responsáveis pela formação da campina, cheia de gramíneas verdosas, de alagados de outrora já que a área plana onde foi erguida a cidade inicialmente se localizava as margens de um riacho.

Neste sentido, os tropeiros da Borborema, que comercializavam principalmente entre litoral e sertão, escolhiam o local onde futuramente seria fundada Campina Grande para descansar não apenas pela sua posição estratégica, mas por ser um local que lhes possibilitava alimentar os burros e também abastecer-se com água doce, recurso raro em todo o Sertão, dado o tipo de solo que o constitui.

Os autores que dialogam com a história da cidade de Campina Grande, muitos deles fundamentados nos escritos de Elpídio de Almeida (1978), analisam os tropeiros, a lagoa e a localização estratégica da cidade como referências para compreender a formação do povoado, depois elevado à vila e posteriormente à cidade. No entanto, não encontramos estudos que tivessem por perspectiva de análise a qualidade da água e da vegetação disponíveis para estes viajantes.

Em um recorte mais contemporâneo, a presença da natureza na construção imagético-discursiva Campina Grande desde o início do século XX, e de forma mais enfática, na segunda metade do século, especificamente em 1964, quando do seu centenário, tem sido apresentada como símbolo de modernidade, de progresso. É dita como uma das maiores cidades do interior do Norte e Nordeste, de importância singular para o compartimento da Borborema, que comporta 43% do estado, polo de produção acadêmica, de relações comerciais, de prestação de serviços. Sua imagem foi construída se contrapondo ao Nordeste da Caatinga, do sertanejo bruto, da tradição, da cultura popular, da folclorização (ao mesmo tempo em que fortalecia este discurso).

Em 11 de outubro de 1964, foi comemorado o centenário da cidade de Campina Grande. Para a realização da festa foi criada uma Comissão do Centenário que, por sua vez organizou a festa e criou a Revista Campinense de Cultura, com o objetivo de contar a história da cidade, foi lançado o LP ‘Centenário de Campina Grande’, que divulgava músicas cujo tema era a cidade e foi também construído um monumento que enaltecia os ‘pioneiros’.

O centenário de Campina Grande é considerado um marco, um período importante para se compreender a produção historiográfica e os discursos sobre a cidade. Regina Paula Silva da Silveira, em artigo publicado nos anais do V Encontro Estadual de História- ANPUH - RN, 2012, reflete sobre a

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construção da memória social (amparada em José D’Assunção Barros) e a invenção de uma tradição (amparada em Hobsbawn) que leva em consideração o que a elite campinense quer lembrar e o que ela quer construir como história da cidade. Silveira alerta para o papel do livro de Elpídio de Almeida, publicado em 1962, História de Campina Grande, unindo-se a outros símbolos e tradições criados para fortalecer o discurso de que Campina já teria nascido com uma vocação a ser grandiosa, a ser ‘Rainha da Borborema’, ‘capital do trabalho’, entre outros temas a ela atribuídos.

A autora, dialogando com quem escreveu sobre o tema, aponta como Almeida enaltece a família dos Oliveira Lêdo como importantes para o desenvolvimento da cidade, assim como Irinêu Jóffily, que fundou o primeiro jornal local e difundiu ideias liberais e republicanas. Na sequência, ela historiciza o crescimento econômico que Campina viveu no início do século XX, quando da chegada do trem e comercialização do algodão e afirma que o desenvolvimento vivenciado pela cidade nas décadas posteriores é uma consequência deste crescimento econômico. Chegaram muitos “forasteiros” à cidade em busca de oportunidades que não existiam para todos “... de forma que houve um significativo aumento do número de mendigos, prostitutas, delinquentes, etc., que “enfeiam” a cidade e que vão ser alvos da futura organização, que vai tirar do centro tudo o que for feio, sujo e anti-moderno” (SILVEIRA, 2012, p. 5). Campina Grande foi então construída como uma cidade fadada ao sucesso, ao progresso, ao crescimento e ao desenvolvimento. Este discurso também enaltecia o meio ambiente e a riqueza do espaço:

Não foi difícil a Teodósio dar desenvolvimento ao núcleo iniciado com o grupo dos Ariús. Dadas as condições favoráveis do sítio, a amenidade do clima, a existência de matas, a natureza do solo e, principalmente, a sua localização, ponto de passagem preferido nas comunicações entre o sertão e o litoral, cedo conseguiu atrair parentes, colonos brancos, índios mansos, com o que assegurou a prosperidade do lugar (ALMEIDA.1978, p.37-38).

Ainda na década de 1960, fortalecendo esta tradição inventada para Campina Grande, Rosil Cavalcanti e Raymundo Asfora escrevem Tropeiros da Borborema, música que se tornaria uma espécie de hino para muitos. Na letra, o autor aborda o cotidiano dos tropeiros relacionando-o ao espaço geográfico da cidade: a serra da Borborema. A letra também associa a criação e “grandeza” do município aos tropeiros que aqui passavam. Com a gravação na voz de Luiz Gonzaga, ela ampliou o espaço que ocupava e ainda ocupa na construção de um passado, de uma “origem” para Campina.

Estala relho marvadoRecordar hoje é meu tema

Quero é rever os antigos tropeiros da BorboremaSão tropas de burros que vêm do sertãoTrazendo seus fardos de pele e algodão

O passo moroso só a fome galopa

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Pois tudo atropela os passos da tropaO duro chicote cortando seus lombos

Os cascos feridos nas pedras aos tombosA sede e a poeira, o sol que desaba

Oh longo caminho que nunca se acabaAssim caminhavam as tropas cansadas

E os bravos tropeiros buscando pousadaNos ranchos e aguadas dos tempos de outrora

Saindo mais cedo que a barra da auroraRiqueza da terra que tanto se expandeE se hoje se chama de Campina Grande

Foi grande por eles que foram os primeirosÓ tropas de burros, ó velhos tropeiros.

As estradas usadas pelos tropeiros para chegar à Campina Grande são descritas como empoeiradas e pedregosas, devido à seca e ao tipo de solo, ensolaradas com um sol que desaba que provocava a sede nos tropeiros.

Na década de 1970, mais especificamente em 1974, na gestão do Prefeito Evaldo Cruz (1973-1977) foram instituídos, através da Lei Municipal número 54, a bandeira e brasão de Campina Grande. Em ambos a campina verde e grande, que nominou a cidade, aparece representada pela cor verde, juntamente com outros símbolos figurativos da história de Campina. Bandeira, hino e brasão emergem uma década depois do centenário de Campina Grande, fortalecendo o discurso de construção de identidade campinense que veio à tona naquele período. Natureza e história se interconectam nestas construções imagético-simbólicas. As três espadas representam a participação dos campinenses na Revolução Pernambucana de 1817, na Confederação do Equador em 1824 e na Revolução Praieira em 1848. Em amarelo também estão representadas as esporas dos cavaleiros, uma forma de representar os tropeiros.

Bandeira de Campina Grande56 Brazão de Campina Grande 57

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Em 1975, a construção imagética baseada em uma construção de um mito de origem para Campina Grande, foi fortalecida pela escolha, mediante concurso, da letra do hino da cidade. O poema escolhido, de Fernando Silveira (professor, advogado e escritor), um cearense que veio para Campina Grande fundar a Rádio Borborema, alimentava a ideia de uma terra predestinada ao sucesso e progresso, de um povo batalhador, que trabalhava para expandir o progresso. Constava também a referência a uma natureza generosa, compondo o mito de uma terra prometida. No trecho do hino de Campina Grande, percebe-se que os elementos naturais são usados para construir um discurso de uma cidade agraciada pela beleza cênica de um ambiente detalhadamente pensado para se adequar à imagem de uma cidade predestinada ao progresso, ao sucesso: O verde das serras anunciado no hino da cidade não poderia ser “manchado” com a mata branca que também estava presente no entorno da cidade. Os intelectuais desta cidade não haviam de querer associar a imagem da Caatinga à construção identitária do seu povo:

Venturosa Campina querida,Ó cidade que amo e venero!

O teu povo o progresso expande,És na terra o bem que mais quero!O teu céu sempre azul cor de anil,

Tuas serras de verde vestidasSalpicadas com o ouro do sol,

Ou com a hóstia dos brancos luares!

Ao voltar o olhar para o hino, um dos símbolos de Campina Grande, percebe-se o enaltecimento de aspectos da paisagem na construção imagética de uma terra bem aventurada, aspectos inclusive que nem sempre correspondem ao que lidamos no cotidiano. Campina Grande é famosa pela nebulosidade e as nuvens não permitiriam um céu sempre azul cor de anil, as mesmas nuvens atrapalhariam os brancos luares e o ouro do sol que salpica as serras propostos por Fernando Silveira na letra. Dados do IBGE que situam o município na Caatinga confirmam a paisagem da mata branca em seu entorno (ou pelo menos em parte dele) quando da estação seca, por isso mesmo nem sempre as serras estariam vestidas de verde.

Além de prometida, a terra era eterna e abençoada, e mais uma vez um elemento da natureza, desta vez o Cruzeiro do Sul, aparece na construção imagética complementando a paisagem da “venturosa” cidade, “capital do trabalho e da paz”:

Eterno poemaDe amor à beleza,

Ó recanto abençoado do Brasil!

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Onde o Cruzeiro do Sul resplandece.Capital do trabalho e da paz!

A história dos “pioneiros”, da “origem” da cidade com o aldeamento dos Ariú por Teodósio de Oliveira Lêdo, dos tropeiros e seus comércios nas margens do açude Velho e da época de crescimento econômico, contada por Elpídio de Almeida é rememorada nos versos abaixo:

Oficina de ilustres varões,Canaã de leais forasteiros,

És memória de índios valentes.E singelos e alegres tropeiros!

Tua glória revive, Campina,Na imagem dos homens audazes,

Aguerridos heróis de legendasQue marcaram as tuas fronteiras!

A origem inventada para Campina Grande quando de seu centenário era também enaltecedora da natureza pela beleza cênica e como provedora de recursos naturais. Ela era uma cidade tão predestinada de acordo com este discurso que o espaço “escolhido” para ela ser construída também tinha que ser especial. Este discurso se alinhava com o Brasil enquanto uma nação dotada de recursos naturais infinitos, que se preocupava apenas com os sujeitos competentes para explorá-los. Assim, desmatar, poluir, desperdiçar recursos naturais, mesmo em espaços sem tanta abundância, era legitimado pela sociedade da época.

Mergulhado na construção imagética da elite campinense, com um olhar que priorizava o cênico, havia uma tentativa de harmonizar os elementos naturais à urbanização da cidade, criando um ar moderno e ao mesmo tempo um cenário de beleza ímpar para a cidade, como afirma a insígnia do Brasão: solum inter plurima – única entre muitas.

Como podemos perceber, os símbolos não enfatizam a presença da água doce como algo importante para a emergência de um povoado no entorno do açude Velho. Os temas ambientais explorados são o verde da cidade, o clima ameno, a beleza cênica do sol, do luar e das noites estreladas. As estradas empoeiradas, secas e de sol muito quente descritas na letra da música Tropeiros da Borborema davam acesso a um verdadeiro oásis, uma campina alagada verde, com capim para os animais, sombra e água doce.

Atualmente, a construção do belo, no que toca ao meio ambiente, é ditada pelos programas midiáticos, que transformam as florestas em verdadeiros jardins do Éden. Esta construção é norteada pela floresta tropical, com suas árvores altas, folhagens sempre verdes, clima quente e úmido.

No Brasil, a paisagem como algo cênico toma fôlego com a difusão dos projetos do renomado

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arquiteto Burle Marx, que muito influenciou o olhar estético para as plantas e os elementos naturais como componentes de um grande jardim, manipulado no sentido de agradar aos olhos, atendendo às demandas de seu tempo. Em Campina Grande, depois do ano 2000, não apenas os conceitos de Burle Marx se sentem presentes na composição da paisagem urbana com um olhar cênico, mas também obras do arquiteto Oscar Niemeyer compõem a construção imagética da cidade. O moderno de outrora se atualiza, mas apenas reconfigura o cenário construído no passado. Os elementos são construídos na mesma perspectiva: a emergência e o crescimento da cidade de Campina Grande continuam a ser analisados a partir de sua posição estratégica e do acesso à água naturalizando o açude como se todas as lagoas e açudes da região fornecessem água doce à população. Campina Grande continua a ser construída como um verdadeiro oásis no meio da Caatinga, mesmo que atualmente as únicas fontes de água doce que a cidade possui estejam poluídas e que estudos apontem um déficit arbóreo superior a 700 mil árvores (DANTAS & SOUZA, 2004). É preciso, portanto, desnaturalizar a construção que da natureza se fez em Campina Grande para alcançarmos uma compreensão maior, para visualizarmos as zonas de sombra não contempladas: a mata branca da Caatinga no entorno da cidade, a periferia que abriga as fontes de água doce, o déficit arbóreo, a poluição das águas, as enchentes provocadas (dentre outros fatores pela destruição da mata ciliar), canalização dos rios urbanos e constante calçamento das ruas, impermeabilizando o solo, alteração do microclima devido à verticalização da cidade e todos os demais problemas que não são compreendidos sobre uma dimensão socioambiental.

50 Parte das reflexões deste artigo integra o debate da dissertação Louzeiro: a invenção de uma mata. 1960-2013. Campina Grande: espaço, paisagem e território, defendida pela autora Rozeane Lima no PPGH-UFCG em abril de 2014.51 É conceituado como o desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades, – Relatório Brundtland – Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1987.52 http://www.institutocarbonobrasil.org.br/artigos/noticia=735346 acesso em 02-12- 2013.53 http://www.institutocarbonobrasil.org.br/artigos/noticia=735346 acesso em 02-12- 2013.54 O mapa de solos de Campina Grande está disponível em uma publicação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, de 1972, que foi resultado de um levantamento exploratório. Disponível em: http://www.uep.cnps.embrapa.br/solos/index.php?link=pb. Acesso em: 03 de maio de 2012.55CAMPINA GRANDE - PB - Homenagem a mais bela Cidade. Produção: Carlos Magno Marcelo de Lacerda. Campina Grande, 2013. 1 YouTube (14Min57s). Áudio: português. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=aMFl3pXm1jg Acesso em: 04 de novembro de 2013.56 Fonte: http://cgretalhos.blogspot.com/2009_11_01_archive.html#.UwLXGfldUuA Acesso em: 03 de dezembro de 2013.57 Fonte: http://cgretalhos.blogspot.com/2009_11_01_archive.html#.UwLXGfldUuA Acesso em: 03 de dezembro de 2013.

Notas

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AS POLÍTICAS DAS ÁGUAS NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO

Roberto Marinho Alves da Silva

A política é uma dimensão fundamental das sociedades humanas, considerando como se estabelecem as relações de poder na resolução de conflitos de interesses e de tomada de decisão em um dado contexto social, econômico e cultural. Nas sociedades democráticas, o exercício do poder político e da capacidade de transformar interesses em decisões estão relacionados tanto ao modo como se estrutura uma sociedade, no que se refere às relações de igualdade e desigualdade nas esferas sociais, econômicas e culturais quanto ao modo como são criados, mantidos e permitidos os mecanismos ou canais de expressão e disputa de interesses.

Essa concepção da política, considerando os processos decisórios no âmbito do exercício do poder, possibilita uma análise dos processos de formulação e execução das políticas públicas no Semiárido brasileiro. Mais especificamente, é possível compreender as trajetórias das decisões relativas à alocação de bens e recursos públicos e as estratégias que orientaram e orientam a intervenção do poder público naquele território para enfrentamento da questão fundamental do abastecimento de água para o consumo e para a produção.

Caracterizada pela irregularidade e a escassez dos regimes pluviométricos anuais e, sobretudo, nos períodos de estiagem prolongada, a questão hídrica no Semiárido tem sido historicamente eleita como a principal causa das problemáticas regionais. A hidrologia é totalmente dependente do ritmo climático. As secas são caracterizadas tanto pela ausência e escassez quanto pela alta variabilidade espacial e temporal das chuvas. A limitação hídrica ocorre, anualmente, devido ao longo período seco que leva à desperenização dos rios e riachos endógenos. A reduzida capacidade de absorção de água da chuva no solo é dificultada em virtude do relevo alterado e dos solos rasos e pedregosos. A presença de solos cristalinos limita o acesso à água existente nos aquíferos subterrâneos. Quando se tem acesso à água acumulada nesses aquíferos, por meio de poços de baixa profundidade, verifica-se uma qualidade inferior da água para consumo humano e animal e para irrigação da lavoura, devido à alta concentração de sais minerais (água salobra) originada das fissuras das rochas. Dessa forma, os diagnósticos apontam para a insuficiência da oferta hídrica no atendimento à demanda para abastecimento humano e atividades produtivas.

As proposições de intervenção do poder público, desde o final do século XIX, são concentradas na chamada “solução hidráulica”, tendo por base as obras de engenharia de armazenamento de água na superfície, de aproveitamento das águas do subsolo e uso da irrigação para superação das limitações no desenvolvimento regional. Além da construção de açudes de grande, médio e pequeno porte e da perfuração de poços, outras obras de engenharia hidráulica têm sido incentivadas e realizadas no âmbito das políticas públicas, como é o caso das adutoras e canais implantados, sobretudo a partir da década de 1990, para suprir o abastecimento humano em aglomerados urbanos, além de interligar reservatórios e bacias, proporcionando, também, água para produção.

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Considerando que o transporte de água em grandes distâncias exige elevados investimentos para distribuição dos recursos hídricos que estão concentrados nos reservatórios de grande porte e nos poços profundos instalados em áreas sedimentares, outras iniciativas estão sendo desenvolvidas para o abastecimento de água da população difusa nas zonas rurais dos municípios. As tecnologias de dessalinização com sistema de tratamento por osmose reversa permitem o aproveitamento da água salobra de poços perfurados no cristalino. De modo mais recente, foram implantados programas públicos de construção de cisternas rurais para captação e armazenamento de água da chuva para o uso doméstico e para a pequena produção. Da mesma forma, barreiros trincheiras e barragens subterrâneas somente agora estão sendo disseminados em maior escala.

No entanto, as intervenções públicas não foram suficientes para solucionar a questão do desabastecimento de água da população. Nos períodos prolongados de estiagem, como o que vivemos atualmente, a crise hídrica agrava a frágil organização das atividades produtivas e coloca em risco a capacidade de subsistência da população do Semiárido.

Motivado por essas questões e com base em pesquisas realizadas sobre as concepções e características da atuação governamental no Semiárido brasileiro (SILVA, 2008), este artigo apresenta uma análise sobre a formulação e implantação de políticas hídricas em três períodos distintos: do final do século XIX até a década de 1950, caracterizadas pela intenção única de combater a seca; a partir da metade do século XX, caracterizadas pelas distintas perspectivas de modernização técnica da economia; e, a partir da década de 1990, no contexto da redemocratização da sociedade brasileira, quando novos processos de disputa de interesses, concepções, práticas e projetos emergem em defesa de políticas de convivência, enquanto base da sustentabilidade do desenvolvimento regional.

Cabe ressaltar que as mudanças de perspectivas nas políticas governamentais não significam o total esgotamento ou aniquilamento de padrões anteriores (o combate à seca ainda permanece nos discursos e nas instituições). Ao contrário, as transições nas políticas públicas são caracterizadas por processos de disputas – de sentidos, significados e recursos – diante das crises de concepções (conhecimento e tecnologias) e de modelos políticos de intervenção que haviam sido formulados e defendidos com base em determinados interesses sociais e econômicos.

As mudanças substanciais nas concepções sobre a realidade e nas proposições para o desenvolvimento do Semiárido expressam transições paradigmáticas58, ou seja, são modificações profundas nas formas de conceber e explicar a realidade e de construir perspectivas e alternativas futuras. Uma transição paradigmática, segundo Santos (2001, p. 16), é caracterizada como uma situação de passagem entre a falência de um paradigma sociocultural dominante e a emergência de um novo paradigma que não está plenamente definido, ou seja, “entre as ruínas que se escondem atrás das fachadas, podem pressentir-se os sinais, por enquanto vagos, da emergência de um novo paradigma”. Dessa forma, conhecimento, economia e política são “chaves de leitura” que permitem compreender os diferentes significados e orientações da tecnologia e da economia nas estratégias e nos objetivos políticos que conformam as alternativas de desenvolvimento regional.

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1. Água para combater a seca

Com a chegada dos colonizadores, a ocupação do Semiárido brasileiro se deu com base em práticas agropecuárias que nem sempre eram plenamente apropriadas às condições dos ecossistemas e às irregularidades climáticas locais. A mortandade dos animais, as perdas das lavouras, a dificuldade de acesso à água, a fome e a fuga da população nos períodos de longas estiagens aumentaram na medida em que o espaço foi sendo ocupado. A economia pecuária e de subsistência, para ser rentável, requeria modificar o ambiente, a “[...] correção da natureza semiárida do Nordeste” (POMPEU SOBRINHO, 1982, p. 87).

Desde fins do século XIX, a adoção de tecnologias da engenharia hidráulica para armazenamento de água catalisou a crença na possibilidade de combater a seca e os seus efeitos. As principais modalidades de solução hídrica expressam a capacidade tecnológica de modificação do ambiente e de correção dos limites das atividades econômicas com o armazenamento de água para a manutenção do rebanho, a produção agrícola, o abastecimento humano e a geração de energia. A tecnologia da irrigação passou, então, a ser vista e valorizada como um meio de contornar a escassez de um fator de produção necessário ao desenvolvimento das culturas agrícolas. Com tantas virtudes e possibilidades, a açudagem foi escolhida como a solução fundamental para os problemas regionais, colocando em segundo plano as outras propostas.

Na primeira metade do século XX, quando as calamidades transformaram a seca em escândalo nacional, o Governo veio para o centro da arena, transformando-o em fator decisivo na política regional, com a criação de órgãos públicos, nas ações emergenciais e nas obras hídricas para o combate à seca e aos seus efeitos.

Ocorre que, segundo o sociólogo Francisco de Oliveira, as instituições criadas no início do século XX para o combate à seca foram historicamente capturadas pelas elites dominantes locais, caracterizando o “Estado oligárquico”. Essa imbricação entre o Estado e os interesses do Nordeste algodoeiro-pecuário era explícita. As barragens construídas diretamente pelo Estado ou em regime de cooperação com os grandes proprietários serviam, prioritariamente, para sustentação do gado e, apenas marginalmente, para a implantação das culturas de subsistência. Da mesma forma, as ações emergenciais constituíam uma forma típica de acumulação primitiva, com a utilização da mão-de-obra das frentes de serviços e os recursos do Estado nas grandes propriedades, afirma o autor. As frentes de emergência foram apropriadas ao enriquecimento e ao fortalecimento do poder político das oligarquias sertanejas: “[...] não apenas os eleitores reais dos ‘coronéis’ tinham prioridade para engajamento nas frentes de trabalho, como os eleitores-trabalhadores-fantasmas povoavam as frentes de trabalho das secas” (OLIVEIRA, 1981, p. 55).

Intermediando as ações do Governo Federal nos momentos de seca, as oligarquias dominantes locais podiam se apropriar da mão-de-obra paga com o dinheiro público para construir reservatórios de água, abrir e recuperar estradas e outras obras de benfeitoria nas suas propriedades particulares, fortalecendo a estrutura socioeconômica dominante. A principal expressão utilizada para explicar

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essa forma de exploração política da miséria é a chamada “Indústria da Seca”59. O fato é que, até os dias de hoje, as práticas políticas patrimonialistas e clientelistas permeiam as iniciativas emergenciais de combate à seca e às enchentes na região, enquanto componentes fundamentais de “[...] um sistema que beneficia os grupos dominantes que se opõem a qualquer transformação estrutural que possa tocar nos seus interesses e que até se beneficia do flagelo das secas, captando verbas que dinamizam os seus negócios e consolidam o seu poder político” (ANDRADE, 1993, p. 48).

Ocorreram tentativas de mudanças nessas políticas: em 1945, o Departamento Nacional de Obras Contras as Secas (DNOCS), criado com a finalidade de realizar obras e serviços permanentes e desenvolver ações em situação de emergência, passou a atuar no gerenciamento dos açudes públicos com a intenção de que as águas represadas fossem direcionadas para as atividades de irrigação. Foram criados postos agrícolas para prestar serviços agroindustriais aos sertanejos e para desenvolver ações de assistência social e educacional.

O fato é que somente nesse período os órgãos públicos passaram a enfrentar a questão do domínio das terras nas bacias dos açudes públicos que deveriam ser aproveitadas para a produção de alimentos nas vazantes e com técnicas de irrigação. Tal proposta esbarrava em forte oposição das oligarquias rurais adeptas da pecuária extensiva. Mesmo onde foram implantadas pelo Governo as condições infraestruturais necessárias para a irrigação nas bacias dos açudes, os seus objetivos eram desviados em favor dos proprietários das terras. Furtado (1959) denunciava o fato de que, não obstante a importância da ampliação da capacidade de acumulação da água, essa não era acompanhada de uma política de aproveitamento racional de terras e águas para fins agrícolas: “O governo, ali, fez tudo: os estudos, a barragem, a terraplanagem, os canais e a drenagem. (...) Podemos perguntar: com que objetivo fez o governo esses investimentos? De fazer milionários? Não posso crê-lo” (FURTADO, 1959, p. 63).

Tais questionamentos motivaram a proposição de uma legislação específica para as áreas adjacentes aos grandes reservatórios de água da União, impedindo a existência de propriedades particulares na bacia de irrigação. Elaborado em 1949, o projeto de lei tratava da colonização das terras a serem desapropriadas, circunvizinhas das grandes barragens, estabelecendo uma função social dos açudes públicos para a produção de gêneros alimentícios. Ao defender a proposta, Duque (2001) argumentava a necessidade de disciplinar o uso das bacias dos açudes com métodos adequados de conservação dos solos para propiciar a ampliação da agricultura irrigada. A justificativa era, portanto, social, técnica e ambiental:

A urgência de uma legislação conveniente sobre as terras irrigáveis do Nordeste não resulta apenas da necessidade de utilizá-las de maneira mais condizente com sua finalidade social. As exigências imperiosas e elementares de proteção, num clima tropical, do solo precioso e insubstituível das bacias de irrigação, sujeito que será a influência depletora de um cultivo intensivo, impõem um regime de severa disciplina na exploração dessas terras, para que a falta de rotação de cultivos, de adubação, de repouso, não venha destruir irremediavelmente a sua produtividade (DUQUE, 2001, p. 172).

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Como era de se esperar, o posicionamento do DNOCS sofreu forte reação dos representantes políticos das oligarquias rurais sertanejas que o denunciaram como uma proposta subversiva e adepta do comunismo e impediram, por mais de uma década, a sua implementação. Além disso, outras barreiras estavam colocadas, entre as quais, as limitações orçamentárias, tendo em vista que:

os dispositivos constitucionais que estabeleciam percentuais mínimos de investimento nas áreas de ocorrência das secas, nunca foram efetivamente cumpridos. Somam-se as dificuldades tecnológicas de acesso aos insumos necessários à irrigação e à preparação dos agricultores para o domínio das técnicas da agricultura moderna (SILVA, 2008, p. 37).

O represamento de águas em açudes e barragens evita um maior desgaste dos solos férteis, impedindo que sejam levados pelas enxurradas, além de exercer uma função preponderante na economia da região ao criar as condições favoráveis à vida animal e vegetal em torno delas, permitindo o adensamento populacional. No entanto, a açudagem tem limites técnicos, relacionados, entre outros fatores, pelo próprio clima semiárido, com temperaturas bastante elevadas que causam a evapotranspiração das águas. É conhecida a fragilidade da estrutura física de pequenos e médios açudes que, não raras vezes, se rompem com as grandes enxurradas. O baixo rendimento hídrico e as variações elevadas na qualidade da água expressam quanto essas técnicas de acumulação são sujeitas à sazonalidade climática.

No caso das grandes barragens, apesar das virtudes de finalidade para geração de energia, irrigação e abastecimento urbano (política mais recente, com a implantação de adutoras), o questionamento é sobre a concentração das águas acumuladas nos reservatórios. Segundo os dados fornecidos pela Agência Nacional de Águas (ANA) no Atlas Brasil (BRASIL, 2010), considerando-se os principais reservatórios da região Nordeste com capacidade de acumulação igual ou superior a 10 m3, 65% de todo o potencial de estoque está concentrado em apenas quatro grandes reservatórios (Sobradinho e Itaparica, na Bahia; Castanhão, no Ceará; e Boa Esperança, no Piauí).

Percebe-se que, na maioria das vezes, as obras hidráulicas, para armazenamento e abastecimento e para produção agrícola irrigada com grande potencial econômico são planejadas e executadas, desconsiderando a integridade do meio ambiente e os interesses sociais da população local, ou ainda: “em muitos casos, as diretrizes básicas da política de recursos hídricos no que se refere ao uso múltiplo e à prioridade para abastecimento humano em períodos de escassez, não são devidamente observadas” (MONTENEGRO e MONTENEGRO, 2012). Desta forma, expressa um método mecanicista de análise que fragmenta e simplifica a realidade, desconhecendo a integridade, a inteireza e as interconectividades dos ecossistemas e dos sistemas sociais e culturais. Além disso, a generalização de soluções, muitas vezes concorre para a perpetuação de problemas de ordem ecológica, social e econômica.

Apesar da importância das obras hídricas implantadas na região, prevaleceu a ineficácia das políticas de combate à seca e aos seus efeitos diante das problemáticas regionais. As inúmeras

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intervenções públicas com vistas a solucionar a questão do desabastecimento de água da população do Semiárido não foram suficientes. Esforços governamentais descoordenados e pulverizados eram marcados por uma “miopia” técnica e política sobre a realidade e suas problemáticas, resultando na má aplicação dos recursos públicos sem enfrentamento dos problemas estruturais que determinam as condições de fragilidade da população local, com ou sem a ocorrência de estiagens prolongadas.

2. Água para modernizar o semiárido

A questão da irrigação como solução para a produção agropecuária no Semiárido tem sido pauta há mais de um século. A Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), criada em 1909, tinha forte tendência técnica, inspirada nos exemplos da irrigação em larga escala da região árida dos Estados Unidos da América. No entanto, durante os dez anos de sua existência, o órgão enfrentou o problema da escassez de verbas para o seu funcionamento e para as obras que estavam sob a sua coordenação, o que motivou, em 1911, a apresentação de uma proposta de criação de um “fundo de irrigação” para o Nordeste. Posteriormente, a IOCS tornou-se a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS) e foi instituída, pela Lei nº 3.965, de 1919, a “Caixa Especial das Obras de Irrigação das Terras Cultiváveis no Nordeste e dos Serviços Complementares ou Preparatórios”. Da mesma forma, conforme já citado anteriormente, a partir de 1945, com a mudança do IFOCS para o DNOCS, retomou-se a controvertida e combatida pauta da irrigação nas áreas adjacentes aos grandes reservatórios de água da União.

Porém, somente em meados do Século XX, quando a crise econômica regional já não podia ser velada pelo discurso da seca como causa de todos os males do Nordeste, ganhou impulso o pensamento econômico desenvolvimentista, influenciando as políticas governamentais. Escancaram-se os problemas das desigualdades regionais, fruto da disparidade regional de ritmos de crescimento no Centro-Sul do país, com base no dinamismo industrial e o atraso na economia regional nordestina, refletindo a estagnação da agroindústria açucareira na zona úmida e do complexo algodoeiro-pecuário nas áreas secas.

Novos órgãos públicos foram criados60 e outras visões sobre as problemáticas e as potencialidades de desenvolvimento regional foram formuladas para a região, com o aproveitamento do potencial energético e da agricultura irrigada. Para tanto, o documento final elaborado pelo Grupo de Trabalho para Desenvolvimento do Nordeste (GTDN) teve forte influência. Com base na constatação de que as ações governamentais de combate às secas, tanto as emergenciais quanto as ações de infraestrutura hídrica não contribuíram efetivamente para superação dos problemas relacionados à seca, o relatório do GTDN apresentou algumas alternativas para a intervenção do Estado na perspectiva da transformação progressiva da economia semiárida, no sentido de elevar sua produtividade e torná-la resistente ao impacto das secas.

Segundo Silva (2008, p. 44), após as tentativas reformistas implantadas sob a batuta de Celso

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Furtado, em um curto período, com a criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), prevaleceram as políticas de modernização do setor agropecuário conduzidas pelo estado ditatorial implantado no golpe militar de 1964, mantendo privilégios das oligarquias agrárias nas ações de combate à seca e aos seus efeitos, ao mesmo tempo em que foram implantados projetos de modernização das atividades pecuárias, transformando os latifundiários em empresários rurais. Bursztyn (1985) analisa com detalhes a postura política adotada pelo Estado Brasileiro no Nordeste enquanto uma estratégia de modernização conservadora, na qual o Estado busca viabilizar novas formas de acumulação de capital, preservando as antigas estruturas socioeconômicas e políticas regionais, por meio da modernização da grande propriedade agrícola.

A manutenção de políticas assistenciais em situações de emergência nas secas prolongadas e a continuidade das ações hídricas de represamento de água beneficiando particulares deram sustentação política ao regime ditatorial, transformando a região em seu principal reduto eleitoral durante anos. Já as políticas públicas direcionadas para a modernização das atividades pecuárias e a implantação das áreas de irrigação influenciaram na chegada de novos grupos empresariais de outras regiões e países que, na maioria das vezes, tornaram-se aliados das oligarquias dominantes locais para desenvolver seus negócios.

As políticas hídricas passaram a ter novos direcionamentos para geração de energia e para os projetos públicos e privados de irrigação, gerando algumas “ilhas de modernidade”. Foi construído, então, um novo pensamento econômico sobre o Semiárido como o espaço da moderna agricultura empresarial e da fruticultura irrigada, destinada aos mercados externos, com base na crença e na justificativa de que o modelo agrega maior valor à produção, permitindo incrementos expressivos no nível de emprego e de renda. O uso da água do São Francisco para a geração de energia foi um primeiro grande projeto estruturante da modernização regional, iniciando pelas Usinas de Paulo Afonso (I, II e III). Desde então, foram construídas grandes represas, a exemplo de Sobradinho/BA com capacidade de acumulação de mais de 34 hm3 de água, além de outras obras de engenharia hidráulica para geração de energia em 14 hidrelétricas que compõem o sistema da Chesf61. A expansão da moderna indústria na região somente foi possível a partir do aproveitamento das águas do Semiárido, da região com maior escassez hídrica do Brasil.

A outra expressão das políticas de modernização econômica regional é a agricultura irrigada. Com os avanços dos estudos sobre a realidade do Semiárido e das condições exigidas por algumas culturas agrícolas, a aridez e as demais condições climáticas são consideradas vantagens competitivas. A insolação durante cerca de oito meses do ano e o clima quente e seco são aliados essenciais da produção irrigada de frutas e hortaliças de qualidade, atendendo às exigências do mercado interno e, principalmente, dos centros consumidores, como os países da Europa e da América do Norte. A fruticultura irrigada passou a ser vista como a redenção regional, como a forma mais eficiente de aproveitamento de vantagens locais. No caso da irrigação em escala empresarial, o conhecimento e a tecnologia de armazenamento e de manejo hidráulico, quando aplicados aos processos produtivos,

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tornaram-se o principal fator do processo de acumulação de riquezas nos polos agroindustriais da região, criando mais um mito de que “no Semiárido, tudo se resolve com irrigação”.

Não faltaram políticas e programas governamentais para essa finalidade. A Sudene conferiu efetiva prioridade à agricultura irrigada, tendo criado o Grupo Executivo de Irrigação para o Desenvolvimento Agrícola (GEIDA) e, no final da década de 1960, atuou com o Programa Plurianual de Irrigação (PPI). O Programa de Integração Nacional (PIN) visava a implantação de 130 mil hectares irrigados, aproveitando as águas represadas nos açudes e barragens já construídos pelo DNOCS e o potencial hídrico do Rio São Francisco. Em 1974, foi criada a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF) que deveria fornecer uma face mais moderna à agricultura empresarial na região, tendo forte atuação com a agricultura irrigada. Em 1986, foi instituído o Programa de Irrigação do Nordeste (PROINE) e dez anos após, o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Fruticultura Irrigada do Nordeste. Lançados pelo Governo Federal, esses programas reafirmaram a vocação da agricultura irrigada no Semiárido, enquanto área prioritária para as atividades privadas de irrigação.

Nas décadas de 1980 e 1990, a iniciativa privada assumiu a liderança desse processo, aproveitando a infraestrutura instalada na região. Nesse período, restringiu-se a ação estatal à execução de obras coletivas de grande expressão (grandes barragens, canais e eletrificação), cabendo à iniciativa privada viabilizar as atividades agrícolas irrigadas. A presença governamental foi fundamental com a implantação de grandes projetos de irrigação, assumindo integralmente os custos da maior parte da infraestrutura de armazenamento, captação e distribuição de água, beneficiando as empresas de médio e de grande porte, nacionais e internacionais, que implantaram suas plantas agroindustriais na região. O sucesso da agricultura irrigada também foi motivado pelos incentivos creditícios e fiscais do Governo, por meio do Fundo de Investimento do Nordeste (FINOR) e, posteriormente, do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE). O resultado foi uma incorporação significativa de áreas irrigadas no Semiárido, conforme informação da Embrapa:

Estimulada enquanto política de desenvolvimento rural a partir da década de 70, a agricultura irrigada já está instalada em cerca de 600 mil ha da região. (...) Dos pomares irrigados do Nordeste saem 93,6% do total de manga exportada pelo país e 80% das uvas finas de mesa consumida no Brasil. A geração de tecnologias pelo setor privado e pelo setor público para o ambiente semiárido tem conseguido sintetizar negócios agrícolas gerados com a irrigação62.

Os investimentos públicos implicaram a multiplicação de empreendimentos privados nas áreas agrícolas, agroindustriais, comerciais e de serviços, permitindo a criação de polos de desenvolvimento, constituindo um novo modelo produtivo em áreas do Semiárido. Nesses polos de fruticultura irrigada, as atividades agrícolas de subsistência foram substituídas pela agroindústria voltada para os mercados externos, com intensa utilização de tecnologia e do trabalho assalariado. O uso de técnicas de irrigação desenvolvidas em outros países (como Israel e EUA) possibilitou a

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ampliação da fronteira comercial agrícola, com a incorporação de milhares de hectares em áreas anteriormente pouco exploradas, além de uma sucessão mais intensiva de cultivos e a consequente elevação da produtividade.

A introdução da tecnologia, da produção para o mercado e do gerenciamento empresarial resultou na intensificação das relações comerciais com outras regiões, com a atração e implantação de setores não agrícolas na economia regional. No setor industrial, desenvolveram-se as indústrias de processamento de tomates e de frutas para sucos, de produção de vinho, de açúcar, de álcool, de equipamentos de irrigação e de insumos agropecuários; no setor agrícola, vários empreendimentos modernos voltados para a produção de frutas, com destaque para uva, banana, manga, melancia e melão; no setor de serviços, os bancários e de telecomunicações. Analisando essas transformações, Gomes (2001, p. 226) afirma entusiasmado: “contrariamente ao que foi sempre sua realidade, o Nordeste pode, hoje, escolher entre a miséria produzida pela sua economia agropecuária tradicional e a riqueza gerada pela agricultura irrigada empresarial”.

Outros estudos, no entanto, apontam os limites técnicos nos perímetros irrigados: apesar da irrigação possibilitar o aumento da produção e da produtividade agrícola, as práticas inadequadas promovem a destruição do solo pela erosão, pelo esgotamento e pela salinização, agravando as fragilidades ambientais com a degradação de nascentes e mananciais hídricos, com a consequente diminuição da produtividade, causando prejuízos socioeconômicos significativos. As críticas se aplicam às técnicas de irrigação que foram desenvolvidas em realidades ecológicas diferentes daquelas presentes no Semiárido brasileiro e que, muitas vezes, são indevidamente transpostas, colocando em risco o solo e os investimentos realizados.

Estudos realizados pelo Ministério do Meio Ambiente (BRASIL, 2004) confirmam que as maiores áreas a sofrer processo de desertificação estão localizadas no Semiárido. As áreas classificadas como “muito graves” chegam a 98.595 km2 (10% da sua porção territorial). A irrigação e a agropecuária predatórias estão entre as causas desse processo. Os produtos e técnicas de erradicação das plantas rasteiras (ervas daninhas), por exemplo, desnudam o solo, expondo-o ainda mais à erosão e privando-o de suas fontes naturais de matéria orgânica. Por isso, para evitar os danos ambientais ao solo pelas práticas de irrigação, faz-se necessária a realização do zoneamento agroecológico, com o levantamento das áreas com potencial para a agricultura irrigada, considerando-se os tipos de solo, a quantidade e qualidade da água.

A crítica também é socioambiental. A modernidade agrícola não foi direcionada à solução dos problemas sociais, priorizando a produção em grandes propriedades, com tecnologias intensivas em capital e com baixa mão de obra. Os produtos são destinados ao mercado externo e não para solucionar o problema da insuficiente produção de alimentos básicos consumidos pela população regional, que continua dependente de mercados produtores externos. De modo geral, a política de expansão da agricultura irrigada tem beneficiado somente grandes empreendimentos que dispõem de investimento, tecnologia e capacidade de inserção nos mercados. No caso dos pequenos irrigantes,

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são significativos os desafios a serem superados para viabilizar essa atividade, entre os quais: a falta de conhecimento técnico e de financiamento adequado para produzir de forma sustentável. São muitos os exemplos de falência de projetos com o endividamento dos trabalhadores, com o abandono de equipamentos nos perímetros implantados sob a tutela do Estado e com processos de degradação do solo e de mananciais hídricos devido ao manejo inadequado nas culturas irrigadas.

A concentração da terra e da renda são também resultados dos incentivos do Estado na região, nos moldes em que foram realizados. Os incentivos à pecuária, por exemplo, fortaleceram e modernizaram essa atividade agravando a questão fundiária e a intensificação de emigração rural. O mesmo ocorreu nas áreas de agricultura moderna, com a expulsão de agricultores familiares das áreas mais férteis e com melhor acesso à água. Por isso, apesar dos avanços fragmentados em algumas áreas do Semiárido, as situações de emergência e calamidade continuaram a se repetir nas estiagens prolongadas, as quais geram crises econômicas e calamidades sociais, fragmentando ainda mais a região, conforme os estudos realizados por ARAÚJO (1995; 1997).

A agricultura irrigada possui reconhecida importância para o crescimento da produção agrícola em algumas áreas propícias a esse tipo de atividade no Semiárido, possibilitando tornar essa zona mais resistente às secas, reestruturando sua economia e transformando as relações sociais de produção. No entanto, o impulso na modernização das atividades produtivas no Semiárido não foi acompanhado por mudanças estruturais e políticas. O crédito, a modernização da propriedade, o desenvolvimento e disseminação de tecnologias e os incentivos às atividades produtivas modernas foram orientados pela busca do crescimento econômico da região, mas sem o mesmo peso dado às mudanças sociais. É o que os teóricos interpretam como sendo um processo de modernização conservadora:

A modernização conservadora corresponde à introdução do progresso técnico sem qualquer relação para com os aspectos sociais do desenvolvimento. [...] apresenta a particularidade de constituir um processo violento de introdução do progresso técnico no campo, porque engendra relações de produção (novas ou ‘recriadas’, como a parceria), sempre desfavoráveis aos pequenos produtores rurais, proprietários ou não da terra (CARVALHO, 1988, p. 336).

O que Carvalho defende é uma solução combinando a atividade tecnicamente moderna a uma ação política de reforma estrutural: a irrigação com a reforma agrária. Dadas as exigências técnicas desse processo, não é possível irrigar de forma eficiente sem a mudança nas relações de produção. A irrigação deveria ser acompanhada, portanto, de um processo de reforma agrária que viabilizaria ao agricultor o acesso à terra e às condições adequadas de trabalho, incluindo as atividades agrícolas irrigadas. A reforma agrária seria uma estratégia eficaz para a emancipação dos trabalhadores nas relações tradicionais de parcerias, contrapondo-se aos interesses de grandes proprietários, garantindo um sentido social da irrigação: “[...] para que seja possível garantir a utilização social das obras de infraestrutura hídricas destinadas à irrigação, pública ou privada” (CARVALHO, 1988, p. 386).

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Além das políticas de incentivo à produção irrigada, o projeto que melhor expressa o esforço de modernização da estrutura hídrica do Semiárido é o da interligação de bacias, com a transposição de águas do Rio São Francisco para outras bacias do Nordeste setentrional. As primeiras propostas para essa transposição foram elaboradas no Século XIX, com a formulação de projetos que de construção de vias de comunicação e de canais, ligando o Rio São Francisco a bacias hídricas do Ceará e de Pernambuco. Ao longo do Século XX, essa proposta sempre retornou aos debates como alternativa de solução para regularização dos cursos de água nos rios intermitentes do Nordeste setentrional.

Com 477 quilômetros organizados em dois eixos de transferência de água (Norte e Leste), o “Projeto de Integração do Rio São Francisco, é a mais relevante iniciativa do Governo Federal dentro da Política Nacional de Recursos Hídricos”, conforme informações do Ministério da Integração Nacional63. De fato, é uma obra de engenharia complexa que está orçada em mais de R$ 8,2 bilhões e prevê a construção de 4 túneis, 14 aquedutos, 9 estações de bombeamento e 27 reservatórios, além da recuperação de açudes existentes na região que receberão as águas do rio São Francisco para o abastecimento, estimado, de 12 milhões de pessoas em 390 municípios nos Estados de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Também estão planejadas obras de saneamento e outras iniciativas que visam à revitalização da Bacia do Rio São Francisco.

Iniciada em 2007, com constantes atrasos, em outubro de 2015, as “obras do Projeto de Integração do Rio São Francisco apresentam 81% de execução física, sendo o Eixo Norte com 82,2% e o Eixo Leste com 79,2%”64. Exatamente nesse período, faz-se a dura constatação de que o Rio São Francisco sofre a maior crise registrada na história, inclusive em sua nascente e nos seus afluentes. As águas acumuladas nas represas de Três Marias e de Sobradinho chegaram aos níveis mais baixos já registrados após a entrada em operação, conforme amplamente noticiado. Segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), em dezembro de 2015, a barragem de Sobradinho, responsável por 58,20% da geração de energia na região, estava com apenas 1,77% da sua capacidade de armazenamento; a Barragem de Três Maria, com 7,58% e a Barragem de Itaparica com 11,58%65.

Essa situação reforça as críticas sobre os aspectos da sustentabilidade do projeto de integração das bacias hidrográficas e sobre a prioridade que atualmente tem sido conferida à geração de energia e ao agronegócio nas políticas regionais. As águas da transposição também irão viabilizar a implantação de um polo metal-mecânico e petroquímico previsto no Complexo Industrial e Portuário de Pecem, no Ceará66. Em relação às bacias hidrográficas beneficiadas com o atual projeto de transposição, a crítica é de que:

as águas do São Francisco simplesmente serão canalizadas para locais onde elas já são abundantes no Setentrional nordestino. Elas irão abastecer as principais represas da região, o que denota uma enorme insensatez, tendo em vista a existência de expressivos volumes nessas represas, em quantidades suficientes ao atendimento das demandas de toda população (SUASSUNA, 2012).

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Essas e outras polêmicas são sinais evidentes de que as concepções e proposições de alternativas de desenvolvimento dotado de sustentabilidade no Semiárido estão em disputa, tendo por “carro chefe” as políticas hídricas.

3. Água para conviver com o semiárido

Nas últimas décadas do Século XXI no Brasil, sobretudo, no contexto da redemocratização política, com a emergência de movimentos sociais e maior liberdade de expressão, foi recuperada a possibilidade de confrontar as proposições e modelos de desenvolvimento regional, destacando as críticas sobre a predominância dos problemas no Semiárido, como a questão ambiental da degradação do bioma caatinga e a permanência das desigualdades sociais e econômicas. A constatação de frustração e fracasso das políticas de combate à seca e de modernização econômica conservadora motivaram a atuação política de novos atores sociais que passaram a defender alternativas baseadas na sustentabilidade do desenvolvimento, disputando os processos de formulação de políticas públicas.

Na seca de 1992 e 1993, houve uma mudança qualitativa na reação da sociedade civil organizada, pressionando o Governo Federal por ações imediatas e cobrando a elaboração de um plano de ações permanentes no Semiárido, resultando na articulação de fóruns regionais e estaduais para incidência nas políticas públicas. Em 1999, durante a Terceira Sessão da Conferência das Partes das Nações Unidas da Convenção de Combate à Desertificação (COP 3), ocorrida em Recife, Pernambuco, representantes de movimentos sociais, de entidades religiosas e de ONG’s divulgaram a Declaração do Semiárido, afirmando que a convivência com as condições do Semiárido brasileiro é possível com o uso sustentável dos recursos naturais e a quebra do monopólio de acesso à terra, à água e aos outros meios de produção. Trata-se do manifesto de constituição da Articulação do Semiárido (ASA), que hoje mobiliza centenas de organizações na região.

A ASA concentrou sua atuação no desenvolvimento, com larga escala, de um programa de cidadania e educação para a convivência, tendo por referência o abastecimento de água para atender às populações dispersas nas áreas rurais do Semiárido. O “Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido: Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC)” pretende garantir o acesso de um milhão de famílias a equipamentos de captação e armazenamento de água de chuva para o consumo humano. O padrão de cisterna adotado tem capacidade para armazenar 16 mil litros de água, volume suficiente para abastecer uma família de até seis pessoas, no período de estiagem, que pode chegar a oito meses. O seu funcionamento prevê a captação de água da chuva que cai no telhado da casa e escoa para a cisterna através das calhas, além da instalação de bombas manuais para retirada da água.

Construídas ao lado dos locais de residência, as cisternas diminuem os esforços físicos das mulheres e das crianças, na busca de água em locais distantes, disponibilizando mais tempo para a realização

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de outras atividades produtivas, culturais e de lazer. A participação social está prevista em todas as etapas de execução do programa, desde a mobilização inicial, passando pela formação de comissões municipais, responsáveis pelo cadastramento e seleção das famílias e pelo acompanhamento das atividades pedagógicas e das construções. Os processos formativos são amplos e visam capacitar os membros das comissões e das famílias beneficiadas em questões de cidadania (o acesso à água como direito), gerenciamento de recursos hídricos e convivência com o Semiárido. Destaca-se também o amplo processo de capacitação de pedreiros da região para construção das cisternas de placas, gerando novos postos de trabalho e a melhoria da renda.

Essa nova postura política tem sido considerada também na formulação e implementação de algumas ações governamentais no Semiárido. O Programa Fome Zero, do Governo Federal, incorporou a construção de cisternas como uma de suas ações prioritárias de segurança alimentar. O mesmo ocorreu, de 2011 até os dias atuais, no Plano Brasil Sem Miséria (PBSM), de superação da extrema pobreza, compondo as estratégias de inclusão produtiva rural por meio do Programa Água para Todos.

Segundo os dados recentemente divulgados pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), “entre 2003 e 2011 foram construídas mais de 1,2 milhão de cisternas, garantindo água de qualidade para beber, cozinhar e fazer a higiene pessoal para mais de 1,2 milhão de famílias, que antes dependiam de carros-pipa ou da água de poços, graças à implantação das cisternas para consumo humano”67. Ainda, segundo o Ministério da Integração Nacional (MI), pasta hoje responsável pela coordenação do projeto, “o volume acumulado em 823 mil cisternas voltadas para o consumo, corresponde a 13,1 bilhões de litros de água em capacidade de armazenamento”68. Divergindo desses números, por não considerar na contagem as cisternas fabricadas de polietileno e discordar da metodologia adotada pelo Ministério da Integração, a ASA considera que o P1MC já havia construído 578.336 cisternas rurais até novembro de 201569.

Além das cisternas, houve uma diversificação dos investimentos hídricos, a exemplo das adutoras que distribuem a água acumulada em açudes e barragens para o abastecimento de cidades do Semiárido. O Projeto Água Doce, do Ministério do Meio Ambiente, apoia a implantação de pequenas usinas de dessalinização, viabilizando o abastecimento de água para consumo humano em regiões do cristalino, onde há grande ocorrência de água salobra. A novidade é o aproveitamento do rejeito em atividades de piscicultura e na produção de alimentos para animais, reduzindo os impactos ambientais decorrentes dos processos de dessalinização de águas.

Muitas dessas políticas e ações hídricas expressam um novo paradigma baseado na percepção de que a convivência com o meio ambiente é um imperativo fundamental para o manejo e uso sustentável dos recursos naturais em um ecossistema, sem inviabilizar a sua reprodução. Implica uma nova orientação para as atividades humanas, buscando conciliar ou corrigir os limites naturais à intervenção antrópica, com especial atenção às fragilidades hídricas. Por isso, as práticas de convivência articulam as ações hídricas com o manejo sustentável dos mananciais, do solo e da

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vegetação como formas de garantir um melhor aproveitamento (captação, armazenamento e gestão) das águas de chuva para o consumo e a produção apropriada.

Desde a década de 1940, Guimarães Duque defendia a necessidade de convivência com a semiaridez, com a diversificação dos métodos e das soluções hídricas, além das grandes, médias e pequenas barragens, para aproveitar o solo e economizar a água por meio das barragens subterrâneas, dos diques e dos desvios dos cursos d’águas: “Outrora o conceito de seca era aquele de modificar o ambiente para o homem nele viver melhor. A ecologia está nos ensinando é que nós devemos preparar a população para viver com a semiaridez, tirar dela as vantagens” (DUQUE, 1996, p. 9).

Hoje, são perceptíveis os avanços relacionados às tecnologias hídricas consideradas apropriadas à realidade do Semiárido. Um dos fundamentos desse processo é o reconhecimento das múltiplas necessidades de abastecimento hídrico da população sertaneja: captação e distribuição de água para consumo, com a construção e manutenção de pequenas barragens e outros equipamentos de uso familiar e comunitário; uso das áreas úmidas para produção de alimentos, visando a segurança alimentar da comunidade; produção de mudas para recuperação da mata ciliar; formação para o manejo de recursos hídricos e para o manejo do solo, evitando o assoreamento.

Além das tecnologias hídricas alternativas para o abastecimento de água da população sertaneja, também têm sido desenvolvidas e disseminadas soluções hídricas para a produção apropriada da agricultura familiar, combinando a captação da água de chuva com a melhoria das áreas de produção agrícola e para fortalecer as atividades pecuárias com pequenos animais. Tal realidade mostra que a construção de novas perspectivas sobre meio ambiente junto a populações marcadas pela condição de pobreza, exige a capacidade de articulação das iniciativas de gestão ambiental sustentável, com as iniciativas socioeconômicas orientadas para a melhoria da qualidade de vida da população local.

Nesse âmbito, a Articulação do Semiárido lançou, em 2007, o “Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2)”, com a intenção de criar alternativas de estocagem de água das famílias, comunidades rurais e populações tradicionais para as atividades agrícolas e pequenas criações de animais: “o nome do programa faz jus à estrutura mínima que as famílias precisam para produzirem – o espaço para plantio e criação animal, a terra, e a água para cultivar e manter a vida das plantas e dos animais”70 . Fortemente empenhada em promover a agroecologia, a segurança alimentar e nutricional e a cidadania como base da convivência com o Semiárido, a ASA tem priorizado as seguintes tecnologias sociais: cisterna-calçadão (52 mil litros); barragem subterrânea em áreas de baixios, córregos e riachos; tanque de pedra ou caldeirão em áreas de serra ou nos lajedos; bomba d’água popular em poços tubulares; barreiro-trincheira escavado no solo; barraginhas ou barragens sucessivas e a cisterna enxurrada.

Essas iniciativas também têm sido apoiadas pelo Governo Federal no âmbito do Programa Água para Todos, tendo alcançado a marca de mais de 159 mil pequenas obras construídas entre 2003 e outubro de 2015:

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Tecnologias sociais de acesso à água estão permitindo famílias do Semiárido nordestino conviver com a seca, criar animais e manter o cultivo de alimentos. Desde 2003, 159,2 mil dessas tecnologias foram entregues a agricultores familiares de baixa renda da região. São cisternas do tipo calçadão e de enxurrada, barragens subterrâneas e barreiros trincheira, entre outros modelos, com capacidade entre 52 mil e 500 mil litros de água, que armazenam água no período da chuva71.

As barragens subterrâneas permitem, a baixo custo, a captação e armazenamento de água de chuva debaixo da terra, ficando ao abrigo da evaporação direta e intensa e sem inundar as áreas de plantio nos baixios. As barragens sucessivas, construídas uma após outra, no leito de um rio, permitindo um melhor aproveitamento agrícola das terras úmidas com o plantio irrigado e de vazante de frutas, hortaliças, forragens e cereais, além da criação de peixes, sem comprometer o leito do rio com o assoreamento. Os barreiros trincheiras, escavados em terrenos com pedra firme, permitem que a água da chuva seja carreada para dentro com o uso de valetas, evitando a contaminação com as fezes de animais e reduzindo a evaporação. Da mesma forma, os poços amazonas possibilitam pequenos plantios irrigados, com o manejo adequado da água e da plantação, solucionando os problemas de diminuição da vazão nas secas, da alta evaporação, o risco de salinização das terras e os altos custos de energia elétrica e combustível.

Com base na perspectiva da convivência, também têm sido experimentados e disseminados novos métodos sustentáveis de irrigação, apropriados à realidade ambiental e às condições da agricultura familiar no Semiárido. Essas técnicas de manejo consideram principalmente os tipos do solo e a disponibilidade hídrica (quantidade e qualidade da água) para definir as melhores estratégias e os sistemas adequados de irrigação, aproveitando as vantagens da intensa insolação e luminosidade, que melhoram a produtividade e a qualidade dos produtos. Outro problema a ser evitado é o elevado custo com energia, combustível e insumos químicos nos sistemas irrigados, adotando práticas agroecológicas de fertilização do solo e do manejo de pragas.

A irrigação de salvação72, por exemplo, tem sido uma tecnologia apropriada para o aproveitamento da água de barreiros, açudes ou poços amazonas, para irrigar lavouras que sofrem com a irregularidade da chuva durante o inverno (o que se chama de ‘seca verde’). A irrigação é feita durante o próprio período do inverno, aproveitando melhor a água armazenada, sem prejudicar o abastecimento humano e animal. Da mesma forma, os sistemas irrigados com microaspersão para produção familiar que utiliza água de poços e mananciais acumulados em caixas de água ou reservatórios nas partes mais altas da propriedade, proporcionando a irrigação por força da gravidade e com o uso de microaspersores, os quais controlam a quantidade da água que a planta necessita, mantendo o solo úmido.

Além das tecnologias apropriadas de captação e armazenamento de água, a convivência com o Semiárido requer a gestão comunitária de mananciais hídricos. Além de evitar o desperdício e a contaminação da água da chuva armazenada, são incentivados o manejo sustentável dos recursos

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hídricos existentes, principalmente a limpeza dos açudes e barreiros e a preservação ou reposição da mata ciliar em rios e riachos e a conservação das nascentes. A gestão compartilhada desse recurso natural é uma iniciativa social e política necessária para garantir o uso sustentável da água, possibilitando o abastecimento humano e a produção apropriada, sem degradar os mananciais hídricos da superfície e os aquíferos subterrâneos.

A Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433, de 1997, também conhecida como a “Lei das Águas”), prevê um modelo de gestão integrada com base nos seguintes instrumentos: os planos de recursos hídricos, o enquadramento dos corpos d’água em classes, segundo os usos preponderantes, a outorga de direito de uso, a cobrança pelo uso da água, a compensação a municípios e o sistema de informações sobre recursos hídricos. A Agência Nacional de Águas (ANA), criada pela Lei nº 9.984, de 2000, tem a missão de implantar a política nacional de recursos hídricos, tendo como fundamentos a descentralização e a participação ativa do Poder Público, dos usuários e das comunidades, nos comitês de bacias e microbacias hidrográficas.

A participação ativa das organizações da sociedade civil nos comitês de gestão de bacias e microbacias tem sido importante para o debate e definição de prioridades de uso da água e para o planejamento e execução de políticas públicas e de práticas comunitárias de recuperação e preservação dos mananciais, com a sensibilização e mobilização da população. No entanto, as fragilidades dos mecanismos de participação e de concertação de interesses exigem a realização de processos sistemáticos de sensibilização e de formação dos representantes das organizações de usuários da sociedade civil diante das capacidades de afirmação de interesses das representações do poder público e do setor empresarial.

Há uma forte resistência das práticas políticas autoritárias, culturalmente enraizadas nos principais espaços decisórios, dificultando os avanços no processo participativo para a definição de alternativas de desenvolvimento na região. São comuns os casos de manipulação dos espaços de participação direta, retirando as capacidades decisórias, na tentativa de manter o monopólio da política, com base no clientelismo e no patrimonialismo. A forma autoritária de condução das políticas públicas também contribui para a apatia e a indiferença da população, diante de iniciativas impostas sem o necessário diálogo, sensibilização e envolvimento ativo dos principais interessados na sua formulação e gestão: “o povo precisa ser chamado a participar mais ativamente no melhoramento do Nordeste. [...] Urge despertar as energias coletivas e provocar uma reação de baixo para cima” (DUQUE, 2001, p. 250).

É importante destacar que as mudanças nos conteúdos e na gestão das políticas (não apenas hídricas), considerando inclusive as capacidades de intervenção de setores organizados na formulação e execução das ações, ampliou a capacidade de resistência (resiliência) da população residente no Semiárido. Nesse período, em que se vivencia mais uma estiagem prolongada, são nítidos esses sinais de mudanças: não há mais frentes de emergências ou doações emergenciais de alimentos como solução para os efeitos da seca, por exemplo; os carros pipas ainda existem, mas

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também colocam água nas cisternas (conquistadas) nas residências dispersas e nas comunidades rurais; as grandes barragens diminuem seus volumes de água, mas abastecem, por meio de canais e adutoras, parte da população urbana e rural; os poços continuam sendo perfurados, mas a gestão hídrica avançou no controle sobre o uso dos recursos que são comuns.

Do ponto de vista socioeconômico, a produção da agricultura familiar foi fortalecida com novos programas de comercialização direta com o Governo Federal, acompanhada de assistência técnica e melhorias de infraestrutura hídrica e produtiva. As famílias mais pobres, já fortemente amparadas pela Previdência Social (aposentadoria rural), tiveram acesso a novos programas de transferência de renda que conduziram à dinamização de economias locais. Os censos e pesquisas amostrais apresentam essas mudanças em praticamente todos os indicadores sociais, com ênfase na redução da extrema pobreza. Ou seja, foi preciso olhar de uma perspectiva mais ampla para a realidade presente e futura do Semiárido, para além das nuvens no céu e das grandes barragens na terra, para articular novos arranjos nas políticas públicas, buscando tratar a complexidade dos problemas e estabelecer ou inverter as prioridades socioeconômicas, ambientais e culturais. Esses aprendizados são fundamentais para os tempos presente e futuro que estão exigindo mudanças ainda mais profundas nas políticas públicas no Semiárido Brasileiro.

4. Aprendizados para um futuro de mudanças climáticas O discurso centrado na escassez da água predomina até hoje, no Semiárido, e foi a principal

justificativa para as políticas de combate às secas e aos seus efeitos. Após mais de um século de intervenção com as obras de engenharia hidráulica para geração de energia, implantação dos modernos polos de irrigação e para o abastecimento das cidades, faz-se necessário atualizar os discursos e reconhecer que o Semiárido Brasileiro possui, hoje, além de grande potencial aquífero, uma significativa capacidade de armazenamento de água73. Por isso, há uma mudança de perspectiva sobre o enfrentamento da escassez da água não apenas pela oferta, mas pela gestão voltada para a desconcentração e a democratização do acesso e, sobretudo, para a otimização dos recursos disponíveis, conforme alerta Rebouças (2004, p. 10):

A engenharia nacional de recursos hídricos precisa entender que a única solução para os problemas de escassez de água nas cidades não é o aumento da sua oferta, mediante a construção de obras extraordinárias, mas o desenvolvimento de campanhas permanentes de informação à população sobre o uso cada vez mais inteligente da água disponível.

Essas mudanças de olhares e perspectivas são fundamentais, sobretudo quando os sinais das mudanças climáticas globais são cada vez mais evidentes. Segundo estudiosos da temática74, nos últimos anos está ocorrendo um aumento na temperatura média no planeta e eventos extremos vêm

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acontecendo com maior frequência e intensidade, o que requer novos conhecimentos, mudanças de comportamentos da humanidade e políticas públicas (globais, nacionais e locais) inovadoras. No Brasil, embora os estudos ainda sejam incipientes, há uma compreensão de que as regiões tropicais, especificamente na Amazônia e no Nordeste, são as mais vulneráveis aos impactos das mudanças do clima para o final do Século XXI (BRASIL, 2007).

Quanto ao Semiárido brasileiro, está sendo construído um consenso de que a escassez de água, que já é um enorme problema, tende a se agravar com o aumento da temperatura, a redução das precipitações pluviométricas e com a exposição dos solos às secas frequentes e prolongadas, além das erosões: “ao se manter o nível atual de degradação ambiental no Nordeste, é possível que até 2050 o semiárido venha a se tornar árido; o subúmido seco venha a se tornar semiárido; e o subúmido úmido venha a se tornar subúmido seco” (BRASIL, 2005).

As questões ambientais do Semiárido não podem mais ser vistas de forma fragmentada, nem apenas restrita às limitações naturais, físicas e climáticas. As formas inapropriadas de uso dos recursos naturais deverão ser efetivamente consideradas na formulação e implantação das políticas públicas, evitando-as e mitigando os seus efeitos acumulados ao longo de séculos. A escassez de água, tanto para o consumo quanto para a produção, é agravada pela degradação das nascentes e dos reservatórios naturais, pelo desmatamento da caatinga, pela poluição e assoreamento dos mananciais e pela evaporação da água acumulada em grandes reservatórios. Da mesma forma, os solos rasos, ondulados e pedregosos também correm riscos de perda da fertilidade, devido às erosões provocadas pelas enxurradas, pelo intenso uso de agrotóxicos, pelas técnicas não apropriadas de manejo do solo e pela retirada da vegetação natural. Desse modo, é urgente que as políticas de desenvolvimento regional sejam dotadas de estratégias educacionais e de gestão ambiental que limitem efetivamente os processos em curso, os quais tornam cada vez mais intensas a degradação ambiental e a escassez de recursos de água.

Em síntese, vivemos hoje o urgente desafio e temos a oportunidade de construção de uma nova política das águas no Semiárido, menos centrada na engenharia hidráulica e mais direcionada para a gestão dos recursos naturais, tendo como estratégia a convivência e por finalidade a garantia a todos do direito à água de qualidade.

58 O paradigma é aqui utilizado como o significado de uma matriz disciplinar partilhada pelos membros de uma comunidade que conduz os olhares e as visões na interpretação e soluções de determinados problemas.59 O termo foi utilizado pelo jornalista Antônio Callado, do Jornal Correio da Manhã, que visitou a região em 1959, constatando que as máquinas e equipamentos públicos eram utilizados diretamente pelos fazendeiros em suas terras, que os reservatórios de água construídos com recursos públicos eram cercados e controlados por grandes proprietários, além dos juros escorchantes cobrados pelos comerciantes aos trabalhadores das frentes de trabalho.60 Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF), criada em 1945; o Banco do Nordeste do Brasil (BNB), criado em 1952; a Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), criada em 1948; a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), criada em 1959.

Notas

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OS DESAFIOS DA AMPLIAÇÃO DO ACESSO À ÁGUA EM COMUNIDADES RURAIS DO SEMIÁRIDO NORDESTINO: INOVAÇÃO, GOVERNANÇA E DEMOCRACIA NO BRASIL

DO SÉCULO XXI

Luis Henrique Cunha

1. Introdução

As décadas de 1990 e 2000, no Semiárido brasileiro, foram marcadas por esforços de elaboração tanto de discursos renovados para fundamentar ações voltadas ao desenvolvimento regional quanto de formulação e execução de políticas públicas consideradas inovadoras. Esses discursos e essas políticas alimentaram-se fortemente das críticas produzidas às estratégias de combate à seca e às grandes políticas hídricas e projetos de modernização econômica. Num cenário marcado por grande experimentação social e pelo debate em torno da sustentabilidade e da degradação ambiental, a ideia de “convivência com o Semiárido” passa a ser a referência discursiva dominante de um conjunto muito diversificado de atores sociais. Essa ideia vai estar associada a uma grande variedade de políticas, com destaque para iniciativas de ampliação do acesso à água entre moradores das áreas rurais do Semiárido brasileiro.

Um dos pontos mais criticados nas grandes obras hídricas executadas no Nordeste ao longo do século XX residia justamente na exclusão de moradores das comunidades rurais da região ao acesso à água. Os grandes açudes, adutoras, estações de tratamento atendiam principalmente populações urbanas e grandes projetos econômicos privados, com pequena repercussão entre os segmentos mais pobres da população rural. O foco sobre os conflitos e contradições referentes ao acesso água, o intenso debate acerca das formas mais adequadas de gestão de recursos hídricos e a anunciada crescente escassez de água potável no mundo (SILVA et al, 2006) são elementos que compõem o cenário no qual passam a ser pensadas políticas públicas “inovadoras” de ampliação do acesso à água entre “camponeses” ou “comunidades difusas” do Semiárido. Na década de 1990, duas diferentes alternativas emergem como solução hídrica para comunidades rurais no Semiárido brasileiro: as cisternas de placa (que armazenam água de chuva) e os sistemas de dessalinização, via osmose inversa (que permitem o aproveitamento de águas subterrâneas salobras e salinas). Tais alternativas serão a base, nos anos 2000, de dois programas mantidos no âmbito do Governo Federal, em articulação com a sociedade civil, governos estaduais e municipais, para atender os objetivos da ampliação da oferta de água para as populações rurais, no contexto da “convivência com o semiárido”.

Em 2003, a Articulação do Semiárido (ASA), com base em experiências de algumas das entidades que lhe dão sustentação, lança o Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência

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com o Semiárido: um Milhão de Cisternas Rurais (conhecido pela sigla P1MC), com apoio do Governo Federal, através do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS)75. Em 2004, a então Secretaria de Recursos Hídricos (hoje, Secretaria de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano) do Ministério do Meio Ambiente, em parceria com a Embrapa e com a Universidade Federal de Campina Grande, além da participação das secretarias de recursos hídricos estaduais, lança o Programa Água Doce (PAD), voltado para oferta de água via sistemas de dessalinização, com financiamentos da Petrobrás, Fundação Banco do Brasil (FBB), BNDES, entre outros. Os dois programas foram incluídos no Plano Brasil sem Miséria, instituído pelo Governo Federal em junho de 2011.

Estes dois programas, em que pesem as diferenças de concepção e modelos de implementação, compartilham muitas características comuns. Num contexto marcado pela intensificação dos processos de comodificação da água (CASTRO, 2013), em que o Neoliberalismo se consolida como modelo global de governança, caracterizado pela concorrência como norma universal das condutas (LAVAL E DARDOT, 2016), o P1MC e o PAD buscam enfrentar o problema da oferta de água potável em comunidades rurais do Semiárido brasileiro através de estratégias “fora do mercado”, apostando na cooperação e na autogestão ou cogestão.

O acesso à água potável ou “de qualidade” é formulado, assim, como um direito, historicamente negado a milhares de famílias residentes em comunidades rurais do Semiárido brasileiro. O P1MC e o PAD devem ser interpretados como parte de um esforço mais geral de “democratização do acesso à água” no Brasil. Estes esforços não estão isentos de conflitos e contradições. E as respostas que oferecem para as comunidades rurais do semiárido colocam em relevo os desafios da governança democrática de políticas públicas, como desdobramento da crítica que foi feita à ação estatal – tanto à direita quanto à esquerda do espectro político – nos anos 1970 e 1980 (HAGER, 2012).

Se a crítica ao Estado abre espaço para maior protagonismo da sociedade civil na formulação e implementação de políticas públicas, também favorece processos de desresponsabilização das instâncias estatais na oferta de serviços públicos, sendo o Estado substituído pelo mercado ou pela sociedade civil. Os formulados do P1MC e do PAD precisaram lidar com o tema da governança das águas e da gestão cotidiana da água potável nas comunidades atendidas pelos programas. As ações que promoveram, ao longo de mais de uma década, vinculam os temas da inovação, governança e democracia de modo empírico e experiencial, de cuja análise pode-se compreender melhor os desafios da oferta de água em comunidades rurais do interior do Nordeste e também alguns dos conflitos e contradições que emergem dessas iniciativas.

Neste capítulo, proponho analisar as ações do P1MC e do PAD nos seguintes termos: primeiro, da construção social de alternativas tecnológicas (cisternas de placas e sistemas de dessalinização) para oferta de água potável em comunidades rurais do Semiárido brasileiro; segundo, das articulações entre diferentes atores sociais e aos modelos de governança de políticas públicas; e por fim, das dinâmicas e contradições que estas tecnologias e políticas engendram.

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2. O renovado esforço de modernização

O tema da modernização goza de grande prestígio nos dias que correm. Mas poucos têm consciência disso e pode-se dizer que mesmo nos mundos sociais em que sua presença é mais notória, é também mais invisível. Paradoxalmente, o tema da modernização tem sido alvo de críticas permanentes, desde pelo menos meados da década de 1970, e é justamente entre os grupos sociais em que essas críticas ecoaram (e continuam a ecoar) mais fortemente, que o ideal da modernização novamente ganha força, ainda que transfigurado, renomeado, sem deixar, no entanto, de revelar suas características principais e suas patentes contradições. É preciso desvelar a modernização em meio à miríade de conceitos aparentemente novos que lhe ocultam a face e lhe protegem da crítica acadêmica (CUNHA et al., 2009).

É possível compreender as políticas públicas “inovadoras” de ampliação do acesso à água entre populações rurais do Semiárido brasileiro como parte dos esforços atualizados das antigas estratégias modernizadoras. Essas estratégias modernizadoras não se limitam a estas políticas e, em sua feição renovada, diferenciam-se do antigo projeto de modernização conservadora principalmente em dois aspectos: a) substituem a ênfase nos aspectos econômicos dos processos de modernização pela ênfase sobre as transformações institucionais; e b) o público prioritário do novo projeto modernizador deixa de ser as classes dominantes (e seus interesses), substituídas pelas classes dominadas (e pela interpretação de quais são seus interesses). Em outras palavras, esse renovado projeto de modernização compreende a opção mais ou menos consciente de muitos agentes públicos e da sociedade civil organizada em avançar no processo de modernização da sociedade brasileira pela via institucional (dado o fracasso da via econômica – esgotada, material e simbolicamente, na década de 1980) e com foco para aquelas parcelas da sociedade marginalizadas do surto modernizador anterior (CUNHA et al., 2009).

Mais uma vez, o mundo rural e suas populações se veem no centro dos esforços modernizadores. Num momento, pela necessidade de modernizar o que se considerava os principais resquícios de formas econômicas e elites arcaicas, como meio de impulsionar o desenvolvimento. Noutro, pela necessidade de modernizar o que agora se considera os principais resquícios de formas institucionais e relações sociais arcaicas, como meio de também impulsionar o desenvolvimento (CUNHA et al., 2009).

Ideias como participação social, concertação, empoderamento, capital social, sustentabilidade, autogestão são transformadas em crença coletiva para muitos setores da sociedade brasileira (sendo, portanto, inatacáveis e inquestionáveis para aqueles que lhes dão significado social e político). São ideias que não procuram levar a uma racionalização completa nas ações de exploração de recursos naturais e de geração de riquezas, mas a uma racionalização dos modos de vida, através da instituição de normas e regras cada vez mais formais, complexas e abrangentes. Essas ideias, finalmente, são apresentadas como auxílio à emancipação (esse tema tão moderno) de parcelas dominadas da

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sociedade, e, assim, podemos interpretar o uso do conceito de protagonismo como mais uma forma moderna de se pensar o papel dos indivíduos, de suas escolhas e ações, nas transformações sociais (EISENSTADT, 2001; CUNHA et al., 2009).

É importante, neste contexto, diferenciar projetos de transformação social dos processos sociais efetivados. Os projetos referem-se às intencionalidades expressas pelos atores sociais e às estratégias adotadas para influir no curso das transformações sociais – interpretadas em termos de grau de institucionalização (na medida em que certos projetos são reconhecidos pelo Estado, tornados políticas públicas ou formalizados em termos de regulamentos, decretos, leis, etc) e disputas por legitimação, que são travadas no campo discursivo (CUNHA et al., 2008).

Já os processos sociais referem-se às direções efetivas e não planejadas de transformação social. É neste sentido que percebemos as políticas de acesso a água, tidas como inovadoras76(e, em certo sentido, apresentam mesmo diferenças em relação às antigas iniciativas de combate à seca), como parte das tendências modernizantes que permanecem (apesar de toda a crítica realizada) ainda que tenham aberto mão de produzir efeitos econômicos consideráveis, contentando-se em implantar controles institucionais em realidades mitigadas de convivência com secas e estiagens prolongadas.

3. Discursos, tecnologias e atores: P1MC e Programa Água Doce

Ainda que voltado à oferta às populações rurais de água potável para beber e cozinhar através do recurso à acumulação de água de chuva em cisternas de placas, o P1MC deveria também, no âmbito de um “movimento de articulação e de convivência sustentável com o ecossistema do Semi-Árido”, promover o “fortalecimento da sociedade civil” e a “mobilização, envolvimento e capacitação das famílias, com uma proposta de educação processual”. De acordo com a ASA, “cada cisterna tem capacidade de armazenar 16 mil litros de água. Essa água é captada das chuvas, através de calhas instaladas nos telhados. Com a cisterna, cada família fica independente, autônoma e com a liberdade de escolher seus próprios gestores públicos, buscar e conhecer outras técnicas de convivência com o Semiárido e com mais saúde e mais tempo para cuidar das crianças, dos estudos e da vida, em geral77”.

É importante perceber como os objetivos práticos da política (água potável para beber e cozinhar, melhoria na saúde e na qualidade de vida, entre outros) acompanham objetivos mais políticos e mesmo gerais (fortalecimento da sociedade civil, autonomia, liberdade de escolher gestores públicos). Mas eu gostaria de ressaltar, principalmente, o caráter racionalizante das práticas cotidianas das famílias beneficiadas pelas cisternas, expressas nas estratégias de capacitação das famílias, na ideia de educação processual e na busca por outras técnicas de convivência com o Semiárido. Segundo a ASA, quase 300 mil cisternas foram construídas até abril de 2010. E, junto com as cisternas, as famílias foram capacitadas para Gerenciamento de Recursos Hídricos.

Duque et al (2004) referem-se a esta e outras experiências da ASA e das organizações que integram essa rede como “inovação na prática social”. Se é verdade que é possível perceber muitas novidades

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na experiência da ASA, também é verdade que o processo de institucionalização das cisternas de placa como política pública alternativa resulta num enquadramento modernizante (e racionalizante), tendo levado inclusive ao abandono dos fundos rotativos solidários como suporte para a construção de cisternas de placa. Duque et al (2004) consideram que os fundos rotativos eram ancorados na reciprocidade tradicional das comunidades rurais. Mas, no contexto de um processo de modernização, essas tradições não podem ser consideradas.

O Programa Água Doce, por sua vez, tem um viés mais claramente modernizante, já que apresenta a tecnologia de dessalinização de águas subterrâneas salobras e salinas, via osmose inversa como parte dos avanços científicos e tecnológicos. Mas essa tecnologia teria um caráter social. É importante ressaltar que dois principais desafios tiveram que ser enfrentados pelo PAD: as críticas ambientais à dessalinização, em virtude do concentrado salino que é produzido no processo (que produz, em média, 50% de água doce e 50% de água ainda mais salobra ou salgada, que era normalmente jogada diretamente no ambiente) e ao fato de que a grande maioria dos sistemas instalados no Semiárido brasileiro, desde meados dos anos 1990, se encontram sem funcionar, colocando assim a questão da gestão como problema crucial a ser enfrentado.

Esses dois desafios têm caráter racionalizante e as ênfases sobre a necessidade das comunidades assumirem a gestão coletiva dos sistemas de dessalinização, em formas institucionais estabilizadas, e no destino adequado, dado ao concentrado salino (em reservatórios para evaporação) expressam o viés modernizante da política. A política prevê, inclusive, a instalação de unidades demonstrativas do PAD, com aproveitamento do concentrado para fins econômicos (criação de tilápia e cultivo de erva-sal, planta que incorpora o sal em seus processos metabólicos e que pode ser utilizada como parte da alimentação de caprinos, ovinos e bovinos). Esse viés econômico do projeto (que também está presente no P1MC) é pensado enquanto chave da segurança alimentar e dos rebanhos, e não como meio de promover aumento significativo da produção e da renda.

Há, segundo cálculos da coordenação do programa, cerca de dois mil sistemas de dessalinização instalados no Semiárido brasileiro. O PAD tem realizado esforços, principalmente no sentido de recuperar alguns desses sistemas, introduzindo uma nova metodologia de gestão e o destino adequado ao concentrado; na implantação de unidades demonstrativas (sete já haviam sido implantadas até abril de 2010 e outras 10 estavam previstas) e na elaboração de planos estaduais que orientem as ações dos governos estaduais na temática, adotando ações regulares de monitoramento e manutenção dos sistemas implantados.

Em resumo, podemos indicar que estas duas políticas – ainda que às vezes apresentadas como concorrentes e que, em alguns fóruns, tenha havido uma disputa sobre a efetividade e conveniência de apoiar uma ou outra – apresentam muitos pontos em comum. Em termos discursivos, podem ser associadas a ideia de convivência com o semiárido em oposição ao referencial simbólico de combate à seca (Quadro 1). Promovem ações pontuais (ainda que pensadas em termos sistêmicos), em oposição a grandes obras hídricas, num contexto de segurança hídrica e alimentar e de preocupações com a sustentabilidade das ações.

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Quadro 1 - Síntese das mudanças discursivas.

É também importante ressaltar que essas políticas só se viabilizaram através do que podemos chamar de construção social de alternativas tecnológicas. Tanto o P1MC como o Programa Água Doce estão estruturados em torno destas alternativas (as cisternas de placa e os sistemas de dessalização) (Quadro 2).

Quadro 2 - Construção social de alternativas tecnológicas.

Finalmente, é possível comparar essas duas políticas em termos da articulação entre atores sociais que lhes dão sustentação. De acordo com Sabourin et al. (2003, p. 62):

São de dois tipos as instituições que podem ser chamadas de novos atores do desenvolvimento rural no Semiárido nordestino. Uma primeira vertente é composta por entidades privadas de interesse coletivo ou comunitário. São, principalmente, organizações de produtores do tipo de associações comunitárias e de sindicatos de trabalhadores rurais, mas também entidades da sociedade civil, (...) como as ONG’s, os fóruns regionais de desenvolvimento e as cooperativas de técnicos. A segunda vertente corresponde aos órgãos administrativos públicos locais e microrregionais (...). Esses dois tipos de instituições (...) desempenham novas funções e papéis que emergiram das dinâmicas atuais (territoriais ou setoriais) do desenvolvimento rural brasileiro, funções antes assumidas parcialmente pelos órgãos do governo estadual ou federal. Em outras palavras, as transformações (...) da agricultura familiar ainda permanecem estreitamente ligadas às mudanças organizacionais proporcionadas pelos próprios agricultores e pela evolução recente do “ambiente institucional” local ou regional.

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Estes novos atores do desenvolvimento rural (e, em certo sentido, protagonistas do novo esforço modernizador) aparecem tanto no P1MC quando no Programa Água Doce. A análise do Quadro 3 revela esse novo quadro de articulação entre grupos sociais, mais complexo que aquele que levou a cabo o antigo projeto de modernização conservadora. É ainda curioso perceber como as duas políticas, em algum momento, procuram articular os níveis comunitário e familiar. No P1MC, através da instituição de arranjos sociais comunitários (fundos rotativos) e familiares (gestão da água pela unidade familiar). No PAD, pela instituição de arranjos sociais comunitários (“acordos de gestão”) e familiares (via “educação ambiental” para conservação e manuseio de reservatórios de água).

4. Por uma outra mudança de paradigma: da escassez à gestão da água

Um dos pontos mais destacados do Programa Água Doce (PAD) e do P1MC foi o de chamar atenção para um fato fundamental: a escassez de água no Semiárido não é igual para todos. Ao destacarem a situação crítica das populações residentes em comunidades rurais difusas da região e ao empreenderem ações para combater este problema, atualizaram os discursos mais críticos sobre as secas no Nordeste, que desde há muito tempo ressaltam o impacto diferencial das estiagens prolongadas sobre os mais pobres.

A tradição mais crítica de análise das estratégias de controle operadas pelas elites regionais sobre os recursos naturais e a efetivação de padrões diferenciados de acesso a estes recursos, capaz de revelar o caráter conflituoso da escassez hídrica na região, porém, não conseguiu escapar da “armadilha” da questão agrária. De modo que as desigualdades hídricas foram, no geral, reduzidas às desigualdades fundiárias. Uma ecologia política da água no Semiárido nordestino não chegou a se desenvolver plenamente.

Quadro 3 - Articulação dos atores sociais no P1MC e programa água doce.

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Desta forma, o acesso à água no interior do Nordeste dificilmente foi pensado nos termos do conflito entre diferentes grupos sociais. Não se fala em conflitos pela água no Semiárido, mas em efeitos da seca. Isso não quer dizer que esses conflitos não existiram e não continuem a existir, alguns deles, inclusive, potencializados nos últimos anos, como aqueles referentes à destinação da água para uso agrícola ou de abastecimento urbano. Pensar em termos de conflitos é problematizar o efeito das diferenças sociais na conformação de padrões de acesso a recursos naturais para além de situações excepcionais como a ocorrência de estiagens prolongadas. O foco sobre as secas, mesmo entre aqueles autores mais críticos, impediu que se desenvolvesse, repito, uma perspectiva crítica mais robusta de análise dos conflitos relativos ao acesso à água na região.

Apontar essa lacuna é fundamental no esforço de compreender como a noção de convivência com o Semiárido pôde se consolidar como paradigma alternativo ao combate à seca. Primeiro, porque recai novamente na “armadilha” fundiária, pensando o problema em termos da propriedade da terra. Desta vez, são os pequenos proprietários ou não proprietários que aparecem como alvo da ação das políticas de convivência. E, segundo, porque uma vez mais o tema da água é enquadrado numa visão ecológica ou natural da região. Saem os conflitos como elementos determinantes do padrão de acesso a recursos e assume-se que estes padrões são produzidos pelas características próprias do ecossistema semiárido. Mesmo partindo de uma abordagem crítica, o paradigma da convivência acaba minimizando a centralidade dos conflitos para pensar o problema do acesso à água no mundo contemporâneo. Essa opção faz com que o debate sobre a água no semiárido se distancie dos debates mais atuais realizados em outros países, em que foi possível pensar a água fundamentalmente em termos dos conflitos relativos ao acesso.

Tanto o P1MC quanto o PAD optaram por produzir meios alternativos de acesso à água (cisternas e sistemas de dessalinização), no lugar de priorizar a problematização de como se dá a distribuição da água acumulada nos períodos de chuva. E de efetivar ações que alterem esses padrões de acesso. Esta opção produziu dois importantes efeitos políticos: a) tornou essas políticas praticamente inofensivas do ponto de vista das classes dominantes, até porque mesmo no auge de implementação, mobilizaram uma parcela pequena de recursos públicos; e b) impediu que se produzisse um movimento forte de luta pela democratização do acesso à água, que reunisse as populações expropriadas nas áreas rurais e urbanas.

É por esse motivo que tanto o P1MC quanto o PAD não escapam ao que eu chamo de ‘paradigma da escassez’. Ou seja, que o problema da água no Nordeste é, fundamentalmente, um problema de oferta. No quadro do paradigma da escassez incorporam-se, sem dúvida, elementos importantes da crítica social produzida sobre as secas na região Nordeste. Mas não se apresentam, efetivamente, pelo menos no que toca ao problema do acesso à água, como a irrupção de um novo paradigma. Não conseguiram produzir o passo necessário à superação do foco na oferta de água (no caso, da oferta de água em comunidades rurais difusas) para subordinarem o problema da oferta à questão mais geral da gestão da água, que é basicamente a maneira pela qual se definem padrões de acesso e mecanismos de controle do Estado e da sociedade sobre este acesso.

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Tal panorama não deixa de ser surpreendente, porque os agentes, tanto da sociedade civil quanto do poder público, que estiveram envolvidos com a implementação do P1MC e do PAD precisaram, desde o primeiro momento, lidar com o problema da gestão da água das cisternas e dos sistemas de dessalinização. Definir formas de acesso, maneiras de gerenciamento de recursos hídricos, responsabilidades de monitoramento e manutenção das infraestruturas hídricas eram desafios enfrentados desde o início nestes programas. Desafios que foram abordados primordialmente como questões técnico-burocráticas, e muito raramente como temas propriamente políticos.

A superação do paradigma da oferta de água deve enfrentar de modo mais decisivo os problemas criados pelas formas consolidadas de gestão da água na região. A oferta de água não resolverá as desigualdades e conflitos se não estiver conectada com um movimento social que efetivamente pense o problema do acesso e dos mecanismos que produzem padrões de distribuição da água, os quais marginalizam milhares de pessoas na região, nas áreas rurais e nas áreas urbanas. E, deste modo, a partir desta reflexão, pode nascer um verdadeiro movimento pela democratização do acesso à água no Semiárido nordestino.

5. Ação do Estado e reconstituição de instrumentos de Solidariedade Civil

Inspirado no que Jeffrey C. Alexander (2014, p. 399) chama de abordagem “cultural-sociológica” que “focaliza significados e emoções como as questões centrais para as sociedades civis”, eu gostaria de tratar, nesta seção final do capítulo, de uma outra implicação da priorização, pelo P1MC e pelo PAD: as ações para a oferta de água nas comunidades rurais difusas do semiárido brasileiro. Estes programas criam uma perspectiva fundada do que chamei em outro lugar de “excepcionalismo dos pobres” (CUNHA e PAULINO, 2014).

Parafraseando Alexander (2014, p. 404), as respostas produzidas pelo P1MC e pelo PAD para o problema do acesso à água nas comunidades rurais do interior do Nordeste dizem muito “sobre a condição da solidariedade social”. E “solidariedade diz respeito ao sentido de conexão, uma questão de sentimento e significado”.

De acordo com Alexander (2014, p. 404-405):

Em vez de ser eliminada pela racionalização, a solidariedade permanece um foco principal de sentimento, significado, recompensa e sanção, tão robusta quanto qualquer instituição econômica ou política, tão significativa quanto a religião, tão emocionalmente influente quanto a família. O significado afetivo e moral de “nós” — o que poderia ser chamado “nós-[i]-dade” — é uma força social fundamentalmente estruturante. (...) A experiência da modernidade tornou dolorosamente claro que a solidariedade pode ser estruturada de maneiras surpreendentemente diferentes. As solidariedades “primordiais” amarram a lealdade a grupos, lugares e crenças particulares. Tais laços têm sido centrais para a sociedade humana desde tempos imemoriais. (...). A solidariedade civil cria laços mais universais, conexões que só parecem ser mais imaginadas que concretas. Em nome de preocupações éticas, a solidariedade civil permite a separação e a crítica do que antes

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parecia imutavelmente obrigatório, laços primordiais e restritivos. A variação na forma de solidariedade está intimamente ligada ao modo como é construída a diferença. Quanto mais civil a solidariedade, tanto mais provável que os sentimentos de conexão possam ser ampliados a ponto de incluir outros aparentemente diferentes. Quanto mais os laços de solidariedade de cada um são experimentados como primordiais, tanto menos provável que se faça uma conexão positiva com estranhos. A construção variegada da solidariedade é central para explicar a dinâmica da diferença nas sociedades contemporâneas. (grifos meus)

Programas como o P1MC e o PAD – como muitos outros implementados em áreas rurais do Nordeste – são informados por compromissos com solidariedades primordiais. Não cabe aqui analisar mais detalhadamente como essas solidariedades se tornaram dominantes, mas a ênfase sobre o poder dos vínculos locais ou do que Putnam (2000) chamou de ‘capital social na promoção do desenvolvimento’ certamente teve influência nesse processo. É necessário reconectar as demandas das populações rurais num projeto civil para todos os grupos marginalizados da região.

Na problemática do acesso a água, é preciso demandar do Estado que institua um padrão homogêneo de cidadania no Semiárido nordestino, que perceba as alternativas da cisterna e dos sistemas de dessalinização como emergenciais e não como a solução dos conflitos distributivos relativos à água. Uma perspectiva mais comprometida com os instrumentos da solidariedade civil deverá reforçar conexões entre as demandas dos diversos grupos sociais marginalizados em suas lutas cotidianas por água de qualidade em quantidade socialmente aceitável, tendo como horizonte a denúncia das formas consolidadas de gestão da desigualdade do acesso à água e a construção de um padrão único de cidadania, o qual evite a produção de formas de acesso a água exclusivas para populações das comunidades rurais difusas do Semiárido, que são também as mais pobres.

6. Considerações Finais

A análise do P1MC e do PAD revela os desafios de enquadramento institucional das comunidades rurais no Brasil, e em particular no Semiárido. Para serem beneficiárias de políticas públicas, mesmo aquelas consideradas inovadoras, estas comunidades têm sido instadas a passarem por um processo de modernização institucional e de racionalização de suas práticas cotidianas. Estas políticas estão inseridas num quadro de disputas simbólicas por legitimação, e são confrontadas com alternativas que mesmo persistentemente combatidas, não foram completamente erradicadas, como é prova o projeto de transposição de bacias em curso no Nordeste. Refletem, ainda, certamente projetos de transformação social diferenciados, mas que podem ser lidos num quadro comum de modernização.

Parece-me necessário refletir de modo mais aprofundado sobre a opção de uma modernização institucional para os pobres. E sobre os desdobramentos dessa opção. Chamo a atenção, principalmente, para o fato de que a nova onda institucional compartilha com a via econômica de modernização alguns pontos em comum, objetos da crítica sociológica no passado. Em primeiro lugar, a atualização de um indisfarçado dualismo entre tradicional e moderno – que define como

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mundos sociais distintos aspectos contraditórios de uma mesma figuração, com a diferença de que o tradicional é muitas vezes valorizado discursivamente para ser combatido institucionalmente. Em segundo lugar, a utilização da ciência e da técnica como meios de legitimação de formas específicas de dominação, com a diferença de que a ciência (principalmente a Biologia, a Ecologia e as próprias Ciências Sociais) agora fundamenta a promulgação de vasto corpo de instrumentos legais e não projetos econômicos. E, finalmente, a incapacidade de instituir formas completamente modernas, dado que não conseguem combater as tendências inerciais expressas pelo patrimonialismo, clientelismo e ineficiência dos órgãos estatais no país.

É inegável que o P1MC e o PAD têm dado inestimável contribuição ao pagamento da dívida hídrica com as populações rurais histórica e socialmente marginalizadas das áreas rurais do Semiárido brasileiro. Mas os limites desses programas precisam ser também discutidos, de modo a que se possa avançar em direção a um paradigma de ação do poder público e da sociedade civil que seja efetivamente alternativo ao enquadramento da escassez de água como “qualidade” mais definidora do Semiárido.

É fundamental tratar da gestão dos conflitos e dos mecanismos distributivos “normais”, cotidianos, que produzem e atualizam marginalizações hídricas. E, assim, fundamentar um movimento social de democratização do acesso à água no Semiárido brasileiro, rural e urbano, o qual garanta os direitos fundamentais de acesso à água de qualidade para todos.

75 Renomeado em 2016 para o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário. 76 O mesmo poderíamos dizer das políticas de desenvolvimento territorial e das políticas ambientais, entre outras (CUNHA et al., 2009). 77Os trechos entre aspas bem como as informações sobre o P1MC foram retirados do site da ASA Brasil (www.asabrasil.org.br).

Notas

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POLÍTICAS HÍDRICAS DIVERGENTES NO SEMIÁRIDO PARAIBANO - ENSAIO PARA UMA CONVERGÊNCIA

Francisco Vilar de Araújo Segundo NetoPedro Costa Guedes Vianna

1. Introdução

Atualmente, dois “sistemas” ou “filosofias orientadoras” da política hídrica convivem no Semiárido do Nordeste brasileiro. De um lado, está em execução uma série de grandes obras de infraestruturas hídricas, representadas pela construção de grandes reservatórios, adutoras, túneis e canais abertos, que nos últimos tempos se configuram como obras de transposição de águas entre bacias. Esta opção busca mudar a face do interior nordestino pelo acúmulo interno e pelo aporte externo de recursos hídricos. Em outra direção, bastante diferente, está a tentativa de convivência com a semiaridez, baseada em uma grande quantidade de pequenas intervenções hídricas, voltadas principalmente para o meio rural, que buscam, através da capilaridade de seu alcance, uma presença acentuada no espaço rural do semiárido nordestino. Como obra emblemática da primeira política, aparece o Programa de Integração do São Francisco (PISF) e, como maiores exemplos da segunda opção, o Programa de um Milhão de Cisternas (P1MC), além do Programa Uma Terra duas Águas (P1+2). Este texto se propõe a analisar, sobretudo do ponto de vista da análise espacial, ambas as políticas e suas configurações e impactos no território do Semiárido nordestino, assim como iniciar uma discussão sobre a possibilidade de complementação entre essas duas escolhas, aparentemente inconciliáveis.

Esta abordagem, aqui proposta, se justifica em função de que ambas buscam “em tese” os mesmos objetivos: em primeiro lugar, minimizar os efeitos da seca periódica; em segundo, fornecer segurança hídrica aos habitantes da região e, por fim, incrementar o desenvolvimento regional. Deve-se ainda atentar para que ambas as escolhas são financiadas com dinheiro púbico. Assim, abordaremos essas políticas, do ponto de vista espacial, e sua inserção no território da bacia do rio Paraíba, em seu alto e médio curso, ou seja, na sua porção semiárida. Os autores acreditam que a região de estudo é representativa de todos os processos envolvidos na temática aqui proposta, por ser contemplada pelo Eixo Leste do PISF e por ser o berço das Tecnologias Sociais Hídricas (TSH) e da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA-Brasil), em que a dimensão das TSH tem mais tempo de implantação e possue grande alcance social. Este texto aborda essas questões à luz da análise real da atual situação do abastecimento público das cidades incluídas na área de estudo. A escolha da perspectiva visa enquadrar a análise das propostas aqui tidas como divergentes diante da verdadeira situação hídrica local, o que, a nosso ver, ancora as propostas analisadas na efetiva situação de disponibilidade hídrica que, afinal, é a meta comum das duas propostas.

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2. Breve caracterização da área de estudo

Este trabalho está baseado em um recorte espacial que abrange a porção semiárida da bacia hidrográfica do rio Paraíba, no estado da Paraíba. Com uma área de aproximadamente 20.069 km², abrangendo cerca de 35% do território paraibano, a bacia do rio Paraíba possui 86 municípios com parte ou todo território inseridos em sua região, sendo a segunda maior do estado, atrás apenas da bacia do rio Piranhas.

Em sua área, habita uma população superior a 1,5 milhão de pessoas, se configurando como a bacia hidrográfica mais populosa, bem como a mais industrializada do estado da Paraíba.

O rio Paraíba, principal curso d’água da bacia, e seus afluentes são de grande importância para o estado, principalmente para as mesorregiões da Borborema, Agreste e Mata Paraibana, abrangendo importantes cidades como Monteiro, Queimadas, Sapé, Santa Rita, Campina Grande, segundo maior centro urbano do estado, e João Pessoa a capital da Paraíba. As características fisiográficas da bacia, tais como relevo e drenagem, estão apresentadas na Figura 1.

Perfazendo uma extensão total de 300 km, o rio Paraíba nasce na Serra do Jabitacá, município de Monteiro, com o nome de rio do Espinho, sendo sua mais alta vertente originária do Pico da Bolandeira a uma altitude de 1.079 metros, localizada no Planalto da Borborema (MENINO; CAVALCANTI, 2013).

O rio Paraíba desemboca no Oceano Atlântico, na divisa dos municípios de Cabedelo, Santa Rita e Lucena. É no curso do rio Paraíba que se encontram importantes reservatórios do estado, tais como o Poções, Camalaú, Epitácio Pessoa (Boqueirão) e o Acauã, apresentados na Figura 2. Ainda na área de abrangência da bacia, localizam-se outros importantes reservatórios, tais como Sumé, Cordeiro, Campos, Taperoá, Soledade, Santo Antônio, Paçatuba, Lagoa do Meio, Olivedos, São Salvador e Marés.

Figura 1 - Aspectos fisiográficos (relevo e drenagem) da bacia do rio Paraíba.

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A área da bacia possui uma diversidade de características físicas, além de uma grande extensão geográfica, sendo dividida em quatro sub-regiões: Alto Curso, Médio Curso e Baixo Curso do rio Paraíba e a Sub-bacia do rio Taperoá. Este estudo abrange apenas os municípios do Semiárido brasileiro, segundo a delimitação oficial do Ministério da Integração, o que contempla totalmente as Sub-bacias do Alto, Médio, Taperoá, e a parte superior do Baixo Curso. Sua delimitação está marcada em vermelho na Figura 2.

Figura 2 - Localização da área de estudo na bacia do Paraíba.

O uso do solo na bacia do rio Paraíba é caracterizado pela prática da agricultura e da pecuária, contudo, há também uma grande porção ocupada por vegetação remanescente de caatinga (MARCUZZO et al. 2012), como também de importantes cidades do estado, tais como Campina Grande e Monteiro.

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2.1 Região da Sub-bacia do Taperoá

A Sub-bacia do rio Taperoá localiza-se na parte central do estado da Paraíba, com uma área total de 5.666 km². O clima da Sub-bacia do rio Taperoá é do tipo semiárido quente ou BSh, segundo Köppen, com temperaturas que variam de 18°C a 22°C nos meses de julho e agosto, e as máximas entre 28°C a 31°C, nos meses de novembro e dezembro (DANTAS NETO et al. 2009). A pluviosidade na Sub-bacia varia entre 200 e 800 mm/ano, com chuvas de verão e outono. A vegetação predominante na Sub-bacia do rio Taperoá é do tipo Caatinga Arbustiva Arbórea aberta e fechada com áreas de Caatinga do tipo Arbórea Fechada (LACERDA et al. 2007) e as altitudes variam entre 400 e 1.000 metros. O rio Taperoá é o principal curso d’água da Sub-bacia, nascendo na Serra do Teixeira, entre os municípios de Desterro e Livramento, e desembocando junto ao açude Epitácio Pessoa, conhecido como Boqueirão.

2.2 Região do Alto Curso do rio Paraíba

A região do Alto Curso do rio Paraíba localiza-se na parte sudoeste do planalto da Borborema, fazendo fronteira ao norte com a bacia do Taperoá, ao sul e a oeste com o estado de Pernambuco e a leste com a Região do Médio Curso do rio Paraíba. A área de drenagem do Alto Curso é de aproximadamente 6.717 km². A região do Alto Curso do rio Paraíba se estende desde a região que compreende suas nascentes, até o açude de Boqueirão.

O clima da região é do tipo semiárido quente, com pluviosidade média variando entre 200 e 1.000 mm/ano, com chuvas mal distribuídas entre o verão e o outono. Tal região abrange as microrregiões dos Cariris Ocidental e Oriental, com municípios situados na região de menor índice pluviométrico do país. A vegetação predominante é do tipo Caatinga com as mesmas características da vegetação da região da Sub-bacia do Taperoá, porém, com altitudes variando entre 350 e 1.150 metros.

2.3 Região do Médio Curso do rio Paraíba

A região do Médio Curso do rio Paraíba compreende uma área total de 3.760 km², se estendendo desde o açude Boqueirão até o açude Acauã, fazendo fronteira ao norte com a bacia do rio Curimataú, ao sul com o estado de Pernambuco, ao leste com a região do Alto Curso do rio Paraíba e a Sub-bacia do rio Taperoá, e ao oeste com a região do Baixo Curso do rio Paraíba.

O clima característico do Médio Curso é o semiárido quente, com chuvas de verão, porém com uma porção da faixa leste, com clima do tipo quente e úmido com chuvas de outono e inverno. A pluviosidade média varia entre 400 e 1.200 mm/ano, sendo os maiores índices registrados na faixa leste da região. A temperatura média mínima varia de 18°C a 22°C, ocorrendo nas porções mais altas da Borborema e as temperaturas máximas variando entre 28°C e 31°C (RUFINO et al. 2008).

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A vegetação predominante é a Caatinga, porém, apresenta na porção leste uma faixa de transição entre o Semiárido e a Zona da Mata, de espécies com características semelhantes de Cerrado. O relevo da região do Médio curso do rio Paraíba apresenta cotas que variam de 100 metros, na região da depressão sublitorânea, a 750 metros de altitude, na Serra da Borborema, especificamente na região de Campina Grande.

Na sequência, abordaremos as duas formas de políticas hídricas praticadas atualmente na região, que apresentam duas vertentes bastante divergentes. A primeira a ser apresentada é a das Grandes Intervenções Hídricas em escala regional e que atualmente se caracterizam pelas obras de transposições de águas entre bacias exemplificadas pelo Programa de Integração do Rio São Francisco com as bacias do nordeste setentrional, no caso, o seu Eixo Leste e pelo Canal das Vertentes Litorâneas. Este é um projeto do Governo Federal e está sendo executado por grandes empreiteiras. O outro caso é o da política de “Convivência com o semiárido”, proposta e executada por centenas de ONG’s ligadas a Movimentos Sociais, que se caracterizam por uma grande quantidade de ações pontuais de construção de pequenas reservas hídricas na forma de Tecnologias Socais Hídricas (TSH). Estas ações são, em sua maioria, financiadas pelo Governo Federal. A que se notar que enquanto as grandes obras hídricas aqui estudadas objetivam prioritariamente o abastecimento do meio urbano com implicações na vida das populações urbanas, no meio industrial e nos serviços, as TSH’s têm como meta abastecer o meio rural, suas populações e a agricultura de subsistência.

3. As grandes intervenções hídricas e os sistemas de abastecimento urbano na região semiárida da bacia do Paraíba

A sustentabilidade e a segurança hídrica são condicionantes para o desenvolvimento econômico e social de um país. Entretanto, enfrentar os sérios problemas de acesso à água, que atingem mais severamente as populações dos pequenos municípios e das periferias dos grandes centros, é fundamental para o avanço e crescimento de uma região (BRASIL, 2010).

De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos (SNIRH), os sistemas de abastecimento urbano podem ser isolados, quando abastecem apenas áreas urbanas de um único município, ou integrados, quando abastecem mais de um município. Tais sistemas integrados são implantados, especialmente para atender a demanda das regiões metropolitanas, bem como de regiões com baixa disponibilidade hídrica, como é o caso do Semiárido (SNIRH, 2015). O transporte de água, sobretudo nos sistemas integrados, se dá por meio de adutoras, que transportam água entre os diversos municípios da região semiárida paraibana. Mello (2015) define as adutoras como sendo canalizações de sistemas de abastecimento que se destinam a conduzir água desde unidades de captação de água bruta (açudes, rios e etc.) até as redes de distribuição, passando pelas estações elevatórias, pelas Estações de Tratamento de Água (ETA) e pelos reservatórios e as caixas d’água (Figura 3). Os sistemas adutores são canalizações de importância vital para o abastecimento de cidades ou

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Figura 3 - Representação de um sistema convencional de abastecimento urbano.

Fonte: MEDEIROS FILHO (2009).

No estado da Paraíba, a Agência Executiva das Águas do Estado da Paraíba (AESA) é o órgão responsável pelos projetos de obras de infraestrutura hídrica e a Companhia de Águas e Esgotos da Paraíba (CAGEPA) é o órgão responsável pelo abastecimento de água na maioria dos municípios em seus serviços de captação, adução, tratamento, distribuição das águas.

4. As grandes redes hídricas artificiais da região Semiárida da bacia do rio Paraíba e as transposições de água

De acordo com as informações da AESA, na região semiárida da bacia do rio Paraíba existem, ao todo, dez sistemas integrados de adutoras em operação e em construção, conforme a Figura 4. Com a conclusão das adutoras em construção, somadas as que já existem e estão operando, o sistema integrado de adutoras na região Semiárida da bacia do rio Paraíba terá um total de 815 km de extensão e atenderá uma população estimada em aproximadamente 556.000 habitantes que residem nas sedes dos municípios.

áreas urbanizadas. Para Medeiros Filho (2009), um sistema convencional de abastecimento urbano de água compreende as etapas de Captação, Adução, Tratamento, Reservação e Distribuição.

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Figura 4 - Distribuição dos sistemas adutores na região semiárida da bacia do rio Paraíba.

No entanto, as populações desses municípios, tanto na zona urbana quanto na zona rural, chegam a cerca de 775.400 habitantes. Nessa perspectiva, uma população em torno de 218.500 habitantes, que vive em regiões dispersas das zonas rurais destes municípios, ficará de fora dessa rede integrada de abastecimento hídrico. Desta forma, se estima o montante das populações que serão e também das que não serão atendidas pelo sistema integrado de adutoras na região semiárida da bacia do rio Paraíba.

Além disso, é fato que muitos sistemas de adutoras funcionam em condições precárias, devido a uma péssima ou ausente gestão dos órgãos responsáveis, tanto no que diz respeito ao suprimento de água em quantidade, bem como na sua qualidade, tratamento, reserva e distribuição de água tratada. Ao todo, populações de 42 cidades e 7 distritos serão atendidas pelos sistemas de adutoras na região semiárida da bacia do rio Paraíba, dos quais, em 28 cidades e um distrito, o sistema já está em operação. Outro ponto importante a ser analisado é a situação atual dos principais açudes que abastecem os sistemas integrados: quatro dos mais importantes destes mananciais tem sua situação exposta no Quadro 1. É relevante observar que em abril de 2016 com apenas 10,2% de sua capacidade de armazenamento, a crise dos sistemas integrados estava evidente.

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1 - Situação em abril de 2016 dos açudes dos sistemas integrados.

Em contrapartida, atualmente, vinte e três municípios da região são atendidos por meio dos sistemas isolados de abastecimento. Segundo dados do Atlas de Abastecimento Urbano de Água da Agência Nacional de Águas (ANA), nesta região treze cidades têm suas fontes de captação a partir de açudes, dois por barragens de nível, três por poços, um por riacho e três não têm dados referentes ao abastecimento (vide Quadro 2).

2 - Lista dos municípios atendidos por sistemas isolados de abastecimento.

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Em síntese, os sistemas isolados e integrados de adutoras são os únicos meios de abastecimento para as populações das zonas urbanas dessas cidades, por parte do Governo do Estado, através da CAGEPA e de algumas prefeituras. O Quadro 3 mostra a situação dos principais reservatórios no primeiro semestre de 2016. Situação em abril de 2016 dos açudes fornecedores aos sistemas isolados.

Importante notar que nos sete sistemas isolados onde foi possível levantar dados, quatro deles estão em situação crítica, mas três deles estão em situação de armazenamento mais confortável. Os sistemas isolados tendem a depender de outras fontes como poços, por exemplo, e por terem a maioria dos açudes de menor porte, com as primeiras chuvas de uma estação chuvosa normal recuperam rapidamente um nível razoável de armazenamento.

Porém, tais sistemas também terão, como a única garantia de suprimento hídrico, o Programa da Integração do São Francisco (PISF), na região Semiárida da bacia, tendo em vista que a maior parte desses sistemas quando integrados terá como ponto de captação reservatórios localizados ao longo do curso do rio Paraíba ou na área que envolve sua bacia, que será “perenizado” com as águas transpostas do rio São Francisco. Entretanto, apesar de garantir água para grande parte da população, o PISF não dará segurança hídrica à totalidade das populações dessa região, que é considerada a mais seca do país.

5. Sistemas complementares projetados para o Eixo Leste PISF na bacia do rio Paraíba

A proposta apresentada pela AESA para o recebimento das águas do PISF em seu Eixo Leste envolve a distribuição das águas transpostas do rio São Francisco na porção leste da Paraíba, por meio de sistemas adutores que, em parte, já existem, e por outras que estão sendo projetadas. De acordo com o proposto, as águas transpostas chegarão ao rio Paraíba, em Monteiro e seguirão uma parte pelo leito do rio Paraíba e outra será “derivada” para o açude Público Federal de Sumé, de

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onde uma adutora se estenderá por 101 municípios do Agreste, Cariri e Brejo. Em fase de estudos, o projeto prevê a ampliação das adutoras por meio de ramais de Integração, chamados Eixos, a saber: Central, Serra do Teixeira, Brejo e Seridó (Figura 5).

Figura 5 - Mapa da Infraestrutura Hídrica Projetada para o PISF (EIXO LESTE) na região Semiárida da bacia do Paraíba.

De acordo com Oliveira, Curi e Santos (2013), o Eixo Central terá aproximadamente 200 km de extensão e iniciará na ETA, próximo ao açude Poções (porta de entrada das águas do PISF, no Eixo Leste), em Monteiro, seguindo até o município de Remígio, passando por Sumé, Serra Branca, São João do Cariri, Boa Vista e Puxinanã. Nesse Eixo, haverá uma derivação que transportará água do açude de Boqueirão até Campina Grande, complementando o sistema adutor para abastecimento humano e do parque industrial dessa cidade.

O Eixo Serra do Teixeira origina-se do Eixo Central, na altura de Sumé, e segue até a cidade de Imaculada, com uma extensão total de 86,2 km, passando pelas cidades de São José dos Cordeiros, Taperoá, e Desterro, que terá um ramal que interligará o sistema à cidade de Cacimbas, além de outras cidades que estão fora da região da bacia do Paraíba. Os Eixos Seridó e Brejo partirão da cidade de Remígio, e seguirão até as cidades de Picuí e Arara, que estão fora da área de estudo, perfazendo 86,2 km e 32 km, respectivamente (OLIVEIRA; CURI; SANTOS, 2013).

Materializado, esse projeto atenderá, com os sistemas de adutoras existentes, em construção e projetados, populações de 47 municípios e 7 distritos da região. Nas áreas urbanas destes municípios, avalia-se que a população a ser beneficiada por todo o sistema atinja 600.000 mil habitantes, sendo a população total desses municípios da ordem de 820.000 habitantes.

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Estes dados demonstram que, apesar dos esforços nos projetos elaborados pelos órgãos de gestão das águas do Estado da Paraíba, mais de 220.000 habitantes residentes no campo na região estão fora do benefício das águas transpostas pelo PISF. Quanto ao abastecimento das cidades e zonas urbanizadas, não existe um projeto que abarque a totalidade das cidades no semiárido da bacia do Paraíba. Desta forma, no momento em que as águas do Eixo Leste do PISF chegarem, uma parte da população urbana não poderá usufruir delas. No entanto, apesar dos problemas com o andamento e o cronograma das obras do Eixo Leste do PISF, existe a previsão oficial de que as águas cheguem à Paraíba no ano de 2017, sendo que esta é uma estimativa bastante questionada. Segundo Vianna et al. (2006) estudos feitos na Paraíba, demonstram que as transferências de águas entre bacias, sem gestão participativa e previsão de abastecimento para as populações lindeiras ao curso das águas transpostas causam conflitos. Segundo estes autores, este é o caso do Canal da Redenção, entre o reservatório de Coremas Mãe D’Água e as Várzeas de Sousa na depressão sertaneja paraibana. O mesmo quadro é evidenciado no Eixo Leste do PISF e em toda a extensão do Projeto de Transposição.

6. As propostas de convivência com a semiaridez e a implatação das tecnologias sociais hídricas como políticas públicas no campo

O Semiárido nordestino, historicamente, é marcado pelas contradições e injustiças sociais, caracterizadas pelas desigualdades sociais, que está na base das condições de miséria que fragilizam as famílias sertanejas e quando aliadas às estiagens prolongadas, levam essas populações a um verdadeiro estado de flagelo (SILVA, 2007). Ao longo dos últimos anos, foram construídas diversas obras em diferentes níveis e escalas, que objetivam a coexistência das populações rurais desta região com o quadro de semiaridez permanente e com as secas periódicas. Estas obras se iniciaram com os açudes, cacimbas e poços, entretanto, se fazia necessário obras e soluções que garantissem o abastecimento de água de forma pontual e que atingisse diretamente as moradas dispersas no meio rural do semiárido, o que fez surgir o recurso das Tecnologias Socais Hídricas.

Segundo Bernat, Courcier e Sabourin (1993) nos anos de 1960, um pedreiro conhecido como “Seu Nel”, da localidade de Simão Dias no estado de Sergipe, “inventou” a primeira cisterna de placas. Segundo estes autores, após anos em São Paulo, construindo piscinas, onde aprendeu a utilizar placas de cimento pré-moldado, “Seu Nel” quando do seu retorno ao Semiárido sergipano, adaptou esta técnica e criou uma cisterna de formato circular utilizando as estruturas curvas de placas pré-moldadas. Este foi o passo inicial que se consolidaria anos mais tarde no Programa Um Milhão de Cisternas, provocando uma verdadeira revolução no meio rural do semiárido nordestino, inclusive impactando na paisagem rural.

A difusão dessa tecnologia se deu, a princípio, no interior da Bahia, através de contatos de Seu Nel com outros pedreiros da região.

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A difusão do modelo foi realizada através dos contatos que ele teve com vários pedreiros da região no Sergipe e Nordeste da Bahia. Nel e seu irmão espalharam essa técnica na região de Paulo Afonso. Outro colega deles difundiu as cisternas de placas na região de Feira de Santana/BA, mais especificamente em Conceição do Coité, que se tornou um dos principais centros de divulgação desse modelo na Bahia (BERNAT; COURCIER; SABOURIN, 1993).

Por outro lado, em viagem ao norte da África, em países como a Tunísia ou Argélia, um dos autores deste texto, reconhece, nas formas de cisternas existentes no Magreb, obras que poderiam ser tomadas como percursoras das cisternas inventadas por “Seu Nel”. Estas estruturas para captação de águas de chuvas nas zonas áridas e mesmo desérticas do norte da África, apesar de terem diferenças com as cisternas construídas no semiárido nordestino, apresentam também muitas semelhanças. Assim, é também válido pensar que tenha havido alguma influência, ou que as cisternas existentes no Magreb, algumas com mais de mil anos, tenham inspirado ou mesmo servido de modelo para as que hoje existem no Nordeste brasileiro. Sabe-se que a pessoas ligadas à Igreja Católica foram as primeiras a apoiar firmemente as cisternas de placas como solução para as populações rurais e que estas pessoas circulam muito pelo mundo, além do que, muitas são comprometidas e preocupadas com as situações de miséria e escassez hídrica que afetam as populações pobres de regiões áridas e semiáridas de todo o planeta.

Posteriormente, após sobreviver com poucos recursos advindos de doações do exterior até 2002, uma mudança surgiu, quando em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva ocupa a Presidência da República e o Governo Federal passou a incentivar diversos órgãos governamentais a participarem do desenvolvimento da proposta de implantação de cisternas de placas no meio rural, por meio de projetos de convivência com a semiaridez, tais como o Projeto Nordeste e o Programa Água para Todos. Portanto, somente a partir do início do século XXI é que esse sistema de captação de água de chuva passa a ser difundido por todo o Nordeste, através do Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido, concretizados como P1MC, P1+2 e, recentemente, no Programa Cisterna nas Escolas.

6.1 Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido

De acordo com Santos (2010), com o advento das organizações não governamentais, a sociedade civil passa a representar um papel importante na execução de políticas sociais, e a partir daí, surge a Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA Brasil), que busca por em prática um novo conceito – o da Convivência com o Semiárido – que se contrapunha à concepção defasada de “enfrentamento” e “combate” à seca. Esse novo conceito pretende alavancar o desenvolvimento tão esperado do Semiárido, por meio de políticas públicas que buscam quebrar com a cultura do clientelismo político, muito forte na região.

A missão da ASA Brasil é: “fortalecer a sociedade civil na construção de processos participativos

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para o desenvolvimento sustentável e convivência com o Semiárido, referenciados em valores culturais e de justiça social” (ASA BRASIL, 2016 p. 3). Dessa forma, a ASA Brasil lança, em 2001, o Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido: Um Milhão de Cisternas Rurais, a qual propõe a implantação de tecnologias sociais simples e baratas, nesse caso, as cisternas de placas, com capacidade para 16.000 litros de água. Segundo a ASA Brasil, tal capacidade é suficiente para o abastecimento de uma família, composta por até cinco membros, para cozinhar e beber durante os oitos meses “normais” de escassez (maio a dezembro). Se estes dados podem ser considerados como aceitáveis para os ditos anos “normais”, por outro lado, eles indicam que em anos de seca ou de estiagem prolongada, ou mesmo de chuvas abaixo da média, as cisternas de placas de 16.000 litros, não são suficientes para o abastecimento doméstico, o que demanda ações complementares e emergenciais.

6.2 Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC)

O P1MC é composto por 58 organizações da sociedade civil, formada por paróquias, dioceses, Sindicatos de Trabalhadores Rurais, cooperativas, dentre outras, presentes em várias regiões de todos os estados abrangidos pelo Semiárido. Essas organizações funcionam como Unidades Gestoras Microrregionais (UGM’s) e são coordenados pela Associação do Programa Um Milhão de Cisternas (AP1MC), Unidade Gestora Central (UGC), sediado na cidade do Recife, capital do estado de Pernambuco (NEVES et al., 2010). Nessa articulação, ainda existem as Unidades Executoras Locais (UEL’s), que possuem um papel de suma importância nas dinâmicas do P1MC e nos processos de convivência com o semiárido, pois são responsáveis pelo envolvimento direto na realização das políticas públicas, bem como na gestão dos recursos para a capacitação e construção das cisternas.

Para que uma família seja selecionada e cadastrada no P1MC, a UGM articula uma Comissão Municipal, composta por organizações populares e comunitárias. Segundo Neves et al. (2010), são selecionadas as comunidades e famílias que se enquadram em alguns dos critérios, tais como renda per capta de até meio salário mínimo, famílias chefiadas por mulheres, famílias que possuam idosos, portadores de deficiência e crianças entre 0 e 6 anos, ou crianças e adolescentes regularmente matriculados em escolas.

Entretanto, de acordo com a ASA Brasil e FEBRABAN (2003), na escala local, as comunidades que atendem aos critérios de prioridade de atendimento do P1MC, apresentam dados censitários do IBGE, de IDH, Data SUS, abaixo da média local, além de crianças e adolescentes que se encontram em situação de risco, tais como mortalidade infantil e desnutrição. No âmbito familiar, as famílias beneficiadas pelo P1MC além de atenderem os requisitos anteriormente citados, devem estar inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadUnico). Segundo informações postadas no site da ASA Brasil, até o mês de maio de 2016, foram construídas 584.312 cisternas de placa pelo P1MC em todo Semiárido brasileiro.

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6.3 Programa uma Terra e duas Águas (P1+2)

Posterior ao P1MC, surgiu um novo Programa que veio no sentido de aumentar a garantia hídrica e solidificar as técnicas desenvolvidas pelas ONG’s e Movimentos Sociais ligados à ASA Brasil, dentro da filosofia de convivência sustentável com o semiárido. O Programa ‘Uma Terra e Duas Águas’ ou simplesmente P1+2 é um Programa de formação e mobilização que segue a mesma lógica do P1MC, e pretende garantir o acesso e o manejo sustentável da terra e da água (GNADLINGER; SILVA; BRITO, 2007).

Gnadlinger, Silva e Brito (2007) apontam que o P1+2 teve como referência o Programa 1-2-1, implantado na década de 1990 pelo governo chinês. “Por meio deste programa, o governo da China auxilia cada família para que tenha ‘uma área de terra, duas cisternas e uma área de captação de água de chuva” (GNADLINGER; SILVA; BRITO, 2007 p. 70). Tal proposta se deu pelo fato da região semiárida da China ter chuvas irregulares, altas taxas de evaporação, além de um subsolo contaminado, o que levou os chineses a desenvolverem experiências para captação e manejo de água das chuvas (GNADLINGER; SILVA; BRITO, 2007). Como no caso da semelhança com o norte da África, é possível perceber a necessidade de cooperação e troca de experiências entre regiões de mesmo quadro físico e de condições de desenvolvimento semelhante.

Criado em 2007, pela ASA Brasil, o P1+2 tem como objetivos “promover a segurança alimentar e nutricional das famílias agricultoras e fomentar a geração de emprego e renda para as mesmas”. De acordo com seus objetivos, o P1+2 baseia-se, segundo a ASA Brasil (2016), em princípios e estratégias metodológicas, a saber:

• Fortalecimento dos processos educativos, sociais e políticos locais, contribuindo para a autossuficiência dos agricultores e agricultoras e suas organizações na construção do desenvolvimento sustentável;

• Valorização dos agricultores e das agricultoras e de suas organizações como sendo inovadores técnicos e sociais, além de detentores de conhecimentos e experiências;

• Favorecimento de interações entre agricultores/as de comunidades, municípios, estados e regiões distintas dentro da região semiárida;

• Promoção de processos formativos baseados na Educação Popular, na qual os conhecimentos prático e teórico se retroalimentem;

• Adoção da Agroecologia como base técnica-metodológica e científica para a construção do novo modelo de desenvolvimento rural e do fortalecimento de ações de convivência com o semiárido.

Com a eficácia do P1MC, a preocupação da ASA Brasil ao iniciar o P1+2 está na difusão da segunda água “2” em toda a extensão semiárida do Nordeste. De acordo com Gnadlinger, Silva e

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Brito (2007), o desenvolvimento duradouro se dá quando a própria população se torna o principal “ator” no processo, ressaltando a concepção do P1+2 que é a formação e mobilização das famílias camponesas para a convivência com o Semiárido.

As Tecnologias Sociais Hídricas implantadas na zona rural da região semiárida brasileira, a partir do P1+2, são: cisterna calçadão; barragem subterrânea; poço cacimba; tanque de pedra; bomba d’água popular (BAP); barreiro trincheira; barraginha e cisterna enxurrada. De acordo com os dados que constam no site oficial da ASA Brasil, até o mês de fevereiro de 2016, foram construídas 87.046 tecnologias do tipo Cisterna Calçadão e de Enxurrada, no P1+2 para uso familiar e 1.316 destas tecnologias, de uso comunitário no Semiárido de todo o Nordeste brasileiro. Recentemente, observou-se a criação de mais uma vertente do programa de convivência com a semiaridez, adaptando-se as cisternas de 52.000 litros, a mesma do P1+2, no apoio ao sistema educacional público e no enfrentamento da evasão escolar em busca de melhoria do nível educacional e nutricional das crianças do Semiárido, aspecto que abordaremos no item a seguir.

6.4 Programa ‘Cisterna nas Escolas’

Dentre as ações da ASA Brasil, a mais inovadora e de fundamental importância para a população jovem do Semiárido é o Programa Cisternas nas Escolas. Lançado em 2009, a partir de um projeto piloto da ASA Bahia, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS), do Governo da Bahia e da Secretaria de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza (SEDES), o Programa Cisterna nas Escolas foi ampliado no ano de 2010 sob a coordenação da ASA Brasil, financiado pelo MDS e com apoio do Instituto Ambiental Brasil Sustentável (IABS) e da Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID).

Com o objetivo de levar água para as escolas do meio rural do Semiárido, através da construção de cisternas de 52 mil litros (Figura 6), como forma de manejo e armazenamento de água da chuva, o Programa Cisterna nas Escolas abrange escolas de todos os estados do Semiárido brasileiro (AL, BA, CE, PB, PE, PI, RN, SE, MA e MG) que não possuem acesso a água e que foram mapeadas pelo Governo Federal (ASA BRASIL, 2016).

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O Programa Cisternas nas Escolas surgiu a partir da necessidade de água de qualidade nas escolas, especialmente em períodos de seca, o que acabava provocando o fechamento de algumas escolas ou altos índices de evasão escolar. Como proposta do programa, a garantia do acesso à água é fundamental para melhorar os índices de desempenho escolar, sendo um dos elementos fundamentais para a melhoria da infraestrutura das escolas e uma contribuição para a solução dos problemas da educação na região Semiárida (ASA BRASIL, 2016). Nesse sentido, entre os anos de 2009 e 2011, foram construídas 875 cisternas escolares em 143 municípios. Até fevereiro de 2016 foram construídos, em todo semiárido brasileiro, segundo dados da ASA Brasil, 3.034 cisternas de 52 mil litros em escolas da zona rural. Das etapas que envolvem o programa, destacam-se a seleção e cadastramento das escolas, as capacitações e os encontros.

7. Políticas de convivência com as secas na região Semiárida da Bacia do rio Paraíba

Para atingir os níveis atuais de grande expansão observáveis no espaço geográfico de todo o semiárido nordestino, é preciso lembrar que em parceria com entidades ligadas a ASA Brasil, a ANA lançou, no ano de 2001, o Programa Um Milhão de Cisternas Transição (P1MCT), considerado um

Figura 6 - Cisterna de 52 mil litros do Programa Cisterna nas Escolas de Teixeira-PB.

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projeto demonstrativo para garantir a segurança alimentar das famílias do semiárido através da implantação de cisternas de placa. Tal projeto viabilizou a construção de aproximadamente 13.000 cisternas em todo Semiárido brasileiro, sendo concluído no ano de 2003 (TCHÊ QUÍMICA, 2004). Na região Semiárida da bacia do rio Paraíba, o P1MCT da ANA financiou a implantação de apenas 7 cisternas de placa, porém nos últimos 12 anos, os programas cresceram e evoluíram na região semiárida da bacia do rio Paraíba, conforme mostra figura 7. As ONG’s atuam nos municípios da região semiárida da bacia do rio Paraíba desde o início do ano de 2002, implantando a primeira cisterna de placa no sítio Livramento, no município de Soledade.

Essa dinâmica na distribuição das Tecnologias Sociais Hídricas (TSH) na região semiárida da bacia do rio Paraíba, desde 2002 até o ano de 2013, compreende a atuação de uma série de ONG’s no âmbito regional, espalhadas por todos os municípios.

Como se pode constatar, o desenvolvimento das TSH ao longo da última década e meia, se configura como um processo longo e complexo, realizado por uma intrincada rede de Associações, Sindicatos, Organizações religiosas e demais entidades do Movimento Social, muitas vezes com forte participação do Governo Federal, Estadual e Municipal, sendo que o primeiro certamente teve um papel preponderante. Porém não resta dúvida de que ao analisarmos o quadro atual, sua distribuição e a forma como os Programas se desenvolveram, é visível que o protagonismo do processo sempre esteve com as comunidades organizadas em nível local que, pouco a pouco, foram conquistando um espaço na sociedade até o ponto em que suas obras hídricas, notadamente as cisternas de placas, passaram a integrar a paisagem rural no Semiárido nordestino, de uma forma marcante.

8. Análise espacial das políticas hídricas, ensaio para a convergência

Apesar de grandes intervenções feitas na área de estudo, seja no âmbito das grandes obras hídricas ou no campo das Tecnologias Sociais Hídricas (TSH) (Figura 7), uma crise de abastecimento de água se instalou no Semiárido da bacia de rio Paraíba, como de resto em todo o Semiárido nordestino, desde 2012, porém sem alcançar os níveis de calamidade pública que aconteceram em situações emergenciais anteriores, como nas secas de 1790, 1877, 1980 e 1998, em que era habitual o número de mortes alcançar milhares de pessoas, além de ser comum os saques a feiras e armazéns. Certamente, os programas socais do Governo Federal tiveram um papel importante no quadro atual, mas é certo também que as infraestruturas hídricas, sejam as provenientes das grandes intervenções, ou das pequenas obras hídricas, também contribuíram para que a situação não chegasse ao quadro de haver saques, como aconteceram recentemente, em 1980 e 1998.

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Figura 7 - Evolução das TSH entre 2002 e 2013 no semiárido da bacia do Paraíba.

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Outro fator que certamente deve ser considerado é a Operação Carro Pipa, que não é contemplada diretamente neste texto, instituída em 1999, como um programa emergencial e que está em funcionamento contínuo desde esta data, variando em intensidade e em abrangência espacial.

Durante a “seca” de 2012 a 2015, quase todos os sistemas de abastecimento entraram em colapso, tanto os grandes sistemas integrados, quanto as próprias TSH. Nesse período, ficou evidente a desarticulação entre as grandes intervenções hídricas (PISF, sistemas adutores e demais formas de transposição entre reservatórios de médio e grande porte, implementados pelas ações estatais) com o sistema capilar de soluções pontuais com água de chuva proposto e executado pelas ONG’s. Observou-se, em viagens de campo realizadas ao longo do ano de 2016, que foram exatamente os carros pipas, que executaram, de forma precária inicialmente e de forma regular no decorrer da crise, a integração entre as obras (açudes e cisternas) desses dois sistemas.

Portanto, a realidade da seca, a necessidade de abastecimento e a existência das cisternas, fizeram com que se improvisasse uma articulação, onde os caminhões pipa foram os vetores entre os reservatórios grandes e médios, que não entraram em colapso, e as cisternas. Observamos que a Operação Carro Pipa, na grande maioria dos casos, passou a “eleger” cisternas de placas individuais como cisternas coletivas. Ao abastecê-las com fonte de água para uma coletividade de famílias próximas, barateou e potencializou as ações emergenciais, dando a elas uma eficiência e uma abrangência maior, o que certamente reduziu o impacto da seca.

Ao identificarmos os carros pipas com “rodo-vetores” hídricos, mesmo em caráter emergencial, é possível constatar que os próximos passos a serem dados na política hídrica no Semiárido nordestino seja, não só a convivência com a semiaridez, mas também a integração e a convivência entre as políticas públicas. A integração desejada e necessária não deve contemplar apenas soluções emergenciais, como a Operação Carro Pipa, mas um sistema que articule as soluções de escalas distintas, tanto para o meio rural como para o meio urbano. A análise espacial demonstra que as transferências de águas e as adutoras estão voltadas para o abastecimento de núcleos urbanos. Poderão, depois de garantida o abastecimento das cidades, abastecerem perímetros irrigados, mas sempre em situação secundária e em tempos pré-programados, quando a oferta hídrica for suficiente. Já as TSH, pela sua capilaridade, abrangência, custo reduzido e capacidade de armazenar água em locais remotos do meio rural, são as melhores opções para a população do campo. Mas será preciso repensar sua dimensão, para que ela resista a secas mais longas, e não apenas aos períodos de estiagem normal de 8 a 9 meses, como é sua previsão atual com seus 16.000 litros.

Assim, está claro, na análise dos dados aqui apresentados, que as propostas são passíveis de serem tomadas como complementares, apesar do discurso antagônico de seus principais atores. De um lado, os técnicos do Governo e das grandes empresas defendem as soluções das grandes obras hídricas de estocagem ou de transferências de grandes volumes. Já do ponto de vista dos técnicos e responsáveis pela direção das ONGs e do Movimento Social organizado, com suas propostas de convivência com a semiaridez, defendem soluções pontuais e individuais de grande alcance espacial.

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Integrar estas políticas é o desafio atual e a análise espacial das ações e obras implementadas por ambos os “projetos” demonstra que é possível, partirmos da constatação de que as grandes obras têm uma vocação para os espaços urbanos e as TSH tem aptidão para as populações rurais. Se a Operação Carro Pipa, em muitas situações, ainda que de forma improvisada e precária, pode operar um “canal” ou “rodo-duto” entre estas obras e ações, o caminho está aberto, basta uma compreensão flexível e uma aproximação entre seus principais atores políticos e, consequentemente, entre suas políticas e os sistemas deles consequentes.

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OS POVOS INDÍGENAS NO “SERTÃO VERDE”: MOBILIZAÇÕES, CONFLITOSE AFIRMAÇÕES IDENTITÁRIAS NO SEMIÁRIDO PERNAMBUCANO

Edson Silva Edivania Granja da Silva Oliveira

Carlos Fernando dos Santos Júnior

1. Os povos indígenas e a colonização no Sertão de Pernambuco: a construção histórica de uma paisagem

Povos indígenas chamados de Caetés e Tupinambás foram identificados no século XVI na foz do Rio São Francisco, além de “Tapuias de diferentes castas” rio acima, como registrado no Tratado descritivo do Brasil (SOUSA, 2000). As informações publicadas remontam a 1587, quando Gabriel Soares de Sousa organizou uma expedição com objetivo de mapear o território da Colônia na busca de jazidas de ouro ou prata. O explorador português subiu o São Francisco, descobrindo trechos navegáveis, observando as suas cachoeiras, chegando até as suas ilhas numa distância de 80 ou 90 léguas e descreveu as características geográficas, ecológicas e as populações nativas encontradas nesses lugares.

No final do século XVI, a produção açucareira no litoral do Nordeste gerou lucros significativos e era fator de atração populacional. Mas, o Estado português objetivava conhecer e explorar economicamente o interior do atual Nordeste. Nesse mesmo século, a Coroa Portuguesa incentivou expedições para o reconhecimento de caminhos de penetração pelo interior da região e a descoberta de recursos minerais (metais preciosos) e naturais geradores de lucro. Essa parte do atual Semiárido foi o espaço alcançado por essa política de ocupação em destaque na Bacia do Submédio Rio São Francisco que, por sua potencialidade hídrica, possibilitou a fixação lusa naquela região. Na expansão colonial do chamado Sertão, a pecuária foi a atividade predominante e no decorrer dos anos, vários processos contribuíram na construção de uma imagem e história para o Sertão nordestino.

Os rios Capibaribe e Ipojuca eram utilizados, em 1738, como rotas do Litoral para o Sertão. O “Caminho do Capibaribe”, partindo do Recife, passava pelas povoações que margeavam esse rio, atravessando o território paraibano, alcançando a ribeira do Pajéu, percorrendo entre São José do Egito até Cabrobó. O “Caminho do Ipojuca” acompanhava o vale deste rio, indo pelo Sertão do Moxotó até o Rio São Francisco, na altura de Santa Maria da Boa Vista. Um terceiro caminho de 1802, também citado por Capistrano de Abreu (ABREU, 1998, p. 39), partia de Olinda e aproveitava o “Caminho do Ipojuca” passando pelo Sertão do Moxotó e chegando ao São Francisco (MELLO, 2004, p. 89).

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Por esses caminhos, muitos indígenas em seus territórios ou aldeados, colonos, escravizados africanos, missionários e o gado ocuparam os espaços nas regiões do chamado Agreste e Sertão, entre fazendas, povoados e aldeamentos que serviram de pontos de apoio para futuras migrações do litoral para o interior. Nesse processo de expansão, ocorreu a incorporação do interior das chamadas Capitanias do Norte do Brasil ao mundo colonial, transformando espaços supostamente “vazios” do ponto de vista colonizador, em lugares habitados por súditos da Coroa Portuguesa.

A palavra “Sertão” foi formulada nesse contexto, para identificar os “espaços vazios” de súditos da Coroa Portuguesa. No desenrolar da colonização, este vocábulo foi ressignificado, adquirindo o sentido de interior, ou seja, o “Sertão” passou a significar o espaço longe da costa (SILVA, 2003). Com a colonização, o Sertão, enquanto espaço físico, foi incorporado ao mundo colonial, deixando de ser um espaço “vazio”. No entanto, uma leitura de documentos dos séculos XVIII e XIX sugere que o termo “Sertão” (ou os “sertões”), significava a fronteira entre o mundo criado pela colonização e os espaços ainda não “civilizados”, povoados por grupos indígenas “hostis”. E na medida em que a colonização avançava, essa fronteira era deslocada para áreas ainda não exploradas.

No século XVIII, a região do Submédio do Rio São Francisco era o “sertão” a ser inserido ao mundo colonial, mas não era o único. Existiam outros “sertões” inexplorados, a exemplo dos sertões de Jacobinas (BA), Açu (RN), Cariris Velhos (PB), Cariris Novos (CE) e Piauí, os quais só foram conhecidos a partir da exploração e colonização do Sertão do São Francisco. Inserir estes “sertões” significava duas situações: ocupar os territórios com o gado e controlar as populações nativas. Foi naquele século que ocorreram os conflitos com os indígenas nessas regiões.

A resistência indígena ao processo de colonização no Sertão foi chamada pela historiografia de “Guerra dos Bárbaros” (PUNTONI, 2002). Tal guerra foi caracterizada por uma série de conflitos entre as populações indígenas nativas na região, denominadas genericamente de “Tapuias”, e os criadores que ampliavam as suas propriedades (fazendas, currais e gados) pelos espaços sertanejos. Iniciada na segunda metade do século XVII, no Sertão do Recôncavo Baiano, nas margens do Riacho da Jacobina, nos rios das Contas, Vaza Barris, Orobó, Jacuípe e Salitre, áreas com o gado, durando até 1720 com a “pacificação” dos indígenas rebelados e os demais povos nativos na região. Nesse período, a resistência nativa alcançou até os Cariris.

Soldados, homens livres pobres, criadores dos sertões, sesmeiros (como Pereira Garcia D’Ávila), Paulistas, “Índios Tapuias” aliados dos portugueses e os índios “Caboclos da Língua Geral” foram arregimentados para combater os rebelados. Inicialmente, esses índios tinham sido aldeados no litoral e transferidos para o Sertão por padres missionários, com a missão de catequizar os índios na região (SILVA, 2003; PUNTONI, 2002).

Esse contingente se tornaria, posteriormente, criadores, sesmeiros, foreiros, trabalhadores (vaqueiros e artesãos) pobres e índios moradores nas missões em ilhas do São Francisco, que promoveriam a ocupação e a exploração econômica do solo com a pecuária e agricultura, favorecendo, assim, o surgimento e crescimento dos núcleos urbanos e habitacionais (vilas, povoados, fazendas

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e aldeamentos). Também foram os responsáveis por abrir os caminhos e ensinar os “roteiros” de ocupação no interior do Brasil.

A partir do século XVIII, o Nordeste vivenciou o processo histórico de marginalização enquanto zona econômica periférica e complementar da atividade mineradora e responsável pela definição dos seus contornos regionais atuais. Durante esse processo, a identificação da população indígena foi generalizada e bipolarizada entre os “Tupi” (Litoral) e os “Tapuia” (Sertão), com isso negando a grande diversidade étnica dos povos habitantes em biomas específicos no Litoral, Agreste, Sertão e Brejos de Altitudes (DANTAS; SAMPAIO; CARVALHO, 1992, p. 431- 432). Tal heterogeneidade étnica e sociocultural implicava que cada grupo indígena respondeu de maneira específica as relações como os colonizadores.

Com o estabelecimento das vilas, dos povoados e das fazendas no interior do Nordeste ocorreu a usurpação dos territórios tradicionalmente ocupados por diferentes povos indígenas na região. Essas populações expropriadas de suas terras foram aquelas que formaram a sociedade sertaneja no século XVIII. Segundo a política de colonização da Coroa Portuguesa, os índios aldeados serviriam como mão de obra e a força de defesa necessária contra índios “hostis” não aldeados (MEDEIROS, 2014).

Na perspectiva do Estado, o índio tinha o papel de povoador (POMPA, 2003), isso explica a necessidade de catequizar os índios da região para aproveitá-los o máximo possível. Dessa forma, não houve o extermínio generalizado das populações nativas no Sertão como advogaram muitos pesquisadores, mas antes a reorganização espacial, sociopolítica e demográfica indígena em meio ao projeto colonizador.

Os conflitos contra os nativos, justificados como um projeto civilizatório do Estado português, favoreceram um aproveitamento econômico das terras e recursos naturais no Sertão e a submissão das populações autóctones ao sistema colonial por meio do trabalho, catequese e escravidão. O conceito “Sertão” passou a ser empregado no plural para designar espaços heterogêneos, cujo sistema de colonização regular era ausente. Contudo, à medida que este sistema se instalava, a palavra modificava-se, vindo a nomear uma parte do território marcado pela pecuária, pelo clima do atual Semiárido e pela seca. Contemporaneamente, o “Sertão” foi transformado em “sinônimo de Nordeste” (MAUPEOU, 2008, p. 30).

O Sertão também é um espaço construído pelo imaginário, na qual memórias e história foram fundidas. Cronistas como Ulysses Lins de Albuquerque78, que cotejou relatos de familiares e pessoas conhecidas com a História documentada sobre o Sertão de Pernambuco, reunidos nos livros: Um sertanejo e o Sertão, publicado em 1957 e em Moxotó Bravo, em 1960 e Três Ribeiras, em 1971. O autor procurou apresentar uma descrição minuciosa das origens da sociedade sertaneja pernambucana, fundindo suas memórias com a documentação histórica sobre a região, pois nasceu no atual município de Sertânia, localizado no Sertão de Pernambuco.

Nas citadas obras, o autor descreveu as origens dos municípios sertanejos, a exemplo de

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Tacaratú, Floresta, Flores, Buíque, Pesqueira, dentre outros. E quando se referiu ao processo de ocupação das ribeiras do Pajéu e Moxotó, identificou as fazendas instaladas na região, biografando os seus respectivos proprietários, que também foram os fundadores das primeiras vilas no Sertão. No conjunto da sua obra, Ulysses Lins apontou que a sociedade sertaneja e os núcleos urbanos no interior de Pernambuco surgiram da ocupação/apropriação dos territórios indígenas no decorrer do período colonial e adentrando o Século XIX.

O cronista evidenciou a importância das aldeias indígenas para o florescimento das vilas e municípios sertanejos. Assim, as populações indígenas e os territórios que ocupavam foram essenciais para o crescimento dos centros urbanos e a instalação das fazendas na região. Muitos dos nomes das localidades citadas nas suas obras fazem menção à presença de grupos nativos, a exemplos as denominações dadas aos rios Pajeú, Moxotó e as fazendas próximas a esses rios. Em seus escritos, na medida em que o memorialista descrevia o povoamento e o crescimento econômico da região, gradativamente a participação dos índios diminuía. Em uma perspectiva que cristalizou a ideia sobre a “contribuição” dos índios na História do Sertão restrita ao período de expansão colonial.

Porém, novas abordagens vêm desconstruindo tal visão e apresentando uma nova interpretação, na qual as populações indígenas permaneceram atuantes na sociedade sertaneja. Uma atuação duradoura, para além da resistência armada, que não se encerrou com fim das “guerras de conquistas”, mas somaram-se as estratégias de sobrevivência e negociações elaboradas pelos indígenas nos anos posteriores até atualidade.

Analisando a documentação da administração colonial sobre a colonização do Sertão, percebe-se a justaposição de territórios distintos, o autóctone e o colonial. Com a implantação do sistema colonial naquela região, ocorreu a sobreposição das fazendas e povoados sobre os territórios habitados pelas populações indígenas. Havia uma relação de poder entre esses espaços que era permeada por confrontos. Tal relação era ainda influenciada pelos eventos históricos ocorridos no Brasil e as mudanças econômicas experimentadas na região do Rio São Francisco. Essas duas influências – de natureza política e econômica – modificaram as relações dos seres humanos com o ambiente, transformando a convivência entre índios e não índios e os sentimentos dos indígenas sobre seus territórios.

Se o território resulta da ação conduzida por um ator sintagmático (aquele que realiza um programa), o qual se apropria de um espaço, seja real ou representado, torna-se um espaço produzido por um ator ou por vários atores que interagem, e cada um deles busca projetar sua imagem de território como forma de exercer o poder sobre determinado lugar. No final, a representação real do território é o resultado do jogo de força entre os múltiplos atores que buscam impor suas projeções de território. A produção do território advém de um “sistema territorial” composto por “tessituras, nós e redes”. Uma “tessitura” que “exprime a área de exercício dos ou área de capacidade dos poderes” (RAFFESTIN, 1993, p. 154); poderes esses que se superpõem, interferindo ou não em outros poderes, dependendo de seu alcance de ação. Poderes como os econômicos, políticos,

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sociais e culturais cujas fronteiras estão em mudanças, de forma lenta ou acelerada, de acordo com o contexto sócio-histórico vivenciado.

A territorialidade foi definida como “a maneira pela qual as sociedades se satisfazem, num determinado momento, para um local, uma carga demográfica e um conjunto de instrumentos também determinados, suas necessidades de energia e em informação” (RAFFESTIN, 1993, p. 160). A territorialidade era marcada por relações simétricas ou dessimétricas, “caracterizadas por ganhos e custos equivalentes ou não”. Em síntese, a territorialidade pensada enquanto as relações dos humanos com o território considerado seu. Em outros termos, o sentimento de pertencimento a um determinado lugar, cuja identidade individual ou coletiva está relacionada ao espaço. O sentimento de territorialidade, se assim pode ser chamado, manifestando-se “em todas as escalas espaciais e sociais” (RAFFESTIN, 1993, p. 160).

O Sertão pernambucano, mais especificamente a região do Submédio São Francisco, foi um território produzido pela colonização, no entanto, a sua “matéria-prima” foram os territórios dos povos indígenas. Na “construção” do Sertão enquanto território, os índios, os colonos, os missionários, o Estado disputavam, desigualmente, as suas projeções naquele espaço, no qual cada um defendeu ou estabeleceu a sua territorialidade, com ganhos e perdas. Essa territorialidade foi expressa nos momentos de crise – de ordem econômica, sociopolítica ou de escassez de recursos naturais – ou com as transformações, quando mudanças socioeconômicas, políticas e históricas modificaram o sistema territorial e implicaram em mudanças nas interações entre os sujeitos daquela sociedade.

Os documentos históricos citam povos indígenas não aldeados e aqueles nos aldeamentos (missionários), localizados nas serras, nas margens dos rios e em ilhas no Rio São Francisco. Populações concentradas nas ribeiras dos rios Moxotó e Pajeú, nos Cariris Velhos, nos Cariris Novos e na Chapada do Araripe. Eram espaços territorializados por vários povos indígenas, não eram apenas ambientes de potencial ecológico, mas as suas formas de viver e de existir, os seus modos de vida. Para os colonizadores, esses lugares transformaram-se nos limites/extensões mensuráveis das sesmarias, das fazendas, povoados, roçados e criatórios do gado, convertidos futuramente em patrimônios familiares defendidos a ferro e fogo. Os nativos da região e os colonizadores construíram relações tensas, conflituosas com ganhos e perdas, mas cada um defendendo os seus territórios.

No Sertão de Pernambuco, em que ocorrem secas duradoras ou estiagens prolongadas, existe um “sertão verde” nas serras Negra, do Arapuá e Umã e os Brejos dos Padres e do Gama. Também nas ilhas do São Francisco, nas ribeiras dos rios Pajeú e Moxotó e os riachos da Brígida e Terra Nova. Nas Serras dos Cariris Velhos e Novos (Paraíba e Ceará, respectivamente) e a Chapada do Araripe (entre Pernambuco e Ceará), espaços de abrigo para os diferentes grupos nativos, pois era nesses locais onde existiam a água, a comida (caça e mel) e um “porto seguro” contra os ataques dos criadores de gado, mesmo depois do início da colonização portuguesa naquelas regiões.

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2. Os povos indígenas e os conflitos pelo controle das fontes de água no Sertão pernambucano no século XIX

Na região do Sertão do São Francisco, o bioma predominante é a Caatinga com uma vegetação baixa, arbustiva, espinhosa e resistente, adaptada a longos períodos de estiagem. Existindo também os brejos, os rios e as serras, os “oásis” no Sertão; porém, nos primeiros tempos da colonização, para acessá-los, foi necessário abrir caminhos pela Caatinga, que devido às suas características, tornava esse trabalho difícil. Quando o gado era solto próximo a esses locais, instauravam-se os conflitos com os moradores. Na perspectiva dos moradores, tais espaços serviam de “esconderijos” para os índios “errantes”, “bravos” e “criminosos” que atacavam os povoados e as fazendas. Os colonizadores portugueses não compreendiam esses espaços como ambientes de uma tradição migratória própria dos índios.

No século XIX, índios e criadores de gado intensificaram os embates nas disputas pelo uso e o controle dos recursos naturais nas serras, brejos e ribeiras, locais com água para saciar a sede humana e dos animais. Esses conflitos expressaram as diferenças nas compreensões sobre a noção de território. Para os colonizadores, o território significava o espaço ocupado por homens capazes de desenvolvê-lo, legitimado pelo Estado por meio das leis e das instituições jurídico-administrativas impostas pelo sistema colonial. Para os índios no Sertão, as noções de território e de fronteiras eram fluídas em razão de suas mobilidades espaciais (SALDANHA, 2002).

No século XVIII, no Sertão da Capitania de Pernambuco, nas regiões do Rio São Francisco e da Ribeira do Rio Moxotó, habitavam os Bancararu, Tuxá, Rodela, Tamaqueu, Oê (Hoê Hoê), Chocó, Carnijó (Carijó), Carapotó, Pipipã e Umã (MEDEIROS, 2000, p. 117). No século XIX, os Brancararu, os Tuxá e os Rodela79 foram aldeados nas vilas de índios no São Francisco, sedentarizados e reunidos com os moradores brancos vizinhos. Por isso, os índios dessas vilas foram chamados de “mansos” e inseridos na sociedade sertaneja na condição de mão de obra.

Todavia, no mesmo período existiam grupos não aldeados que resistiram a sedentarização, não se sujeitavam às ordens das autoridades locais e viviam em situações de conflitos permanentes com os criadores de gado. Foram chamados pelas autoridades e moradores brancos de índios “brabos”, “bárbaros” ou “errantes”. Alguns deles vivenciaram a experiência do aldeamento, o que não os impediu de continuarem a utilizar os seus espaços tradicionais de ocupação.

Essa situação era explicada pela desorganização dos trabalhos missionários, promovida pelo Diretório Pombalino80 e pela exploração da mão de obra indígena das vilas, pelos diretores leigos, com a fuga dos índios das vilas fundadas segundo a determinação do Diretório (LOPES, 2011). E com a expansão da pecuária nas ribeiras do Moxotó e Pajeú, as fazendas se aproximaram dos espaços ocupados pelos índios, resultando em ataques aos gados, quando em sua maioria, os índios foram responsabilizados e também ocorreram ações violentas por parte dos moradores contra os nativos.

Além disso, entre 1802 a 1834, o Sertão enfrentou períodos de seca, forçando os criadores a

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deslocar seus animais para as proximidades das serras em busca de pastos e água para atenuar os efeitos negativos da estiagem, no entanto, esses espaços estavam ocupados por diferentes populações indígenas. Sendo assim, o deslocamento do gado para as serras iniciou um novo ciclo de contatos e conflitos violentos entre índios e criadores, pois ambos competiam pela utilização da água. Quando não era o gado a subir as serras, eram os índios que desciam para as ribeiras na busca de água e caça, mas se depararam com as boiadas e as fazendas (SANTOS JR, 2010, p. 85)

Os conflitos intensificaram-se. Recorreu-se ao Comandante da Serra do Arapuá, Cipriano Gomes de Sá, desde 1788 atuava afugentando e prendendo os índios dispersos nos Sertões do Distrito de Tacaratú. No ano de 1802, Cipriano Gomes e seu irmão, o Comandante de Tacaratú, José Gomes de Sá combatiam os “gentios” no Pajéu e no Moxotó. Os mencionados oficiais possuíam fazendas na Ribeira do São Francisco cujos poderes políticos e de influência se projetavam no São Francisco, no Riacho dos Mandantes, Fazenda Grande (atual município de Floresta), Tacaratú e em todo o Sertão (BURLAMAQUI, 2012).

Na ribeira do Rio Moxotó, os chamados índios “bárbaros” eram os grupos Pipipã e Umã, que se refugiavam na Serra Negra e eram acusados pelos ataques às fazendas nas freguesias de Tacaratu, Cabrobó e a Fazenda Grande (Floresta). No Vale do Rio Pajéu, os Umã, os Oê (também chamados de Gueguê) e os Chocó foram acusados de atacarem a Vila de Flores.

Na documentação disponível no Arquivo Público Estadual de Pernambuco (APEJE), encontram-se registros sobre os supostos ataques realizados por esses grupos, nas ribeiras do Moxotó, Pajeú e nos riachos do Navio, da Terra Nova e da Brígida (ou “Brizídia”, como aparece nos documentos) entre os anos de 1801 a 1833. Nesses registros, observamos duas formas distintas de tratamentos para os índios classificados como “bárbaros”, que apesar de contraditórias à primeira vista, coexistiram e representavam interesses dos moradores, autoridades locais e do Governo de Pernambuco, em pôr fim as “hostilidades” dos índios e subjugá-los à obediência das leis.

O primeiro tratamento era o uso da força contra os índios acusados da prática de roubo, furtos e mortes. Os criadores de gado e as autoridades locais solicitavam, do governo de Pernambuco, a autorização para a formação de bandeiras e o auxílio material (dinheiro e munições) a fim de perseguir os índios que atacavam as fazendas na Ribeira do Pajeú e Riacho do Navio, provocando a fuga dos moradores e o abandono dos locais.

Em 1814 o Capitão Mor Joaquim Nunes de Magalhães e Francisco Barbosa Nogueira solicitaram a abertura de três estradas em direção aos Cariris Novos (Ceará) para extinguir os índios dos povos Umã, Oê e Chocó. Estas estradas serviriam para “destruírem-se os ditos esconderijos com três estradas”, uma localizada na Serra do Umã e as outras duas para os Cariris Novos (Ceará), acabando com os “insultos” praticados contra os fazendeiros, além de abrir o comércio entre a Comarca do Sertão com a Comarca do Ceará (SANTOS JR., 2015, p, 102-103).

Os Umã, os Pipipã, os Chocó e os Oê foram citados como os índios “brabos” responsáveis pelos ataques, roubos e mortes, apesar de muitos deles serem índios aldeados e batizados. Junto ao

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adjetivo de “bárbaros”, esses índios também eram chamados de “rebeldes”, pois não se sujeitavam as autoridades e eram acusados de promover a “desordem” pública com os ataques às fazendas. Entretanto, esses mesmos registros apontaram outra informação muito importante: a disputa pelo acesso aos locais onde existia água potável. Em 1817, o Ouvidor da Comarca do Sertão, José da Cruz, solicitava ao Governo de Pernambuco munição para expulsar os Chocó e os Pipipã do Pajeú e Moxotó, para aos moradores instalarem fazendas, pois era “a terra donde os Bárbaros habitam, por terem muitas águas e serem terras hábeis para criação de Gados Vacuns e Cavallar”81.

Outra maneira de afugentar os índios era por meio da abertura de estradas, que também tinham a função de facilitar a comunicação e comércio entre vilas e povoados distantes. Porém, não se deve perder de vista a principal causa dos conflitos: a água. Porque a seca que afligia o Sertão forçavam os seres humanos e os animais a buscarem fontes de água fresca. Tal necessidade foi a responsável pela intensificação dos conflitos entre índios e moradores. Na figura 2, estão identificadas as principais áreas de conflitos entre os anos de 1801 a 1833. Essas áreas localizavam-se nas ribeiras e nas serras, fontes intermitentes de água doce. Na figura 1, observamos que os aldeamentos e as missões foram instalados nas proximidades dessas áreas, onde a água e as terras eram os motivos das disputas.

Fonte: SANTOS JR (2015, p.117).

Figura 1 - Missões e aldeamentos no Sertão de Pernambuco no século XIX.

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A Aldeia do Olho d’Água da Gameleira estava localizada na Bacia do Rio Pajeú, este rio corre em direção ao Sul, desaguando no Riacho do Navio, no município de Floresta. A Aldeia do Jacaré localizava-se na Bacia do Rio Moxotó. Ambos os rios, Pajeú e Moxotó, deságuam no Rio São Francisco.

As áreas assinaladas na figura apontam que a atividade criatória necessitava do acesso fácil à água. Assim, as fazendas e currais deveriam ficar o mais próximo possível dessas fontes. Em 1801, as fazendas se localizavam nas proximidades dos rios Moxotó e Pajeú, e do Riacho do Navio. Nesse ano, registraram-se os ataques dos índios “brabos” às propriedades instaladas nesses lugares. Na política de pacificação, procurou-se transferir os nativos “pacificados” para a Aldeia do Olho d’Água da Gameleira (1801), nas adjacências da Serra Umã e para a Aldeia do Jacaré (1802) na Serra Negra. E também para a Serra do Arapuá (1802), a fim de apaziguar os conflitos.

Estes sítios estavam próximos às bacias hidrográficas na região, como também eram locais que possuíam olhos d’água, vegetação e caça. No entanto, nesses assentamentos, o assédio dos moradores continuou, em razão das disputas pelas terras desses lugares, devido às suas potencialidades ecológicas e econômicas. Esse assédio produziu uma insegurança, marcada por violências contra os indígenas, com a intenção de expulsá-los. Conforme indicados nos anos de 1801 e 1806, ocorreram ataques dos moradores de Flores e fazendas próximas à Aldeia do Olho d’Água da Gameleira. Em 1802, também ocorreram ataques aos índios na Serra do Arapuá. E no ano seguinte, os moradores de Tacaratu atacaram a Aldeia do Jacaré com a abertura de uma estrada para facilitar esta ação.

Fonte: SANTOS JR (2015, p.105).

Figura 2 - Áreas de conflitos no século XIX.

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Na documentação pesquisada, foram encontrados registros de que, em 1814, os moradores da Ribeira do Pajeú organizaram bandeiras para expulsar os Umã, os Oê e os Chocó na divisa entre Pernambuco e os Cariris Novos, a fim de salvaguardar as fazendas instaladas naquela região e promover o comércio entre as comarcas do Sertão (PE) e do Crato (CE). As vilas de Flores e Cabrobó foram atacadas por indígenas em 1817. No ano de 1833, índios atacaram as fazendas no Riacho Terra Nova. O acesso à água era a razão dos conflitos, pois índios e moradores recorreram à violência para garantir o controle sobre as fontes de água e usufruto das terras adjacentes.

A Serra Negra foi uma área constantemente citada na documentação do início do século XIX, como um local que servia de “esconderijo” para os Umã e os Pipipã depois de ataques as fazendas no Moxotó e a Freguesia de Tacaratu. Para aldear esses índios, a Junta de Governo da Capitania ordenou, em 1803, ao Comandante Cipriano Gomes de Sá, abrir uma estrada de Tacaratu para Serra Negra e outras mais se fossem necessárias. Mas, em 1824 essa Serra foi disputada entre dois moradores por causa da descoberta de dois olhos d’água.

O Capitão das Ordenanças da Vila de Flores, Joaquim Nunes de Magalhães, enviou uma carta ao Governo da Província de Pernambuco sobre a descoberta de dois olhos d’água na Serra Negra pelo criador de gado, José Francisco da Silva. Este criador estava cultivando e criando gado naquela Serra, onde abriu tanques, fez currais e construiu uma casa para morar. Porém, outro criador de gado chamado João Rodrigues de Moraes, interessado em se apossar da descoberta, tentou três vezes matar José Francisco. Como não conseguiu, João Rodrigues destruiu todas as benfeitorias na Serra Negra, além de expulsar o gado do local e entupir a “aguada”, um tipo de reservatório de água.

Foi relatado ainda que João Rodrigues contou com a ajuda dos índios Pipipã habitantes da Serra Negra. De acordo com Joaquim Nunes, o criador João Rodrigues era um homem de “má conduta”, “sem religião”, agia por interesses próprios e há anos “seduzia” aqueles índios. E somente Rodrigues poderia ter gado nesse local, “ dando a conhecer aos mesmos índios o ferro e os signaes de seus gados”. Tal informação indicava a existência de alianças entre índios e determinados moradores contra outros criadores de gado, nas disputas pelo controle sobre os recursos naturais na Serra Negra. Obviamente que esse tipo de aliança entre os índios “brabos” e um homem de considerada “má reputação”, aos olhos do governo, era vista como um conluio entre “criminosos” que perturbavam o sossego e a ordem pública.

A Junta de Governo da Capitania de Pernambuco, em novembro de 1801, autorizara aldear os índios dispersos e os catequizados pelo Ouvidor da Comarca e por Frei Vital de Frescarollo, no Olho d’Água da Gameleira. O local fora escolhido pelos próprios índios, pois era necessário que os indígenas concordassem com essa escolha, evitando desentendimentos e furtos nas fazendas de gado. O Olho d’Água da Gameleira foi o local preferido pelos índios, pois se tratava de um terreno que possuía matas virgens, “sem cultura a tantos centos annos” e sem dono legítimo.

Nos sertões do Pajeú e Moxotó foi vivenciada uma seca que aumentou a procura e o controle das fontes de água. A seca pressionou os índios a se aproximarem das fazendas, na busca de alimentos

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na forma de caça (no caso, a carne bovina). A seca também pressionou os criadores a instalarem os seus currais, onde havia água, ou seja, ocupando as ribeiras dos rios ou as serras, na busca das fontes permanentes de água. Então, as margens dos rios Pajéu e Moxotó, os riachos do Navio, da Brígida e Terra Nova e as serras (Serra Negra, Serra do Umã e Serra do Arapuá) eram disputadas tanto pelos índios “brabos” como pelos criadores/moradores. A documentação consultada apontou que os moradores foram os responsáveis pelo início dos conflitos contra os índios no Sertão. Os moradores solicitavam munição e a autorização para a realização das bandeiras, para a perseguição aos índios Pipipã, Umã, Oê e Chocó que atacavam provocando mortes e destruição nas fazendas.

Mesmo diante das condenações aos indígenas, existiram vozes dissonantes. O morador Joaquim Inácio de Siqueira e o Ouvidor Francisco Barbosa Nogueira apresentaram ao Governo da Província de Pernambuco os seus pontos de vista sobre os conflitos, acusando alguns moradores como os responsáveis tanto pelos ataques as fazendas quanto pelos ataques contra os índios. Seguiam as orientações do poder administrativo no tratamento brando, a fim de reunir os indígenas nos aldeamentos. Por sua vez, o Governo de Pernambuco seguia o determinado pelo Diretório dos Índios, para a pacificação e civilização do “Gentio brabo”.

Em seus relatos Joaquim Inácio e Francisco Barbosa, consideravam os índios “brabos” como vítimas, pois os moradores eram os culpados pelas mortes e conflitos. E assim desconstruíram as imagens recorrentes e elaboradas pela maioria dos criadores, sobre os índios “bárbaros” como numerosos, incapazes de se civilizarem e violentos. E com seus relatos contribuíram para a percepção de que os ataques dos índios significavam respostas contra as violências dos moradores e a fome provocada pela seca.

Nesses relatos, os índios das “nações” Pipipã e os Chocó foram citados vivendo em pequenos grupos “dispersos nos matos”, impedindo a sua conversão e civilização. Os índios temiam e desconfiavam dos brancos, mas à medida que essa confiança fosse conquistada, se mostravam amáveis e manifestavam o desejo pelo batismo e solicitavam um lugar para aldeia. Tal confiança era conquistada a muito custo, entretanto, estava sob as ameaças constantes dos moradores defensores da política de guerra contra os indígenas.

A aliança entre os índios “brabos” e os moradores beneficiava a ambos. Para os moradores, essa aliança representava a defesa de territórios de seus interesses contra outros moradores e indígenas. Como no caso de João Rodrigues, que se aliou com os Pipipã para atacar José Francisco da Silva, por causa da descoberta de dois olhos d´água na Serra Negra. E também a aliança entre Alexandre Gomes de Sá e os índios Umã, que juntos tentaram expulsar os Pipipã e os Chocó da Aldeia do Olho d’Água da Gameleira.

Para os índios, as alianças significavam a proteção contra ataques de moradores, auxílio nas disputas com outras populações nativas, o acesso à terra ou a permanência ao menos em parte de seus territórios. Os índios aliaram-se tanto com moradores de considerada “má reputação” como João Rodrigues quanto com aqueles com reputação respeitável e de atitude branda, como nos casos

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de Joaquim Inácio de Siqueira e Francisco Barbosa Nogueira. Assim como aconteceu com os índios no Litoral, os indígenas nas serras e ribeiras do Sertão pernambucano se envolveram nas disputas por territórios que habitavam desde tempos imemoriais.

Entende-se que nessas alianças, formaram-se relações clientelísticas entre proprietários e “índios bravos”. Todavia, em troca da “obediência, trabalho e lealdade”, os indígenas impuseram aos invasores da posse das terras das aldeias, o exercício de práticas socioculturais e o respeito aos direitos adquiridos com suas mobilizações (CARVALHO, 2002, p. 81). O que possibilitou a afirmação étnica dos atuais povos indígenas no Sertão nordestino e as reivindicações dos seus territórios.

A região denominada Sertão pernambucano faz parte das Caatingas semiáridas nordestinas, local de habitação da maioria dos povos indígenas no Nordeste. Dos atuais conhecidos 13 povos indígenas em Pernambuco, somente os Fulni-ô, os Xukuru do Ororubá e os Xukuru de Cimbres habitam o Agreste. No Sertão, estão os Atikum, Kambiwá, Kapinawá, Pipipã, Truká, Tuxá, Pankararu, Pankararu Entre Serras, Pankawiká, os Pankará na Serra do Arapuá e em Itacuruba. Esses povos indígenas habitam áreas de serras ou de influências serranas, como é o caso dos Atikum, em que a maior parte do seu território está localizado na Serra Umã; os Kambiwá e Pipipã habitam a região da Serra Negra e a Serra do Periquito. E ainda parte do território Kapinawá, localizado no interior da área de influência do Parque Nacional da Serra do Catimbau. Os Pankararu possuem parte de seu território em vales entre serras; e os Pankará, sobre os quais trataremos em seguida, habitam na Serra do Arapuá.

3. Os Pankará na Serra do Arapuá: “casca do mesmo pau” do “tronco velho” e as “pontas de ramas”

O povo indígena Pankará habita a Serra do Arapuá, um Brejo de Altitude, no município de Carnaubeira da Penha, no Sertão pernambucano, dentro do Bioma Caatinga, na Bacia do São Francisco. Este povo vem se mobilizando pelo direito à terra e por assistência governamental há mais 50 anos, todavia, somente em 2003 se autodenominou como um dos “Povos resistentes”, reafirmando as mobilizações pela terra e a garantia de direitos social, como Saúde e Educação diferenciadas (SILVA, 2004). Atualmente, o Território Pankará encontra-se em fase de finalização da demarcação de suas terras. Os Pankará afirmam também sua identidade através da ritualística do Toré82 com elementos da Natureza.

Após meados do século XIX, com a criação da Lei de Terras em 1850, era inaugurado o processo de regularização de áreas rurais, definindo em propriedades particulares e em áreas de terras consideradas devolutas, pertencentes ao governo. Assim, uma nova configuração foi estabelecida por meio da incorporação de áreas de antigos aldeamentos, considerados extintos, pelas câmaras municipais, por fazendeiros e agricultores não indígenas, que estabeleceram o controle das terras. Em fins do século XIX, os povos indígenas no Nordeste “desapareceram” enquanto coletividades com as invasões dos territórios onde habitavam e passaram a ser chamados de forma individualizada

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como “remanescentes”, “descendentes” e ainda como “caboclos”83 (OLIVEIRA, 2004).O processo de afirmação da identidade étnica dos indígenas no Nordeste foi instituído pelos

indígenas a partir de duas categorias: “os tronco-velhos”, representados pelos antepassados e “as pontas de ramas” pelos novos grupos indígenas do Nordeste, assim, “quando as cadeias genealógicas foram perdidas na memória e não há mais vínculos palpáveis com os antigos aldeamentos, as novas aldeias têm de apelar aos ‘encantados’ para afastar-se da condição de ‘mistura’ em que foram colocados” (OLIVEIRA, 2004, p. 29). Dessa forma, a memória é componente fundante da “busca de direitos dos grupos remanescentes emergentes [...]. A memória como fulcro da identidade”, o Toré é a síntese da memória étnica (ARRUTI, 2004, p. 278-279). Os Pankará designam as relações ancestrais e parentais utilizando as expressões “casca do mesmo pau”, “tronco velho” e “pontas de ramas”.

Os brejos de altitudes no Semiárido do Nordeste são espaços de habitação de grupos humanos há centenas de anos, como na Serra do Arapuá que em seus pontos mais altos, apresentam altitudes acima de 900 metros. Segundo o Pajé Pankará Pedro Limeira, a origem da Serra do Arapuá “foi quando derribou uma Braúna, João do Arapuá, surgiu a Serra do Arapuá, que é abelha”. Desde o início da colonização portuguesa na região, foi registrada a ocupação dessa área por indígenas e negros africanos escravizados, um espaço servindo como refúgio e moradia desses grupos (SILVA, 1999). O lugar vem sendo habitado pelos Pankará, por agricultores de pequeno porte e alguns fazendeiros de médio porte.

O Território Pankará, enquanto um brejo de altitude, possui grande biodiversidade e é considerado um oásis no meio do Sertão circundante (BULCÃO, 2010). Nessa mesma perspectiva, o antropólogo norte-americano William Hohenthal84, quando em 1952 visitou a Serra Cacaria/Serra do Arapuá (atual Território Indígena Pankará), descrevendo-a como locais favoráveis, com disponibilidade de recursos hídricos mesmo na estação seca, com evidências abundantes da presença permanente de indígenas, devido à quantidade de cacos e de outros artefatos arqueológicos existentes naquele local (MENDONÇA, 2003, p. 84).

A presença indígena na Serra do Arapuá vem sendo reafirmada pelos indígenas, como relatou o Pajé João Miguel: “Nasci no torrão da Serra, na Aldeia Lagoa. Nasci dentro da Aldeia. A mãe que me pegou, a parteira era índia, tinha muita experiência na reza, oração e tenho orgulho de ser Índio Pankará”. A partir dessa afirmação, percebemos as intrínsecas relações com o Ambiente, com o território e a sua noção de pertencimento por meio da expressão “Nasci no torrão da Serra”. O “torrão”, como também por ter nascido pelas mãos de uma parteira, “mãe e índia”, dotada de conhecimentos religiosos, são evidências da união entre o ambiente físico e simbólico, na composição de sua identidade étnica diferenciada, quando expressa: “tenho orgulho de ser Índio Pankará” (OLIVEIRA, 2004).

Os Pankará usam diversos recursos naturais para sua sobrevivência, como o Catolé, uma planta que não perde as folhas no período da estação seca. Trata-se de uma palmácea típica de regiões de encostas e de áreas drenadas da floresta semidecídua, mas também bem adaptável em outras áreas,

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como na Caatinga e no Cerrado brasileiro. Essa planta é encontrada em diversas áreas na Serra do Arapuá e utilizada pelos Pankará para produção de artesanato, fabricação de diversos utensílios e para o consumo dos seus frutos (BULCÃO, 2010).

Professoras Pankará enfatizaram o uso do Caroá, uma planta nativa, encontrada em meio à Caatinga, muito resistente às secas. Seu uso para artesanato é mais intenso no verão, época em que as pessoas não trabalham em plantio de roça, mas sim com a produção de artesanatos para sua sobrevivência. A esse respeito, também a índia, Eunice Santos, destacou que nasceu e viveu mais de 20 anos no “pé da Serra” (Sertão Pankará), área que possui abundância da planta Caroá. Após o casamento passou a morar na Aldeia Boqueirão (Agreste Pankará), e porque próximo a sua residência há muitas plantas Catolé, deixou de fazer corda de Caroá para fabricar vassoura de palhas de Catolé. Descreveu ainda o processo de confecção artesanal da corda de Caroá.

O uso dos recursos naturais na Serra do Arapuá no passado foi lembrado pelo Pajé Manoelzinho Caxeado, quando relatou sobre a sua avó contando que “no tempo ruim”, faziam muitas comidas de plantas da Serra, como as farinhas de bró de catolezeiro e a manoê, feita de uma raminha de flor rosa, da macambira, do xiquexique, o pão de massa de mucunã. E ainda tinha o feijão de monlogô, conhecido como “andu” e as mandiocas de seca, chamadas dormença, manipeba, mairta e bornuncia. O Pajé também salientou que muitas dessas plantas, atualmente, quase não existem na Serra.

Em relação ao Ambiente Pankará, a Serra do Arapuá é o “espaço físico e simbólico de ocupação tradicional e de representação identitária do grupo” (MENDONÇA, 2012, p. 19). Portanto, essa Serra compõe o espaço histórico e socioambiental para esses indígenas, pois suas atividades agrícolas de subsistência envolvem também práticas de sociabilidades e temporalidade por meio de um calendário próprio. Demarcando o tempo de preparo da terra, plantio, colheita, data de festejos religiosos e de “retomadas” - conflitos vivenciados pelos Pankará com a sociedade envolvente. As relações com o Ambiente foram ainda afirmadas pelas professoras Pankará: “É dessa forma que nos organizamos, sempre respeitando as leis da Natureza” (PEREIRA, 2012, p. 8).

Os relatos do índio João Manoel de Sá (conhecido por João Paulo), contribuíram para compreensão do contexto socioambiental vivenciado pelo povo Pankará, por meio dos seus saberes e fazeres e o acesso e a utilização dos recursos naturais do Ambiente onde habitam. Morador na Aldeia Brejinho, área geográfica “Sertão Pankará”, João Paulo denunciou alterações ocorridas no Ambiente com as construções de barragens e o desmatamento. Evidenciando o avanço de roçados e a diminuição de plantas nativas. Indígenas habitantes no “Agreste e Chapada”, diferentes regiões geográficas na área Pankará, também salientaram as degradações ambientais, como a falta de cuidado com as áreas envoltas das fontes de água, o desmatamento e a extinção da fauna e flora.

Um pesquisador observou que a área composta pela morfologia da Serra possui três ecossistemas distintos: “o Sertão, na base da serra, o Agreste nas encostas e as Chapadas de altitude nos topos de morros” (BULCÃO 2010, p. 13). Da mesma forma, a índia Luciete Pankará evidenciou que os Pankará

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possuem uma classificação própria do ambiente natural onde vivem, sendo a Serra do Arapuá pensada a partir de três áreas geográficas: o “Sertão” – pés de Serra; o Agreste – subida da Serra; e a Chapada, topo da Serra.

As práticas agrícolas indígenas nessas regiões também são diferenciadas: no chamado “Sertão” predomina o plantio de milho, feijão de corda, batata doce, jerimum e abóbora; enquanto que no Agreste e Chapada plantam feijão “fogo na serra”, feijão vermelho, fava, andu e mandioca, com a prevalência de diversas fruteiras. E “no passado o povo também plantava arroz vermelho, cana-de-açúcar e principalmente algodão e fumo”, como afirmou a índia Maria Luciete. As práticas agrícolas na Serra do Arapuá são consideradas como atividades “tradicionais”, pois a maioria dos indígenas não utiliza agrotóxicos e praticamente não faz uso de mecanização agrícola. Plantam de forma consorciada, como por exemplo, associando feijão, milho e andu (leguminosas), como informaram o Pajé João Miguel e a liderança “Neném Pankará”.

As práticas de consórcios agrícolas ocorrem em praticamente todas as aldeias, com predomínio da mandioca plantada com feijão e milho ou somente com andu. Utilizam também a técnica de consórcio no cultivo de pomares, denominado sistema de produção agroflorestal: “Uma concepção de cultivo indígena que está sendo ressignificado e amplamente difundida entre pesquisadores e agricultores” (BULCÃO, 2010, p. 26). O plantio consorciado oferece vantagens em relação ao plantio de uma única espécie, como opções de produção, melhoria de utilização da terra, o melhor aproveitamento no uso da água e de nutrientes. E ainda o uso racional de força de trabalho, a eficácia no controle de ervas daninhas e proteção do solo de erosão (SOUZA, 2003). A utilização de diferentes cultivos consorciados favorece “a conservação da estrutura básica da paisagem da Caatinga” (PÁDUA, 2009, p. 140). Portanto, uma prática benéfica para a conservação e a sustentabilidade do Bioma Caatinga.

Os impactos em relação aos fatores ecológicos e a destruição da agricultura tradicional, causados pelo advento do processo de produção capitalista, a partir do século XV e acelerado nos séculos XVIII e XIX, necessitam de estudos na perspectiva da História Ambiental, no sentido de reconhecer “que a era capitalista na produção introduziu uma relação nova e distintiva das pessoas em relação ao mundo natural. A reorganização da natureza, não apenas da sociedade” (WORSTER, 2003, p. 34).

Os índios Pankará mantêm relações de “simbiose com os recursos naturais existentes na região” (BULCÃO, 2010, p. 31). Isto é, utilizam e dependem dos recursos naturais do seu território e, ao mesmo tempo, usam formas tradicionais de manejo da produção agrícola e da pecuária, que mantém a estabilidade e a preservação dos ecossistemas, colaborando com a conservação ambiental da Serra do Arapuá. Em relação às práticas agrícolas, predomina a técnica manual e o uso da enxada; plantam em áreas de potencial agricultável como o alto da Serra, em terras de potencial restrito ou ainda em áreas não indicadas para atividade agrícola, como é o caso das áreas de serrotes. Em relação às práticas de caça de animais silvestre: “A caça é presente na região e tem grande importância para o grupo [...]. Os caçadores nas aldeias têm grande importância social e são reconhecidos como homens ‘corajosos’” (BULCÃO, 2010, p.32).

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O Pajé Manoelzinho Caxeado destacou os principais animais silvestres caçados: “tatu, peba, preá, mocó, cangambá-tumbanga ou gambá, caititu. Com a seca está aparecendo muito, tão saindo da floresta e estão matando muito, capaz de acabar”. E o Pankará Luís Pedro declarou em entrevista ser agricultor e caçador, afirmando os seus conhecimentos sobre animais silvestres, como o tatu: “Meu avô foi quem me ensinou a caçar”.

Os Pankará possuem diversos conhecimentos sobre o ambiente natural na Serra do Arapuá:

É importante destacar que o clima, o relevo e a hidrografia determinam e influenciam a produção agrícola e no tipo de vegetação natural das regiões naturais Pankará, como também na relação existente entre agricultura e pecuária. Pois nas regiões do agreste e chapadas os animais como caprinos, ovinos são criados amarrados e as galinhas no cercado, e geralmente estão sempre fortes. Nessas regiões não costumamos cercar as plantações. Já na região do sertão os animais são criados soltos e as roças cercadas. Além de caprinos, ovinos e suínos, existe também a criação de gado, embora em pequena quantidade, quem mais tem, possuem umas dez cabeças [...] (MENDONÇA, 2012, p. 75-76).

Os índios Cícero Militão e Nilson Manoel afirmaram que antigamente era muito grande o plantio de feijão, a criação de animais era muito pouca, só criavam ovelha, galinha e porco. O gado bovino praticamente ninguém criava e quando as pessoas viam um boi tinham medo. E o Pajé Manoelzinho Caxeado confirmou que “a criação de bode é tudo cercado, o pasto é tão bom da Serra que faz com que a carne fique muito boa. O porco e o gado também é criado amarrado, mas com a seca tamo tendo muita dificuldade” (sic).

Nessa perspectiva, a vida social deve ser analisada envolvendo questões socioculturais e ambientais, para entender como a Natureza foi/é apropriada pelos humanos, as formas dos processos de construção e reconstrução do ambiente natural e como o ser humano interfere nesse ambiente e o ambiente afeta a vida sociocultural.

Contrariando as previsões de Darcy Ribeiro, a partir de pesquisas realizadas na década de 1950 sobre os índios no Nordeste, quando o antropólogo afirmou, “viviam os seus últimos dias os remanescentes dos índios não litorâneos do Nordeste que alcançaram o século XX” (RIBEIRO, 1982, p. 56), os Pankará realizam mobilizações para a garantia de direitos étnicos, territoriais, o acesso e uso dos recursos naturais na Serra do Arapuá.

Buscamos compreender as relações estabelecidas entre os Pankará e a Serra do Arapuá, a partir das (des)continuidades desse grupo social em seu Ambiente, suas práticas de produtividade nas relações e representações da/sobre a Natureza, em suas expressões socioculturais e cosmologia. Um exercício de compreensão sobre a construção sociocultural do ambiente natural, uma tentativa de evidenciar os percursos da história socioambiental na Serra do Arapuá. Para pensar as afirmações identitárias dos povos indígenas em suas mobilizações sociopolíticas na História, em diferentes processos e situações no “sertão verde”, o Semiárido do Nordeste do Brasil.

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78 Nascido na atual Sertânia (antiga Lagoa de Baixo), Pernambuco em 1889, faleceu no Rio de Janeiro em 1979. Bacharel em Direito, Deputado Federal Constituinte (1946), Coletor da Fazenda Estadual e Federal. Membro da Academia Pernambucana de Letras, do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco e do Instituto Arqueológico Nacional. Transitou nos campos da administração pública, política, Ciências Humanas e Literatura, reunindo relatos, memórias e registros documentais sobre municípios sertanejos em Pernambuco. 79 Nas citações dos povos indígenas utilizamos a grafia inicial maiúscula quando nos referirmos às coletividades. E em minúsculo e no plural, quando citamos indivíduos indígenas. Regra essa de acordo com a “Convenção para a grafia dos nomes tribais”, estabelecida pela Associação Brasileira de Antropologia/ABA em 14/11/1953, (publicada na Revista de Antropologia, vol. 2, nº 2, São Paulo, 1954, p. 150-152) e aceita nos estudos acadêmicos sobre a temática indígena.80 Lei promulgada em 1775, pelo Marquês de Pombal, Ministro do Rei de Portugal, determinando a extinção dos aldeamentos e transformação dos mesmos em vilas. Incentivando casamentos com não índios, regulamentando o comportamento dos indígenas que foram considerados “súditos do Rei”. Essas e outras medidas influenciaram decisivamente as populações de antigos aldeamentos, a exemplo dos localizados na atual Região Nordeste.81 Ofício de José da Cruz Ferreira, Ouvidor da Comarca do Sertão, em 30/08/1817, para o Governo de Pernambuco. Relação das hostilidades que o gentio bárbaro tem feito no Termo da Vila de Flores e nos Termos dos Julgados de Tacaratú e Cabrobó. APEJE. Ouvidores de Comarca (OC-4), fl. 120. 82 O Toré é uma dança coletiva, ritual praticado pelos Pankará. É dançado ainda com o sentido de diversão, como “brincadeira” de índio. Mas, principalmente como forma de afirmação étnica dos povos indígenas no Nordeste em espaços públicos e mobilizações sociopolíticas.83 O termo caboclo no Nordeste foi usado pelos não índios para designar as populações habitantes nos antigos aldeamentos. Mas, foi apropriado pelos próprios índios como forma de “esconder a identidade étnica diante de inúmeras perseguições” (SILVA, 2011, p. 315). O índio Pankará, Luís Pedro afirmou que “caboclo é como se fosse índio”. O termo também foi usado para deslegitimar os indígenas.84 Pesquisador da Universidade da Califórnia em Berkeley, esteve no Sertão do São Francisco em 1951 e 1952, com apoio do Serviço de Proteção aos Índios/SPI estudando os indígenas. Enviou correspondências para o Chefe da Inspetoria Regional 4/I.R.4 do SPI no Recife, e também produziu relatórios para o SPI no Rio de Janeiro. Além de enviar artefatos recolhidos entre os índios para o Museu de Antropologia da Universidade da Califórnia, publicou artigos sobre suas pesquisas na Revista do Museu Paulista em 1960 (SILVA, 2007, p. 162).

Notas

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Entrevistas:

Cícero Militão da Silva, 48 anos, Aldeia Enjeitado, Serra do Arapuá, Carnaubeira da Penha/PE, em 21/02/2014.

Eunice Nicanor de Souza Santos, 67 anos, Aldeia Boqueirão, Serra do Arapuá, Carnaubeira da Penha/PE, em 07 de setembro de 2014.

João Manoel de Sá, conhecido por João Paulo, 86 anos. Aldeia do Brejinho, Serra do Arapuá, Carnaubeira da Penha/PE, em 05 de novembro de 2012.

Luís Pedro dos Santos, 59 anos. Aldeia Cacaria, Serra da Cacaria/Serra do Arapuá, Carnaubeira da Penha/PE, em 21 de fevereiro de 2014.

Manoel Antonio do Nascimento, conhecido por Pajé Manoelzinho Caxeado, 72 anos. Aldeia Lagoa, Serra do Arapuá, Carnaubeira da Penha/PE, em 05 de novembro de 2012.

Manoel Antonio do Nascimento, conhecido por Pajé João Miguel, 68 anos. Aldeia Marrapé, Serra do Arapuá, Carnaubeira da Penha/PE, em 21 de fevereiro de 2013.

Manoel Gonçalves da Silva, conhecido por Nenén Pankará, 53 anos. Aldeia Marrapé, Serra do Arapuá, Carnaubeira da Penha/PE, em 20 de abril de 2014.

Maria Luciete Lopes. Aldeia Laje, Serra do Arapuá, Carnaubeira da Penha/PE, em 07/11/2013.Nilson Manoel de Souza, 62 anos. Aldeia Enjeitado, Serra do Arapuá, Carnaubeira da Penha/PE, em 21 de fevereiro de 2014.

Pedro dos Santos, conhecido por Pajé Pedro Limeira, 82 anos. Aldeia Cacaria, Serra da Cacaria/Serra do Arapuá, Carnaubeira da Penha/PE, em 05 de novembro de 2012. 

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CIGANOS E QUILOMBOLAS NA REGIÃO NORDESTE: FORMAS DE VIDA E DESAFIOS CONSTANTES

Mércia Rejane Rangel Batista

O presente trabalho procura de forma mais ampla trazer aos leitores alguns elementos que possam caracterizar a trajetória destes grupos – ciganos e quilombolas –, com ênfase nos conhecimentos que já acumulamos sobre eles na região Nordeste, enfatizando o desafio que tem representado a possibilidade de formas específicas de vida social e as questões ligadas ao acesso ao território e seus recursos naturais, no caso dos quilombolas, e o acesso aos territórios, no caso dos ciganos.

Como não se dispõe de pesquisas que abranjam, nessa região, todos esses grupos, nos baseamos em situações específicas, procurando então refletir sobre condições de vida e processos históricos.

Uma das questões que procuramos enfatizar é como ao longo de uma história já de longa duração, percebemos uma invisibilização e um desafio constante para a manutenção desses estilos de vida.

Desse modo, então, vamos apresentar alguns elementos mais gerais e levar a nossa discussão para os modos de vida que estão presentes hoje, na Paraíba. Podemos, inicialmente, nos perguntar quem são os que classificamos como ciganos e da mesma forma, os que classificamos enquanto remanescentes de quilombo. Para tal, é claro que se faz necessário recuperar, mesmo que de forma breve, a situação histórica que produziu um desenho de sociedade no qual os grupos foram sendo definidos em dinâmicas próprias.

No caso do Brasil, durante séculos, se fez uso da mão de obra escrava (tanto a originada em um tráfico secular mantido com o continente africano, como também através do processo de apresamento e escravização dos povos indígenas), subordinando-os aos desígnios do sistema econômico. Como uma reação, desde o início da colonização, instauraram-se condições de existência, nas quais as fugas dos escravos implicaram em uma alternativa de vida, produzindo, assim, situações que podem ser caracterizadas pela presença de quilombos enquanto desafios ao poder da Coroa Portuguesa, como foi o caso do afamado Quilombo dos Palmares. Por outro lado, percebemos que também se fez possível a existência de formações sociais constituídas por escravos fugidos, por libertos e por outros elementos, construindo alternativas e se localizando nas franjas do sistema. É o que vai ser descrito pelo antropólogo Alfredo Wagner B. Almeida (1989) permitindo uma forma de interpretação na qual se passa a pensar na presença dos núcleos de camponeses negros vivendo em terras soltas, especialmente na região Nordeste e de onde teremos então, após a Constituição Federal de 1988, as situações de reivindicação da identidade quilombola.

Por esses mesmos motivos, é possível pensar a formação dos quilombos após a abolição da escravatura, e não como um fenômeno que precisaria estar contido no período histórico da escravidão, não sendo possível se deslocar até a contemporaneidade. Ao contrário, através das

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pesquisas e das discussões conceituais, vai-se recusar a frigorificação do conceito de quilombo, como bem discute Almeida (2002). Qual conceito de quilombo que se pode adotar? Com clareza, o termo resistência deve fazer parte desse exercício.

Pensando em termos legais, podemos destacar que a partir da Abolição da Escravidão em 1888, e a Proclamação da República no ano seguinte, nos defrontamos com um cenário de invisibilização da situação dos ex-escravos e da manutenção destes, pois não só no discurso como também nas ações do Estado, se buscou resolver este quadro pela importação de mão-de-obra livre europeia. É claro que não cabe, no âmbito desse texto, esmiuçar o século que nos separa do primeiro evento (a abolição da escravatura) da promulgação da atual Constituição Federal, apenas indicar que durante cem anos não se vai relacionar a questão racial e a questão histórica em termos de uma dívida que deveria não só ser reconhecida, como também resolvida. Contudo, o que se desenha a partir do atual contexto é uma percepção que as comunidades negras – não apenas as rurais, como também urbanas, – ao constituírem modos específicos de vida, precisam encontrar condições de existência plena85.

Em termos de marco legal, como já foi dito acima, temos a baliza fornecida pela Constituição Federal promulgada em 1988, com os artigos 215 e 216, e o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) 68; e, mais especificamente, o Decreto nº 4887 de 20/11/2003, que propõe a identificação das comunidades quilombolas. Em termos de políticas públicas, com a vitória do Partido dos Trabalhadores (PT) nas eleições de 2002 e o início da Presidência do Brasil por Luís Inácio Lula da Silva, instaura-se o Programa Brasil Quilombola (PBQ) em março de 200486. E é instituída a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, por meio do Decreto nº 6040, de 07/02/2007.

A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) – parte desse esforço de visibilizar esse universo – informa que a população quilombola no Brasil é estimada em 1,7 milhões de habitantes, sendo que o número de comunidades remanescentes de quilombo que são reconhecidas é de 1948; dentre este número, as que dispõem do certificado da Fundação Cultural Palmares, totalizam 1834. Na Região Nordeste, localiza-se 64% das comunidades com certificação.

Podemos afirmar que a situação socioeconômica da população quilombola é precária, pois temos 80 mil famílias quilombolas no Cadastro Único, que se constitui na base de dados para os programas sociais do Governo Federal. E deste, 74,73% vivem em situação de extrema pobreza (REDE BRASIL ATUAL, 2013). Como explicação para esta situação, podemos indicar aqui a dificuldade em garantir o acesso à terra, o que impede a aplicação das demais políticas públicas.

A região Nordeste é marcada por diversos problemas socioeconômicos. E, em decorrência, ocupamos as últimas colocações no ranking nacional de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). A taxa de mortalidade infantil é a maior do país e cerca de 55% das residências não possuem saneamento ambiental. Do mesmo modo, a expectativa de vida do nordestino é a menor do Brasil (70 anos). Por outro lado, é no Nordeste que se tem apresentado melhoras significativas nos aspectos

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sociais (MEDEIROS, 2016, p. 52). Pois foi na região Nordeste que o país mais se desenvolveu entre 2000 e 2010, segundo o Índice FIRJAN de Desenvolvimento Municipal (IFDM) (MEDEIROS, op. cit.).

Refletindo-se sobre a situação a partir do estado da Paraíba, podemos afirmar que as comunidades quilombolas experimentam um quadro semelhante aos demais estados do Brasil. Temos o empobrecimento, demonstrado pela insegurança alimentar, a ausência do poder público, a situação de discriminação e do preconceito racial, como também a migração de parte da população em busca da sobrevivência econômica. A maioria das comunidades quilombolas paraibanas estão localizadas no Sertão do estado. E são classificadas entre as mais pobres na Paraíba. A localização de muitos dos quilombos indica a dificuldade do acesso e se relaciona ao contexto de formação destas comunidades.

Em termos mais específicos, como pode ser visto no mapa ao final desse capítulo, temos 38 comunidades remanescentes de quilombo na Paraíba. Dessas 38, apenas uma não é ainda certificada pela Fundação Cultural Palmares. É a comunidade Pau de Leite, localizada no município de Catolé do Rocha.

Pensando em termos de distribuição pelas mesorregiões na Paraíba temos o seguinte cenário:• Mata: Ipiranga; Gurugi; Mitiuaçu e Paratibe;• Agreste: Cruz da Menina; Engenho Mundo Novo; Engenho Bonfim; Sítio Matias; Matão; Pedra d’Água e Grilo;• Borborema: Serra do Abreu; Pitombeira; Urbana do Talhado; Serra do Talhado; Sussuarana; Vila Teimosa; Areia de Verão;• Sertão Paraibano: Serra Feia; Aracati/Chã; Areia de Verão; São Pedro; Curralinho/Jatobá; Lagoa Rasa; Contendas; Pau de Leite; Rufinos do Sítio São João; Daniel; Umburaninha; Vinhas; Negra de Mãe d’Água; Negra de Barreiras; Negra de Santa Tereza; Barra de Oitis; Sítio Vaca Morta; Domingos Ferreira; Fonseca; Sítio Livramento.

Sendo que o Governo da Paraíba, por meio do Projeto Cooperar, em parceria com o Banco Mundial e com a Associação de Apoio aos Assentamentos e Comunidades Afrodescendentes (AACADE), realizou um estudo censitário da população quilombola.

1. Os quilombolas na Paraíba e o acesso à água

Partindo dos dados apresentados na tese de Angela Carolina de Medeiros (2016), podemos dizer que há uma situação de vulnerabilidade dos quilombolas, que se expressa pela não efetivação do processo de regularização fundiária dos territórios quilombolas (não se trata de situação exclusiva ao Estado da Paraíba), como também no Brasil. Pode-se destacar a falta de acesso à água, incluindo aí a água potável, ao saneamento básico, além de educação e saúde, o que gera, portanto, um quadro de exclusão socioeconômica (MEDEIROS, 2016, p.19).

Na Paraíba, segundo o INCRA, apenas 185 comunidades obtiveram o título de propriedade garantido pela determinação constitucional. No caso da Paraíba, apenas duas comunidades possuem

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território definido: Engenho de Bonfim e Grilo, localizadas respectivamente nos municípios de Areia e Riachão do Bacamarte.

Em 2010, foi criada a Secretaria de Estado da Mulher e da Diversidade Humana (SEMDH/PB) com o objetivo de orientar, apoiar, coordenar, acompanhar e executar ações e políticas públicas para mulheres, população negra, comunidades e povos tradicionais (Quilombolas, Ciganos, Indígenas e povos de terreiro) e populações de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) (MEDEIROS, 2016, p.30).

A SEMDH aliou-se a secretarias e órgãos de governo do Estado e elaborou o Plano de Ações do Programa Brasil Quilombola, em consórcio com a SEPPIR e em 2011 se realizou o I Seminário Estadual de Políticas Públicas para as Comunidades Quilombolas e em decorrência, em 2012, o Estado da Paraíba foi escolhido para ser o primeiro estado beneficiado com o Programa Brasil Quilombola, o que permitiu que se beneficiassem as 38 comunidades quilombolas localizadas no estado.

Contudo, o que podemos dizer nesse contexto, é que a situação das comunidades quilombolas implica no desafio de garantir o acesso à terra, em condições de se garantir a reprodução da comunidade nos termos de uma autonomia material e simbólica, o que implica, por sua vez, certamente em políticas públicas que possam ser efetivadas. Por outro lado, a dimensão identitária tem se revelado como um desafio, pois é necessário que não só no plano legal, como também nas efetividades, o Estado nacional incorpore as lutas pelos ‘direitos étnicos’ e direitos sociais (ARRUTI, 2006; OLIVEIRA, 1993).

No plano das discussões mais conceituais, no campo da Sociologia e da Antropologia, pós-Segunda Guerra Mundial, e com os cenários de rearranjos sociais, se constituiu uma discussão em torno da construção e manutenção das identidades. Autores como Barth (1997) no plano internacional, e Cardoso de Oliveira (1976), no Brasil, discutiram a natureza contrastiva e relacional da identidade étnica. Especificamente, ao realizarem pesquisas junto a diferentes grupos étnicos, permitiram a crítica e a superação aos conceitos de assimilação e aculturação, que até então justificavam uma previsão/ação, a partir da qual o contato entre esses grupos e a sociedade abrangente implicaria no desaparecimento das entidades sociais específicas. Ao contrário, permitiram que se destacasse a manutenção das diferenças (inclusive culturais), nos processos de interação. Barth (op. cit.) vai destacar que é nas fronteiras (físicas e sociais) e nos fluxos das pessoas, que as distinções categoriais se conformam. Nesse aspecto, os quilombolas estão se conformando enquanto portadores de uma identidade nos cenários atuais, quando passamos a ter processos de reivindicação por reconhecimento dos direitos.

É o caso de grupos rurais negros, que passam a ser vistos e também a se enunciarem enquanto parte do conjunto classificado como ‘remanescentes de quilombos’. Trata-se aqui da criação de novos sujeitos políticos que, ao ‘emergirem’, impõem uma discussão crítica e uma expansão no campo de estudos sobre populações rurais. E é nesse movimento que se passa a reivindicar o reconhecimento da existência dos direitos diferenciados.

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2. Pensando os Ciganos

Pensar sobre a questão cigana no Brasil é se deparar com um movimento político e identitário recente, pois, ao longo da história, os ciganos foram tomados enquanto uma população pobre, nômade, e pouco afeita ao mundo do trabalho e cujos aspectos destacados implicavam num certo grau de exotização por conta dos hábitos culturais. Ao Estado caberia sempre uma ação pedagógica, para enquadrá-los nas ações que se destinavam aos trabalhadores pobres: a fixação territorial e o controle nas práticas econômicas e sociais. E, no limite, a própria existência dos ciganos deveria conduzir a sua absorção no chamado ‘povo brasileiro’.

É tão significativo que ao se destacar os parâmetros legais, com ênfase na Constituição Federal de 1988, batizada de Carta Cidadã, aos ciganos não se destinou nenhum espaço para o seu reconhecimento e/ou defesa. Não foram classificados enquanto minoria étnica, não se propôs nenhum tipo de política compensatória. Ao contrário, garantiu-se aos ciganos as prerrogativas de todos aqueles nascidos no Brasil. Porém, sabe-se que eles não são vistos e não se veem enquanto indivíduos que expressam uma identidade nacional. Ao contrário, estamos diante de grupos que se pensam e se dizem enquanto portadores de identidade específica. Apenas com a efetivação das ações do Ministério Público Federal (1994) que cria a Câmara de Coordenação e Revisão dos Direitos das Comunidades Indígenas e Minorias, é que se passa a incluir no escopo das suas ações as chamadas ‘comunidades negras isoladas’ (referência aos quilombos) e as minorias ciganas. Como consequência disso, a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal é intitulada Câmara dos Índios e Minorias (MOONEN, 2011). É a partir daí que passamos a ter uma ação específica, em termos de ações estatais, dedicadas aos ciganos, visto aí enquanto grupos étnicos/minorias.

Os ciganos, tomados aqui enquanto grupo étnico, encontram-se presentes em boa parte do mundo e revelam-se como um objeto de menor interesse acadêmico. A maior concentração de população cigana está na Europa e são registrados em parte do continente Africano (Egito) e em todo o continente Americano. Com relação ao Brasil, temos uma expressiva concentração na região Nordeste do Brasil, consideramos que é um universo que se está parcialmente quantificado, e que ainda apresentam um desafio à pesquisa, pois são percebidos enquanto exemplos de populações exóticas e que são pouco relacionados aos processos contemporâneos de emergência de grupos étnicos, distintos e demandantes de direitos.

Não há dados exatos sobre a população cigana no Brasil, indicando aí uma área que se revela problemática, pois o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) lida com populações sedentarizadas, enquanto que os ciganos se autorrepresentam enquanto nômades ou seminômades.

Estamos diante de um cenário que implica num esforço de pesquisa, pois desde o termo “cigano” (que deriva da palavra espanhola gitano, assim como a inglesa gypsy, indicando aí uma suposta origem egípcia, marcando o exotismo), estas designações atribuídas por não ciganos foram assumidas por estes, já que eram obrigados a se identificarem junto às autoridades locais. Na Europa,

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se distinguem em Rom, cuja língua é chamada de romani, Sinti, de língua sinto e os Calon que falam o Kaló ou calé. Cada grupo se divide em subgrupos, que formam comunidades familiares. Os Calon são chamados de ‘ciganos ibéricos’; que se diferenciam dos Rom pelo aspecto físico, economia, aspectos linguísticos e costumes.

Sobre o processo de construção da identidade cigana, partindo da pesquisa realizada por Goldfarb (2004, p. 80), com os ciganos na cidade de Sousa (Paraíba), destaca-se o sentido êmico, a partir dos quais ‘ser cigano’ se constitui em oposição aos não-ciganos, sustentando-se pela construção dos conceitos de Tempo e Espaço, com as concepções de nomadismo e sedentarização desenvolvidas pelos grupos ciganos estudados. Na pesquisa, que se iniciou em 1998 e que prosseguiu até 2004, somos apresentados à situação na qual se configuram três grupos ciganos localizados na periferia da cidade desde 1986, o que implicou na criação de uma ‘comunidade cigana’, a partir da articulação de alianças e relações assistencialistas entre líderes ciganos e políticos locais, o que permitiu a fixação destes a partir da concessão de um terreno para a moradia dos grupos.

Nesse contexto, líderes ciganos trocaram os votos e o apoio político durante as campanhas eleitorais enquanto estratégia de poder, pois o líder cigano deve ser capaz de resolver os problemas dos seus comandados junto aos poderes da sociedade não cigana. Desse modo, é importante perceber e discutir as implicações das condições de vida dos grupos ciganos sob as formas de organização social e as relações desse cenário para a manutenção da identidade étnica. Isto é, a forma pela qual os ciganos vão se concebendo e se pensam distintos ou assemelhados aos não ciganos reflete essas situações sociais nas quais estão imersos. A hipótese de Goldfarb, a partir da pesquisa realizada junto aos ciganos que vivem em Sousa (PB) é que as noções de passado e presente são pensadas através de momentos de andanças e sedentarização, e que estas ancoram a percepção que eles constroem sobre o que é ser cigano. O destaque se dá pelo fato de que os ciganos são herdeiros de um tempo coletivo, que se ancora na memória, e que se sustenta a partir da experiência direta ou herdada, lhes permitindo, então, a partir do passado, reordenar o tempo presente.

Os grupos ciganos que vivem hoje em Sousa se referem ao ‘tempo de atrás’, para indicar uma forma de vida que é vista, sentida e exposta enquanto positiva e que ancora a pertença a uma coletividade (aqui a referência é ao modo como Max Weber discute pertença étnica). Ora, como é de conhecimento disseminado no campo das ciências humanas e da filosofia, as categorias tempo e espaço têm sido objeto de reflexão e análise há bastante tempo e por isso mesmo são chaves na estruturação da realidade humana.

Goldfarb recupera Durkheim enquanto um estudioso clássico, que ao se debruçar na experiência religiosa nos mostra que o tempo é uma construção coletiva e cujos significados são compartilhados através das práticas sociais. Do mesmo modo o espaço, que permite organizar as experiências, através do exercício de diferenciação. Tanto espaço quanto tempo só são tornados significativos a partir do momento que são diferenciados ao serem segmentados e articulados, com a relação afetiva que deriva da incorporação ao universo significativo (DURKHEIM apud GOLDFARB, 2004, p. 81).

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Com relação às contribuições de Halbwachs que – continuando o diálogo iniciado pela Escola Sociológica Francesa ao demonstrar que não só as categorias de pensamento são resultados de esforços classificatórios – a memória é investigada de tal modo a ficar demonstrado que apesar dessa se apresentar a partir da percepção individual, é nos quadros sociais (e coletivos) que esta pode então se enunciar.

Por isso mesmo, é através das categorias tempo e espaço que a memória de um grupo ou sociedade se unifica e constrói o espaço a partir do qual a identidade pode emergir e se tornar operativa. “O sistema simbólico é a essência da memória coletiva; e o espaço e o tempo são meios dos quais se servem diferentes sociedades” (GOLDFARB, 2004, p.81).

Harvey (1993, p.201) demonstra que o espaço não pode ser concebido de modo universal, pois cada concepção é decorrência da experiência, na qual as práticas sociais dialogam com a organização do espaço e do tempo, o que vai permitir que cada grupo defina as relações entre pessoas, grupos, atividades materiais e conceitos. Logo, quando nos deparamos com as categorias nativas (êmicas) sobre tempo e espaço, expressam o modo pelo qual esses grupos sociais experimentam (com todas as condicionalidades inerentes ao universo social, com suas disposições posicionais) os processos de identificação e exclusão. Então, tempo e espaço recebem sentido em decorrência das relações sociais específicas de classe, de gênero, de etnia, dentre outros marcadores.

É claro que ao nos debruçamos sobre o Povo Nuer, estudado por Evans-Pritchard [1934 (1993)] em clássica monografia, somos levados a perceber que as categorias espaço e tempo expressam um sistema social que reflete a ecologia com expressões específicas a um dado universo humano, o que significa que os Nuer conhecem e expressam suas concepções de tempo e espaço a partir das próprias experiências, o que permite então apreender que para eles o tempo e o espaço são estruturais, expressando significados coletivos nos quais os sujeitos se identificam entre si. Logo, o próximo só se constitui quando eu me vejo e me relaciono com o outro, pois de outro modo, o espaço físico é vivido enquanto marcado pelo vazio.

Segundo Mendes (s/d), quando nos deparamos com o universo cigano podemos nos interrogar sobre as inter-relações entre etnicidade e identidade. A identidade étnica é diretamente conectada ao sentimento (como bem expõe Weber e que é desenvolvida teoricamente por Fredrik Barth), especialmente à dimensão da pertença e do sentido do eu, o que implica aí em processos de socialização familiar e grupal (ver Mendes s/d). Quando nos deparamos com esse universo, de identidades étnicas, deve-se levar em conta os aspectos dinâmicos e situacionais, nos quais se entrelaçam o passado com o presente, como também aquilo que é considerado como heranças sociais e culturais, além do diálogo permanente com as situações histórica e dos desafios de se situar face aos outros, em termos de possibilidades de agenciamento da própria vida física, social, cultura, econômica, política. As identidades se constituem e se mantém a partir de negociações estabelecidas na e com a sociedade abrangente. Como nos diz Mendes (s/d): “as fronteiras étnicas são fluidas e dinâmicas, sendo atualizadas e reactualizadas em situação de interacção quer intra

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membros do grupo, quer entre não membros. As fronteiras são negociadas no espaço transaccional. As diferenças entre o ‘Nós’ e os ‘Outros’ evidencia a saliência das fronteiras entre os ‘insiders’ e os ‘outsiders’”.

Esse contexto implica que na situação proposta nesse trabalho, a presença de ciganos e quilombolas nos indica um esforço continuado para a definição, redefinição e manutenção de uma identidade que sendo portada individualmente, remete sempre para uma prática e uma condição coletiva, e na qual as formas de vida implicam sempre em modos próprios de apropriação do espaço no qual estão inseridos e nos quais se vive entre possibilidades e realizações. O que, por sua vez, é investigado por diversos autores quando se observa a migração e a itinerância, construindo ou reforçando os laços entre grupos familiares e localidades, nas quais a presença demandava negociações internas e externas.

Partindo da leitura realizada por Rex (1988 apud Mendes) podemos dizer que uma das funções das fronteiras étnicas (ver Barth para a discussão sobre a constituição e o funcionamento destas) é distinguir os que ‘jogam no mesmo tabuleiro’, com os quais se mantém relações em larga escala; daqueles com os quais é fundamental, se mantendo a reserva nas interações, se gerar e se manter uma ‘limitação na compreensão compartilhada, diferenças de critérios na avaliação de valores e de actuação, e uma restrição à interação de sectores de compreensão assumida e de interesses mútuos (REX, 1988, p.136 apud MENDES). Por isso mesmo, só é possível investigar e compreender essas situações se estas são tomadas enquanto dinâmicas nas quais há um processo de atribuição categorial, nas quais as classificações mobilizam e constrangem as interações entre ‘Nós’ e “Eles’. É o que parece indicar o trabalho de Tajfel (1983) citado por Mendes, e que considera que é nos processos de categorização social onde se permite ao sujeito organizar a informação recebida do seu ambiente, privilegiando algumas características e subvalorizando outras. Ao mesmo tempo, quando se estabelece uma categoria, obrigatoriamente se vai estabelecer a categoria inversa. Então, se a lógica é a do homem enquanto ligado ao espaço físico e pelo trabalho e obediência, ao outro se vai desenhar a inversão, que não necessariamente vai corresponder em sua totalidade. Assim:

A etnicidade não é, pois, uma propriedade que deriva de forma lógica da afiliação a um grupo, mas assume-se como uma capacidade cognitiva que opera a partir dos símbolos culturais. A definição e redefinição das fronteiras acentua o seu caracter dinâmico e processual, na medida em que de forma contínua são objectos de recomposição em ordem a condicionar as interacções nas situações de mudança social induzidas por processos macrossociais, tais como, a colonização e urbanização e as migrações (MENDES, s/d).

Pensando sobre o que torna específica a identidade cigana, quando contrastada com outras identidades étnicas, pode-se levantar como hipótese que não se trata nem da aparência física, que demarcaria uma distinção, nem mesmo a manutenção de uma língua própria. Seria a organização social, com base nos laços de parentesco, o que contrastaria com os demais grupos, pois nas sociedades ocidentais o Estado, ao emergir e se tornar operacional demarcou essa hierarquia. Segundo Ardèvol

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(1994), citado por Mendes (op. cit), o indivíduo no conjunto étnico cigano encontra-se inserido numa trama social traduzível no sistema de parentesco e é dele que recebe a sua personalidade social. É nesse exercício que pensará em si e no mundo e a partir dessas categorias vai classificar a si e aos outros e, em certa medida, é a partir desse núcleo básico de defesa e cooperação que se vai navegar socialmente, de tal modo que os parentes geram laços que são de ordem distinta daqueles que são gerados no campo da política, das relações sociais ou econômicas, traduzindo-se no que alguns chamam de idioma do sangue. Mendes expressa essa dinâmica de tal modo que nos remete ao conceito proposto por Pierre Bourdieu de habitus, para explicitar como se constitui a identidade étnica cigana e como esta opera no cotidiano dos ciganos em Portugal e que nos parece plenamente extensível ao que se identifica entre os ciganos da região Nordeste, especialmente Paraíba e Pernambuco (como se pode depreender dos trabalhos etnográficos de Goldfarb, dentre outros).

3. Na Paraíba

No município de Sousa, na Paraíba, encontramos a maior comunidade cigana do Nordeste. Segundo Frans Moonem, em suas pesquisas (em 1993, 2001 e 2002) existem na Paraíba, na cidade de Sousa, 450 ciganos, e no município de Patos, 100 indivíduos ciganos, originários do grupo Calon (Espanha e Portugal) que chegaram ao Brasil entre 1898 e 1903. Estes não permanecem com uma vida nômade, como dantes, mais numa vida sedentária, vivendo em “ranchos” (expressão que adotam para descrever os locais onde se ‘arrancham’, indicando aí um sentido de provisoriedade). Cada “rancho” possui um chefe, e ocupam um espaço físico, terreno, com construções/habitações doadas pelo Governo Estadual, onde vivem mais de uma família87.

Em Sousa, no Sertão paraibano, temos essa comunidade cigana, que passa a se organizar em torno de demandas face ao poder público e que resulta, dentre outros, na inauguração do primeiro (e até o momento, o único) centro de referência da cultura cigana do país, o Centro Calon de Desenvolvimento Integral (CCDI) que, ao ser inaugurado em 2009, contou com a presença do então Ministro da Igualdade Racial, Edson Santos.

É em torno dessa pauta que passamos a ter a atuação do Ministério Público Federal (MPF), que vem instaurando inquéritos em favor dos ciganos no município de Sousa, no qual a Prefeitura Municipal é tornada responsável pela falta de execução de projeto ou programa habitacional adequado às tradições e costumes da comunidade cigana, como também a ausência de vias pavimentadas, de coleta de lixo e saneamento básico no local denominado rancho dos ciganos88. O Ministério Público Federal vai fazer seguidas visitas aos ranchos de “baixo” e de “cima”, todos habitados por ciganos, para encaminhar as demandas dos ciganos face ao poder público, tanto no âmbito municipal como estadual.

Na Audiência Pública realizada, em parceria com a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão

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(PFDC) e a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, à presença de representantes como procurador Federal dos Direitos dos Cidadãos Adjunto, o procurador Regional dos Direitos do Cidadão, os Procuradores da República do MPF em Sousa, analista de Antropologia da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e representante do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional da Paraíba (CONSEA-PB), foram discutidos problemas como a regularização de documentos, a falta de médicos no Posto de Saúde da Família (PSF) e problemas com relação ao recebimento da cesta básica. O MPF entrará em contato com a Companhia Estadual de Habitação Popular (CEHAP) para esclarecer a questão da regularização dos terrenos, o MPF também irá procurar identificar a precariedade do serviço médico em Sousa.

Refletindo sobre a situação dos ciganos no Nordeste, podemos destacar a realização do I Encontro Cigano no Nordeste na cidade de Sousa/PB, que contou com a participação da então Ministra de Estado, Nilma Lino Gomes, da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR). O encontro foi realizado na cidade de Sousa nos dias 13 e 14 de Agosto de 2015, por intermédio da Secretaria da Mulher e da Diversidade Humana, em parceria com o governo do estado de Pernambuco e diversas associações de ciganos, inclusive a do município de Condado (PB). O evento contou com uma conjuntura intersetorial e o apoio de múltiplas instituições. Dentre as quais, estão à Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a Secretaria do Estado e Desenvolvimento Humano (SEDH), Secretaria da Educação e a prefeitura Municipal de Sousa.

Neste encontro, ocorreram diversas atividades: rodas de conversa, debates, conferências, grupos de trabalho e neste processo debateram e redigiram a “Carta de Sousa”, como um meio pelo qual os representantes dos grupos ciganos dos estados de Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Bahia, Maranhão e Rio Grande do Norte organizaram-se para definir as necessidades de seu povo. Expressaram a importância de sua identidade em meio a uma sociedade na qual sofrem estereótipos de todas as formas. E solicitaram ações para o combate da falta de políticas públicas para o exercício da cidadania, para a preservação e conservação de suas tradições. Esta carta foi endereçada aos gestores e gestoras públicos dos municípios e Estado.

O documento que foi elaborado é extremamente significativo, pois expressa uma posição construída pelos representantes dos ciganos dessa região, e dirigido ao Estado e à sociedade civil. Como se pode depreender do texto que transcrevemos abaixo:

“Carta Aberta dos Povos Ciganos do Nordeste em Sousa-PB”

Nós ciganos e gestores dos estados Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte, reunidos durante os dias 13 e 14 de agosto no município de Sousa, no estado da Paraíba, estivemos pensando, debatendo e propondo melhorias paras nossas comunidades e nosso povo cigano do Nordeste, com o objetivo de garantir acesso a políticas públicas, o exercício de

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cidadania plena, proteção e preservação de nossas tradições e cultura.Os ciganos presentes entenderam a importância do fortalecimento de suas entidades representativas. Após os debates foram aprovados os seguintes eixos de reivindicações:

1. IdentidadeA autodeclaração conforme defendida na conferência de Durban de 2001, só será aceita com o reconhecimento das Comunidades de Etnia Cigana em sua totalidade. Portanto, exigimos o esclarecimento do termo. Reconhecer como grupo cigano aqueles que estão sedentários semissedentários e nômades.

2. Proteção e Preservação da Cultura CiganaFica terminantemente proibido o ensino do dialeto dos Ciganos para os não Ciganos. Incentivo à promoção e ao fortalecimento da cultura cigana. Ações de enfrentamento ao racismo e discriminação contra os Ciganos, através de: palestras, Oficinas, divulgação em rádios, jornais locais, e ampla divulgação de materiais por/em órgãos municipais, estaduais e federais.

3. SaúdeA divulgação e aplicação nas comunidades Ciganas da cartilha elaborada pelo Ministério da Saúde. Garantir a inclusão das Comunidades Ciganas no Programa Nacional de Saneamento Básico. Garantir o atendimento das mulheres ciganas por profissionais femininas.

4. EducaçãoA inclusão na grade curricular da temática cigana: realidade local e social dos Ciganos no Brasil.Produção de material didático com protagonistas Ciganos. Levar para as comunidades os programas de educação continuada, cursos técnico/profissionalizantes. Bolsas de Estudo que garantam e assegurem a permanência dos estudantes ciganos nas instituições educacionais (públicas e privadas). Garantir o acesso às políticas públicas que trata o Decreto nº 6040 (Cotas nas Universidades, PROUNI, FIES direcionadas aos ciganos). Garantir Jurisprudência de Leis de outros municípios e Estados que beneficiem os ciganos. Garantir a Educação Infantil e o Ensino Fundamental I dentro das comunidades Ciganas. Capacitação dos profissionais da educação para garantir o bem-estar e o respeito dos estudantes ciganos no ambiente escolar.

5. TrabalhoGarantir todas as conquistas de outros povos tradicionais, aos ciganos em relação a concursos públicos e demais cotas. Incentivar o empreendedorismo através de cursos remunerados. Garantir estágios remunerados para estudantes ciganos universitários.

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6. HabitaçãoImplementar o programa do Distrito Federal que garantiu a construção de casas em terrenos da AGU. Mapear terrenos públicos municipais, estaduais e federais para construção das casas de acordo com Portaria do Governo Federal vigente. Sendo responsável pelo mapeamento a Secretaria do Desenvolvimento Social e a Secretaria da Promoção da Igualdade Racial. Garantir a documentação de regularização de terrenos e casas que os Ciganos receberam ou virão a receber de doações.

7. CidadaniaLevar ao conhecimento dos cartórios a recomendação do Ministério da Justiça em relação à emissão de documentos de identificação civil dos Ciganos (registro de nascimento, RG, CPF e título de eleitor). O direito sem constrangimento das ciganas à leitura de mãos. Formação e capacitação de policiais militar e civil, levando ao conhecimento da portaria do Ministério da Justiça que proíbe a invasão nos ranchos. As Secretarias de Desenvolvimento Social devem realizar Busca Ativa para inserir todos os Ciganos no CADÚnico enquanto cidadãos com direitos étnicos diferenciados.Garantir recursos para capacitação de lideranças Ciganas para fortalecimento de suas comunidades e entidades jurídico-políticas. Observação: O Centro Calon de Desenvolvimento Integral/CCDI deve ser reconhecido como entidade de referência Calon e garantir recursos públicos para ser administrados pelos próprios Calon. Garantir a criação de outros centros de referência em outras comunidades Ciganas. O Prêmio Cultura Cigana deve ser apresentado e concorrido pelos próprios Ciganos.”

O contexto da Carta de Sousa serve para nos mostrar os desafios que estão postos aos grupos ciganos, não só na Paraíba. Como lidar com a existência em face de uma sociedade que tende a aprisionar os membros destas comunidades a um estereótipo, altamente negativado? As minorias podem ou não constituir um grupo inferior numericamente, face à população total, e estão em desvantagens sociais quando comparadas a parte da população majoritária, sendo por isso objeto de preconceitos.

A expressão “minoria” é usada pelos cientistas sociais não num caráter numérico e sim com relação à posição subordinada do grupo dentro da sociedade, pois o termo minoria expressa a situação de desvantagem, indicando aí um contexto no qual os membros deste grupo estão normalmente isolados física e socialmente, costumando se concentrar em certos bairros, cidades ou regiões, gerando assim uma situação de encapsulamento nas relações sociais e, ao mesmo tempo, gera esforços de manutenção das tradições, inclusive com a preferência de casamentos endogâmicos.

Diferenças físicas, como a cor da pele, são, com frequência, indicadas enquanto o fator decisivo para designar uma minoria étnica. Contudo, pelas discussões e pesquisas já realizadas, fica bastante claro que não é uma mera transposição de qualidades físicas o que sustenta um grupo étnico. Ao contrário, é a partir das relações sociais e da crença de uma suposta origem comum que se vai

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desenvolvendo mecanismos sociais que garantem então a manutenção desta coletividade. Para Max Weber, os grupos étnicos se alimentam de uma crença subjetiva fundada nas

semelhanças de aparência externa ou dos costumes. É claramente uma construção social cuja existência é sempre problemática.

Os resultados de nossa pesquisa demonstram um quadro bastante peculiar no que diz respeito à minoria cigana, pois essas políticas públicas direcionadas aos grupos minoritários ainda são menos acessadas pelo público alvo, apesar da condição visível de pobreza e de exclusão social, o que indica a clara necessidade de se instaurar situações nas quais possam facilitar o acesso dessa face das políticas públicas e construir condições para que as estas possam ser discutidas, avaliadas e, se for o caso, reivindicadas. Certamente, consideramos que o evento a partir do qual se construiu a Carta de Sousa é um bom indicador desse cenário discutido.

4. Conclusões

Podemos então dizer, a guisa de conclusão, que ao realizar a pesquisa, identificamos que nos caso dos assim chamados quilombolas e ciganos, estamos diante de uma população que ainda sofre com a invisibilização, decorrente do processo histórico no qual se tendeu a considerar os quilombolas enquanto um resquício do passado e aptos a viver apenas nas páginas dos livros de história, e os ciganos enquanto não-brasileiros (estrangeiros) e que não se apresentam como dispostos a integrar à comunhão nacional através do trabalho, da sedentarização e da incorporação dos valores que a sociedade abrangente destina aos trabalhadores e pobres.

Por outro lado, ainda se faz presente, no processo de estigmatização, uma forte associação entre ciganos e exotismo e quilombolas a ex-escravos, fugidos e vivendo em isolamento. De modo que os próprios ciganos são levados a cultivar e a exibir os chamados traços diacríticos: são alegres, são festivos e utilizam vestimentas coloridas e cultivam hábitos artísticos. Enquanto que aos quilombolas se costuma cobrar uma demonstração física e cultural – devem ser exclusivamente negros e terem traços culturais que marquem uma diferença quase total com a sociedade que está em torno da comunidade quilombola. Efetivamente, como alguns trabalhos de pesquisa vêm nos mostrando, tanto os quilombolas como os ciganos, apesar de viverem em condições de extrema dificuldade material e social, são contemporâneos à sociedade e constroem modos próprios de expressar suas identidades. Têm ainda dificuldade em lidar com as imposições das instituições escolares e por sustentarem suas tradições, a partir da oralidade, a língua revela-se como um componente bastante importante para a própria concepção de identidade que os ciganos têm sobre si. E no caso dos quilombolas, vem construindo a experiência de uma educação própria, que mantenha e fortaleça a própria identidade distintiva.

Desse modo, parece fundamental envidar esforços para que as agências estatais e os órgãos encarregados de favorecer, implementar e fiscalizar as ações, possam dedicar maiores atenções aos

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grupos ciganos e quilombolas. Com relação aos pesquisadores, certamente temos ainda um longo caminho a percorrer.

85 A discussão que se vem constituído conta com autores e pesquisas de grande importância e que nos leva a avançar no campo. 85 85

Apenas como indicação, temos o já citado Almeida (1989 e 2002), O’dwyer (2002), Arruti (2006), como também os exercícios mais focados no âmbito da Paraíba, com investigação de comunidades específicas, como o caso de Almeida (2010 e 2011), Araújo (2016 e 2011), Araújo & Batista (2008 e 2011), Batista (2008, 2009, 2011), Fortes (2007), Grunewald (2009), Lima (1992), Nascimento (2009), Nascimento (2011), Souza (2011 e 2008). E, claro, o trabalho seminal de Cavalcanti (1975) focando no quilombo do Talhado em Santa Luza. 86 Vanessa Belmiro dos Santos defendeu dissertação de mestrado intitulada O selo “Terra Negra Brasil” do Programa Nacional de Crédito Fundiário: do sonho da terra á realidade da dívida, em 2013, discutindo essa política pública.87 Dentre outros trabalhos de pesquisa realizados nessa região, podemos indicar Cunha, 2013; Medeiros 2014 e 2016.88 Dados extraídos da Audiência que ocorre em 17 de abril de 2013, movido pelo Ministério Público Federal (MPF), no qual se instaura inquérito em favor dos ciganos, na cidade de Sousa-PB, através da PORTARIA nº 60/2013.

Notas

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GESTÃO DAS ÁGUAS NO SEMIÁRIDO: REFLEXÕES SOBRE SUBALTERNIDADE E INVISIBILIDADE DAS MULHERES DO MEIO RURAL

Andréa Pacheco de MesquitaAna Paula Silva dos Santos

Ramonildes Alves Gomes

Falar sobre a gestão da água e o lugar das mulheres na relação com este recurso no Semiárido remete à compreensão das relações sociais de gênero: como se formam em perspectiva relacional dois grupos sociais, os quais estão imersos em teias de relações, que têm como base fundante e fundadora as relações generificadas. É importante entender que as relações sociais de sexo ou relações de gênero se expressam ao longo da história, mas que têm uma base material: o trabalho. E se materializam reafirmando as diferenças na divisão sexual do trabalho. Nas palavras de Kergoat: “Homens e mulheres não são uma coleção – ou duas coleções – de indivíduos biologicamente distintos” (2000, p.1). Neste sentido, o primeiro recorte feito nesse texto foi problematizar duas abordagens fundantes no debate acerca da construção social do gênero, buscando entender como a “ideologia naturalista” do determinismo biológico se impõe como regra para as definições do ser homem e ser mulher em nossa sociedade. No segundo momento, analisamos a persistência do papel dominante do homem, mesmo quando a experiência adquirida na relação construída no curso das atividades cotidianas confere à mulher, trabalhadora rural, o mérito do conhecimento e da tomada de decisões inerente ao uso da água.

1. Relações de Gênero ou Relações Sociais de Sexo: situando o debate

O conceito de Gênero surge em meados dos anos 1970 como uma categoria que se contrapõe ao sexo. Nesta análise, o sexo está para o biológico assim como o gênero está para o social, sendo o gênero considerado o sexo socialmente definido, ou seja, o papel que cada homem ou mulher deve exercer na sociedade. Esta separação é fundamental para romper com o determinismo biológico e com certa ideologia naturalista de dominação masculina versus subordinação/opressão feminina. Gayle Rubin (1975) foi a primeira a teorizar o conceito do sistema sexo/gênero e a demarcar a fronteira necessária para explicar como as diferenças sexuais são transformadas em desigualdades sociais. Para ela, o sistema sexo/gênero é “o conjunto de acordos sobre os quais a sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana, e nos quais essas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas” (GAYLE RUBIN, 1975, p.159).

No final dos anos 1980, o conceito recebe novas contribuições a partir dos estudos da historiadora feminista Joan Scott, a qual afirma a partir de seus estudos que “o gênero se torna, aliás, uma maneira

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de indicar as ‘construções sociais’ – a criação inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres” (1991, p.4). Diversas correntes do feminismo, ainda que originárias de perspectivas disciplinares distintas, irão recusar o universalismo das relações entre homens e mulheres, que tem como fundamento o liberalismo, e passam a reivindicar o reconhecimento da “política da diferença”.

Nesse momento, a contribuição das autoras feministas para os debates de gênero é o rompimento da naturalização e da biologização dos indivíduos, quebrando a associação direta entre sexo e gênero como categorias correlatas. Para Scott: “o gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder político tem sido concebido, legitimado ou criticado” e se estabelece sobre a máxima do natural, do divino. Continua a autora, o gênero “não apenas faz referência ao significado da oposição homem/mulher, ele também o estabelece” (1995, p.92).

Se por um lado essas referências contribuem para os estudos sobre as mulheres e as relações de poder na sociedade, marcadas pelo arquétipo viril (SARDA, 1986), por outro, essas referências à categoria ‘gênero’ não adentram nas bases materiais das relações entre homens e mulheres, que se expressam visivelmente no cultural, mas que estão além dele. Ao referendar que o “gênero é a organização social da diferença sexual”, a autora traz à tona as questões culturais e perde o foco da sua base material. Para Cisne (2015, p.20),

O conceito gênero é polissêmico e utilizado por diferentes perspectivas teóricas, predominando as abordagens pós-estruturalistas. Isso nos demanda, sempre que o utilizamos, demarcar teoricamente os fundamentos estruturais que o determinam, que no campo do feminismo materialista está na articulação com as categorias classe social e “raça”. Ou seja, exige seu entendimento no seio das relações de antagonismos do sistema capitalista-patriarcal-racista

Contudo, é importante ressaltar que a feminista Saffioti utiliza a categoria ‘gênero’ como ferramenta analítica e política, sem perder a sua materialidade, ou seja, ela utiliza o conceito simbiose capitalismo-patriarcado-racismo para explicar as relações de gênero. Por isso, acreditamos que não podemos abrir mão da categoria gênero pelo seu significado na história, na política e nas epistemologias feministas.

A perspectiva é entender o movimento deste conceito que tem muita relevância teórica e prática, tanto para o movimento feminista e de mulheres quanto para a academia. Contudo, na atual dinâmica da realidade se faz necessário problematizá-lo e repensá-lo. Não para negá-lo, mas para deixar mais claro os seus objetivos teóricos e políticos e assim reconstruí-lo dentro do movimento da realidade e do movimento das epistemologias. Assim, algumas teóricas feministas propõem “retorno as mulheres” (COSTA, 1998; SADENBERG, 2007; SCOTT, 2001), ou seja, uma (des) reconstrução dos conceitos que no movimento da sociedade também se movimentam e consequentemente precisam ser repensados, reavaliados e ressignificados (MESQUITA, 2012, p.425).

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Em contraposição ao conceito de gênero (“gender” – originado nas academias estadunidenses) que por si só não assegura a sua relação com a classe e a raça, há a categoria Relações Sociais de Sexo (“Rapports Sociaux de Sexe” – originária do feminismo materialista francófono), a qual tem como estruturante o conceito de divisão sexual do trabalho.

Tanto a categoria classificatória e interpretativa ‘relações sociais de sexo’, conforme utilizada pelas feministas francesas, quanto ‘relações de gênero’ (simbiose capitalismo-patriarcado-racismo), conforme cunhado por Saffioti, são caracterizadas pelos antagonismos entre os dois grupos, são entendidas como construções sociais e não causalidade biológica; possuem uma base material e não somente ideológica; e são consolidadas pela hierarquia do sexo masculino sobre o sexo feminino, produzindo e reproduzindo relações de poder, dominação e opressão. Neste sentido, utilizaremos no decorrer do texto tanto a categoria francesa ‘relações sociais de sexo’ como ‘relações de gênero’ da feminista marxista Saffioti.

Assim, pensar as relações sociais entre os sexos ou relações de gênero (simbiose capitalismo-patriarcado-racismo) é, antes de tudo, romper com os ciclos esperados para os homens e as mulheres na sociedade, negar os diversos papéis tidos e ditos como atributos naturalizados, como sendo feminino ou masculino. Estas relações são as bases constitutivas das identidades sociais que se dão a partir das estruturas de um modo de sociabilidade capitalista e patriarcal.

É nesta direção que a construção dessas identidades são funcionais para a reprodução do patriarcado e do capitalismo, ao determinar lugares e papéis para cada um dos sexos. Estes, por sua vez, são definidos seguindo o princípio da separação (coisas de mulher e coisas de homem, a mulher como portadora dos deveres biológicos, com a reprodução, e o homem como responsável direto pela produção) e o princípio da hierarquização (o que é masculino agrega valor e o que é feminino é desvalorizado). É na separação público (homem, poder) versus privado (mulher, subserviência) que se orquestram as relações sociais e desiguais entre os sexos (KERGOAT, 2000).

2. Trabalho Masculino e Trabalho Feminino: produção versus reprodução

É mister compreender que a produção de seres humanos é a chave para analisar a produção de (bens)/produção econômica e a produção ideológica. “No seio de toda formação social coexistem uma produção social de bens e uma produção social de homens, que são sempre distintas, mas, ao mesmo tempo, relacionadas uma à outra” (COMBES & HAICAULT, 1987, p.24). Seguindo esta linha de raciocínio, afirma-se a indissociabilidade entre a produção e a reprodução, sendo uma a condição da outra.

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que o modo de produção capitalista transforma o próprio ser humano numa mercadoria, cuja classe trabalhadora é submissa ao capital, produzindo riqueza e reproduzindo relações sociais desiguais que justificam e naturalizam a subordinação e opressão da classe dominante sobre a classe dominada. É neste mesmo jogo de reprodução social

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de um modo capitalista de ser que se constitui uma divisão social do trabalho ao mesmo tempo em que se articula e dissemina também um modo patriarcal de ser homem e ser mulher, que se constitui numa divisão sexual do trabalho.

De acordo com Linda MacDowell (2000) a reprodução desta dominação patriarcal dos homens sobre a mulheres se dá a partir de cinco estruturas, são elas: 1) a produção doméstica, em que as mulheres realizam o trabalho doméstico no interior de suas casas, sem nenhuma remuneração; 2) as relações patriarcais no trabalho remunerado, em que as mulheres realizam as mesmas funções, mas recebem salários menores; 3) as relações patriarcais no plano do Estado, em que os homens dominam as instituições e o mundo da política elaborando leis que beneficiam os homens; 4) a violência machista, em que os homens controlam o corpo da mulher; e 5) as relações patriarcais existentes nas instituições culturais, em que os homens dominam a produção cultural da representação das mulheres.

Enquanto o trabalho masculino é valorizado por ser realizado no espaço público, revestido simbolicamente de poder e remunerado, tendo como base a força, a racionalidade, a virilidade – características consideradas masculinas, o trabalho feminino é desvalorizado por ser realizado no interior do espaço privado, no âmbito doméstico, no seio da família e é considerado um trabalho gratuito, realizado “por amor”, “por caridade” e “pra ajudar” exercendo a docilidade, a paciência, a maternidade, a abnegação. E se expressa no cuidado da casa, das crianças, do marido, dos doentes e dos idosos. É neste sentido, que são construídas as subjetividades masculinas (“um ser para o trabalho”, macho, homem da casa, chefe de família, viril, forte, a referência) e as subjetividades femininas (“um ser para os outros”, feminina, dócil, frágil, sensível, a outra).

Considerando que a materialidade da vida não se separa do seu significado é que entendemos que a divisão sexual do trabalho produz e é reproduzida pelas relações entre os homens e as mulheres, refletindo relações desiguais, hierarquizadas, assimétricas e antagônicas, o que tem como princípio definidor a supremacia e superioridade do trabalho masculino em detrimento do feminino, sendo que aquele se expressa claramente pela diferença salarial e pelo status embutido nas profissões consideradas masculinas. Estas relações de cunho patriarcal se estruturam “[...] no apelo à natureza e no argumento de que a função natural da mulher de procriar prescreve seu lugar doméstico e subordinado na ordem das coisas” (PATEMAN, 2013, p.62). Nas análises de Mesquita & Monteiro (2016, p. 11),

As mulheres são apropriadas enquanto esposas e donas de casa de forma individual através do contrato sexual, do casamento; mas são também apropriadas coletivamente pelas relações de sexo, raça e a ideia de natureza. A construção de uma ideologia naturalista, de um discurso sobre a natureza feminina que legitima a subalternidade das mulheres coisificando-as e naturalizando-as, e consequentemente levando-as a um destino supostamente biológico. Esta ideologia naturalista justifica o lugar das mulheres no mundo a partir da presença de um útero ou de um ovário, assim como justificou a inferioridade dos escravos a partir da cor da sua pele e de características raciais inscritas no corpo.

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É neste sentido, que o patriarcado se expressa através de uma relação direta de dominação do homem sobre a mulher materializada pela apropriação do seu tempo (as obrigações do trabalho doméstico - não remunerado), pela apropriação do seu corpo (a criminalização do aborto) e/ou obrigação sexual89 (o adultério só é considerado um desvio quando praticado por mulheres), pela obrigação social de cuidar das crianças, idosos, enfermos, deficientes e esposos (GUILLAUMIM, 2005, p.23).

Essa divisão fica bem clara quando analisamos os relatos das mulheres. Ao abordar sobre a temática, a fala de Dona Dalva é bastante reveladora, “Muitos dos companheiros pensam que só eles trabalham, mas não sabem o que é colocar uma gota de água em casa”90. O que ela expressa de forma bem simples e objetiva é como essa divisão sexual do trabalho acontece no mundo rural, reproduzindo e valorizando os lugares estabelecidos do trabalho e consensuados no espaço público, ao mesmo tempo em que desvalorizando, inferiorizando o trabalho no espaço privado, desqualificando-o como tendo uma importância secundária, mas que, no fundo, é esse trabalho que assegura a sobrevivência diária do grupo social e as condições para a produção de bens necessários à dinâmica de funcionamento da sociabilidade capitalista.

3. Os Movimentos Feministas e a desnaturalização das relações de dominação, opressão e exploração das mulheres

O movimento feminista surge ainda no século XVIII, no contexto do Iluminismo e nos primórdios da Revolução Francesa e Americana, como um movimento contestatório que girava em torno das reinvindicações e lutas pelos direitos sociais e políticos das mulheres. Este movimento se inicia na Europa e nos Estados Unidos, e só chega ao Brasil no início dos anos de 1910, a partir de movimentos que tinham como objetivo central o direito ao voto e à educação.

Considerado para muitas teóricas feministas como a primeira onda do feminismo no Brasil, que vai até os anos 1960, este período é marcado por um feminismo liberal, o qual não propunha nenhuma ruptura com as estruturas patriarcal e capitalista da sociedade liberal. O que estava em jogo era a conquista de alguns direitos, como o acesso à educação, o direito ao voto, entre outros. Consequentemente, tornava-as cidadãs ou meia-cidadãs, como propõe esta perspectiva. Também não questionavam nem problematizavam a dicotomia público versus privado. Ao passo que não se contrapunham ao poder do homem, visto como universal; não conseguia se entender que aí residia a posição da exclusão, dominação, exploração e opressão das mulheres. E desta forma, a luta das feministas liberais era pela inclusão das mulheres sem alterar as relações de gênero, e tinha o propósito de complementar o bom andamento da sociedade. Como bem resume Pinto (2003, p.15), as feministas atuaram “[...] sem mexer com a posição do homem, as mulheres lutavam para ser incluídas como cidadãs”.

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A segunda onda do feminismo, que data o final da década de 1960, tem como marco principal as lutas em torno do debate igualdade versus diferença, direito ao corpo, direito a não violência e teve como slogans: “nossos corpos nos pertencem”; “quem ama não mata”; “o pessoal é político”. Partindo de um questionamento da feminista Simone de Beauvoir de que “não se nasce mulher, mas torna-se mulher”, este movimento, ao desnaturalizar as desigualdades entre homens e mulheres, afirma que estas são construídas socialmente e não características inatas, colocando em cheque a separação público versus privado e afirmando a necessidade de se reconhecer o espaço privado como lócus de relações de poder e, consequentemente, como espaço político. Este novo momento do feminismo traz em seu bojo, para além das transformações no âmbito da política e dos direitos sociais, uma revolução dos costumes, dos valores e das relações sociais entre os sexos no espaço doméstico, rompendo com a direção patriarcal e caminhando na efetivação da igualdade de gênero.

Assim, Após um pequeno período de relativa desmobilização, o feminismo ressurge no contexto dos movimentos contestatórios dos anos 1960, a exemplo do movimento estudantil na França, das lutas pacifistas contra a guerra do Vietnã nos Estados Unidos e do movimento hippie internacional que causou uma verdadeira revolução nos costumes. Ressurge em torno da afirmação de que o ‘pessoal é político’, pensado não apenas como uma bandeira de luta mobilizadora, mas como um questionamento profundo dos parâmetros conceituais do político. Vai, portanto, romper com os limites do conceito de político, até então identificado pela teoria política com o âmbito da esfera pública e das relações sociais que aí acontecem. Isto é, no campo da política que é entendida aqui como o uso limitado do poder social (COSTA, 2006, p. 52-53).

No Brasil, este período de início da segunda onda coincide com a instalação da autocracia burguesa, em 1964. Daí as mulheres para além de lutarem pela sua libertação, lutavam contra o Regime Militar. É neste cenário que as mulheres se tornam protagonistas da luta pela Redemocratização do Brasil, sem perder a essência do movimento na luta contra a opressão feminina.

A terceira onda do movimento feminista, iniciada nos anos 1990, tem como marco teórico o feminismo da diferença, a igualdade jurídica na Constituição, as questões sociais, raciais, étnicas e sexuais. Partindo da Constituição Federal de 1988, este movimento conquista, ao longo das décadas, inúmeras vitórias, visando assegurar a justiça de gênero e promover a igualdade jurídica, a partir de importantes leis com destaque para a Lei Maria da Penha nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, e a Lei do Feminicídio, nº 13.104, de 9 de março de 2015.

Nesta nova fase do feminismo, há um questionamento central não só mais no sujeito hegemônico e universal homem, mas também se centra na discussão de que não podemos cair no mesmo erro metodológico e se pautar em um sujeito universal mulher. É sob estas bases que eclodem diversos movimentos e organizações em torno da diversidade, pensando as mulheres a partir de suas identidades políticas. A mulher negra, a mulher lésbica, a mulher indígena, etc. todas organizadas na luta contra o patriarcado, mas sem perder de vista as outras opressões advindas

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de suas particularidades: grupos étnico-raciais, orientação sexual, classe, regionalidade, enfim um leque de opressões e explorações que se acumulam na vida cotidiana destas diferentes mulheres. São exemplos destes movimentos específicos a Marcha das Margaridas91, a Marcha das Vadias92, a Marcha das Mulheres Negras93, entre outros movimentos específicos que se organizam em torno de suas questões específicas.

É importante lembrar que é a partir dos movimentos feministas que a abordagem dos conflitos e da violência – a qual permeia a relação entre homens e mulheres, em consequência de uma sociedade capitalista, patriarcal, racista e heteronormativa – tornou-se pública e tais confitos estão sendo desnaturalizados, cabendo ao Estado intervenções para assegurar os direitos das mulheres a uma vida digna e sem violência.

Ao desnaturalizar a opressão, a exploração e a subordinação das mulheres, rompe-se com o ciclo do comportamento esperado e tradicional das mulheres, cujo destino é ser mãe, esposa e dona de casa. Agora, reivindica-se o reconhecimento da igualdade de direitos entre mulheres e homens na sociedade. Uma vez que as desigualdades são construídas socialmente, também podem e devem ser desconstruídas na direção de uma sociedade emancipada. Seguindo a perspectiva de compreender as interseccionalidades94 é que iremos refletir sobre o cenário da mulher e do ser mulher no Semiárido.

4. A água e a vivência do gênero no meio rural: tradição e contradições

No debate acima vimos como as diferentes interpretações das relações de gênero demarcam lugares, papéis e funções da mulher e do homem na sociedade. Em geral, assegurando aos homens um lugar de privilégio, poder e dominação e o espaço público como lócus de sua atuação. Já as mulheres, cabe a aceitação de um destino biologizado, ou seja, “naturalmente” nascem para ser mãe, esposa e dona de casa, como herança da natureza feminina e dos ensinamentos transmitidos de geração em geração. Transpondo o que é do campo social para o campo natural e aprisionando no biológico as concepções, valores e percepções da sociedade capitalista, patriarcal, racista e heteronormativa.

Nestas condições, os homens, “senhores do espaço público”, são sociabilizados para o mundo do trabalho, da política, da economia, da cultura, da academia e da sociedade. Portanto, o homem, enquanto projeto social, não assume responsabilidades sobre o espaço da casa, seja de cozinhar, de limpar, de arrumar, de cuidar dos/as filhos/as, de frequentar reuniões escolares dos/as filhos/as ou de levar as crianças ao médico. Estas atividades domésticas, consideradas exclusivamente femininas, são ensinadas às mulheres “rainha do lar” ou “dona de casa”, a quem também cabe o cuidado com os outros/as.

Assim, a divisão sexual do trabalho relega às mulheres o mundo da reprodução, dos afazeres domésticos e os homens pertencentes ao mundo da produção, realimentando relações hierárquicas

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de poder e dominação masculinas que fundamentam o reino do patriarcado. É esta a identidade de gênero da mulher trabalhadora, que está situada subalternamente em relação ao homem (dominador) e em relação ao homem-trabalhador (trabalho valorizado).

Ante a esta lógica de construção social das relações de gênero, como está representada e é percebida a mulher – que é também uma trabalhadora rural no Semiárido brasileiro – e qual seu papel no processo de desenvolvimento deste território?

Mesmo com os avanços experimentados nas últimas décadas no Brasil, a situação das mulheres nos espaços urbanos e rurais ainda é questionável e merecedora de pesquisas e estudos aprofundados capazes de embasar ações de enfrentamento, com vistas a expurgar a injustificável desigualdade de gênero. Constata-se, em especial no Semiárido nordestino, a atuação e o protagonismo das mulheres nas ações de manejo, conservação e gestão da água. A água, enquanto um recurso natural está intimamente ligado ao cotidiano das mulheres, particularmente daquelas que vivem nos espaços rurais, as quais também são as mais vulneráveis ao fenômeno da seca95.

Neste sentido, Apesar do crescente número de estudos sobre a problemática de gênero, tem se tornado cada vez mais urgente ampliar e aprofundar o tema, principalmente no âmbito do rural onde a questão é menos abordada, comparativamente ao mundo urbano. Os estudos de gênero a partir da realidade rural têm como objetivo analisar, dentre outros, a não inclusão da mulher agricultora nas políticas de desenvolvimento rural (MELO, s/d, p.01).

É importante reforçar que as mulheres e trabalhadoras rurais do Semiárido ainda são invisibilizadas e estão à margem dos processos de decisão na sociedade, mesmo quando são as principais responsáveis pelo provimento da família, ou têm a posse da terra. Portanto, entende-se que tratar da questão de gênero no território do Semiárido é compreendê-la enquanto um processo de construção social pautado tanto na materialidade como na sua dimensão cultural. Além disso, e não menos importante, é lembrar que o enfrentamento à violência contra as mulheres que vivem no campo é um desafio urgente frente à necessidade de que as mulheres precisam ser incluídas na efetivação dos direitos humanos e como cidadãs. Por se tratar de populações que nem sempre habitam em localidades com certa densidade populacional, as informações e serviços públicos ou não chegam ou são insuficientes e precários, tornando-as mais desprotegidas em relação às mulheres que vivem nas áreas urbanas do Nordeste.

A mulher, trabalhadora rural do Semiárido, chamada de sertaneja, carrega em si quatro marcadores sociais que aprofundam as desigualdades de gênero, de raça, de classe e de localização geográfica. Ao resgatá-la, agrega-se aí outra categoria socialmente desvalorizada, subalternizada e oprimida. Ela está inserida em um território marcado por processos históricos e sociais inerentes ao contexto regional, por expressões de relações sociais e nesta as relações de poder, de identidade, de reprodução econômica e traços simbólicos e culturais que também ultrapassam a dimensão local. A discriminação de gênero no Semiárido é o resultado de um processo estruturado social, cultural e economicamente

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que produz e aprofunda o preconceito, a pobreza e o acesso limitado e desigual aos recursos naturais (GUEDES, 2007, p.20).

Neste território, formado por um conjunto de 1.262 municípios pertencentes a nove estados do Nordeste (Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Maranhão Rio Grande do Norte e Sergipe) e um do Sudeste (Minas Gerais), e com uma extensão geográfica de 1,03 milhão de km², habitam mais de 27 milhões de pessoas, destas mais de 51% são mulheres e cerca de 49% são homens. A população residente na área urbana é superior a 61,97%, e na parte rural, cerca de 38,03% (IBGE, 2010; INSA, 2017).

Em seus aspectos naturais, o Semiárido possui uma diversidade de paisagens e ambientes que, por séculos, foi difundida equivocadamente como homogênea e com pouca riqueza biológica, cujas imagens e a literatura estiveram relacionadas à paisagem desoladora, inóspita e de sofrimento. Neste vasto território, situam-se dois biomas – o Cerrado e a Caatinga, sendo este último restrito ao Brasil, é um ecossistema com vegetação e fauna adaptadas às condições climáticas. Possui, ainda, características como temperaturas relativamente altas, chuvas irregulares e distribuição desigual no tempo e no espaço, o que explica a escassez ou insuficiência de água nos seus mananciais, comprometendo o atendimento das necessidades da população.

No meio rural, predominam atividades da agricultura familiar sustentada pelos recursos naturais e dependentes das chuvas. Porém, os ciclos das secas, ao longo das décadas, acabaram acentuando a vulnerabilidade do homem e da mulher do campo e, consequentemente, a degradação ambiental e o surgimento de áreas em processo de desertificação. Soma-se a estas adversidades, questões históricas e políticas que contribuíram para que tal região acolhesse os piores indicadores sociais e econômicos do país.

Diante disso, o acesso à água passou a ter lugar central nos debates e nas políticas destinadas à região semiárida. Contudo, predominaram as grandes obras sustentadas pelo discurso do “combate à seca” e criou a chamada “indústria da seca”, beneficiando grandes proprietários de terras, em um contexto dominado pelo coronelismo. Esta realidade contribuiu para o aumento das desigualdades sociais, da concentração de renda, etc.

As realidades são diversas porque não existe um único semiárido – entendemos que existem semiáridos, mas não nos foge da cabeça que algumas situações podem ser comuns a todos. Elenco alguns aspectos: a dificuldade de fontes de acesso à água limpa e de boa qualidade; a dificuldade de acesso à terra, ocasionada pela concentração de latifúndio; a concentração de águas em função do hidronegócio; (...) as injustas desigualdades entre homens e mulheres... (ALBUQUERQUE, 2010, p. 54).

Os ciclos cada vez mais prolongados de estiagem no Nordeste e a ausência de políticas públicas eficientes e destinadas a quem dela, de fato necessitavam, gerou também o fenômeno da migração, de indivíduos e grupos de famílias, em busca de trabalho em outras regiões, com destaque para o Sul e o Sudeste do país. Enquanto isso, as mulheres sozinhas, muitas vezes sem a garantia do retorno

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do marido, assumem a gestão da família, o cuidado dos filhos/as e o cultivo da terra. Este fenômeno Albuquerque Junior (2013) chama de “as viúvas da seca”, mulheres que passaram a assumir o papel de “chefe da família”. Na medida em que este fenômeno rompe com os tradicionais papéis de gênero, a qual a mulher sertaneja, era até então colocada no lugar de responsável imediata pela reprodução social, assume, na prática, também papel central no trabalho produtivo.

No livro “A Invenção do Nordeste”, este autor fala como esta construção androcêntrica do Nordeste é iniciada ainda no começo do século XX. A imagem do coronel configura-se como a própria personificação do poder, da dominação, da opressão que se perpetuava tanto nos espaços público como privado. O que se evidencia no fato de que o coronel tem sexo, ele é o “cabra macho”, símbolo de poder e mando sobre a região. Reforçando que mesmo a mulher herdando e gerenciando as terras, sendo detentora de propriedades (pertencente à classe dominante economicamente) ela nunca se configurou como uma “coronela” ou “coronel do sexo feminino”, isso porque o que atribui este poder inesgotável ao coronel não é simplesmente a sua condição de proprietário ou gestor de um patrimônio, ou seja, dono de terras, mas também a sua condição de gênero: precisa ser homem para assumir e simbolizar o poder na região, assegurando respeito, obediência, medo e confiança, um modelo de masculinidade que foi herdada do período colonial e por este motivo visto e incorporado como natural, apesar de ter sido construído socialmente.

Sempre que acionamos a palavra “sertanejo”, “nordestino” nos conduz a uma ideia do “cabra da peste”, “cabra-forte”, “cabra-macho”, perpetuado ao longo do século XX. Assim, o homem sertanejo carrega o mito da valentia e da honra, tem a imagem do macho destemido e religioso que enfrenta as condições mais adversas. Por outro lado, este mesmo homem é vassalo, submisso e acrítico em relação à sua própria condição, não percebendo o quanto é oprimido e subalternizado pela lógica econômica, tornando-o privado de seus direitos fundamentais.

Nesta perspectiva, a mulher sertaneja também é estereotipada como um ser masculinizado e que precisa ser “mulher macho” (BARROS, 2015). Ela é “mulher macho” diante das adversidades da região, ao passo que, muitas vezes, é obrigada a caminhar e vencer longas distâncias em busca de água para diversos usos (doméstico e para os membros do grupo) e para a manutenção das plantações e criações. Ela planta, colhe, cuida dos animais, sem deixar de mão os serviços tradicionalmente femininos, com uma jornada de trabalho que tem hora para começar, mas não tem hora para terminar. Albuquerque (2010, p.55) afirma que “A jornada de trabalho doméstico, por ser contínua, é, muitas vezes, responsável por afastar as mulheres dos espaços de participação política comunitária, como associações, grupos de mulheres [...]”, além de estudar e participar de atividades de cultura e lazer.

Para Melo (2010, p.3) a mulher agricultora é quem:

[...] administra e controla a distribuição da água na casa, usada basicamente para beber, na preparação dos alimentos e na higiene pessoal da família. Também, cabe a essa mulher, controlar a água destinada aos animais do quintal, os de pequeno porte, ou as ́ miunças´ como denomina Garcia (1989), e a água para regar as plantas do quintal, onde ela cultiva pequenas

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hortas para o consumo, e plantas medicinais geralmente para produção de remédios para família.

A autora destaca ainda que:

Numa escassez ou falta de água, provocado por problemas ambientais, o trabalho da mulher aumenta, devido às dificuldades para realizar o abastecimento da casa e, também, porque a qualidade da água fica comprometida, provocando doenças que atingem principalmente as crianças, que estão sob os seus cuidados. A mulher, além de administrar internamente a água que abastece a casa, também a transporta do açude, do rio, do barreiro, da cacimba, ou da cisterna, até a casa. O transporte é feito, geralmente a pé, com a lata ou o balde na cabeça. Muitas vezes, o local de abastecimento fica distante do domicilio, e a mulher, sob o sol causticante e carregando o peso do vasilhame com a água, realiza várias viagens, durante o dia, para suprir a necessidade daqueles que residem com ela. Quando a família dispõe de transporte - carroça puxada a jumento ou boi - para carregar a água armazenada em tonéis, a mulher fica isenta de exercer esta função. O encarregado passa a ser o ‘o homem da casa’, isto é, o marido, e na sua ausência o filho, o familiar ou o agregado do sexo masculino da família. A mulher somente utiliza o transporte, na ausência desses (IDEM).

Quanto menor a disponibilidade de fontes de água, maior é a dificuldade para acessá-la, o que leva as mulheres a percorrer longas distâncias em busca deste recurso, além de ficar um tempo significativo à espera ou nas filas para acessar a água de caminhões pipa, enviados pelo governo ou comprados, sem nenhum controle sobre a qualidade desta.

Na maior parte das sociedades, é encargo da mulher a busca, manuseio e armazenamento da água para a família, a higiene, saneamento e saúde. Também são elas que detêm o conhecimento sobre a localização da água, a qualidade e métodos de armazenamento. Nas zonas semiáridas do mundo, a mulher pobre é sempre a mais atingida com a falta da água (GARCIA, 2007, p.19-20).

As mulheres rurais, do Semiárido brasileiro, ainda hoje enfrentam inúmeras adversidades, fruto das divisões sociais e sexuais do trabalho, realizam o trabalho reprodutivo e produtivo, ambos vistos como ajuda ou obrigação, mantendo-se na invisibilidade, e perante a figura masculina é vista como frágil, submissa, a quem devem obediência, respeito e fidelidade. Não participam das decisões porque isso cabe aos homens, representantes da família, conforme estabelecido pelas normas sociais. Portanto, seguem à margem das políticas públicas, seja de gestão da água ou, de modo mais amplo, da gestão do saneamento básico. Nesse sentido, pensar no desenvolvimento desse território é construir e fortalecer processos e espaços de participação e decisão equitativa dos sexos.

5. Considerações Finais

Compreender fenômenos e processos que sustentam e ao mesmo tempo particulariza o Semiárido requer olhar para além do fator climático e dos determinismos culturais e biológicos, ou seja, perceber

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também a complexidade, a diversidade e a dinâmica deste território, buscando problematizá-lo de forma crítica. Este exercício também possibilita observar potenciais e a construção de caminhos que vêm transformando o Semiárido brasileiro, ao longo da história, a partir das vivências e experiências de atores locais, valorizando aí o papel imprescindível da mulher.

Historicamente, na relação com a terra, as mulheres foram excluídas das políticas de combate à seca. É com o debate da convivência com o Semiárido que são evidenciados aspectos como o papel das mulheres no meio rural, a violência doméstica, entre outros... Apesar dos avanços, as políticas públicas hoje não conseguem dar conta da complexidade de questões as quais as mulheres trabalhadoras rurais do Semiárido vivenciam no seu cotidiano. Estamos falando de um território onde as populações rurais são difusas, os equipamentos sociais como delegacias, postos de saúde, conselho dos direitos das mulheres, centros de referência básica e especializada de assistência social, por exemplo, estão distantes a quilômetros ou sequer existem em determinados municípios da região.

Na perspectiva da convivência com o Semiárido, os debates acerca das questões ambientais, econômicas e sociais, seja em um viés científico ou popular, ou o encontro entre eles, a mulher aparece como protagonista, como sujeito, não só com papel de reprodução, mas também da produção social. Neste sentido é urgente discutir esta realidade a partir de um olhar de gênero, para assim assegurar a defesa de relações sociais mais humanas, igualitárias e a superação das desigualdades e das relações de poder, que tão fortemente configura-se como uma marca do Semiárido. Não é possível tratar tais questões de forma isolada. Existe um entrelaçamento entre elas e as políticas públicas precisam considerar e superar esta cegueira de gênero presente na academia (estudos científicos) e nas políticas públicas e sociais. As experiências socializadas e analisadas em diferentes espaços mostram que este é o caminho para se pensar e construir um Semiárido mais digno, justo, igualitário e democrático.

Pensar em desenvolvimento do Semiárido é reconhecer o papel das mulheres enquanto sujeitos, dando voz, espaço e vida, saindo assim da invisibilidade a que foram impostas. O feminismo mostra os caminhos teóricos, metodológicos e políticos para desnudar as discriminações e injustiças contra as mulheres rurais que carregam uma história pessoal e coletiva, de identidade com o Semiárido, conhecem a realidade, têm experiências, vivências e saber.

A luta por relações mais igualitárias para homens e mulheres do Semiárido passa pelo entendimento de que existe uma inter-relação entre tais relações e sociedade, cultura e natureza, com o desenvolvimento sustentável da região, na sua forma essencialmente política.

Reconhecemos as mudanças significativas na vida das mulheres no campo, mas também temos a convicção de que é preciso avançar no enfrentamento das desigualdades e da violência doméstica no campo. Não há dúvida de que existe uma dívida com as mulheres, especialmente do Semiárido, por isso se faz urgente priorizar políticas públicas que contribuam para fortalecer às mulheres, melhorando suas vidas e o bem viver de todos.

A sociedade civil tem tido papel importante e atuado como agente externo indispensável na

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superação das desigualdades de gênero, na medida em que esta questão toma valor nas suas intervenções junto às comunidades. Porém, muitos são os desafios, a exemplo da participação dos homens e lideranças locais nos debates sobre gênero, além de ampliar e fortalecer processos de formação e organização permanente das mulheres rurais, contribuindo para que elas compreendam sua condição de invisibilidade e subalternidade na estrutura patriarcal, utilizando cotidianamente os mais diferentes espaços como associações, sindicatos, cooperativas, instituições públicas e privadas, escolas, igreja, família, entre outros, e enfrentem a discriminação de gênero e raça, orientação sexual, da submissão feminina, da não representação na política, enquanto sujeitos ativos, protagonistas capazes de escrever sua própria história, bem como criar uma nova história em que mulheres e homens convivam de forma igualitária buscando superar as desigualdades econômicas e sociais que assolam as suas vidas.

Na divisão econômica, a classe trabalhadora é inferiorizada e explorada pela classe dominante; na divisão geográfica, o Semiárido é definido na imagem do “coitadinho” que sofre com a falta de água; na divisão de gênero, as mulheres ocupam a condição de meia cidadã (a qual resume sua cidadania à sua condição de esposa e mãe).

O longo processo histórico de constituição da sociedade burguesa está atrelado a outros marcadores sociais além da classe que a determina visceralmente, como por exemplo, o Gênero, o sexo, a raça/etnia, a geração entre outros. É neste processo que é construído um sujeito universal portador de direitos e privilégios frente aos outros sujeitos sociais. Justificando as desigualdades sociais, econômicas, culturais e políticas em nome do biológico, do “natural”, das ditas essências pertencentes aos diversos grupos sociais que não se enquadram no modelo universal do homem branco, ocidental, rico e heterossexual. Desta forma, a simbiose capitalismo-patriarcado-racimo constrói uma “natureza social”96, ou seja, a partir dos valores sexistas, androcêntricos, capitalistas, patriarcais e racistas se justifica e naturaliza as diversas formas de opressão e exploração (MESQUITA & MONTEIRO, 2015, p.121).

Assim, este texto é mais do que uma produção acadêmica, ele configura-se também como um espaço de militância acadêmica, a qual propõe desnudar as relações naturalizadas de um povo sofrido pela sua localização geográfica ou pela sua condição de gênero (sexo feminino) e potencializar a classe trabalhadora para seguirmos na direção da emancipação humana. O que está em jogo não é o local de nascimento ou o gênero. O que realmente define as regras deste jogo é a sociabilidade capitalista que tem em seu âmago as relações desiguais como base de sua reprodução e acumulação. Na lógica do capital o sertanejo e a sertaneja são explorados pela sua condição de classe trabalhadora, contudo o capitalismo é usurpador e não se contenta apenas com a exploração de classe, agregando outras formas de exploração e opressão como a de gênero, de raça/etnia e de localidade para assegurar mais-valia na produção de riqueza que, apesar de ser construída socialmente, é apropriada de forma individual por uma pequena parcela da população detentora dos meios de produção – a classe burguesa.

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89 No Brasil, o marco de romper formalmente com a obrigação sexual das mulheres e considera-las como cidadãs portadoras de direito de decidir se quer ou não ter relações sexuais com seu marido, companheiro, noivo e namorado é a Lei 11.340 - a Lei Maria da Penha. Coloca em seu artigo 7 a tipificação das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher: III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.90 http://www.irpaa.org/publicacoes/relatorios/relacoes-de-genero-agua-convivencia-com-o-semiarido.pdf91 A escolha do nome Marcha das Margaridas e da data é uma homenagem à Margarida Maria Alves, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, na Paraíba. Ela foi assassinada em 12 de agosto de 1983, a mando de latifundiários da região. Por mais de dez anos à frente do sindicato. Ela dizia: “É melhor morrer na luta do que morrer de fome”. A primeira Marcha das Margaridas aconteceu juntamente com a Marcha Mundial das Mulheres que, em 2000, marcharam para a capital do País.92 É um movimento que surgiu a partir de um protesto realizado no dia 3 de abril de 2011 em Toronto, no Canadá, e desde então se internacionalizou, sendo realizado em diversas partes do mundo. A Marcha das Vadias protesta contra a crença de que as mulheres que são vítimas de estupro teriam provocado a violência por seu comportamento. A primeira Marcha das Vadias no Brasil ocorreu em São Paulo, em 4 de junho de 2011.93 Trata-se de uma iniciativa de articular as mulheres negras brasileiras, organizações de mulheres negras, assim como outras organizações do movine (Movimento Negro) e de todo tipo de organização que apoie a equidade sócio-racial e de gênero; e justifica-se no fato de são 49 milhões de mulheres negras, isto é, 25% da população brasileira que vivenciam a face mais perversa do racismo e do sexismo por serem negras e mulheres.94 Kimberlé Crenshaw define a interseccionalidade como “formas de capturar as consequências da interação entre duas ou mais formas de subordinação: sexismo, racismo, patriarcalismo”. Então, a interseccionalidade tenta estudar não só o fato de ser mulher, estuda ao mesmo tempo o fato de ser negra, ser LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgênero), etc. Na verdade, segundo Kimberlé Crenshaw, frequentemente o fato de ser mulher racializada é relacionado à classe e ao gênero.95 No Semiárido brasileiro, os meses do ano sem chuvas expressivas é conhecido como período de estiagem, geralmente de junho a dezembro. Nessa época, a disponibilidade de água é bastante reduzida, restringindo-se aos aluviões e às tecnologias de armazenamento. A seca, por sua vez, é caracterizada pela sequência de vários anos com chuvas abaixo da quantidade esperada. A ausência ou insuficiência de políticas públicas, somando-se ao despreparo da população para enfrentar longos períodos de seca pode provocar graves desastres, com prejuízos sociais, econômicos e ambientais. Os setores mais prejudicados são a agropecuária e a oferta de água de boa qualidade para o consumo humano.96 Reconstruindo o pensamento de Millet (1969), afirmo que são as interpretações culturais e não as diferenças biológicas que dão corpo e vida as ideias e práticas, valorizando e significando as diferenças entres homens e mulheres e claro atribuindo poder ao sujeito universal instrumento da hegemonia burguesa.

Notas

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...E eu que fui enjeitadaSó porque era furadaMe botaram um pau na boca,

Sabão grudaram no furo,Me obrigaram a levar águaMuitas vezes pendurada,Muitas vezes num jumento.

Era aquele sofrimento,As juntas enferrujadas,

Fiquei com o fundo comido,Quando pensei que tivesse Minha batalha cumprida,Um remendo me fizeramTome madeira no fundo

E tome água e leva água,E tome água e leva água.Daí nasceu minha mágoa:O pau da boca caía,Os beiços não resistiam.

A POÉTICA DO CORPO E DA ÁGUA NO SEMIÁRIDO NORDESTINO: UMA ESCRITA DE SI

Eronides Câmara de Araújo

Me fizeram um troca-troca:Lá vem o fundo prá boca,Lá vai o pau para o fundo.Que trocado mais sem graça

Na frente de todo mundoE tome água e leva águaE tome água e leva água.

Já quase toda enfadada,Provei lavagem de porco,

Imagem disponível em https://declamaria.wordpress.com/tag/agua/

Agruras da Lata D’água, Jessier Quirino97.

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1. Introdução

No texto poético, de autoria de Jessier Quirino, uma lata d’água faz uma narrativa de sua trajetória como uma agonia de si, como uma poesia da dor, de ter sido enjeitada, furada, de estar com as juntas enferrujadas e de ter até o seu ‘fundo’ comido. É uma narrativa que trata a lata como uma pessoa, tão importante ela foi para a história do Nordeste. Ela fala, ela reclama e se cansa do trabalho exaustivo. A lata d’água, na narrativa de Jessier Quirino, reclama das invenções e das reinvenções do seu uso, pelo povo que dela precisa e tem sua trajetória como uma jornada cumprida. A lata d’água é representada como um bem cultural de um povo que sofre com a seca, pois a lata tem várias serventias.

O tempo de vida da lata, nessa narrativa, parece ser de agruras, na medida em que ela precisa equilibrar-se cheia d’água, nas cabeças de quem a carrega; ao sentir os cheiros das comidas, muitas vezes fermentadas, ao transportá-la para os suínos98; e ainda ter que usar o máximo de sua resistência para carregar a massa e o cimento para os profissionais da construção civil. De assar as castanhas retiradas do caju e torná-las um alimento saudável. Enfim, a lata ‘trabalhou em várias especialidades’, mas ficou reconhecida com a identidade de “Lata d’água”, pois faz parte da história do Nordeste, em especial, das experiências do povo das regiões do semiárido99.

Este texto discute as memórias sobre a relação ‘água’ e ‘corpo’ no Semiárido nordestino, a partir das narrativas sobre as experiências da ausência da água. Interrogo como são narradas as experiências sobre a falta d´água e sua relação com a sensualidade, na cidade de Juazeirinho100 nos anos 1960, a partir de uma experiência minha como sujeito da pesquisa.

Entro com minhas memórias e assino este texto com a preocupação de desnaturalizar valores, de provocar transformações sobre a história das mulheres e homens. São histórias vivenciadas por muitas mulheres e que são guardadas para que não tenham visibilidade. Muitas vezes por medo de estar contando histórias consideradas socialmente masculinas ou por serem negadas moralmente.

Além do mais, discutir água e corpo a partir da experiência de carregar água parece ser representado socialmente como algo depreciativo, como evento que não deveria entrar para

Aí mexeram de novo:Botaram o pau na beirada.

E assim desconchavada,Medi areia e cimento,Carreguei muito concretoMolhado duro e friento,Sofri de peitos aberto,

Levei baque, dei peitada.Me amassaram as beiradas,Cortaram minhas entranhas.

Lá fui eu assar castanha,Fui por fim escancarada.Servi de cocho de porcoServi também de latada.

Se a coisa não complica,Talvez eu seja uma bicaPela próxima invernada.E inverno é chuva, é água,E eu encherei outras latasCumprindo minha jornada

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história. São temas que são representados por estar à margem da história, mas margens que em vez de provocar suspiro, vergonha e dor, provocam coragem e desnudo.

A relação do nordestino com a falta d’água tem sido historicamente narrada como uma experiência de dor, de fome, de lamentação, de migração, do preconceito e das lágrimas que escorrem em seus rostos ao ver a terra se queimar de sede. Uma terra que faz da história, sobrevivência.

A falta de chuva, que marcou e ainda marca a história dessa região, já foi registrada em teses, dissertações, monografias, romances, pinturas, cordéis, nas novelas e também nas músicas101.

A Súplica Cearense102 é uma canção que chora a dor do sertanejo de não saber rezar direito e pedir para “ver a chuva e cair sem parar”.

Oh! DeusPerdoe esse pobre coitado

Que de joelhos rezou um bocadoPedindo pra chuva cair

Cair sem pararOh! Deus

Será que o senhor se zangouE é só por isso que o sol se arretirou

Fazendo cair toda chuva que háOh! Senhor

Pedi pro sol se esconder um pouquinhoPra ver se nascia

uma planta no chão...103

Essa poética musical acompanha a história do nordestino pela falta d’água. A letra da música é uma poesia também da angústia de não ter água ou ter água demais; de não saber lidar com as preces, de não saber pedir “pra chover de mansinho”. São narrativas poéticas que trabalham com a ausência da água, com a pouca água e em alguns momentos, com o excesso da água. Mas a água tem muitos outros poderes. De acordo com Garcia (2007, p.18), se a água:104

[...] caí como chuva, é benéfica, se salgada é estéril, se estagnada infecta, límpida atrai e mata a sede, fertiliza, salva e mata. Somos da água, e a água regressamos, viemos do líquido amniótico, a ele regredimos na imersão.

Contudo, a narrativa sobre a lata d’água pela dor me inspirou a dar-lhe um outro lugar poético:

a de ser cúmplice silenciosa do prazer e da sensualidade. Silenciosa como tem sido as memórias femininas sobre o corpo e sobre a sexualidade. Tema silencioso que precisa ser interrogado para ter vida e tornar-se história. História das mulheres do Semiárido. História do corpo das mulheres e de

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seus desejos vivenciados e armazenados, recordados, pela experiência de carregar água. A recordação afirma Larrosa (1994, p. 68)105:

[...] não é apenas a presença do passado. Não é uma pista, ou um rastro, que podemos olhar e ordenar como se observa e se ordena um álbum de fotos. A recordação implica imaginação e composição, implica um certo sentido do que somos, implica habilidade narrativa.

São singularidades que só quem teve ou tem experiências com a falta d’água valoriza cada segundo que viveu e que agora pode contá-la. Carregar a água dos mananciais para as necessidades da família foi [mas para algumas regiões ainda é, o que deve se resolver com a integração do Rio São Francisco]106 antes de tudo uma prática cultural que envolve trabalho e necessidade, mas também representou a pintura viva da ausência de uma política hídrica para os mais pobres.

Cada família, cada trabalhador do Semiárido, durante muitos anos teve de inventar a sobrevivência com pouca água, seja lavando os pratos em bacia; lavando ou mandando lavar roupa nos açudes ou riachos; seja construindo cisternas nos quintais de casa e mais do que isso, muitas vezes, tomando água salobra. De acordo com Garcia (2007, p.19-20)107:

As crises hídricas afetam a mulher ao comprometer as formas de conseguir o sustento, administrar os recursos e chefiar a família. Muitas mulheres usam a vegetação e a floresta, coletam plantas para fins medicinais, alimentação, combustível ou comércio. São elas que sofrem o maior impacto com a deterioração do meio ambiente.

Filha de uma cidade do interior nordestino e vivendo a experiência de não ter água e de conviver com pouca água, eu e meus irmãos e irmãs tivemos de carregar água para sobrevivência da família. Essa experiência era comum nos anos 1960 e 1970 do século passado na minha cidade natal. Foram experiências que marcaram minha história como nordestina do Cariri.

De modo que escrevo este texto, no sentido de fazer funcionar a narrativa sobre minhas experiências carregando água na minha cidade: Juazeirinho. Esse texto contribui para acrescentar fragmentos à história da relação do nosso povo com a água, mas também colabora para quebrar os silêncios femininos sobre o corpo, rasgando os valores depreciativos que construíram sobre ‘o carregar água na cabeça’. Carregar água na cabeça foi, por muito tempo, representado como extrema pobreza e muitas vezes, como castigo.

Pobreza porque a ausência da democratização do uso da água no Brasil só teve efeitos catastróficos para aqueles que historicamente estiveram distantes das decisões políticas. Além disso, para desviar a atenção dos jogos de interesses sobre o uso da água, criou-se uma cultura pela qual afirmava que nós, nordestinos, sofríamos com a seca como castigo ou por efeitos das questões climáticas108, enquanto a principal causa era escamoteada: a democracia do uso da água.

Carregar água das fontes para abastecer a casa foi historicamente representado como experiência da pobreza, da dor, da sede e da doença, ou a falta, como ausência de perspectiva de vida, ou seja,

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como ausência de tudo: de civilidade, de trabalho, de políticas públicas e de planejamento hídrico e até de temor a Deus.

Este texto indica um outro tipo de registro do ‘carregar água’: a de (re)memorar as astúcias da sensualidade, na relação água/corpo. Uma relação que pressupunha a obrigação e a necessidade passou a ter também outra visibilidade: a sensualidade no uso da água no Semiárido paraibano. A “[...] visibilidade é, para Foucault, apud Larrosa (1994, p. 60)109 qualquer forma de sensibilidade, qualquer dispositivo de percepção”. A visibilidade é aqui utilizada como uma sensibilidade, um modo de ver a luta pela administração da pouca água, sendo praticado também como marcador da sensualidade e do desejo.

Apresento essas narrativas sobre a lata d’água em três movimentos: primeiro apresentar o encontro da lata e o seu multiuso na bodega de meu pai110; segundo, discutir a serventia da lata d’água no lar; e terceiro, a sua trajetória da casa para o açude como testemunha das astúcias de adolescentes, nos anos 1960 do século passado, na prática educativa da sexualidade, discutindo as astucias para o uso da sensualidade, os desejos, e a vigilância sobre a preservação da honra.

2. As narrativas de uma lata d’água: da bodega para a casa

“Se nós fosse lata d’água, nós viviaempariado

Pingando pingo de amor”Jessiê Quirino

Parafraseando Jessiê Quirino no trecho da fala acima, “Se nós fosse lata d’água para pingar pingo de amor”. As latas d’águas cheias ou pela metade sempre deixam cair pingos no corpo de quem carrega, nele provocando a visibilidade da sensualidade e a provocação do desejo. Essa relação do corpo com a água, mediada pela prática de abastecer a residência com água, é uma experiência que muitas vezes é silenciada pelo fato de estar associada à sensualidade e à sexualidade feminina, representada no geral, como um tabu ou uma prática (i)moral. São situações históricas de inscrições no corpo e aprendizagem da sexualidade. Para Louro (2015, p.18)111:

A construção dos gêneros e das sexualidades dá-se através de inúmeras aprendizagens e práticas, insinua-se nas mais distintas situações, é empreendida de modo explícito ou dissimulado por um conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais.

O que indica que os corpos são verdadeiras maquinarias normatizadas por códigos e valores. Assim, a energia elétrica, por exemplo, como signo da modernidade, funcionava muitas vezes, como “braço direito” da vigília sobre o corpo, na medida em que no ‘claro’ tornava-se mais difícil de fazer funcionar a sensualidade, haja vista ser esta uma prática de provocar desejos e estar sobre o controle do Outro.

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Em algumas cidades do interior nordestino, nos anos 1960, a necessidade do povo iluminar a casa ainda ocorria com a lamparina112 e com o candeeiro, ambos movidos à querosene , pois a energia, como signo da modernidade não havia chegado à Juazeirinho . E a lata tinha muita serventia. As latas vinham das cidades maiores carregando esse combustível.

Figura 1 - Antiga rua Marechal Deodoro onde localizava-se a bodega de seu Nené. A bodega funcionava nesse prédio vizinho a casa amarela onde está a seta vermelha.

Foto de 19 de maio de 2011. Disponível em: http://www.cidade-brasil.com.br/foto-juazeirinho.html Acesso em outubro de 2015.

Na bodega de Seu Nené, encontrava-se quase de tudo para vender. Era o sabão que ainda chegava em barra; o arroz, o feijão e a farinha que chegavam em sacos e eram medidos, embrulhados e colocados nas prateleiras. Ainda havia as miudezas, a bolacha d’água e até o carvão. Vendia-se no litro e na cuia, pois ainda não havia chegado as práticas modernas de medir com as balanças. Tinha gente que comprava ‘fiado’ e anotado na caderneta e, tinha gente que comprava a dinheiro, pois na época não havia o sistema de cartão de crédito.

A lata tinha um papel importante na bodega e na vida cultural da comunidade, pela experiência da falta d’água. Quando a lata com o querosene esvaziava, muitas delas eram vendidas, outras eram presenteadas aos clientes. Todas tinham muitas utilidades. Depois de bem lavadas, nelas se guardavam o feijão e o milho115 para armazenar, pois não havia certeza se teríamos ou não chuvas no próximo ano para o plantio. Era uma forma de acumular e preservar a colheita, caso houvesse

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um período de seca, já que a estiagem acontecia com muita frequência e não havia um projeto de resolver as crises hídricas.

Outras eram reaproveitadas com o fabrico manual de ‘caneca d’água’, ou pequenos baldes para serem vendidos nas feiras. Essa era uma experiência muito comum nas pequenas cidades do interior do Nordeste.

Mas havia algumas latas que iam para as residências da comunidade com a incumbência de encher os potes ou o tambor com água. Em muitas casas, a cisterna era construída no quintal e abastecida pelo próprio proprietário das casas. Hoje existe o projeto ‘Um Milhão de Cisternas’, o que tem contribuído para democratização da água116. Um dos problemas do uso da água em tempo de seca no Semiárido era aquele que se destinava ao consumo da família que, em geral, era uma atividade reservada à mulher, tanto na zona rural, como nas pequenas cidades interiorana. Segundo Melo (2015, p.8)117:

Este problema é mais de perto enfrentado pela mulher por ser a responsável pelas atividades concernentes ao espaço da casa e aos seus familiares. Assim, é a mulher quem administra e controla a distribuição da água na casa, usada basicamente para beber, na preparação dos alimentos e na higiene pessoal da família. Ela também controla a água destinada aos animais do quintal, os de pequeno porte ou as “miunças” como denomina Garcia (1989) e a água para regar as plantas do quintal, onde são cultivadas pequenas hortas para o consumo e plantas medicinais, atividades que estão também sob sua responsabilidade.

A questão de responsabilizar a mulher pela administração da água na casa reflete a divisão cultural dos papéis construídos a partir do gênero, que por sua vez também distribuía aos filhos e filhas. Compreendo gênero como uma marca cultural construída historicamente e enfocada pela linguagem “[...] como lócus de produção das relações que a cultura estabelece entre corpo, sujeito e poder (MEYER, 2007, p.16)118.

Havia algumas atividades que eram atribuídas aos homens, como ajudar o pai no roçado, enquanto as mulheres ficavam encarregadas de levar a marmita, já que o roçado do meu pai era muito próximo à cidade. Eram marmitas preparadas em louça (branca) de aguida e amarradas com um pano de prato, no qual se fazia um nó folgado, para servir de suporte a ser segurado pelas mãos. A água também era usada na minha casa para auxiliar na criação de animais. Minha mãe criava galinhas e porcos. Desse modo, ela dava às mulheres, a incumbência de pegar água no açude.

O movimento das latas era o de sair da bodega para as residências, com a possibilidade de que esse objeto transitasse por outras necessidades do povo, como a falta d’água. As latas já tinham um roteiro certo: circular pelas ruas de Juazeirinho, já que o açude, o qual abastecia a cidade, pelo transporte da lata d’água, estava situado dentro da cidade e se chamava popularmente ‘açude da rua’119.

Nos anos 1960, o açude abastecia a cidade pelas suas necessidades mais vitais, pois não havia água encanada e nesse sentido a água do açude servia para lavar pratos, lavar quintal e banheiros, e dependendo da seca, até servia para cozinhar. A água para beber se comprava nas portas às pessoas que traziam de outros mananciais em ancoretas, em geral, carregadas por jumentos.

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Na atualidade o Açude da Rua,

[...] recebe toda a mistura de água pluvial e esgoto lançados no seu afluente através da rede de drenagem do município, já o seu efluente escoa até desaguar no Riacho Juazeiro, esse açude funciona também como regulador de vazão, se torna um dos grandes indicadores da poluição que é lançada no açude Mucutu (IDEM, p.274).

O que significa que o Açude da Rua não é mais usado para uso das famílias e nem é mais necessário carregar água desse manancial, pois a cidade de Juazeirinho passou a receber água tratada do Açude Epitácio Pessoa, conhecido popularmente como açude de Boqueirão, uma alusão ao município onde ele está situado120.

Foi no cenário da ausência de água tratada e de falta de energia elétrica que os pingos d’água derrubados pelo balanço do carregar água aflorava a sensualidade e a relação com o corpo. Carregar água como uma exigência da mão de obra feminina para suprir as necessidades hídricas da família, misturava-se com o cuidado que deveria se ter com a honra.

As ‘meninas moças’ com seus vestidos tubinhos121 e com uma lata na cabeça eram observadas pelos olhares dos rapazes que ficavam à margem do açude. Alguns também carregando água em

Foto tirada em 5 janeiro de 2010. Disponível em: http://www.cidade-brasil.com.br/foto- juazeirinho.html Acesso em: outubro de 2015.

Figura 2 - “Açude da Rua”.

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ancoretas nos lombos dos burros e outros rapazes, em carroças de mão; outros, ainda, iam para margem do açude para, com o olhar, visualizar cada gesto feminino ao usar a lata d’água na cabeça. Para Foucault apud Larrosa (1994, p, 60) “[...] a visibilidade é qualquer forma de sensibilidade, qualquer dispositivo de percepção”. Essa prática era uma mistura de necessidade de acesso à água com o de sentir e conhecer o aflorar da sensualidade. Eram práticas silenciosas que marcaram a história de mulheres e de homens, na construção das inscrições dos corpos. História de prazer e da libido. História proibida e desejante. História das margens desviantes.

3. A casa, a água, o corpo e a honra: cheiros, gestos e cor

“A moça molhada era branca na água e a água, toda em chamas”122

Quando minhas lembranças me levam para minha casa no Cariri nos anos 1960, muitas imagens, cheiros e cores veem à superfície: o cheiro da carne de sol assando no fogão a carvão, para ser servida com arroz de leite e batata doce; a carne de bode para ser servida com feijão verde e jerimum caboclo. O pote de barro, ao lado da pia, coberto com um pano de saco bem branquinho e amarrado com uma fita de borracha. No quintal, uma bica que estava pronta pra receber as águas do céu e encher a cisterna e trazer alegria para o Semiárido. Quando a chuva chegava, era recebida com festa, contaminada pelo cheiro da terra molhada; pela farra que as crianças faziam catando tanajura no meio da rua; tomando banho nas bicas que, muitas vezes, derramavam água nas calçadas. Eram meninos, meninas adolescentes, senhoras, enfim, era a festa da democracia provocada pela água que chegava na região.

Carregar água para suprir os gastos da família era uma experiência cotidiana. O dia amanhecia e o galo acordava todos os membros da casa. Era o cotidiano de cidade pequena do Cariri. No nosso quintal, minha mãe criava galinhas e até porcos. As galinhas eram para ajudar na dieta da família. Aos domingos, ela matava uma galinha e com feijão verde e pirão servia a mesa. Os porcos eram para ajudar no orçamento familiar, para comprar nossas roupas de final de ano e também o material escolar.

Nos meses de junho e julho, meu pai comprava o peru do natal e minha mãe cotidianamente dava-lhe comida pelo bico para engordar; era o que, no Cariri, a gente chamava de ‘cevar ou engordar o peru para o natal’. Eram as práticas domésticas que ajudavam no orçamento familiar e, de certa forma, uma herança do lugar de origem, já que meus pais trabalharam muito tempo na agricultura, mas eram atividades que necessitam de água para higiene e matar a sede dos animais.

Na minha casa havia um papagaio, que em um exercício, de um lado para outro na gaiola, dizia: “D. Toinha, quero café”, ao que lhe respondiam: “Quer café meu louro”? Se alguém batesse no portão que ficava no quintal da casa, ele dizia: “Quem é?” Eram as repetições que ele ouvia no dia-a-dia da casa e que ele aprendia a demonstrar seu afeto com a família, fazendo parte do meu acordar

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para ir para o açude. Todos acordavam e cada um membro da família tinha uma tarefa a cumprir. Meu pai tinha um

pequeno roçado próximo à cidade e levava com ele um de meus irmãos para ajudá-lo. Um dos irmãos gêmeos ia trabalhar na mercearia. Minha tarefa era encher os potes, o tambor e tudo quanto fosse de vasilha para auxiliar nas atividades da casa. São imagens construídas com saudades de uma infância de muitas histórias.

Todas essas histórias eram produzidas com uma educação do corpo pelo qual havia uma nítida diferenciação de gênero. As moças não podiam falar de sexo, aliás não podiam falar de nada que dissesse respeito ao seu corpo. Até as conversas sobre menstruação eram proibidas de falar na frente de crianças e adolescentes. De modo que, nos anos 1960, falar sobre sensualidade e corpo, para uma mulher, fazia parte do mundo silencioso do desejo.

Na educação de gênero, a mulher deveria carregar no corpo a honra da família. A honra era representada pela virgindade, a qual representava o valor da decência e do respeito, não só para ela, mas para o pai e toda a família. A sensualidade era considerada aquela que ‘atiçava a honra’, ou seja, provocava a desonra. Segundo Pitt-Riveres (1965, p. 33-34)123, a honra de um homem está “[...] ligada à pureza sexual de sua mãe, de sua mulher, filhos, e irmãs, mas não à sua”.

Se a sensualidade atiçava a honra, é justo lembrar uma experiência de ciúmes e sensualidade que aconteceu na minha casa. Havia uma senhora que esporadicamente ajudava na cozinha em troca de alguns trocados e de comida para levar para os filhos. Ela morava em um sitio próximo. Quando essa senhora lavava a louça e ia buscar os alimentos na mercearia de meu pai para levar para os filhos, colocava um batom vermelho e ascendia um cigarro; o que era reprovado pela minha mãe, pois estava associado às práticas de sensualidade, ou seja, de provocação e desejo para conquistar meu pai. Ela dizia: “além de botar os beiços encarnados, ainda jogava baforadas de cigarro em seu pai.”.

Se a mulher deveria cumprir esse papel de retraída e honrada, a prática de carregar água não deixava, pois [...] “A água e a mulher juntas trazem um simbolismo erótico” (FERREIRA, 2008, p. 43) 124. De modo que a sensualidade estava associada ao corpo e ao desejo, experiência também vivida carregando a lata d’água. Segundo Ferreira (2008, p.27):

Tudo aquilo que está ligado ou mexe com os sentidos constela um aspecto sensual. O contato da água com o corpo ou o calor do sol que aquece pode ser erótico, provoca a sensualidade, provoca os sentidos.

Eu tomava meu café. Vestia um vestido, pois meu pai não queria que usasse calça cumprida, pois marcava o corpo e chamava a atenção dos rapazes. Era outra forma de inscrever códigos no corpo. O corpo desejante deveria ser protegido. Ele poderia macular a honra. Eu colocava uma rodilha de pano na cabeça e seguia em direção ao açude. Muita gente na cidade fazia essa rotina. Alguns rapazes iam buscar água e aproveitava para tomar banho, prática que eu não podia fazer. Minha mãe dizia: “se entrar no açude e tomar banho leva uma surra grande”. E eu tinha medo, mas tinha muita

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vontade de fazer essa astúcia. Com uma pequena cuia125, botava água na lata, mas não enchia até à borda para não molhar

a roupa e a sensualidade transparecer, na medida em que o corpo e água se misturassem. Mas o caminho do açude até minha casa não era tão plano. Era um terreno com certa inclinação e com a presença de seixos contribuindo para que os passos não fossem suaves, o que facilitava que os pingos d’a água molhasse a roupa.

E era com esse tipo de sensualidade que eu atraia olhares e quando chegava em casa, mais sermões por conta da roupa molhada. A sensação era de ser olhada, cortejada e desejada pelo o olhar do Outro. Este exercício cotidiano me levava a praticar algumas astúcias, entre elas, a de fazer um furo com um prego muito pequeno na lata para ela molhar minha roupa e mostrar a silhueta do meu corpo. Minha mãe achava que o furo na lata era provocado pelas pedras que ficavam à margem do açude, onde eu botava a lata para enchê-la e tomava providências para tapar o buraco com um pedaço de sabão. Coisas do interior, coisas que se diziam e se fazem ainda no Semiárido nordestino.

Outras experiências singulares aconteciam na busca da água. Havia moças que até batom usavam para ir buscar água no açude. Era uma mistura de beleza, sensualidade que a água estimulava. Contudo essas práticas eram consideradas, pela normatização social, uma afronta à preservação da honra. A honra, como valor simbólico pertencente ao masculino, deveria ser carregada pela mulher em seu corpo e precisava ser ‘salvo-guardada’. Essas práticas tinham um significado de provocação à honradez de uma mulher, o que poderia ser a mulher considerada “fácil’ ou desonrada.

Outras lembranças que se referem ao corpo e a sensualidade remetem às dos banhos em casa. A divisão do quintal da minha casa para com a do vizinho, que tinha filhos adolescentes, era através de um muro de mais ou menos um metro e sessenta de altura. A bica vinha do telhado para cisterna e em frente ao banheiro havia pequenos buracos no muro para encaixar a bica e desviar a água para cisterna. Os banheiros nas cidades do interior nesse período, em muitas casas, ainda eram construídos nos quintais e não no interior da residência.

Na minha casa, o local para tomar banho ficava em frente ao buraco da bica. Como não havia água encanada, tomávamos banho de cuia, prática comum com a experiência de escassez da água. O banheiro não tinha porta e a preservação da intimidade era feita através de uma cortina transparente, mas opaca, que evitava a visibilidade nítida do corpo, o que não impedia às práticas de voyeur, pelos meninos vizinhos. Era uma outra forma da relação com o corpo e do desejo vivenciado, dessa feita pelo masculino, como exercício da masculinidade hegemônica. Para Silva (2000, p.10)126 são práticas pedagogizadas para que se: “[...] consolidasse uma masculinidade e uma virilidade hegemônica comum a todos os homens”.

Por outro lado, o banho, a sensualidade e o corpo, historicamente têm sido parceiros na descoberta do prazer feminino. Nós mulheres, em geral, fomos educadas a não exercitar o prazer sexual, ou seja, não nos masturbarmos. Essa experiência era representada como prática comum aos homens. Entretanto, a água em sintonia com o corpo, pela prática do banho, ajudava nesse

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exercício. Desse modo, além dos atributos de higienização, a água e o banho sempre foram parceiros da sensualidade e da sexualidade.

4. Considerações Finais

Se na cultura do Semiárido, tivemos a estiagem como um problema, as necessidades de resolvê-la, nos encaminhou para diversas práticas educativas, entre elas, carregar a água na cabeça e viver a sensualidade e o desejo. A normatividade e o controle do corpo não impediram que algumas táticas fossem usadas pelas mulheres como uma reação à educação de gênero.

Viver no Semiárido foi, por muitas vezes, representado como ir de encontro à margem do não dito, do silêncio. Carregar água na cabeça e construir práticas de desejo foi buscar nas memórias astúcias de adolescentes. Meninas-moças que eram proibidas de fazer quase tudo para salvarguardar a honra da família, e em especial a do homem, na figura do pai. Educação de gênero que não entendíamos o sentido. Eram tantas proibições que, muitas vezes, sonhávamos um dia em ser homem.

São histórias gestadas no Semiárido, na relação com a água e que devem estar guardadas e silenciadas por muitas mulheres, pelo mesmo motivo que vêm de 40 ou 50 anos atrás: as mulheres não devem falar sobre sexualidade. É nessa construção de uma história, que a poética das águas, com a sensualidade do corpo, emergiu em mim uma escrita de si.

97 Jessier Quirino, Arquiteto por profissão, poeta por vocação, matuto por convicção. Apareceu na Folhinha no ano de 1954, na cidade de Campina Grande, Paraíba. É filho adotivo de Itabaiana, Paraíba, onde reside desde 1983. Cf. http://www.letras.com.br/#!biografia/jessier-quirino Acesso em: 12 de dezembro de 2015.98 Este tipo de dieta na atualidade é condenada pela saúde pública, pois o animal pode contrair verminoses ou outras doença e até morrer.99 O espaço geográfico do semiárido brasileiro foi redefinido em 2017 pelo Ministério da integração, e atualmente a região ocupa uma área de mais de 1 milhão de Km², constituída por 1.262 municípios de 9 estados do Nordeste (Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piaui, Sergipe, Maranhão, Rio Grande do Norte) e 1 do Sudeste (Minas Gerais). Sua população chega a mais de 27 milhões de habitantes. 100 O município de Juazeirinho localiza-se na região central-norte do Estado da Paraíba, Meso-Região Borborema e Micro-Região Seridó Oriental Paraibano e está distante da capital João Pessoa cerca de 224 km, sendo seu acesso efetuado através das rodovias pavimentadas (boa parte duplicada) BR-230. Cf. RELATÓRIO DE DIAGNÓSTICO TÉCNICO-PARTICIPATIVO PARA ELABORAÇÃO DO PLANO MUNICIPAL DE SANEAMENTO BÁSICO DE JUAZEIRINHO/PB. PREFEITURA MUNICIPAL DE JUAZEIRINHO. Agosto de 2015. Disponível em: http://juazeirinho.pb.gov.br/site/wp-content/uploads/2015/02/Produto-C-juazeirinho-FINAL.pdf Acesso em: novembro de 2015.101 Cf. por exemplo, o livro ‘Vidas Secas’ de Graciliano Ramos que virou filme; cf. A obra “Os retirantes” de Portinari; cf. a obra de Albuquerque Jr. “A invenção do Nordeste e outras artes”, entre tantas outras.102A ‘Suplica Cearense é de autoria do cantor baiano Waldeck Artur de Macedo, conhecido como Gordurinha, em parceria com o compositor Nelinho.103 Trecho da letra da música “Suplica Cearense”104 Garcia, Loreley. Água em três movimentos: sobre mitos, imaginário e o papel da mulher no manejo das águas. Gaia Scientia 2007, 1(1): 17-23. Disponível em: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/gaia/article/viewFile/2224/1952 Acesso em 12 de janeiro 2016.105 Larrosa, Jorge. Tecnologias do Eu e educação. In: O sujeito da educação. Estudos Foucaultianos. Tomaz Tadeu da silva (Org).-Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

Notas

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106 “O Projeto de Integração do Rio São Francisco (PISF) é a maior obra de infraestrutura hídrica do País, dentro da Política Nacional de Recursos Hídricos. Com 477 quilômetros de extensão em dois eixos (Leste e Norte), o empreendimento vai garantir a segurança hídrica de 12 milhões de pessoas em 390 municípios nos estados de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, onde a estiagem é frequente”. Disponível em: http://www.mi.gov.br/projeto-sao-francisco Acesso em: janeiro de 2015.107 Garcia, Loreley (2007).108 Para desconstrução dessas afirmativas vejam a dissertação de Mestrado de Albuquerque Junior, Durval Muniz de. “Falas de astucias e de angustias: a seca no imaginário nordestino- de problema a solução” (1877-1922) 1988- UNICAMP- Campinas -São Paulo disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000017925 Disponível em: novembro de 2015.109Larrosa, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos. 5. Ed. Petrópolis: Vozes, 1994. 110“Bodega era [...] um estabelecimento comercial onde era vendido de tudo (MELO, s/d, p. 03).111Louro, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas Guacira Lopes LouroPro-Posições, v. 19, n. 2 (56) - maio/ago. 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pp/v19n2/a03v19n2 Acesso em: 14 de novembro de 2015.112 Objeto de alumínio ou de lata reciclável: “Pequena lâmpada que fornece luz de pouca intensidade, composta de um reservatório para líquido combustível (azeite, querosene etc.) no qual se mergulha um pavio que traspassa uma pequena rodela de madeira e se acende na outra extremidade; griseta, luminária”.113“O querosene é um líquido fino e claro formado a partir de hidrocarbonetos. Obtém-se querosene por meio da destilação fracionada do petróleo entre 150° C e 275° C, resultando em uma mistura de cadeias de carbono contendo em torno de 12 a 15 átomos de carbono”. Disponível em: http://www.infoescola.com/quimica/querosene/ Acesso em: 30 de outubro de 2015. 114 Em algumas cidades era comum ter energia a motor.115 O feijão e milho que era comercializado na bodega, em parte, vinha do roçado de seu Nené.116 Nos últimos 12 anos o Projeto um Milhão de Cisternas do Governo Federal ganhou o Prêmio Seed 2009. “Hoje, 290 mil famílias nordestinas e mineiras se preocupam muito menos do que antes com um problema bem conhecido no semi-árido brasileiro — a falta de água. Elas foram contempladas pelo programa “1 Milhão de Cisternas”, que já beneficiou cerca de 1,5 milhão de pessoas nos estados Maranhão, Ceará, Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais”. Disponível em: http://rts.ibict.br/noticias/destaque-1/projeto-1-milhao-de-cisternas-ganha-premio-internacional/ Acesso em: agosto de 2015.117 Melo, Lígia Albuquerque de. Relações de Gênero na Convivência com o Semi-Árido Brasileiro: a Água para o Consumo Doméstico. Disponível em: http://www.fundaj.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1126%3Arelacoes-de-genero-na-convivencia-com-o-semi-arido-brasileiro-a-agua-para-o-consumo-domestico-&catid=75&Itemid=717 Acesso em: 10 de novembro de 2015.118 Meyer, Dagmar Estermann. Gênero e educação: teoria e política In: Corpo, Gênero e sexualidade. Um debate contemporâneo. Guacira Lopes Louro, Jane Felipe, Silvana Vilodre Goellner (organizadoras). 3. Ed.- Petrópolis, Vozes, 2007.119 O município de Juazeirinho encontra-se inserido nos domínios da bacia hidrográfica do rio Paraíba, sub-bacia do rio Taperoá. Os principais tributários são os riachos: Cafundó, Lagamar, Seridozinho, do Mulungu, do Defunto, da Ilha, Mucutu, do Mendonça, Juazeiro, Serrote Branco, da Aroeira, da Pendência, das Vertentes, Carimboque, das Bestas e Pedra Comprida. O principal corpo de acumulação é o açude Caraibeira. Todos os cursos d’água do município têm regime de fluxo intermitente e o padrão da drenagem é do tipo dendrítico. Cf. Projeto Cadastro de Fontes de Abastecimento por Água Subterrânea Estado da Paraíba-Ministério de Minas e Energia Secretaria de Planejamento - Recife Setembro/2005.120“O açude Epitácio Pessoa está localizado na Sub-bacia do Alto Paraíba, essa região situa-se na parte sudoeste do Planalto da Borborema, conforma-se sob as latitudes 7º20’45” e 8º26’21” Sul e entre as longitudes 36º7’36” e 37º21’15” a Oeste de Greenwich”. Cf. 121Eram modelos usados nos anos 60 do século XX que tinham cortes que acompanhavam a silhueta do corpo feminino. 122 Trecho da poesia “Cacida da Moça Molhada” de Federico Garcia Lorca, 2002.123 Pitt-Rivers. Honra e posição social In: Honra e vergonha: valores das sociedades mediterrâneas. PERISTIANY, J. G. (org). Tradução e prefácio de José Cutileiro. Fundação CaulousteGulbenkian Lisboa, 2ª ed. 1965. 124 Ferreira, Lidiane Maria, 1982- A presença da água e do elemento erótico na poesia de Frederico García Lorca / Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduacão em Letras. Universidade Federal de Uberlândia, 2008 Disponível em:http://penelope.dr.ufu.br/bitstream/123456789/1941/1/Presen%C3%A7a%C3%81guaElemento.pdf Acesso em: 11 de Outubro de 2015.125“Vaso feito do fruto maduro da cuieira, depois de esvaziado do miolo. Uma espécie de concha utilizada para diversas aplicações,

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EDUCAÇÃO CONTEXTUALIZADA E RECURSOS HÍDRICOS

Edmerson dos Santos Reis

Antes mesmo de estabelecermos uma relação direta entre a educação e recursos hídricos no Semiárido, é importante entender que um dos grandes desafios que estão postos primeiramente aos poderes públicos e, consequentemente, às instituições da sociedade civil, organizada e comprometida com a garantia daquilo que vem sendo chamado de desenvolvimento humano, é precisamente a conquista de uma melhor qualidade de vida para população, aliada à diminuição das desigualdades sociais, linha de base para pensarmos a sustentabilidade na globalidade das ações do Estado, pois sabemos que quanto mais adentramos aos espaços rurais brasileiros e aos sertões semiáridos, mais se configuram as necessidades sociais e o abandono por parte das políticas públicas, as quais constituíram uma proposta de desenvolvimento nacional excludente, centradas no sul-sudeste, desconsiderando todo o restante do país.

O Sertão semiárido brasileiro tem como traço principal as frequentes secas causadas pela irregularidade das chuvas e não sua inexistência, como alguns chegam de forma exageradamente a afirmar. As características do meio ambiente condicionam fortemente a sociedade do Semiárido, que vive principalmente de atividades econômicas ligadas basicamente à agricultura e à pecuária. Em março de 2005, com a atual delimitação definida pelo Governo brasileiro, a região do Semiárido brasileiro teve sua abrangência expandida e atualmente é composta por 1.262 (mil cento e trinta e cinco) municípios em uma área de mais de 1 milhão de km2. A vegetação predominante é a caatinga, rica em espécies vegetais que não existem em nenhum outro lugar do planeta, base de estudos por parte de várias instituições de pesquisas, que vêm identificando as suas propriedades e potencialidades para o uso em cosméticos, medicina, entre outros.

Segundo os dados divulgados pelo IBGE127 (2010), referentes ao censo, no conjunto de municípios do Semiárido brasileiro, percebe-se que a proporção de pessoas de 0 a 14 anos de idade (27,1%) é um pouco mais elevada do que no conjunto de todos os municípios das Unidades da Federação que englobam o Semiárido (24,9%). A exceção entre os dois grupos se faz em Minas Gerais onde a proporção de crianças e jovens nos municípios que pertencem ao semiárido é de 27,3%, enquanto para o total de municípios do estado atinge 22,4%. Assim, na comparação entre os dois grupos, o Semiárido apresenta uma população mais jovem, para a qual é imprescindível a definição de políticas públicas includentes desse estrato populacional, tão importante à construção de uma sociedade mais equânime, que muitas vezes tem sido deixada de lado.

Quando buscamos analisar a taxa de analfabetismo entre as pessoas de 15 anos ou mais de idade, na região do Semiárido, percebemos que esta se faz bem mais elevada do que a média obtida para o país (9,6%). No período intercensitário 2000/2010, houve uma redução desta taxa de 32,6%

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para 24,3%. Entre os analfabetos residentes nesta região, 65% são pessoas maiores de 60 anos de idade.

Desperta-nos ainda mais a atenção à proporção de crianças de 10 anos de idade presentes neste território que não sabem ler e escrever (6,5%), revelando a existência de um atraso que se destaca no ingresso no ensino fundamental ou também a má qualidade do ensino ofertado. Contudo, ao fazer uma comparação com os dados do Censo de 2000, verificamos uma redução proporcionalmente significativa nesses dados, visto que tal taxa alcançava 11,4%.

O panorama acima descrito nos traz elementos fundamentais para pensarmos a educação no seu sentido mais amplo e especificamente aquela que vem sendo ofertada no Semiárido brasileiro, pois quando extraímos desses dados as informações referentes às capitais e às cidades de médio porte, inclusive as localizadas no Nordeste brasileiro, é no Semiárido, nas periferias e no campo onde se concentram a maioria desses números, representando grande parte da nossa população que ficou na zona rural, sem acesso aos serviços básicos com qualidade (educação, saúde, lazer, cultura, transporte, saneamento e geração de emprego e renda), salvo raras exceções e os avanços mais recentes com implementação de governos populares, a partir de 2004.

Nesse sentido, pensarmos a construção da sustentabilidade do Sertão semiárido passa necessariamente por entendermos e traçarmos metas e objetivos a serem alcançados que permitam se cumprir no dia-a-dia o significado de um antigo provérbio que diz: “a natureza da qual tiramos o nosso sustento hoje, não nos pertence, pois tomamo-la emprestada dos nossos netos, bisnetos”. Aqui vale lembrar outra premissa, baseada neste mesmo provérbio, que está na base da promessa do desenvolvimento sustentável como “aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades”128

(UNESCO, 1992, p.15). Dentro deste enfoque, ao se pensar um projeto de sustentabilidade para o Sertão semiárido que

não repita os males e práticas ainda existentes e que possa amenizar os danos causados ao planeta terra no decorrer da história e resultado das promessas não cumpridas definidas pelo capitalismo, temos que colocar – acima de tudo e principalmente – o Ser Humano, o Ambiente e a Sociedade, pois só assim poderemos atingir os outros aspectos que permeiam todos esses (o social, ambiental, econômico, político, institucional, tecnológico e o cultural), utilizando-os como referenciais e pontos de partida, já que são as ferramentas e elementos necessários que devem ser considerados na construção de qualquer estratégia de sustentabilidade que sirva para todas as gerações e não apenas para que as atuais usufruam dos seus frutos, mas que estes também sejam garantidos aos que ainda estão por vir, possibilitando assim a continuidade dos recursos naturais disponíveis e, consequentemente, da vida em nosso planeta.

Nessa linha de pensamento, urge a necessidade de desenvolvermos uma nova postura no que diz respeito à natureza, em que a relação Ser Humano – Ambiente deve ser realizada de maneira a se ter sempre como meta a compreensão dos limites de suporte de cada um e as possibilidades de

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sustentabilidade entre ambos, não apenas se restringindo ao momento, às necessidades urgentes, ao local, etc., mas ao futuro, e à escassez dos recursos, principalmente os esgotáveis e vendo o meio como um grande sistema que não se esgota apenas em si mesmo, no local, mas que reflete num todo, que é o nosso planeta.

A luta pela construção de uma mentalidade voltada para o respeito à natureza e a garantia da qualidade de vida não deve encerrar-se apenas nos movimentos e organizações ecológicas e ambientalistas, mas exige-se um pacto mais que urgente e necessário com a sociedade contemporânea, da nossa atualidade, uma vez que o mundo social, com todas as suas instituições e consequentemente atribuições concretizam em si um papel por demais importante e que de fato deve ser cumprido: o de formar uma mentalidade hoje, aqui e agora comprometida com os caminhos do futuro (os homens, mulheres, crianças, jovens e adultos) que, com exemplos claros e práticos, através da família, da escola, dos grupos formais e informais a que tenha acesso na sociedade atual, comece desde já a construir as bases da sociedade sustentável do futuro.

Para uma nova perspectiva de sustentabilidade ou de construção do bem viver ou bom viver, como bem colocam os povos indígenas da América Latina, é mister que sejam considerados no seu bojo e como elementos fundantes da sua construção os aspectos político, econômico, institucional, tecnológico e cultural que permeiam a sociedade como um todo, e não apenas alguns centros privilegiados que se sentem no direito de decidir pelos demais, sendo a mesma partícipe de todo o seu processo de idealização, elaboração e execução, pois é a partir da compreensão da ligação existente entre cada um desses aspectos que poderemos traçar, esboçar e colocar em prática uma sociedade com olhares para a atualidade e voltada para o futuro que não desconsidera as relações mais amplas as quais nos ligam ao emaranhado que constitui as diversas realidades sociais e culturais existentes em nosso país e que garantem ao mesmo tempo a diversidade, a pluralidade e a singularidade identificadas nas diversas comunidades existentes, tão diversas e tão singulares.

Se a Escola passa a ser entendida como uma instituição por demais importante para a superação das desigualdades, ela não pode ser isolada do processo de construção de uma outra sustentabilidade, já que ela encontra-se intrinsecamente ligada aos mais diversos contrastes existentes na sociedade, e até por ser fruto dela, deve comprometer-se com a formação dos seus alunos e alunas dentro de uma lógica de compreensão do espaço em que se encontram enquanto sistema, na perspectiva da complexidade como diz Edgar Morin129, onde “... a ordem se alimenta da desordem para a sua própria organização, sem nunca esgotá-la totalmente, é, isso mesmo o sinal, o índice, da complexidade...”.

Entendemos que a educação, assim como a economia, a saúde, as relações sociais, o papel desempenhado pelas instituições diversas e as tecnologias utilizadas em um país, nascem das decisões políticas que norteiam os destinos de uma nação, sendo então mais que necessária uma mudança de mentalidade dos que compõem esta parte da sociedade para que, só então, se possa desenvolver uma nova cultura: a cultura da ecologia humana, das relações humanas, do ambiente preservado, da educação ambiental, do respeito aos limites da natureza e do planeta, da convivência harmônica

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do homem com a natureza, da criação de tecnologias não agressivas ao meio ambiente, da mudança de hábitos ecologicamente errados e usados pela população, da possibilidade de se desenvolver uma boa qualidade de vida para todos, fazendo o uso ecologicamente das nossas potencialidades locais, criando e aproveitando as oportunidades que nos são dadas, defendendo-nos das ameaças, evitando os abusos do capital, exercendo a plenitude da cidadania e, enfim, desfrutando dos bens nascidos do esforço e vontade de se construir o novo que vem a ser uma educação sustentável para um Sertão semiárido capaz de se viver bem e com dignidade. Aqui, a escola é porta voz da descolonização dos saberes e das mentalidades, do currículo, das culturas e dos territórios nos quais se encontra inserida, tendo na contextualização do saberes e conhecimentos diversos os seus principais focos.

Sendo assim, o princípio da convivência com o ambiente, com os outros, com os nossos e conosco inaugura um novo paradigma através do qual se acredita que, a partir de uma nova compreensão do mundo, do desenvolvimento de novas relações éticas, estéticas, produtivas, culturais, econômicas, políticas, de gênero, que levem sempre em consideração as reais condições de suporte dos fios que se tecem na teia da vida, será possível garantir concretamente os velhos ditados que dizem que “o que nós somos é consequência do que pensamos” e “tudo o que a natureza nos oferece nem nos pertence, nem herdamos dos nossos antepassados, mas tomamos de empréstimo às futuras gerações”.

Filiando-se às premissas expressas anteriormente, a Educação Contextualizada para a convivência com o Semiárido Brasileiro (ECSAB) se insere na perspectiva de compreensão dos processos formativos imbricados nas múltiplas dimensões das realidades, nas quais as pessoas existem e a escola assume papel fundamental na formação de todas as gerações que a ela têm acesso, qualificando as pessoas para uma inserção mais crítica e autônoma na sociedade em que se vive, contribuindo, decisivamente, para o fortalecimento do humano na sua compreensão mais ampla, que perpassa pelo direito a vida com dignidade e a sustentabilidade dos territórios nos quais habitam. Nessa linha de pensamento, a realização dessa proposta passa, necessariamente, pela compreensão de que outra alternativa de política educacional é possível, como é possível tornar cada vez mais contextualizadas as práticas pedagógicas que, cotidianamente, estão presentes nas escolas brasileiras, destacando-se aqui, principalmente, a região do Semiárido. É a partir dessa região complexa, singular e plural que nos propomos defender a contextualização dos processos educativos, pautados a partir da Convivência com o Semiárido.

A ECSAB manifesta-se em contraposição a todo processo educacional e práticas educativas que, salvo as exceções, vêm acontecendo nesta região, se pautando em um currículo colonialista/descontextualizado e em modelos de gestão autoritária que desvalorizam os/as educadores/as através da precarização do magistério, não investindo a contento na formação dos profissionais da educação e nas condições materiais de trabalho, as quais são fundamentais na arte de educar, em que muitas vezes há uma preocupação maior com a tentativa de responder aos indicadores

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governamentais do que a real aprendizagem dos sujeitos que frequentam a escola. Assim, descolonizar o currículo e contextualizá-lo nas questões reais do mundo em que a escola

está inserida e nas questões presentes na contemporaneidade parece ser um dos caminhos a serem trilhados pela ECSAB na construção de uma educação escolar que tenha sentido e significado na vida das pessoas.

Dentro desta ótica, é mais que evidente a noção de se partir do elemento concreto de estudo – que é o próprio meio – até chegarmos aos conceitos e interpretações mais abstratas, buscando no decorrer desse percurso, o levantamento de questionamentos, análises e avaliação, traçando daí um plano de ação e atuação sobre este meio, baseado no uso moderado dos recursos naturais, cumprindo assim com as metas para a realização de um projeto sustentável para as comunidades do Semiárido, pautado na valorização dos aspectos socioculturais, ambientais e econômicos e que este possa garantir a possibilidade de melhores condições de vida para as populações envolvidas, estabilizando a atividade agropecuária e procurando outras atividades para gerar renda ou emprego, melhorando o acesso à educação, saúde, lazer, exercício pleno da cidadania e valorizando com dignidade as tradições e as culturas locais etc., pois somente assim, estaremos de fato construindo uma sociedade realmente alicerçada em base sustentável, possibilitando uma ação verdadeiramente concretizada no presente, para, de fato, garantirmos o futuro das gerações que ainda estão por vir.

Vale lembrar: muitas são as experiências que se pautam pelos princípios da contextualização dos processos educativos nas especificidades do Semiárido (Escola Rural de Ouricuri - ERO/Caatinga; Movimento de Organização Comunitária (MOC); Escola Rural de Massaroca (ERUM); Serviço de Tecnologia Alternativa (SERTA); Escolas Família Agrícola (EFA); Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA); Associação de Desenvolvimento e Ação Comunitária (ADAC); Comissão Pastoral da Terra (CPT/Sertão); Programa de Pós-graduação, Mestrado em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos (PPGESA/UNEB), entre outras), porém as primeiras iniciativas voltadas à compreensão da convivência com o Semiárido como fundamento da Educação Contextualizada foi uma proposição do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA), no final dos anos 1990. Com experiências que foram acontecendo nos municípios de Curaçá – BA, Uauá – BA e Canudos – BA, o IRPAA assumiu a defesa da educação escolar na perspectiva da convivência com o Semiárido, propondo uma nova concepção de educação, trazendo a expertise acumulada nas práticas de educação popular desenvolvidas na escola de lavradores/as e agentes multiplicadores, inserindo esses saberes no currículo escolar. Dessa iniciativa, surgiu o que hoje se compreende por ECSAB130

que, a partir de 1997 passou a ser mais uma importante bandeira de luta da instituição na semeadura de outro projeto de desenvolvimento integrado, sustentável e apropriado à região. É essa também a gênese da Rede de Educação do Semiárido Brasileiro (RESAB) em 2001, ao compreender que não adianta a existência de inúmeras experiências educativas fundamentadas nesses princípios, se elas continuarem isoladas, desarticuladas e sem servirem de referência para pautar a Educação Pública. Vale lembrar ainda que outras experiências baseadas na contextualização já existiam muito antes

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dessa vinculação ou nomeação da Educação contextualizada para a convivência com o Semiárido, como as citadas anteriormente, que têm origem muito antes do trabalho desenvolvido pelo IRPAA, nos municípios citados acima.

Dizemos que a ECSA é uma proposta insurgente pois ela é um compromisso com a possibilidade de uma educação escolar que se propõe pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada, alicerce nos princípios da sustentabilidade humana, social, econômico, cultural e político do Semiárido. A educação para a convivência com o Semiárido se opõe a qualquer forma de educação que negue o contexto do Semiárido, ignorando ou secundarizando as inúmeras possibilidades que essa região comporta e os saberes aí construídos. Dessa forma, essa proposta preconiza uma educação que contemple as especificidades e as potencialidades da região, tanto as naturais como as culturais e, especialmente, as diferentes formas de enfrentamento dos problemas gerados pelas condições climáticas que são peculiares nessa região, como as estratégias de convivência com o Semiárido, materializadas nas mais diferentes tecnologias sociais, que vêm sendo construídas no cotidiano dos sujeitos que vivem nesse lugar. Toda essa riqueza, ignorada pela escola, deve ser transformada em objeto de estudo mediante a pesquisa e a problematização, exemplo disto é a questão da água (seu ciclo, seu acesso, sua gestão e limites).

1. A construção humana, social e cultural do Semiárido

O Semiárido brasileiro, conforme Portaria nº 89/2005 do Ministério do Interior131, é composto por nove Estados: Alagoas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe, excluídos o Espírito Santo e o Maranhão que por outros critérios são incluídos na delimitação de atuação de algumas instituições e articulações como é o caso da Rede de Educação do Semiárido Brasileiro (RESAB) a qual nos seus documentos inclui o Maranhão e o Norte do Espírito Santo (2,51% da área total do estado); o que também se constata nas ações de organismos de cooperação internacional como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), órgão que também atua nos 11 Estados; bem como a Articulação de Semiárido Brasileiro (ASA-Brasil) que congrega centenas de entidades da sociedade civil organizada.

Partindo do princípio defendido pelo Professor Rovilson José Bueno (2007), de que “o Semiárido é uma construção natural e humana (cultural); aquilo que se fez historicamente, nessa região, é uma construção humana e, portanto, possível de ser revertida132” acreditamos que, a depender da vontade política, do enfrentamento das iniquidades e da articulação das políticas públicas destinadas a essa região, é possível se construir novas possibilidades de desenvolvimento, pois ao longo de sua história as iniciativas no sentido de resolução das questões peculiares a essa realidade foram equivocadas, a exemplo das históricas políticas de combate à seca.

Precisamos reinventar, descobrindo e redescobrindo as inúmeras vocações desse lugar, quebrando ranços construídos pelas elites nordestinas, como mostra Albuquerque Jr. (1999). Para

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esse autor, é possível compreender a idealização e delimitação geográfica do Nordeste brasileiro como marcas de um ranço negativo, criado pela elite nordestina com o intuito de atender apenas aos seus projetos e interesses pessoais dando fundamento para a criação desta região como foi difundida. Ensina-nos que foi esse ranço da elite nordestina que forjou a criação do Nordeste na contramão da história, suportado na ideia de calamidade atribuída ao clima e, principalmente, à manifestação do fenômeno da seca.

O uso desse fator climático permitiu criar a ideia de calamidade pública que, até hoje, ainda está no imaginário social da população do Nordeste e do Brasil e que fomentou a compreensão de Semiárido apenas pela representação idealizada da fome, da miséria, quando muitos outros aspectos que identificam essa região em outra perspectiva, geralmente não são visualizados.

Essa é uma das construções humanas que precisam ser desconstruídas, pois esse ranço cultural reacionário contribuiu para a fabricação de identidade forjada, de “inclinação despótica”. Uma visão que encortina o verdadeiro Semiárido com todas as suas possibilidades, mas com as suas especificidades, quase sempre transformadas em necessidades, todas as vezes que tais necessidades podem servir de garantia ao atendimento dos interesses das elites. A imprensa nacional e muitos dos que escreveram sobre esta região tomaram e ainda tomam por parâmetro apenas uma época do ano ou a enxergando apenas por um ângulo de visão: o Semiárido dos miseráveis, dos Jecas, dos emergenciais – o submundo da miséria brasileira, algo que há tempos tem sido transformado, mesmo que a passos lentos.

Ao debruçamo-nos na leitura dos processos educativos (leia-se: educação escolar) presentes nessa região ao longo da sua constituição histórica, nos deparamos com outro processo de colonização que se efetiva pelo viés curricular. Os livros didáticos que circularam e circulam nessa região quase sempre afirmam essa caricatura, onde o sujeito que vive no Semiárido é visto como “matuto”, um “sujeito sem saber, sem cultura”. Como defende Sena (2014, p. 24):

É por essas questões que se faz necessário um diálogo entre a ECSA e o livro didático; ambos precisam se conhecer no percurso de produção para que cada um possa contribuir com sua gama de conhecimentos. A Educação Contextualizada na realidade precisa ser uma prática conhecida das pessoas que inventam e reinventam a produção de materiais didáticos para que esses possam dialogar entre si e, assim, produzir um material que faça sentido na vida prática de alunos e professores. A falta do reconhecimento identitário no livro didático gera uma estranheza tal a seus leitores que estes preferem até ignorar o seu lugar para legitimar o outro em si mesmos, e são esses aspectos da colonização, descortinados anteriormente, que estão imbricados nos sentidos e significados trazidos pelos livros didáticos [...].

Perpetua-se, assim, a ideia da impossibilidade de solução dos problemas, produzindo nos sujeitos o sentimento de impotência na superação de si mesmo e das condições de vulnerabilidade em que vivem. Essa visão é reafirmada, inclusive na maneira de se fazer política nessa região, forjando o estereótipo do oprimido sem saída.

A superação das vulnerabilidades depende da adoção de políticas estruturantes de caráter estatal

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(permanentes) e não apenas de programas governamentais. Para isso se faz necessário potencializar a articulação (intersetorialidade) na formulação de políticas públicas de forma a garantir as suas eficiências e eficácias. Portanto, potencializar os recursos ao invés de pulverizá-los e buscar possíveis saídas para os problemas, investindo melhor os recursos de forma que resultem em melhorias da qualidade de vida da população no campo e na cidade, no Brasil e no Semiárido Brasileiro, num projeto comum de nação.

2. Educação como reflexo dos processos de convivência com o Semiárido

Ao se planejar o desenvolvimento de uma região, território ou de um país, é pertinente se perguntar: o que tem a ver a educação com o projeto de sustentabilidade do território na qual ela se desenvolverá? Investir em educação contribui para a sustentabilidade de uma nação? Qual o lugar da educação em um projeto de nação? É preciso que a Educação toque nessas questões, pois as políticas públicas precisam estar articuladas no seu conjunto.

No Semiárido brasileiro, como já anunciado, as escolas têm se mantido isoladas, sem diálogo com os espaços de produção das chamadas tecnologias sociais como, por exemplo, o manejo da água (a captação e armazenamento), bem como com as inúmeras iniciativas na identificação da riqueza do bioma caatinga como fonte de produção da vida nesse lugar. Esses saberes ficam ausentes dos currículos apesar da pertinência e do significado que representam na vida dos sujeitos. Aqui, situamos a ECSA na ecologia de saberes anunciada por Boaventura de Sousa Santos. Esse autor traz uma excelente contribuição a essa discussão quando trata da pedagogia das ausências que se move no campo das experiências de uma educação contextualizada, conforme preconizado na ECSA, que adverte para o diálogo de saberes evitando o distanciamento da realidade, mas produzindo o diálogo de saberes com o cuidado de não produzir o isolamento no local.

O movimento da ECSAB é ascendente; nela, todas as pessoas são consideradas igualmente importantes, porque são únicas. A profissionalização, as habilidades e competências são decorrências da formação ética, moral, política e humana. Cada história, cada vida, cada ser é considerado na sua individualidade. Por isso, suas histórias, lutas, sonhos, saberes e fazeres devem se tornar também conteúdos escolares. Devem ser socializados, problematizados, reelaborados nesse processo denominado por Santos (2009), de ecologia de saberes.

A ECSAB exige que se aborde nessa ecologia, questões como: acesso à terra e à água, a questão dos latifúndios remanescentes ainda na região, entre outros tantos temas. Não é concebível que se pense em desenvolvimento que não contemple questões cruciais como essas e que não leve em consideração o papel da educação nesse processo, assim como não dá para construir a sustentabilidade de um território sem a participação dos sujeitos interessados.

Sena (1996), afirma que “a escola se distanciou tanto da vida que acabou se entrincheirando contra ela. Na distância da realidade, os alunos podem ouvir sonolentos, o discurso magistral que

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eles terão de “vomitar de volta”, tendo compreendido ou não. Por favor, hoje já não se faz mais isso. Não é pondo os alunos numa sala como numa chocadeira que se ensina. Uma vez que a natureza pode ensinar, porque não vamos a ela.” Percebemos a necessidade de um repensar da função da escola no Semiárido, trazendo a possibilidade de um conhecimento que tenha sentido para a vida dos seus estudantes.

Um processo educativo/pedagógico inovador e inclusivo, precisa trazer soluções inovadoras e contextualizadas, que ajudem os sujeitos do processo educativo a enfrentar os problemas concretos da vida real. É preciso que se avance nessa perspectiva tocando naquilo que é essencial e assim fazer, de fato, uma educação contextualizada, comprometida com o processo de emancipação humana. Não dá para se pensar essas questões se não as problematizarmos no currículo escolar. Se o Semiárido é esse lugar real, concreto, cultural, social e político, é dentro dele que precisamos questionar também sobre que proposta de educação pode ajudar a consolidar as intenções de um novo projeto pautado no bem viver, compromissado com as problemáticas que envolvem os povos e essa região.

Portanto, a ECSAB se pauta pela insurgência, propondo uma nova racionalidade e, deste modo, compreende o contexto implicado em uma teia muito mais ampla de referências, fluxos, conexões e sentidos que extrapolam o recorte espacial de um território local. Compreende que os conhecimentos não são isoláveis e nem isolados na realidade, mas que os sujeitos precisam ampliar cada vez mais, a dimensão daquilo que já conhecem como ferramenta fundamental para a emancipação humana.

Se a escola e os professores não forem capazes de compreender o mundo em que estão inseridos, jamais poderão contribuir com a construção de uma educação contextualizada, ancorada na convivência com o Sertão semiárido e palco da descolonização dos saberes e conhecimentos diversos, dando voz e vez aos saberes até então negados pela escola moderna que se suportou no cientificismo negador das singularidades.

127 BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas. Censo de Contagem da população, 2010.128 UNESCO. Relatório do PNUMA - Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Dezembro, 1992.129 MORIN, Edgar. O paradigma perdido: a natureza humana. 3ª edição. Portugal: Lisboa: Publicações Europa-América: Biblioteca Universitária, 1997. 130 Vale lembrar e ressaltar, que o conceito passa a ser construído e fundamentado coletivamente por diversas instituições que já desenvolviam práticas educativas contextualizadas, onde foram fundamentais para a consolidação do conceito, os seguintes momentos: o processo de construção da proposta pedagógica do Município de Curaçá – BA; O simpósio de Educação e Convivência com a Seca, realizado em Juazeiro – Bahia em 1998; e o I Encontro Regional de Educação no Contexto do Semiárido Brasileiro, também realizado em Juazeiro com o apoio da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) através do Departamento de Ciências Humanas – Campus III, que contou com a participação de Educadores/as de todo o Semiárido Brasileiro.131 Em 2005 mediante a portaria nº 89 do Ministério do Interior, foi instituída nova delimitação do Semiárido, levando-se em consideração os seguintes critérios: I- precipitação pluviométrica média anual inferior a 800 milímetros; II. Índice de aridez de até

Notas

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0,5 calculado pelo balanço hídrico que relaciona as precipitações e a evapotranspiração potencial, no período entre 1961 e 1990 e III - risco de seca maior que 60%, tomando-se por base o período entre 1970 e 1990. (Nova delimitação do Semiárido Brasileiro, 2005, p.3). Esses critérios foram aplicados consistentemente a todos os municípios que pertencem à área da antiga SUDENE, inclusive os municípios da região setentrional de Minas Gerais (85 municípios). 132Palestra proferida por ocasião do Seminário “O Semiárido na pauta das Universidades Públicas”. Cajazeiras, 15 de março de 2007.

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ÁGUA DE CHUVA NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO:ASPECTOS AMBIENTAIS, SOCIAIS, ÉTICOS E TÉCNICOS

Míriam Cleide AmorimLuiza Teixeira de Lima Brito

Iug Lopes1. Introdução

A água é um bem fundamental para a vida, compondo 70% do corpo humano. No contexto ambiental, desempenha importante papel no processo de desenvolvimento econômico e social, sendo um elemento integrador de tudo o que acontece no âmbito de uma bacia hidrográfica. Porém, apesar do seu volume ser constante desde a formação do planeta (REBOUÇAS, 2006), o seu consumo vem aumentado substancialmente e em escala global.

Por um lado, as estatísticas do Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, cujo tema central é “Água para um mundo sustentável”, apontam que nas últimas décadas o consumo de água aumentou duas vezes mais do que a população e que esse valor poderá ser ampliado em 55%, até 2050. Dessa forma, ressalta que, se mantidos os atuais níveis de consumo, em 2030 o mundo enfrentará um déficit no abastecimento de água de 40%. Entre os fatores que contribuem para o aumento desta demanda, cita o relatório, estão o aumento da população, com estimativas de alcançar 9,1 bilhões em 2050; o manejo inadequado da irrigação e a poluição (UNESCO, 2015). Por outro lado, este relatório também ressalta que há, no mundo, água suficiente para suprir as necessidades de crescimento do consumo, “mas não sem uma mudança dramática no uso, gerenciamento e compartilhamento”. Segundo tal documento da UNESCO, a crise global de água é de governança, muito mais do que de disponibilidade do recurso, e um padrão de consumo mundial sustentável ainda está distante de acontecer.

A ONU aponta que atualmente 1, 2 bilhões de pessoas não têm acesso à água potável e 2,5 bilhões não dispõem de redes de coleta de esgotos, causando severos impactos à saúde humana e ao ambiente. Estas preocupações e as iniciativas em busca de soluções não são recentes.

Em 1996, foi criado o Conselho Mundial da Água (WWC)133 que congrega várias instituições de diferentes países afetos à “água” e realiza, a cada três anos, fóruns mundiais sobre o tema. Os três últimos fóruns trataram sobre temas relativos aos problemas da escassez de água, o risco de conflito por enfrentamentos entre países por rios e lagos e a melhor maneira de proporcionar água limpa à população; água nas diferentes abrangências – local, nacional, regional e global; e água para nosso futuro, com enfoque às águas transfronteiriças, gestão participativa e a integração de boas práticas. A 8ª edição do Fórum Mundial da Água será realizada em solo brasileiro em 2018 e terá como tema “Compartilhando Água”.

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Com 70% da superfície do planeta Terra coberto por água e um volume estimado em 1,4 milhões de quilômetros cúbicos, causa surpresa se afirmar que o mundo está sofrendo uma “crise hídrica”. No entanto, somente 2,5% desta disponibilidade é classificado como água doce e, desse total, aproximadamente, 70% se encontra nas geleiras e calotas polares de regiões montanhosas, 29% nos aquíferos e apenas 1% forma os rios e pântanos. Em valores médios, o uso da água em todo planeta está distribuído da seguinte ordem: 10% destinada ao abastecimento público, 20% para a indústria e 70% para a agricultura (SHIKLOMANOV, 1998, citado por TUNDISI, 2003).

Por um lado, se observa que a maior parte da água disponível e adequada para consumo é mínima em relação à quantidade total existente na Terra; por outro, as estimativas sinalizam aumento da demanda devido aos fatores já apontados e às mudanças climáticas, o que pode tornar ainda mais crítica a situação de disponibilidade de água para o consumo da população.

O Brasil detém uma das maiores redes hidrográficas do planeta, com cerca de 12% da água doce superficial. Em parte de seu território, dispõe ainda da maior reserva de água doce subterrânea – o Aquífero Guarani – com 1,2 milhão de quilômetros quadrados. Estima-se que esse aquífero possa fornecer 43 bilhões de metros cúbicos de água por ano, suficientes para atender a uma população de 500 milhões de habitantes (BARLOW & CLARKE, 2003). Diante deste cenário, é possível imaginar que o acesso à água não seja um problema para os brasileiros. No entanto, há um desbalanço marcante em sua distribuição espacial e quanto à população residente nesse território. A Região Norte, com apenas 7% da população, concentra 70% da água do país; enquanto a Região Sudeste é ocupada por 42% da população e a disponibilidade é de apenas 6%. No Nordeste, com 29% da população, há apenas 3% das reservas (BARLOW & CLARKE, 2003). Em consequência disso, 45% da população não têm acesso à água tratada e 96 milhões de pessoas vivem sem coleta e tratamento de esgoto.

Observando-se essas estimativas, percebe-se a necessidade de reformulação na concepção do planejamento e do gerenciamento dos recursos hídricos em todas as esferas. Portanto, mudar essa realidade e utilizar a água de forma racional, evitando-se o desperdício, a poluição e a contaminação para alcançar níveis que conduzam à sustentabilidade dos recursos hídricos, constituem-se em desafios às entidades de ensino, pesquisa, extensão, órgãos governamentais e não governamentais, enfim, à humanidade.

Neste capítulo, serão tratados os aspectos relacionados à água de chuva, com ênfase no ambiente, nos benefícios sociais, éticos e relativos aos parâmetros técnicos de quantidade, qualidade e regularidade.

2. Aspectos ambientais, sociais, éticos e técnicos

2.1 Aspectos ambientais, sociais, éticos

Os aspectos ambientais, sociais, éticos e técnicos estão muito interligados. Daí deve-se analisá-

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los conjuntamente. No contexto da Política Nacional de Recursos Hídricos (BRASIL, 1997), a Lei nº 9433/97 destaca, em seus fundamentos e diretrizes, ações que buscam a melhoria da gestão dos recursos hídricos, entre as quais pode-se citar: a água como bem de domínio público e dotado de valor econômico, a necessidade de gestão integrada do uso, com ênfase no uso múltiplo das águas e a bacia hidrográfica, enquanto unidade territorial para implementação das ações de melhoria. Como instrumento de gestão, a lei cita o enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os usos preponderantes; a outorga dos direitos de uso de recursos hídricos; e a cobrança pelo uso de recursos hídricos, motivando para o uso responsável da água.

Como um bem de valor econômico, a água assume o papel na geração de bens e riquezas em diversos setores de produção, seja seu uso na indústria, na agricultura, na geração de energia, como meio de transporte e componente fundamental dos ecossistemas naturais.

Lord (2001) cita que a adoção da ética, como base para resolver questões muitas vezes conflitantes como a falta de água, envolve uma multiplicidade de percepções e é preciso que as políticas públicas se fundamentem em princípios que sejam objeto de concordância geral. Alguns desses aspectos estão coerentes com a Política Nacional de Recursos Hídricos vigente. Cita também que, embora todos precisemos de água, isso não nos dá o direito de acesso à toda a água que quisermos utilizar. É preciso que a sociedade priorize o acesso à água que permita atender às necessidades essenciais da humanidade, assim como dos nossos ecossistemas. Além disso, cita os princípios básicos como essenciais para implantação de uma política efetiva de recursos hídricos:

- Os princípios começam com a noção de que os seres humanos têm direito à água potável limpa, água para sua alimentação, saúde e desenvolvimento; promover a ideia de que a água é primordialmente um bem econômico desvia a sua percepção pública como um bem comum;- As diretrizes éticas devem refletir os conceitos de desenvolvimento sustentável e de justiça ambiental, que têm como referência fundamental a equidade: equidade entre entidades geográficas, entre o mundo industrializado e o mundo em desenvolvimento, entre as populações rurais e urbanas, entre as gerações e entre os administradores e os administrados;- Os governos devem estabelecer diretrizes claras para os parâmetros ambientais relacionados com a água, implantando leis, regulamentos, subsídios, impostos e incentivos com esse fim; um elemento importante é o Princípio do Pagamento pelo Poluidor (PPP), enunciado pela Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE), segundo o qual cabe aos poluidores pagar o custo do cumprimento dessas normas;- As empresas transnacionais são, muitas vezes, mais poderosas do que os países individuais, e precisam estar sujeitas às diretrizes éticas, e responder pelo seu cumprimento;- A escassez de água não é absoluta, mas é, muitas vezes, uma função das iniquidades de riqueza, conhecimento e meios; atenuá-la depende em larga medida do recurso ao potencial representado pelas comunidades locais, fazendo o maior uso possível das suas competências e experiência.

Quando se analisa o recurso “água” sob a ótica ambiental e cultural, deve-se considerar que o

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seu ciclo natural nas diferentes regiões e bacias hidrográficas reflete o resultado do que o ambiente é e de como a sociedade se comporta, ao longo dos tempos. A ocorrência, circulação e distribuição da água na terra, suas propriedades físicas e químicas e sua relação com o meio ambiente, incluindo a relação com a vida, constituem o ciclo hidrológico. Os principais processos que caracterizam o ciclo hidrológico são precipitação, escoamento superficial, infiltração, evaporação, transpiração, evapotranspiração e condensação, denominados processos de transferência, ocorridos a partir da superfície de mares e oceanos, rios, lagos e solos.

Segundo Barbosa (2014), o ciclo hidrológico pode ser impactado seja pelo fator climático, seja pelas ações antrópicas. Cita ainda que segundo o Intergovernamental Painel on Climate Change (IPCC), os impactos resultantes do crescimento populacional, desmatamento, poluição do ar e solo, e o nosso padrão de produção de consumo podem até superar os efeitos das mudanças climáticas nos recursos hídricos.

Alterações que possam causar prejuízo à saúde, à sobrevivência ou às atividades de produção dos seres humanos e outras espécies ou ainda deteriorar materiais indesejáveis definem o termo ‘poluição’ (BRAGA et al., 2005). Os impactos negativos de ações antrópicas e da natureza resultam na poluição das águas, ou seja, na degradação de sua qualidade em função da alteração nas características físicas, químicas, biológicas e hidrobiológicas.

A poluição das águas ocorre em função de fontes ou ações poluidoras como atividades industriais, agrícolas, navegação e as diversas atividades urbanas. Em função das características dos poluentes ou substâncias, pode-se classificar os tipos de poluição em: química e radioativa, biológica, térmica e física.

Dessa forma, o estudo da qualidade da água é de suma importância, tanto para caracterizar as consequências de uma determinada ação antrópica, quanto para se estabelecer os meios para que se satisfaça determinado uso da água (VON SPERLING, 2005). A qualidade da água ou a avaliação do seu grau de poluição pode ser obtida por meio de um grande número de parâmetros ou indicadores de qualidade, os quais são classificados em função de suas características físicas químicas, biológicas e hidrobiológica; assim como por meio de índices de qualidade, tal como o Índice de Qualidade das Águas (IQA), criado em 1970, nos Estados Unidos, pela National Sanitation Foundation (NSF) e utilizado pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB), a partir de 1975.

Os indicadores mais utilizados na avaliação da qualidade das águas são: pH, temperatura, oxigênio dissolvido, demanda química e bioquímica de oxigênio, metais (cromo, mercúrio, zinco, cobre, cádmio), pesticidas, nutrientes (nitrogênio e fósforo) e coliformes termotolerantes.

Em geral, a poluição das águas tem como consequência alterações e desequilíbrios das comunidades aquáticas, eutrofização, mortandade de organismos vivos e transmissão de doenças. Especificamente as águas destinadas ao consumo humano estão sujeitas a uma série de danos, tais como a contaminação por microrganismos patogênicos, excesso de nutrientes e poluentes endócrinos, os quais possuem como principal veículo de propagação, excretas de origem humana

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e animal, sendo suas enfermidades transmissíveis mais comuns a febre tifoide, cólera, disenteria bacilar, diarreia, hepatites etc., advindas principalmente da ausência de serviços de saneamento básico. Conforme os últimos dados publicados pelo Ministério das Cidades no Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), ano base 2014, no Brasil ainda existem mais de 35 milhões de pessoas sem acesso aos serviços de água tratada.

Estatísticas mundiais apontam que 25 milhões de pessoas morrem por ano em consequência de patogenias e poluição oriundas da água e que a diarreia mata quase 3 milhões de crianças por ano (BARLOW & CLARKE, 2003). De acordo com informações do SNIS (2014) apenas 40% dos esgotos no Brasil são tratados e na região Nordeste este percentual é de apenas 28,8%.

A poluição da água também está intrinsecamente associada às modificações ocorridas no solo e/ou no ar. Considerando o comportamento da água ao longo do ciclo hidrológico, observa-se que a água de chuva pode sofrer alterações em sua composição visto que ao ocorrer a precipitação, as gotículas de água podem arrastar substâncias poluentes que estejam presentes no ar, modificando a sua composição e, consequentemente, sua qualidade, tornando-se esta, função das atividades existente na região (CONCEIÇÃO et al., 2011). Embora, na região Semiárida brasileira, por estar longe de centros urbanos industriais, a água da chuva possa ser de melhor qualidade, deve-se salientar que as nuvens podem vir de localidades distantes e trazer poluentes a mais de 1000 km, conforme descobriu, em 1881, um cientista norueguês, o fenômeno que ele chamou de precipitação suja, a qual trazia partículas de carvão da Inglaterra, contaminando as águas de lagos noruegueses (BOUBEL et al., 1994). Tomaz (1998) aponta que água da chuva de nuvens formadas em áreas rurais podem ter excesso de alumínio, cálcio, potássio e fósforo oriundos dos solos.

A água pode sofrer poluição por pesticidas e fertilizantes advindos das atividades agropecuárias que, se incorporados ao ciclo hidrológico, escoam para os mananciais subterrâneos e superficiais e pelo aporte de altas concentrações de substâncias químicas, podem causar sabor e odor desagradáveis e doenças, além de dificultar seu tratamento. Estudos de Conceição et al. (2011) sobre a composição química das águas de chuva na bacia do Alto Sorocaba, localizada no interior paulista, evidenciaram que poeiras de solos agrícolas, onde há uso de fertilizantes, podem ser os maiores responsáveis pelas concentrações de compostos de nitrogênio e potássio na água da chuva. Os autores concluíram que os resultados apresentados elucidam como as influências antropogênicas podem estar afetando o sistema atmosférico na bacia do Alto Sorocaba e, consequentemente, devem intensificar o processo de eutrofização das águas fluviais desta bacia.

Villiares (2002) descreve que, à medida que a população aumenta, o uso sustentável da água depende fundamentalmente da adaptação das pessoas ao ciclo hidrológico. Diante disso, a poluição das águas e suas consequências contribuem, de fato, para o aumento da sua demanda, conforme relata o Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos (UNESCO, 2015) quando aborda o tema “Água para um mundo sustentável”.

Diante dos aspectos relatados e outros tantos, a situação da crise hídrica poderá se tornar mais severa, a partir da confirmação dos cenários apontados no Relatório sobre Mudanças Climáticas do Intergovernamental Panel on Climate Change (IPCC) (IPCC, 2007), em que estima-se redução de 15

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a 20% da precipitação anual média, além da ocorrência de secas mais intensas, com destaque para o Nordeste brasileiro. As projeções atuais indicam mudanças na distribuição temporal e espacial dos recursos hídricos, e um aumento significativo na frequência e intensidade dos desastres relacionados a eventos hidrológicos críticos, tornando-se cada vez mais eminente a necessidade de medidas que possam amenizar esses efeitos, principalmente em regiões que já têm sérias limitações de recursos hídricos, podendo comprometer seriamente a capacidade de permanência dessa população nesses locais.

Assim, os desafios a serem superados na interface da água e desenvolvimento sustentável variam de uma região para outra. Aumentar a eficiência do uso de recursos, reduzir o desperdício e a poluição, influenciar os padrões de consumo e escolher as tecnologias apropriadas paraaumentar a disponibilidade, como o reuso, são apontados como alternativas a serem implementadas (UNESCO, 2015).

2.2 Aspectos técnicos: quantidade, regularidade e qualidade

No Semiárido brasileiro, a chuva representa a principal fonte de água renovável. Todavia, a previsão da quantidade e regularidade no ano hidrológico geram incertezas, pois dependem de fatores meteorológicos e variam, sensivelmente, tanto no tempo como no espaço, a exemplo da seca que vem ocorrendo desde 2012, onde se observa um dos maiores períodos de seca sequenciada da história, a partir de dados da Estação Agrometeorológica da Embrapa entre os anos de 1975 a julho de 2015 (Figura 1) embora a ocorrência de secas na região seja recorrente. Segundo Porto et al. (1983), apenas três em cada dez anos são considerados normais quanto à distribuição das precipitações pluviométricas no Semiárido brasileiro.

Figura 1 - Histograma das precipitações pluviométricas ocorridas na Estação Agrometeorológica da Embrapa, no período de 1075 a 2015

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2.2.1 Quantidade e regularidade

A Política Nacional de Recursos Hídricos estabelece a água de consumo humano como prioritária diante dos demais usos, sejam nos aspectos produtivos, ambientais, sociais e de consumo animal. No Semiárido brasileiro, até recentemente, o atendimento da demanda de água para a maioria das famílias, ocorria por meio de açudes presentes na região. Entretanto, muitas vezes, esses açudes não representavam garantia da disponibilidade nos períodos secos, além de ficavam dispostos a longas distâncias das residências e em anos sequenciais de seca, a qualidade da água ficava comprometida para o consumo, por apresentar elevados níveis de salinidade.

Inserida nesse cenário climático, a Embrapa Semiárido, ao longo de quatro décadas, vem gerando conhecimentos e tecnologias para amenizar os efeitos da irregularidade climática entendendo-se que a má distribuição das chuvas associada à alta taxa evapotranspirométrica são responsáveis pela oferta de água insuficiente na região. Esta situação se agrava devido à falta de uma infraestrutura hídrica permanente e que seja capaz de superar, pelo menos, três anos consecutivos de seca.

Entre as tecnologias e conhecimentos disponibilizados, a cisterna pode ser citada como uma alternativa que pode armazenar água de chuva visando ao atendimento da demanda de água para o consumo das famílias rurais que estão distantes de fontes hídricas permanentes e que não dispõem de outra fonte de água na comunidade (SILVA & PORTO, 1982; SILVA et al. 1986; 2007) (Figura 2).

Figura 2 - Cisterna com área de captação no solo.

Fotos: Nilton de B. Cavalcanti, 2015.

Nestes estudos, foram essenciais a definição de parâmetros de dimensionamento do sistema de captação, bem como a definição da área de captação da cisterna. Em termos médios, a quantidade de água que uma pessoa necessita para beber e realizar suas atividades básicas (cozinhar e higiene mínima, como lavar o rosto, escovar os dentes) é de 14 litros por dia (SILVA et al., 1984), embora, o Ministério da Saúde (BRASIL, 1981) informe que essa necessidade mínima pode ser de 10 litros por pessoa por dia, no meio rural. Esse volume é representado na equação abaixo pelo consumo

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da família ou das pessoas que utilizam a água da cisterna para beber (c). Assim, para dimensionar a necessidade de água da família, deve-se conhecer o número total de pessoas (n) que irá utilizar a água da cisterna, bem como o período sem chuvas de cada região (p), que é, em média, de 8 meses no Sertão brasileiro. Assim, o volume de água necessário (VNEC) é dimensionado utilizando a equação:

VNEC = volume de água necessário à família (m3); n = número total pessoas família pessoas (n);

c = consumo de água por pessoa (c=14 L);p = período sem chuvas (240 dias/ano).

No dimensionamento da área de captação (AC), além do volume (VNEC) de água a ser armazenado na cisterna, é preciso conhecer também a precipitação (PMED) que ocorre no município e a eficiência do escoamento superficial (C) da área por onde a água escoará. O valor de “C”, normalmente é considerado igual a 0,7, para área coberta com telha de cerâmica. Em áreas com outros tipos de cobertura, esse valor varia consideravelmente. Assim, a área de captação (Ac) é calculada pela equação:

em que:AC = área de captação (m2);VNEC = volume de água da família (m3);PMED = precipitação média dos anos mais secos (mm);C = coeficiente de escoamento superficial.

Definidos e utilizados esses parâmetros a cisterna pode garantir água às famílias em quantidade e com regularidade, necessitando apenas orientações sobre como manejar a água da cisterna para o seu consumo. Embora estes parâmetros estivessem definidos, na implantação do Programa Um Milhão de Cisterna (P1MC) não foram considerados, possivelmente como forma de se ter um modelo de cisterna padrão, para facilitar a implementação do programa. Assim, a cisterna foi considerada com capacidade de armazenamento de água fixa, correspondendo a 16 mil litros, independentemente do número de pessoas da família. Este volume é suficiente para atender às necessidades básicas (beber e escovar dentes) de uma família com apenas cinco pessoas, por um período de 240 dias. Superado esse período, em situação de seca, resta às famílias retomarem o uso de fontes antes utilizadas. Também, considera o telhado das residências como área de captação de água de chuva, mas, nem sempre essa área é suficiente ou adequada para encher a cisterna devido à irregularidade das chuvas em muitos municípios do Semiárido brasileiro.

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Pesquisa realizada em 83 municípios do Semiárido brasileiro sobre os aspectos técnicos do P1MC, quando haviam sido construídas 3.517 cisternas, apontou que o número de pessoas por família variou de 1 a 14. Assim, com uma capacidade de armazenamento de água de 16 mil litros de água, a cisterna do programa estava atendendo a apenas 51,44% das famílias. No tocante ao tamanho da área de captação, 78,76% das residências dispunham de área suficiente para captar o volume de água para encher a cisterna (BRITO et al., 2007a).

Neste contexto, Lima et al. (2007) ressaltam que para as famílias contempladas com cisternas, os serviços de água situam-se entre os níveis intermediário e básico, visto que a cisterna, isoladamente, não atende a todos os usos, obrigando as famílias a continuar com sua busca de água em outras fontes, para garantir as outras necessidades.

2.2.2 Qualidade: parâmetros biológicos, físicos e químicos

Com o avanço do conhecimento como resultado das pesquisas realizadas com a água das cisternas destinadas ao consumo humano e a experiência das organizações responsáveis pela implantação do P1MC, foi percebida a necessidade de se obter, além do fator quantidade, a garantia da qualidade da água da cisterna.

Os requisitos de qualidade da água são função de seus usos previstos que, para fins potáveis (beber, cozinhar, tomar banho e escovar os dentes), podem ser divididos basicamente em dois grupos: os de caráter sanitário e os de caráter estético e econômico.

O caráter sanitário da água exige que esta seja isenta de organismos prejudiciais à saúde, como bactérias e vírus; como também isenta de substâncias químicas prejudiciais à saúde, tais como pesticidas e metais pesados, e que possua baixos valores de turbidez, a qual se deve à matéria sólida em suspensão, que, com a vigência da Portaria 1.469/00 (BRASIL, 2004), passou a ser considerada, também, um indicador sanitário, por dificultar a ação do desinfetante nos microrganismos.

Neste sentido, são estabelecidos padrões de qualidade, embasados por suporte legal, que atualmente no Brasil são regulamentados pela Portaria 2.914, de 12 de dezembro de 2011, do Ministério da Saúde (BRASIL, 2011) a qual “dispõe sobre os procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de potabilidade”. Esta portaria estabelece que “toda a água destinada ao consumo humano deve obedecer ao padrão de potabilidade e está sujeita à vigilância da qualidade da água”. Define ainda água potável como aquela cujos parâmetros microbiológicos, físicos, químicos e radioativos atendam ao padrão de potabilidade e que não ofereça riscos à saúde.

Os principais parâmetros de qualidade de água para consumo humano, avaliados com maior frequência são coliformes fecais como indicadores microbiológicos e cloro residual, pH, cor e turbidez cor como indicadores físico químicos.

Embora sejam construídas com a finalidade de captar e armazenar água de chuva, em anos de

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baixas precipitações, as cisternas podem ser abastecidas por meios artificiais, como o tão comum carro-pipa e, em ambos os casos, a qualidade da água pode ser afetada. Embora a água da chuva em regiões de atmosfera limpa, à semelhança do espaço rural do Semiárido brasileiro, possa ser considerada de boa qualidade, esta água pode se contaminar no momento da precipitação por arrastar substâncias poluentes na atmosfera, mesmo estando distante de áreas urbanas, assim como, no momento em que entra em contato com uma superfície suja (telhados, área no solo etc); pela manutenção inadequada da cisterna; ou pela utilização e manuseio da água.

A prática de abastecer as cisternas com carro-pipa pode minimizar o problema da quantidade, porém, também pode propiciar o problema da qualidade da água pela não utilização adequada da forma de transporte, expondo-a a riscos de contaminação e ainda pela origem não garantida da água e pela vulnerabilidade a que está exposta. Isso porque, quando oriunda das chuvas, a água não recebe o cloro para desinfeção, e proteção de possível contaminação. Assim, a água de chuva pode não ser recomendada para consumo humano da forma como armazenada nas cisternas, precisando ser tratada antes de sua ingestão.

A pesquisa de microrganismos patogênicos na água requer procedimentos complexos e longos, sendo necessária a utilização de organismos indicadores de contaminação fecal para avaliar a sua qualidade bacteriológica. Dentre os principais estão os coliformes totais, coliformes fecais, Escherichia coli e o Estreptococos fecais. No entanto, os padrões bacteriológicos de qualidade da água, em nível nacional e internacional, estão baseados na detecção e enumeração de coliformes totais, coliformes fecais e E. coli (Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, 1986; World Health Organization – WHO, 1987). O grupo de bactérias coliformes totais está constituído por vários gêneros da família Enterobacteriaceae (Enterobacter, Klebsiella, Citrobacter e Escherichia), os quais, por sua vez, são definidos como ‘bastonetes Gram negativos’, não formadores de esporos, anaeróbios facultativos e fermentadores da lactose em 24-48 horas com produção de ácido e gás (APHA, 1995).

Para garantir a qualidade microbiológica da água em complementação às exigências relativas aos indicadores microbiológicos, deve ser observado o padrão de turbidez. Isso porque a turbidez pode reduzir a eficiência da desinfecção da água, pela proteção física dos microrganismos do contato direto com os desinfetantes. A turbidez da água, embora seja um parâmetro físico, é atribuída principalmente as partículas sólidas em suspensão que diminuem a claridade e reduzem a transmissão da luz no meio, podendo ser provocada por plâncton, algas, detritos orgânicos e outras substâncias resultantes do processo natural de erosão ou adição de despejos domésticos ou industriais. No caso das cisternas, por armazenar água de chuva, normalmente a turbidez é baixa, exceto quando recebe águas de origens diversas, transportadas por carros-pipa, daí, a turbidez pode ser útil para acompanhamento da sua qualidade.

Nas cisternas rurais do Semiárido, a manutenção da qualidade da água adequada para o consumo humano implica em adotar medidas a fim de evitar ou reduzir contaminações, as quais se dividem, basicamente, em dois grupos: a adoção de ações que visam criar uma barreira física aos possíveis

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contaminantes e a aplicação de tratamentos da água da cisterna.Quando a água é oriunda da chuva e de caminhões pipa, com a garantia de ser potável, as medidas

que fornecem uma barreira física aos contaminantes e a manutenção adequada da cisterna, em geral, são suficientes para manter a qualidade da água. Cuidados de limpeza e manutenção do sistema de coleta; limpezas periódicas da cisterna; utilização de dispositivos de “primeira descarga”, conforme descrito por Ruskin (2002) – que joga fora os primeiros litros de água de chuva coletados –, verificação de rachaduras, problemas com as tampas e possíveis entradas de contaminantes, cuidados com a operação de retirada da água da cisterna para consumo, (evitando-se o uso de baldes e cordas), telamento de todas as áreas de entrada ou saída da água da cisterna são, enfim, medidas básicas que devem ser adotadas pelos usuários, na busca da manutenção da qualidade da água armazenada.

No entanto, mesmo adotados todos estes procedimentos, é prudente tratar a água da cisterna antes de consumi-la, principalmente nos casos em que não se tem a garantia de que a cisterna é abastecida apenas por água de chuva, ou que não se tenha a garantia da potabilidade da água de carros-pipa, adotando-se processos simples de tratamento de água como: a sedimentação natural, a filtração, a fervura e a desinfeção com produtos específicos. Maiores orientações devem ser obtidas nas Secretarias Municipais de Saúde.

O Texas Guide to Rainwater Harvesting (1997) recomenda a filtração e alguma forma de desinfeção como tratamento mínimo da água para ser usada para consumo humano, podendo ser usado o processo de fervura da água durante cerca de 5 minutos. Entretanto, esta é uma prática pouco comum no Semiárido brasileiro.

O processo de filtração visa à remoção de impurezas físicas, podendo ser realizado no ponto de entrada da água na cisterna e/ou no ponto de saída ou uso da cisterna. No primeiro caso, podem ser utilizados filtros simples de areia e cascalho; já no ponto de saída, Ruski (2002) recomenda filtros como o de sedimentos e os de carvão, que utilizam cascalho, carvão pisado em pó, areia fina e areia grossa, adequadamente dispostos em camadas. Os filtros domésticos também são recomendados e bem aceitos pela comunidade, devido às facilidades de aquisição e limpeza.

A proteção contra agentes patogênicos é feita pela desinfeção da água, a qual é um processo físico de destruição de microrganismos que, mesmo filtrada, ainda pode contê-los. O processo mais comumente utilizado é a cloração, que usa o cloro como agente desinfetante, por ser um método simples, mais econômico, de fácil disponibilidade, pela solubilidade do cloro na água, por períodos mais prolongados de atuação e pela excelente eficiência no controle de doenças transmissíveis pela água.

No Brasil, a desinfecção de água para consumo humano utiliza principalmente o cloro gasoso, hipoclorito de sódio (líquido) e hipoclorito de cálcio (sólido), disponíveis em grânulos e em pastilhas ou tabletes. A presença de cloro na água demonstra que esta foi desinfetada ou que não houve introdução de matéria orgânica, nem de microrganismos que tenham consumido o cloro durante o tratamento, sendo o cloro residual um parâmetro que permite monitorar a evolução da qualidade

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microbiológica da água. De acordo com a Portaria no 2.914, do Ministério da Saúde, a água não canalizada, fornecida através de sistemas alternativos de abastecimento, deve conter um teor mínimo de cloro residual livre de 0,2 mg/L, após um tempo de contato mínimo de 30 minutos.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que uma concentração de 0,5 mg L-1 de cloro livre residual na água, depois de um tempo de contato de 30 minutos, garante uma desinfecção satisfatória (OPAS/OMS, 1999). Em pequenos recipientes, à semelhança de filtros de cerâmica, com capacidade para 10 litros de água, recomenda-se colocar 10 gotas de cloro na forma de hipoclorito de sódio a uma concentração de 10% de cloro. Esperar 30 minutos e a água está apta a ser consumida.

Um dos primeiros estudos sobre qualidade bacteriológica das águas de chuva armazenadas em cisternas foi desenvolvido por Amorim e Porto (2001) avaliando 14 cisternas localizadas na comunidade de Volta do Riacho, no município de Petrolina-PE, as quais são abastecidas com água de chuva e/ou com carro-pipa, no período sem chuvas. Em todas as cisternas foi constatada a presença de coliformes acima dos padrões de potabilidade recomendados pela legislação. Os autores associaram esta ocorrência principalmente à ausência de um processo de desinfeção da água durante seu armazenamento nas cisternas, deixando-a vulnerável à contaminação, que pode ocorrer através do contato da água com os recipientes que não são adequadamente acondicionados; além das cisternas não se encontrarem adequadamente protegidas e pelo próprio estado de conservação delas. Outro fator que pode explicar a indicação de contaminação fecal é a origem das águas, isto é, se são águas tratadas ou não e se podem ter sido contaminada pelos veículos fornecedores durante seu transporte, como no caso, as cisternas também recebiam água de carro pipa. A não potabilidade da água, em algumas cisternas, pode ser consequência de fatores motivados por uma gestão inadequada da tecnologia no âmbito familiar, principalmente, o transporte e armazenamento de águas nas cisternas oriundas de fontes não potáveis.

Posteriormente, nos anos de 2010 e 2011, estudos realizados por Silva Neto et al. (2012) avaliaram, em duas campanhas, a qualidade microbiológica e físico-química da água contida em 75 cisternas rurais de 15 localidades no Vale do São Francisco, no município de Petrolina-PE ,a fim de verificar a conformidade com os padrões legais de potabilidade microbiológica, identificando a origem da água armazenada e qualificando os coliformes fecais, como a Escherichia coli. Do total de cisternas amostradas, 86,7% apresentaram presença de coliformes fecais ou E. coli na primeira campanha, e 93,3% para a segunda campanha. Ou seja, apenas 13,3% e 6,7% das amostras da primeira e segunda campanha, respectivamente, estavam em conformidade com o padrão microbiológico da Portaria 2.914/11, do Ministério da Saúde.

Quanto à origem da água, verificou-se que 100% das cisternas recebem água de chuva e água de carro-pipa, de forma que mesmo após 10 anos dos primeiros estudos, encontrou-se a mesma situação quanto à qualidade da água de cisternas rurais e a origem desta. Embora, várias estratégias tenham sido estudadas, definidas e recomendadas para uso pelos programas de governo.

Quanto aos aspectos físico químicos da água de cisternas, o estudo de Silva Neto et al. (2012)

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indicaram que os valores de parâmetros como pH, cor e turbidez, para as duas campanhas estavam dentro dos padrões preconizados pela Portaria 2.914/11. Os resultados de pH indicaram que a água encontrava-se levemente neutra, independente da campanha, apresentando o valor médio de 7,4, estando dentro da faixa de valores recomendados pela portaria, que determina uma faixa de 6,0 a 9,5. A água de chuva adquire cor ao passar pela superfície destinada a sua captação devido à presença de partículas de poeira, folhas, resíduos de aves, e outros animais. Dessa forma, observa-se que os valores encontrados estavam de acordo com o estabelecido, que é até 15 uC no ponto de consumo. A média encontrada foi de 8 uC. Quanto à turbidez correspondeu, geralmente, às partículas sólidas em suspensão e o valor médio foi de 4,29, estando abaixo do valor máximo permitido pela portaria, que é de 5 uT.

Com relação ao manejo da água de chuva armazenada na cisterna, pode-se citar como principais medidas de melhoria/manutenção da qualidade da água de chuva armazenada: eliminação das primeiras águas das chuvas para lavar o telhado das casas; filtragem; uso do cloro; retirar a água da cisterna sempre utilizando bomba; lavagem da cisterna com periodicidade anual; manter a cisterna sempre fechada e sem rachaduras para evitar o desenvolvimento de algas, bem como cercar a área da cisterna para dificultar o acesso de animais e crianças em sua proximidade e evitar acidentes. Estas medidas reduzem os riscos de contaminação da água armazenada na cisterna (SILVA et al. 1984; BRITO et al. 2007b).

A não potabilidade da água em algumas cisternas pode ser consequência de fatores motivados por uma gestão inadequada da tecnologia no âmbito familiar, principalmente, o transporte e armazenamento de águas nas cisternas oriundas de fontes não potáveis.

Por fim, um outro aspecto a considerar no programa cisterna é a necessidade de orientação das famílias sobre questões relacionadas com a gestão da água, principalmente em situações de recursos limitados. Caso essas iniciativas não sejam viabilizadas, se torna difícil eliminar a ainda tão frequente utilização de carros-pipa para o abastecimento das comunidades rurais, em que não se tem garantia da qualidade, quantidade e regularidade da água fornecida, fato recorrente recentemente, no período de seca severa na região, entre 2012 e 2015.

No contexto da agricultura, acreditou-se que a irrigação poderia resolver o problema da falta de alimentos para uma população sempre crescente; no entanto, além de ser considerada a maior usuária dos recursos hídricos, é também uma das atividades que mais contamina os recursos naturais, em especial o solo e a água. A salinidade do solo e da água e a contaminação das fontes hídricas por nitrato estão incluídas entre os principais indicadores de poluição ambiental (ONGLEY, 2001; BROWN et al., 2000).

Aperfeiçoar a eficiência do uso da água na irrigação é tecnicamente possível, e também necessário. Esse aperfeiçoamento teria que levar em conta os problemas de encharcamento e salinização, causados normalmente pelo uso excessivo de água e por sistemas de drenagem mal projetados. É também tecnicamente possível aumentar a eficiência na utilização da água da chuva, mas como

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os recursos renováveis de água são limitados, o resultado poderia ser um menor escoamento, e portanto menor disponibilidade de água a jusante (LORD, 2001).

A poluição devida ao não tratamento dos efluentes domésticos e industriais e ao escoamento superficial de áreas agrícolas, também enfraquece a capacidade dos ecossistemas. Segundo a UNESCO (2015), investir em abastecimento de água e saneamento resulta em ganhos econômicos substanciais; nas regiões em desenvolvimento, o retorno do investimento foi estimado entre US$ 5 e US$ 28 por cada dólar investido. Calcula-se que seriam necessários 53 bilhões de dólares por ano, ao longo de cinco anos, para atingir uma cobertura universal – uma pequena soma, uma vez que representa menos de 0,1% do PIB mundial de 2010.

3. A política de água para o Semiárido brasileiro

As tecnologias e métodos de captação, uso e manejo de água de chuva mencionados têm sido disseminados e incorporados aos sistemas de produção em uso, por meio de inúmeros programas de desenvolvimento rural e de cunho social, à semelhança do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) e do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), financiados pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), como tecnologias sociais e coordenado pela Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA-Brasil).

3.1 Aumento da disponibilidade de água Segundo o MDS (2015), o programa Cisternas integra as ações de um outro programa de governo

– o Água para Todos. O Água para Todos é um programa do Governo Federal, executado no âmbito do Plano Brasil Sem Miséria, pelos ministérios do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), da Integração Nacional, do Meio Ambiente, além da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), da Fundação Banco do Brasil, da Petrobrás e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O MDS executa a ação por meio do programa Cisternas.

A implantação das tecnologias sociais de captação e armazenamento de água, aliada a outras políticas públicas, tem permitido a convivência com o Semiárido e transformado a vida das famílias ao assegurar o acesso à água para o consumo humano e para a produção de alimentos. Na Tabela 1, pode-se observar que a cisterna encontra-se em áreas de produtores de todos os estados delimitados pelo Semiárido brasileiro. Em outubro de 2015, o P1MC superou a meta e alcançou um total de 1.197.360 cisternas destinadas a atender as necessidades de beber de um número igual de famílias. Este quantitativo de cisterna armazena 19.157.760.000 de litros de água disponível no quintal das residências.

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Tabela 1 - Tecnologias de captação de água de chuva (P1MC/P1+2) implantadas por estado do Nordeste até agosto de 2015.

Fonte: http://mds.gov.br/area-de-imprensa/noticias/2015/outubro/agua-para-todos/

Análise semelhante deve ser feita com relação ao P1+2, onde se observa, na Tabela 1, que este programa, presente também em todo o Semiárido brasileiro, até outubro de 2015, implantou um total de 130.475 tecnologias de captação de água de chuva – a segunda água, destinada à produção de alimentos. Em outra informação, dada também pelo MDS, em 25 de novembro do mesmo ano, observa-se um incremento no total de tecnologias do P1+2 quando apresentou os dados desmembrados por tipologia de tecnologias (137.396), totalizando 18.121.936.000 litros de água que estão disponíveis para uso pelas famílias (Tabela 2). O somatório dos volumes disponibilizados por estes dois programas governamentais implantados em um período de 10 anos, supera 37 bilhões de litros de água, considerado bastante expressivo para as famílias, volume este maior que a capacidade de armazenamento de muitas barragens construídas no Semiárido brasileiro, além da grande vantagem de estar localizado próximo às residências das famílias.

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Tabela 2 - Tipos de tecnologias de armazenamento de água de chuva para produção de alimentos (P1+2) implantadas até outubro de 2015.

Fonte: Informações emitidas pelo MDS, em 25 de novembro de 2015, via mensagem eletrônica.

Segundo o MDS, o acesso à água possibilitou a melhoria da qualidade de vida e da saúde em muitos aspectos, sendo as maiores beneficiadas, neste caso, as mulheres e crianças, sobre quem recaía a tarefa de ter que caminhar longas distâncias e por várias horas do dia na tarefa de buscar água. Antes das cisternas, cada família desprendia, em média, seis horas por dia para ir buscar água – tempo que hoje pode ser dedicado a outras tarefas e para a melhoria da convivência familiar. Neste sentido, em estudos realizados por Brito et al. (2005), utilizando 60 cisternas construídas na Comunidade de Atalho, município de Petrolina-PE, constataram que 54% das famílias caminhavam até 5 Km, sendo necessárias até duas horas por dia para realizar esta atividade. Outros estudos, realizados por Lima et al. (2007), reforçam que com as famílias contempladas com as cisternas, pode haver uma divisão de trabalho nos domicílios por meio da redução do tempo utilizado para buscar a água, permitindo o envolvimento de mulheres e crianças em novas atividades (produtivas ou escolares).

A possibilidade de a família ter a garantia da água também propiciou a melhoria de sua dieta, permitindo a exploração e a manutenção de pequenas áreas de produção com frutas e hortaliças – denominadas por quintais produtivos. A produção de frutas e hortaliças tem por objetivo diversificar e melhorar a qualidade da alimentação das famílias rurais, introduzindo mais vitaminas e fibras, principalmente para as crianças e idosos. A cisterna do programa P1+2 tem capacidade para armazenar 52 mil litros de água para ser utilizada no pomar e/ou em canteiros de hortaliças, uma vez que família já dispõe de outra cisterna para atender ao consumo. Porém, este programa também contempla outras tecnologias com maiores capacidades de armazenamento de água. Para cada tipo de tecnologia ou volume de água disponível, as ações que poderão ser implementadas para proporcionar melhorias às famílias são as mais diversas. No caso dos “barreiros trincheira”, com capacidade de armazenamento em torno de 500 mil litros de água (Tabela 2 e Figura 3), a área explorada com frutas, hortaliças ou outras culturas pode ser maior ou se aplicar um volume maior de água para a obtenção de maiores produções e/ou a água atender também a um pequeno rebanho familiar ou comunitário.

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Em se tratando dos quintais produtivos, em que a cisterna tem capacidade de armazenamento limitado (52 mil litros), resultados de produção de frutas em área experimental apontam que foram obtidos 929,3 Kg quilos de frutas por ano, incluindo as espécies limoeiro, pinheira, aceroleira, mangueira rosa e espada, em anos de precipitações pluviométricas em torno da média histórica (500 mm), aplicando-se 5, 8 e 10 litros de água, por planta, três vezes por semana nos períodos de janeiro a abril; maio a agosto; e setembro a dezembro, respectivamente (BRITO & NACIMENTO, 2015).

Figura 3 - Pomar em área de produtor e canteiro com hortaliça em área experimental

Fotos: Nilton de Brito Cavalcanti, 2009

3.2 Reuso como alternativa para aumentar a disponibilidade de água

Quando se trata de quantidade de água em regiões semiáridas, observa-se que na maioria do tempo e do espaço, a evapotranspiração potencial é muito maior que a precipitação. Segundo Medeiros et al. (2011), em se tratando do ciclo hidrológico, o que ocorre de forma acentuada é a inconstante e não contínua disponibilidade natural da água.

Para garantir que, mesmo com limitação hídrica, a água seja um bem comum a todas as pessoas, ocorreram modificações ao longo do tempo das legislações nacionais que regem o uso do recurso hídrico. Tais mudanças foram desde pouco antes da Constituição Federal até os dias atuais, sendo a legislação mais pertinente a Política Nacional dos Recursos Hídricas, na qual consta em seus objetivos (Art. 2°):

I - assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos;

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II - a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, incluindo o transporte aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sustentável;

III - a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais.

Para que esses objetivos sejam cumpridos, de forma especial em regiões semiáridas, deve existir o processo de gestão da oferta e demanda das águas como papel fundamental. Para Mota (2000), alguns desafios devem ser enfrentados para a realização da gestão, onde passam pela melhoria da eficiência de captação da água de chuva, como descrito acima, e o seu posterior reuso.

Nos últimos anos, teve destaque em políticas públicas a implantação de sistemas de captação de água, porém, segundo a USEPA (2004), a reciclagem/reuso da água tem se tornado de fundamental importância para manter e conservar os recursos naturais como um todo. Esse processo pode ser viável através de implantação de uma política educativa e racional de reutilização de águas, em que pode ser levada em consideração a reciclagem de esgotos sanitários, advindos de centros urbanos, como forma interessante de adição de água.

Uma das definições mais simples para reuso de água é o aproveitamento/uso de água previamente utilizada uma ou mais vezes, ou água de qualidade inferior tratada ou não, para abastecer as necessidades de outros usos benéficos, inclusive o original (LAVRADOR, 1987).

O Conselho Nacional de Meio Ambiente e Conselho Nacional de Recursos Hídricos, por meio da Resolução Nº 54/2005, que estabelece modalidades, diretrizes e critérios gerais para a política de reuso direto não potável de água, apresentam a definição de reuso de água como a utilização de água residuária.

Uma síntese das formas de reuso da água é apresentada por Mota et al. (2009), como pode ser observado na figura ao lado (Figura 4).

Figura 4. Formas de reuso de água.

Fonte: adaptado de Mota et al. (2009).

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A forma direta está relacionada com o encaminhamento até o seu lugar de reuso, após os devidos tratamentos; na indireta planejada ocorre o tratamento, e de maneira controlada, é descartada nos corpos d’água e, por fim, a indireta não planejada acontece quando de forma não controlada, descarta-se o efluente em corpos hídricos e capta novamente, assim está presente apenas o processo de diluição.

Um dos principais fatores limitantes do reuso de água na agricultura é a falta de legislação. Nas legislações ambiental e hídrica, apenas salienta-se a busca de formas de racionalização da água. Assim, o reuso é realizado por meio dos precedentes da legislação. Um outro fator limitante é a cultura para a prática do reuso, que dificulta a expansão dessa técnica, podendo-se fazer desenvolver programas e projetos de educação ambiental que trabalhem melhor o conceito, funções e utilidades desse tipo de prática (CREA-PR, 2010).

Os esgotos tratados têm um papel fundamental no planejamento e na gestão sustentável dos recursos hídricos como um substituto para o uso de águas destinadas a fins agrícolas e de irrigação, entre outros. A água de reuso é outro produto resultante do tratamento de esgoto. Ela pode ser utilizada para a rega de jardins, lavagem de pisos, descargas dos vasos sanitários entre outros fins que não seja o consumo humano.

Quando projetos de irrigação se utilizam de reuso de água, deve passar por constantes avaliações e monitorados no decorrer de seu desenvolvimento, principalmente quanto ao atendimento das determinações da legislação ou normalização que diz respeito a saúde humana.

Segundo Miller (2006), apesar de todas as técnicas e aplicações do reuso da água que já podem ser observadas em diversos países, o quantitativo de utilização deste produto ainda é muito pequeno quando comparado ao enorme potencial, representando assim uma perspectiva viável para o futuro.

Apesar do reuso ter surgido como uma forte alternativa para a garantia da sustentabilidade em ambientes rurais semiáridos, não se pode esquecer do primeiro componente para a introdução dessa alternativa, que é a captação de água de chuva. Como observado no decorrer deste capítulo, já foi constatada a existência de tecnologias primárias, no Semiárido do Brasil, que permite a captação e o armazenamento de água da chuva, com finalidade para uso humano e para agropecuária.

Como estratégias de convivência com o Semiárido, destacam-se, atualmente, os sistemas produtivos que promovem o uso múltiplo das águas. Assim, já podem ser observados vários casos de aplicação que conseguiram o sucesso na captação de água de chuva (GNADLINGER, 2011; SILVA et al., 1981) e de reuso (FRIEDLER, 2001; DUARTE, 2007). Segundo Winpenny et al. (2010), o objetivo de todas essas aplicações é a economia de água na agricultura, a fim de tornar uma viabilidade prática em locais com restrição hídrica. Além dessa contribuição, os nutrientes contidos nestas águas representam uma vantagem econômica significativa, de forma especial para a irrigação e piscicultura (MOTA e VON SPERLING, 2009).

Mesmo que já ocorram casos de sucessos com a reutilização de água e, ainda assim, não exista lei específica para tal normatização, deve-se buscar a implementação de tais medidas, considerando

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os critérios microbiológicos da OMS para a aplicação da água de reuso na agricultura. Observa-se que os quantitativos dos índices são rigorosos quanto à remoção de helmintos, uma maior liberdade quanto à qualidade bacteriológica e não contempla os valores em relação aos vírus e protozoários. Pode-se observar um resumo da normatização da OMS, na Tabela 3.

Fonte: Adaptado OMS, 1989.

(1) Em casos específicos, as presentes recomendações devem ser adaptadas a fatores locais de ordem ambiental, sócio-cultural e epidemiológica.

(2) Ascaris, trichuris, necator e ancylostoma: média aritmética durante o período de irrigação.

(3) Média geométrica durante o período de irrigação.

(4) Para parques e jardins onde o acesso é público é permitido: 200 CF/100 ml.

(5) No caso de frutíferas, a irrigação deve terminar duas semanas antes da colheita e nenhum fruto deve ser apanhado do chão. Não se deve usar irrigação por aspersão

De forma a complementar, os projetos de reuso de água, deve-se ter como base as normas NBR 13969:1997 (ABNT, 1997), as quais compreendem 4 tipos de classificações, sendo a classe 1 – Usos que requerem o contato direto do usuário com a água: turbidez inferior a 5; coliforme fecal

Tabela 3 - Enquadramento microbiológico recomendado pela OMS para o uso das águas residuárias na agricultura.

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inferior a 200 NMP/100ml; sólidos dissolvidos totais inferior a 200 mg/l; pH entre 6.0 e 8.0; cloro residual entre 0,5 mg/l e 1,5 mg/l. A classe 2 – Lavagens de pisos, calçadas e irrigação dos jardins: turbidez - inferior a 5; coliforme fecal inferior a 500 NMP/100ml; cloro residual superior a 0,5 mg/l. A classe 3 – Reuso nas descargas dos vasos sanitários: turbidez - inferior a 10; coliforme fecal – inferior a 500 NMP/100ml. E, por fim, a classe 4 – reuso nos pomares, cereais, forragens, pastagens para gados e outros cultivos através de escoamento superficial ou por sistema de irrigação pontual: coliforme fecal – inferior a 5.000 NMP/100ml; oxigênio dissolvido acima de 2,0 mg/l, com aplicações interrompidas pelo menos 10 dias antes da colheita.

Com todos esses enquadramentos, o PROSAB (BASTOS, 2003) relatou experiências do uso de água de reuso em cumprimento às normas da OMS, em que na sua maioria, o uso desta água na agricultura faz com que se obtenha um produto de boa qualidade e aceitável para o consumo humano.

Além dos parâmetros biológicos, devem-se conhecer alguns parâmetros químicos, a exemplo de condutividade elétrica da água, razão de adsorção de sódio, concentração de boro e concentração de bicarbonato. E de uma maneira geral, deve-se observar como o tratamento do efluente foi realizado e também as características do seu produto final, a fim de obter o conhecimento das restrições para as culturas, para o manejo da irrigação, para a saúde do agricultor e, acima de tudo, a promoção da higiene (BRAGA e LIMA, 2014).

Diante dessas observações, vale ressaltar que Rebouças (1997) já relatava que uma das soluções para o déficit de água no Nordeste era o reuso e essa aplicação deveria se assemelhar a forma de uso em Israel, cuja demanda de água era maior que a oferta natural. Estes aspectos irão melhorar quando legislações forem implantadas e for obrigatório o reuso de águas pelos setores que mais poluem os corpos hídricos.

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133 www.worldwatercouncil.org – consultado em 24 de novembro de 2015.

Notas

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ALUVIÕES EM RIOS INTERMITENTES: MANANCIAL HÍDRICO E USO HISTÓRICO

Ricardo Augusto Pessoa Braga Edneida Rabêlo Cavalcanti

1.Introdução

1.1 As águas de aluvião no Semiárido brasileiro

A condição de semiaridez da maior parte do Nordeste brasileiro, consequência da baixa pluviosidade, alta insolação e grande evaporação potencial, acrescida da predominância de solos rasos de reduzida capacidade de retenção da água durante as chuvas, gera um quase permanente déficit hídrico na região. É certo que existem manchas sedimentares, com capacidade de armazenamento de água no subsolo, mas essas são escassas e distribuídas em apenas algumas áreas, como o são as formações Jatobá e Araripe.

Nesse contexto, apresentam-se como alternativas de armazenamento natural de água para consumo local, as aluviões distribuídas ao longo do leito dos rios intermitentes. Simultaneamente ao uso dessas aluviões como manancial hídrico estratégico, ocorre outro uso histórico que é a retirada de areia para processos construtivos. Contudo, a pressão sobre o manancial, decorrente do longo período de estiagem iniciado em 2011, além do incremento na exploração de areia, com destaque para a fase de surto de crescimento da atividade econômica no interior do Nordeste, tem desencadeado tensões e até mesmo conflitos estre esses dois usos. O comprometimento do manancial fica evidente e, no dizer popular local, “sem areia, não tem água”.

A abordagem dos problemas ambientais em perspectiva histórica requer níveis de análise que começam por entender a dinâmica da estrutura e distribuição dos ambientes naturais ao longo do tempo, a tecnologia interatuando com esses ambientes, a partir dos distintos modos de produção, que organiza o trabalho humano, e a partir disso transforma a natureza não humana, num processo que, por sua vez, reestrutura a própria sociedade, assim como considerar outro nível de análise não menos importante, e que leva em consideração as questões éticas, os mitos, os paradigmas, as leis e estruturas que fazem parte do diálogo entre o indivíduo, a sociedade e a natureza não humana (HERRERA, 2016)134.

1.2 As aluviões no Semiárido

As aluviões são depósitos de sedimentos (areia, argila e cascalho) transportados pelas águas e

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que se depositam no leito dos rios ou dos riachos. Esta acumulação de sedimentos ocorre quando as águas perdem velocidade e capacidade de mantê-los em suspensão.

Após erosão e deslocamentos pelas enxurradas, tais sedimentos espraiam-se pelas partes baixas do relevo, formando as planícies aluvionais, podendo ser formadas por rebaixamentos rápidos do leito e por rebaixamentos profundos, seguidos de longos períodos de assoreamento de leito.

Em corte transversal do rio (Figura 1), pode-se identificar os diferentes leitos fluviais, desde o leito de vazante encaixado na calha até o leito maior, transcendendo os diques de margem, só alcançados durante as enchentes.

Figura 1 - Leitos fluviais em perfil transversal das planícies de inundação.

Fonte: Diniz (2015).

Quando das chuvas, o escoamento superficial instantâneo, no solo raso ou pedregoso, leva às enxurradas e à chegada da frente de água no leito seco, em um bonito fenômeno de mudança da realidade do rio, que traz alegria e motivação para os habitantes, sobretudo rurais (Figura 2). O fenômeno das chuvas e das enchentes opera, em sua transitoriedade, uma verdadeira transformação da paisagem de plantas, bichos e seres humanos, no Agreste e Sertão nordestino.

Figura 2 - Frente de água chegando em enxurrada no leito seco de rio no Semiárido brasileiro.

Foto: Arnaldo Vitorino (2015).

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Assim, no Semiárido os rios e riachos são normalmente intermitentes, com vazão apenas durante o período de chuvas ou por apenas algumas semanas mais. No restante do tempo, as águas deixam de escoar pela superfície do leito desses cursos d´água, ocasião em que estão secos em sua calha, ocorrendo, por vezes, apenas um filete de água que meandra na superfície.

As enxurradas trazem consigo cascalhos, argilas e areias, que são arrastados para dentro do leito do rio com maior ou menor vigor, a depender da intensidade da chuva, do relevo e da disponibilidade desse material sedimentar no solo. Passadas as chuvas, a maior parte desse sedimento permanece no leito, sendo chamado genericamente de areias de aluvião, por vezes exploradas para a construção civil.

Todavia, nos longos períodos de seca, a deposição praticamente não ocorre, e nos anos normais de chuvas e estiagem, o processo de formação das aluviões acontece lentamente, ao longo de décadas e séculos. Sendo assim, se a areia é explorada, não ocorre uma reposição ao estoque do leito em curto prazo, na mesma velocidade da retirada, havendo apenas uma acomodação dos sedimentos já existentes (BRAGA, 2016a). A situação pode ser agravada se houver a construção de pequenos ou grandes barramentos de superfície, em que os sedimentos são retidos, impedindo a alimentação dos trechos à jusante. Além disso, o processo milenar de erosão do solo tem gerado redução de material sedimentar na bacia de drenagem, que seria o material novo disponível para transporte pelas enxurradas, o que acarreta redução de aporte para o leito dos corpos d’água. Esse fenômeno tem ocorrido, sobretudo, nas cabeceiras de drenagem e nas áreas de mau uso do solo com desmatamentos e queimadas (MONTENEGRO, 2015).

Quando as águas superficiais alcançam o leito arenoso, simultaneamente ao escoamento ocorre a infiltração no solo poroso e o preenchimento das cavidades existentes entre os grãos da areia de aluvião. A percolação é tão mais rápida quanto maior for a granulometria do sedimento, saturando progressivamente o solo de baixo para cima, da base rochosa até a superfície, elevando continuamente o nível freático. A tendência, após as cheias, é que o freático alcance a superfície, com o solo plenamente saturado.

Cessadas as chuvas, as águas que não seguiram para jusante e não infiltraram, vão rapidamente evaporando até que a superfície do solo se torne apenas úmida e, depois, seca. No entanto, a água contida na porosidade das areias de aluvião permanece por mais tempo, geralmente por toda a estiagem e, às vezes, chega a atravessar o longo período de uma seca.

Como o calor provocado pela forte insolação aquece a camada de areia mais próxima à superfície, continua havendo evaporação, com arraste da água vaporizada e, consequentemente, enxugamento da coluna de areia até o limite em que a água situada mais abaixo perde conectividade hidráulica com o estrato superior do solo. A partir daí, espera-se que a água do freático não mais seja perdida para a atmosfera, porque terá cessado a evaporação. Nessas condições, as areias de aluvião funcionam como uma grande cisterna, cuja tampa corresponde ao estrato superior seco, que impede a transmissibilidade da água.

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Araújo Filho et al. (2016) confirmaram, em experimento no Agreste pernambucano, a importância da camada de areia acima do aquífero para diminuir, ou até neutralizar, a evaporação da água contida nas areias de leito seco de rio intermitente. Constataram que a espessura de areia acima do lençol freático deve ser de pelo menos 40 centímetros, possibilitando a proteção do manancial contra a evaporação.

Atente-se, porém, que mesmo sem evaporação há uma tendência ao escoamento subterrâneo dessa água, devido à inclinação do leito para jusante, podendo esta vazão ser mais ou menos significativa, a depender do relevo. Porém, isso não ocorre se, atravessando o leito do curso d´água, houver ondulação do embasamento rochoso que forma uma soleira intransponível para águas e sedimentos, fenômeno bastante frequente na região, criando uma barragem subterrânea natural (Figura 3).

Outra situação, em que pode acontecer escape da água da aluvião, ocorre a partir de fissura na rocha cristalina, cuja abertura esteja em contato com o sedimento aluvional, facilitando a migração do líquido para as cavidades existentes. Nesse caso, acontece uma transferência da água do manancial da aluvião para o aquífero fissural.

Figura 3 - Corte longitudinal de rio intermitente em que a ondulação do embasamento rochoso proporciona acúmulo de areia e água. A seta revela o sentido de escoamento do rio.

Fonte: Resolução CONSEMA 01/2013.

A extensão dessas aluviões nos rios e riachos intermitentes no Semiárido é muito grande, embora possa variar em largura e espessura, a depender das condições geográficas locais. Segundo Diniz (2015), no Nordeste, as aluviões possuem grande importância para sobrevivência de comunidades rurais, identificando a predominância dos depósitos aluvionais nos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, embora a maior abundância seja nos dois primeiros, em função de possuir vales mais profundos.

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1.3 Potencial das aluviões como manancial hídrico

De acordo com estimativas apresentadas por Diniz (2015), as aluviões do Nordeste possuem uma reserva hídrica total explorável de 5,4 bilhões m³/ano, o que corresponde a ¼ de toda água dos grandes açudes, mostrando sua grande importância estratégica já que, segundo o mesmo autor, todos os açudes com mais de 100 milhões de m³ do Nordeste comportam 21 bilhões m³ de água.

Porém, essas águas, invisíveis e tão estratégicas, só podem continuar existindo e disponíveis para as populações rurais, nas ocasiões em que mais necessitam, se a areia permanecer no leito enquanto o este aparenta estar seco. É a possibilidade de sustentabilidade hídrica local em tempos difíceis de estiagem e, sobretudo, de seca no Semiárido brasileiro.

A água de aluvião apresenta-se com qualidade variável, podendo ser considerada água doce compatível para o consumo doméstico, ou mesmo salobra, a ponto de não poder ser utilizada para irrigação de muitas culturas agrícolas ou para a dessedentação de animais, particularmente na avicultura.

Em função dos seus usos, é importante avaliar a qualidade da água desses mananciais, uma vez que pode sofrer alterações ao longo do tempo, principalmente se não houver manejo adequado dessa fonte hídrica (MONTENEGRO et al., 2003; ALBUQUERQUE et al., 2008; COSTA et al., 2010).

Gusmão (2016), ao estudar as águas de aluvião em período de seca severa, do trecho superior do rio Capibaribe em Pernambuco, avaliou a qualidade em poços escavados na areia (cacimbas) e em poços construídos em alvenaria (cacimbões ou poços amazonas). Quanto à salinidade, apresentou-se muito baixa ou nula (0 a 1%) em período imediatamente após as chuvas, elevando-se para até 15% no auge da estiagem.

De acordo com o levantamento realizado, o mesmo autor afirma que em nenhuma das amostras coletadas nos poços, as águas se mostraram potáveis, ou seja, não atendendo ao padrão brasileiro de potabilidade, principalmente no que tange à turbidez, cor aparente (aspectos físicos); salinidade, dureza total e ferro total (aspectos químicos); e coliformes termotolerantes (aspectos microbiológicos) Em decorrência, as águas brutas captadas nesses cacimbões e cacimbas escavadas não deveriam ser utilizadas diretamente para consumo humano, especialmente para beber (ingestão) e para lavagem e preparo de alimentos. Para esses usos, a água precisaria ser previamente submetida a tratamento com o objetivo de torná-la potável.

Localmente, essas águas são usadas geralmente para o gasto da família rural (banhos, lavagem de louças e de roupas e higiene da casa) e para a agricultura e pecuária de subsistência. Porém, quando necessário, também são consumidas para ingestão e cozimento dos alimentos, com ou sem cloração prévia. De fato, após tratamento relativamente simples, tais como filtração e desinfecção domiciliar, essas águas podem se tornar potáveis e utilizadas para consumo humano direto (LIBÂNIO et al., 2002; GUSMÃO, 2009), desde que não estejam salinizadas.

Molica e Vilar (2016), estudando o mesmo trecho do Alto Rio Capibaribe, reconheceram que o

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ambiente encontrado em poços do leito seco do rio apresenta condições favoráveis à ocorrência de diferentes espécies de microalgas e cianobactérias, identificando uma diversidade de mais de 60 táxons. Também avaliaram que as concentrações de fosfato e nitrato encontradas nos poços sem cobertura com tampa foram elevadas, principalmente as de fosfato, quando comparadas a dados de ambientes eutrofizados, estando associados ao grau de trofia (poluição) dos corpos d’água, sendo a eutrofização uma das principais causas da ocorrência de florações de cianobactérias e microalgas, havendo o risco da produção de toxinas. Entretanto, segundo os autores, em comparação às encontradas em eventos de florações em reservatórios de abastecimento do Nordeste brasileiro, as densidades celulares encontradas foram baixas.

Uma das conclusões desse estudo é de que os cacimbões deveriam ser mantidos permanentemente fechados, a fim de evitar a entrada de luz e de detritos orgânicos, impedindo o crescimento de microrganismos fotossintetizantes.

2. Os poços de captação das águas em aluvião

As cacimbas (poços só escavados) e cacimbões (também denominados poços amazonas) são as estruturas comumente utilizadas para captar água do lençol freático das aluviões em leito dos rios intermitentes.

2.1 Os poços nas aluviões

De acordo com a EMBRAPA (2006), a cacimba (Figuras 4) é uma escavação rasa feita no leito principal de rios e riachos temporários. Com o prolongamento do período seco o buraco vai sendo aprofundado, até alcançar o nível da água. No período de chuvas, porém, a cacimba é aterrada com os sedimentos trazidos pelas correntezas.

Figura 4 - Cacimbas, ou poços escavados na aluvião de rio intermitente.

Fonte: Paiva (2016).

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Já os cacimbões (Figuras 5) são poços que possuem paredes, normalmente de concreto ou alvenaria de tijolos cerâmicos, maciços ou de furos, ou mesmo de pedras argamassadas. O diâmetro e a profundidade dependem geralmente do volume de água que se quer captar, embora se devesse observar também as limitações hidráulicas do aquífero. Assim, é comum, nas aluviões, poços amazonas variando 2 a 20 metros e diâmetros de 1,5 a 5,0 metros. Esta profundidade não é determinada somente pela presença da água, mas também pela presença do embasamento cristalino impermeável (ALBUQUERQUE; RÊGO, 1990). Assim, a profundidade é definida em função da espessura da aluvião e da profundidade do nível de água.

Figura 5 - Cacimbão ou poço amazonas, construídos na aluvião de rio intermitente.

Fonte: Paiva (2016).

Esses poços amazonas são indispensáveis no leito aluvional da bacia hidráulica de barragens subterrâneas, possibilitando a captação da água acumulada pela retenção na coluna de areia quando das chuvas (EMBRAPA, 2006; FEITOSA; MANOEL FILHO, 2007).

Segundo Albuquerque e Rêgo (1990), uma parte importante do poço amazonas é a seção filtrante, que possibilita o fluxo de água para dentro deste poço. Nos cacimbões, encontram-se dois tipos deles: os desprovidos de seção lateral filtrante, nos quais a água percola para o poço (praticamente através do fundo do poço); e os que dispõem de uma seção filtrante, representada pelo espaço resultante da justaposição de tijolos especialmente fabricados para tal fim ou furos radiais na parede da estrutura do poço (Figura 6).

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Fonte: Paiva et al. (2016).

Segundo Diniz (2015) esses poços amazonas podem conter drenos radiais que aumentam o rendimento de captação de água, exigindo, porém, a instalação de ponteiras horizontais internamente ao poço com uso de cilindros hidráulicos para penetração no meio do sedimento.

Paiva et al. (2016) realizaram levantamento dos métodos construtivos e dos materiais utilizados na implantação de 84 cacimbões no Alto Capibaribe, encontrando uma grande diversidade de materiais usados na parede dos poços (Tabela 1), sendo que o uso de tijolos cerâmicos maciços foi predominante. Os autores, no mesmo trabalho, observaram que 81% desses poços amazonas não possuem tampa, o que deixa o poço susceptível a diversas fontes de contaminação e atolamento de sedimentos, principalmente em períodos de cheias, ainda que a maioria dos poços amazonas (65%) esteja construída próximo ao eixo da calha principal da aluvião, em 65% dos poços, devido à busca por maiores profundidades para captar maiores volumes d’água no período seco. Essa localização, no entanto, traz transtornos no período das inundações, uma vez que 78% deles são cobertos pelas águas do rio em épocas de cheias.

Fonte: Diniz (2015) (adaptado).

Figura 6 - Exemplos de esquema de poços amazonas sem (a) ou com (b) seção filtrante.

Tabela 1 - Distribuição dos tipos de materiais utilizados nos poços amazonas na aluvião do Alto Capibaribe.

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No âmbito do Projeto ‘Águas de Areias’, desenvolvido pela Associação Águas do Nordeste (ANE) de 2012 a 2016, foram implantados poços construídos com anéis de concreto armado, buscando-se capacitar os agricultores e agentes técnicos locais para a difusão da prática. O uso dos anéis de concreto, moldáveis no local da intervenção, já era conhecido na região, em função da experiência difundida pela Associação Menonita de Assistência Social (SZILASSY, 1989). A ANE procurou adaptar o processo para barateamento e agilidade na construção, introduzindo também algumas alterações no método.

Os anéis de concreto são construídos no local, com uso de formas de metal de 1,5 ou 2,5 metros de diâmetro, desmontáveis, em três partes para facilitar o manuseio e transporte (Figura 7). Cada forma possui 0,5 m de altura, com 18 furos laterais (diâmetro de 15 mm), sendo seis em cada uma das três peças, para facilitar a drenagem lateral da água para dentro do poço (Figura 8).

Foto: Arquivo da ANE (2014).

Figura 7 - Jogo da forma de 1,5 m utilizada pela ANE para instalação de cacimbões.

Fonte: Paiva et al. (2016).

Figura 8 - Modelo de cacimbão (poço amazonas), implementado pelo projeto Águas de Areias.

Na execução do poço com a forma, a colocação dos furos laterais é opcional, a depender das características do sedimento, uma vez que sendo material não consolidado (mais solto), não se recomendam os furos laterais, pois podem facilitar o carreamento de material da aluvião para dentro do poço. Como inovação na construção destes poços, propôs-se o uso das barras verticais de ferro (diâmetro de meia polegada), para garantir a verticalidade do poço e a prevenção de desalinhamentos. Esse processo é descrito com detalhes em Paiva et al. (2016) e na Figura 9.

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Figura 9 - Etapas da construção de poço amazonas, construído pelo Projeto Águas de Areias no Sítio Poço Comprido, Brejo da Madre de Deus (PE).

Fonte: Paiva et al. (2016).

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2.2 Conflitos pelo uso da água nas aluviões

É evidente a necessidade de proteção das areias de aluvião para a conservação da água nela armazenada, assim como o é a importância do uso sustentado desse manancial hídrico, por meio de priorização de demandas, em relação à quantidade e destino.

No entanto, o que se verifica em muitos trechos de rios intermitentes do Semiárido são, simultaneamente, a extração de areias para a construção civil e o uso descontrolado de suas águas, sobretudo nos períodos críticos de estiagem, com consequentes conflitos.

O reconhecimento de que “sem areia não tem água”, afirmativa comumente ouvida nas áreas de ocorrência da aluvião, não é levada em consideração pelos mineradores de areia, que exploram o mineral até à sua exaustão local, inviabilizando a retenção e guarda das águas nos próximos períodos de chuvas e enxurradas. Esta situação é agravada pela real necessidade desse tipo de agregado em obras urbanas, sendo o preço do produto acentuadamente definido pelo custo do transporte, o que motiva a exploração das areias nas proximidades da demanda, independentemente da vulnerabilidade das jazidas.

Por outro lado, a disponibilidade da água freática nessas aluviões após as chuvas atrai demandas pela agricultura irrigada nas margens desses cursos d´água com plantio de hortaliças, predominantemente de tomate, cenoura e beterraba. Os irrigantes atuam como nômades, montando suas estruturas de captação hidráulica e utilizando intensivamente a água até inviabilizá-la enquanto recurso, suspendendo então a atividade e aguardando novo momento propício.

Além disso, as secas prolongadas têm implicado em insuficiência e até colapso no abastecimento público de cidades e povoados, estimulando a captação e comercialização das águas de aluvião pelos caminhões-pipa, o que reduz ainda mais a disponibilidade hídrica para os moradores rurais, dispersos ao longo desses cursos d´água intermitentes. Assim, a retirada excessiva de areia e o descontrole no uso da água da aluvião têm gerado conflitos socioambientais graves, já referidos por diversos autores (BRAGA et al., 2014; FARIAS et al., 2016; CAVALCANTI et al., 2016).

Buscando racionalizar a exploração de areia em leito aluvional sem prejudicar a sua condição de manancial hídrico, em Pernambuco, o Conselho Estadual de Meio Ambiente aprovou a normatização do licenciamento ambiental da atividade (RESOLUÇÃO CONSEMA, 01/2013) e o Conselho Estadual de Recursos Hídricos aprovou normas para a outorga de uso de recursos hídricos (RESOLUÇÃO CRH, 02/2017) relativas à mesma atividade. Na Paraíba, o Conselho Proteção Ambiental (Deliberação COPAM nº 3577/2014) também definiu as condições técnicas e socioambientais para a permissão da exploração de areia nas aluviões. Tais normas podem ser replicadas ou adaptadas para os demais estados nordestinos, já que todos possuem aluviões em rios intermitentes do Semiárido.

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3. Contribuição das aluviões na sustentabilidade hídrica de populações rurais difusas

A água representa um componente físico fundamental na produção do espaço e influencia de maneira significativa a localização das atividades produtivas e econômicas que fazem usos múltiplos dela e lhe imprimem um caráter eminentemente geográfico, evidenciando a relação direta e indissociável entre sociedade e natureza. Ao mesmo tempo em que é um elemento da natureza, a água é também recurso indispensável ao desenvolvimento da sociedade. Por sua vez, é o caminho e o sentido das águas superficiais e subsuperficiais que conduzem a delimitação da bacia hidrográfica e que aglutinam a ideia de interconexão, de interdependência e de dinâmica entre os elementos presentes na paisagem.

É necessário ter a compreensão de que os processos que ocorrem na bacia hidrográfica repercutem nos recursos hídricos superficiais e/ou subterrâneos e de que a combinação entre condições climáticas, cobertura vegetal, embasamento geológico e ação antrópica é fator decisivo para uma maior ou menor vulnerabilidade hídrica (CARVALHO, 2012). Dessa forma, análises que ultrapassem as interpretações centradas apenas em dados do meio físico-biológico e incorporem o entendimento de que a vulnerabilidade hídrica traduz as relações estabelecidas entre os sistemas sociais e ecológicos na bacia hidrográfica, e as inter-relações com outros diferentes contextos, precisam ser estimuladas e praticadas em processos de planejamento e gestão.

Mesmo em caso de rios intermitentes, a bacia hidrográfica pode ser admitida como “célula básica de análise ambiental”, conforme define Botelho; Silva (2004), e evidencia as interações ali existentes, o que requer a adoção de uma abordagem metodológica sistêmica e na lógica da complexidade. Também remete a importância de atrelar a dimensão histórica no processo de ocupação-transformação dos espaços geográficos, como elemento que auxilia na compreensão sobre as mudanças socioecológicas e as capacidades adaptativas que vão se constituindo.

A bacia hidrográfica e suas subunidades constitui um referencial espacial que possibilita analisar a relação das comunidades ali existentes com a materialidade dos elementos da natureza em sua historicidade, principalmente quando existe um tema ou processo que permita o estabelecimento de temporalidades, permanências e transformações (ARRUDA, 2015), como é o caso do uso da água de aluvião.

Nessa perspectiva, a natureza é tomada como algo em permanente construção e reconstrução ao longo do tempo, rompendo com a visão tradicional de uma realidade pronta e estável que serve como palco para a intervenção humana (PÁDUA, 2010). Por sua vez, as generalizações contidas nas expressões ser humano, população, sociedade, precisam ser expressas a partir, não só da diversidade de atores aí contida, mas das relações sociais e do poder que se estabelecem, influenciando e sendo influenciadas pelas intervenções feitas na natureza não humana.

Esse olhar histórico, pautado pela dimensão ambiental, possibilita identificar e buscar compreender a complexidade ambiental na história passada e mobiliza uma ação prospectiva para

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a construção de outra racionalidade ambiental, baseada na sustentabilidade (LEFF, 2005). Nessa lógica, aspectos ligados a incertezas e imprevisibilidades tomam espaço de grande importância e a própria noção de adaptação passa a ser balizada com conceitos como o de coevolução e coabitação (MATURANA; VARELA, 1987; PÁDUA, 2010), que pressupõem um caminho do meio entre o biocentrismo e o antropocentrismo.

3.1 Os rios e o ordenamento da paisagem no interior do Nordeste

Percebe-se claramente a importância dos rios e riachos na formação territorial do interior do Nordeste, mesmo nas situações onde estes possuem caráter intermitente, vistos aqui como expressões privilegiadas da dinâmica em escalas mais amplas. Para os primeiros colonizadores, percorrer a extensão dos territórios a serem desbravados, acompanhando os cursos d´água, considerando os rios como possíveis estradas e referência espacial, consistia na atitude mais adequada, também em virtude de que a proximidade da água podia garantir a sobrevivência de pessoas e animais (CORTEZ, 2013).

Contudo, é necessário destacar que a concepção dos rios como vias navegáveis, as quais servem para o transporte de cargas e mercadorias, esbarra em restrições no caminho para o interior, em virtude das chuvas serem concentradas em quatro meses do ano, ficando o restante do tempo apenas o leito do rio seco. Daí a necessidade de compreender a importância de tais rios como referência espacial a partir das estradas de ribeiras que seguiam o seu traçado e assim explicava sua importância mesmo na ausência da água. A inexistência da água corrente no rio não limitava o seu papel na provisão desse recurso estratégico na empreitada de colonização do interior Semiárido e instalação da atividade pecuária, já que havia a possibilidade de exploração das aluviões.

Para Studart Filho (1937, p. 29): “cada rio e riacho possuiu, desde cedo, a sua estrada de ribeira, desenrolando-se ora por uma, ora pela outra margem, da foz às cabeceiras, e ao longo das quais se edificavam os currais, as casas dos vaqueiros e até as casas senhoriais”. Uma variedade de embriões de povoamento, de diferentes níveis e perfis, era fixada ao longo desses caminhos. Segundo Arraes (2013, p.56), “pousos se estabeleciam (geralmente para a engorda da boiada e acomodação dos vaqueiros, passadores e tangedores), fazendas e capelas eram erguidas, bem como paróquias, ‘julgados’ e vilas eram oficializadas”.

Sendo assim, a compreensão da formação das estradas de ribeiras precisa ser vista em sua relação com a doação de sesmarias, onde a concessão era feita entre senhores, respeitando a proximidade a cursos d´água, ampliando assim a possibilidade de permanência dos colonos nessas terras (CORTEZ, 2013).

Na Capitania de Pernambuco, a povoação para o interior ocorreu na primeira metade do século XVI, ainda durante o período de Duarte Coelho, o primeiro donatário. Mello (1966, p. 8) afirma, com base na documentação do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, que “desde 1639 e, sobretudo,

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depois de 1645, há referências a contatos com índios rodelas procedentes da região de Cabrobó, o sertão de rodelas” nas terras do médio São Francisco e chegando até o extremo limite, a sudoeste da Capitania de Pernambuco, precisamente no Sertão de Carinhanha.

Por sua vez, Pires (1979, p. 183) registra que “durante o século XVII coube a Pernambuco a penetração por todo lado esquerdo do rio São Francisco: da foz às nascentes”. O trajeto era efetivado a partir do povoado do Recife, atravessando o Rio Capibaribe acima e atingindo os sertões. Ainda segundo o autor, a região era de extremo fluxo de gente e de mercadoria, servindo de canal de contato com a região do norte mineiro, onde estavam situados vários arraiais, como o Tijuco. As riquezas que circulavam a partir desse trajeto foram também direcionadas para as ornamentações e reconstruções de igrejas na Vila do Recife, na primeira década do século XVIII (MILFONT; PONTUAL; MONTEIRO, 2011).

A expressão “caminhos de Pernambuco”, citada na documentação histórica de Minas Gerais, durante o século XVIII, provavelmente se refere aos roteiros de viagem destacados por Mello (1966), que ligavam o povoado do Recife ao Rio São Francisco e seguia o curso do Rio Capibaribe, indo até sua nascente, cortando o território paraibano até atingir a ribeira do Rio Pajeú (atuais municípios pernambucanos de Itapetim e São José do Egito). Ao atingir a ribeira do referido rio, se seguia até o Brejo do Gama, de onde cruzava em direção a Cabrobó, à margem do São Francisco. Ao longo desse caminho, se destacavam fazendas e suas pequenas paróquias, roças e engenhos, que serviam de paradas para os aventureiros.

Nesse percurso, foi se constituindo o desenho de ocupação, as relações sociais de produção, as formas de uso dos recursos, as estratégias de adaptação ao ambiente Semiárido e suas restrições.

3.2 As aluviões de leito seco e seus usos históricos Como visto anteriormente, no processo de penetração para o interior Semiárido, as estradas de

ribeira desempenhavam um papel importante pela referência geográfica do leito de rios e riachos, mesmo que secos, e também por oferecerem água para pessoas e animais, seja das águas correntes, durante o período concentrado de chuvas, seja das aluviões, nas estiagens e mesmo nos períodos de secas interanuais.

As limitações impostas pelos períodos de estiagem para o criatório, principal atividade econômica no Semiárido que estava sendo colonizado, era intensa e levou os fazendeiros a já tratarem de construir açudes, barreiros, tanques e cacimbas, para que o gado pudesse permanecer grande parte do verão em suas propriedades. As cacimbas, que Athanassof135 considerou pouco higiênicas e responsáveis pela propagação de epizootias136, são cavadas nos leitos dos grandes rios para aproveitar o lençol d´água aluvial (ANDRADE, 1986. Notas de rodapé incluídas pelos autores).

As condições insalubres das cacimbas tanto para os rebanhos, como para o uso dessa água pelos seres humanos é o foco das observações de Athanassof e, segundo Andrade (1986, p. 37),

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“à proporção que o estio se prolonga e o nível das águas baixa, a cacimba vai sendo aprofundada. O gado que aí penetra para beber, pisoteia um dos lados da cacimba, já que o outro é sempre defendido por uma cerca, defeca, urina e polui a água, tornando-a imprópria à alimentação”.

Provavelmente essas limitações ao uso humano levaram a que se passasse a construir os cacimbões, ou poços amazonas, com estrutura em pedra encaixada, em alvenaria e, mais recentemente, em anéis de concreto. Tal necessidade técnica, constituída e negociada na relação entre os atores sociais demandantes da água da aluvião, passa a ser elemento concreto na paisagem rural, ao mesmo tempo em que se constroem suas identidades, suas necessidades, interesses e estratégias e mesmo nas controvérsias que surgem nesse processo (CALLON, 1998; MACHADO, 2003).

O uso histórico das cacimbas e cacimbões também pode ser percebido em relatos da população local, na experiência direta de agricultores e agricultoras familiares mais velhos, e dos mais novos por terem escutado histórias a respeito, sobre mudanças na tecnologia e na destinação de uso da água de aluvião.

As cacimbas escavadas manualmente são as primeiras formas de acesso a esse manancial. Cavalcanti (2015), a partir de relatos colhidos durante pesquisa de campo no Alto Curso do Rio Capibaribe-PE137, pôde identificar aspectos desse uso, com pessoas que remetiam seus registros a meados do século XX. Os depoimentos de agricultores e agricultoras situam essa fonte hídrica, usada a partir de poços escavados, como sendo responsável por atender a demandas para o banho, cozinhar e até para beber, sendo a água para este fim acondicionada em jarras de barro, onde as impurezas físicas eram decantadas.

Em diversas entrevistas, também fica evidenciada a facilidade de acessar essa água da aluvião, seja por que o período tratado faz referência a anos de chuvas regulares ou mesmo por haver melhores condições geográficas de acumulação dessa areia e, consequentemente, da água. “Cavava de mão ou de enxada. Três ou quatro enxadadas e a água pulava nesse velho Capibaribe” (Depoimento de um agricultor). Além disso, a importância dessa água fica explícita, seja por ela permanecer mesmo em períodos de seca, pois dependendo da geografia local, a pouca chuva que cai pode realimentar esse manancial, ou pelo fato de ser a que consegue atender a atividade produtiva, desde que haja manejo adequado dela.

As cacimbas, e depois os cacimbões, constituem uma das primeiras iniciativas para garantir a disponibilidade de água nos períodos de estiagem no Semiárido. Durante muito tempo representou quase que exclusivamente a única fonte de água disponível para todos os usos, mesmo apresentando, em muitas situações, baixa qualidade para o consumo humano, devido à presença elevada de sais, podendo ser salobras ou salinas. Com a introdução das cisternas de placa para consumo humano, a partir dos anos de 1990, e da política mais sistemática de carro-pipa, nos períodos de seca, as cacimbas e cacimbões deixam de ser fonte preponderante para o abastecimento humano, mas existem relatos de que ainda cumprem esse papel em lugares mais remotos, de difícil acesso ao carro-pipa.

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3.3 O acesso à água de aluvião

No mesmo sentido da Constituição Federal, a Lei n.º 9.433 expressa logo no Art. 1º que um dos fundamentos dessa política nacional é considerar a água como bem de domínio público. A dominialidade dos cursos de água superficiais pode ser dos estados ou da União e as margens de rios, riachos, lagoas e reservatórios são áreas de preservação permanente, resguardadas pela legislação florestal. Já a água subterrânea é de dominialidade estadual.

Contudo, nos rios intermitentes, o fato de que em dois terços do ano a água não corra na superfície e o leito fique exposto, faz com que este rio seja “anexado” às propriedades que ficam em suas margens, sendo comum a presença de cercas dividindo essas áreas e de tensões entre os autodenominados proprietários.

Tradicionalmente, se pratica agricultura no leito seco e em suas margens, aproveitando a umidade natural conferida pela presença da aluvião, ou mesmo fazendo irrigação manual ou com bombeamento da água, e para tanto foi sendo feita a eliminação da mata ciliar.

O fato é que o acesso à água de aluvião passa por esse crivo de “propriedade” daquele trecho de rio seco e, em consequência, também pela propriedade do cacimbão, em geral construído com recursos próprios. Essa discussão remete a um contexto particular na condição dos rios intermitentes do Semiárido, que é a interpretação de que aquela porção de terra que fica exposta no período de estiagem compõe a propriedade de quem se avizinha às margens da várzea daquele curso d´água. É comum, inclusive, identificar cercas colocadas no leito do rio delimitando a propriedade. Daí, o que se autonomeia proprietário, e que pelos usos e costumes são aceitos como tal, no contexto da comunidade, são os que possuem o direito sobre a água da aluvião, através de cacimbas ou cacimbões, sendo o uso por terceiros entendido como uma concessão, um favor.

Isso pôde ser mais bem compreendido, de acordo com Cavalcanti (2015), a partir de maior aproximação com a realidade local, tanto por meio de observação direta, como pelas entrevistas realizadas, evidenciando que ter a propriedade da terra vizinha a um riacho ou rio gera uma vantagem comparativa em relação aos que não possuem essa condição.

Tal condição de propriedade sobre o recurso também recai sobre questões relativas ao acesso, à justiça ambiental e também no que se refere à gestão democrática da água. Ou seja, a água da aluvião pode estar disponível, daí existe oferta potencial, mas o acesso vai depender de existir ou não a condição de “propriedade” do leito do rio ou a permissão de uso. O que constitui um bem de domínio público passa a ser objeto de gestão privada.

Com a condição de seca, o nível das águas na aluvião acaba baixando e para atender à atividade produtiva de plantio irrigado de hortaliças (cenoura, beterraba, pimentão etc.) que alguns ainda tentam manter, ou mesmo para irrigação de capim para responder à demanda da caprinovinocultura, algumas estratégias são utilizadas, como a de cavar buracos para além da várzea inundável do rio e revestir com lona para acumular a água bombeada de uma cacimba ou cacimbão.

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Fica evidente ainda que a água para a atividade de criação de animais possui larga dependência das aluviões. “A caprinovinolcutura teve e ainda tem expressão na região e o que sempre sustentou a atividade foi a água das cacimbas e cacimbões. A pecuária é praticamente toda extensiva e o próprio animal procura a água que é colocada em coxos e tanques” (Membro de Organização Social em Jataúba/PE, 2013). É importante salientar que nos anos de 2012 a 2014, quando a maior parte das entrevistas foram realizadas, e estava em curso um grave quadro de seca, a água para o gasto (banho, lavagem de roupa e higiene da casa) e também para a atividade pecuária da agricultura familiar, estava sendo atendida em grande medida pelas cacimbas e cacimbões.

4. Tecnologias adaptadas, convivência com o Semiárido e sustentabilidade hídrica local

É necessário trazer como elemento de contexto para o presente capítulo duas mudanças significativas que aconteceram em princípio dos anos de 1990 e que possuem repercussão na dinâmica de uso da água nos diversos territórios do semiárido. A primeira está ligada à emergência de novos atores sociais no cenário político e que reclamam por abordagens diferenciadas na definição de modelos de desenvolvimento para a região do Semiárido. Vem do ressurgimento das organizações sociais no período de pós-redemocratização do país e da inserção de alguns setores do universo acadêmico, particularmente das instituições de ensino e pesquisa, apresentando análise e reflexão das políticas até então implementadas, focadas em soluções hidráulicas, identificando claramente os limites aí presentes, principalmente no que toca ao atendimento da população rural difusa e ao suporte à agricultura familiar.

A proposta da convivência com o Semiárido se apoia na crítica oriunda dos movimentos sociais, evidenciada também por diversos autores, sobre as concepções hegemônicas e os processos políticos orientadores das intervenções governamentais no contexto desse espaço. Possui também um caráter propositivo para o enfrentamento das questões econômicas e socioambientais presentes no Semiárido brasileiro. Essa proposta, de acordo com Silva (2008, p.188), foi “formula ao longo da história das crises regionais, como uma crítica ao pensamento e à política de combate à seca e aos seus efeitos, e ainda ao modelo de modernização econômica conservadora”. Mais recentemente, segundo o mesmo autor, o debate sobre o desenvolvimento sustentável passou a também influenciar a construção desse paradigma da convivência.

Diniz (2011) destaca duas trajetórias importantes na emergência da noção de convivência com o Semiárido: uma como potencial articulador de uma ‘identidade coletiva’, que demonstra resistência ao modelo de desenvolvimento predominante no Semiárido, e outro é o de concepção de proposta de convivência, simbolizada e tornada concreta pelo Programa de Formação e Mobilização para a Convivência com o Semiárido - Um Milhão de Cisternas Rurais, mais conhecido como P1MC.

Essa proposição brota do processo de constituição da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA-Brasil), no processo de organização e de realização do Fórum Paralelo de ONG’s durante a Terceira

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Conferência das Partes (COP3) da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (UNCCD), ocorrida em Recife/PE, em 1999.

A segunda ruptura remetida à década de 90, do século XX, é de um novo desenho na gestão da água, trazendo enquanto componente de integração, descentralização e participação como forças motrizes, a chamada Lei das Águas, a Lei N° 9433, de 8 de janeiro de 1997, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e também cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

De maneira geral, a água de aluvião, as técnicas para acessá-la, assim como os limites e possibilidades de uso, não alçaram lugar de destaque nas políticas públicas para o Semiárido (COLLARD; BURTE; JACOBI, 2010), em que pese o papel que essa fonte hídrica desempenha no contexto local. Aparece no conjunto de tecnologias hídricas trabalhadas pelas organizações sociais e absorvidas pela ASA no contexto da convivência com o Semiárido, que indica a opção pela diversidade de soluções para captar e armazenar água de chuva, mas também para o aproveitamento da umidade do solo e para o uso sustentável e comunitário dos diversos mananciais (SILVA, 2008).

5. Desafios e oportunidades

Na perspectiva da segurança hídrica local, um dos desafios ao uso da água de aluvião é o próprio acesso em virtude do sentido equivocado de propriedade do leito seco do rio que ocorre no Semiárido e do cacimbão enquanto tecnologia construída de forma individual e que em momentos de escassez tem sua gestão limitada pelo dono. Nesse sentido, a construção dos cacimbões, através de políticas públicas poderia ampliar o acesso a essa água, resguardados os limites de uso para não exaurir o aquífero.

Na esteira do crescimento da construção civil nos anos 2000, a demanda por areia aumentou significativamente; e o que representava atividade manual e de pequena e média escala, passa a ser feita através de retroescavadeiras e dragas, comprometendo justamente a camada de areia que guarda a água. Essa mudança tem gerado tensões e conflitos reais nos leitos de rios intermitentes e discussões acirradas quanto às prioridades de uso e limites de exploração.

Contudo, outra tensão vem ocorrendo quanto à destinação e intensidade de uso da água da aluvião em locais nos quais existe atividade agrícola irrigada, como é o caso dos plantios de hortaliças e legumes em alguns trechos do Alto Capibaribe, na maioria, ainda utilizando sistemas de irrigação que desperdiçam água. A atividade se estende pelo período de estiagem e mesmo quando o quadro é de seca, continua havendo a exploração até à exaustão, sem que ocorra discussão e planejamento que auxilie a dimensionar melhor o uso.

Existe ainda um caminho robusto a ser percorrido para que a água de aluvião seja efetivamente inserida na discussão de segurança hídrica local e efetivamente observada por políticas públicas. Nessa perspectiva poderia se incluir também as necessárias melhorias tecnológicas para que essa

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fonte hídrica seja utilizada de forma sustentável.Por sua vez, é indiscutível o potencial que esse manancial oferece, demandando o envolvimento

local na gestão da água dessas aluviões, possibilitando o uso para o gasto e para a continuidade de atividades produtivas.

Referências bibliográficas

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134 O autor traça essas considerações valendo-se do clássico ensaio de Donald Worster (1990) sobre “Transformações da Terra”.135 Provável referência a pesquisas de Nicolau Athanassof, mestre Internacional de zootecnia geral e de zootecnia especial da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ).136 É o conceito utilizado em veterinária e ecologia das populações para qualificar uma enfermidade contagiosa que ataca um número inusitado de animais ao mesmo tempo e na mesma região e que se propaga com rapidez. http://www.dicionarioinformal.com.br/epizootia/137 Tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil da UFPE, na área de concentração de Tecnologia Ambiental e Recursos Hídricos, com apoio da associação Águas do Nordeste, através do projeto Águas de Areias, financiado pelo Programa Petrobrás Socioambiental.

Notas

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REVISÃO DE EFLUENTE DE ESGOTO TRATADO APLICADO NA AGRICULTURA

Claudia Facini dos Reis Maycon Diego Ribeiro

Flávio Daniel SzekutMarcio Roberto Klein

1. Água Residuária

O aumento da produção agrícola de alimentos é necessário devido ao rápido crescimento da população humana. A qualidade desses produtos também tem de ser melhorada, principalmente com aumento do conteúdo de nutrientes (TESTER e LANGRIDGE 2010). O incremento na economia de diversos países como, por exemplo, na Ásia, implica em exigências de produtos diversificados, processados e de melhor qualidade, fato que está diretamente ligado ao aumento da produção agrícola.

A tecnologia na agricultura, possibilitada através de pesquisas, consegue, em nível mundial, um aumento linear anual de 32 milhões de toneladas, na produção de alimentos. (ALSTON et al., 2009). Para atender a expectativa proposta na declaração da Cúpula Mundial sobre Segurança Alimentar, realizada em 2009, seria necessário um aumento de 70% na produção para 2050, ou seja, um acréscimo médio anual de 44 milhões de toneladas de alimentos para suprir a necessidade. Isso representaria 38% sobre a média histórica, no aumento de produção para sustentar a demanda por 40 anos (TESTER e LANGRIDGE 2010).

Para o acréscimo da produção de alimentos, seria possível aumentar a produtividade ou explorar novas áreas de cultivo, sendo que a exploração de novas áreas está relacionada ao crescimento populacional que, segundo BOS et al. (2007), é de 45.000 Km² de desmatamento por ano. Desta forma, fica claro que o aumento da produtividade é a alternativa mais adequada, devido aos prejuízos ambientais e conflitos gerados pela exploração de novas áreas de cultivo.

A produtividade das culturas está relacionada com fatores de solo, fatores da planta e de clima. A agricultura irrigada que faz parte do fator clima tem um grande potencial de produtividade, prova disso é que a área destinada à agricultura irrigada no mundo, no início do século XXI correspondente a 18% da área agrícola total, foi responsável por aproximadamente 44% do total colhido (CHRISTOFIDIS 2009).

Sabe-se que a agricultura consome em média 70% do total de água doce captada na superfície terrestre (CHRISTOFIDIS 2001), sendo que a maior demanda desse percentual é atribuída à irrigação.

Segundo Fereres et al., 2011, não há dúvida de que a agricultura irrigada é essencial para atender

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a demanda futura de alimentos e que a maior produtividade é a estratégia principal para o futuro, porém, ao mesmo tempo em que água proporciona um maior potencial de rendimento, é um recurso limitado, portanto, os sistemas agrícolas devem ser mais sustentáveis.

O aumento populacional poderá acarretar em problemas de falta de alimento, escassez de água e impactos ambientais, devido à intensificação da agricultura e geração de dejetos. Além disso, as constantes mudanças climáticas e o acréscimo no preço dos alimentos apresentam desafios para a segurança alimentar e para o suprimento de água em países pobres, onde a produção de alimentos é subexplorada, devido à infraestrutura inadequada de armazenagem e distribuição de água, além de sistemas de irrigação danificados (GOHAR et al., 2013).

O aumento da demanda de água está dividido em água para consumo humano, indústria e agricultura. As limitadas reservas mundiais de água doce, juntamente com as restrições de lançamento de efluentes no meio ambiente, culminam para a necessidade do uso racional dos recursos hídricos de modo a mitigar os impactos negativos da geração de efluentes (MEDEIROS et al, 2010).

O aumento do uso de água residuária é foco de diversas abordagens, visto que proporciona o uso mais eficiente do recurso hídrico com consequente redução de volume gasto via abastecimento (MOJIRI e AMIROSSADAT, 2011; VEDACHALAM e MANCL, 2012).

A utilização de água residuária na agricultura irrigada é ampla em diversos países e tem como vantagem econômica a redução no uso de insumos como água e fertilizante, conforme citam Pereira et al., (2011) que observaram um aumento de macro e micronutrientes no solo irrigado com água residuária de esgoto doméstico. Outro benefício com a utilização da irrigação com água residuária é o ambiental, ocasionado pela diminuição da captação de águas subterrâneas e a redução de descarga de efluentes diretamente nos corpos hídricos (MUYEN et al., 2011).

A escassez de água é cada vez mais comum em regiões áridas e semiáridas, principalmente em áreas rurais onde existe pouca infraestrutura de abastecimento. Essa problemática é maior nos países em desenvolvimento como é o caso de algumas regiões do Brasil. Diante disso, a utilização de água residuária de esgoto doméstico, utilizada via irrigação para produção de culturas prioritárias, apresenta-se como uma opção de grande potencialidade no que diz respeito ao incremento da produção agrícola na agricultura de subsistência, como é o caso do Semiárido brasileiro.

1.1 Produção de esgoto em propriedades agrícolas

O crescimento populacional acarretou como consequência um aumento no número de domicílios nos últimos anos, assim, aumentando a demanda de água, sendo que cerca de 60% a 80% da água de abastecimento utilizada é descartada como esgoto (seria que a água utilizada é descartada, está faltando só o acento?) (AMERASINGHE et al., 2013).

No Brasil, esse crescimento gerou implicações nas estratégias para suprir o saneamento básico nos domicílios (SAIANI e GALVÃO, 2011). Em 2009, 84,4% dos domicílios urbanos e rurais tinham

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acesso à água através de redes de abastecimento, 52% com acesso a rede coletora de esgoto e 6,6% com fossa séptica ligada à rede coletora de esgoto (IBGE, 2009).

Do total de esgotos coletados no Brasil, pequena parte é tratada e descartada nos corpos hídricos com níveis aceitáveis de qualidade. No entanto, os efluentes são descartados com alto teor de nutrientes, que poderiam ser utilizados como fonte de fertilizantes e incremento de matéria orgânica no solo, estando disponíveis para o desenvolvimento das culturas no meio agrícola trazendo uma gama de benefícios para o meio e estando disponível durante todo o ano (ROIG et al., 2012); (MEDEIROS et al., 2014).

Um estudo realizado por Carr et al. (2011) na Jordânia, revelou que produtores agrícolas reconhecem a disponibilidade de efluentes durante todo o ano, e conhecem os benefícios econômicos de sua utilização na agricultura.

Dos países árabes, a Jordânia é o país mais avançado em termos de reuso de efluente de esgoto, utilizando mais de 90% de seu efluente de esgoto tratado, sendo a maior parte para fins agrícolas, devido à escassez de água e dependência política da agricultura no país (ACWUA, 2010). O Egito é outro país que realiza o tratamento do esgoto em quase 100% do total produzido, no entanto, a reutilização é menor que a Jordânia.

Na Espanha, o volume de água tratada para se tornar potável até 2007 era de 3.375.000.000 m3 por ano. Em relação ao esgoto produzido, na Espanha existe um Plano Nacional para Qualidade, Purificação e Saneamento (NPWQSP) de esgoto que pretendeu até 2015 tratar 1.500.000.000 m3 para fazer a reutilização do efluente (MINISTRY OF ENVIRONMENT AND RURAL AND MARINE AFFAIRS, 2007).

Do total de água tratada na Espanha, Iglesias et al (2010) concluíram em seu trabalho que 70% é destinada para irrigação com qualidade adequada para tal fim, estando de acordo com os regulamentos vigentes no país. Os tratamentos utilizados para assegurar a qualidade da água são: coagulação, precipitação química, filtração granular e desinfecção com raios ultravioleta (UV) ou cloro.

A Índia é outro país que está em alerta acerca da produção de esgotos em seu território, principalmente por ser o segundo país mais populoso do planeta e com perspectiva de que cerca de 600 milhões de pessoas, até 2030, estarem morando nas cidades. Isso reflete diretamente na quantidade de esgoto produzido, que geralmente é produzido com cerca de 80% da água de abastecimento, sendo descartado com níveis de concentração química acima dos admissíveis, poluindo cursos naturais de água, segundo Amerasinghe et al. (2013) a quantidade de esgoto produzido na Índia é o suficiente para irrigar uma área de 1,1 milhões de hectares. Para o Semiárido brasileiro, Medeiros et al. (2014) colocam a seguinte situação: para o volume de esgoto produzido na região semiárida (14.055 L/s) seria possível manter 839 mil hectares irrigados utilizando como exemplo irrigação de palma forrageira.

No entanto, quando se trata de esgoto produzido em propriedades rurais, a quantidade que

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é tratada ainda é mínima diante do total produzido. A situação é preocupante, devido à falta de infraestrutura e pela distância dos centros de tratamento de esgotos, sendo que na zona rural sequer existem (ou existem sistemas alternativos) de redes de coleta de esgotos (PERES et al., 2010).

A falta de acesso a redes de esgotos do meio rural é um dos principais problemas do meio agrícola, da população e da bacia hidrográfica. Por não haver um sistema de tratamento e descarte correto dos efluentes, muitas propriedades fazem o uso de fossas rudimentares, conhecidas como fossas negras, as quais podem contaminar o lençol freático e causar doenças (SILVA, 2010). O desenvolvimento de sistemas de tratamento de esgotos no meio rural pode evitar tais problemas e ainda disponibilizar um efluente rico em nutrientes que pode ser utilizado para irrigar culturas e melhorar as características do solo (SILVA, 2010).

Um estudo realizado por Araujo et al. (2012) em uma comunidade rural, constatou que nas habitações que possuem instalações sanitárias, uma pequena parte faz uso de fossas sépticas como destino final do dejeto gerado. Enquanto que a maioria faz o lançamento do esgoto doméstico in natura nas calçadas, ruas ou no curso d’água mais próximo. As fossas sépticas são retratadas como sistemas rudimentares para recebimento do efluente doméstico e de uso não mais regulamentado, isso porque a eficiência média é de aproximadamente 45%, o que não está de acordo com a Resolução CONAMA 430/2001 (BRASIL, 2011).

Segundo Araujo et al. (2011), a questão das deficiências no modelo e na gestão do saneamento básico no Brasil é uma realidade antiga. Em seus estudos, os mesmos autores revelam, especificamente para a comunidade rural estudada, que ocorre falta de informações e conhecimento por parte dos moradores sobre os riscos e impactos que a ausência de saneamento básico traz à qualidade de vida populacional, o que ratifica a posição destes quanto a não buscar a estruturação mínima de infraestrutura para as questões básicas da comunidade.

A falta de informações é uma realidade para muitas comunidades rurais, principalmente do Semiárido e isso também reflete no que se refere às práticas de reuso, as quais podem melhorar a qualidade de vida não apenas pela diminuição dos problemas sanitários, mas também por fornecerem uma fonte de água e nutrientes para produção vegetal onde há escassez de água.

Dessa forma, é possível verificar que a quantidade de esgoto produzido no mundo tem potencial para suprir a demanda de água de irrigação para uma parte da agricultura, e quando há um planejamento para o reuso do efluente, ele apresenta vários benefícios, podendo mudar econômica, ambiental e socialmente uma região. Verifica-se também que devem ser realizados projetos para beneficiar comunidades rurais, as quais devem ter acesso à saneamento básico e usufruir dos benefícios do reuso do efluente produzido pelos próprios.

1.2 Uso de esgoto doméstico na produção agrícola

Em regiões áridas e semiáridas, a produção agrícola é limitada pelo quesito água, fontes

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desse recurso são escassos fazendo com que novas alternativas apareçam, sejam pesquisadas e validadas a fim de garantir a sustentabilidade da produção. Segundo Cirelli et al. (2009), o uso de águas residuais, com ou sem tratamento, está aumentando em regiões áridas e semiáridas, porque é um recurso valioso. Os efeitos ambientais da sua utilização, sobre tecnologias apropriadas para o uso, tratamento, reutilização de águas residuais e a análise de risco com base em indicadores adequados devem ser levados em conta no âmbito das investigações sobre suas potencialidades. O conhecimento é necessário sobre tecnologias apropriadas para o uso, tratamento e reutilização de águas residuais e a análise de risco com base em indicadores adequados deve ser considerada.

Para a reutilização do efluente tratado na agricultura é necessário conhecer as áreas agrícolas, o solo e as culturas irrigadas, bem como a necessidade de água das culturas e as características químicas do efluente para assegurar a produção de colheita e a proteção dos solos. A pesquisa realizada nesta área deve constituir a base para um planejamento integrado da reutilização em solos e de culturas, no contexto da agricultura sustentável e proteção ambiental (KALAVROUZIOTIS et al. 2011).

É evidente a carga de nutrientes que compõe os efluentes de esgotos domésticos, caracterizando uma diminuição na adubação química, além de melhorar a qualidade na produção de determinadas culturas. Plevich et al. (2012) analisaram a produção de biomassa, a eficiência do uso da água e o valor nutritivo da alfafa cultivada com irrigação de águas residuais urbanas, águas de perfuração e testemunha (chuva), sendo que os tratamentos com irrigação tiveram um aumento de 24% na produção de biomassa em relação a sequeiro, os tratamentos irrigados com águas residuais urbanas ultrapassaram 19% da irrigada com água subterrânea. Além disso, determinou-se que a alfafa irrigada com águas residuais excedeu os valores nutricionais da cultura em condições de crescimento sem irrigação, sendo encontrado mais de 39% de proteína e 14% de digestibilidade. Deste modo, fica claro a potencialidade do reuso de água proveniente dos tratamentos de esgotos.

1.2.1 Impacto do esgoto doméstico no solo

O lançamento de efluentes de esgoto doméstico não tratado e do tratado inadequadamente pode ter sérias consequências ambientais, por isso o acompanhamento das condições do solo e do efluente é de essencial importância. Segundo Ferreira et al. (2011) a fertirrigação de esgotos domésticos tratados é adequada para reutilização na agricultura, reduzindo seu risco de poluição. Na aplicação de águas residuais domésticas em solo cultivado com café, a água residuária foi eficiente no fornecimento de alguns nutrientes essenciais para o crescimento das plantas, tais como N, P, K, Ca, Mg e S, diminuindo o Al, tendo assim reduções nas doses recomendadas de fertilizantes e calagem.

Segundo Fonseca et al. (2007), a irrigação com Efluente de Tratamento de Esgotos (ETE) tem alterado principalmente as concentrações de carbono total e nitrogênio total no solo e nitrogênio

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mineral na solução no solo; atividade, composição e função da comunidade microbiana; cálcio e magnésio trocáveis; salinidade, sodicidade, dispersão de argilas e condutividade hidráulica. Outros parâmetros de qualidade de solo (por exemplo, metais pesados) não apresentaram mudanças significativas em curto e médio prazo. O monitoramento da acumulação de sódio e das perdas de nitrogênio (lixiviação, volatilização e desnitrificação) é crucial para o uso sustentável dos ETE’s na irrigação.

1.2.2 Uso de esgoto doméstico na recuperação de áreas degradadas

Para a recuperação de áreas degradadas, é usual a utilização de lodo de esgoto. Segundo Sampaio et al. (2012), a aplicação de lodo, para recuperação de áreas degradadas, pode acarretar aumento nos agregados do solo conforme o aumento das doses de lodo, sendo que as porosidades (macro, micro e total) do solo foram aumentando conforme se aplicam maiores doses de lodo de esgoto, sendo que a microporosidade também aumenta até 12 meses após a aplicação. Quanto à umidade do solo, os mesmos autores relatam que ocorre um aumento da umidade do solo em função do aumento das doses de lodo no solo até seis meses após a aplicação. Após 18 meses da aplicação do lodo de esgoto, não houve mais diferenças entre os tratamentos na estabilidade de agregados. Os resultados indicam que, após esse período, deve ter ocorrido mineralização da matéria orgânica (MO) presente no lodo de esgoto, não permitindo, assim, seu efeito benéfico nessa característica física por mais tempo.

Trabalhando com adubo verde e lodo de esgoto, para recuperar a fertilidade de um latossolo degradado, Bonini et al. (2013) concluíram que o lodo de esgoto melhora características químicas do solo degradado e podem reduzir ou mesmo excluir a utilização de adubo mineral, mas recomendam a aplicação de cal no lodo para corrigir o seu pH, sendo possível uso sem acidificar o solo; já a adubação verde não é eficaz na melhoria do solo no primeiro ano de estudo. Os tratamentos com adição de adubação mineral e orgânica apresentaram resultados semelhantes para a recuperação dos atributos físico-hídricos e o teor de matéria orgânica, sendo que o lodo de esgoto está sendo mais promissor na camada superficial do solo, já em solos degradados pela construção de obras civis, o lodo é viável na recuperação de suas propriedades físico-hídricas (CAMPOS et al., 2011).

O uso de lodo de esgoto na agricultura é apropriado e vantajoso, se aplicado de acordo com as diretrizes apropriadas para minimizar o impacto ambiental e os danos ecológicos e maximizar os benefícios para a produtividade agrícola sustentável. Ele adiciona macro e micronutrientes para o solo, melhora o teor de matéria orgânica, ajuda nas condições físicas, estimula atividade biológica. No entanto, o lodo, antes da sua utilização na agricultura, tem de ser submetido a uma avaliação e testes para determinar as propriedades físico-químicas, conteúdo de poluentes ou bactérias patogênicas e também ecotoxicológicas, a fim de evitar o risco de ameaças potenciais para o ambiente e para a saúde humana (USMAN et al., 2012).

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1.2.3 Esgoto doméstico e segurança alimentar

Segundo a FAO (2012), segurança alimentar é uma situação que existe quando todas as pessoas, em todos os momentos, têm acesso físico, social e econômico a alimentos suficientes, seguros e nutritivos, alimentos que atendam às suas necessidades dietéticas e preferências alimentares para uma vida ativa e saudável. O contrário, a insegurança alimentar, pode ser crônica, sazonal ou transitória, e consiste em uma situação em que as pessoas não têm acesso seguro à quantidades suficientes de alimentos seguros. Pode ser causado pela indisponibilidade de alimentos, poder de compra insuficiente, inadequada distribuição ou uso inadequado de alimentos em nível doméstico. Insegurança alimentar, más condições de saúde e falta de saneamento são as principais causas de desnutrição e doenças relacionadas ao saneamento básico.

Segundo Busato et al. (2011), trabalhando em assentamento rural, a maioria das famílias assentadas encontram-se em insegurança alimentar, bem como não apresentam boas condições higiênicas e sanitárias do ambiente, produção e armazenamento dos alimentos, apontando para a necessidade de orientações técnicas especializadas a fim de que as famílias possam preservar a qualidade e evitar a contaminação de alimentos, tanto na fase de produção como na de estocagem, atentando para o destino dos resíduos produzidos nas propriedades, bem como preservar as fontes e os mananciais de água de consumo humano. O reuso da água exige que exista saneamento básico adequado com o lançamento seguro, garantindo a preservação do meio ambiente e a não contaminação das culturas.

De acordo com Lang et al. (2011), acrescenta-se à situação de insegurança alimentar em assentamentos as precárias condições das habitações, como o acesso e o tratamento da água para consumo, o esgotamento sanitário, em todos os locais investigados, além das condições de insalubridade que grande parte das moradias proporcionam aos indivíduos em condições de miséria.

1.3 Tratamentos de esgoto domésticos para fins agrícolas

Como mencionado anteriormente, a água de boa qualidade deve ser restrita a usos nobres como consumo humano. Para outros fins, como para a agricultura, por exemplo, a água utilizada pode ser de qualidade inferior, sendo que uma opção são efluentes de esgotos tratados. No entanto, mesmo para fins agrícolas, as águas também devem atender a padrões de qualidade, por isso esgotos devem passar por sistemas de tratamentos para melhorar a qualidade e estarem disponíveis para serem utilizados no meio agrícola, sem causar malefícios ao meio ambiente, às culturas produzidas e à saúde humana.

O uso de águas residuárias aumentou significativamente nos últimos anos devido à escassez de água, elevado custo de fertilizantes, uso racional da água bruta, diminuição dos impactos ambientais (BRESSAN et al., 2012). No entanto, existe a necessidade de investigação sobre as diferentes opções

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de tratamento de acordo com cada grupo de água residuária, deste modo, permitindo aplicar o efluente na irrigação

A qualidade das águas provenientes de esgotos é determinada conforme diferentes características, porque a procedência de cada grupo de água residuária é diferente de acordo com a atividade geradora do efluente, dentre elas, o esgoto doméstico e industrial. A respeito dos diferentes tipos de efluentes, sabe-se que estes devem ser coletados e tratados separadamente, no intuito de evitar problemas no tratamento de suas águas residuárias devido à mistura de esgoto doméstico e industriais (AMERASINGHE et al., 2013).

Normalmente, nos efluentes de esgoto doméstico não existem substâncias como metais pesados, comumente encontrados em esgotos de indústrias, os quais devem ser tratados diferenciadamente.

Em geral, o processo de tratamento de águas residuárias consiste em diminuir ou remover os poluentes contidos nelas, em que os principais parâmetros indicadores que permitem caracterizar o esgoto são: sólidos, Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO), e Demanda Química de Oxigênio (DQO), nitrogênio fósforo e indicadores de contaminação fecal (BRESSAN et al., 2012).

Segundo Von Sperling (2005), o tratamento do esgoto consiste nas seguintes fases: tratamento preliminar; tratamento primário; tratamento secundário; remoção de nutrientes e remoção de organismos patogênicos. O tratamento preliminar consiste em separar sólidos grosseiros, sendo o tratamento de ordem física. O tratamento primário consiste na remoção de poluentes, sólidos em suspensão, sedimentáveis e sólidos flutuantes, também de ordem física. Já no tratamento secundário são realizadas as seguintes etapas: promoção de uma sucessão de reações bioquímicas realizadas por microrganismos para a remoção da matéria orgânica. Tais reações são quantificadas através da averiguação de DBO (5;20). Nessa etapa também são removidos alguns nutrientes por processos bioquímicos, ocorrendo também a eliminação de organismos patogênicos com desinfecção por cloro, ozônio, radiação ultravioleta (UV) e outros.

Após os tratamentos, esses efluentes devem atender a padrões de qualidade segundo a Resolução CONAMA 357, de 17/03/2005 (MMA, 2005), que classifica as águas em doces, salinas e salobras, sendo que para irrigação usa-se a água doce que corresponde a cinco classes: classe especial, classe 1 que pode ser utilizads em irrigação de alimentos consumidos in natura, classe 2 que pode ser utilizada em irrigação de frutas, classe 3 que pode ser utilizada em irrigações de arvores, cereais e forrageiras, e classe 4 que pode ser destinada a harmonia paisagísticas. Se o efluente possuir qualidade adequada pode ser utilizado para fertirrigação em diversas culturas.

1.3.1 Formas de tratamento de esgoto

Os principais sistemas de tratamento de esgotos que são classificados como secundários são: Utilização de lagoas de estabilização: São lagoas de tratamento de esgotos de construção simples, baseado na movimentação de solo (corte e aterro) e preparação de taludes. As variantes desse

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tratamento são lagoa facultativa, lagoa anaeróbia, lagoa aerada facultativa, lagoa aerada de mistura completa, lagoa de decantação e outras.

Técnica de produção de lodos aditivados: são tratamentos aeróbios de fluxo contínuo, apresentam maior eficiência e requerem menores áreas em relação à lagoa de estabilização. As principais variantes desse tratamento são sistema de aeração prolongado e de fluxo intermitente (batelada).

Técnica de utilização de filtros biológicos: são unidades de tratamento aeróbio que consistem em tanques preenchidos com material grosseiro (britas, pedaços de madeiras, plásticos etc.) por onde passa o esgoto. Na superfície dos materiais cresce uma biomassa formando uma película microbiana, e no momento em que o esgoto entra em contato com a película, a matéria orgânica fica retida e estabiliza o efluente filtrado. As variantes são filtros biológicos de baixa carga e de alta carga, biodiscos, entre outros.

Utilização de reatores anaeróbicos: em tratamentos anaeróbicos, são gerados gases como metano e gás carbono, dentre as variantes desse tratamento os mais utilizados são o filtro anaeróbico e o reator UASB. O filtro anaeróbico normalmente é aplicado para efluentes previamente tratados com tanques sépticos, que, por sua vez, removem a maior parte da matéria orgânica, sendo que o filtro, por ser anaeróbico e promover eliminação de microorganismos dependentes de oxigênio, acarreta uma diminuição complementar da DBO (5;20). No reator UASB, uma biomassa cresce dispersa no meio e as bactérias tendem a se aglutinar, formando um meio suporte para outras bactérias, a aglutinação aumenta a eficiência dos sistemas.

Outros tratamentos de remoção de compostos tóxicos, metais pesados e agentes patogênicos envolvem processos mais complexos, como:

Remoção de sólidos dissolvidos:• Osmose reversa, aplicado para reduzir a salinidade da água; • Troca iônica é utilizada para a desmineralização da água; • Eletrólise reversa é um processo de deionização de águas e efluentes líquidos através de

membranas especiais, quando submetidos a um campo elétrico; • Evaporação utilizada para a separação de sólidos dissolvidos de uma corrente líquida, através

da evaporação do solvente e concentração dos sólidos na fase líquida, reduzindo bastante o volume da fase inicial.

Remoção de sólidos suspensos: • Macrofiltração: remove partículas maiores de 1,0 µm.• Microfiltração: remoção de partículas menores que 1,0 µm.• Clarificação: é utilizado para remover partículas coloidais, que conferem a cor e turbidez à

água.Remoção de compostos orgânicos: é realizado através de oxidação, adsorção com carvão ativado,

processos biológicos, destilação e extração.Desinfecção: a desinfecção das águas residuárias tratadas pode ser feita utilizando: cloro, ozônio,

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dióxido de cloro, permanganato de potássio, cloraminas, radiação ultravioleta entre outros processos.Dependendo das características apresentadas pelo efluente de esgoto doméstico e da eficiência

do tratamento secundário, normalmente não há a necessidade de implementação de sistemas de desinfecção, remoção de nutrientes e metais pesados.

No entanto, há outras formas de tratamentos de esgoto doméstico como o tratamento de escoamento superficial no solo em superfície inclinada com vegetação, o esgoto canalizado e escoa pelo solo, deste modo promovendo uma ciclagem in situ dos elementos químicos que o constituem. Nesse tipo de tratamento ocorre diminuição significativa nos valores de DQO, fosforo e nitrogênio total, sendo que também ocorre aumento do oxigênio dissolvido conforme mostra o trabalho de Tonetti et al. (2009).

Outro sistema rudimentar que é utilizado na zona agrícola é a fossa séptica, uma forma de não descartar o esgoto diretamente em corpos de água ou no solo, conforme Araujo et al. (2012).

Para viabilizar os tratamentos, tanto no meio urbano e, principalmente, no meio rural, deve ser realizado um planejamento logístico e de infraestrutura juntamente com verificação de políticas públicas para garantir tratamentos de esgoto e disponibilização para o reuso no meio agrícola. Estas etapas são caracterizadas como desafios, devendo ser realizadas rapidamente pelos órgãos governamentais. Um exemplo seria aquilo que vem ocorrendo na Índia, país que está enfrentando sérios problemas de gestão de águas residuárias, devido ao rápido crescimento populacional e desenvolvimento econômico que estão ultrapassando o desenvolvimento da infraestrutura (AMERASINGHE et al., 2013).

1.4 Aplicação do efluente de esgoto doméstico com diferentes sistemas de irrigação

Segundo Bressan et al. (2012), a aplicação de águas residuárias pode ser feita com cinco sistemas de irrigação distintos: aspersão, sulcos, inundação, gotejamento e gotejamento subsuperficial. Os mesmos autores ressaltam alguns fatores (tabela 1) que afetam a escolha do sistema e as medidas preventivas a serem consideradas para cada tipo de sistema.

Considerando que a disponibilidade diária de esgoto doméstico de comunidades rurais geralmente é frequente, com volume diário gerado relativamente, a irrigação por gotejamento pode adequar-se melhor na aplicação de água residuária nesta situação.

A irrigação por gotejamento faz parte da irrigação localizada, em que se utilizam tubos gotejadores com emissores integrados in line ou online, através de uma rede de tubulações plásticas economicamente projetadas. A baixa vazão dos emissores faz com que água e os nutrientes sejam aplicados diretamente na zona radicular das plantas em intervalos frequentes. Este sistema opera em baixas vazões e baixas pressões. Pode ser definida como a aplicação precisa de água na forma de gotas, resultando na economia de água e energia (BRAUER et al., 2011; LIU& HUANG, 2009; MÖLLER; WEATHERHEAD, 2007).

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Tabela 1 - Fatores que influenciam na escolha mais apropriada do sistema de irrigação de águas residuárias.

A irrigação por gotejamento possui uma elevada uniformidade de distribuição, mas é necessário monitorar o sistema através de avaliações. Uma das características importantes da irrigação é que deve ser realizada de maneira sustentável para garantir sua viabilidade econômica, sendo necessário o uso eficiente da água e da energia. Isso é possível através da aplicação de ferramentas de avaliação de desempenho (BURGUETE et al., 2012.)

O maior problema com o uso da irrigação por gotejamento é o entupimento do emissor (AHMED et al., 2007). A existência de partículas em suspensão na água de irrigação é tida como a maior causa de entupimento (LI et al., 2011). Quando é feita a aplicação de água residuária, o risco de entupimento é ainda maior.

Na aplicação de água residuária na irrigação por gotejamento, o entupimento do emissor está relacionado de acordo com a qualidade do efluente, qualidade e tipo do emissor, métodos de filtragem e as condições ambientais. As obstruções podem ser das seguintes formas: obstrução física, causada pela suspensão de partículas inorgânicas (tais como sedimentos, areia, argila, plástico), orgânicos materiais (resíduos animais, caracóis, etc), e microbiológicos detritos (algas, protozoários, etc); materiais físicos são muitas vezes combinados com limos bacterianos (LIU& HUANG, 2009).

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Considerações do Capítulo

Levando em consideração o que foi colocado a respeito do aumento crescente da produção agrícola, necessidade de gestão integrada dos recursos hídricos, principalmente na região semiárida, o grande potencial de aproveitamento do esgoto produzido (após tratamento) para sua reutilização na agricultura e a viabilidade de seu uso com qualidade, mesmo levando em consideração os fatores discutidos no capítulo (cuidados ambientais e a escolha adequada dos sistemas de irrigação), é possível concluir que o reuso da água proveniente de esgoto doméstico tratado é de fundamental importância para garantir a gestão adequada dos recursos hídricos.

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PANORAMA DA ÁGUA RESIDUÁRIA DO PETRÓLEO NO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, BRASIL

Rafael Oliveira BatistaFabrícia Gratyelli Bezerra Costa

Hudson Salatiel Marques ValeDanilo Isac Maia de Souza

Hérick Claudino MendesIgor Estevão Souza Medeiros

Ricardo André Rodrigues FilhoAudilene Dantas da Silva

1. Introdução

O petróleo é o recurso energético que influencia o dinamismo tecnológico e o conforto da sociedade moderna. Entretanto, torna-se algoz do ponto de vista ambiental, devido à quantidade de poluentes lançados ao meio ambiente, resultantes de sua exploração, extração, transporte, refino e consumo dos derivados (SILVA, 2013).

Nas áreas de extração do petróleo em solo, diariamente, são gerados elevados volumes de água residuária, cuja destinação final é um fator limitante, em função dos impactos ambientais negativos capazes de afetar o meio físico, biótico e antrópico.

No entanto, a água residuária do petróleo com o tratamento adequado, de forma a atender a legislação ambiental vigente, apresenta potencial para ser utilizada na irrigação de culturas voltadas para fins energéticos e ornamentais.

A osmose inversa possibilita um nível de tratamento da água residuária do petróleo que possibilita a produção de girassol e mamona com bons indicadores de desempenho agronômico, minimizando os riscos de salinização e sodificação do solo.

2. A importância do petróleo

O petróleo é concentrado no subsolo ou no fundo dos mares, geralmente em grandes profundidades; sua formação é o resultado da ação da própria natureza que transformou, em óleo e gás, os resíduos de organismos vivos depositados há milhões de anos no fundo de antigos mares e lagos (CURBELO, 2002).

O petróleo é uma fonte energética fundamental para muitos países, uma vez que serve de insumo para inúmeros setores industriais (automobilístico, têxtil, agrícola, químico, dentre outros). Devido

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aos seus diversos derivados, como o gás liquefeito (GLP), gasolina, óleo diesel, querosene, nafta, óleos combustível e lubrificante, combustível marinho, coque de petróleo, dentre outros, inclusive usos na indústria petroquímica, possui vasta aplicabilidade, tornando-se uma matéria prima de difícil substituição, em curto prazo, na matriz energética mundial (GOMES, 2014).

Dentre os maiores produtores de petróleo do mundo, destacam-se os Estados Unidos em primeiro lugar, seguidos de Arábia Saudita e Rússia. Enquanto, o Brasil ocupava a décima posição em 2016 com 3,1% da produção mundial, equivalente a 2,60 milhões de barris de petróleo por dia (BP, 2017).

A Bacia Potiguar destaca-se pela intensa atividade exploratória de petróleo e gás distribuída em dois sistemas petrolíferos (Pendência e Alagamar-Açu), sendo: 10% na Formação Pendência, 5% na Formação Alagamar e 85% na Formação Açu (MORAIS, 2007), conforme apresentado na Figura 1.

Fonte: Adaptado de Bizzi et al. (2003).

Figura 1 - Área de exploração de petróleo da Bacia Potiguar no estado do Rio Grande do Norte, Brasil.

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O Sistema Petrolífero Pendência apresenta o petróleo gerado por folhelhos lacustres e armazenado em arenitos flúvio-deltaicos e turbidíticos da Formação Pendência (Neocomiano), apresentando rochas geradoras de querogênio, predominantemente do tipo I (teores de carbono orgânico entre 2 e 4%). A migração dos hidrocarbonetos ocorre vertical ou lateralmente, por meio de planos de falhas ou pelos próprios arenitos estratigraficamente associados. As acumulações relacionadas a este sistema são: riacho da Forquilha, Pescada, Livramento, Lorena, Serraria, Upanema e Poço Xavier (BIZZI et al., 2003; MORAIS, 2007).

O Sistema Petrolífero Alagamar-Açu abrange como geradores os folhelhos marinho-evaporíticos da Formação Alagamar e fluvio-eólicos da Formação Açu, com querogênios tipos I e II (teores de carbono orgânico até 6%), exibindo espessura máxima de 200m. Os hidrocarbonetos gerados pelos folhelhos e margas da Formação Alagamar, na porção da plataforma continental, migram em direção a terra, seguindo alinhamentos estruturais ou camadas com permo-porosidades favoráveis até atingirem seus reservatórios, na Formação Açu (que possui aquífero ativo, exercendo influência sobre a migração e a acumulação de hidrocarbonetos, propelida pela atividade hidrodinâmica). Acumulações representativas do sistema Alagamar-Açu são Canto do Amaro, Ubarana, Salina Cristal, Ponta do Mel, Mossoró e Macau (BIZZI et al., 2003; MORAIS, 2007).

Segundo dados da ANP (2017), em 2016 o Estado do Rio Grande do Norte ocupou a quarta colocação no cenário nacional em relação à produção de petróleo explorado no solo e mar, com 20,43 milhões de barris, sendo superado pelos Estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo. Considerando apenas a produção de petróleo em solo, o Estado do Rio Grande do Norte ocupa a primeira colocação nacional com 18,18 milhões de barris produzidos no ano de 2016.

Ainda no ano de 2016, o petróleo Potiguar foi extraído em 95 campos de produção, tanto em solo como no mar, distribuídos em 15 municípios do Estado do Rio Grande do Norte (Alto do Rodrigues, Apodi, Areia Branca, Assu, Caraúbas, Carnaubais, Felipe Guerra, Governador Dix Sept Rosado, Guamaré, Macau, Mossoró, Pendências, Porto do Mangue, Serra do Mel e Upanema) e dois municípios do Estado do Ceará (Aracati e Icapuí) (ANP, 2017).

3. Panorama geral da geração de água residuária do petróleo

A água subterrânea teve origem na formação geológica há milhões de anos. Como consequência, a composição natural da água inclui uma variedade de compostos orgânicos e inorgânicos, sendo extremamente dependente da região em que se encontra. Na exploração e produção do petróleo, a água está presente na rocha juntamente com o petróleo e o gás natural, estes fluidos estão separados em camadas. O mais pesado – a água – fica usualmente na parte inferior da rocha, sobre ela o petróleo e acima deste o gás; é usual a injeção de água no reservatório para manter a pressão e auxiliar o fluxo do petróleo para a superfície (GABARDO, 2007). A Figura 2 apresenta imagem de um campo de exploração de petróleo, destacando os reservatórios de óleo e o de água.

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Figura 2 - Imagem de um campo de petróleo, destacando os processos de prospecção e extração de petróleo em solo.

Fonte: Diário do Pré-Sal (2017).

A água a ser injetada na rocha pode ser doce, salgada ou aquela produzida juntamente com o óleo depois de separada. Seja qual for o tipo de água injetada no reservatório, ela é tratada para garantir que não ocorra entupimento dos poros da rocha, dificultando a migração do óleo aos poços adjacentes. A origem básica da água residuária do petróleo juntamente com o petróleo está relacionada às condições ambientais existentes durante a gênese deste óleo. O termo água residuária do petróleo refere-se ao efluente gerado no processo de produção de petróleo e gás natural que recebe essa denominação somente quando chega à superfície do solo, juntamente com o material extraído do reservatório e consiste na mistura da água de formação do poço produtor de petróleo, água de condensação e de injeção dos processos de recuperação secundária e água utilizada para dessalinização do petróleo produzido (FAKHRU’L-RAZI et al., 2009).

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Garcia (2006) relatou que a geração de água residuária do petróleo ocorre tanto nas atividades offshore, onde os descartes são realizados no oceano, quanto nas atividades onshore, onde pode haver descartes nos corpos hídricos ou solos próximos aos empreendimentos. Tanto em sistema onshore quanto em sistema offshore, existe a geração de água residuária do petróleo, que é o resíduo líquido mais preocupante da indústria do petróleo; isso ocorre devido à geração de grandes volumes de água associados à produção de petróleo; a quantidade deste efluente está relacionada aos mecanismos natural ou artificial de produção e do estágio de vida do campo de produção.

Nem toda água residuária gerada durante a atividade petrolífera é descartada no ambiente, podendo uma parcela deste efluente ser reinjetado nos poços de produção de petróleo. Em 2007, por exemplo, nos Estados Unidos, o volume estimado de geração de água residuária do petróleo foi de 93,4 milhões de m3, para uma produção de 75,5 milhões de m3 de petróleo e 2,8 bilhões de m3 de gás natural. Esse valor representou 256.000 m3 por dia de água de produção, dos quais 22.000 m3 por dia foram reinjetados nos poços para incremento da produção ou disposição deste efluente e 234.000 m3 por dia foram tratados e descartados no oceano (CLARCK; VEIL, 2009).

De acordo com Thomas (2001), em média, para cada m3 por dia de petróleo produzido no mundo são gerados três a quatro m3 por dia de água residuária do petróleo; em certos campos petrolíferos este número se eleva a sete ou mais.

No Brasil, as operações de produção de petróleo no ano de 2013 registraram a geração de cerca de 95 milhões de m3 de água residuária do petróleo, para uma produção de 107 milhões de m3 de petróleo, resultando em uma razão água: óleo de 0,89:1 (GOMES, 2014).

Vale ressaltar, que a diferença observada entre a atividade brasileira e a média reportada para o restante do mundo (3:1), pode estar relacionada à idade da maior parte dos campos brasileiros e início da atividade de exploração e produção no Brasil, mais recente do que em diversos outros países (MORAIS, 2013).

Segundo Gomes (2014), a razão média água: óleo foi de 2,64, no ano de 2013, para a bacia Potiguar, pois os campos de produção de Aratum (razão água: óleo de 20,55:1), Agulha (razão água: óleo de 3,96:1) e Serra (razão água: óleo de 3,46:1) apresentaram elevados valores da razão água: óleo. Com base nestes dados, estima-se que no Estado do Rio Grande do Norte geram-se, diariamente, 147.768 barris de água residuária do petróleo, o equivalente a 23.495 m3 (ANP, 2017).

4. Indicadores de qualidade da água residuária do petróleo

A qualidade da água residuária do petróleo está intimamente ligada à composição do petróleo, tendo como principais compostos constituintes o óleo, minerais dissolvidos da formação, compostos químicos residuais, sólidos, gases dissolvidos e microrganismos (AL-HALEEM et al., 2010).

Deve-se ressaltar que o óleo da água residuária do petróleo é formado por uma mistura de vários compostos como benzeno, tolueno, etilbenzeno e xileno, naftalenos, fenantrenos e dibenzotiofenos,

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hidrocarbonetos poliaromáticos e fenóis. Os hidrocarbonetos são altamente insolúveis na água, de modo que a maior parte do óleo presente na água residuária do petróleo está sob a forma dispersa (MOTTA et al., 2013).

A água residuária do petróleo possui, em sua constituição, sais inorgânicos dissolvidos, incluindo sulfetos e sais de amônio, compostos orgânicos dissolvidos e dispersos, dentre eles hidrocarbonetos, ácidos orgânicos e fenóis, e produtos químicos adicionados nos diversos processos de produção como, coagulantes, floculantes, inibidores de incrustação e corrosão, biocidas (utilizados para reduzir o crescimento microbiano) e quebradores de emulsão e de espuma. Sua composição apresenta, ainda, grandes concentrações e diversidade de metais pesados, sólidos em suspensão como areia, lodo, argila e outros silicatos, e traços de radionuclídeos (FIGUEREDO, 2010).

No Quadro 1 estão apresentadas as características físico-químicas de uma amostra de água residuária do petróleo sem tratamento, coletada em Mossoró-RN.

5. Legislação aplicada à água residuária do petróleo

Devido ao grande potencial contaminante da água residuária do petróleo, a legislação brasileira avançou no sentido de estabelecer limites relacionados à qualidade dos efluentes tratados para lançamento no ambiente.

A Lei 9.478/97, conhecida como Lei do Petróleo, dispõe, sobre a política energética nacional, as atividades relativas ao monopólio do petróleo, também institui o Conselho Nacional de Política Energética e a Agência Nacional do Petróleo e dá outras providências, com atribuição de propor políticas para o setor petrolífero, além de instituir a Agência Nacional do Petróleo e Biocombustíveis (ANP), Gás Natural e Biocombustíveis. Nesta lei estão elencados os principais objetivos da Política

Quadro 1 - Características físico-químicas de uma amostra de água residuária do petróleo sem tratamento, coletada em Mossoró-RN.

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Energética Nacional, as funções e objetivos do Conselho Nacional de Política Energética e da ANP, além das especificações sobre o regime de concessão, editais de licitação, importações e exportações (BRASIL, 1997).

Assim, a ANP (Agência Nacional de Petróleo e Biocombustíveis), como órgão regulador da indústria do petróleo, tem o papel de promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes do setor, podendo ainda aplicar sanções administrativas em decorrência do seu poder de polícia administrativa (NASCIMENTO, 2009).

A indústria de óleo e gás possui quatro opções para gerenciar a água residuária do petróleo, sendo estas: 1) a injeção da água residuária do petróleo no interior da formação da qual o petróleo é produzido ou remanejada para outra formação; 2) o tratamento da água residuária do petróleo para satisfazer as regulações de descarga e então poder descartá-la no ambiente; 3) tratamento da água residuária do petróleo para satisfazer a qualidade requerida para uso nas operações dos campos de gás e óleo; e 4) tratamento da água residuária do petróleo para atender à qualidade requerida para usos benéficos, tais como irrigação (ARTHUR et al., 2005).

No artigo 16 da Resolução CONAMA no 430/2011 (BRASIL, 2011) são estabelecidos os níveis aceitáveis para pH (5 a 9), temperatura (< 40oC ), sólidos sedimentáveis (< 1 mL L-1), óleos minerais (< 20 mg L-1), bário (< 5,0 mg L-1), benzeno (< 1,2 mg L-1), estilbenzeno (0,84 mg L-1), fenóis totais (< 0,5 mg L-1), tolueno (< 1,2 mg L-1) e xileno (< 1,6 mg L-1), que podem ser utilizados como critérios para lançamento de água residuária do petróleo tratada em corpos hídricos. No Quadro 2, estão apresentados todos os parâmetros para lançamento de efluentes industriais tratados em corpos hídricos.

Quadro 2 - Padrões de lançamento de efluentes industriais tratados nos corpos hídricos brasileiros.

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A Resolução CONAMA nº 420, de 28 de dezembro de 2009, dispõe sobre critérios e valores orientadores de qualidade do solo e águas subterrâneas quanto à presença de substâncias químicas e estabelece diretrizes para o gerenciamento ambiental de áreas contaminadas por essas substâncias em decorrência de atividades antrópicas (BRASIL, 2009). Os valores orientadores são pré-estabelecidos, de forma a determinar a ausência de contaminação ou conhecer o seu nível.

Esta resolução estabelece três valores orientadores distintos, que são eles: valores orientadores de referência de qualidade (VRQ’s), de prevenção (VP’s) e de investigação (VI’s). Os VRQ’s indicam o nível de qualidade para um solo considerado limpo ou a qualidade natural das águas subterrâneas a ser utilizada em ações de prevenção da poluição do solo e das águas subterrâneas e no controle de áreas contaminadas. Os VP’s, correspondentes à concentração do valor limite de determinada substância no solo, tal que sejam capazes de sustentar suas funções principais. Já os VI’s indicam a concentração de determinada substância no solo ou na água subterrânea, acima da qual existem riscos potenciais, diretos ou indiretos, à saúde humana, considerando um cenário de exposição (BRASIL, 2009).

De acordo com essa resolução, o gerenciamento de áreas contaminadas deverá conter ações voltadas a eliminar ou reduzir o risco à saúde e ao meio ambiente, observando os seguintes aspectos: planejamento de uso e ocupação do solo, visando demonstrar uso declarado ou futuro da área; procedimentos de investigação de áreas suspeitas de contaminação, que serão submetidas a uma avaliação preliminar para aferir a qualidade do solo; ações de controle e fiscalização (BRASIL, 2009). No Quadro 3, estão apresentados os valores orientados para disposição dos resíduos em solos e em águas subterrâneas.

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Quadro 3 - Valores orientados para disposição dos resíduos em solos e em águas subterrâneas.

Fonte: Resolução CONAMA nº 420/2009, BRASIL (2009).

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Para as plataformas marítimas do Brasil, o descarte deve atender à Resolução CONAMA nº 393/2007 (BRASIL, 2007), onde o principal parâmetro monitorado é o teor de óleos e graxas, cujo valor permitido deve ser de 29 mg L-1, para a média aritmética simples mensal, e de 42 mg L-1, para o valor máximo diário. Além disso, essa resolução estabelece que a água residuária do petróleo somente poderá ser lançada, direta ou indiretamente, no mar desde que obedeça às condições, padrões e exigências e não acarrete ao mar, no entorno do ponto de lançamento, características diversas da classe de enquadramento para a área definida, com exceção da zona de mistura (a zona de mistura está limitada a um raio de 500 m do ponto de descarte).

Em muitos países não existem regulamentos específicos sobre a qualidade necessária para a reutilização da água na agricultura. Considerando os riscos associados com a aplicação de reutilização, a toxicidade é um parâmetro chave para definir um determinado nível da qualidade da água (FAKHRU’L-RAZI et al., 2010). Neste sentido, Veil et al. (2004) propuseram limite de 500 mg L-1 de sólidos dissolvidos e de 0,05 mg L-1 de óleos e graxas para o aproveitamento agrícola de água residuária do petróleo tratada.

6. Técnicas de tratamento da água residuária do petróleo

Para água residuária do petróleo, as alternativas usualmente adotadas para o seu destino são o descarte, a injeção e o reuso. Em todos os casos, há necessidade de tratamento específico, a fim de atender as demandas ambientais, operacionais ou da atividade produtiva que a utilizará como insumo. Um dos objetivos do tratamento da água residuária do petróleo é a remoção de óleo, que pode estar presente na água sob as formas livre, em emulsão e dissolvido; dessas três, o óleo sob a forma emulsionada é o que mais preocupa, em função do elevado grau de dificuldade encontrado para a sua remoção (MOTTA et al., 2013).

O tratamento da água residuária do petróleo pode ser feito, ainda, com os seguintes objetivos: 1) remoção de compostos orgânicos solúveis; 2) desinfecção, para remoção de bactérias e algas; 3) remoção de sólidos suspensos, turbidez e areia; 4) remoção de gases dissolvidos, como gases de hidrocarbonetos leves, CO2 e H2S; 5) dessalinização, para remoção de sais dissolvidos, sulfatos, nitratos e agentes de incrustação; 6) abrandamento, para remoção de dureza em excesso; 7) remoção de compostos diversos, como os materiais radioativos de ocorrência natural, e ajuste da razão de adsorção de sódio. Nesse último caso, é adicionado cálcio ou magnésio e o objetivo é o reuso da água para fins de irrigação (ARTHUR et al., 2005).

Para remoção dos compostos citados, são usados vários processos físicos, químicos e biológicos. As tecnologias para tratamento de água residuária do petróleo podem ser agrupadas em quatro diferentes estágios, dependendo da capacidade de tratar águas oleosas, bem como o nível de exigência, considerando a qualidade da água afluente (FAKHRU’L-RAZI et al., 2009). Esses estágios são: a) Estágio 1: tem o objetivo de remover o teor de óleos e graxas em níveis aceitáveis para os

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processos de tratamento subsequentes, onde normalmente são usados hidrociclones ou flotadores; b) Estágio 2: empregado na remoção adicional do teor de óleos e graxas, a fim de permitir a disposição da água residuária do petróleo ou o seu envio para processos subsequentes, nesse caso, são usados processos biológicos diversos, como lodo ativado, ou processos físicos, como dessorção ou adsorção; c) Estágio 3: usado para produzir efluentes com qualidade muito boa para reuso e visa a redução adicional do teor de óleos e graxas, alguns exemplos disso são a adsorção em carvão ativado e filtração em membranas; e d) Estágio 4: utilizado na remoção de compostos dissolvidos, como sódio e sólidos dissolvidos totais. Entre esses processos se incluem a eletrodiálise reversa, a osmose inversa e a troca iônica.

A concentração de óleo total na água residuária do petróleo pode variar desde valores relativamente baixos, como de 50 a 600 mg L-1 (TIBBETTS et al., 1992; QIAO et al., 2008), até mais elevados, superiores a 1000 mg L-1 (CHAKRABARTY et al., 2008). Entre os fatores que influenciam nesses teores estão a eficiência de desemulsificação (no processo de tratamento primário), o tipo de óleo (CHAKRABARTY et al., 2008) e o processo utilizado na extração do petróleo (QIAO et al., 2008).

O óleo, sob a sua forma livre e sob a forma de emulsão instável, é facilmente removido da água residuária do petróleo nas unidades de tratamento primário das instalações onshore e offshore. Nas instalações onshore, os processos mais utilizados são os separadores gravitacionais, enquanto que nas instalações offshore, em função da escassez de espaço, são usados os hidrociclones que utilizam a força centrífuga; nesses equipamentos, a água residuária do petróleo é introduzida tangencialmente na sua porção inicial, que possui um formato cônico, de modo que a água, mais densa que o óleo, gira no interior do hidrociclone e próxima às suas paredes à medida que é encaminhada para uma das suas duas saídas, a inferior; por outro lado, os fluidos menos densos, como óleo e gás, giram pelo centro do hidrociclone à medida que são encaminhados para a sua saída superior (SAIDI et al., 2012; AMINI et al., 2012).

Apesar de sua boa eficiência na remoção de óleo livre, os separadores gravitacionais não são muito eficientes no processo de separação de suspensões finamente dispersas líquido-líquido, com gotas de óleo de pequenos diâmetros. Spielman e Su (1977) destacam que gotículas de óleo com diâmetros menores que 10 μm flotam de forma mais lenta do que as maiores. Além disso, quando essas gotas estão presentes em suspensões com concentrações muito baixas, a colisão delas entre si se torna mais difícil de ocorrer, o que faz com que o processo de coalescência não tenha a intensidade desejada (HONG et al., 2003).

Adicionalmente, o processo de coalescência pode sofrer interferência por alguns compostos presentes na suspensão, como os surfactantes que, no caso da água residuária do petróleo, estão naturalmente presentes; os principais surfactantes naturais do petróleo são os asfaltenos e as resinas (THOMAS, 2001).

Para esses tipos de emulsão, o processo mais comumente adotado na prática é a adição de produtos químicos desemulsificantes, seguido de flotação a ar. Apesar da boa eficiência, contudo, esse processo apresenta algumas desvantagens como a utilização de produtos químicos, os quais podem ser caros,

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além da geração de lodo, que deve ser tratado e descartado de forma adequada (STEWART; ARNOLD, 2011).

A filtração por membranas é apontada como uma das tecnologias mais eficientes para o tratamento de efluentes oleosos, como por exemplo, a água residuária do petróleo (SILAHI; LEIKNES, 2001; ASHAGHI et al., 2007; LI; LEE, 2009; IGUNNU; CHEN, 2012; ZHANG et al., 2013; ALZAHRANI; MOHAMMAD, 2014). O óleo emulsionado pode ser retido pela membrana por exclusão de tamanho, aumentando sua concentração na corrente de alimentação e facilitando a coalescência de gotas de óleo de dimensões mícron e submícrons em gotas maiores, a fim de que essas possam ser facilmente separadas por gravidade (CHAKRABARTY et al., 2008).

As principais vantagens dos processos de membranas são: retenção de gotas de óleo com dimensões abaixo de 10 µm; baixos custos operacionais quando comparado com os processos usuais; dispensar a utilização de produtos químicos; e a capacidade de gerar permeados com qualidade aceitável (CHAKRABARTY et al., 2008).

A busca por novos processos de tratamento de água residuária do petróleo é particularmente importante quando se verifica que a produção de petróleo tem aumentado consideravelmente ao longo dos anos. No Quadro 4, estão apresentados os principais processos de tratamento de água residuária do petróleo, para remoção de óleo, com algumas características comparativas entre eles.

Quadro 4 - Comparação entre processos de tratamento da água residuária do petróleo para remoção de óleo.

Fonte: Adaptado de Stewart e Arnold (2011).

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7. Experiências do aproveitamento agrícola da água residuária do petróleo tratada

No Semiárido brasileiro, os primeiros estudos com água residuária do petróleo tratada, para fins de irrigação, ocorreram de 2012 a 2014, no Campo da Fazenda Belém, da Unidade de Produção do Rio Grande do Norte e Ceará, instalado em Aracati-CE, pertencente ao ativo de produção de petróleo de Mossoró-RN. A água residuária do petróleo, nestes locais, foi tratada por filtração e osmose inversa, sendo posteriormente utilizada na irrigação de girassol e mamona (MIRANDA et al., 2016; SOUSA et al., 2016; SOUSA et al., 2017; WEBER et al., 2017).

Devido à toxicidade da água residuária do petróleo (mesmo com tratamento), as recomendações dos tipos de cultivos agrícolas que possam ser produzidos com essa água, ainda são limitadas. No trabalho de Andrade et al. (2011), recomenda-se para a água residuária do petróleo tratada, cultivos agrícolas não comestíveis, tais como as oleaginosas para produção de biocombustível (girassol, soja e mamona) e o girassol ornamental.

Sousa et al. (2016), Sousa et al. 2017 e Weber et al. (2017) conduziram ensaios experimentais com girassol ornamental (BRS 321), por três ciclos de produção sucessivos de julho de 2012 a outubro de 2013, em um Neossolo Quartzarênico de Aracati-CE, irrigado por gotejamento com água residuária do petróleo, tratada por filtração e por osmose inversa, além de um tratamento-controle com água subterrânea do aquífero Açu.

Weber et al. (2017) relataram que a irrigação, com água residuária do petróleo tratada por filtração, altera o teor de sais trocáveis no solo, ao aumentar o Na+ nas camadas superficiais, prejudicando assim o crescimento vegetativo e o acúmulo de nutrientes nas raízes e nas partes aéreas do girassol ornamental. Já nos ensaios conduzidos com a água residuária do petróleo tratada por osmose inversa, não houve alteração do desempenho agronômico do girassol ornamental, em comparação à irrigação realizada com água subterrânea.

Em trabalho complementar, Sousa et al. (2016) notaram que a irrigação com água residuária do petróleo afetou o acúmulo de nutrientes em plantas de girassol, já a água residuária do petróleo tratada por osmose inversa promoveu acúmulo de Ca, Na, N, P e Mg, enquanto a água residuária do petróleo tratada por filtração ocasionou maiores acúmulos nas raízes e na parte aérea, afetando negativamente a produção de biomassa e de grãos do girassol.

No trabalho de Sousa et al. (2017) verificou-se que condutividade elétrica do extrato de saturação do solo aumentou quando o solo foi irrigado com água residuária do petróleo tratada por filtração, assim como o pH, independentemente do tipo de água utilizada; enquanto na camada de solo superficial (0 a 0,20 m), o teor de carbono da fração de ácido fúlvico diminuiu, devido à mobilização das frações orgânicas. Além disso, o aumento da salinidade e alcalinidade do solo reduziu o crescimento e o acúmulo de biomassa do girassol ornamental.

Ainda segundo Sousa et al. (2017), dependendo do tratamento, o uso agrícola de águas produzidas do petróleo pode ser uma boa opção, particularmente em regiões semiáridas. O tratamento com osmose inversa melhorou a qualidade da água residuária do petróleo, mas para que estas sejam

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usadas, os efeitos cumulativos devem ser avaliados, já que a alcalinização ocorreu mesmo em um solo arenoso.

Também no Campo da Fazenda Belém, Aracati-CE, nos estudos de Miranda et al. (2016) foram avaliados os efeitos da irrigação com água residuária do petróleo tratada por filtração e por osmose inversa sobre o rendimento da mamoneira e a salinidade do solo, em comparação à irrigação, utilizando água subterrânea, em dois ciclos sucessivos, realizados de agosto a dezembro de 2012 e de abril a agosto de 2013. Os referidos autores evidenciaram que a irrigação com água residuária do petróleo tratada por osmose inversa não afetou negativamente a produtividade da cultura, a salinidade e a sodicidade do solo em relação à irrigação com água subterrânea, podendo essa água ser utilizada sem restrições na irrigação da mamoneira. No entanto, a irrigação com água residuária do petróleo tratada por filtração reduziu a produtividade da mamoneira em 30% comparada à irrigação com água subterrânea. O solo irrigado com água residuária do petróleo tratada por filtração apresentou níveis mais elevados de salinidade e sodicidade em relação ao solo irrigado com água subterrânea e água residuária do petróleo tratada por osmose inversa.

8. Considerações Finais

A atividade petrolífera é um dos pilares da economia do Estado do Rio Grande do Norte, tendo como vulnerabilidade ambiental a geração de grandes volumes de água residuária do petróleo que demandam tratamento adequado para disposição no ambiente.

No Semiárido, a mamona e o girassol foram culturas que apresentaram bom desempenho agronômico quando irrigadas com água residuária do petróleo tratada por osmose inversa.

A salininização e sodicidade estão entre os principias problemas ocasionados pela irrigação com água residuária do petróleo sem tratamento adequado.

A água residuária do petróleo contém nutrientes que podem ser aproveitados na produção de cultivos agrícolas para fins energéticos, no entanto esta técnica necessita de pesquisas sobre a avaliação dos seus impactos no sistema solo-planta, com ênfase na ecotoxicologia.

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CONTAMINAÇÃO POR HIDROCARBONETOS NAS ÁGUAS SUPERFICIAIS E SUBTERRÂNEAS EM REGIÕES SEMIÁRIDAS

Cristian José Simões CostaDjalma Ribeiro da SilvaRaoni Batista dos Anjos

Nataly Albuquerque dos Santos

1. Introdução

Historicamente, podemos demonstrar que o crescimento das cidades esteve marcado por intempestivas interferências nos ciclos biogeoquímicos, sendo estes responsáveis pelos mecanismos que regem a vida no planeta. Impermeabilização do solo, redução da cobertura vegetal, contaminação das águas superficiais e subterrâneas, dentre outros são considerados impactos ambientais provocados pelo crescimento das cidades que reduzem a qualidade de vida ambiental.

No final da década de 1960, as cidades brasileiras sofreram modificações significativas para se adaptarem à vida moderna, tendo o crescimento da frota de veículos destaque neste período. O milagre econômico da época, que deu à classe média um maior poder aquisitivo, trouxe como reflexos alterações significativas na paisagem urbana: ruas foram alargadas e pavimentadas, vegetação suprimida e rios foram canalizados para que os automóveis pudessem ter seu espaço, além dos diversos serviços (postos de combustíveis, oficinas mecânicas, lava-jatos) que complementam essa atividade e que trabalham com produtos derivados do petróleo com elevado potencial poluidor do ar, do solo e da água (DUARTE, 2007).

Esse processo de adaptação das cidades para os automóveis, fenômeno que impulsiona o crescimento138 delas, pode ser considerado, por outro olhar, como um importante marco que tem influência direta no processo de degradação dos recursos naturais, notadamente dos recursos hídricos. É sobre essa adaptação e suas consequências do consumo de derivados do petróleo que vamos refletir ao longo deste texto.

Análogo ao processo de “crescimento” das cidades, comprova-se agora a contaminação e comprometimento das diversas microbacias urbanas, reflexo de um modelo que não contempla os serviços ambientais139. Segundo a Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental de São Paulo (CETESB), uma área contaminada pode ser caracterizada como uma área, local ou terreno onde há comprovadamente poluição causada pela introdução de quaisquer substâncias ou resíduos que nela tenham sido depositados ou acumulados de forma planejada, acidental ou até mesmo natural.

A interferência humana sobre os recursos naturais, notadamente sobre os recursos hídricos, tem sido palco de muitas discussões e quando o recorte é a região semiárida do Brasil, entendemos

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que os prejuízos econômicos e sociais resultados dos transtornos ambientais, podem ser bem mais complexos devido à natureza do ecossistema. A perda da qualidade da água por contaminação de qualquer natureza em regiões que possuem índice pluviométrico baixo (até 800 mm) compromete, além da cadeia alimentar, todo o potencial econômico de uma região.

Campina Grande, na Paraíba, cidade com 400 mil habitantes, localizada no Semiárido, é um exemplo do que tratamos neste artigo. Sua história, como a de tantas outras cidades brasileiras, começa às margens de um lago: o Açude Velho, alimentado pela microbacia do Riacho das Piabas que, ao longo de 150 anos, vem sofrendo com o despejo de diversos tipos de poluentes (domésticos e industriais). Nas últimas décadas, surgiram também novas preocupações: o aumento no consumo dos derivados de petróleo tem sido alvo de estudos não apenas nos acidentes em dutos de petróleo, mas também no meio urbano, com as atividades de revenda de combustíveis, lava-jatos e oficinas mecânicas, que podem contaminar as águas superficiais e subterrâneas com os derivados de petróleo, como os BTEX (benzeno, tolueno, etilbenzeno e xilenos), os Hidrocarbonetos Policíclicos Aromáticos (HPA), os Óleos e Graxas e os Hidrocarbonetos Totais de Petróleo (TPH).

A criação e ampliação dos serviços automotivos (postos de combustíveis, lava-jatos, oficinas mecânicas) para atender a um mercado em expansão não possibilitou uma convivência harmônica com os serviços que são prestados ao ambiente, os chamados ‘serviços ambientais’. Esta realidade, criada para atender os automóveis, que se desenha a partir da década de 1970, começa a comprometer os solos e as águas superficiais e subterrâneas com produtos derivados do petróleo. Em Natal, RN, por exemplo, destaca-se o trabalho de investigação de passivo ambiental em postos de combustíveis realizado pelo Ministério Público de Natal, em parceria com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo da cidade (SEMURB) e a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Foi identificada a contaminação do solo com derivados de petróleo, resultado principalmente de vazamentos de tanques de armazenamento subterrâneo de combustíveis e tubulações (MPRN, 2012).

Estamos diante de um cenário preocupante por duas razões: primeiro porque estudos e diagnósticos de contaminação por hidrocarbonetos de petróleo nas águas superficiais e subterrâneas em regiões semiáridas são escassos; segundo, porque essas substâncias apresentam um elevado potencial de contaminação do ciclo biogênico da água.

Garcia-Novo & Garcia-Bouzas (2006) citam uma série de consequências de intervenções humanas nos ciclos essenciais da água e no funcionamento dos ecossistemas que envolvem desde a Eutrofização de águas costeiras até a introdução de novas moléculas orgânicas na água, tais como medicamentos, antibióticos e hormônios, chamados de desenruptores endócrinos.

Além desses impactos podemos destacar a presença dos micropoluentes originados do petróleo: os hidrocarbonetos que apresentam elevado potencial de contaminação de ambientes aquáticos.

O que se pode observar é que todas essas alterações nos ecossistemas são reflexos de práticas e costumes de uma sociedade de consumo que transforma os recursos naturais de forma tão célere

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que os ecossistemas perdem sua resiliência140. Todos os ecossistemas aquáticos estão sujeitos a um conjunto de impactos resultantes das atividades antrópicas e dos usos múltiplos das bacias hidrográficas (TUNDISI & TUNDISI, 2011).

O impacto ambiental ocasionado pelo crescimento das cidades nas últimas décadas tem sido objeto de estudo de diversos campos de saber, dentre os quais se destacam ambientalistas, sociólogos, historiadores ambientais, geógrafos e ecólogos. Alguns enxergam o problema ambiental como uma crise da percepção humana, que consiste na dicotomia ser humano versus natureza. A importância da pesquisa ambiental, que também tem por foco a percepção ambiental para o planejamento, foi ressaltada pela UNESCO, identificando que uma das dificuldades para proteção dos ecossistemas está na existência de diferenças nas percepções dos valores e da importância desses mesmos valores nesses ambientes (UNESCO,1973).

Desta forma, podemos deduzir que uma das causas dos problemas ambientais está na incapacidade do ser humano de planejar suas ações conforme o ambiente possa absorver seus impactos. Essa ideia advém de uma postura antropocêntrica que considera os recursos naturais algo para satisfazer apenas as necessidades humanas. A figura 1 identifica as principais redes responsáveis pelos fatores impactantes que ameaçam os serviços ecossistêmicos e o quanto é importante analisar de forma isolada, ou no seu conjunto, o grau de comprometimento dos serviços ambientais.

Figura 1 - Interação entre os seis principais serviços dos ecossistemas aquáticos e as potenciais ameaças e fatores impactantes.

Fonte: GILLER (2005).

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Neste artigo, que integra os resultados parciais de uma dissertação defendida no Programa Regional de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente – PRODEMA, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), intitulada “Avaliação preliminar e confirmatória da contaminação por hidrocarbonetos de petróleo das águas superficiais e subterrâneas no distrito dos mecânicos em Campina Grande/PB”, destacamos três campanhas realizada em seis pontos pré-definidos para análise das águas superficiais e subterrâneas quanto à presença de óleos e graxas de origem mineral, substâncias originadas a partir de hidrocarbonetos de petróleo, na região, que compreende um complexo de oficinas mecânicas conhecido como o Distrito dos Mecânicos.

2. Panorama das oficinas mecânicas Embora apenas os grandes acidentes com petróleo e seus derivados chamem mais a atenção

da população em geral, como o ocorrido na Baia da Guanabara (jan/2000), entre a Refinaria Duque de Caxias e o Terminal da Ilha d´Água, com vazamento de 1.300 m³ de óleo combustível marítimo, causando a contaminação de praias, costões, manguezais, unidades de conservação e patrimônio histórico; e a explosão, seguida de incêndio, do navio químico Vicuña, no Porto de Paranaguá (PR) em 2004, do qual se estima que vazaram 4.079 toneladas de metanol e 285 toneladas de óleos (com predominância de óleo combustível marítimo - MF 180); as oficinas mecânicas representam uma parcela da cadeia de distribuição que deve ter mais atenção por apresentar elevado potencial poluidor e por possuir uma atividade específica em que se trabalha com vários compostos de origem petrolífera. A contaminação pode ocorrer na etapa de transporte de substâncias tóxicas, dos seus subprodutos ou ainda no descarte ou utilização inadequada de resíduos como estopas e lavagem de motores. A utilização diária de produtos, que tem por base os hidrocarbonetos, aliada à falta de um plano de gestão ambiental, tornam a região do Distrito dos Mecânicos vulnerável à poluição do solo e seus aquíferos. Neste texto compreendemos por poluição o conceito definido por Sánches:

Poluição é entendida como uma condição do entorno dos seres vivos (ar, água, solo) que lhes possa ser danosa. As causas da poluição são as atividades humanas que, no sentido etimológico, “sujam” o ambiente. Dessa forma tais atividades devem ser controladas para evitar ou reduzir a poluição (SÁNCHES, 2008 p. 24).

O Distrito dos Mecânicos, localizado no bairro do Jardim Paulistano, é ocupado por 197 imóveis com atividades das mais diversas, dentre elas as oficinas mecânicas em um total de 19, que corresponde a aproximadamente 10% do total de estabelecimentos. O espaço foi construído entre os anos de 1980 e 1982 com objetivo estético-paisagístico de retirar as oficinas da área central da cidade e também oferecer melhor condição de trabalho para os mecânicos, porém as questões ambientais não foram contempladas devido à inexistência, à época, de normas que previssem o impacto ambiental ocasionado pela atividade dos mecânicos automotivos.

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No Brasil, as leis sobre o controle da poluição foram se consolidando após o debate público de uma agenda internacional que ocorreu principalmente após a Conferência de Estocolmo em 1970. Alguns países, como os Estados Unidos, já manifestavam certa preocupação com o controle da poluição: em 1948 já tinham uma Lei de Controle da Poluição das Águas e, a partir de 1955, com a Lei de Controle da Poluição do Ar. Em 1956, o Reino Unido também decretava a Lei do Ar Limpo (SÁNCHES, 2008).

Na legislação Brasileira, a Resolução CONAMA no 1/86, art. 1o prevê o impacto ambiental da seguinte forma:

Artigo 1º - Qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetam:I - a saúde, a segurança e o bem-estar da população;II - as atividades sociais e econômicas;III - a biota;IV - as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente;V - a qualidade dos recursos ambientais.

A Lei Federal n° 6938/81 e o Decreto Federal n° 99.274/90 estabelecem quem está sujeito ao licenciamento:

Art. 10 - A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento de órgão estadual competente, integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis.

No Brasil, diversos estudos sobre contaminação e monitoramento das águas superficiais e subterrâneas se concentram principalmente nas atividades dos postos de combustíveis, sendo parcos, na literatura, os trabalhos sobre os lava-jatos e oficinas mecânicas. Apenas alguns pesquisadores, dentre os quais Dutra Filho (2012), da Fundação Estadual de Proteção Ambiental do Rio Grande do Sul (FEPAM), abordam o tema mostrando que a poluição não ocorre apenas nos grandes empreendimentos, mas na sua cadeia de distribuição até o consumidor e isso inclui os empreendimento de pequeno porte, dentre eles as oficinas mecânicas, problema agravado pelo fato da legislação não deixar claro o potencial poluidor das oficinas mecânicas ao não mencionar na lista da Resolução CONAMA n° 237/97 as atividades de tais oficinas (DUTRA FILHO, 2012).

Os resíduos tóxicos provenientes dos derivados de petróleo podem penetrar no solo e atingir o lençol freático da região causando um passivo ambiental difícil de avaliar com precisão devido ao dinamismo do ambiente, resultado das complexas relações de fluxos de energia e matéria. O processo de recuperação dessas regiões pode demorar anos com custos muito elevados. Em sítios

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antigos contaminados ou que apresentam risco de contaminação, devem ser medidos os níveis de poluição e tratados, a fim de garantir a qualidade ambiental daquele local, o que resulta da melhoria das relações ecológicas. Segundo SÁNCHES, a possibilidade de se medir a poluição e estabelecer padrões ambientais, permitem que sejam definidos com clareza os direitos e as responsabilidades do poluidor e do fiscal (os órgãos públicos), assim como da população (SÁNCHES, 2008).

As oficinas mecânicas expõem uma série de elementos que caracterizam risco direto de contaminação do solo e lençol subterrâneo, tais como derramamentos durante operações de cargas e descargas de compostos derivados de petróleo, falhas estruturais em tanques de armazenamento e destinação de óleo lubrificante, filtros de motores usados, estopas contaminadas, líquido de limpeza de radiador, solventes e instalações inadequadas ou ultrapassadas para legislação atual conforme a atividade exige.

A água subterrânea é de grande importância para o consumo humano, em geral dispensa tratamento prévio, haja vista que os processos de filtração do subsolo exercem a purificação da água durante a sua percolação no meio, tornando-se uma fonte potencial de água de boa qualidade para áreas urbanas e rurais. No caso da região semiárida, apesar do volume de água subterrânea ser menor e possuir, na maioria das vezes, grande concentração de sais, mesmo assim torna-se um bem essencial quando utilizadas tecnologias de dessalinização e gestão para utilização de um recurso escasso na região. O valor da água subterrânea torna-se ainda maior quando observada a sua importância nos ecossistemas que dela necessitam para alimentar os rios e toda uma biota aquática e terrestre.

Os principais elementos que podem contaminar as águas subterrâneas daquela região são os compostos aromáticos, os hidrocarbonetos, os íons metálicos, provenientes das oficinas mecânicas, e os micro-organismos e compostos nitrogenados originados dos esgotos domésticos.

A contaminação de águas subterrâneas por subprodutos derivados de petróleo tem sido objeto de crescente pesquisa no Brasil devido a, entre outros fatores, necessidade de preservação dos recursos naturais, exigida pela adequação das normas ambientais.

No caso da contaminação por derivados de petróleo, uma série de análises pode ser realizada considerando o objetivo do estudo. Neste artigo vamos utilizar um índice geral Teor de Óleos e graxas minerais (TOG) uma vez que a região estudada não apresenta nenhuma avaliação sobre este tipo de contaminação.

Considera-se óleos ou graxas os seguintes elementos: hidrocarbonetos, ácidos graxos, sabões, gorduras, óleos e ceras, assim como alguns compostos de enxofre, certos corantes orgânicos e clorofila (BAUMGARTEN e POZZA, 2001). Na ausência de produtos industriais especialmente modificados, os óleos e graxas constituem-se de materiais graxos de origem animal e vegetal e de hidrocarbonetos originados do petróleo.

Em quantidades excessivas e, por apresentar baixa solubilidade, eles podem interferir nos processos biológicos aeróbicos e anaeróbicos (Figura 2), causando ineficiência do tratamento de águas residuárias. Nesses casos, podem causar acúmulo excessivo de escória em digestores, obstruindo os poros dos filtros, e impedir o uso do lodo como fertilizante (SPERLING, 1995).

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Quando descartados junto com águas residuárias ou efluentes tratados, os óleos e graxas podem formar filmes sobre a superfície das águas e se depositarem nas margens, causando assim diversos problemas ambientais (SPERLING, 1995). No ambiente, estes podem impedir a transferência de oxigênio do ar para a água, e, consequentemente, aumentar a carga orgânica em corpos d’água da poluição difusa. Em processo de decomposição, a presença dessas substâncias reduz o oxigênio dissolvido, elevando a demanda bioquímica de oxigênio (DBO) e a demanda química de oxigênio (DQO), causando alterações como poluição, escassez de oxigênio e eutrofização do ambiente aquático. Isso provoca a asfixia dos animais e impossibilita a realização da fotossíntese por parte dos vegetais e do plâncton (IGAM, 2014).

O lançamento de óleos e graxas (OG) pode ainda contribuir para a formação de bactérias conhecidas como nocardias141. Estas impactam no tratamento favorecendo a perda de lodo para o efluente. Este tipo de ocorrência só é possível se a concentração de TOG do efluente estiver constantemente alta. Diante do exposto, as indústrias que lançam este tipo de resíduo necessitam realizar um pré-tratamento para remoção deste constituinte.

No Brasil, o padrão de lançamento de efluentes oleosos, estabelecido pela Resolução CONAMA 430/2011, determina que para óleos minerais seja de 20 mg/L e para óleos vegetais e gorduras animais seja de 50 mg/L, porém as legislações ambientais estaduais e municipais podem atuar de maneira complementar dentro de cada jurisdição, levando em consideração o enquadramento previsto para o corpo d’água e diferentes metodologias.

Figura 2 - Principais interferências causadas por óleos e graxas no tratamento de águas residuárias.

Fonte: Sperling Adaptado (1995).

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A verificação da presença e concentração dos contaminantes originados de petróleo em conglomerados de oficinas mecânicas é um instrumento muito importante que irá definir o plano que deverá ser inserido no local, bem como a necessidade ou não da implantação de medidas corretivas de remediação ou de intervenção do solo e águas subterrâneas contaminadas.

3 Materiais e métodos

3.1 Pontos amostrados

3.1.1. Amostragem e análise da água superficial

Foram realizadas três campanhas para amostragem das águas superficiais em dois pontos de coleta previamente definidos, sendo um à montante do Distrito dos Mecânicos e outro à jusante (Figura 3). As coordenadas geográficas foram registradas com o Sistema de posicionamento global - GPS (Figura 4).

O trabalho de campo sobre a amostragem da água superficial foi realizado em dois períodos, sendo uma coleta realizada no mês de inverno (agosto/2014) e duas outras realizadas no verão (outubro e dezembro/2014) para que possa ser feita uma análise comparativa e confirmatória dos dados obtidos.

Os ensaios tiveram como objetivo principal avaliar a presença e concentração de óleos e graxas de origem mineral, nas águas superficiais do Riacho das Piabas.

Figura 3 - Vista parcial do riacho das Piabas, à jusante do Distrito dos Mecânicos.

Foto: Cristian J. S. Costa (2011).

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3.1.2 Amostragem e análise da água subterrânea

As amostragens da água subterrânea tiveram como objetivo detectar a presença de compostos não voláteis como óleos e graxas de origem mineral.

As águas subterrâneas foram coletadas em quatro poços do Distrito dos Mecânicos (Figura 4). Os poços analisados são caracterizados como tubulares em rochas cristalinas.

Figura 4 - Localização da área de estudo, Distrito dos Mecânicos, Campina Grande PB.

Poços tubulares ou artesianos são obras de engenharia com objetivo de aproveitamento da água subterrânea para consumo humano, utilização comercial ou industrial. São abertos por máquinas perfuratrizes de diâmetros variáveis, sendo totalmente ou parcialmente revestidos por tubulações de ferro ou PVC. São divididos em poços em rochas cristalinas e poços sedimentares (CPRM, 1998).

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a) Poços em rochas cristalinas (Figura 5)

Os poços tubulares instalados em rochas cristalinas geralmente usam menos revestimentos. No caso de Campina Grande, captam água de aquíferos fissurais com vazão relativamente pequena com média de (2 a 5 m3/h), servindo para abastecimento de casas, vilas, comércios e pequenas comunidades (CPRM, 1998).

Poços em rochas cristalinas são menos susceptíveis à contaminação devido à baixa porosidade e permeabilidade.

b) Poços em rochas sedimentares (Figura 5)

São poços com profundidades variáveis. As rochas sedimentares são rochas de baixa coesão, com espaços intergranulares entre os grânulos que as compõem, característica que faz com que a água seja transmitida através da intercomunicação entre os espaços vazios ao longo de um gradiente hidráulico (DRM, 2001).

Figura 5 - Poços tubulares instalados em solos sedimentares e cristalinos.

Fonte: CPRM (1998).

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O primeiro poço de coleta (Figura 6), localizado na Avenida Manoel Eneas de Figueiredo Filho, pertence à Prefeitura Municipal de Campina Grande. Ele possui uma profundidade de 36 metros e uma capacidade de exploração recomendada de 7 m3/h.

O poço no 2 (Figura 7) pertence a um lava-jato localizado na avenida João Walling. A situação deste poço é crítica do ponto de vista da contaminação por derivados de petróleo, pois, além de estar aberto, com acesso a um reservatório maior, ele está localizado após uma caixa separadora não adequada, sendo visível a presença de resíduos oleosos no reservatório.

O poço no 3 (Figura 8) é de propriedade particular, construído recentemente (dezembro 2013) e está localizado na rua Laurindo Pereira. A coleta foi realizada através de uma torneira com acesso à água direto do poço.

O poço no 4 também é de propriedade particular e está localizado no interior de uma oficina. Possui uma profundidade de 45 metros e uma capacidade de vazão média de 1m3/h, sua água é utilizada para limpeza nos motores de veículos diesel.

Como resultado complementar foi realizada ainda uma análise de óleos e graxas na caixa separadora (Figura 9) de água e óleo da companhia de água e esgotos da Paraíba (CAGEPA), que é responsável pela separação dos resíduos oleosos proveniente das oficinas mecânicas

Figura 6 - Poço tubular pertencente à Prefeitura Municipal de Campina Grande-PB no Distrito dos Mecânicos.

Figura 7 - Poço tubular em lava-jato no Distrito dos Mecânicos de Campina Grande-PB.

Foto: Cristian J. S. Costa (2014). Foto: Cristian J. S. Costa (2014).

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Figura 8 - Poço tubular em Oficina Campina Grande-PB.

Foto: Cristian J. S. Costa (2014).

Figura 9 - Caixa de areia e separador de óleo e graxas para lubrificantes derivados de petróleo e óleos e graxas domésticos da CAGEPA.

Foto: Cristian J. S. Costa (2014). Foto: Cristian J. S. Costa (2014).

As amostras coletadas em poços foram realizadas ou com auxílio de um bailer (Figura 10), ou diretamente, através de uma torneira de acesso, deixando sair por aproximadamente 5 minutos a água estagnada. Os poços foram selecionados a partir da montante para a jusante a fim de acompanhar o fluxo de água subterrâneo.

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Figura 10 - Bailer utilizado para coleta de água em poço.

Foto: Cristian J. S. Costa (2014).

As amostras para análise do TOG foram coletadas em frasco âmbar de 250 mL. Todas as amostras foram coletadas em duplicata, etiquetadas e identificadas as suas origens (água subterrânea ou superficial). Em seguida, as amostras foram acondicionadas e mantidas refrigeradas a 4oC em geladeira e em caixa térmica com gelo durante o transporte. No laboratório, as amostras foram conservadas em geladeira à mesma temperatura até o momento da preparação das análises.

3.2 Metodologia para análise do Teor de Óleos e Graxas (TOG)

Para a determinação do teor de óleos e graxas, utilizou-se o método da ASTM D7678-11 Standard Test Method for Total Petroleum Hydrocarbons (TPH) in Water and Wastewater with Solvent Extraction using Mid-IR Laser Spectroscopy. O método da ASTM utiliza, como preparo das amostras, a extração líquido-líquido (DLL). O método consiste na separação dos compostos orgânicos misturados num líquido por meio da extração por um solvente. As amostras foram acidificadas com ácido clorídrico a fim de preservá-las da ação de bactérias, bem como favorecer a hidrólise ácida no meio. No funil de separação, contendo a amostra acidificada, foram colocados 10 ml de n-hexano (solvente), seguindo agitação manual por aproximadamente 2 minutos. A parte inferior (aquosa) foi desprezada e a fase

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orgânica filtrada com sulfato de sódio anidro, com a finalidade de retirar moléculas de água da fase orgânica (Figura 11). Para leitura das amostras utilizou-se um espectrômetro de infravermelho, equipamento InfraCal, modelo HATR-T2 da marca Wilks Enterprise (Figura 12).

Figura 11 - Procedimento de Extração dos hidrocarbonetos utilizando-se n-hexano como solvente extrator.

Figura 12 - Imagem do infracal hatr-t2 utilizado na leitura do teor de óleos e graxas.

Foto: Cristian J. S. Costa (2014). Foto: Anjos (2014).

3.3 Caracterização das águas subterrâneas de Campina Grande, PB

Campina Grande está localizada na região do Nordeste brasileir, em uma região semiárida decorrente da falta de chuvas, com precipitação pluviométrica média anual inferior a 800 milímetros, índice de aridez de até 0,5, calculado pelo balanço hídrico que relaciona as precipitações e a evapotranspiração potencial, no período entre 1961 e 1990 da baixa capacidade de armazenamento de água por causa do substrato cristalino muito comum no subsolo da região; risco de seca maior que 60%, tomando-se por base o período entre 1970 e 1990, razões pelas quais se faz necessário a busca de um melhor gerenciamento dos recursos hídricos para diminuir conflitos socioambientais e reduzir o desperdício de água de uma região com grande déficit hídrico (ASA, 2014).

Para ajudar a preservação e o gerenciamento dos recursos hídricos do Nordeste brasileiro, o Instituto Brasileiro de Geografia e Pesquisa (IBGE), em 16 de dezembro de 2013, apresentou três mapas: o Mapa de Hidroquímica dos Mananciais Subterrâneos da Região Nordeste do Brasil, o Mapa de Hidroquímica dos Mananciais Superficiais da Região Nordeste do Brasil e o Mapa Hidrogeológico da Região Nordeste do Brasil.

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Os elementos apresentadas nos três mapas trazem detalhes sobre os aquíferos e sobre a qualidade química das águas subterrâneas e superficiais desta região, a mais carente de recursos hídricos do país.

Segundo esses dados, as águas subterrâneas de Campina Grande e região são classificadas como cloretada-sódica usando a metodologia do diagrama Triangular de Fére, que aplica os percentuais de cátions e ânions presentes na amostra analisada. Quanto à classificação físico-química da potabilidade, a água foi classificada como Medíocre, seguindo a tabela de Schoeller, pela qual são aplicados os valores de resíduo seco, sódio, cálcio, magnésio, sulfato e cloreto, elementos que são os principais determinantes na quantificação química das águas nas regiões semiáridas (IBGE,2013).

Quanto à classificação da água para irrigação, elas são caracterizadas por possuírem grande concentração de sais, não devendo ser usadas para irrigação. A pesquisa, revelada pelo IBGE, utiliza o Diagrama de Wllcox do U.S. Sallnity Laboratory, o qual usa os valores da condutividade e do índice de adsorção de sódio para verificar o teor de salinização e o risco de sódio de cada amostra analisada (IBGE, 2013).

Segundo a pesquisa do IBGE, focos de contaminação hídrica como óleos e agrotóxicos não foram identificados durante a avaliação, o que reforça a necessidade da pesquisa diante do panorama ambiental necessário para a preservação e utilização racional de um recurso escasso na região.

4. Resultados e discussão

4.1 Resultado dos ensaios realizados em água superficial quanto à presença de TOG

Figura 13 - Análise comparativa do Teor de Óleos e Graxas no riacho das Piabas Campina Grande-PB.

Fonte: Os autores.

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Os teores de óleos e graxas no riacho das Piabas (figura 13) estavam acima do permitido pela Resolução CONAMA 430/2011 que estabelece para as condições e padrões de lançamento de efluentes, o teor máximo de 20 mg/L para óleos minerais e 50 mg/L para óleos vegetais e gorduras animais necessitando assim, para alguns efluentes, de tratamento específico de redução do concentrado.

O resultado determinado para o TOG coletado na saída da caixa separadora da CAGEPA foi de 103 mg/L, portanto muito acima do permitido pela Resolução CONAMA. Esse resultado confirma a hipótese da falta de manutenção na caixa separadora da CAGEPA, contrariando assim, o que determina a resolução Resolução nº 430/2011 do CONAMA.

4.2 Resultados das análises realizadas em água subterrânea quanto ao teor de óleos e graxas TOG

Figura 14 - Análise comparativa do teor de óleos e graxas nos poços coletados no Distrito dos Mecânicos.

Fonte: Os autores.

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Existe a presença de Óleos e Graxas no lençol freático em todos os poços analisados na pesquisa. Confirma-se, portanto, a presença de hidrocarbonetos em águas de classe I que deveriam ser virtualmente ausentes. Como se verifica nos dados acima, a contaminação está relacionada ao carreamento dos contaminantes no período chuvoso que, através de fraturas existentes no solo, chegam ao lençol freático.

Embora tenhamos, em um único lugar, uma região que concentra grande parte das oficinas mecânicas da cidade e este fato pode facilitar o trabalho de gerenciamento de resíduos perigosos, é necessário que se adotem medidas para redução do impacto negativo das atividades em questão tais como:a) Proteção ou impermeabilização do solo para atividades que possam contaminar o subsolo;b) Proteção da mata ciliar- O Distrito dos Mecânicos é margeado pela micro bacia do Riacho das Piabas, que faz parte da bacia do Rio Paraíba. Com a construção do distrito, não foi respeitada a área de proteção natural do riacho, que deveria possuir mata ciliar e o leito de vazão do rio;c) Reestruturação de ambientes construídos incompatíveis com a área, a exemplo das sucatas que provocam poluição difusa, originada pelo escoamento de peças e resíduos automotivos contaminados por óleo que se encontram espalhados pela área do Distrito e que podem ser levado para o Riacho das Piabas;d) Introdução de caixa separadora de água e óleo pelas oficinas mecânicas, para reduzir a descarga de efluentes, principalmente os oleosos sem prévio tratamento, comprometendo a capacidade de tratamento de esgotos e a capacidade suporte do ambiente. e) Reestruturação da ocupação indevida do solo como canteiros centrais e áreas laterais destinadas às áreas verdes que, cada vez mais, estão sendo invadidas por sucatas clandestinas.

5. Considerações Finais

Pesquisas, políticas públicas, fiscalização, trabalhos de educação ambiental para prevenção e a conscientização da comunidade podem estimular a população a utilizar os princípios da cidadania e, neste sentido, impedir que rios, lagos ou o lençol subterrâneo continuem suportando a contaminação, o que comprometerá a qualidade da água para o abastecimento humano em um futuro próximo e também toda uma biota que depende do ciclo hidrológico.

A gestão para a prevenção e o monitoramento das contaminações dos recursos hídricos depende de contínuos investimentos em pesquisas de responsabilidade de empresas da iniciativa privada e do poder público, os quais ainda não refletem essa prioridade.

Essas pesquisas devem estar respaldadas não apenas com a aplicação de tecnologias inovadoras para o monitoramento dos contaminantes e para o tratamento da água, mas também no material humano focado no estudo da percepção ambiental para compreensão de que o meio ambiente e os recursos naturais fazem parte de um conjunto e que não podem ser separados.

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Uma política prioritária, voltada para conhecimento e divulgação das dezenas de possibilidades de prevenção e monitoramento para as águas superficiais e subterrâneas, é necessária principalmente em regiões com risco de contaminação ocasionada por postos de combustíveis, lava jatos e oficinas mecânicas. Desta forma, é possível a redução de custos com remediação ou ainda com possíveis tratamentos de pessoas contaminadas devido à perda da qualidade da água.

No caso do Distrito dos Mecânicos em particular, pode-se provocar o Ministério Público para um termo de ajustamento de conduta (TAC) entre as esferas municipais, estaduais e os empresários do setor para assumirem uma parceria no sentido de combater os problemas ambientais advindos das atividades que exercem e, desta forma, melhorar a qualidade ambiental, principalmente a qualidade da água subterrânea, fonte de vida e riqueza para a biodiversidade.

138 Ignacy Sachs diferencia crescimento de desenvolvimento por este estar fundamentado em três pilares: “relevância social, prudência ecológica e viabilidade econômica” (SACHS, 2002, p. 35).139 São os benefícios proporcionados direta e indiretamente, obtidos pelo homem a partir dos ecossistemas, com a finalidade de sustentar a vida na Terra. Os serviços ambientais são responsáveis pela manutenção da biodiversidade, o que permite a geração de produtos como a madeira, fibra, peixes, remédios, sementes, combustíveis naturais etc., que são consumidos pelo homem. Dentre eles pode-se citar a provisão de alimentos, a regulação climática, a formação do solo, etc. (DE GROOT et al.,1992; COSTANZA et al., 1997; DAILY, 1997).140 É entendida como a capacidade de um sistema natural se recuperar de uma perturbação imposta por um agente externo provocada pela ação humana ou processo natural (SACHS, 2002, p. 28).141 Nocardia é um gênero de bactérias Gram-positivas encontradas em solos, ricos em matéria orgânica. Algumas espécies são patogênicas podendo causar nocardiose, uma infecção que acomete mais frequentemente pulmão, pele e sistema nervoso central (MURRAY, 2009).

Notas

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ANÁLISE MULTICRITERIAL DA PROBLEMÁTICA DA ÁGUA EM UMA REGIÃO SEMIÁRIDA DO MEDITERRÂNEO, O CASO DE ORAN, NORDESTE DA ARGÉLIA

Tarik GhodbaniSid-Ahmed Bellal

Tradução: Pedro Costa Guedes Vianna

1. Introdução

O crescimento econômico, demográfico e a urbanização provocam uma forte demanda de água. No entorno do mar Mediterrâneo, os países ao norte tem uma situação estabilizada, mas continua problemática nos países ao sul, mesmo após investimentos significativos de recursos financeiros que foram mobilizados, mas que são cada vez mais raros.

As condições naturais desfavoráveis fazem com que aproximadamente 2/3 do volume de água total nessa região (estimado em 11.000 km³ por ano) se concentrem em 1/5 da superfície da “bacia mediterrânea”. Três países recebem a metade do total de precipitações (França, Itália e Turquia), enquanto que os países ao sul do mar Mediterrâneo recebem apenas 13% desse total (Benoit e Comeau, 2007). Se agregam a estas contrariedades naturais, problemas de capacidade de gestão, manutenção dos equipamentos e poluição de seus mananciais. Diante desta penúria e para abastecer as cidades litorâneas, os países do litoral sul mediterrâneo, entre eles a Argélia, recorrem às transposições de águas de barragens construídas em bacias hidrográficas no interior do país. Estas obras hídricas geram muitas consequências negativas para o meio ambiente como: redução das vazões médias e de base, ruptura da continuidade dos cursos hídricos, degradação dos ecossistemas aquáticos, lançamentos de detritos ao longo dos canais de drenagem, redução das funções positivas das cheias, bloqueio do transporte de sedimentos142 e assoreamento dos corpos hídricos (BRAVARD J-P., 1997).

Desde algum tempo, a dessalinização de água do mar surgiu como uma solução alternativa para aliviar a pressão sobre o uso da água, apesar dos elevados custos: cinco dólares por m³, segundo o l’Algérienne Des Eaux (2010). Para a Argélia, esta alternativa parece inevitável; por um lado, devido à seca e de outro, o aumento da demanda pela água. Em relação a este último ponto, uma análise retrospectiva do Plano Azul143 mostra que a Argélia está classificada na categoria dos países que terão um importante crescimento na sua demanda interna, com um índice que pode atingir 0,7% ao ano144. O litoral ocidental da Argélia não escapa a esta situação de crise e nele, registram-se importantes déficits de volumes hídricos, apesar das grandes obras de infraestruturas feitas para garantir transposições regionais de águas. Nos últimos anos, a persistência do problema levou a construção de diversas estações de dessalinização de grande capacidade, que vão abastecer, além das aglomerações costeiras, também as cidades do interior.

O objetivo deste trabalho é analisar os fatores que impactam na disponibilidade de recursos hídricos na região de Oran, entre eles a semiaridez do clima e o meio físico, tal objetivo é baseado

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em trabalhos de campo, em leituras de trabalhos e na análise espacial de material cartográfico. Esta primeira etapa será seguida por uma discussão das questões atuais e soluções em curso para atender as crescentes necessidades de abastecimento de água na região de Oran.

2. Características da área de estudo

O estudo do clima, neste caso, se revela essencial, pois os problemas ligados à água na zona de estudo têm origem em primeiro lugar na falta de chuvas. Os dados climáticos regionais permitem ter mais consciência da importância das restrições naturais. Apesar da escassez e, às vezes, da falta de consistência de determinados dados estatísticos, além da baixa densidade da rede climática, tentar-se-á aqui realizar uma análise das características básicas do clima com suas irregularidades espaciais e temporais. Os dados utilizados neste estudo foram coletados no Escritório Nacional Meteorológico (l’Office National Météorologique - O.N.M), em Oran e são dos postos meteorológicos: Oran Es-Sénia (35°44’N; 0°39’W; 190m de altitude; à 10 km do mar), Mostaganem (35°55’N; 0°06’E; 26m de altitude; na costa), Cabo-Falcon (35°46’N; 0°48’W; 76m de altitude; na costa) e Mascara (35°24’N; 0°08’E; 590m de altitude; a 50 km do mar). Os dados cobrem um período de 37 anos (1954-1991) para o posto de Mostaganem e um período de trinta anos para os postos de Cabo-Falcon e Mascara (1954-1984). No entanto, Oran-Senia possui dados em mais de 76 anos (1924-2000), informações estas que foram analisadas para destacar variações interanuais, neste caso interessam de antemão estabelecer os dados para o ano pluviométrico de setembro a agosto, o chamado “ano agrícola”.

Figura 1 - Localização da região de Oran no litoral sul do Mediterrâneo.

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2.1 Variações das precipitações interanuais e mensais

O posto meteorológico de Oran-Es-Senia mostrou variações interanuais entre 1924 e 2000, o que permitiu acompanhar a evolução da precipitação ao longo do tempo, durante um período de mais de 60 anos. Os primeiros resultados evidenciaram quatro períodos de chuvas, a saber:

1924 - 1934 Período relativamente úmido 1935 - 1945 Período relativamente seco. 1946 - 1976 Período úmido. 1977- 2000 Período bem seco.O período de 1977-2000 é nitidamente muito mais seco que os anteriores e demonstra uma

tendência deficitária de precipitação nos últimos 24 anos, nos quais 22 valores anuais estão abaixo da média. É neste período efetivamente que se encontra o ano mais seco 1981/82, apresentando um déficit de precipitação em relação à média de 194 mm.

Os valores médios mensais pluviométricos relativos aos períodos de 1954 - 1991 e de 1954 -1984 traduzem claramente as variações entre os meses da distribuição da precipitação na escala anual. Os quatro postos revelaram duas estações distintas: a estação seca e uma estação fria e úmida.

a) A estação seca corresponde ao verão (junho, julho, agosto e setembro), caracterizada por um déficit pluviométrico maior em relação às outras estações.

b) A estação fria e úmida corresponde aos outros meses do ano. Por outro lado, os meses mais chuvosos diferem de uma estação para outra. De acordo com as médias de precipitações mensais, os meses mais chuvosos são novembro, dezembro, janeiro e fevereiro. Dezembro foi o mês mais chuvoso em todas as estações, normalmente seguido pelo mês de janeiro.

2.2 Influência do regime térmico sobre os recursos pluviométricos

As médias mensais de temperaturas colocam em evidência dois períodos térmicos bem distintos de mesma duração que se estendem por seis meses, de maio a outubro, para a estação quente, e de novembro a abril, para a estação fria.

A estação “quente” é marcada pelo aumento geral da temperatura, e caracterizada pelos números de dias, onde a máxima é superior a 25°C, geralmente de junho a setembro. Este período é também caracterizado por médias mensais superiores a 20°C, com as máximas ocorrendo no mês de agosto em todos as estações. As temperaturas máximas absolutas ocorrem também em agosto, particularmente na estação de Mascara (37,4°C), mas também em Oran Es-Senia (33,9°C) e em Mostaganem (33,1°C), e no mês de setembro em Cap-Falcon com 31,6°C. As máximas de inverno continuam relativamente elevadas como no caso da estação de Oran Es-Senia, 21,6°C em fevereiro, 20,6°C em dezembro e 19,3°C em janeiro. As médias máximas são observadas no mês de agosto em todas as estações (29,7°C em Mostaganem, 31,4°C em Oran Es-Senia, 27,7°C em Cap-Falcon e

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34,2°C em Mascara). Entre as temperaturas médias mínimas, as mais elevadas nas quatro estações ocorrem em agosto (21,1°C em Mostaganem, 19,6°C em Oran-Senia, 22,4°C em Cap-Falcon e 18°C em Mascara). Nota-se, a partir dos dados, que as médias mínimas decrescem na direção sul. Desta forma, os meses da estação quente apresentam médias elevadas. Enfim, a estação quente não é somente caracterizada por valores térmicos muito elevados, mas também por um longo período de insolação. Este último, jamais se situa abaixo de 5 ou 6 horas e seu valor mínimo ocorre em dezembro. Esta forte intensidade da radiação solar provoca uma alta evapotranspiração e, consequentemente, aumenta o déficit de água, sendo este um dos fatores que provoca a seca.

A estação fria é caracterizada por médias mensais inferiores a 17°C em todas as estações de novembro a abril. Os resultados mostram que as médias mais baixas ocorrem em dezembro, janeiro e fevereiro, com as mínimas absolutas em janeiro, em todas as estações. As médias mínimas mensais variam entre 4,4°C e 5,8°C para o mês de janeiro em Mascara e Oran Es-Senia, 7,8°C e 10,6°C, respectivamente, já em Mostaganem e Cab-Falcon, nos três meses consecutivos – dezembro, janeiro e fevereiro. As mínimas absolutas observadas diminuem até -5,5°C em Mascara no mês de janeiro, enquanto a mínima em Mostaganem e Oran Es-Senia oscila entre 0°C e 1,7°C durante o mês de janeiro. A média mínima mensal permanece alta no litoral: 15,5°C para Cab-Falcon e 13,7°C em Mostaganem. Assim, a estação “fria” é caracterizada por grandes variações térmicas, como evidenciam os valores destacados. As médias mínimas e os valores de mínimas absolutas revelam períodos de muito frio, particularmente, no interior e nas montanhas. As duas estações térmicas bem demarcadas coincidem com as estações hidrológicas, devido ao papel importante que a evapotranspiração tem sobre as condições de escoamento superficial. A isso se somam os elementos naturais topográficos e geomorfológicos que permitem entender o quadro de captação das águas precipitadas e a organização de drenagem, bem como as principais formas de relevo predominantes na região.

3. Uma configuração morfoestrutural bastante diferenciada

Nas planícies de Oran, o armazenamento das águas é essencialmente subterrâneo e não de superfície, o que exige uma análise rápida da topografia, na medida em que (após todos os estudos efetuados) a água ocorre apenas na forma de uma grande quantidade de pequenas e numerosas camadas submersas. Por esta razão, dar-se-á maior importância à configuração geoestrutural, a qual dedicamos uma parte importante deste estudo.

3.1 Um meio físico moldado por uma topografia de planícies e de relevo suave

Muitas unidades morfológicas diferentes podem ser identificadas nas planícies litorâneas de Oran são elas:

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- os maciços rochosos litorâneos, também chamados de colinas litorâneas (Djebel Andalouse, Djebel Murdjadjo, Djebel Khar e as montanhas d’Arzew),

- os planaltos (de Oran e de Arzew),- as planícies (Andalouses-Bousfer; de M’léta e de El-Habra–Macta),- a depressão da grande Sebkha de Oran,- os maciços rochosos do interior (os montes de Tessala e Beni-Chougrane).O litoral dessa região é composto por uma série de baías mais ou menos largas, Baía de Oran e

Cab-Falcon-Aîn El-Turck no centro, a oeste a Baía dos Andalouses, e no extremo leste a Baía de Arzew (Figura 2).

Figura 2 - As grandes unidades naturais do Oeste da Argélia.

Fonte: Ghodbani a partir da carta topográfica Oran 1:500.000 INC (1988).

Estes principais elementos topográficos constituem o sistema geo-hidrológico das planícies litorâneas de Oran, onde o relevo e as formações litológicas são responsáveis pelo armazenamento de água. Os lineamentos estruturais e as grandes linhas da litoestratigrafia influenciam o regime das águas subterrâneas. De fato, o litoral de Oran faz parte também do domínio Tello-rifain, porção da cadeia alpina que se conecta a oeste ao nível do arco de Gibraltar nas cadeias baleares. Trata-se

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de um domínio sob influência tectônica, que corresponde em grande parte a camadas oriundas de deslizamentos e depositados durante o terciário. A análise litoestratigráfica e tectônica está baseada nos resultados de estudos efetuados por pesquisas geológicas realizadas por Y. Gourinard (1958); P. Guardia (1974); B. Fenet (1975) e G. Thomas (1980,1985), que permitem aportar conhecimento sobre os principais relevos da região de Oran. Os terrenos de idade primária afloram em Djebel Khar, em Cap-Falcon, nos maciços Andalousese em Madakh sob a forma xistos e conglomerados carboníferos e permocarboníferos. Os terrenos da era secundária são representados pelo triássico, jurássico e cretáceo. O triássico se apresenta sob três formas diferentes: diapirs, afloramentos ligados às camadas de escorregamento superficial e maciços xistosos. Cabe ressaltar que, sem dúvida, a gipsita é o elemento mais abundante na região.

O período do Quaternário apresenta uma estratigrafia que é descrita por Y Gourinard (1958). As duas primeiras sequências do Quaternário começam por silte vermelho ravinado ou cobertos por depósitos mais grosseiros (notadamente do meio Quaternário). Eles terminam com uma capa rígida ou casca calcária lagunar sobreposta às rochas sedimentares calcarias, formadas por conchas fósseis pouco cimentadas (lumachelle, Fr. ou coquina. Ing.)

Esta diversidade litológica e os movimentos tectônicos têm repercussão sobre o regime das águas subterrâneas. A parte central de Oran, como o conjunto do Tell, passou por duas grandes fases tectônicas: uma fase Alpina e uma fase do Neógeno. A fase Alpina é responsável pelo depósito de quatro camadas aquíferas em corrimentos que deram origem às Montanhas de Tessalae, de Beni-Chougrane. A fase posterior aos corrimentos, ou Neógeno, passou por diversos eventos tectônicos, onde predominaram a distensão e a compressão acompanhadas de sedimentação continental e de importantes transgressões marinhas. Ela foi responsável pelo recorte em blocos sobre-elevados (horst) e blocos colapsados (grabens) do litoral, e foram acompanhadas de basculamentos de blocos geralmente no sentido sul. Ao mesmo tempo se depositou a cobertura do Neógeno do primeiro ciclo logo acima dos aquíferos, preenchendo as zonas baixas e deprimidas.

A rede hidrográfica da região é pouca densa, ela é acentuada por um déficit de precipitações e por uma grande degradação na parte superior das camadas dos solos. Além disso, a feição da rede hidrográfica é frequentemente determinada por falhas e redes de escorrimento que afetam a região. A disposição da rede hidrográfica local é similar em boa parte do Djebel, onde a influência da tectônica foi determinante no estabelecimento da hidrografia. Nestes setores acidentados, a frequência elevada de confluências e a forte densidade da drenagem, associadas às encostas muito íngremes, favorecem cheias rápidas e intensas. Por outro lado, nas montanhas do Djebel Murdjadjo, grandes linhas da rede hidrográfica foram determinadas pelo fenômeno da subsidência. O contraste é claro entre a rede hidrográfica dendítrica, desenvolvida sobre os xistos na parte montante da bacia e a drenagem do tipo retangular, imposta pelas fraturas que afetam os calcários do Mioceno, na porção jusante da bacia. Na parte superior dos terrenos calcários, os fluxos de superfícies são raros. As águas das ressurgências, associadas aos aquíferos suspensos das montanhas de Djebel

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Murdjdadjo, se infiltram rapidamente após uma circulação de algumas centenas de metros.Além disso, a rede hidrográfica se encontra desorganizada pelo efeito combinado das ondulações

do Plioceno Superior e da “seca”, ou “ressecamento” do clima. Assim se explica a existência de muitas unidades geomorfológicas e de fenômenos endorreicos na planície litorânea, em particular a presença de um grande lago temporário salgado (Sebka) e do Pântano de Macta.

4. Quatro unidades geomorfológicas diferentes podem ser demarcadas e revelam uma rede endorreica muito relacionada à circulação das águas

As diferentes unidades topográficas que constituem o litoral de Oran correspondem cada uma delas a uma unidade litoestatrigráfica ou tectônica bem distinta. Quatro unidades geomorfológicas diferentes podem ser caracterizadas: as vastas zonas de subsidência, os horsts litorâneos, os platôs alterados e o litoral propriamente dito. As bacias de abatimento e as zonas de subsidência resultam de uma tectônica que começa no Mioceno, essas são:

- A bacia de Macta a leste, uma vasta planície de subsidência começa no Mioceno e continua até os dias de hoje, ocupa cerca de 800 Km², é muito salgada;

- A depressão da grande sebkha de Oran é uma ampla bacia fechada e corresponde a uma vasta siclinal assimétrica ou a um profundo graben;

- As pequenas depressões fechadas, pequenas sebkhas ou dayat, que correspondem a siclinais alongadas no Sudoeste ou a zonas de abatimento localizadas, são elas: sebkha Morsli, lago de Telamine, lago de Oum El Gheblaz, salinas de Arzew;

- Os horst litorâneos, que são constituídos de diversas montanhas (Djebels);- A montanha Djebel Murdjadjo é um horst de substrato de xisto e calcário do Jurássico e do

Cretáceo, ele resulta de um dobramento do pré Mioceno. A transgressão do Mioceno recobre de forma discordante este substrato. Os movimentos tectônicos que se seguiram aos basculamentos para o sul acentuaram o contato com a planície dos Andalouses a partir de uma falha primária de forte rejeito. Ao sul, a face reversa da falha mergulha sob os aluviões recentes do lago salino de Oran (Sebkha), este é o caso do horst da montanha Santon no limite norte do Murdjadjo;

- O maciço de Khar é um anticlinal do Permo-Triássico sobrelevado em horst na fase pós-Mioceno; - As montanhas de Arzew são maciços xistosos e calcários do Cretáceo, fortemente dobrados e

descobertos quando a cobertura do Mioceno desapareceu completamente;- As montanhas de Tessala e de Béni-Chougrane cujos limites são bem demarcados ao sul;- As planícies alteradas se limitam nas planícies de Oran e de Arzewna, zona de estudo. Eles

foram submetidos especialmente a uma deformação e a um basculamento de norte a sul, que se manifestaram em falésias de fortes aclives acima do mar.

O litoral de Oran é, em grande parte, rochoso. Seu desenho é o resultado de uma série de zonas de desmoronamentos e de subsidência, como a baía dos Andalouses, a Baía de Oran El Kebir e o Golfo de Arzew.

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O conjunto, assim definido, se caracteriza pela existência de blocos elevados, (horsts) formados de terrenos secundários que se configuram no centro de uma bacia de idade neógena. Após propagações no plioceno-quaternário, os blocos elevados correspondem aos relevos menos escarpados (montanhas de Lions, Murdjadjo, colinas de Cap-Falconetc) enquanto os planaltos são constituídos de formações do Neógeno controlados pelas elevações (platô de Oran, plano inclinado do lado sul de Murdjadjo e da planície de Andalouses, que é um compartimento do Neógeno mais elevado que os outros). A planície de Mleta é uma bacia fechada em torno do grande lago salgado (Sebkha). Ela se prolonga a leste, por uma série de pequenos lagos salgados. É uma depressão de origem tectônica pós-Mioceno. Essa planície entra em contato com o Murdjadjo por glaciares curtos. Ao sul, ele é dominado por vastos cones aluvionais que desceram das montanhas Tessala e Sebba Chioukh.

5. A evolução de bacias fechadas, a acentuação endorreica e forte salinidade

As evoluções das bacias hidrográficas endorreicas (fechadas) que explicam os movimentos tectônicos recentes e a manutenção da aridez do clima diminuem consideravelmente as zonas de espaços utilizáveis e propiciam o surgimento de zonas inundáveis salgadas. A ausência de escoamento exorreico e as dificuldades de escoamento para leste são a origem da esterilização de grandes espaços em torno dos lagos salinos. O lago salino de Oran é uma vasta extensão cercada de terrenos semi-pantanosos, estreitos no norte e largos no sul. A evaporação é intensa e tem por consequência o aumento da concentração de sal na água, tanto mais que o lençol de água subterrânea, circula entre 1 e 2 metros abaixo da superfície do solo. As águas dos Oueds, (córregos efêmeros das zonas desérticas do norte da África) vindos do Djebel Tessala se infiltram, em grande parte e muito rapidamente, nas zonas de difusão, mas não atingem nem mesmo o substrato impermeável de argilas calcárias. Os baixios fundos (encontrados em torno dos lagos salinos da região) são cobertos de formações argiloarenosas muito salgadas e, portanto, com vegetação halófila e as crostas de gipsita são frequentes. Logo, a salinidade destas águas tem sua origem em diversas fontes. Os riachos efêmeros (Oueds), que descem dos canais de Tessala e dos maciços e colinas locais, têm suas fontes de captação nos mármores e nas argilas formadas no final do Mioceno, as quais são quase sempre salinas. As formações pliocenas e quaternárias são igualmente salinas. Essas mesmas argilas calcárias do final do Mioceno e as mais recentes se reencontram no fundo das planícies. As águas infiltradas se saturam de sal e remontam pelo efeito de capilaridade, impregnando as camadas por elas atravessadas.

6. A diversidade de formações litológicas gera aquíferos com capacidades diferenciadas

As pesquisas hidrogeológicas permitiram o reconhecimento de diferentes aquíferos mio-plio-

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quaternários e de suas propriedades hidrodinâmicas. Em Djebel Murdjadjo, encontra-se o mais importante aquífero da região de Oran, um grande reservatório de águas potável que está contido nas rochas calcárias. As fraturas destes calcários tem um importante papel na alimentação dos aquíferos. Os outros lençóis subterrâneos são de pequenas dimensões e armazenados nos arenitos e areias de dunas do plio-quaternário da planície de Oran, de Bousfer, sobre os tabuleiros do maciço dos Andalouses e da floresta de M’Sila. Eles são atualmente explorados por uma grande quantidade de poços usados no abastecimento doméstico e agrícola no meio rural. Nas formações do quaternário, onde existem muitos lençóis subterrâneos (Bir-El-Djir, Ain Khedidja, o aquífero aluvional de Es-Senia e de Cap-Falcon), as águas não são de boa qualidade, pois a mineralização é frequente e seu rendimento é igualmente limitado. As recargas destes aquíferos se fazem pelas precipitações que se infiltram nos terrenos permeáveis, pelas águas dos riachos efêmeros (Oueds) e pelos afloramentos calcários. Em geral, as águas se infiltram em três direções de fluxo: para o mar, para as dayets de Sidi Maârouf e Morsley ou no sentido do grande lago salgado de Oran. Os recursos subterrâneos são estudados desde longos tempos por diversos centros de pesquisa e todos estes estudos confirmam a insuficiência hídrica local, os problemas de realimentação dos aquíferos, a péssima qualidade das águas e as ameaças que pesam sobre o sistema de recursos hídricos das planícies litorâneas de Oran.

A estas condições de ordem local se agregam a localização da região de Oran, na margem nordeste do Mediterrâneo e com o deserto Saara ao sul. Na verdade, o déficit de precipitação deve-se em parte ao bloqueio parcial das massas atlânticas carregadas de chuva, pelas montanhas do sudoeste da Espanha e da cadeia de rifte do Marrocos oriental. Por outro lado, a baixa altitude da cadeia montanhosa do Atlas Saariano, na região de Oran, favorece a chegada dos ventos quentes e secos (Sirocco) do Saara, para a faixa costeira. Finalmente, a posição da região de Oran nas baixas latitudes em relação ao centro e a leste, é outro elemento explicativo da exacerbação da aridez dessa região.

7. Uma forte pressão sobre os recursos hídricos

Na Argélia, o problema do abastecimento de água começou no início do século passado, simultaneamente à urbanização acelerada da zona litorânea e da criação dos perímetros irrigados. Certamente a litoralização sustentou um acréscimo da demanda de água em toda a região norte, porém, a situação na parte oeste é particularmente inquietante. Além das condições naturais desfavoráveis, uma pressão demográfica não menos importante, agrava essa situação.

A distribuição populacional (Quadro 1) mostra uma forte disparidade entre um norte muito populoso e um sul de menor densidade. As densidades populacionais registradas no litoral, em particular, diminuem progressivamente na direção do interior, até atingir taxas muito baixas em determinadas zonas restritas de grandes altitudes ou de clima bastante árido.

As comunidades do litoral pertencem às províncias de Mostaganem, de Oran, de Aïn Témouchent

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e de Tlemcem, e possuem, segundo o RGPH (2008), 2.155.603 habitantes, ou seja, 30% da população da região de Oran, sobre um território de 3.037 km², ou seja, 4,8% da superfície total da região.

A densidade populacional na zona litorânea (Figura 3) supera frequentemente 400 habitantes/km², sendo que na maior parte das comunidades interioranas, notadamente aquelas do sul, as densidades continuam baixas, com menos de 100 habitantes/km². As comunidades nas províncias de Tiaret, de Sidi Abbes, de Mascara, de Saïda e da parte de Tlemcem, exceto sua zona litorânea, possuem 3.916.584 hab., com uma densidade de 72 habitantes/km². Entre a zona litorânea e sublitorânea, ao norte da zona de estepe, se destaca um polo composto por um conjunto de comunidades de forte densidade. Essas comunidades são polos ligados à província de Tlemcem, de Sidi Bel Abbes, de Mascara e de Relizane. Esta densidade é muito localizada em torno de suas aglomerações urbanas contrariamente à parte litorânea, onde a densidade é difusa sobre o território situado no eixo Oran – Arzew – Mostaganem.

Quadro 1 - Distribuição da população, segundo diferentes recenseamentos e entidades naturais.

Fonte: Ghodbani a partir de dados da ONS (2008).

A dissimetria da repartição da população não é apenas limitada ao sentido Norte-Sul, ela existe também dentro do próprio espaço litorâneo. Com efeito, dentro da sua metade leste, mais exatamente entre Oran e Mostaganem, as densidades por comunidade continuam elevadas, com mais de 400 habitantes/km², contrariamente à parte oeste, onde as comunidades são menos habitadas com as densidades variando entre 100 e 200 habitantes/km².

O litoral de Tlemcene de Témouchent apresenta densidades bem menos importantes, salvo nas comunidades urbanas de Béni-Saf e de Ghazaouet que se distinguem por densidades evidentemente elevadas. De uma maneira geral a demografia do litoral conserva a importância do recorte norte-sul, apesar do peso demográfico dos espaços medianos, cobertos pelas bacias interiores.

Esta litoralização da população deve-se, em princípio, a fatores naturais, mas ela é também originada pelas condições históricas ligadas à construção das grandes cidades portuárias durante a

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colonização francesa, assim como à política pós- independência que foi e continua sendo orientada para o reforço econômico das cidades costeiras e pela construção de grandes complexos industriais (Ghodbani et al, 2012). Esta situação reflete um fenômeno de litoralização que tem consequências significativas sobre a disponibilidade dos recursos naturais, notadamente sobre a oferta dos recursos hídricos.

Figura 3 - Densidade da população por comunidade, segundo RGPH (1998).

Fonte: Ghodbani, a partir de dados ONS (2008).

8. Transposições de águas e expansão das redes hídricas das grandes cidades litorâneas

Efetivamente, desde o fim do século XIX, muitos poços foram perfurados e muitas barragens foram construídas nos rios mais importantes: Chlef, Tafna, Isser, Fergou, etc. A maior parte das obras de infraestrutura hídricas foram concentradas na zona de Tlemcen, por ser aquela com maior precipitação. As barragens destinadas ao abastecimento da água potável nas cidades do litoral são: Béni-Bahdel, Fergoug, e mais recentemente a de Gargar e de Kramis. A transferência destas águas fez necessitar a construção de muitas centenas de quilômetros de adutoras e de numerosas estações elevatórias. Atualmente, mais de 178.000 m³/dia, ou seja, 84% do que é mobilizado, é transposto para as quatro cidades mais importantes do litoral oeste (Mostaganem, Oran, Béni-Saf et Ghazaouet). Entretanto, esta quantidade ainda é insuficiente, em relação à demanda hídrica

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dessas cidades, na medida em que o balanço das necessidades mostra um déficit equivalente a 211.000 m³/dia. Esta situação é agravada por dois outros fatores não menos importantes: (a) a taxa de perdas nas redes internas de distribuição de água que pode atingir, em alguns setores até 40%, (b) a capacidade de armazenamento das barragens está em declínio, devido ao seu assoreamento145. Além disso, a carência no abastecimento de água potável e a degradação da qualidade de vida geram o rebaixamento do nível piezométrico da maioria dos aquíferos explorados, devido ao bombeamento excessivo, o que gera também conflitos na gestão de quotas alocadas, seguidos pelo desvio para as cidades de volumes anteriormente utilizadas para irrigação146. Sobre a questão dos rebaixamentos nos aquíferos, diversos casos foram estudados, entre eles, o platô de Mostaganem. Os pesquisadores A-M Benali, A Baïchee e S Hayane estimam um rebaixamento importante do nível piezométrico:

De 11,4 milhões de m³ em 1971, o volume de água retirada anualmente passou a 23,5 milhões em 1995. Mais de 5.500 fontes de água foram inventariadas em 1998, muitos dos quais captam apenas na parte superior do lençol subterrâneo e sua densidade permite prever fenômenos de interferências que reduzem em larga escala sua capacidade produtiva. Eles colocam também em evidência, em diversos níveis, os limites das potencialidades do aquífero, pelos rebaixamentos locais que neles são observados. A configuração da superfície piezométrica, em relação aos parâmetros de transmissividade, sofre de fato uma degradação continua e irremediável, com uma extensão das zonas de recarga. Ela pode ser estimada pela carta de 1995 que revela um rebaixamento médio de 08 a 10 metros na parte oriental, até 18 metros em áreas adjacentes de zonas aquíferas estáveis (zonas setentrionais da cidade de Mostaganem e na região de Mazagran” (BENALI, BAÏCHE E HAYANE, 2009).

Certamente, a crise da água é generalizada em todas as aglomerações litorâneas, mas é crucial em Oran. Efetivamente a cidade registra um déficit de 150.000 m³/dia, apesar da diversidade dos recursos mobilizados (Quadros 2 e 3) e ela é abastecida por três sistemas de transposições (oeste, centro e leste), além de possuir um dos maiores raios de abastecimento da Argélia, mais de 300 km.

Quadro 2 - Evolução (média anual) do aporte de água potável a Oran de 1986 a 2010.

Fonte: ADE de Oran (2008).

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Quadro 3 - Dotação de déficits no abastecimento de água potável das grandes cidades do litoral Oeste.

Fonte: ADE Províncias de Tlemcen, Aïn Témouchent, d’Oran e de Mostaganem (2008).

Com o objetivo de determinar a evolução do abastecimento de água potável da cidade de Oran, montou-se aqui uma comparação entre o esquema publicado em 1991 por Magagnosc e Toubache, para o ano de 1986, com os dados obtidos no Algérienne De l’Eau (ADE) de Oran, em 2010 (Figura 4). A análise revelou os seguintes resultados:

- Uma forte diminuição nos volumes hídricos médios anuais, mobilizados para a região urbana de Oran, oriundos de barragens (75.000 m³/dia em 2010 versus 105.000 m³/dia em 1986), devido a uma regressão de volumes estocados nas represas. Efetivamente, o volume proveniente da barragem de Béni Bahdel passou de 80.000 m³/dia para 5.000 m³/dia e a barragem de Fergoug não mais contribui com o abastecimento de Oran, uma vez que ela contribuía com 25.000 m³/dia, em 1986. Esta importante diminuição é explicada pelos longos períodos de seca e pelo assoreamento das represas. Segundo um relatório da Agência da Bacia Chot Cheegui, em 2006, sobre as bacias do oeste da Argélia, baseado em dados fornecidos pela Agência Nacional de Barragens (ANBT), a barragem de Béni Bahdel armazenou nestes últimos anos apenas 1 milhão de m³, embora tenha uma capacidade para 14 milhões de m³. Esta regressão não exclui a nova barragem de Gargar que, com dificuldade, armazenou menos de 30 milhões de m³, apesar de ter uma capacidade de 450 milhões m³. Adicione-se também a este fato o enfraquecimento dos recursos hídricos locais e a parada da captação direta em dois riachos: de Chlef e de Tafna. A tomada de água em Chlef foi oficialmente suspensa em 2002, ocasionada por problemas técnicos e pela colocação em serviço da transposição Leste (Gargar-Marjet Sidi Abed). A captação de Tafna foi recentemente suspensa por uma seca inesperada na sua bacia de captação.

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Figura 4 - Volumes mobilizados para a região de Oran, em1986 e em 2008.

Fonte: Ghodbani, a partir do esquema de Magagnosc e Toubache, (1991) e dados de ADE de Oran (2008).

- A grande estação de dessalinização construída em Arzew (Kahrama) no ano de 2002, fornece 70.000 m³/dia. Esta quantidade de água não compensa o déficit provocado pela diminuição dos volumes anteriormente disponibilizados para Oran. A insuficiência é certamente devido a limitações naturais, mas também pelo atraso na mobilização de recursos hídricos, a qual não acompanha a evolução demográfica. De fato, em vinte anos, a população urbana de Oran passou de 681.900 para 1.295.800 habitantes, ou seja, um crescimento de 90%. No mesmo período, a disponibilidade cresceu de 175.000 m³/dia a 180.000 m³/dia, isto é, um aumento de somente 2%, o que mostra bem o descompasso entre a evolução da oferta e da demanda por água na região de Oran.

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A fim de atenuar a pressão sobre a água na aglomeração de Oran e para compensar o atraso em matéria de infraestruturas hidráulicas, dois projetos de grande envergadura foram propostos.

O primeiro é o sistema do corredor Mostaganem-Arzew-Oran (MAO), que deve transpor água para Oran por uma adução que alimentará ao mesmo tempo Mostaganem e Arzew, a partir de dois reservatórios em Chlef e Kerrada. Estes últimos serão abastecidos a partir do riacho Chlef graças a um sistema derivado do bombeamento de 155 milhões de m³/ano para o abastecimento do corredor Mostaganem-Arzew-Oran (MAO).

O segundo projeto é uma usina de dessalinização em Mers El Hadja, a maior do Mediterrâneo e da África. Essa usina produzirá 500.000 m³/dia e aprovisionará Oran e cidades do interior como, por exemplo, Rélizane.

Segundo os responsáveis pela administração dos recursos hídricos da Província de Oran, uma vez que os dois projetos sejam aprovados e implantados, o problema da água será definitivamente resolvido e consideráveis volumes serão exportados para outras regiões do interior. A opção da dessalinização ilustra a exploração dos recursos renováveis e não será exclusiva para Oran, pois envolverá toda a costa oeste (Figura 5). Esta orientação inverterá o antigo esquema de mobilização de águas do sul para o norte, para um esquema de sentido diferente, do norte para o sul.

9. Novas usinas de dessalinização e de exportação de água para as cidades do interior

A escolha pela dessalinização tem como intuito suprir a demanda crescente das cidades litorâneas, e não é aleatória. Ela se justifica por diversos fatores: a recente disponibilidade financeira que se seguiu ao aumento dos preços dos hidrocarbonetos, o aumento da pressão sobre a água, e finalmente, a diminuição da capacidade de armazenamento das barragens. Das 21 estações que estão programadas ao longo da costa da Argélia, 10 estações (Quadro 4) estão no setor oeste e produzirão mais de 62% do total previsto para todo o litoral da Argélia. Todas as estações foram projetadas para serem construídas de acordo com o princípio ‘Bilt Operat Owne’, ou seja, o governo da Argélia se compromete a comprar os volumes de água dessalinizada de acordo com o contrato de longo prazo com multinacionais que serão responsáveis por construir as usinas e equipá-las, e também arcarão com o pagamento do pessoal técnico e com a manutenção das máquinas. O montante do investimento será amortizado a médio prazo, segundo estudo do SAFEG, de 1997.

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Quadro 4 - As grandes estações de dessalinização construídas e em construção no litoral da Argélia.

Fonte: Instituto Espanhol de Comercio Exterior (2006, p.6).

Figura 5 - A distribuição das estações de dessalinização em funcionamento e em construção sobre o litoral Oeste.

Fonte: Ghodbani a partir de dados de ADE (2010).

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O abastecimento de água potável das cidades costeiras na Argélia será assegurado, em parte pelo conjunto de estações construídas ou em construção. As maiores usinas, entre elas as com capacidade superior a 200.000 m³/dia fornecerão volumes importantes para cidades do interior do país, tais como: Relizane, Sidi Bel Abbes e Tlemcen. Certamente, esses projetos são vitais para a economia urbana e o bem estar dos habitantes do litoral, assim como permitirão a liberação das águas das barragens para irrigação e para o equilíbrio ambiental147. No entanto, sob outro ponto de vista, estas estações tendem a reforçar o processo de litoralização da população, pois viabilizam a ocupação de grandes áreas na região costeira. Elas também favorecerão a implantação industrial e de importantes estruturas turísticas, como os grandes balneários. Enfim, elas reforçarão a dependência das regiões interioranas para com o litoral. No mesmo contexto e em uma escala mais local, outras pressões serão exercidas como a obrigação de assegurar uma grande quantidade de energia para fazer funcionar as usinas de dessalinização148, de uma parte, e por outro lado, ao operar uma importante artificialização da paisagem litorânea.

10. Conclusão

A problemática da água na região semiárida de Oran se deve à combinação de muitos fatores ao mesmo tempo, sendo eles, tanto de ordem natural quanto humana. A fraqueza extrema das precipitações e as restrições do quadro natural combinadas com a litoralização da população (notadamente urbana) e das atividades econômicas mantém uma forte pressão sobre os recursos hídricos. A diretriz das políticas públicas de construção de barragens para transposições de água, através de diferentes bacias hidrográficas, demonstrou ser ineficaz diante dos problemas de assoreamento das barragens, da complicada gestão das adutoras e dos problemas ambientais causadas pela retenção de água nas baixadas dos vales.

O engajamento do Estado na exploração da água do mar, pela técnica da dessalinização, tornou-se uma solução obrigatória para minimizar os períodos de falta de água causada pelas secas, cada vez mais frequentes. Os volumes de água do mar dessalinizada destinados ao consumo urbano vão favorecer a liberação de água das barragens existentes para a irrigação, mas também causarão a inversão do antigo esquema regional de transferências hídricas do sul para o norte, por outro esquema do norte para o sul.

Finalmente, o problema não se limita a questões de volumes de produção de água, mas um grande esforço educativo deve ser implementado para sensibilizar os usuários e racionalizar o consumo da água, um recurso que se tornou raro e cuja disponibilidade é cada vez mais custosa.

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Referências Bibliográficas

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BRAVAD J-P et al., 1997. Les cours d’eau, dynamique du système fluvial, Paris, Edition Armand Colin, 221 p.

142 Em torno destas barragens, a exploração excessiva de aquíferos costeiros, em muitas zonas litorâneas, provocaram a diminuição dos níveis piezométricos e consequentemente a introdução de águas salgadas do mar. É o fenômeno da « Intrusão Marinha » (Biseausalé).143Plan Bleu – Projeto – Associação de desenvolvimento e maio ambiente do Mediterrâneo, que abrange 19 Países. < www.planbleu.org >144Este índice calculado para todo o território nacional, é ainda mais importante se considerarmos unicamente a região litorânea, onde se concentram a maior parte dos habitantes e das cidades. 145 O assoreamento de barragens é um problema comum a todos os países de clima mediterrâneo semiárido e é causado pela combinação de diversos fatores: a fragilidade dos solos, a pobreza da cobertura vegetal e o regime torrencial das chuvas. Em Oran diversas barragens foram reforçadas para compensar a perda de suas capacidades de armazenamento. 146 As restrições no abastecimento de água dos perímetros irrigados de Habra do baixo vale de Tafna e, em nível menor, de Maghnia, provocou tomadas de águas clandestinas na rede da AEP, perfuração não autorizada de poços ou utilização de efluentes de esgotos urbanos para a irrigação de hortaliças. Estas ações postas em prática por agricultores tem por objetivo compensar a falta de água que persiste por muitos anos. 147 A dessalinização reduzirá a construção de barragens e, consequentemente, contribuirá para o equilíbrio ecológico das bacias hidrográficas, dos cursos de água e áreas de desembocaduras dos rios.148 O processo utilizado na dessalinização é a osmose inversa, que é uma técnica simples, mas que demanda um forte consumo de energia. As estações de Bouzedjar e de Ghazaouet só funcionam com 50% de sua capacidade real de produção, em função do grande consumo de energia.

Notas

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NOTAS SOBRE AUTORES E ORGANIZADORES

Ana Paula Silva dos Santos – Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Mestra em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Especialista em Gestão Pública e Graduada em Serviço Social. Integra o Laboratório de Estudos Rurais e Ambientais da UFCG. Foi pesquisadora do Instituto Nacional do Semiárido-Insa. E-mail: [email protected]

Andréa Pacheco de Mesquita – Doutora em Estudos Interdisciplinares em Gênero, Mulher e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia. Mestra em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará. Graduada em Serviço Social. Professora Adjunta da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas – UFAL e Líder do Grupo de Pesquisa Frida Kahlo – Estudos de Gênero, Femininos e Serviço Social. E-mail: [email protected]

Audilene Dantas da Silva – Graduada em Engenharia Agrícola e Ambiental pela Universidade Federal Rural do Semiárido. Atualmente, é bolsista de iniciação científica pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. E-mail: [email protected]

Carlos Fernando dos Santos Jr. – Mestre em História pela UFPE, com graduação em História pela mesma universidade. Professor de História na rede pública estadual de ensino de Pernambuco. E-mail: [email protected]

Cidoval Morais de Sousa – Doutor em Geociências pela Universidade Estadual de Campinas. Graduado em Comunicação, estudou Ciências Sociais, especialização em Sociologia na Universidade Federal da Paraíba. Atualmente é professor do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional/UEPB. Colabora com o PPGCTS da UFSCar. E-mail: [email protected]

Claudia Facini dos Reis – Doutora e Mestra em Engenharia Agrícola – Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental. Graduada em Ciências Biológicas. E-mail: [email protected]

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Cristian José Simões Costa – Doutorando em Desenvolvimento e Meio Ambiente- PRODEMA-UFPB. Professor do Instituto Federal de Alagoas (IFAL), bolsista produtividade PAPPE/IFAL. Integra o Grupo de Pesquisas Aplicadas ao Meio Ambiente deste Instituto, e coordena o Congresso Internacional da Diversidade do Semiárido. E-mail: [email protected]

Danilo Isac Maia de Souza – Graduando em Agronomia pela Universidade Federal Rural do Semiárido. Foi bolsista de Iniciação Tecnológica e Industrial pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. E-mail: [email protected]

Durval Muniz de Albuquerque Júnior – Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas. Mestre em História e graduado em Licenciatura Plena em História. Atualmente é professor permanente do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professor visitante da UEPB.E-mail: [email protected]

Djalma Ribeiro da Silva – Doutor em Ciência e Engenharia de Materiais pela UFRN. Mestre em Físico-Química pela USP. Graduação em Química pela UFRN. Professor do Instituto de Química da UFRN. Perito do Ministério Público do Rio Grande do Norte, na área ambiental. Tem experiência na área de Química, com ênfase em Análise de Traços por técnicas de Espectroscopia de Absorção e Emissão Atômica e Molecular. E-mail: [email protected]

Edmerson dos Santos Reis – Doutor em Educação, com mestrado na mesma área. Graduado em Pedagogia. Professor do Departamento de Ciências Humanas – Campus III da UNEB e do Programa de Pós-graduação em Educação, Cultura e Territórios Semiárido PPGESA/UNEB. Membro do Fórum Nacional de Educação do Campo – FONEC e da Rede de Educação da Semiárido Brasileiro – RESAB.E-mail: [email protected]

Edson Silva – Pós-Doutor em História na UFRJ. Doutor em História Social pela UNICAMP. Mestre em História pela UFPE. Professor Titular de História do Colégio de Aplicação da UFPE. Professor vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História/UFCG e ao Colegiado do PROFHISTÓRIA - Rede de Mestrado Profissional em Ensino de História/UFPE. E-mail: [email protected]

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Edneida Rabêlo Cavalcanti – Doutora em Engenharia Civil, área de concentração em Tecnologia Ambiental e Recursos Hídricos pela UFPE. Graduação e mestrado em Geografia. Pesquisadora do Centro de Dinâmicas Sociais e Territoriais (Cedist) da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e vice-presidente da Associação Águas do Nordeste (ANE). E-mail: [email protected]

Edivania Granja da Silva Oliveira – Doutoranda em História Social pelo PPGH/UFCG/USP. Mestra em História pelo PPGH/UFCG. Especialista em História pela Universidade de Pernambuco/UPE e com Atualização Pedagógica pela UFRJ. Graduação em Licenciatura em História pela UPE. Atualmente é professora de História do IF Sertão PE, Campus Petrolina. E-mail: [email protected]

Eronides Câmara de Araújo – Doutora em Ciências Sociais. Mestra em Sociologia Rural e graduação em História. Professora do departamento de História da UFCG. Atua principalmente nos seguintes temas: história, ensino, identidades, corpo, linguagem e diferença. Autora do livro "Homens Traídos e práticas de masculinidade para suportar a dor". E-mail: [email protected]

Euripedes Antônio Funes – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e Pós-doutor pela UNICAMP. Atualmente é Professor Associado da Universidade Federal do Ceará. Atua principalmente nos seguintes temas: escravidão, comunidades quilombolas, identidades, natureza e cultura e movimentos sociais.E-mail: [email protected]

Fabrícia Gratyelli Bezerra Costa – Doutoranda em Manejo de Solo e Água da Universidade Federal Rural do Semiárido e mestre em Irrigação e Drenagem pela mesma universidade. Graduada em Agronomia. E-mail: [email protected]

Flávio Daniel Szekut – Doutor e Mestre em Engenharia Agrícola – Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental. Graduado em Engenharia Agrícola. E-mail: [email protected]

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Francisco Vilar de Araújo Segundo Neto – Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente, com especialidade em Políticas Públicas voltadas aos Recursos Hídricos no Semiárido (Prodema/UFPB). Bacharel e Licenciado em Geografia pela UFPB. Atualmente é Professor Substituto do Departamento de Geociências desta universidade. E-mail: [email protected]

Hérick Claudino Mendes – Graduando em Ciência e Tecnologia pela Universidade Federal Rural do Semiárido. Foi bolsista de Iniciação Tecnológica e Industrial pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. E-mail: [email protected] Hudson Salatiel Marques Vale – Doutorando em Manejo de Solo e Água pela Universidade Federal Rural do Semiárido, e mestre em Manejo de Solo e Água, pela mesma universidade. Graduado em Engenharia Agrícola e Ambiental. E-mail: [email protected]

Igor Estevão Souza Medeiros – Engenheiro Agrícola e Ambiental pela Universidade Federal Rural do Semiárido. Foi bolsista de iniciação científica pela Universidade Federal Rural do Semiárido. E-mail: [email protected]

Iug Lopes – Mestre em Engenharia Agrícola. Engenheiro Agrícola e Ambiental. Professor-substituto da Universidade Federal do Vale do São Francisco, Juazeiro, BA. E-mail: [email protected]

Juracy Marques – Doutor em Cultura e Sociedade pela UFBA, com pós-doutorado em Ecologia Humana (UNL) e em Antropologia (UFBA). Professor Titular da UNEB. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Ecologia Humana (GPEHA), membro da Sociedade Brasileira de Ecologia Humana (SABEH). Site: www.juracymarques.com.br / E-mail: [email protected]

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Kênia Sousa Rios – Doutora e mestra em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduação em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora do Departamento de História e do programa de pós-graduação em História da UFC. PDSE em Estudos da Oralidade - École des Hautes Études en Sciences Sociales. Atua principalmente nos seguintes temas: água, memória oral, história do Ceará, cidade e seca, Historia e Meio Ambiente. E-mail: [email protected]

Luis Henrique Cunha – Doutor em Desenvolvimento Socioambiental pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA/UFPA), com estágio pós-doutoral junto a School of Geography, Sociology and Politics, Newcastle University (Reino Unido). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS/UFCG) e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional (PPGDR/UEPB). Tem experiência de pesquisa nas áreas da Ecologia Política e das transformações recentes do mundo rural no Nordeste. E-mail: [email protected]

Luiza Teixeira de Lima Brito – Doutora em Recursos Hídricos, pesquisadora da Embrapa Semiárido, Petrolina, PE. Engenheira Agrícola. E-mail: [email protected]

Maycon Diego Ribeiro – Doutor e Mestre em Engenharia agrícola - Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental. Graduado em Engenharia Agrícola. Prof. de Engenharia Agrícola, Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]

Marcio Roberto Klein – Doutor e Mestre em Engenharia agrícola - Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental. Graduado em Engenharia Agrícola. E-mail: [email protected]

Mércia Rejane Rangel Batista – Doutora e mestra em Antropologia Social pelo PPGAS/MN/UFRJ. Graduada em Ciências Sociais pela UFF. Professora de Antropologia da UACS/UFCG, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais-PPGCS da mesma instituição. Desenvolve pesquisas na área de Etnologia Indígena, Comunidades Quilombolas e Ciganas, buscando discutir processos de emergência étnica, demanda por direitos e processos de territorialização. E-mail: [email protected]

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Míriam Cleide Amorim – Doutora em Engenharia Química, professora da Universidade Federal do Vale do São Francisco, Juazeiro, BA. E-mail: [email protected]

Nataly Albuquerque dos Santos – Doutora em Química pela UFPB. Professora da Universidade Federal da Paraíba, Departamento de Tecnologia de Alimentos. Coordenadora do Laboratório de Tecnologia de Biocombustíveis - IDEP-UFPB. Pesquisadora do NEP-Lacom-UFPB.E-mail: [email protected]

Pedro Costa Guedes Vianna – Doutor em Geografia Física pela USP. Pós-doutorado na Université du Maine - Le Mans-França. Graduado em Geógrafo pela UFRJ, Mestre em Conservação e Preservação de Recursos Naturais pela UFSC. Professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e fundador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Água e Território (GEPAT), da mesma universidade. E-mail: [email protected]

Rafael Oliveira Batista – Doutor em Engenharia Agrícola pela Universidade Federal de Viçosa. Graduado em Engenharia Agrícola. Atualmente é professor Adjunto IV da Universidade Federal Rural do Semiárido. E-mail: [email protected]

Ramonildes Alves Gomes – Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco e pós-doutora pela École des Haute Sociales (CRBC/EHESS) e pós-doutorado Université Paris Ouest Nanterre La Défense na França. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande – Paraíba, Brasil. E-mail: [email protected]

Raoni Batista dos Anjos – Doutor em Ciência e Engenharia de Petróleo pela UFRN, mestrado em Ciência e Engenharia de Petróleo e graduação em Química pela mesma universidade. Docente externo do departamento de Engenharia Civil da UFRN, e pesquisador da Fundação Norte Rio grandense de Pesquisa e Cultura. E-mail: [email protected]

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Ricardo André Rodrigues Filho – Graduando em Engenharia Agrícola e Ambiental pela Universidade Federal Rural do Semiárido. Atualmente é bolsista de iniciação científica pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. E-mail: [email protected]

Ricardo Augusto Pessoa Braga – Doutor em Engenharia Hidráulica e Saneamento. Biólogo e Mestre em Ecologia. Professor e pesquisador da UFPE e presidente da Associação Águas do Nordeste (ANE). Foi presidente da Agência Pernambucana de Meio Ambiente (CPRH) e Secretário Executivo de Meio Ambiente de Pernambuco. Além da autoria de dezenas de artigos científicos, é autor de livros técnicos, paradidáticos e de literatura brasileira. E-mail: [email protected]

Roberto Marinho Alves da Silva – Doutor em Desenvolvimento Sustentável pela UNB. Licenciado em Filosofia. Atualmente é Professor Associado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: [email protected]

Robson Marques – Mestrando em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental pela UNEB. Ambientalista, membro da Sociedade Brasileira de Ecologia Humana (SABEH), graduado em Educação Física pela UNIVASF e técnico universitário do IFBA, campus Senhor do Bonfim. E-mail: [email protected]

Rozeane Albuquerque Lima – Doutoranda em História- PPGH-UFPE, professora da Universidade Aberta à Maturidade-UAMA/UEPB, integra o Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas da UEPB e o GT de História Ambiental- ANPUH, coordena o Congresso Internacional da Diversidade do Semiárido. E-mail: [email protected]

Salomão de Sousa Medeiros – Doutor em Recursos Hídricos e Ambientais pela Universidade Federal de Viçosa. Graduado em Engenharia Agrícola. Atualmente é pesquisador do Instituto Nacional do Semiárido. E-mail: [email protected]

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Sid-Ahmed Bellal – Professor e pesquisador no Departamento de Geografia na Universidade de Oran 2. Atualmente preside o Conselho Científico da Faculdade de Ciências da Terra e da Universidade de Oran 2. Membro do EGEAT e dirige uma equipe que trabalha sobre a água e o meio ambiente no meio árido. Autor de trabalhos sobre o litoral de Oran e da região sudoeste da Argélia. Atua na área de Geografia e Agrária.E-mail: [email protected]

Tarik Ghodbani – Professor e pesquisador no Departamento de Geografia na Universidade de Oran 2. Dirige o Laboratório de pesquisa sobre a gestão Recursos Naturais de Regiões Áridas e Semiáridas. Responsável pelo Mestrado Acadêmico de Câmbio Climático e adaptações. Em 2014 participou de uma missão de estudos no Semiárido paraibano, pela Universidade Federal da Paraíba. Autor de trabalhos sobre a Região sul do semiárido Mediterrâneo. Atua na área de Geografia Ambiental e Social.E-mail: [email protected]

Uilson Viana – Doutorando em Pós-Afro pela UFBA. Mestre em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos pela UNEB. Técnico Agrícola; Jornalista; Administrador. Especialista em Educação Contextualizada para a Convivência com o Semiárido Brasileiro e em Gestão de Políticas em Gênero e Raça. E-mail: [email protected]

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