oreal e 0 onirico em vestidodenoiva: alguns...

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NAIR DE OLIVEIRA PICHARKI OREAL E 0 oNiRIco EM VESTIDO DE NOIVA: ALGUNS ASPECTOS DA DRAMATURGIA DE NELSON RODRIGUES Disserta~Ao apresentadn ao Curso de Especia1iza~aoem Lingua Portuguesa, da Universidade Tuiuti do Parana, sob a orientafAo da Professora Mestre Lilian Fleury D6ria Curitiba 2000

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NAIR DE OLIVEIRA PICHARKI

OREAL E 0 oNiRIco EM VESTIDO DE NOIVA: ALGUNS

ASPECTOS DA DRAMATURGIA DE

NELSON RODRIGUES

Disserta~Ao apresentadn ao Curso deEspecia1iza~aoem Lingua Portuguesa,da Universidade Tuiuti do Parana, sob aorientafAo da Professora Mestre LilianFleury D6ria

Curitiba

2000

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"Gosto muito de ficar sozinllo olhandoo mar. OostomuJto defutebol. Gosto muito demedita~i!o vazia, sem rumo. Gosto de ficarremexendo na memoria, sou maravilhado como passado. E ja disse, sem nenhuma piada,que sou uma alma da 'belJe epoque '. Nltogosto da minha epoca, nito tenho afinidadescom ela. A meu ver, estamos assistindo aofracasso do ser humano. 1sso ni!o quer dizerque mais adiante ele nao se levante, mas nomomento 0 ser humano esra de qualro".

(Nelson Rodrigues)

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SUMA.RIO

L INTRODU<;},O .

ll. NELSON RODRIGUES: 0 Autor da Modemid.de ..1. Criador do Tentro Desagradavei ..

Ill. mSToruco: 0 Vanguardismo naLiteratura Dramatic •...1. Vestido de Noiva .

11. Tragedia em 3 Atos .2. Sinopse do Texto .

OJ

0203

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. 12............................ !3

141517

.............. 19. 23

28

IV. ANALISE DO TEXTO DRAMAnco ..1. Organiza~flo e Estrutura~ao ,.2. A A~lio Drrun6tica e 0 COIillito ".3. A Flexibilidade daLinguagem

3.1. Os DiMogos ..3.2. A Rubricas: UmaLiteraturaParalela .

4. As Personagens .5. 0 Desfecho .

V. 0 ESPA<;:O E 0 TEMPO . 30I. A Multiplicidade dBSEsbuturns Esp.ciais 32

1.1. Plano daRealidade 331.2. Plano daMem6ria . 361.3. Plano da Alucina~ao 39

2. A Descontinuidade do Tempo. . 40

VL 0 UNIVERSO DOS StMBOLOS . . 42I. OS SIGNOS: Vefculos de Siguificado, 442. Recursos Usados pelo Autor . . 45

2.1. Os Ruidos e 0 Microfone .. .. 462.2. Flashback . . 472.3. Personagens e Objetos Invislveis .. .. 482.4. Sobreposi~fio de FigurBS . 50

3. A Presen-rado Grotesco ,..................................................... 514. 0 Humor . 535. 0 Estranhrunento 54

vn. OS DIVERSOS CAMPOS DE ABORDAGEM .1. Considera'tOes sobre a Visfio Social

1.1. 0 Sonho Carioca ...1.2. A Moral Pequeno-Burguesa .

2. A Maldi'tao como lUna Representa'tao Sirnb6lica .3. Uma Leitura PsicanaJitica .

4. A Obsessfto pela Morte ...

57585960636466

697173

VIll. 0 PAPEL ATIVO DO LElTORIESPECTADOR .XIX. CONCLUS},OX. REFERENCIAS BILIOGRAFICAS .

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I. INTRODU<;AO

Emhora existam autores de acentuada qualidade que esrudaram e analisaram as

obras de Nelson Rodrigues, que comprovam ser eate 0 dramaturgo brasileiro mnis

importante para a literatura dramatica e as artes c~nicas nacional, constatamos que alguns

aspectos sabre 0 texto Vestido de Noiva merecem ser rediscutidos e revigorados.

Aspectos como a decodific~§.o dos signos lingnisticos, as rubricas, as di6.1ogos

entre as personagens, as indic~(Ses de cennrio e indwnentOria, as ruidas e as diversas

tecnicas empregadas com liberdade de cri~a.o pelo autor. Assim, para a elabo~a.o desta

pesquisa utilizamos diretrizes estrategicas que pennitiram conduzir a investiga~ilo a urns

analise da linguagem da ohra de Nelson Rodrigues, levando em consideraya.o aspectos

estetico-literflrios de que se compOem Vestido de Noiva.

Para tanto, foi realizada lUIla inteRsa pesquisa sabre a vida e obra do sutor.

seguida de esbJdosmws aprofimdadossobre 0 crier simb6lico da linguagemde VeEfJdo de

No/va, revelando seu potencial esMtico-lltenirio. Este estudo visa demonstrar e expor

sistematica e detalhadamente os recursos e elementos constitutivos do te;rto enqunnto

literatura dramatics., chegando as suas morfologias que pennitem :l obm originalidade,

destacando-a entre a literntura teatra! modema Houve tambem uma preocupa~ft.o em

desenvolver urn estudo que se diferenciassc das teonas dominadas pelos especialistas da

area teatra1.sem desmerece-los. Assim, 0 presente esbJdoaborda pontos essenciais do texio.

alimentando-se da arullise da linguagem estetica e literaria do texto testral VesNdo de

NoNa, cujas preocupnrBes esteticas inovadoras romperam com a estrutw-a tradicional da

narrativa dramatica e conduzem 0 leitor/espectador a urn universo de mist6rio e

questionarnento.

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II. NELSON RODRIGUES:oAutor da Modernidade

"Eu considero 0 ser hunumo um coso perdido. E falo isso com a mdgoade qUJ!m queria seT Wll sanlo, porque 0 Unfeo ideal que eu teria no vida, se fosseposstvel reaJizd·lo, era seT wn santo. Eu queria ser wn santo bom".

(Nelson Rodrigues)

Nelson Rodrigues e unanimemente considerado 0 preclUlIor da dramaturgia

contemporQneabrasileira Ele foi urn dos poueos escritores braslleiros que souberarn

transfonnar sua rragedia pessoaJ em arte. Nascido em 1912, sua vida foi uma seqO~ncia de

infamnios familiares, destinados a tragedia Desde cedo presenciau mortes violentas.

enfrentou a fome e perdas irrecupeniveis. Tuberculoso. diversas vezes esteve perto da

marte. Essas viv@ncias extremas the dmiam mn grande conhecimento da :fragilidade humans,

transformando was fantasias rows m6rbidas em repert6rio para sua crialfao literana Nelson

tambem foi 0 dnunaturgo do cotidiano carioca e sua obra e considerada como precursora da

literatura sociol6giea de acus~Ao e an81ise da patologia hwnana e do meio urbano, cujo

valor e incontestavel. AMm de dramaturgo, Nelson Rodrigues foi urn grande jomalista e

prosador. Sua vasta obra tambem e composta por contos, mem6rias, folhetins. crooicas,

novelas e romances, e se caracteriza pela mesma paixfto, humor e indigna~t\o eocontradas em

suas pe~as. Atraves da estetica do sensacionalismo e da tematiea sexual, penetrou de forma

inedita no mtmdo do incesto, do adulterio e da sordidez human&.

Seu talento nunca roi posta em dUvida, mas sua persooalidade e suas posi~aes

politicas dividiam a critiea e parte do publico. Chegou a Ber comparado com Balzac por ser

wn artista revolucionario. porem wn hamam conservador. 0 rlramatw"go morreu em 1980,

deixando, aMm de urna vasta obra, a marea de lUIla personalidade controvert ida que se

divertiu em criar personagens violentos e chocantes.

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1. CRIADOR DO TEATRO DESAGRADAVEL

"Acharn que sou wn coso de po/leia. 0 curioso e que sou mesmo de wnaviol2ncia incrivel quando escrevo, mas sempre live muito do menino qUI! urn diajUi ",

(Nelson Rodrigues)

Influenciado pela literatura de Dostoievski e utilizanrlo 0 mesma ambieote de

Machado de Assis, mas em deseantrole, Nelson Rodrigues eriDD urn "tema desagradavel",

conjunto de 17 pe~as provQcativas e radicms. Entre elas, pademos destaear: Vestido de

Noiva, de 1943; Album de Familia, de 1946; Valsa n·· 6, de 1951; A FaJecida, de 1954;

Bei]" no Asfalto, de 1960; Toda Nudez Sera Castigada, de 1966.

Ao desondar as paixOes e complexos hwnanos, em fonna de literatura drmmUica,

o teatra de Nelson Rodrigues torna-se algo desagradavel, monstruoso e :letida, marea

indeIevel de sua obra,. como pademos observar neste depoimento:

"Com 'Vestido de NoivQ', conheci 0 sucesso; com as pe~as seguintes,peTdi-o, e para sempTe. Nlfo hd nesta obsefVa~{fo nenhum amargor, nenhwnadramalicidade. Hd simplesmenle, 0 reconhecimento de wn fato e sua aceilarlio. Pois apartir de 'Album de Familia' - drama que se segue a 'Veslido de Noiva' - enveredeipor urn caminho que pode me levar a qualquer destino, menos ao ailo (...J Numapalavra, estouJazendo W7J 'teotro desagraddveJ', 'pefOS desagraddveis'. (...) E por que'pe~as desagraddveis '? (...J porque slio obras pestiJentas, fitJdas, copazes, por sf 565,de produzir 0 lifo e a malaria na ploteia". I

o desagrachlvel constitui-se e se impl'Se como wna marca de espfrito. urn tipo de

criavlio dramatUrgica do autor. 0 desagradavel olio se opera apeoas no oivel dos complexos.

mas tambem nos caracteres dOB personagens que provocam 0 desagrado pelas suas a~()esque

superam ou violam a moral pn\tica e cotidiana Maim, 0 autor tambem faz refer~ncia a

asiatica do mao gosto para se defender dos criticos acusadores de mao gosto na escoJha de

cooteudos s6rdidos e personagens degradados.

1 GUIDARINI, Mario. Nelson RtxIrigU2s: Flor de obsessao. Florian6polis: Editora daUniversidade Federal de Santa Cawina, 1990, p. 31.

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Ele mesmo classifieou seu teatI'o de desagradavel, em resposta as crltieas da

epoea, eseritas e CraiB. Com 0 depoimento a seguir. podemos observar como Nelson

Rodrigues reafirmava a sua posil(Aode eombate:

"Conlinuarei lrabaihando eom monstros. digo monslros, no sen/ido quesuperam Q moral prdtica e cotidiana. Quando escrevo para 0 teatro. as coisas atrozese nb"o atrozes nb"o me assustom. £Seoillo meus personagens eom 0 maior ealma ejamais os eondeno. Quando se lroia de operar dramolieamenlt. nllo vejo em qUi! 0 bornseja melhor que 0 maun• 2

Apoiado por essa ideia, Nelson evoeou as mais variadas tonalidades do

desagradavel, desde as miudas mazelas da pele ate 0 cflneer. desde au pequenas

indignidades cotidianas ate 0 ineesto. Em Vestido de Noiva, observamos seu ''temo

desagradavel" atraves do mergulhono ineonseiente, no rompimento dos tabus, no gosto pelo

groteseo, na explo~ao indiscriminada dos desejos mnis primitivos, na eri3.l(Rode wna nova

linguagem que instituiu wna estrutura nAo convencional, na deniIncia de enraizados

preconeeitos, eonvocando 0 leitor/espectador a diseuss~.

Comoveremos no estudo que se segue, Vestido de Noiva recria com acuidade e

crueza wn cotidiano da classe media carioca, atraves do qual 0 autor expOe a natureza

humans, com raro dominio do tnigico e do grotesco, com wna dose de lirismo e ironia A

condil(~ humanae urnenigmaque espera solul(Ao.Seja qual for 0 aspeeto sob 0 qual venha

a ser encarada, a resposta se oeulm;mas e precisamente por essa interroga~ao constante que

a eondi~30 se define, se constitui. Fica enta~justificada a definil(30 que 0 autor deu de seu

pr6prio teatro: tn1l teatro do desagradavel, que se presta a interpret8l(Oesigualmente radieais

e desagradaveis

l RODRIGUES, Nelson "Teatro desagradavel",Dionysos, n° I, Rio de Janeiro. Servi~oNacionaldeTeatro.I949,p.I8/2I.

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III. HlST6RICO:

o Vanguardismo DaUteratura Dramatica

Para avaliar a for~a inovadora representada por Nelson Rodrigues, precisamos

coooecer urn pOlleDda realidade da Ilteratura dramfltica brasileira do inicio da decada de

quarenta Sabre a literatura brasileira, podemos observar no longo da hist6ria, tuna serie de

acontecimentos importantes, Deon-idos principalmente Da SemMa de Arte Modema, em

1922. £Ste evento marea tambem a reviravolta a todas as fonnas de expressilo w1fstica no

Brasil. incluinrlo a poesia, 0 romance, a pintura, a arquitetura, a musica

Mas as impulsos renovadores da Semana de Arte Modema olio se fizerrun

realmenle refletir Da qualidade dos textos teatrais. Encenavam-se classicos, textos

estrnugeiros, Oll textos sem exig~ncias esteticas superiores. A litenrtura drmmltica s6 teve sun

renov~a.o com Vestido de Noiva. de Nelson Rodrigues, em 1943. Eis que surge lUll jovem

wtor com wn texto que rompia com toda a tradi~iio de nossa literaiura dramatica A

encena~a.o do texta foi 0 marco inicial da modema dramaturgia brasiJeira, quando 0 grupo

teatral Os Comediantes. sob a dire~Ao do poJones Zbigniew Ziembinski. encenBram 0 texto.

Tanto a eoneep~a.o gera! da eneen~tlo. quanta 0 texto inovador de Nelson Rodrigues,

fizeram da obra wn grande sueesso de publico e crftiea A pe~a, bastrulte originnl para n

epoea, utiliza·se de diversos elementos que fazem, ate hoje. 0 mws discutido e

deseoneertnnte eacrito do Brasil.

Repentinamente, 0 Brasil deseobriu esaa arte julgada ate enUIo de segunda

categoria, percebendo que ela podia ser tAo rica e quase tAo hennetica quanta a poesia au a

pintura modema brasileira. Com Vestido de NoNa, Nelson Rodrigues inmlgura uma nova

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etapa no panorama teatraJ. brasileiro, podendo ser considerado 0 autor que inseriu a nossa

dramaturgia na discuss3.0 dos movimentos contemporfineos.

o texto dranuUico diferia com efeito de tudo 0 que se escrevera para 0 teatro

entre n6s, na.o apenas par sugerir perverseies psicol6gicas, mas par deslocar 0 interesse

dram8iico. centrado nito mws sabre a hist6ria que se contava e sim sobre a maneira de faz6-

la, muna inversao tfpica daficlf3.0 moderna. 0 choque estetico proposto pelo teno, pelo qual

se costuma medir a grau de modemidade de uma obr~ foi imenso, elevando a dramaturgia a

dignidade dos oub"os g6neros liteny-ios, chamando sobre ela a aten(:ft.o de poetas como

Manuel Bandeira e Carlos Dnurunond de Andrade, romancistas como Jose Lins do Rego,

ensaIstas sociais como Gilberto Freyre.

Mais de meio seculo depois de sua estreia, a produ(:Ao dramatilrgica atual ainda

sofre iniluencias das trnnsfoIm3.(:Oes causadas por Nelson Rodrigues e sua obra prima E

numa tentativa de destacar a importancia de Vestido de Noiva a modemidade da dramaturgia

nacional que empreendemos a an81ise de certos aspectos da obra de Nelson Rodrigues, como

veremos no estudo a seguir.

1. VESTIDO DE NOIVA

'''Vestido de NoNa' veto rasgar a superflcie da consci~ncia paraopreender os processos do subconsciente. incorporando por flm a dramaturgianacionaL os modemos padriJes dQfiC~ilo".

(SlIbalo Magaldi •Nelson Rodrigues: DramatlJrgia e Encena;:{Jes)

.Em 1943. Nelson Rodrigues deixou nu 0 teatro brnsileiro. Acabava ali a

tradi(:Ao da comedia de costumes e surgi~ com Vestido de Noiva, urns linguagem totalmente

nova Escritor de crdnicBS, contos, romances, Nelson teve Da Iiternhlra drarmllica SUBS

melhores reali~Oes. A defoI11l3.QAo farsesca cia materia ficcional. dando contomos

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peculiares a. representa91io literana da realidade, mostra seu descompromisso com as

convem;:Oesestetico-litenirias, 0 que 0 transforma trunbemnum ditador das valores eticos e

morais. Vest/do de Noiva foi sua primeira pe9a a alcmwar grande sucesso, sendo

considerada a marco da modema dramaturgia brasileira Sua importfuIcia para as artes

c@'nicase literatura nacional e inquestiornivel. Nelson criou Vestido de Noiva com tanta

paixAoe voracidade, que a texto fai escrito em apenas tras noites. Eis seu depoimento:

"Quando vi que 0 negocio dava certo, comecei a pensar em 'Vestido deNoiva'. imaginei aqueles pianos de ar;ifes simu.itdneas em tempos diferentes e comeceia trabolhar jWiosamen/e. Chegava em coso. todo dia as 10 horas do. notte, jantava,descansava urn pouco e jazia a me/ode de urn 1110 de 'Vestido de No/va'. No diD.seguin/e, ou/ra metade. Acabei rapidamente a per;a e flz uma revisffo geral. Todo 0

pessoaJ profissiona] achou que eu eslavajazendo piada. Diziam: 'Vocl n{fo vl que isloaqui ntfo pode ser organizado no palco?' 'Entl1o, pacilncia. a azar e meu' - eraminha respos/a. Todo mwulo recusou minha per;a". J

Com essa mesma paixllo e convic9110e que Nelson escreveu BUasoutras pe'tas.

Ete procurava criar um teatro proprio, insistindo numa tematica universal que retrata com

fidelidade os desejos inconscientes, os conflitos nllo resolvidos, 0 ser humane na sua real

condi'tAocomo neubumoutro dramaturgobrasileiro 0 fez.

A linguagemcanica de Vestido de Noiva se manifesta visual e estruturalmente. A

composi91ioda trama e das a90es da pe9a se revelam na sobreposi9Ao de tr~s planas -

memoria, a1ucin3.9~ e reaJidade - sem se ater numa ordem cronologica e nn biografia da

personagem centra!, Alaide. A riqueza fonnal do texto se apresenta it medidn em que as

cenas se desenrolam nos tres planas, e com elas adquire-se a impress~ de ser a narrativa

fragmentaria \UD simples metoda realista de representar a mente de Alafde, em estado de

choque. Assim, cenas dos pianos da memoria e alucinal(a.o.se fimdem a real condi~1ioda

protagonista que no final da pelfa, mesmo com a sua morte, a historia nfu>se interrompe.

IRODRIGUES, Nelson.Literatura Cornetttada par Maria Helena Pires MartitL9.SAoPaulo: Abril Educa~!io, 1981, p. 32.

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Assim, Vestido de Noiva injetouwn novo e poderoso vigor a dramaturgia nacionaJ. trazendo

para 0 palco wna visa.o da Dossa realidade que. embora tun tanto quanta irracional. busca

expressar algumas das paixOes e loucuras do homem brasileiro das grandes cidades. em

especial 0 suburbano.

1.1. TragMia em 3 Ato.

"Tragedia If a imita~60 de wna a~60 nobre, /evada ate 0 final. e tendowna ceria e:xlenslio (...) e que, por inlennedio do piedade e do lemor, rea/izo aPurgoftIo das emof{Jes desse glnero". (Arist6teles - Poetica)

A defini~Aode Arist6teles 2 de tragedia na.o se encaixa exatamente com 0

presente estudo. Em sua obra, Arist6te)es define tragedia como imit~a.o de a~Oes

importantes e completas que despertam temor e piedade. ligadas a fatalidade e ao destino

que prende 0 heroi tr3gico aos ditames do arbitrio divino.

Nesse termos, parece sern sentido incluir Vest/do de Noiva no g6nero tragico.

Para analisar a obra rodrigueana na.o devemos pensar no tragico como urn ganero estetico

ownsentido acad6mico. Por exemplo, 0 arbitrio divino pode ser substituido pela fata1~§o

interior ou pela disputa com 0 meio social adverso. Tampouco cabe referir-se a wna

fatalidade que detenninou 0 destino de Alafde. Sua morte. decorrellte de urn acidente.

equipara-se a derrota nnte a divindade soberana Nelson cercou 0 acontecimento com

tamanhainevitabilidade que 0 acidente se assemelha a calastrofe tn\gica aristotelica Para 0

aniquilamentoda personalidade de Alafde, representado pelo atrito com Ulcia, sua irma, 0

acidente eqOivaiea tuntiro de miseric6rdia e de Iibert89Ao.

~ARlSTCTELES. Arte Reton'ca e Arte Pottica. Trad Antonio Pinto de Carvalho. SAo Paulo:Classicos Gamier da DifusAo Europeia do Livro, 1959. p. 279.

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A tragedia, em Vestido de NOiva. tmnbem se inscreve como wna ideia que e

diseutida no seio da obra: 0 tragico e urn elemento que pru1icipa da reflexAo proposta pelo

texto, mas que n1\o vai designar 0 sell movimento como tnn todo. A id6ia de tragedia instala-

se, enUlo, no questionamento proposto pelo autor, onde carla recW'So, carla gradu~a.o de

sentimentos eo paixOes, cada gesto, cada palavra, detem esse movimento de reflexAo,

construindo a realidade do drama E nisto que consiste 0 trilgico, no !\mago do

questionamento pr6prio ao trabalho de dramaturgia de Vestido de NoNa, na opera~ao da

linguagem, nas dimensOes desaa cri~a.o, proposta por Nelson Rodrigues. Nesse sentido, 0

texto pede-nos que 0 abordassemos nAo com a intenfAo de Ihe abibuinnos tuna leitura, mas

de estabelecer com ele wn di81ogo, urnjogo de questionamentos.

o trigieo rodrigueano tambem se manifesta atraves do uso de dieMs,

apresentando suas personagens nas sihl~Oes mws eotidianas, situadas na Zona Norte do Rio

de Janeiro. 0 cotidiano carioca e materia-prima para 0 drama a, consequentemente, para a

tragedia rodrigueana 0 autor captou 0 dieM - a religia.o, 0 comportamento de SUBS

personagens, as no~Oes de destino, fatalidade, maldi~Ao, vingan~a, a imprensa - Da

constru~ao do drama, fundindo-os a realidade imediata carioca Esses clieMs sao

apresentados em estado bruto em VeEtido de Noiva, e certamente por iSBOcausam tanto mal-

estar Da critiea e no publico de maneira geral. Podemos concluir que Nelson Rodrigues D§o

pretendia propor urna verslo da trngedia dos mitos gregos, e sim trabalhar origiDalmente

com assuntos teatrais de todos os tempos. Ele se dedicou a constru~a.o da pe~a, para aIem

desses cliches tornados como tais, inserindo elementos iDesperados, gerando a utiliza~ao de

novos recursos caDicos e dramarurgicos partieulares, aliados ao questionarnento proposto ao

leitor/espectador. Sob essas 6pticas, aceita-se denominar Vestido de Noiva como tragedia

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2. SINOPSE DO TEXTO

o texta ioieia com 0 acidente de autom6vel sofrido par Alaide. No plano da

realidade. Alalde e levada para 0 hospital e submetida a uma interven~ao cirilrgica, nwna

tentativa de salvar sua vida Reporteres noticiam 0 a.cidente, sua morte e enterro. Com a

proximidade da marte, Alalde entra no plano da aJucina~Ao, oode se encolltra Madame

Clessi, cortes§. morta par seu amante adolescente, no inleio do seeula. Esta personagem

simboliza lUna mulher de vida sexual livre. 0 que causa imensa inveja em Alaide, cuja vida e

bern convencional As duas contam uma a autra suas vidas passadas em amhientes diferentes.

cada qual procurando desvenclar 0 segreda da autra, ate que elas se fimdem muna especie de

identific39A.o p6stuma

Alafde, antes de se casar com Pedro, moron on cssa que pertencera a Clessi. A

familia Beabara de se mudar para a nova cssa oode se encontravam resqufcios daB antigos

moradores. sobretudo no s6tAo, onde tuna mala cheia de roupas e fotografins e tun diario de

Clessi estavam guardados. Episodios do diflrio da cartesll vern se misturar an drama de

AJafde. No plano da mem6ria, sAo reeonstiwfdos epis6dios ncontecidos no pnssado de

Alafde junto nos seus pais, D. Ugia e GasUio.

Instigada por Clessi, Alaide ROS poueos rememora os aconteeimentos ate

deseobrir que 0 eonflito envolve tamb~m a sua inn§, weia ou "a mulher de veu", e Pedro,

£leumanda. 0 eonflito aeootece nwn passndo remoto, epoea em que Alaide roubara Pedro de

IiIeia. weia reprime todos os seus impetas de protesta e aguarda 0 momento adequado para

vingar-se. Ate que Ueia, ao ajudar a imlllnos ultimos retoques porn seguir Ii igreja, revela Ii

Alaide sua raiva e a ameSfa de morte.

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Apesar de considerar seu casamento com Pedro uma vit6ria sabre a imdl, Alaide

vive presa a uma falsa hannonia conjugal. Suas alucinal(oes e fantasias the permitem fugir a

realidade mesquinha da sua pr6pria vida No final do terceiro ato, Alaide nAu resiste e

morre. UIcia e Pedro anfim podem se casar. No casamento, a marcha fUnebre confimde-se

com a marcha nupcial, acompanhando 0 novo casal ao altar. Alafde aproxima-se, igualmente

vestida de noiva, e estende 0 buqu0 de flores Ii sua iITIla

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IV. ANALISE DO TEXTO DRAMATICO

"0 pra:zeTque um tal e:xerdcio nos proporciona assemeiha-se, no jiuuJo,00 do leitwa de um born romance palidaJ. A obro e WtJ desafio Ii nOSSQargucia: auprovamos Q nos mesmos a nasso inteliglncia, 0 que estd longe de ser desagraddvel, auCUNamo-nos perante Ulna sulilezQ reconhecidomenle excepcional".(Decio de Abneidll Prado - Teairo em Progresso)

A literntura dramatica, tambem chamada d. dramaturgia, e aquel. obra de arte

IingOistica em que a paJavra toma-se fonna e BlfAo, indicando urn problema,. uma situayfu) au

wn conflito. A alta.<> e apresentada pelos proprios personagens dramaticos, de fonna

aut6noma, sem interfer~ncia do narrador au do sujeito, constitufda enUio pelo

desaparecimento da fimyio narrativa

Tocla obea dramatica pode ser apreendida no modo como sua organizayfto se

apresenta sob a fonna de obra escrita 0 titulo e 0 genera da obra,. a existencia de indic3yOes

c~nicas, os nomes das personagens, eis as primeiras revel8f<5es que a leitura de urn texto

dramatico pennite. Dessa fonna, este estudo nos leva a perceber melhor as caracterfsticas de

wna escrita dram8iica A am\lise minuciosa concementes a fala, ao modo de informa~flo, ao

sistema de enuncia~ao, Ii pr6pria linguagem, sao preciosas para apreender as earacteristicas

desta eserita, facilitando 0 acesso a totalidade do texto em quesUlo. Para compreender urna

esents, 0 leitor/espectador deve se tomar capaz de fonnular hip6teses sobre 0

funcionamento e sobre a neeessidade de eomunicafAo ar1istica 0 texto teatral Vestido de

Noiva foi bastante estudado sob 0 vies da dramaturgia e da linguagem eatetiea

contemporfineas. Verifiea-se que a obra usufrui de midtiplos reeursos provenientes das

varia~Oes de linguagens, das tecnicas c~nieas, das intrigas, das personagens e das diversas

situa~ijes earacteristicas do universo rodrigueano. Assim, a arte da dramaturgia refere-se

tarnb~m aos metodos e tecnicas da escrita, bern como 80S emilos individuais de composifilo

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dramatica e 0 efeito esperado sobre 0 leitorlespectador. E esta 6 0 ponto de partida para a

anatise de alguns aspectos da dramaturgia de Nelson Rodrigues, atraves do texto Vestido de

NoiYQ.

1. ORGANIZAC;:XO E ESTRUTURAC;:XO

Dar urn titulo a urn texto dram31ico e wna fonna de anunciar ou de confundir seu

sentido. Para 0 leitor/espectador, 0 titulo e wn8 primeira refer~ncia, cujas infonna~Oes que

ele fornece, merecem ser consideradas. 0 titulo possui em 8i pr6prio urna dinfunica, 0

embriio da narrativa, 0 esbo~o de wna moral ou 0 anuncio de lUll desfecho. 0 titulo Vestido

de Noiva e altamente simb6lico, sugerindo urn acontecimento s6cio-culturaJ.. Nelson

Rodrigues apostou Da contradi~A.o as conven~oes sociais, principalmente em rel~A.o a

virgindade. Apenas as mulheres puras e decentes podem usar branco. Na pe9a, 0 vestido de

Doiva e transformado peJo dramaturgo nwn signa de pureza, inocencia e, tambem, owna veste

ruoebre:

Alalde (recuando) - t menUra. Madame Clessi n60 morreu. {... J Nlloodionlo, porque eu nao acreditol ...

2. <I Mufher _Morreu, sim. Fot enlerrada de branco. Eu vi.Alalde - Mas ela n60 podia seT enlerrotia de braneo! Nilo pOOe ser.1. <I Mulher - Estava bonita. Parecia wna noiva.Alalth (excitoda) - No/va? (com exalta~l1o) NONa - ela? (tern urn riso

entreeortado, his/erleo) I

A atmosfera sobrenatural, criarla pela inte~ilo de movimentos, da ihunina~ao e

cia superposi~«O de pianos, sugere a irrevogabilidade da morte e a ironia do titulo. Sem

duvida, 0 vestido de noiva e 0 sfmbolo mnis significntivo do texto dnunMico, 0 que justifien

o titulo dado pelo autor. Quanto a organiza.yao, a mworia dos textos teatrais sao organizados

I RODRIGUES. Nelson Teatro compieto 1 : pe~1lS psicol6gicas. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1981,p.l10·1l1.

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em diferentes partes e a maneira como estas sAodesignadas remete a sua estetica Na pnitica

tradicional fala-se em atos, que par sua vez, sao divididos em cenas de acordo com as

entradas e saidas das personagens. Esse sistema de organiza~ftoem quadros, :fragrnentosou

seqO@ncias,detennina urnribno pr6prio do texto. Como vimos no capitulo anterior, VeEtido

de Noiva e classificado pelo autor como urna«tragedia em tres aios". Outra caracteristica da

obra rodrigueana, e a predomlnio do texto em ris atos, sem intervalo de tempo. A primeira

razfto vern do ribno interior da pe~a, passada em tres tempos. Segundo a explic~a.o de

Sabato MagaJdi 2, 0 primeiro ato apresenta a tema da pe~a, 0 segundo 0 desenvolve e 0

terceiro traz seu desfecho 1 •

2. A A<;:XODRAMAnCA E 0 CONFLITO

A 89fiodramatica de urntexto teatral e a soma dos acontecimentos desenvolvidos

a partir de um conflito. Fazer aparecer 0 conflito de urna pefR consiste em colocar-se no

nueleo da fic~ao. Ide-ntificar0 conflito eqUivaleRavaliar a progressilo exterior de urna ~flo

dramatica, examinando como os personagens se livram de situ~Oes. Existe conflito quando

tun individuo e contrariado por urn outro ou quando se depara com urn obst3.culo social,

psicol6gico. ou moral. Ja 0 desfecho de tuna pe~a compreende a e)jmina~fu>do ultimo

obstaculo ou pelos acontecimentosresultados disso.

A a~ao de Vesfido de Noiva reswne-se a proje~ao exterior da mente decomposta

de Alafde, dividida entre 0 delirio e 0 esfor~o de ordenar a mem6ria 0 acidente de

1 Sabato Magaldi e urn dos principais enticoS' do modemo teatro brasileiro, Dedicou-se aoteatro de Nelson Rodrigues, entre outros trabalhos, Desenvolveu a intro~Ao e organizat;:Ao,segundorecomendao;ao de NelsonRodrigues, dos quatro volumes das obras do dramaturgo, A divido nao obedece 11.ordem cronol6gica e as peyas foram grupadas confonne tr~s nucleos temUicos: peo;aS'psico16gicas, pet;:asmlticas e tragedias cariocas.

I MAGALDI, Sabato. Net:;on Rodrigues: dramaturgia e encena9(Jes. Sao Paulo:Perspectiva, 1987. p. 60.

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autom6vel desagrega sua personalidade que procura reconstituir-se ao recuperar as

lembran~as. Revela-se. entao, 0 enigma da vida dessa jovem mulher ao longo da narrativa:

seu fascinio por wna prostituta, Madame Cless!, que aparece nas a1ucin~Oes e 0 amargo e

violento trifulgulo amoroso entre Alafde, sell marido Pedro e sua innA Lucia

A ~§o desenvolve-se em cenas fapidas. fragmentadas. visando a tnmsmitir uma

sensa~ft.o de conjWlto, saja de angUstia, seja de incomlUlicabilidade, Baja de nausea, seja de

devaneio. Vestido de Noiva e wn "drama de retalhos". no qual se processa a trajet6ria da

protagonistarumo a. destrui~Ao. A SOlU9Aotragica se justifica pela violencia das paixOes em

jogo e cia atitude de nlIo confonnismo das personagens, que estAo em pennanente atitude de

revolta contra os c6digos marais e sociais que as oprimem e hwnilham

3. A FLEXIBILIDADE DA LINGUAGEM

A literatura dramatica liga-se a imagem que e levada ao palco, pelos cemlrios,

pela marc3.91Io cenica dos atores e pelo uso cia.palavra 0 pr6prio di31ogo, como proje~Ao

das personagens e sellS comportamentos, ja constitui uma representa~Ao inteiramente direta,

em que a fala tambem tern por :fun~Aofornecer ao leitor/espectador infonn3.9oes sobre 0 que

se passa no deserrvolvimento da pe98.

Nelson Rodrigues trouxe a cena a represen~§o tIpica do lioguaJar carioca, com

expressOes de giria e distofl;Oes de sintaxe. 0 dramaturgo, entretanto, wi alem do realismo

banal de simples imit8.91Io do diaIogo popular, pois em Vestido de Noiva a palavra posslli

wna importfuIcia chave no desfecho das situR90es. Nesse sentido, 0 autor recorre a outros

recursos, introduzindo no di3.logo entre as personagens, elementos chocantes, absurdos,

contrabalan~ando 0 tom de seriedade com observaV6es sarcasticas ou grotescas. Sempre

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encolltraremos a presen~a dos coloquialismos pontilhando. definindo a linlm das falas

rodrigueanas. Por meio da linguagemlimpida, sueinta, vibn'ltil, e da capacidade de expor as

pervers6es da carne e da alma de suas personagens, Vestido de Noiva surge com wna

invejavel flexibilidade da linguagem, diaJogos espontflneos, naturrus, cotidianos, sem

prejuizo dos avaru;:osMenicos dos cortes, das elipses, da fragment8.911o,dos flashbacks.

Nelson utiliza amplamente a linguagem coloquial que asSlOllediversas caracteristicas: a

misturade tratamentos (a segunda e a terceira pessoas), a ineorre~a.ogramatical deliberada,

para 0 di31ogomanter a fonna popular e 0 lIS0da giria Sell vocabulario e sempre mais eru,

embora nfloapele para 0 usa do palavrfto.

Celia Berrettini 2 desenvolvell run estodo sobre a linguagem da literatura

dramatics rodrigue~maquanta as ineorre~Oesgramatieais eneontradas 00 texto, que merecem

ser comentadas. Quantoas ineorre~Oeseneontradas nos diaJogos do texto, Celia comenta em

seu livro 0 Teatro Ontem e Hoje J, que a corre~flo gramatical, as replicas completas,

eoesas e 0 encadeamento perfeito do diaIogo, nAo fazem parte do teatro de Nelson

Rodrigues. 0 que via de regra encontramos e justamente 0 emprego de frases incorretas,

replicas incompletas. interrompidas que tomama palavra, quer atraves de frases incornpletas

oumuitasvezes atraves de simples mooossHabos, interjei~Besou interroga~6es nem sempre

respondidas, seguidas de sugestivos silencios.

Segundoa sutora, encontra-se no textomeios populares dos quais as personagens

utilizam para se comunicar. Entre as incorre~aes gramaticais, podemos destacar a rna

coloca~ftodos pronomes, "brasileirismori', interrup~Bes.mistura das formas de tratamento

1 Celia Berrenttini desenvolveu diversos esbJdos sobre diferentea autores e suaa obras. Emseu livro Tealro Ontem e Hoje, Celia apreaenta urna coletllnea de enaaios Bobre autores de diferentesnacionalidades que, de alguma forma, contribu!ram para a hist6na do teatro.

3 BERR.ETTrnl,Celia. 0 teatro ontem e hoje. S~oPaulo: Perspectiva, 1980.

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(como 0 emprego do tu e voce). As falas pertencem a personagens de classe media,

expressando-se de acordo com seu ambiente. Por iS80 0 usa da giria e bern aproveitado.

enriquecendo 0 vocabul8rio e refletindo a linguagem cotidiana, como vecemos a seguir:

PJmenta - A irmlf chora tantolReporter - Irmil e natural!ptmenta - Um chuchu!RepOrter - Quem?PJmenta - A irml!. 'I

Assim, a linguagem de Nelson Rodrigues acompanha a natureza. fragmentada do

drama, com frases ctu1as, telegraticas, de extrema objetividnde, visando n comwlicnfAo

fneil com 0 leitor/espectador. Tal objetividnde e :froto de extrema elabora'fao. estili~[o

requintada mesmo que, com 0 passar dos anos, vai 5e transfonnar num tipo de maneirismo

vocabular em sua obra

Ha tambem no texto, momentos em que 0 dramaturgo tenta fazer poesia

deliberadamente, mas muitas vezes uma poesia rica surge naturalmente e de fOlllla exemplar

em di9.l0gos au em falas de narradores.

3.1. Os Dililogos

Nelson Rodrigues sempre foi destacado do resto dos antores teatrais naciooais

pelo seu dhilogo. 0 material do escritor e a Jinguagem. Diante do artista se estende todD urn

material cheio de significados concretos, de implicR'flSes com a realidade e de verdades a

ser revelada no desenrolar da trama

Em Vestido de Noiva, as di9.1ogos vAo construindo as situR'flSes, e estas

desembocam oa constru'fAD cia &fAD.0 di9.logo siotetico. incisivo, ntpido, com frases cw1as

4 Vestido de Noiva, p. 161.

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dao 0 ribno necessano e sublinham melbor as linguagens do cotidiano e da psicologia das

personagens. Quanto a novidade deste tipo de diaIogo coloquial, nwna epoca em que

"escrever bern" exigia tm:J.taspiruetas verbais quanto as de urn orador, Nelson respondeu a

pergwIta se concordava que seus di3.1ogos eram pobres, da seguinre forma:

"Voc2 n(fo sabe quanta me custa empobrece./os".s

Em Vestido de Noiva, 0 diaJogo resolve-se em pingue·pongue, que da grande

viva.cidade as cenas, como as replicas dos medicos na sala de oper~t'lo:

1/' Medico - Pulso?2.' Mt!dlco - 160.1.()Medico (pedindo) •Pim;a,1.()Medico - Bonito carpo.l.()Medico - CureEa.3.° MMlco - Casada - oll1a Q aliaJl~a.(Rwnardeferros cinugicos)1.D MMleo - Aqui e ampu/arlfo.3.()Medico - SomIlagre.l.0 MbIlco _ Serrote.(Rwnordeferros cinlrgicos) 6

o diaJogo e sincopado, alusivo, no qual 0 discw-so e bruscrunente interrompido

por urn ponto final, para logo reiniciar-se de novo cartOOo, com urna precisAo de alta

msestrin. £Sta constnuyllo nervosa, as elipses e as subentendidos dAo mms dinfimica e ribno

a cena A seguir urn trecho de urna conversa tensa:

Plmenta - to Didrio?Reda/Of· t.Plmenta - Aqui e a Pimenta.Carioca-Reporter - t A !Voite?PJmetJla - Urn au/omovel acaha de pegar wna mulher.Retia/Of d'A Nolte - 0 que e que hd?P1menta· Aqui na G/oria, perla do relogio.

j TOLEDO, Roberto Pompeu de. Magnifico reaciondn·o. Isto E, Silo Paulo, N. 210, arlO 5. 31de dezembro de 1980, p. 57.

IS Vestido de Noi'lla, p. 134.

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Carloca-RepOrter - Uma senhorafoi atropelada.Redalor do DJarlo - No Gloria. peno do relogio?Retlalor d'A Notte - Onde?Carioca-Reporter - Na G/tlria.P1Jllenta - A Assist~nciajd levou.Cartoca-ReporleT - Mais Oil menos no re/tlg/o. A/raveSSQU no frente do

honde.Redalor d'A Notte - Re/ogio.PiJnenta - 0 chofer fugiu.Red./or do Dlarlo - O.K.Carioca-Reporter - 0 chofer meteu 0 pe.PJmenlll- Bonita, hem vesUda.Retlalor d'A NoJJe - Morreu?Carloco-ReptJrli!r - Ainda nUo. Mas vai.7

Podemos observar, enta..o, a presen~a destas falas curtas, constitutdas com elipse

do verbo Oll de ~Ub-OSelementos, mas ncBS em senti do. 0 que dispensa gnmdes frnses. As

inteffilp~Oes traduzem 0 estado emocional, no qual a personagem se encontra

Confonne a1udimos. os dinlogos enb-e as personagens tfun por :fun~Aofornecer ao

leitor/espectador inform~6es sobre 0 que se passa, sobre 0 desenvolvimento da intriga, bem

como 0 seus respectivos pontos de vista Nelson Rodrigues serve-se amplamente dns

eiipses, onde a ambigOidade que e por vezes nele cultivada deixa urna part.icipa~a.o mais

importante ao trabaJho do leitor/espectador. 0 dialogo enb-e as personagens da pe~a trunbem

fomece indic~aes que inscrevem a ~§o no tempo e esp~o em que a.contece a cena au nBS

diferentes posi~Oes ocupadas pelns personagens e seus estados emocionrus, como veremos

no estudo a seguir.

3.2. AS RUBRICAS: umaliteratura paralela

A analise dos dados extralingtlfsticos da obra permite compreender porque e

como as rubricas se fonnaram. Sem entrar aqui nos detalhes das pesquisas sobre 0 assunto.

1 Ibid.,p. 111.

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retenhamos que em toda comWlicayao verbal as personagens fimdam sua conversavAo

segundo wn ritual social e segundo \UTI c6digo de relayoes. As rubricas correspondem a \UTI

projeto do autor. Quando tentamos compreender como se articulam as diferentes partes de

urna narrativa dramatica, quando identificamos as lDarcas espayo-temporais ou observamos a

distribuiv§o dos discursos. lidamos com a organizavAo da ficV§o. Interessa-nos de inicio, os

tra'tos mais exteriores e mais evidentes do text-o, cujo crescimento ~ definido Da cita'tlIo a

seguir:

"No inicio do pe~a n50 hd qua/quer sentido. Mas, un/a vez come~ada Q

escrita da pe~a, hd wn impulso para 0 sentido, para a criQ~60 de sitUQ.~oes.de lemas,de personagens. A partir de um nilc1eo Inde/ermfnado resWlan/e da explosDo iniciai, Q

pefa nffo cessa de se construfr. Ao final, se bem-sucedida. ela se apresenla como urnobjeto t60 rigorosamente cons/ruldo como se tivesse havido wn plaJlo previo". 8

Ne1son Rodrigues faz verdadeiros ensaios acerca das personagens e de suas

motivavoes, criando wna literatura paralela ao texto drnmatico atraves da utilizn9flo das

rubricas. Inscritas geralmente a. margem do texto, as rubricas conotam sentimentos, paix(Ses,

gestos, ntitudes, sohreposi9Ao de rostos. Outras silo operacionais. utilizando verbos e ~i5es.

outras descrevem 0 visual da personagem, ou sugerem e indicam ceDar-ios, objetos de cens,

figurinos ou interpretnvl1o. As indicaVOes cenicns sao textos que nno se destillnm n ser

prommciados no palco, mas que ajudam 0 leit~r a compreender e a imaginar a avAo e as

personagens. Assim, paralelrunente a avda da palavra, a concep~do dn montngem sugerida

por Nelson Rodrigues esta presente em suns rubricas. como urna linguagem inarticulada que

indica ate que ponto 0 autor se preocupou em fomecer indica90es para 0 leitor, hem como

para os prov3.veis profissionais de teatro interessados em encenar 0 texto.

8 Citat;ao de Michel Vinaver. sobre 0 texto como objeto materiaJ, no livro b1trodufao danalise do teatro. de Jelm-Pierre RYUNGAER. Trad Paulo Neves. SAoPaulo: Mertins Fontes, 1995, p. 36.

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Dessa fonna, Vestido de Noiva vern sobrecarregwio de rubrieas e mnre81(Oes,

definindo a atmosfera a ser explorada em cena A seguir, distinguimos algwnas indieavOes

que concemem apenas t\ condul(rio da narrativa daquelas que serimn estritamente cenieas que

sugerem cenarios, figurinos, ihuninal([o e comportamentos das personagens:

(Luz em resist~ncia no plano da aiucinaf60. 3 mesas, 3 mulheresescandalosamente pinttuias, com vestidos berrantes e eompridos. Decotes. Duos delosdanfam ao som de wna vitro/a invisNe/, dando wna vaga sugestOo Ieshica. A/die,wna javem senhora. vestida com sobriedade e born gosto, aparece no centro da cena.Vestido cinzento e uma balsa vermelha.) 9

(Luz no plano da a/ucinaf60. A/aide e C/essi senttuias no chlfo e no /ugarem que, supos/amen/e, es/d a caddver invisJve!. As duos a/ham.) U1

(Sam dQ "Mareha Nupcia/". A/Qlde /evanta-se. paz un! gesto como queapanhando a cauda do invisfve/ vestido de noiva. Faz que se ajeita.) 11

(A memoria de AJafde em franca desagrega~60. Imagens do passado e doprtsente se confondem e se superpoem. As recorda~{Jes dtixaram de ler ordemcrono/agica. Apaga-se 0 plano da memoria. Luz nos escados laterais.) 11

(Luz no plano da aJucina~{fo onde jd esld uma muliler, esparlilhada, comvestido Q 1905, e/az 0 sinal da cruz ante 0 invisJvel ataUde. A referida seMora, depoisde cumprimentar as dois cava/heiros rresentes, tiro da balsa um lencinho e chora emsil~ncio. Luz no plano da memOria.) 1

(0 mo~o romtintieo, tndignado, passa ptlo invisNel cadINer, fQZ umrdpido sinal do cruz e segue adiante. Jd ia sair, quando bate na tesla, lembrando-sedos cirios. Volta e apanha dais elrios; a homem de barbajaz a mesmo. Trevos. Luz noplano da olucina~60. Pedro e A/aide, de noivos, ajoe/lrados diante da cruz. Projetorsolar vertica!. Disco de Ave-Maria, como de Rosa Paneelle.) U

(Um dos medicos esta cobrindo a rosto de wna mulher. Saem os medicoslentamen/e, um deles lirondo a miJscora. Mareha Fili1ebre. Trevas. Luz no plano doa1ucina~lfo. Alaide e Cltssi de CaSiaspara a pLaleia. ALaide com wn bouquet. no qualesta dissimuituio 0 microfone. Luz no plano do rea/idade: botequim e reda~lfo.) 15

Como podemos observar. atraves dessas rubrieas 0 leitor/espeetador toma

contato com as personagens e com 0 tipo de trama que vai se annar. Na.o hi nenhwna

9 VestidodeNoiva,p. 109.10 Ibid,p. 123.11 Ibid,p. 126.12 Ibid,p. 134.13 Ibid, p. 135.1,( Ibid,p. 147.IS Ibid,p. 160.

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preocup~Ao reaJista, pelo contn\rio. A indwnenh'iria,a movimenta~ft.ocanica, os dialogos,

tuda vernjustificar a caracteriza~ao do expressionismo absurdo. A dramaturgia rodrigueana

n~o e expressionista na acep~1loestrita do tenno, mas sua visAo do mlmdo fimdarnenta-se

nesaa concep~a.oexistencial, na recusa violenta da realidade~ embora nela alicer~ada, na

distor'rAo exagerada da sociedade que nos carca, no priviiegiar 0 grotesco do

comportamentohwnano. A seguir~algwnas mbricas do texto que indicam curiosos estados

emocionais das personagens, em duerentes cenas:

(nwn desapontamenlo infantil! nwna alegria evidentel com exalta~go/aterrorizadal em dUvidal impressionadal ceptica/ excitada, mas amavell sardt3nica/cortante! apaziguadoraJ desafiadorol numa transi~llo inesperadaJ desconfiadolsonhadoral obstinadal com wna amabilidade nervosal saturadal nwn sopro deadmira~lJol com vofubilidadel arrebatadal veementel transportadal 1lem famentolpatetical gravel concilialoriol inlransigellte/ enigmdtical acinlosal louca de dar!supJicantel faceira! nervosa como compete a wna noivallacilumai com inlransiglnciabrincalhonal com a possf.vel dignidade dramdJica/ numa cOiera reprimidalcinicamente sup/icanlel jiJos6jica/ com JenJidffo ca/culadal em franco idllia!concupiscentel num repente sinistrol em tom de dramalhtlo/ com sUhita trri1a~50)

Como podemos observar. algwnas indic~()es remetem-nos a uma certa

cwiosidade. Temos esta merom sensaQa.oao que se refere as rubricas das a~Oes das

personagens e suas respectivas marcal(()esde cena:

(lem um riso entrecortado, histeric% riso, em crescendo, trans/orma-seem soJw;o! numa lransfonnaf60 inesperada/ num sopro de admirafllol pareee boiar!oponlo para urn cadaver invisJyeU diz 0 nome de mane ira cantante, destacando asstlabas! Pedro cai em dimera /ental imohiJizam-se, emudecem os persollagens/ UraLahoriosamente um vasto Jen~o, do bolso lraseiro da caJ~a/ assoa-se eslrepilosomenle/num Ultimo olharl depots de a/har para 0 /ado e fawlesco/ Ataide responde atraves domicr%ne escondido no bouquet)

A selefno destus mbricas nos fnz compreender 0 papel detenninante de Nelson

Rodrigues para a encenaffio do texto para 0 palco e a compreensfto da leitura do texio. Suas

intervenyoes devem ser considerndas, uma vez que deve ser levado ern contn 0 significado

de cada indicaf{to sobre a movimentaynocenica das personagens, e consequentemente, dos

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mores. No segundo ato, temos a rubrica que indica urna visao de dois homens, com figurinos

de fim de seculo e velas nama.o. Ajoelham-se lentamente nafrente de tUn cadaver invisivel:

(Dais hom ens aparecem no alto das escadas, coda urn empunhando daisclrtos; descem. fentamente, A Iuz as acompanha. Urn defes e gordo, ventreconsideraveJ, jd enlrando em anos; usa imensas barbas negras, cartola; 0 outro eatioiescenle, Itrico e magro. Ambos de negro, vestidos a maneira de 1905. Co/acorn asquatro drios; acendem, Depois do que, cumprimentam-se e vffo se ajoelhar diante deurn caddver invisivei. jazem 0 sinal da cruz, com absoluta coincid~ncia demovimentos, Os dais cavalheiros estffo no palco da aJucina~ffoi6

Esta rubrica nos indica 0 figurino das personagens e suas marca~6es em cena

Outra rubrica que tern essa mesma finalidade de marca~ao c~nica aeontece no terceiro ato

quando Alafde. weia e Pedro juntam as cabe~as para criar "a impressAo plastica de urn

bouquet de cabe~ai', luna refen:;ncia visual ironica ao triangulo incestuoso:

(e, a medida que ela jala, as tr~s se aproximam, )"wltam as cabe~as) I(Quando ele acaba, tem-se a impressao pldstica de 1ml bouquet de cabe~as. Trevas.) 17

A pe~a tennina com a indica9nO de sun mms notavel imagem visual: Da hora de

entregar 0 bouquet, a protagonista e os noivos congelam-se. A realidade fica suspensa e 0

sobrenatural se sobrep6e atraves dos fantasmas poeticos de Alafde e Clessi. Essas

marcaQi.'Ses indicadas pelo autor atraves das rubricas, abrangem urna linguagem n[o-

naturalista,. simb6lica e inovadora

4. AS PERSONAGENS

"Esco/ho meus personagens com a maior calma i! jamais as condena".(Nelson Rodrigues)

A anaJise das personagens de urn texto d.ranuitico IS cercada de 1lll1a grande

confusa.o, de elementos psicol6gicos, imaginarios e tambem clados objetivos iclentificaveis

16 Ibid.,p. 134-135.17 Ibid,p. 160.

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no texto. Nem todas as personagens se apoinm no princfpio de identific3yAo pessoa-

personagem. Podemos ter a impressao de tidar com woa pessoa, com sua linguagem. sua

identidade, seu estado civil. mas isso nAoe suficiente para peDaartodas as personagens do

mesmo modo, sejam elas de origem mito16gica, hist6rica ou abstratas. Definir 0 que e a

personagem e 0 que ela faz nem sempre e simples. E preciso levar em conta id6ias feitas,

avaliar as retayOesentre a fala e a ayaOda narrativa.

Nelson criou woa quantidade enome de personagens. Suas personagens

transitamatraves do tempo e do espayo, entre a morte e a vida, enlre a realidade e a ficy3.o.

Suas personagens sAo quase sempre expJoradas a partir do exagero de urna quaJidade.

virtude ou defeilo.Nesse sentido, tornam-se tipos exemplares, namedida em que sao criadas

para enfatizar algo. Ao costumeiro indivfduo linear, restrito na 39110pelo consciente, Nelson

agregou as fhntasias do subconsciente, abrindo perspectivas ilimitadas para 0

comportamentode BUaspersonagens. 0 autor preserva-se de dar maiores explicayOes sobre

os motivos internos de suas personagens. Contenta-se em enlrega-Ios plenamente as suas

paixOes;

"Eu que ria de jalo viver a pe~a, nlio apenas wna experi2ncia lealrai,mas uma experiencia de vida. Uma vez 0 Manuel Bandeira me disse: 'Nelson, euquero que voce fa~a wna pe~a em que os personagens sejam parecidos com todomW1do'.E entlfo eu coloquei nas minhas pe~as os personagens crueis. os bandidos, osperversos, os larados ... r.. .)Meus personagens, eu os encontrei desde garolinho ". 18

Para wo estudo sabre as personagens de Vestido de Noiva, devemos considerar

as indica9CSesconcernentes a elas, bern como seus discursos e suas ayOes realizadas no

interior do enredo. Raramente dispomos da biografia compieta das personagens, mesmo que

procedrunos por cruzamento de dados. Quando concebemos portnnto urn levantnmento de

18 MAR1lliS, Jussara A Ultima enlrevista de Nekon Rodn·gue$. Manchete. Rio de Janeiro,n 1.757, Ano 35, 21 de dezembro de 1985.p. 39.

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identidade para uma personagem, esta s6 adquire realmente sentido no contexto da pe'ra

considerada como estrutura fechada 0 levantamento dos tra~:os pertinentes as personage-ns

centrais da pe~a, torna-se indispensavel, ja que pennite reconhecer oposj~Bes e

semelhan'ras.

Procedamos a levantamentos precisos das iodica~oe8 c~nicas cooce-mentes as

personageDs, dos discursos que elas prommciam umas sobre as outras e sabre 8i mesmas, das

a~Oes que reaJizam. Os names atribufdos as personageos de Vestido de Noiva silo wna

indica'rao importante: A1a1de (protagonista), Lilcia (sua irnl5.), Pedro (seu marido), Madame

Clessi (cortes§ de 1905). Mulher de Wu (Lucia quando se apresenta de fonna velada).

Primeiro Rep6rter (Pimeota), Segundo Rep6rter. Terceiro Reporter, Quarto Reporter,

Homem loatual. Mulher loatual. Segundo Homem loatual. 0 Limpador (cara de Pedro).

Romem da Capa (cara de Pedro), Namorado e assassino de Clessi (cara de Pedro), Leitora

do ''DiOrio da Noit ••••Gastfto (pai de Alalde e LUcia). D. Llgia (mfte de Alalde e LUcia). D.

Law-a (sogra de Alafde e Lucia), Prime-ira Medico, Segundo Medico, Terceiro Medico,

Quarto Medico. Ainda temos a Mulher da "Paci~ncia". Dan~arina, a Terceira Muther, 0

Speaker e os quatro pequenos Jornaleiros.

Nessa busca de inforrna'rOes, desenhamos a figura das personageos no texio, sem

podennos afirrnar que sejam corretas ou indispensaveis. Assim, 0 jogo das identjdades logo

deixa de ser objet iva e propoe mna serie de pistas que dizem respeilo a a~fio e ao sentido,

como e 0 caso da personagem Muther de-Veu, que se identificara com 0 desenrolar da trama

como LUcia, inn[ de Alaide. Ou ainda, 0 Romem, empregacio da casa, que passa carregando

uma vassoura e urn pano de chao e que aparece em toda pe9a. com roupas e personalidades

diferentes. Outro exemplo temos com as personagens que acompariliam 0 vel6rio de Madame

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Clessi: Homem de Barba, Rapaz Romfintico e Mulher Inatunl, que conversmn jWlto 80 caixfto

invisivel.

A partir deste estudo, tornamos consci@ncia de urna constela~fto de personagens

que constituem urn conjunto carregado de diversas conota~(5es, Urna personagem. geralrnente.

nfto se constr6i apenas a partir de seu nome, mas n§o podemos ignorar 0 modo como 0 autor

as nomeiam. Raramente dispomos da biografia completa de urna personagem, mesma que

procedamos por cruzamento de dados. A individualidade de cada personagem constr6i-se

apenas no interior do grupo de protagonistas. e nesse contexto apenas as semelhan~as e as

oposi~lSes se mostram pertinentes,

Cada personagem esta a frente de run conjWlto de mon610gos. de a~oes ou de

apartes que constihlem "seu texto", A fonna como se relacionam as personagens da pefa.

acentua a atmosfera de pesadelo desenvolvida pel a narrativa fragmentaria As personagens

s§o criadas com acoDomia descritiva, oferecendo de si a imagem que aproveitan\ a a~§o da

pe~a Assim, 0 importante e 0 dado que cada personagem ira acrescentar a a~ao,

fundamentando-a sem sobrecarrega-Ia Outra caracteristiea importante da pefa e a

frustra~ao das personagens f~mininas. eonseqMncia de lUna soeiedade maehista, eomandada

pel os homens:

"A mulher estd de wna frivolidade suicida. A mulher seria estt1desaparecendo, undo tragada pelos novas cosJumes.( ...) A mulher devia preservar avirgindade, em vez de ficar 01 pelos esquinas e botecos se enJregando a quolquerUln",/P

Quem melhor representa essa considera~no e a personagem central do texto,

Alafde, que e levndn par sua insntisfafH.o a roubar os namorados do inllH. e 0 marido, Pedro,

sua ultima conquista Em contrapartida, Clessi e a "niea personagem da pefa que n[o pareee

IS' Ibid,p, 40,

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annada contra 0 mundo, mas, em compensa9fio, tern igualmente urn firn tr3gico. Sua figura

vaga, POliCOprecisa, constitui mlto das alucina90es e fantasias de Alaide. Mad3Jlle Clessi

monopoliza as sonhos e as atent;6es de Alafde e exerce sabre ela wna atra9fio poderosa 0

leitoriespectador sabe, apenas, que elae umarnulher de outra epoca, que viveu no inicio do

seculo e que ganhou manchete dos jomais pelo modo brutal como foi assassinada Sobre

Madame Clessi, Ronaldo Lima Lins:ro afinna:

" (, ..J n(fo imporla verifiea,. Sf 0 pusonagem rea/mente existiu au n(fo,se fez ou n80 mais do que a simples e ./iuliva passagem de wn janlasma pela menteperlurbado de A/aide. Sua importlJncia tern wna conola~ffo simbO/ica e e como laL quep,.eeisa ser examinado". 21

Muitas outras personagens, importantes ou secundarias fazem parte do inventario

das cri~6es do dramaturgo. Na mworia dos casas, personagens que quebram todas as

cooven~(5es. para revelar oa intima nudez, equivalendo no desnudamenlo do

leitor/espectador aos pr6prios olhos. Sfio personagens que nilo t~ fimyilo condutora na

fnlma, mas que silo caracterizados com extrema limpidez. 0 pr6prio autor dizia que s6 se

interessava por personagens dotadas de forte originalidade. sem excluir as que participam do

folclore do g~nero, como os garyons do bordel, as prostitutas, os jornaJeiros. Em Vemdo de

Noiva, Nelson despoja as pOllens falas das nuances mais compIexas, atraves das quais talvez

fosse possivel trayar wna definiyao precisa e humanamente rica das personagens. Fiearn,

entretanlo. sinrus pereepUveis: a ironia com que se retraia 0 casal; 0 perfil caricatural de que

Nelson Rodrigues com fi-eqUencia Ianya mao quando pretende simplificar as situayoes e a

estrutura psiquica de suas personagens.

JO Ronaldo Lima Lins ~ jomalista, romancista. tradutor e professor de Iiteratura brasileira naUniversidade de Liverpool. na Inglalerra. Atualmente dedica-se a crltica litenl.ria nos principais jomais doRio de Janeiro e ao ensino da sociologia da literatura na p6s-gradua9l!o da UFRJ.

21 LINS, Renaldo Lima 0 leatro de Nelson Rodrigues: tuna reaJidade em agonia. 2. ed.Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. p. 67.

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Embora oa amilise buscrunos saber tudo desses fantasmas, nem todas as

infonn~6es se mostram clams e/ou uteis. As infonna~oes do texto deixam runa margem de

ioterpreta~i\o importante ao leitor/espectador

5. 0 DESFECHO

o desfecho tr8gico e comwn na maioria das pe~as escritas por Nelson. Como

vimos, em Vestido de Noiva nAo e diferente: Alafde e atropelada e morre no final. A pelta se

mostra urn enigma. mesmo com 0 seu desfecho, quando Alaide entrega a sua irma. a buque de

noiva:

(Crescendo da mUsica, foneral e ftstiva. Quando LUcia pede 0 bouquet,Alaide, como wn!antasma. avan~a em dfre~go do irmU. por wno das escadas laterais.!Iuma atilude de quem vat entregar 0 bouquet. Ctessi sobe a oulra escada. Umo tuzvertical acompanha Alalde e Clessi. TOOos imoveis em pLeno gesto. Apaga-se, entgo.toda a cena, so ficando iluminado, sob uma luz lunar, 0 tUmulo de Alalde. Crescendoda Marcha FUnebre. Trevas.) 22

Mesmo que 0 autor assinale que se trnta do plano da realidadc. como julgar esta

ultima imagem on presen9a fantasmagorica de Clessi? A liberdade tomada pelo autor. aMm

de permitir urna bonita plasticidade, retoma a ironia feroz da imagem cruel da realidade. A

aventura poetica de Alafde se encerra com 0 matrimOnio da innll com seu marido. Todos as

juizos sabre 0 ffiWldo real se revestem de duro pcssimismo.

A resolultAo deste enigma deveria se apr-esentsr no plano ds realidade, 0 qual

deveria lanyar runa luz final sabre os epis6dios da mem6ria e da a1ucinalt~. Mas esta

hip6tese e rejeitada pelo pr6prio nutor: mesmo com a morte de Alrude, n pe~a tennina com a

confrontayAo entre as pIanos, no gesto de passagem do buque. RestaMnos uma duvida:

acidente all tentaliva de suicfdio?

21 VestJdodeNoivQ,p. 167.

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A pefa tern wn desfecho que esclarece alguns fatas, mas deixa autras mais au

menos veIados. 0 que acootece, exatamente. a AUude, se foi suicidio incooscienle ou

voluntfuio, assassinato ou acidente. nao tern muita importfincia 0 texto dilui as fronteirns

entre a vida e a morte. No desfecha da pe'1a ha. lun prolongamento da afa.o ah~m da morte de

Alaide. 0 leitor/espectador deve se entregar a experiencia das dimensBes criadas pel a pefa.

captando 0 sentido de seus elementos. Nelson Rodrigues rararnente encerra sellS textos com

wn happy end. Aparentemente. Vestido de Noiva tern urn desfecho feliz, com Lucia casando-

se com 0 cunhado. De inicio, LUcia esta con-oida de remorsos pela morte de Alaide, e diz ao

cunhado que nflo sera dele. nem de ninguem:

Lucia - i InUl/I. NIIo serei de VQC~, nem de ninguem. Voc~ nunca melocard, Pedro.

Pedro - Voc~ diz isso agora!L~ja - Jurei que nem um medico verla meu corpo. 13

Mas algumas cenas depois. percebemos no diAlogo com seu Pm, MH.e e D.Laura, a mudruwa na vida cotidiana de LUcia, ande 0 clima e de bem-estar, e ela volta maisgomda e comda:

Mile - Esla lIlo mais gorda, corada - nllo e, Gasillo?Pal- Muito mais.D. Laura - Depois, quando a genie tira 0 fulo, if ou/ra coisa! 2'

A vida das personagens continua, e 0 desfecho torna-se uma ilustrafa.o Lucia se

adaptaria as cOlldi'1i'Sesde sua realidade, mesmo passBIldo por cima de seus sentimentos mais

profundos para resignar-se as conveni~ncias de sobreviver a tun casamento feliz.

Ironicnmente, a vida prossegue, de a1gwna fomta, para as personagens de Vestido de Noiva.

n Ibid. p. 165.2. Ibid.p. 166.

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V. 0 ESPA<;OE 0 TEMPO

"Ah. 0 meu processo - de at;{fessimuitOneas, em tempos diferentes - nODtinhafont;tlo

no Brasil". (Nelson Rodrigues - 0 Reacicmario)

o espn¥o e 0 tempo sfio categorias absb'ruas, dificeis de captar a leitura de urn

texta teatral, e no entanto, sfio signos importantes de sua estetica, que organizam a fic~aoe a

estrublra do texta segundo princfpios decisjyos. 0 texta fomeee um grande numero de

informa~6es retativas aD espa90 e ao tempo. A organizafito do tempo em Vestido de Noiva

vai de par com n estrutw'afAo do espn90. As atividndes dns persoDasens e seus discursos

manifestam uma preocupn9ffo constante com 0 que etas eram e com 0 que sera.o. Como

vimos, a as:Ao de Vestido de Noiva 5e passa em tres lugnres diferentes que tambem

caracterizam tempos diferentes: 0 presente, 0 passado pr6ximo e 0 passado remota, que se

misturam a fantasia Este passado tambem nlio e linear: as recorda\=6es vllo e v~m. numa

Iinguagem de cortes. 0 cenario 6 dividido em pianos, cada qual caracterizando urn tipo de

espa\=o no qual se desenrola a a~do drrumllica que resulta do entrela\=amento desses pianos,

simbolizando a fragmen~Ao da mente humana da personagem central da obra

Nesse sentido, 0 esps\=o e 0 tempo stio elementos emjogo no texto: a tenstio entre

afic\=1lo e arealidade. Os tr~s pianos estabelecem wn espa~o especlfico, plural. 0 espafo do

drama que ntio obedeee as leis do tempo, tanto 0 infcio do seeulo ~ os episodios da vida e

morte de Madame Clessi ~ como a vida e morte de Alaide:

oesst ~Voce pareee ma/ucalAlai de (AD /ado de C/essi) - Eu?Clesst ~ Voc~ estd lazendo wna confos4'o l casamento com enterrol ...

Modo antigo com moda moderna./ Ninguem usa mais aque/e chapeu de p/wnas, nelnaque/e co/arinho.l (..J Voce lola tanto nessa mulher que morrell! lla e 0 que, afinal? 1

I Vestido de Noiva, p. 143

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Ou ainda:

Alalde (como que Sf escusa) - Alll t mesma! Me esqueci de apresentar!Clessi, Madame Clessi! Aqui, meu maridol

Pedfo (amdvel) - A senhora e uma que/oi assassinada?Clesf)i - Pois n50.Alalde - Fot sim. Em 1905. Aquela que eu lhe coniet, Pedro.Pedro- Eume lembro perjeUamente. 0 namorado era UJ1/ colegial, nllo e?

Deu wna punhalada?Clesst (sonhadora) - De dia, USQ\lQ Wliforme cdqui. De notte. mTa. '

A maneirn como as acontecimentos se npresentnm diante de nossos athos, faz

com que cada a~§o tenlm menos de urn canMer de iluBtra~a.o do que 0 de wna ~~o a mms on

constnurH.ode wna realidade especffica da pe~a Umn realidade em que as Hmites entre a

fic~a.o e arealidade sAo abolidos, em que 5e atravessam as barreiras entre a morte e a vida

Segtmdo Angela Leite Lopes 3:

"Mis/urar fic~{fo e realidade no seta do realidade do flc~lia - e 0 abroquejoga com sua propria, Assim como AtaJde. a heroJna da pefQ,joga ate oflm com asorle qUI! the coube". ~

A an3.1ise das rnarcas espa~o-tempQrais do texio percorre uma abordagem

objetiva (indispensavel a represent~ao) e autra mais livre em torno dn estetica da obm

Essas duas abordagens sIlo complementares e ambas se destinam ao ludico. :E ineviUivel

partir de nosaa experi@ncin do espa~o e tempo, para eutrar no wliverso do texio rodrigueano.

em que todos as deslocamentos devem ser levados em conside~fto, como a estudo que se

segue.

2Ibid,p.158.3AngelaLeite Lopes desenvolveu ensaios e estudos sobre Nelson Rodrigues e sua obra. onde

se apoia na presenryado elemento tnigico ao longo da obra rodrigueana

~WPES, Angela Leite. Nelson Rodngues: trdgico, enUlo modemo. Rio de Janeiro: EditoraUFRJtrempo Brasileiro, 1993. p. 85.

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1. A MUL TIPLICIDADJ!: DAS ESIRUIURAS ESPACIAIS

Antes de qualquer analise, fa9amos 0 levantamento de algumas indica96es,

sugeridas ao espa'to cenico atraves da linguagem visual e arquitehlral que indicam a

dimensfto espacial da obm Eis a primeira indicayfto:

(Cendrio - dividido em 3 pIanos: 10. plano: Qlucina~{fo; 20. plano:memoria; 3D. plano: rea/idode. QUOlfO arcos no plano do memoria; duos escadas/aLeTais. Trevas) J

o espa'to abstrato teode a irrealidade, dificultando 0 entendimento do

leitor/espectador. 0 palco e apenns uma parte da fim9§O mimetica do dramaturgo, podeodo

se tomar urna arte independente. 0 espayo ficticio, Bogerido acim~ busea urn e5tilo

deliberadamente n§.o realista, em que 0 teatro reivindica a plenitude de sua condiyAo poetica

o cenario indicado, em Vestido de Noiva, tern urna importante fum;a.o semi6tica

que reflete os estados psicol6gicos das personagens. 0 importante e que os pIanos constr6em

uma realidade, que se apresenta ao publico de maneira extremamente fragmentada A cada

ato, novos elementos entram em cena e confimdem ou esclarecem, de certa forma, 0

entendimento do espectador. Segundo a coloca~fto de Ronaldo Lima Lins:

"Na prd!iea, no lIerdade, 0 palco se divide em mais de tris planas, poissUo tambim ulilizadas lIozes de pessoas nlfo presentes, nwn recurso cujo principalobjetJvo pode ser acenluar a natureza mulli/ace/ada do eonsci2ncta, eapaz de cap/or area/Made e elloed-/a, mesmo que nesse proeesso nem sempre lenhamos dominiocomp/e/o".6

Assim, 0 espa~o e tambem urn dado interior que as personagens trazem consigo.

o espa~o em Vestido de Noiva tambem pode ser classificado e formulado segundo 0 lugar

, Vestido de Noiva. p. 109.6 LlNS. Ronaldo Lime.. 0 Jeatro de Nelson Rodrigues. uma realidade em agonia. 2. ed. Rio

de Janeiro: Francisco AJves. 1979. p. 62.

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em que e apresentada. segundo alguns verbos que indicam movimento e, segundo as

personagens que continuam, avan~am, recuam, atraves das palavras. 0 estudo sobre 0 espa~o

nos revel a redes de sentido que nAo dizem respeito necessanamente ao espa~o c~nica, mas

que fazem avan~ar Da compreensao do tena. Por iSBa nan podamas limitar a analise dos

lugares e dos espa~os oode se desenrolam a trama Assim. 0 espa~o deve sempre revelar as

implica~Oes e os fantasmas destas personagens e, como tal, pode ser urna das metMoras que

dAo sentido a obra rodrigueana

1.1. Plano da Realidade

o plano da realidade tern a fun~Ao de fornecer as coordenadas da a~Ao>

indicando 0 tempo crooolOgico linear da hist6ria Segundo Sabato Magaldi. Vestido de

Noiva exemplifiea 0 horror de Nelson Rodrigues pela realidnde. 0 inicio da pe~a nos

apreseota wnarevela~Ao brutal da realidade, dura e implacavel oa confi~a.o do acidente.

por meio de buzina, derrnpngern, sirenes. A imprensa tambem partieipa da pe~n, refletindo a

frieza do mundo exterior e estabelecendo os elementos de liga~ao da mente fragmentada da

personagenL Os rep6r1eres dllo a nota fua do acidente. descrevendo-o nn linguagem rotineira

dos registros policiais, inclusive com este di8.logo:

Re4ator D'A Notte - Morreu?Carioca-Reporter - Ainda II/fO. Mas vai.7

Urn naturalismo surrealista parece emergir pOI' entre as reminiscencias de Alaide

e do leifor/espectador, numa COnfilSao de eventos que oscilam entre a realidade e a fic~ao,

quando, por exemplo, gritam em cena as manchetes do jomal. Essas cenas constituem a

fdnica do momento presente na hist6ria de Alafde:

1Ibid.. p. 111.

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1." Pequeno Jomalel'D - Olha. A Noitel 0 Didrio! A rnulher que rnatou 0

marido!2" Pequeno JornaleJ,o - Vai querer? A Noite! 0 Didrio! Tragedia em

Copacabona/3." Pequeno JornaJet,o - A Noitel Didriol Morreu a coisal4." Pequeno Jomalelro - Diorio! Violenlo artigol Jd leu at?1"" Pequeno JOflUJlelro - OLha a mulher que engoliu wn tijoLo/ 0 Didrio.t8

Esta forma se repete em cenas que se seguem em torno da mesa de operavflo,

exprimem-se com objetividade antologica,. signa da mms seeR frieza profissional Assim sflo

retratados os medicos na indiferenfa profissional pelo paciente:

1." Medlco - OossoiJ." Medico-Agora e irate ofim.l." MMlco - Se nUo der certo,/az-se a amputar;tfo.9

Em relRfAo no diaIogos sempre laconicos e neutros, Ronaldo Lima Lins faz wna

observ8.fAo interessante sobre a cena dos medicos:

"Como se estivessem diante de wn boneco, aqueles indivtdUI.Js que n{fochegam a revelar nenhwna particularidade que Lhes de realmente urn conteMohumano manipulam os flrros cinlrgicos e lom;am pequenas obseNar;{fes (UCasada -olha a alian~a"/ Aqui t ampuJar;50") que mostram como pode sa vazia e desprovidade calor a relar;ilo entre os homens".IO

Ainda exemplifieando tal indiferencra e alheamento retratados na realidade, 0

estado de choque de Alafde e ate motivo de alivio pam wn dos medicos:

Pedro (oganiodo) - E elo so/reu mutto, doutor?MedIco - NfJo. Nada. Chegou em estado de choque. Nem valsofter nOOa.Pedro (chocado) - Estodo de choque?MMlen - Foi. E isso para 0 acidentOOo e umofelicidade. Umagrande COiS4. A pessoa nUo sellle noda _ nada. 11

8 Ibid., p. 124.9 Ibid., p. 118.10 Ibid,p. 70.11 Ibid,p. 149.

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Ou ainda, 0 telefonema de uma leitora ao jomal> que nos mostra a incapacidade

de como'tt'io real com a tragedia de Alaide. Depois de assistir ao acidente, a leitora

preocupa-se apenas emfazer umareciama'tAocontra 0 abuso dos autom6veis:

Mulher (gritando) - Quemfala?Redatol do DldlJo (cornendo sandulche) - 0 Diario.Mulller (esgani~ada) -Aqui e uma /eitora.Redato! do Didrio - Muito bern.MuThel - Eu mora aqui num apartamento, na G/oria. Vi um desastre

harrlvel1Redatol do Dlarl0 - Uma muJher atrope/ada.Mulhet - A culpa foi tada do chafer. Eles passam par aqui, 0 senhor n{fo

imaginal Enttfa, quem tern crianfa! ...Redator do Dldrlo - Claro!MuJher - Quando a mulher viu, jd era tarde! 0 Didrio podia botar uma

recLama~ffo contra a abuso dos aulomoveis!RedaJoldoDlarlo- Vamos, simI (des/iga)Mulhel (continuando) _Obrigada, ouviu? 12

Como vimos, no plano da realidade sAo revelados momentos cruciais do

cotidiano envolvido com atividades dos rep6rteres, medicos enos momentos de agoni~

sendo considerado meramentesituativo da aventura da subconsciencia

Em resumo, 0 plano da realidade e preenchido desses poucas e nipidas cenas.

que vAodo atropelamento a morte de Alal.de,cuja fun9fiosituativa cede releva ao mergulha

nos pianos da mem6ria e alucinavAo.Nelson Rodrigues leva 0 repudio da realidade ao seia

de sua obra, mas a durezamaior da vis«o rodrigueana da realidade, encontra-se no desfecho

da peVa:LUcia casa-se com Pedro. Aparentemente trata-se de tnn final feliz, mas a ironia

comque 0 autor descreve a solu~a.o.0 leitor/espectador percebe que 0 cotidiano atrai90a os

sentimentos profundos e a realidade leva 0 indiyjduo a resignar-se Os conveniencias de

sobreviver.

12 Ibid,p. 125.

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1.2. Plono da Memoria

o tempo reconstrufdo peln mem6ria desempenha wn papel significativQ na

composilfa.o da trama., e na estrutura do jogo entre as personagens. Na mem6ria, Alafde

recorda frngmentos do passado, 0 retorno impassivel de uma ilusdo cultivada em segredo,

reconstituindo as antecedentes do desastre que a vitimou:

Alaide - (...) Estou-me iembrando de tudo. direitinho. como [oi.Naquele dia eu disse: "eu queria ser Madame Clessi, Pedro. Que tal?"

(.4paga-se 0 plano da alucinQftlo. Luz no plano da memoria.)Pedro - Voc@continuacomessabrincadeira?A/aide - Brincadeira 0 que? seriolPedro - Nlto me aborre9a, AlaldelAlaide - 0 que e que yoc@[azia?Pedro - Nilo sei. (rapido) Matava vocJ.A/aide (ceptica) - Duvido. Nunca voce feria essa coragem!Pedro (alhanda-a) _ E. Nlto teria. 13

Quando ht a evoctl93.0 dos pais de Alaide comentando sabre as reportagens a

respeito da morte de Clessi, eles se referem a Iilcia, a quem Alafde nfio reconhece mnda

como sendo sua inna, por ter se esquecido:

Mu.nler de Veu (ameQ.9adora) - Se eu disser uma co/sa que set.Uma coj sa que nem voc~ sabe I

Alaide (baixo) - 0 que e que voc~ sabe?Mullter de Viu. - Se eu disser - AJaJde - duvido, e multo, que esse

casamento se realize. J 4

Madame Clessi continua incentivando Alafde a se recordar:

Clesst - Procure Y~-ta sem 0 yeu. Eta niio pode ser uma muther sem roslo.Tem que haver um roslo debaixo do VelL IS

A distin~ao daB planas da mem6ria e da alucin~ao nfio obedece regras rigidas.

A mem6ria deveria conter-se nos acontecimentoB pasBadOB, enquanto as cenas em que

Illbid,p.119.::lb!d,p, 131.Ibld,p.134.

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aparece Clessi, por exemplo, pertenceriam ao plano da alucina~ilo.No entanto, na mente

decomposta de Alafde, os dais pianos as vezes se canfimdem. Clessi ajuda Alaide a

reconstituir passagens verfdicas, ou seja, 0 apoio do delirio para a tentativa de apreensilo do

passado. Assim, Alaide e vftima do acidente quando foge da revela~ao irnplacavel que Ihe

traz a briga com a inna Ao ingressar no delirio, ela identifiea seu destino ao de Clessi, e 0

mundode fimtasias criado parece intoeaveills rudes exig~ncias da reaJidade. Outro exemplo

e a cena em que Alafde asta rememorando a cena que antecede Beu casamento, com a

preseIl~a de Pedro. Ela pede 0 bouquet a sua m§e, mas Clessi intenere, .yudando-a a

reconstituir seu passado:

AJalde (com urn arde sonilmbuJa.) - 0 bouquet, mamiIe?Clem - Sua mae nao pode ser.(A mlle volta em marcha-a-re.)Clessi - RIa so apareceu depois! VOCl? sozinha no quarto, sem

ninguem, Alalde? Uma noiva sempre tern genre perta. 0 qu~? Voc~ pode !lllo seJembrar, mas Jd devia teraJguem. sem seT sua mllel Lembre-se. ld

o esfor~o da mem6ria se volta para a reconstitui~a.oda cena. Outra cena que se

reconstitui de maneiras diferentes na narrativa, e a do casamento. No texto podemos

observar duas versOesdiferentes do casamento, que inc1uemelementos novas:

(n. Lauraparece ternolado apresen~ade wnapessoa que att! entlio nliovira. Dirige-se a essapessoa imisivei, beiJando-a, preswniveimente. na tesla.)

D. /A,va - Desculpe. Eu nffo linha visto vac~.(Pausa para wna resposta que ninguem ouve.)D. LaUf'a (risanha) - Qualldo e a seu?(Pausa para au/ra resposta.)D. Laura (maJiciasa) - Qual a que? £SId ai, nao acreditol Tffa mOfa, Ilia

cheia de vida.Pal (para A/aide, que esla pronla) - Enlffa vamosl(D. Lawa!az um gesto qua/quer para a invisive/ pessoa e vat para junto

deAla/de.)D. Laura - Cuidado com a cauda!(D. Laura apanha a imagindria cauda e entrega-o. a Aialde.) 11

16Thid,p.126.I7lbid,p.127.

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E no segundo ato, a mesma cena com a presenya de novas elementos:

D. Laura (para a mulher de v€u, que estd W11 pouco retirada) - Deseulpe.Eu n6a tinha vIsta voei!.

MIl/her de V~u - Nffo /az mal.(D. Laura beijQ-a na testa.)D. La",a (risonha) - Quando e 0 seu?Mu/her de Veu - Tem tempo/ (...) Nunea!D. Lawa (maliciosa) - Qual a qul? £Std aJ, nffo acredito! Tffo mo~a, Uto

cheia de vida.Pal (para Alaide, que estd pronto) - Entllo vamos!(Som da Mareha Nupcial. D. Laura /az urn gesto qualquer para a mulher

de yeU e yat parajunlo de Alalde.)D. Laura (solleila) - CuJdado eom Q cauda!(D. Laura apanha a imaginaria cauda e entrega-a a AJalde.J 18

Nestas cenas que antecedem ao caswnento, aparecem juntos Alafde. a Muther de

Veu, Pedro e. depois, D. Laura novwnente repetindo 0 dililogo que tivern antes com a Muther

de V6u que nllo conseguim ser identificada como a que esteve presente no quarto quando a

noiva se an1Jffiava Alafde prossegue e descobre, a partir da conversa que sua mae tivera no

quarto com a Muther de V6u, que esta se recusava a ir ao casamento porque 0 que queria era

estnr no Iugar da noiva:

Mulher de Veu - (...J Eu ir a esse cQSamento, quando eu e que devla ser anoiYaiMile (suspensa) - (...) Vod gosta de Pedro! Ent/lo e issa? 19

Pouco ap6s Alafde rememorar que suamAe dissera a Mulher de Ven, quando ela

se referia n Alafde chamando-a de e<mulher" de modo pejorativo, isto pennite a Clessi

concluir, admirada, que UIcia e a Muther de Veu s{lo as mesmas pessoas.

Alem da mistura de tempos, nem 0 pnssado se apresentn de modo linear: as

record3flSes saltam para frente e para tras como uma s6rie de flashbacks, recurso a ser

estudado no pr6ximo capitulo.

]i Ibid., p. 141.]Plbid.,p.143.

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1.3. Plano da Alllcinafilo

o plano principal e 0 da alucin~a.o, e a partir dele e que a hist6ria se constr6i.

Atraves dele. Nelson explorarealmente a mWldo do illconsciellte, estabelecendo wn pnralelo

entre as mecanismos da psique e os da literatura dramatica

No pinna da alucina91lo, Alafde projeta suas fantasias oa hist6ria de Madame

Clessi, assassinada par urn amante adolescente de dezessete anos. Neste plano, Alafde se

relaciona com Clessi e empresta au jovem nmante as fei9CSes de sen marido Pedro,

identificanda-se eta pr6pria com a cortesll:

Ala/de (micr%ne) • Estou sempre com a ideta que seu namorado tinha acara de Pedro! 2Q

Dramaturgicamente e passivel evocar as mortos para reviverem c~nicamente

desejos e soobos nlio concretizados em vida A fronteim real entre vivos e mortos

desapareee na evoc~a.o da imagin~a.o do autor: Alaide esta eonstantemente em fuga de uma

realidade cruel, do plano real para a i1usllo amena de Madame Clessi. no plano da

alucin3Jta.o. Clessi ajudaAlafde arecordar passagens verfdicas de sua vida, como wn apoio

do delirio para a tentativa de apreensllo do passaclo.

Desta fonna, a hist6ria de Alaide se eompae pela soma dos epis6dios

biograficos rews e dos irnaginarios. compensadores des :frus~oes acumuladas em sua vida

A tradu~a.o ceniea do deliria da protagonista e apresentado ao leitor/espectador em

desordem. atraves das personagens e situa90es que se confundem own Wliverso ca6tico.

20 Ibid,p 1:50.

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2. A DESCONTINUIDADE DO TEMPO

o tempo e lU1l das elementos :fimdamentais da constitui~ao do teno dramatico e

de sua encenayAo.0 tempo real de Vestido de Noiva se passa entre a atropeiamento de

Alafde e sua marte, nwna mesa de operay3.0. Sua mente em desagreg3.9ao projeta as

personagens que BUrgem em cena Os tres pIanos aeorrem simultaneamente, quebrando a

linearidade cronol6gica do tempo e situando a pefa own momento contemporaneo. Nissa

reside, no ponto de vista Menico, a matriz da complexidade e modemidade de Vestido de

Noiva. 0 autor explica de forma bern hwnorada:

Uma mulher morta assistio 00 pr6prio vel6rio e dizio do propriocadaver: "Gente moria como fica". Morrera, assassinoda, em 1905, e controcenavacom a no/va de 1943. Eu acredilava muilo no ex.ito inteLectuaJ, mas Qcreditava aindamafs no jrocasso de hi/heteria. 21

A ideia de colocar em cena 0 processo de a~oes simultaneas em tempos

diferentes e evidenciada pela cena ern que Madame Clessi aBsiste ao pr6prio velorio,

assBSsinadaem 1905 e no entento contracena comAlafde em 1943:

Clessi (inqu.ieta) - Serio lifo bom que cada pessoa marta pudesse ver aspropria3jeifUes/ Eufiquei multo/eia?

AJalde - 0 reporter disse que nffo. Disse qu.e voce eslava linda.Clesst (lmpressionada) - Disse mesmo? Mas... (pausa. com 0 o/har

extraviado) Eo taJho no roslo? (abslrala) Umapunha/ada no roslo nlIo e posstve/! flo;wna nava/hada. nlfo /ot? (noutro tom) Eu que ria tanto me ver mortal

(Apraxima-se dos clrios. Hesita. A mulher inatuaJ /az que levanla urninvisive11enfo a cobrir um invisivei roslo.)

Clesst (espantada) - Gente morta como fica! ... n

21 0 Reacionario, p. 1282l Vestidode Noiva, p. 146.

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Durante as a1ucin~6es devido a degrada9fto da sua mente, Ala[de dialoga com

Madame Clessi, enquanto os medicos fazem a interven9fto cirurgica, na tentativa inlltil de

salva-la Neste processo tecnico da evolu~a.o do texto a a~fto se caracteriza na n[o

linearidade temporal, onde a exposi~ao do inconsciente de Alaide se da simultftneamente em

tempos diferentes. Msim, 0 tempo da al(fto de Vestido de NoNa tern como ponto de partida

sua morte, definindo 0 tempo dramatico a reconstitui~a:o do passado da personagem.

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VI. 0 UNIVERSO DOS SIMBOLOS

Nelson Rodrigues fai copnz de escrever on mrus eloqOente dna linguogens. mas

as impress6es mais marcantes de sua pe~a se originam nas inveny5es visuais por meio das

quais ele justap<se elementos serios e ridiculos, belas e grotescos. Neste caso, 0 parler dn

concepyllo e inseparavel da serie de artifIcios tecnicos de varios niveis que se tarnam a

expressAo dessR concepytlo.

o texto Vestido de Noiva introduz uma serie de inovR95es esteticas a literatura

tentral: como vimos no capitulo nnterior, nilo obedece as regras tradicionais de wlidade de

tempo e espayo, oode se sucedem ay6es simultAneas, aliadas ao usa de cortes quase

cinematognilicos. 0 texta segue tuna linha expressionistal, utiJiznndo novos recursos e

soluyBestecnicas para projetar no palco imagens oniricas, vis5es e alucinayOes.justapondo

diversos tempos e situo.~oes que retratam umo. visAo mais dinfunica do. realidn.cle, Duma

linguagem viva e inovadora 0 pr6prio Nelson Rodrigues fala de was inten~i5es:

"!liz VestMo de No/va com oUlro animo. Mta pe~a pode nlIo lera/canrado urn resu1tado estetico apreciOve/, mas era, cumpre-me confessd-lo, umaobra ambleiosa. A come~ar pe/o seu proeesso. Eu me propus a uma hlstbria sem /hedar wna ordem croll%gica. Deixava de existir 0 tempo dos re/ogtos e dos folhinhas.As eoisas aeonteciam simui.taneamenJe. Par exemp/o: delerminado personagem noseia,crescia, amova, marl/a, tulio ao mesmo tempo. A tecnica usada viria a ser a desuperpos/~lJes. claro. Antes de eome~ar a esere'ler a lragedfa em apre~(). eu imlJgina'lacoisas assim:

- "A personagem X, que jol assasslnada em 1905, assisle em 1943 a urncasamento, para, em seguida, voltar a 1905, afim defa:zerqUllrto a si mesma ... "

Sellli, nesse processo, wn jogo fascinador, diabO/ico e que imp/icava,para 0 aUlor, numa serie de perigos tremendos. llliciaimenle, havia wn problemapaWieo: a pe~a, por sua propria natureza, e pe/a teenica que /he era essenciai einaliendvel, devia ser toda e/a construlda na base de cenas desconexas ". 2

! 0 expressionismo roi urn movimento artflltico que ocorreu no infcio do s~culo, como urnarea~Aoao Realismo. Seus adeptol procuraram dramatizar nAo a realidade objetiva, mas a lubjetividade doseventos.

1RODRIGUES, Nelson '1'ealro Desagradave\". In: Dionysos. Rio de Janeiro: SNT-MEC. N.Ol.outubro 1949,p. 17.

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o enfoque serniol6gico deste estudo se da atraves da analise e discussllo de urn

sistema de signos que expressam ideias, personagens, situal(<5es e de todos as elementos

constitutivos. chegando a morfologia dos signos que pennite a obra rodrigueana

origina1idade, destacando-a entre a literaturn teatraJ modema

Com 0 U80 de repetil(Hes, exageros, maximas, rubricas, a obra de Nelson

Rodrigues pennite ao leitor/espeetador a visllo da maneira pela qual sa.o geradas as ideias

que norteiam seu eomportamento e a duvida com rel~ao a credibilidade dessas mesmas

id6ias. Assim como a quebra, a ruptura do enquadramento convencional se dara ora pelo

deboche. ora pelo desfiguramento das personagens. ou pelas repetiQOes e intratextualidades.

pelo grotesco, pela voz sOOiea do narrador percebida, tanto nas rubricas quanto no subtexto,

enfim. uma serie de procedirnentos responsaveis por esse tentro desconcertante e

desconcertado. exemplo impar em Dossa dramaturgia

Para analisar os signos da obra, devemos inicialmente observar as SUBS

caracteristicas fimdamentais. cODsiderando as jDdic~6es do autor. Assim. tendo 0 texto

como urn "conjW1to ordenado de instruQOes", 0 leitor/espectador 0 interprela realizando 0

conjW1to das jndic~6es Jigadas ao conjW1to de signos texbJais. Par outro lado a presente

estudo nft.o se propOe a analisar a veracidade quanto a encenal(fio do taxto para 0 palco. 0

que propomos e antes wn modelo de abordagem do texto teatrnl, uma amilise metodol6gica

sobre 0 enfoque de Vestido de Noiva. Este capitulo evidencia uma organizal(fto do corpo de

conhecimentos ja existente sobre 0 asSlUltO. pretcndendo mostrar urn cruninho para apreseolar

a linguagem nAo verbal do texto atraves dos elementos minimos utilizados pelo autor.

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1. OS SIGN OS: Veiculos de Significados

A semi6tica tern por objeto 0 texta e procura desenvolver e explicnr 0 que 0

texto diz e como ete faz para dizer. Diferentes teori85 voltam·se para a analise de textos.

Assim, a semi6tica cleve ser entendida como a teona que procura expJicar os sentidos do

teno pel a exame de sell conteiIdo.

A analise semi6tica devern descrever a organiza~ft.o dos 8igslOB ao nivel do texio.

A literatura teatral, fhlo de comunic~do. merece sec objeto de urna analise que exponha os

metodos e modelos semi6ticos. 0 interesse do. codificBIfft.o oflo se restringe a uma trnnscrilfilo

reveladora do texto. Erige perante a urn sistema de signos que possui propriedades

geradoras. Os 5igoos, por sua vel., npresentrun-se em estruturns coerentes estnbelecidas entre

as elementos do texio. A interpret~a.o semfintica se apoia Da correlayflo necessaria entre

expressAo e conteudo. Tanto a expressilo miistica quanta 0 conteudo introjetndo pelo nutor

serilo objeto de interpret~£io. Nessa perspectiva, tanto a expressAo quanto 0 conteudo se

revelam como interfaces do processo de jnterpret~Ao. A expressfto contem e J"eveJa., aD

mesmo tempo, conteudos. E as conteudos se ancoram nas express3es. ambos se

intercomplementam COOIO corpo e alma do processo em questllo.

Esta consci~ncia do c6digo incitara a rever a literatura de Vest/do de No/va,

segundo tuna nova 6pticn, sendo interpretnda oeste estudo como elementos semfinticos da

linguagem liter3ria~teatral. Para desenvolver wna analise semi6tica do texto teatral Vestido

de No/va, foi necessario estudar alguns elementos da lingungem nao verbal da obm. Nelson

Rodrigues utiliza corajosamente a linguagem simb6lica como recurso c~nico para projetar

imagena, gestos, sons. objetos e complexos com urna Meniea inovadora e intensamente

poetica Ewna tentaydo e run risco interpreter os sfmbolos que 0 teatro de Nelson Rodrigues

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nos oferece de momentoa momento.Para ele nao hli slmbolos, M.uma realidade profimda oa

qual acredita com paix§o e Queprocura transmitir com desespero, nwn lUliversosimb6lico

reveJador em que nos movemos. 0 sfmbolo maior, em Vestido de Noiva, e aquele que se

disfar~a em apalos de realidada, para afinnar-se no gosto ludico da troca aljenada com 0

leitorfespectador.

2. RECURSOS USADOS PELO AUTOR

Nelson Rodrigues multiplica e usmi de multiplos recursos em Vestido de

Noiva: varia90es de linguagens, tecnicas c~nicas, intrigas, repeti90es, anonnalidades. A slla

maestria e audacia na concep~ao destes e outros arranjos cenicos, proporcionam a obra uma

cODtribui~aode valor ineg3.vel,Quecompensa 0 naturalismo por vezes demasjado crn das

situ~Oes rodrigueanas.

Assimilando a influencia do cinema. Nelson Rodrigues nac abdicou da

teatralidade. A cena ganhou novo relevo atraves das tecnicas utilizadas. 0 palco tornou-se

mnis flexfvel ao dispensar as liga~6eB convencionais. principalmente a exig~ncia do

andamento linear da narrativa Podemos afirmar que Nelson libertou nossa dramaturgia da

cansativa prepara~a:opsicol6gica de certos dramas realista tradicional.

Inspirado pela sua voca9a.o natural para a vanguards, 0 autor criou

procedimentos experimentais em Vestido de Noiva: urn plano da realidade preenchido por

poucas e rapidas cenas, Quevao do atropelamento a morte de AlaIde, passando pelos ruidos

caracteristicos do acidente, a sirene da ambuHincia,a noticia transmitida a red~ao, a saJa

em que os medicos a operam e os jornaleiroB gritando a manchete. Os diaIogos tomam-se a

projeyao exterior da mente de AlaIde, onde a a~~ filtJ'a-se palo seu subconsciente. 0

4S

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esfor~o concentra-se em recuperar a identidade, pela coer@:nciado passado, reconstitui-se 0

plano da memoria A medida que a morte se aproxima,. conftmdem-se os pianos. numa

mestria tecnica Como veremos a seguir. 0 autor emprega as annas que supt'Se eficazes, em

todas as circunstftncias.

2.1. O. Ruidos e 0 Microfone

Urn signa inovador foi a emprego de micrafones. Nelson Rodrigues ndo

trabalhava dentro dn trndi~Ao teatraJ brasileirn, mas, no contn'lrio, apropriava-se de tecnicas

e ideias, para criar os efeitos desejados. 0 autor utiliza 0 microfone como um contraponto

introspectivo. Isso nos mostra qunnta Iiberdnde a autor adotou com a linguagem cenicR,

tomando como emprestimo instnunentos de outras artes. Os microfones contribuiram para

produzir urn efeito sonoro que pemlitisse wna interpenetrBftlo dos planas. Guiados pelo

autor, vemos que 0 acidente se eleva a urna dimens{io humana,. choca-nos a constata~Ao

surpreendente de que a nota que nos anwlcia a desastre, atraves de tuna Sllcess§.o de acordes

conhecidos nAo ocnlta as diversos nfveis de sofrimento escalados antes do passo final. No

infeio do primeiro ato, apnrece a indicBfdo do usa do microfone que revela 0 atropelamento,

uma voz e urn nome:

Micr%ne - Buzina de autom6veJ. Rumor de derropagem violenta. Sam devidrafos parlidas. Silencio. Assist2ncio. Silencio. 1

o usa do microfone contribuiu para produzir urn efeito sonora que pennitisse

wna interpenetra~Ao dos planas, dando a impressAo de transmitir a voz interior das

personagens:

:l Vestido de Noiya, p. 109.

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VOt de Alaide (microfone) - Eu bali aqui delrds, acho que na base docr4nio. Efe deu arrancos antes de morrer, como wn cachorro Qlrope/ado. (. ..J Nuncopensei que fosse lIlofdeil malar Wll marido. ~

Ou mnda, nas eenas em que Clessi ajuda Alafde a reeonstituir epis6dios do seu

passado:

Clessi (microfone) - Ahl Quer ver wna coisa? Quem fOI que D. Lawaheijou no testa, depois que fa/ou com voel? (. ..J Quem fOI qlle vestiu voel? Foi suamlJe? NlIo? Pois e. A/aide! ( ..) Daqui apouco voc2 se /embra, A/aiclt. 5

Dessa [onna, 0 alltor emprega as teenicas que aereditava ser etieazes, ineluindo

a teeniea do mierofone para a epoea 0 microfone. que seria estranho ao lUliverso teatral,

agiliza uma infonna~1lo, favorecendo a dinfunica de narra9fto. Paz-se real a economia de

replicas, diante da fala impessoal do aparelbo, e a soma de elementos conjugados fortalece 0

impacto da expressfto dramBtica rodrigueana Roja em dia, esta teeniea se mostra urn tanto

quanta ultrapassada.

2.2. Flashback

o flashback e uma teenica utilizada para expandir a compreensilo da hist6ria,

personagens e situa96es para 0 leitor/espectador. A ilusfto [eita pelo flashback, cenas de

impressOes rapidas, mantem viva a agudez da imaginavfto. Nestas cenas breves que se

sucedem com rapidez, personagens ja mortas no momento do infcio da pe~a alternam-se com

personagens vivas, abolindo os limites rigidos entre vida e morte, entre passado e presente.

como podemos observar nos capfndos anteriores. Os tres aios da pe9a silo ftmdnmentaJmente

preenchidos com a projel(ao exterior da mente de Alaide. manipulada pelos sells desejos

inconscientes e seu estado emocionaJ fragmentado.

~ Ibid.,p. 123.

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As cenas que utilizam a tecnica de flashback pOem em cantata com a

leitor/espectador situa~aes filtradas pela atiea do narrador, de volta ao passado, mas com a

eonsisteneia do presente. 0 flashback e fimdnmentalpara se eonheeer novas aspectos da

narrativa, preenehendo varias :fun~aes.A primeira fun'i~oe contar como Alaide se aeidentou.

Como se trata de narrativa vivida, sup6e-se que haja reconstitui~Aoda mem6ria, que da a

cena 0 carMerde veracidade.

Dessa fonna, Nelson Rodrigues "desrespeitou" a eomposi~Aoconveneional da

escrita dramatica, acrescentando a linguagem cenica esta tecniea que soma dados a.

compreensfioda n~ao. Independentementeda repercusslio semfinticadesse proeedimento.

cabe-nos lembrar que 0 flashback e uma prntiea constante no teatra rodrigueano, Dum

universo que disseminou a psicamUise, atraves das cenas que naseem do estado interior de

AJafde.forjando-se no processo de ruptura e conjeetura poetica

Cumpre registrar 0 eficaz jogo de luzes responsavel pela rapida velocidade e

grande rotatividade c~nica, recorso alias habilmente explorado no texto, e que nos sugere

urna influ~nciado cinema, eujag cenas sao separadas par cortes bruscos que delimitam suas

unidades de ~ao drnmatica

2.3. Personagens e Objetos Invisiveis

A histaria de Vestido de Noiva envolve urna atmosfera de misterio, pais a

narrativa surge as vezes com lapsos au com personagens sem nome, como a Mulher de Veu,

uma figura que tern sen rosto e identidade ocnltos, sugerindo, com sua figura incompleta,.

algomaparticip~Ao especial nurnpassado que a memoria encontra dificuldade em defmir.

As cenas Berepetem enquantoAlafde reconstitui sua mente fragmentadapelo acidente:

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Alalde - Ele estd ali. AliClesrl (admirada) - Ele quem?Alalde (baixo) - Meu marido.Clesst- Vivo?Ala/de - Morto.(Alalde guJa Clessi. Aponto paro wn invisNel caddyer) 6

Clesst- Vamos carregar a hom em ? (... ) A gente esconde debaixo da cama.(..J alha, eu puxo par urn brar;o e '.lace par outro.

AJaid/!- Arrastamio 0 corpo,/az-se menosforr;a.(Cada Ulna puxa pelo brar;o de urn invisNel caddver. arrastando-o.

ReaJizam 0 respectivo es/orf:o. Arquejam. (.. .) Clessi passa par cima do caddver./

Outro exemplo e 0 cadaver e 0 caiJdio invisiveis de Clessi, no vel6rio, como nos

mostra a rubrica abaixo:

(A mulher apraxima-se do i»visive' caix{io e102.que levanta urn lenf:o queestaria sobre 0 rosta de um caddver invisivelJ 8

o cemirio indicado em algtms momentos do texto, tambem tern uma importante

fim'(oo semi6tica que reflete os estados psicol6gicos das personagens. Segundo as rubricas.

aparecem Da primeira alucin~ao de Alafde, lUll gropo de prostitutas, a cafetina e moveis.

Mas 0 autor menciona tambem uma vitrola invisfvel, na qual as mulheres fazem uma

pantomima de colocar urn disco:

(3 mesas, 3 muiheres escamialosamente pintadas, com vestidas berrantese compridos. Decotes. Duos delos dan~am ao sam de uma vitrola invistvel, dando Ulnavaga sugestlIo Lesbica.) 9

Segundo as rubricas que aparecem na primeira alucinaVdo de Alnide W11 gmpo

de prostitutas, a cafetina, m6veis e objetos invisiveis:

(A 3.a mulher deixa de danf:ar e vai mudar 0 disco da vitrola. Faz lada amlmica de quem escoihe um disco, que ninguem \Ie, coloco·o na vitrola lambeminvislvel.) 10

6 Ihid.,p. 119.7 Ibid., p. 123.8 Ibid., p. 137.SI Ibid, p. 109.

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Segundo a explicHfilo de Carmine Martuscello, os objetos nessa cena, se referem

aos espa~os varios da alucina~a:o da protagonista e n{to a realidade objetiva da aQa.o. Esta

explicaQAo conclui esse aspecto da dramaturgia de Vestido de Noiva.

2.4. Sobreposi~o de Figuras

A tecnica de sobreposiQao de figuras tambem e lUna caracteristica marcante em

Vestido de Noiva. A mulher de Yell, par exemplo, e LUcia se identificam como sendo a

mesma personagem:

C1essi- (Adm/rada) Querdizerque LUcia e a mulherde veu SUD a mesmapessoa! (...) (Dace) Irm$ e se od~ando lanlo! Enprarodo • eu oeho bonilo duos irmqsamanda 0 mesmo homem! Nao set _ mas aello ... 1

Os acontecimentos aparecem em imagens engrn~ndas e maio apagndas, numa

confusao caracterfstiea do sonho e do pesadelo. Nessas visOes misturam-se 0 realmente

vivido e 0 imaginario. No primeiro ato, Alaide eonta n Clessi que matou Pedro. Seguem-se

cenas do assassinato no plano damemoria, e eenas em que as dllas tentam oeuItar 0 cadAver,

no plano dn alucina~a.o:

(Pedro vai apanhar. Abaixa-se. Rapida e diab6lica, Ala/de apanhaumferro. invisivel, ou coisa que 0 valha e, possessa. entra a dar gofpes. Pedrocal em cdmera fenta.) l1

Depois se vim a saber que na verdade Alafde nao matou seu marido. e que a

cena representa apenas seu desejo inconsciente. Quanto a Alrude. 0 leitor/e8pectador 86 e

infonnado no terceiro ato pelo rep6rter. que se trata de gente irnportante. esposa de wn

industrial chamado Pedro Moreira Esta interessante mistura de elementos entre a realidade

IOlbid,p.110.LL Ibid, p. 145/146.12 Ibid,p. 122.

so

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e a fic~Ao proporcion8 a pe~a urn car6ter de jogo. Urn jogo Indico e de adivinh~6es que 0

espectador teni de decifrar ao Jongo da hist6ria. Quanto maior a frustrayao em rela~ao ao

casamento que ja nasceu condenado, maior a obsessAo de Alafde pela figura de uma mulher

que representa a antitese de certas conven~t'Ses.

o duplo Be manifests, igualmente, no desejo de viver ou morrer. 0 simbolo

sonoro dessa puisAo sao as marchas runebre e nupcial, soando ao mesmo tempo no desfecho

do teldo.

3. A PRESEN<;A DO GROTESCO

Para tomru- 0 retrato da alma humana e da sociedade brasileira ainda mais

contundente. Nelson Rodrigues faz nso do grotesco, isto e, do disfonne, do horrivel. do

ridiculo, do burlesco. 0 grotesco tambem aparece sob a fonna de ('mau gos1o", Assim, Da

obra encontramos situa~6es que nAo tern muita liga~fto com 0 desenvolvimento da a~fto. mas

que, apresentadas exatamente par serem de mau gosto, quebram certos padrlJes eshHicos

formais. NAo s6 suas personagens sao disfonnes, mas vivenciam sens atributos de modo

radical em situayt'Ses improvaveis. Como exemplo do grotesco, misturado ao gosto do

desagradavel, podemos destacar 0 horror que IiJcia tern do cheiro de suor de sua mAe:

Lucia (com certa re/uttJncia) - 0 que eu disse, mamtle, e que a senhora ...Transpiro muito. Demais.! Pronlo.!11

Lucia (reso/uta) - Agora me lembrol Eu tambem falei, mamtle, quequando a senhora come~a a transpirar - a senhora If rninha rn{[e- mas eu nlJ'opossolN!fo estd em mim. Tenho que sair de perto/ U

13 Ibid,p. 153.14 Ibid,p. 154.

51

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Para 0 leitor/espectador, esta revela~Ao parece bastnnte estranha e grotesca

Uma satira a literatura malodramatica que 0 autor acantua nestas cenas. Outra cena grotesca e

a referencia a alianfa de casamento que urna das mulheres faz a Alafde:

J/' Mulher - Isso e alianra?Alalde (mos/rando 0 dedo) - t.3,4 Mulher (o/hondo) - Alianfa de casamento.2,4 Mulher - A da minha innS e maisflna.3,4 Mulher (ceplica) _ Grosso oujina, tantolaz, 15

Outro ponnenor de grotesco acontece no plnno da aJucinsfRo, quando Alaide e

Clessi carregam tm1 cadaver invisfvel:

Alalde - Um morto t hom. porque a gente deixa nwn fugar e quando yaltaeli! estd na mesmaposif;llo. 16

A bisbilhotice no vel6rio de Clessi. diaJogando com 0 Homem de Barba, a

Mulher JJ1atual e 0 Rapaz Romfultico tem essa mesma caracteristica 0 contraste do vel6rio

com as figuras grotescas e os comentarios de Clessi e Alaide, salientam 0 grotesco da

situru;llo:

Homen! de Barba - C/essi nem podia pernar que hOje estaria mortalClesst (no alto da i!scada. levan/amio-se e descendo) - Clesst, .. (com

espanto e medo) CJessil ... (...) Teve muita gente no mell entena?Alalde -Muila! De manhll, comerou a chegar gente.,.Clesst (vaJdasa) - Quanta mats au menos?(0 homem de barba aproxima-se do rapaz romdntico)Homem de Barba - S6 nos aqui?Rapaz RomfiniJco - Mas deixa chegar 7 horosl Vat ver como fica isso! /7

Como podemos observar, na obm encontrnmos situayeles que nilo t~m muita

liga~a.o com 0 desenvolvimento da SfIW, mas que, stio apresentadas exatamente por serem de

mau goslo, rompendo celios padrlSes esteticos fonnais.

Ij Ibid., p, 112.16 Ibid,p. 123.17 Ibid,p, 144.

S2

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4. o HUMOR

"Eufa~o piado com a maior dignidade, porque nenhwn povo no mwuJoJaz piadas. Sd (I brasi/eiro laz piadas. A piada t wna descoberta da lingua

brasiletra". (Nelson Rodrigues)

Apesar das adversidades, lUn dos instrumentos mnis eficazes no desarranjo do

sensa comum e fia impossihilidnde de identi.fica~fto entre personagem e ieitorJespectador no

teatro rodrigueano e 0 reeurso do humor. Este recurso nos afasta do objeto exposto por nfio

DOS reconhecennos no patetico au grote8cO, reeureD brilhantemente explorndo pelo

dramaturgo. 0 imalito, 0 grotesco e 0 grosseiro sfta as principais canais de expresslio do

comico Desse teatra. Em suas antol6gicas entTevistas e depoimentos, 0 sutor costumava

afinnar a seriedade do teatro como algo sagrado, associando 0 riso nos palcos a urna especie

de "missa comica", Partindo de sitllaflSes booms e prosnic8S, explofBndo drnmaticamente as

miudezas do cotidiano rnais tacanho, e que Nelson constr6i e estrutura as intrigas em Vestido

de Noiva, tomando-as desproporcionais em rela~tlo ao fato que as motivou. Essa

despropor~a.o, sernpre ancorada no ins6lito e no inesperndo, provocani no leitor/espectador,

surpresa e riso. A quebra de tonaJidOOe desviani 0 cnminho tragico. levando a meandros

onde 0 elhnico esta a espreita NOOa e apenas serio au apenas engra~ado. A interpreta~:to

desses elementos constitui wn tra~o estilistico peculiar ao teatro rodrigueano, afinado com a

modemidade. Urna irnagem ainda mais risivel encontrada em Vestido de NoNa, pelo seu

carMer ins6Jito e 0 vel6rio Bonde dois sujeitos conversnndo Bcendem sellS cigarros on chama

do effio do defunto:

{Os dois homens do velorio cochicham e ajastam-se um pouco parajUmar. Acendem 0 cigarro num dos cirios efomam.} 18

18 Thid,p. 142.

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Pois e juslamente isso que seu tsatro provoca no ptlhlico: 0 constrangimento do

riso quando se tern a impress::lo de que 0 local e 0 momenta DaO Ihe sao apropriados. Vestido

de Noiva e urn texto estranho e desconcertante por operar com categorias deslocadas ou fora

do lugar esperado. Apesar do conteudo desagradavel pela explora~ao do humor, esse

tratamento dramatUrgico expressa urna maneira de entalhar urna condi~ft.o social e moral.

Como vimos anterionnente, 0 tr3gico e urn elernento que participa da reflexao proposta pela

ohm. 0 autor fez do humor tragedia e da tragedia humor, utilizando tecDicas que penni tern

wna apreenslo melbor dos conte6dos desagradaveis au tragicos da condi~ao humana que se

tornam rislveis, satirico, irdnico, revelando a verdade oculta Duma expressfto farsesca

5. 0 ESTRANHAMENTO

Esses recursos criados por Nelson Rodrigues com inegavel habilidade e

inteligencia, criam wna especie de estranheza para 0 leitor/espectador, algo como uma

disponibilidade para se entregar a experiencia que 0 texta teatral vai propor. Como explica

Angela Leite Lopes:

••...nffo se dew pTocuraT a inleligentibilidade desses elementos nodesvendamento de wn processo psJquico determinado, mas antes l1a cria~!to especJficados pTocessos arttsticos". 19

A estranheza e um instnunento de linguBBem dinftmica, que causa Wll

distanciamento crlfico que visa liherar 0 leitor/espectador do envolvimento emocionaJ com a

trama das a~oes. 0 distanciamento e obtido atraves de tecnicas especificns como illlmina~ao.

interven~1lo de personagens estranhos, humor, entre outros recursos estudados anterionnente.

151 LOPES. Angela Leito=.Nelson Rodrigues. trdgico. enttIo mode mo. Rio Jano=iro; EditoraUFR1lrempoBrasileiro. 1993. p. II.

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Mautendo-se distanciado, 0 leitor/espectador poderlL rel1etir e questionar 0 que esh1 sendo

expost,o no texto, como por exemplo as conven~oes sociais.

o distauciamento tern possibilidades ilimitadas. 0 leitoriespeciador se

conscientiza da cena antes de ser engolfado oa aceita~ao passiva,. despertando sua faculdade

critica e estimulando-o oa luta paia modifica~ao dos valores sociais injustos. Com esse

intuito, Nelson Rodrigues adotou 0 distanciamento e 0 aplicou oao someote no ceoario, mas

tambem ao trabalho do ator e a atitude do iQ.itor/espectador. Urna cena que causa illn certo

estranhamento no Jeitor/espectador, e quando Alafde, rememorando 0 que acooteceu entre

Clessi, 0 namorada de dezessete anos e a mAe deste, reconstr6i os acontecimentos, baseando

BUasversoes Da 6pera Traviata e, em seguida, no filme E 0 Vento Levou ... , mencionando as

personagens Scarlett, Rett, Ashley, Alfredo Germont:

MOe (num largo geslo, visivelmente carica/ural, tr~m!Jo no. voz) - Asenhora e que e madame Clessi?

Clesst (hwni/de) - Sou. A senitora nllo quer senlar-se?Mae (em lorn de drama/huo) - NUo. Estou hem assim. (e:xageradlssima)

Sou a mlle de Alfredo Germani. 2rJ

Eo estranhrunento continua un cena seguinte:

Clessi (choromingando) - 0 olhar daquele homem despe a gentelMfJe (com absolula/alla de composlura) - Voc~ fXagera., Scarlett!Clesst- Ret! e indigno de enlrar nWl/a coso.deJamtiialMae (cruzando as pernas; inaivel falla de modos) - Em compensar;ifo,

Ashley e espiritual dema/s. Demaisl Assim lambem niTogas/a.Clesst (chorando, despeilada) - Ashley pediu a mllo de Melante! Vai-se

casar com Mel6nielMae (sa/tenle) - Se eufosse voc~, preforta Rell (nouJro lom) Cem vezes

melhor que 0 owrolClesst (chorosa) - Eu niTo acholMile (senstull e descritiva) - Mas e, minha fllhal voce viu como ele e

forte? Assim! Porle mesmol]/

: V~stidode Noiva, p. 155.Ibld,p.156.

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Ala/d. tenta s. explicar:

Ala/de (micr%ne) - Mas (!U fS/OU confondindo tudo outra vez, minhaNossa Senhora! Alfredo Germani e de wna opera! Traviata. Fat Travia/a! 0 pai doropaz veio pedir SQtisfQ~ffo d mocinho. Como ando com a cahe~a, e/essi! ( ..J Voci!estd vendo, Clessi? OuJ.raVtz. Penso que es/au conlando (}seu caso, conlando (}que Iinos jornais daque/e tempo sobre (} crime. e quando acaba, miS/UTO tulial Mis/uToTraviata, ... E () Vento Levou. .., com (}seu assassiniol Inaive/. (pawa) Mfa e? 22

Para 0 ieitor/espectador, esta revela~fio parece bastante estranha e grotesca.

Uma sntira D.squestOes socirus que 0 autor ncenrua nestns: cenas, expondo as conseqOencias

da miseria, no comportnmento de BUas personagens e sellS misterios.

21 Ibid.p.156.

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VII. OS DIVERSOS CAMPOS DE ABORDAGEM

"A vida, como nos a vivemos, como nos a vemos, n{fo e um plquenique,nOD e urn arroz doce, n{fo e urn dace de coco. ( ... J 0 sujeito precisa morrer paradespertar", (Nelson Rodrigues)

Podemos desenvolver tan estudo paralelo sabre Vestido de NOiva amplamente

numa vis[o pertinentes no campo da psicologia., masofis e sociologin. Em contrapnrtida,

procuramos enfocar, sem aprofundamento, neste estudo as caracteristicas eminentemente

teatrais da escrita rodriguenna, que envolvem rela~Oes profundas e pertinentes entre estes

campos. Como podemos observar, Nelson Rodrigues retraiou, em quase todos seDS textos, a

mesma tematica WliversaJ que pOem a nu a ideologia da c1nsse media brasileira: a trai~llo, 0

arnor, a marte, 0 preconceito, 0 estere6tlpo da muther pura (virgindade), 0 machismo, as

desejos, a repress{to, n fnmilia, 0 incesto, n prostituiffto, a rnorbidez, revelam-se sob

multiplos enfoques e traiamentos esteticos. A punifdo que quase todas suas personagens

safrem ao finnJ de coon pefa oao e senaa a conseqUencia logica de seus aias socinJmente

condemiveis. Segundo a autora Angela Lopes Leite:

"Nelson Rodrigues levanta questoes de ordem moral na medida em quejocaliza 0 indiv/duo entregue as complexidades da vida modema - a perda daidentidade propria no multidlIo, a mecaniza~lIo, a instabilidade. a insatisja~lIo. aafinna~80 dos direilos da mulher, a angUstia. Esses aspectos jazem parte da lramatanto quanta 0 trabalho com os didlogos. Ideioj e linguogem remetem assim para wnquestionamentojWuiamentaJ".l

A obm se alimenta da linguagem, dos sonhos, dos ideais, das obsessBes. dos

medos, dos misterios, do consciente e do inconsciente do seu criador bern como do seu

contexto s6cio-cultural e etico-poUtico, Assim, a literaiura dramatica rodrigueana nf10

I LOPES, Angela Leite. Nelson Rodrigues tragico. entAo modemo. Rio de Janeiro: EditoraUFRJtrempo Brasileiro, 1993. p. 136.

S7

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apenas promove a comunhfto entre a fonna e 0 conteudo. mas tambem remete-nos a urna

discussoo e questionamentos sobre 0 asaunto.

1. CONSIDERACOES SOBRE A VIS.4.0 SOCIAL

"AjiCf;OO de Nelson Rodrigues estd eheia de eoisas atrozes e imorais, everdade. A vida tambem. Mas quem, acredilando em Deus, ousaria classified-fo deimoraL, porque a vida, cria~tro de Deus, estd chela de coisas atrozes e 'morals?"(Manuel Bandeira)

o probJema da mascara, nAo apenas a do temro mas tambem a social. 0 ato de

representar na vida cotidiana. e wn tema expJorado desde os textos dramatjcos gregos. Em

Nelson. de wna maneira urn tanto mais velada. tambem temos 0 questiomunento, ou a

problem~ao da relayno essencia/apar~ncia Afirrnamos que 0 apelo de wna cena

rodrigueana nao aparece veiculado pelo Beu valor convencional. mas sim desfigurado. Isso

nos leva a discuss§.o em torno do significado da obra de arte e da facilidade com que

participa de urn contexto sociaL A dramaturgia rodrigueana constitui 0 painel teatral da

sociedade urbana brasileira. 0 dramaturgo afirrnava que 0 ser humano tern em 5i duas

dimensOes obrigat6rias: a do "SAo Francisco" e a do ('pulha" 2 . A essas dimensBes de

carater subjetivo que operarn no sentido de wn plano individual para 0 mundo exterior.

lembramos a existencia do sentido inverso, a dimensAo do mundo e sua realidade hist6rica

que contribuem para 0 confrangimento de personagens e situa90es. Assim. os textos

rodrigueanos estAo impregnados de moral asswnida pelas personagens comprometidos com a

pratica social vigente. conjugando fragmentos do mundo exterior com 0 do mWldo interior. 0

J Depoimento exlraido da ultima entrevista de Nelson Rodrigues a revista :Manchete,publicBdaem21 de dezembro de 1985.

'8

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cotidiano da pnitica social adversa se imbrica com os complexos e obsessBes das

personagens.Eis seu depoimento:

"Eu acho que Vest/do de No/va chomou oien9ao porque, diante de ouirosUpos de espetdcuJos do epoca, era um texto brasi/eiro altamente cotegorizodo. Ne/e serespirova a rea/Made do Brasil, e principalmente a realMade carioca. lsso 0

transjormava llUJ11 monumenio de /ralemidade exiremamenJ.e grande ". J

Nelson entregou-se as observaQOessobre 0 mWldoIi sua volta, concentrando-se

no bairro, oa rua, nos vizinhos, apresentando os costumes e rompendo os tabus. As

personagens de Vestido de Noiva estabelecem urn perturbador contraste com nossa pacata

burguesia, demmciando preconceitos enraizados, exigindo, assim, a revisao das crenQas

superficiais.

1.1. 0 Sonho Carioca

"Diante do material em bruto que 0 Rio de Janeiro Ihe oferecia paratrabalhar, e cerlo que duos caracterlsticas, entre mui/as outras, teriam de despertar aalen960 do lea/rO/ogo: exteriormente, a abunddncia de geslos do carioca;inJ.eriormenle, a abundancia de senlimentos - ambas inlerligodas e se completandomutuomenu". (RonaldoLimalins - Ulna Rea/Made em Agonia)

Quanto Ii cita~Aoacima, a primeira caracteristica, que se refere Ronaldo, e sobre

a Jinguagemdos recursos pl3sticos que se insinuamno teno, nas gfrias e nas express<'Sesde

origem carloca e, sobretudo, 0 linguajar suburbano do Rio de Janeiro que foram

incorporadas oa lioguagemexistentes no teno.

o Rio de Janeiro da infimcia de Nelson era urna cidade provinciana Na

Republica Velha, a preconceito, 0 pudor e os tabus 0[0 faziam concess<'Ses.0 cinema, 0

jomal e a 1iteraturarevelavam a Nelson urn mundo que se modemizava Mas 0 dramaturgo

3DEPOIMENTOS, cinco. Rio de Janeiro: Servi~oNacional de Teatro, 1981, p. 180.

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sempre sentira nostalgia do universo lfrieo maehadiano, segundo 0 estudo desenvolvido por

Ronaldo Lima Lins. Quando Nelson Rodrigues escreveu Vestido de Noiva, bondes ainda

cruzavmn as ruas do Rio de Janeiro. 0 autor tentou captar as cBI1Icteristicas que melhor

definem 0 carioca como personalidade, temperamento e carater. E tambem Bua inten~ao

representar 0 ambiente da cidade. a atmosfera eo emilo de vida da epoca A pe~a surge Dum

momento em que se verifica 0 impaeto das transfomtavBes que a vida moderna exerce nos

grandes centros, sobretudo no Rio de Janeiro, com tipos urbanos representados com

admiravel plasticidade.

1.2. A Moral Pequeno-Burguesa

"Uma pera n{fo pode ser hombom de lieor - tem que humilhar, olender,agredir, abrir os o/hos do espectador". (Nelson Rodrigues)

Uma das caracteristicas das personagens rodrigueanas e a moral burguesa que,

embora conscientes das normas corretas de agir, D:'tO resistem a urn impulso maior, tendo

algum comportamento tido como sujo dentro das pr6prias concep~Bes;

"Quase sempre, o/entJmeno que enllto vemos suceder € 0 de uma moralextremamente puritana e ortodoxa rasgada e corrompida por aque/e que matsdelei/avo em dtfende-Ia ou por pessoa iigada a esle ". 4

Apesar do grande sucesso de sua obra., a ferida exposta por Nelson Rodrigues

lhe valeu a fama de tarado, de pornognifico, de indecente. Nenhurn outro autor brasileiro foi

tAo perseguido pela censura Moralista., pol@mico, amado e temido pel a seu hrunor acre,

Nelson era urn homem ncossado pelo demOnio da pureza:

60

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"Eu nllo sou tun aulor pomognifico, ahsolulamente. Pelo contrario, mechamam de feroz moraJisla. 0 Unfco /ugar onde 0 ser humano sofre rea/menle e pagapelos sews pecados If nas miMas pe~as n. S

Muitas vezes perseguido pela censura,Nelson na.ose confonnava:

"Nos meus ltx10S, 0 desejo e Iriste, a 'IIolLipia e trdgica e 0 crime e 0

proprio inferno. 0 pohre especladoT 'IIatpara casa apQ1lorado com todos os seLLSpecados presentes e fUturos. Uma epoca em que a maioria se compoNa sexuaJmenlecomo urn 'IIiTa-/ata, eu transformo tun simples beijo mona obrigartlo eterno. Se hd urnbrast/eiro montaco pe/a pureza, esse brasi/eiro sou eu", 6

Suss pe~as sempre incamadaram os canservadores. Mas sellS artigos

iconoclastas denubavi'UDmitos e perturbavam, principalmente as esquerdas ramcais.

Anticomunista convicto, 0 escritor manteve suas posi~oes mesmo nos anos 60, quando a

grande maiaria da intelectuaJidade brasileira se moslTavamarxista e nilo acbnitia OUtras

posil(oes. Acusado de reacionano, Nelson transfonnou-se numa voz solitaria Aceitando a

sua sina de maldito, 0 escritor respondia as criticas com lucidas provocal(oes.

"Eu sou reacionario porque sou pela liberdade. A liberdade e matsimportante que um plio n. 7

A critica esta implicita em sua ohra de onde se nota a irresistivel inclinal(a.oque

ternpara chocar e escandalizar. Observamos em Vestido de Noiva, muito mais do que a seu

estilo original. urna critica it sociedade, incapaz de escapar aos impulsos de sellSvfcios e

compulsoes. Uma influencia poderosa na qual se ampara a personagem Alaide e de onde

retira a sua concep~Aociavida e as no~lSesdo certo e errado e a familia Representada pela

figura da mae, no plano da mem6ria, pennanecera presente ate que 0 casamento se realiza

A a'fAoda pe~a transcorre em dais diferentes nfveis sociais: 0 de Alafde, vitima do acidente,

e 0 de Clessi, mWldana que teve sellS momentos de gl6ria, mas tenninon tragicamente

} Depoimento de Nelson Rodrigues, no documentario Nelson Rodrigues: wn encenador de:;1 me:;mo.SA.o Paulo: Cultura Funda~A.o Padre Anchieta, 1993.

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assassinada 0 plano da alucina~lo pennite a Alaide fugir de seu cotidiano alienado e da

falta de perspectivas de sua exist~ncia burguesa, ao se identificar com Madame Clessi.

Como exemplo desta explica~llo, no plano da mem6ria temos as cenas em que os pais de

AlaIde mostram-se recatados:

Mile - A/aide e LUcia morando em casa de Madame C/essi. Com cerleza,e no quarto de AJaJde que eta dormia. 0 melhor da casal (...J No sot50 tern retratosde/a, wna mala chela de roupas. Vou mandar bolar fogo ern tMO.

Pot _Manda. 8

Eis afala daMAe,reagindo radicalmente contra 0 passado er6tico que habitou a

casa, e protegendo suas filhas. Alafde Jeva em sua mente. tumuituandomoda moossua paz de

espirito, a suposi~l1ode sua mile. eabe, eotretanto, assinalar que os acontecimentos se

sucedemde ge~1o paragerB9Ao.deseocadenndo conflitos e Iotas interiores em nmbas.

Podemo5 observar outro exemplo em LUcia, que mantem a sua castidade e 56

aceila eotregar-se a Pedro depais de ser levada no nltar. Sabe-se que a morte de Alaide forn

urna coincidencia feliz e que nem Ucia nem Pedro seriam capazes de precipita-lo. Ambos

encontrmn-se presos as convenroes para romper urn dos principais tabus e praticar lOTI

crime, au qualquer atitude que viesse a ferir as leis da sociedade. Mas a possibilidade do

assassfnio pennanece sempre latente. Dessa fonna, a ohm ndo visa a cooversdo do

leitor/espectador. nem a transmutat;Aode uma pratica social. 0 texto visa a exp1ora9{1odo

imagimiriocomo ampli9.9Aoda dimenslo humana trngica au cdmica A consciencia de crise

se manifestapelo prazer de retratar a decadencia das institui90es que se dizem detentofas da

verdade: fmnilia, policia, imprensa, igreja, entre outras.

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2. A MALDI<;:AO COMO UMA REPRESENTA<;:AO

SIMBOLICA

"Como e posslve[ que certos sentimentos e alos nUo exaLemmau cheiro?(Nelson Rodrigues - A Varna do Lota9{JO)

Nelson Rodrigues teve wna fonn3fAo crista de classe media urbana que preserva

a crenya Da divindade e em preceitos marais. Podemos dizer que em sua dramaturgia, 0 sexo

e urn grande estigma de. maldiyAo a que esta condenado 0 homem. As criaturas do autor

carregam em si 0 peso de terem wn corpo que as subordina inapelavelmente a fOfl(a do

desejo sexual

Uma sene de elementos, recorrentes em Netson, relacionrun-se diretrunente com

a questdo. Assim, podemos teeer consideralfOes sabre 0 sexo, 0 arnor, 0 corpo, as doenlfas, a

pure~ a beleza. Estamos enUlo nas franjas de urn universo religioso, no qual

diagnosticamos. principalmente, 0 modele cat61ico, 0 dominante do nossa pais, e 0

espiritismo, que, npesar de sua vet1ente cristA, tern ralzes nns rnais wltigas confissOes

religiosas, principalrnente orientais. Imersos no universo da cultura ocidental e cristll em que

vivernos, a heran~n dessa dissocia~§o perpetuou e acin-ou 0 processo de repressfio sexual jli

existente desde os prim6rdios da civili~a.o. E carregamos esse peso, tanto num nivel

individual quanta num coletivo.

A dramaturgia de Nelson Rodrigues, historicamente situada own tempo e espa~o

concretos, reflete em diversos aspectos os problemas de tal situa~ao. Urn desses aspectos

responde justamente pelo sexo. Notamos que 0 carMer da maldi~Ao, desde as precooizadas

pelos oniculos do tearro grego, aparece cOlTobornndo a repressAo de uma estrutura social

organizadano sentido de for~ar 0 individuo a obedecer lis regras e leis dessa sociedade.

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3. UMA LEITURA PSICANALiTiCA

"0 wliverso que dol resuita so pode ser pal%gico, umo vez que 0 egon4'o enconlro caminhos aceitdveis para a satisjof60 do id e qUt seus personagens Sffixam em determinadas e/apos do desenvo/vimenlo do personalidade, sem conseguire/abord-las ou ultrapassd.las. Cria, pois, wn leaUo exlremamente desagraddvel, queIrata dos desejos inconscientes, dos conjlilos n{fo reso/vidos, enfim do nosso eu matsprofi;ndo".

(MariaHelenaPires Martins - Literatura Comentada)

Faz-se necessario, com a elaborayao do presente estudo, uma visfto clara do

acontecimento rodrigueano. a partir de uma 6tica psicanaJitica, embora sem grande

aprofimdamento.A compreensoo dos conflitos psicol6gicos vivenciados pelas personagens,

funcionam como a principal mola propulsora da criayffo literaria de Nelson Rodrigues.

Vestido de Nojva abre a serie de textos dram8ticos que caracterizam 0 processo de

introspe~ru"onde suas personagens transitam entre os complexos. as paixOeshlunanas.

Podemos afinnar que e inegavel que a aplica~Aoda psican8.lise a alguns tipos de

cria~a.oartistica aumentar suas possibilidades interpretativas. Para tanto, utilizamos como

principal fonte bibliogrMica a livro "0 Teatro de Nelson Rodrigues". de Carmine

Martuscello 9. 0 aldor comenta que Nelson foi fiel ao seu tempo, incorporando it sua

dramaturgia as no~Oesde psicamUise desenvolvidas por Freud no inicio do seculo. 0 sutor

retrata as impulsos mais primitivos comlms aos homens. criando lUll universo patol6gico,

desagradavel. que trata dos desejos inconscientes e daB conflitos nfio resolvidos. Como

vimos nos capitulos anteriores, enquanto a plano da realidade fornece rflpidas informa96es

sobre 0 que se pasaa na atualidade de AIa1de.a plano da alucina~ao e mem6ria altemam-se

oa fiU1~aOde mostrar com liberdade e fantasia 0 mWldointerno da personagem. levando fa

cenamomentosde seu passado e de sua imagina~a.o.

II Carmine Martuscello e psiquiatra e psicoterapeuta de orienta9Ao psicanalltica Participoudri09 anos no ensino medio junto a cadeira de Psiquialria da Faculdade de Medicina de vassouras.

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Ao analisar Vestido de Noiva sob uma 61ica psicanalitica, Cannine Martuscello

desenvolve a ideia que a twnultuada disputa amorosa entre duas innas, pelo mesmo homem.

estabelecendo urn relacionamento triangular, nucleo principal que aciona os acontecimentos

e detennina 0 comportamento das personagens. 0 aulor tambem comenta 0 papal de alter

ego que Clessi traz consigo ao ajudar Alaide com a reconstitui¥Ao dos epis6dios de seu

passado. 0 autor comenta tambem 0 reconhecimento do sentimento de perda quando Alaide

reconstr6i modificada a cena do casamento, entregando Pedro a inna. Segundo 0 autor, 0

roubo do arnor de Pedro, por ai, ja recebe uma conota9ao ligada ao desejo de Alaide a

proalitui¥Ao. Ate mesmo Pedro julga Alafde desse modo:

Pedro (sardfmico) - Era /ouca gor toda mulher que n6'o prestava. Viviame falando de C/essi. Uma desequilibrada! I

Com 0 desfecho da pe9a, Pedro opla em ficar com Lucia, 0 que nos leva a

conclusAo de que Alaide reconhece em sua innH. a condi~a.o de esposa, indo lhe entregar 0

bouquet. Todo comportamento de LUcia e Pedro nos faz pensar que AIa1de cometera tun

suicidio, ainda que inconsciente, segundo MartusceHo. Alaide recebera vanas

demonstra9aes do interesse que tinham sua innH. e Pedro em sua morte, e isto pode ter

fimcionado para ela como urn sinal de exclusAo da dupla 0 fato de Alaide ter saldo

desatinada ap6s a discussao com LUcia, e demonstrativo de sua sensayH.o de derrola diante

da ligRfH.o que tomara conhecimento de existir entre eles. Dessa forma, Martuscello afirrna

que a matriz psicol6gica mais rudimentar do triftngulo amoroso continua sendo 0 Complexo

de Edipo e seu enonne poder de refor~ar no psiquismo a ambiva1€mcia em rela~fto aos pais.

Durante esta analise, 0 aulor afinna que a preocup~fio com 0 delineamento das personagens

dentro de caracteres rigorosamente presos a [email protected], nao fazem parte da dramaturgia do

10 Vestido de Noiw,p. 165.

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texto. Ao contrario, as personagens se mnntembanhaclasna mesma atmosfera de devaneio e

onirismo em que se passa toda a 39aO.E concIui que Alaide. LUcia e Clessi podem ser

consideradas personagens que altemam-se Duma fun~ao de compiementar aspectos da

personalidade da outra A psican81isenao e tun dado cientifico, nem wna reflexao pessoal

sobre a conduta do homem, mas apenas 0 suporte sobre 0 qual se constr6i 0 edificio

dramatico.Nelson Rodrigues expiara realmente Da obra 0 mWldodo incoDsciente.Mais do

que isso, estabelece wna especie de paralelo entre os mecanismos da psique e os do teatro.

Nao e por acaso que 0 plano principal e 0 da alucjna~ao, e a partir dele, e das rel~()es que

estabelece com os outros pianos. e que a pe~a se constr6i no mais profundo campo dos

soubos e devaneios.

4. A OBSESSAO PELA MORTE

"Nilo conhefo nada mais falso do que 0 instinto de conservafilo. E wninstinto que Deus negou ao homem. Na verdade, cada wn de nos vive crfandopretroos para morrer. 0 cigarro que sefoma, a cerveja que se bebe. que e isso, sentloa nostalgia da morU? 0 homem t trisle, nilo porque morre, mas porque vive".

(Nelson Rodrigues)

o desejo nao obedece a regras de nenhwnaordem no universo rodrigueano. Suas

personagens atuamturbilhonadas por uma compuisfto.com urna voragern que escapa a esfera

das atitudes racionais. AMmda for~a inapelavel do sexo, nofamos naBcriaturas de Nelson

urnfascfnio pela marte. Muitas vezes imbricadas. essas fOf98S intrigampela sua truculeocia

e destrutibilidade.

A morte, como urn dos pilares basicos oode se sustenta 0 teatro de Nelson

Rodrigues, assume 0 carnter de medit~llo sobre 0 amor e sobre a morte, tomando-se uma

constanteoa dramaturgiado autor - terna, alias afirn a rnotivos romanticos e rnelodramaticos.

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responde pelos pactos de morte entre as personageos apaiXODadas. Coocretizados ou oao~

eles aparecem no texto:

Clessl (carinhosa e maternal) - Eugosto de \lOC~ porque \lOC~ e crian~a!T!lo criaJJ~al

Fulano (suplicante) - Vail Vamos 00 piqueniqll€. amonh6?Clesst (neg/igente) - Onde e?FulanQ - Paqueta. Todo mundo val no borco das dez ...ClessI- NIlo.FuJano (suplieante) - Amanh6 e domingo!Clesst (sem lhe dar atem;ffo) - Tffo branco - 17 anos! As mulheres so

deviom amar menlnos de 17 anos!Pulano (sempre imp/orando) - Nao mude de asswltoi Vai? (zangado) Nao

pe~o maislelessi (com dO~U1'a)- Amanh6, nfio. Tenho urn compramisso.FulaTlo (metgo e suplicante) - E aquilo que eu lhe dlsse?Clesst - Ntio me lembro! 0 qul?Fulano (me/go e supJiconte) Quer morrer eomlgo? Fazer um pacto como

aqueles dois namorados da Tijuca?C/es:rl (sempre lema) - Lindol Tern os cabelos tI[ojinosl11

Nos impasses de suas crises~ 0 assassfnio e 0 suicidio sao as op~Bes 6bvias~ os

pactos de morte solu~Bes que ocorrem com naturalidade. Muitas personagens vivem a sua

morte antecipada, au ainda a vingan~a, 0 poder demonlaco da imprensa, 0 dinheiro como

corruptor, ievam-nas a morte raramente natura1. As familias sao compietadas pelos seus

mortos que pesam sobre as vivos e Ihes habitam a imagin~H.o e sonhos. No universo

rodrigueano. oito s6 os mortos, as vivos tambem tern ar de fantasmas. No prime ira momento,

acreditamos que a morte surja como uma pwU~ao que da a vit6ria final 80 principio moral.

Mas, se aprofimdannos nossa amllise, percebemos que a morte DaO se coloca como castigo.

mas como wna fina1iza~a.o necessaria do conflito.

o estranho lmiverso para 0 qual 0 leitor/espectador e transportado e a morte 0

elemento oode se banha 0 amor e nAo choca 0 encerramento da pefa entremeada de acordes

II Ibid, p. 136.

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runebres e marcha nupcial que acompanharna novo casal ao altar. Nelson tinha urnprofunda

sentimento rnitico da realidade. A morte, no sell teatro. DaO e apenas lUna expressao de

morbidez. E a representa~[o de urn rito de passagem. A liga~ao entre 0 arnor e morte e

evidenciada alraves do uso do signo sonoro de entrela~runento das marchas :funebre e

nupcial que acompanharna casal ao altar.

A atmosfera sobrenatural, criada pela intera~ao de movimento, da luz e da

superposi~a.ode planas, sugere a irrevogabilidade da morte e a ironia do titulo. 0 titulo

destape!faaltamente simb6lico. no qual 0 Vestido de Noiva e transformado pelo drarnaturgo

Dumsigna de pureza, inoc~nciae, tambem,numaveste runebre.

Assim sendo. 0 arnor e amorte sao as patarnares de sustenta~ao da existencia do

homem.A cren~a no arnor etemo e a rejei~ao da fatalidade da morte se imbricarn com a

necessidade de HbertaQoo.

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VIII. 0 PAPEL ATIVO DO LEITORIESPECTADOR

"NOs sahemos que 0 sujeito mais livre do mundo e 0 leitor. Nadainterfere no pudor, no exc1u.sividade e no inocencia de sua relat;lfo com a obra escrita.£SId so, espalliosamente so, com 0 sanela, () romance au. 0 lex/a drama/ieo. Jd 0espec/ador e 0 mats comprometido, 0 mais impuro e, por outro tado, 0 menosinteligenle dos seres. (...) 0 autor do 5UCi!SSO e a plateia".

(Nelson Rodrigues)

A impossibilidade de identifica~ao catru-tica entre a personagem rodrigueana e 0

leitor/espectador, fi"uto da desfigural([o do tnigico, constitui lral(o permanente Da obm. Ao

longo de DOSSO estudo temas vista varios procedimentos e recursos litenrrios promotores

dessa desfigur3fao: 0 banal, 0 efeito gratesco, 0 exagero, 0 acumulo, as :frases feitas. a

linguagem peculiar.

E interessante observar que, tecnicamente, a atmosfera de misterio aumenta 0

valor da narrativa 0 leitor/espectador v~ as cenas 5e desenrolarem diante de sues olhos e

acompanha,. muitas vezes 8em entender. a evolu~tio dos acontecimentos. 0 leitorlespectador

se descobre, ele mesmo wn enigma A obra se desenrola como enigma e assim pOe em

questa.o nao s6 as certezas. mas os pr6prios limites de sua condilfao humana, vividos em

cena e postos em jogo na alfao dramatica, sendo ele parte integrante, elemento direcional do

jogo de comunicalfao e urn participante ativo da interpretalfc10 do texto. Portanto, a partir de

urn certo n6mero de informalfOes. contidas na estrutura profunda da obra, 0 leitor/espectador

vai progressivamente reconstruindo 0 nllmdo criado pelo autor.

Vestido de noiva apresenta~se ao leitor/espectador. como define Dacio de

Almeida Prado 1, como urn "quebra-cabelfa intelectuat". eabe ao leitor/espectador tirar

t Decio de Almeida Prado foi professor de Hist6na do Teatro oa Escola de Arte Dramatica ede Literatura Brasileira na Universidade de Silo Paulo, Entre suas obms, destacamos Thatro em Prog resso(1964) e 0 Tealro Brasi1eiroModerno (1988).

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dessa confusao de eventos, sensa~aes e sentimentos, uma hist6ria coerente, aquilo que

realmente aconteceu com Alafde antecedendo 0 acidente. 0 texto apresenta a trama de

maneira a nos manter presos ao seu desenrolar. penetrando ourn certo Wliverso obscuro, de

sentimentos inconfessados, disfonnes, descoDllmrus, irreconheciveis. Dessa fomIa, tanto a

leitor do texto dramatico, quanta 0 espectaclor que assiste a encena~a.o> sfio introduzidos oa

alma da personagem, atraves da mem6ria inconsciente de Alafde, captando 05 fragmentos de

passado que submergem em sua memoria, assim como as imagens que povoam a sonho

alucinat6rio, dentro do prazo curto decorrido entre seu intemamento no hospital e sua morte.

E interessante observar que, tecnicamente, confonne a hist6ria se desenvolve, atUflenta 0

fator surpresa da trama 0 leitor/espectador acompanha as cenas, muitas vezes, sem

entender, e in\. decifrar 0 texto utilizando run sistema complexo de c6digos que comandam a

escrita e a encena~ao.

Era inten~ao do autor que 0 leitor/espectador partlcipasse como personagem daohra:

''A platela sofria tanto quanto a personagem e como se fosse tambemper..·onagem. A partir do momento em que a platlla deixa de exislir como piatlla - eslarealizado 0 misterio teotra/. (. ..) 0 "teatro desagradavel" olende e hwnilha. Com 0

sofrimento esld criada a felarao magica. Nilo hd distamia. 0 espectador subiu aopalco e nllo tem a no~llo do propria idenlidade. Estd ali como hom em. E, depots,quando acaba tMO, e s6 entao, e que se faz a "disUincia crflica ", A grande vida daboa pe~a so come~a quando abaixa 0 pano. to momenta de fazer Ilossa medita~/Iosobre 0 amor e a mOfte ". 2

Dessa fanna, 0 leitorlespectador questiona, identifica-se, age e reage as

personagens e situa~Oes vivenciadas na ohra Como plateia,. 0 leitor/espectador abandons 0

comportamento critico para se relacionar com as personagens monstros, fetidos e

desagradAveis, criando wna cOlnLmhaa, empatia entre as personagens e plnteia. NAn devernos

esquecer que 0 teatro de Nelson Rodrigues, antes de tudo, e literalw"a A autenticidade de

Vestido de Noiva causa ainda rnais irnpressHo no espectndor do que ao leit~r.

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IX. CONCLUSAO

o REAL E 0 ONiRICO EM VESTmO DE NOIVA

Vestido de Noiva e a prime ira pe~a de Nelson Rodrigues a alca.l1YBr grande

Sllcesso, senda considerada marco da modema drwnatw"gia brasileira Sua importfincia para

as aries c8nicas e literarura nacionais e inquestiomivel, 0[0 apenas por discutir a mente

hWllnna, mas principrumente, por apresentnr umn nova estrutura a literatura drrumltica

A partir da elaborayflo deate estudo, podemos concluir que 0 texto introcluz uma

serie de inov~oes esteticas: oRo obedece as regras de lUlidade de tempo e espnyo. oncle se

sucedem ayoes simultfuIeas, aliadas ao uso de flashbacks, au seja, cortes quase

cinematogrMicos destinarlos a refnzer e revigorar 0 enredo. a cenBrio e dividido em tres

planos, cada urn caracterizando urn tipo de espayO no qual se pussn a ~flo: realidade,

a1ucin~ll.o e mem6ria A aydo drrunatica e aresuitunte do entrelal;:omento desses trE!-spIanos,

atraves do qual 0 autor rnostra claramente a fragmenta9H.o da mente hwnana e a busca da

pr6pria identidade.

Para criar os efeitos desejados, 0 alltor utilizou corajosamente a linguagem

simb61ica como recurso cenico para projetor imagens. gestos, sons e objetos com uma

teeniea inovadora e intensamente poMiea A partir da deeodific3fAo dos signos iingOlsticos e

das diversas tecnicas empregadas com liberdade de cria~flo pelo autor, pudemos

desenvolver urn estudo sobre os aspectos estetico-Iiterarios de que se comp6em a ohra

Recursos c@:nicos como as rubricas que eriam wna literatura paralela no texto dranuitico; 0

emprego de microfones e dos midos que contribuem para produzir urn efeito que pennite

wna inlerpenetra9lio dos pianos; as dinIogos sinteticos e incisivos que dAo 0 ritmo

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necessario e sublinham melb~r as linguagens do cotidiano; a presen9a do grotesco e do

hrunordilacerante que caracterizrun as personagens e situa96es disforrnes; 0 estranhamento

que causam no leitor/espectador algo como wna disponibilidade para se entregar a

experiencia que 0 teatro vai prop~r, sAo recursos que rompem com os padr6es esteticos

fonnais da literatura dramatica Dessa fonna, Nelson Rodrigues poe em cena as paixoes da

carne e da alma Atraves de lUlla visao pessimistn, em que 0 autor nos apresenta a

impossibilidade de se atingir a plenitude, podemos observar a existencia de wna contesta93.0

a opressao individual e social. A obra recria com acuidade e crueza urn cotidiano da classe

media carioca, atraves do qual 0 autor expOe a nahlfeza hwnann, com raro domin.io do

tr<igicoe do grotesco, com wna dose de lirismo e ironia Assim, Vestido de Noiva eria

personagens tao misteriosas como sao as pessoas humanasna sua concrehlde. Disseca a alma

femininanas suas mfnimas sutilezas e as recalques psicol6gicos que envolvem complicados

relacionamentos entre sexos opostos. Emprega a tecnica do substituto do diva e da mesa de

operayao, oodeAlafde expOea nu todas as vertentes da paixao hwnana

A partir desse eshldo concluimos que a filsao entre a estrutura dramatica e a

escrila cenica dos elementos simb6licos em Vestido de Noiva e Hio completa e inovadora

que rompeu de vez com a estrutura tradicional da narrativa dramatica Nelson Rodrigues foi

capaz de projetar no palco imagenshumanasque transitam entre reais e oniricas, nascidas de

sua inquietante imagina9{1o.Se 0 autor de Vestido de Noiva, mais de meio seculo ap6s a

estreia da pe~n, continua presente para a maioria dos crfticos e dos encenadores como 0

mais atual drrunaturgo brasileiro, e certamente porque Nelson Rodrigues ousou ao

desenvolver uma narrativa instigante, que iotroduziu uma serie de inova~Bes esteticas it

literatura.dramMicanacional, cujo valor e incontestavel.

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