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Ordem Livre | Herbert Spencer 1 ORDEM LIVRE ENSAIOS

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Ordem Livre | Herbert Spencer 1

ORDEM

LIVRE ENSAIOS

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Reunião de Ensaios Disponíveis no Site www.ordemlivre.org

Organização: Igor C. Franco

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Índice

VÍCIOS NÃO SÃO CRIMES: UMA VINDICAÇÃO DA LIBERDADE MORAL ..................................................... 4

LYSANDER SPOONER

O DIREITO DE IGNORAR O ESTADO ........................................................................................... 20

HEBERT SPENCER

OBJEÇÕES À INTERVENÇÃO GOVERNAMENTAL ............................................................................. 25

JOHN STUART MILL

QUE ESPÉCIE DE DESPOTISMO DEVEM TEMER AS NAÇÕES DEMOCRÁTICAS ............................................ 27

SOBRE O SOCIALISMO ........................................................................................................... 30

ALEXIS DE TOCQUEVILLE

POR QUE NÃO SOU CONSERVADOR .......................................................................................... 36

O USO DO CONHECIMENTO NA SOCIEDADE ................................................................................. 47

F. A. HAYEK

AS TENDÊNCIAS NOS ASSUNTOS HUMANOS ................................................................................ 55

MILTON E ROSE FRIEDMAN

OS FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DA LIBERDADE .......................................................................... 59

LIVRE COMÉRCIO ................................................................................................................. 63

LUDWIG VON MISES

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VÍCIOS NÃO SÃO CRIMES

VÍCIOS NÃO SÃO CRIMES: UMA VINDICAÇÃO DA

LIBERDADE MORAL

LYSANDER SPOONER

I. Vícios são aqueles atos pelos quais um homem prejudica a si mesmo ou sua propriedade. Crimes são aqueles atos pelos quais um homem prejudica a pessoa ou a propriedade de outrem. Vícios são simples erros cometidos por um homem em sua busca pela felicidade. Ao contrário dos crimes, eles não implicam nenhuma malícia em relação aos outros e nenhuma interferência em suas pessoas ou propriedades. Nos vícios, a própria essência do crime — isto é, o desejo de prejudicar a pessoa ou a propriedade de outrem — inexiste. É uma máxima da lei a de que não é possível haver crime sem intento criminoso; isto é, sem o intento de invadir a pessoa ou a propriedade de outrem. Porém, ninguém jamais pratica um vício com tal intento criminoso. Pratica-se um vício visando-se a própria felicidade tão-somente, e não por qualquer malícia em relação aos outros. A não ser que essa clara distinção entre vícios e crimes seja feita e reconhecida pelas leis, não é possível que existam na terra quaisquer direitos, liberdades ou propriedades individuais; quaisquer direitos de um homem de controlar sua pessoa e propriedade, e o correspondente e igual direito de outro homem de controlar sua pessoa e propriedade. Quando um governo declara que um vício é um crime, e o pune como tal, há uma tentativa de falsear a própria natureza das coisas. É tão absurdo quanto seria uma declaração de que uma verdade é uma mentira ou de que uma mentira é uma verdade.

II. Todo ato voluntário da vida de um homem ou é virtuoso, ou é vicioso. Isto significa dizer que eles estão de acordo ou em conflito com as leis naturais da matéria e da mente, sobre as quais sua saúde física, mental e emocional e bem-estar dependem. Em outras palavras, todo ato de sua vida tende a levar, pelo todo, a sua felicidade ou a sua infelicidade. Nem um único ato em toda a sua existência é indiferente. Além disso, cada ser humano difere de todos os outros seres humanos em sua constituição física, mental e emocional, e também pelas circunstâncias pelas quais é envolvido. Portanto, muitos atos que são virtuosos e tendem a levar à felicidade no caso de uma pessoa são viciosos e tendem a levar à infelicidade no caso de outra. Similarmente, muitos atos que são virtuosos e tendem a levar à felicidade no caso de um homem, num dado momento, sob um conjunto de circunstâncias, são viciosos e tendem à infelicidade no caso do mesmo homem, em outro momento, sob outras circunstâncias.

III. Saber quais ações são virtuosas e quais são viciosas — em outras palavras, saber quais ações tendem a levar, no todo, à felicidade, e quais tendem a levar à infelicidade — no caso de cada um dos homens, em cada uma

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VÍCIOS NÃO SÃO CRIMES

das situações nas quais eles se encontrem, é o estudo mais profundo e complexo ao qual a maior mente humana já pôde ou jamais poderá se dedicar. É, contudo, o estudo constante ao qual todos os homens — tanto o mais humilde em intelecto quanto o maior — são necessariamente levados pelos desejos e necessidades de sua própria existência. É também o estudo do qual todas as pessoas, desde seus berços até seus túmulos, precisam tirar suas próprias conclusões; porque ninguém mais sabe ou sente, ou pode saber ou sentir, o que outro homem sabe ou como ele se sente, os desejos e necessidades, as esperanças e medos, os impulsos da natureza de outra pessoa ou a pressão das circunstâncias à que ela está submetida.

IV. Freqüentemente não é possível dizer que aqueles atos que são chamados de vícios realmente o sejam, exceto em grau. Isto é, é difícil dizer que quaisquer ações, ou cursos de ação, que são chamadas de vícios, são realmente vícios se paradas antes de certo ponto. A questão da virtude ou do vício, portanto, em todos esses casos, é uma questão de quantidade e grau, e não do caráter intrínseco de qualquer ato único, por si mesmo. Este fato se soma à dificuldade, para não dizer à impossibilidade, para qualquer um — exceto para o próprio indivíduo — estabelecer uma linha exata, ou qualquer coisa como uma linha exata, entre a virtude e o vício; isto é, dizer onde acaba a virtude e começa o vício. E esta é outra razão por que toda essa questão da virtude e do vício deva ser deixada para cada pessoa decidir por si mesma.

V. Vícios são normalmente prazerosos, pelo menos no momento em que se passa, e freqüentemente não se revelam como vícios, por seus efeitos, senão depois de serem praticados por muitos anos, talvez por uma vida inteira. Para muitos, talvez para a maioria, daqueles que os praticam, eles jamais se revelam como vícios durante a vida. As virtudes, por outro lado, freqüentemente parecem tão duras e severas, requerem o sacrifício de tanta felicidade presente, e os resultados, os quais provam que elas são virtudes, estão freqüentemente tão distantes e obscuros, tão absolutamente invisíveis às mentes de muitos, especialmente às dos jovens, que, pela própria natureza das coisas, não pode haver conhecimento universal, ou mesmo geral, de que são virtudes. Na verdade, estudos de profundos filósofos foram empreendidos — senão totalmente em vão, certamente com resultados bem pouco expressivos — para delimitar a fronteira entre as virtudes e os vícios. Então, se é tão difícil, quase impossível, na maioria dos casos, determinar o que é e o que não é um vício; se é tão difícil, em quase todos os casos, determinar onde termina a virtude e começa o vício; e se essas questões, às quais ninguém pode realmente e verdadeiramente resolver senão para si mesmo, não devem permanecer livres e abertas para experimentação por todos, cada pessoa é privada do maior de seus direitos como ser humano, a saber: seu direito de inquirir, investigar, raciocinar, experimentar, julgar e determinar por si mesmo o que é, para si, uma virtude, e o que é, para si, um vício; em outras palavras: o que, no todo, conduz à sua felicidade, e o que, no todo, conduz à sua infelicidade. Se este grande direito não permanecer livre e aberto a todos, então todos os direitos do homem, como seres humano racionais, à "liberdade e à busca pela felicidade" são negados.

VI. Todos nós vimos ao mundo em ignorância de nós mesmos e de tudo a nossa volta. Por uma lei fundamental de nossa natureza, todos somos constantemente impelidos pelo desejo de alcançar a felicidade e pelo medo sofrer a dor. Mas nós temos tudo a aprender quanto ao que pode nos trazer a felicidade e evitar a dor. Nenhum de nós é totalmente igual a outra pessoa, física, mental ou emocionalmente; ou, conseqüentemente, em nossos requerimentos físicos, mentais ou emocionais para a aquisição da felicidade e para a evasão da infelicidade. Nenhum de nós, portanto, pode aprender essa indispensável lição da felicidade e da infelicidade, da virtude e do vício, através de outra pessoa. Cada um deve aprender por si mesmo. Para aprendê-la, o indivíduo precisa ter liberdade de tentar todas as experiências que são recomendadas por seu julgamento. Algumas de suas experiências terão sucesso e, por conta desse sucesso, são chamadas de virtudes; outras falham e, por causa dessa falha, elas são chamadas de vícios. Ele acumula conhecimento tanto através de suas falhas quanto através de seus sucessos; tanto através de seus vícios quanto de suas virtudes. Ambos são

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necessários para sua aquisição do conhecimento — de sua própria natureza, do mundo que o envolve e de suas adaptações ou não-adaptações um com o outro — que mostrará a ele como a felicidade é alcançada e a dor evitada. E, a não ser que ele possa tentar essas experiências para sua própria satisfação, sua aquisição de conhecimento é restringida e, conseqüentemente, também o é a busca do grande propósito e dever de sua vida.

VII. Um homem não tem obrigação alguma de aceitar a palavra de alguém, ou de dar autoridade a alguém, numa questão tão vital para si mesmo, em relação à qual ninguém mais tem ou pode ter tanto interesse quanto ele. Ele não pode seguramente confiar nas opiniões de outros homens, porque ele vê que as opiniões dos outros homens não são as mesmas. Certas ações ou cursos de ação têm sido praticadas por muitos milhões de homens, através de sucessivas gerações, e foram consideradas por eles como sendo, no todo, conducentes à felicidade e, portanto, virtuosas. Outros homens, em outras eras ou países, ou sob outras condições, consideraram, como resultado de suas experiências e observações, que essas ações conduziam, no todo, à infelicidade e que, portanto, eram viciosas. A questão da virtude e do vício, como já se notou numa seção anterior, também tem sido, na maioria das mentes, uma questão de grau; isto é, da extensão à qual certas ações devem ser executadas, não do caráter intrínseco de qualquer ato individual em si. As questões da virtude e do vício, assim, têm sido tão variadas e, de fato, tão infinitas quanto as variedades da mente, dos corpos e das condições dos diferentes indivíduos que habitam o mundo. E a experiência das eras deixou um número infinito dessas questões não resolvidas. Na verdade, mal se pode dizer que alguma tenha sido resolvida.

VIII. No meio dessa infindável variedade de opiniões, que homem ou conjunto de homens tem o direito de dizer, em relação a qualquer ação ou curso de ação particular "Nós fizemos esse experimento e resolvemos todas as questões envolvidas nele. Nós as resolvemos não apenas para nós mesmos, mas para todos os homens. E todos aqueles que forem mais fracos que nós serão coagidos a agir em obediência a nossa conclusão. Não serão feitas mais quaisquer experiências ou pesquisas por ninguém, e, conseqüentemente, não haverá mais aquisição de conhecimento por ninguém"? Quais os homens que têm o direito de dizer isso? Certamente não há nenhum. Os homens que de fato dizem isso são grandes impostores e tiranos que impediriam o progresso do conhecimento e usurpariam o absoluto controle sobre as mentes e os corpos dos outros homens; deve-se, portanto, resistir a eles imediatamente e até o fim; eles são demasiado ignorantes em relação às próprias fraquezas e em relação às suas relações com os outros homens para serem dignos de algo que não piedade ou desprezo. Nós sabemos, porém, que existem tais homens no mundo. Alguns deles tentam exercer seus poderes somente dentro de uma pequena esfera: sobre seus filhos, sobre seus vizinhos, sobre aqueles que moram em sua cidade e sobre seus compatriotas. Outros tentam exercê-lo numa maior escala. Por exemplo, um velho homem em Roma, auxiliado por alguns poucos subordinados, tenta decidir todas as questões sobre virtudes e vícios; isto é, sobre a verdade e a falsidade, especialmente em questões religiosas. Ele diz saber e poder ensinar que idéias e práticas religiosas são conducentes ou fatais à felicidade do homem, não apenas neste mundo, mas também naquele que está por vir. Ele diz ter sido milagrosamente inspirado para executar tal trabalho; ele reconhece assim, sensatamente, que nada além de uma inspiração milagrosa poderia qualificá-lo para isso. Essa inspiração, no entanto, tem sido inútil para capacitá-lo para resolver mais que algumas poucas questões até aqui. O máximo que os mortais comuns podem ter é uma crença implícita em sua (do papa) infalibilidade! E, em segundo lugar, que os piores vícios de que eles podem ser culpados são o de acreditar e o de declarar que o papa é apenas um homem como todos os outros! Foram necessários quinze ou dezoito séculos para que ele fosse capaz de alcançar conclusões definitivas quanto a esses dois pontos vitais. No entanto, parece que o primeiro deles deve ser preliminar à resolução de quaisquer outras questões, porque, até que sua própria infalibilidade seja estipulada, ele não possui autoridade decidir nada. Ele tem, entretanto, até hoje tentado ou fingido resolver algumas outras questões. E ele pode, talvez, tentar ou fingir resolver algumas outras no futuro, se continuar a encontrar pessoas que o escutem. Mas

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seu sucesso, até aqui, certamente não encoraja a crença de que ele será capaz de resolver todas as questões sobre a virtude e o vício, mesmo em seu peculiar departamento religioso, em tempo de responder às necessidades da humanidade. Ele, ou seus sucessores, sem dúvida serão compelidos, num dia não muito distante, a reconhecer que ele assumiu uma tarefa à qual toda a sua inspiração milagrosa era inadequada; e que, necessariamente, todo ser humano deve ser deixado para resolver todas as questões desse tipo por si mesmo. Não é despropositado esperar que todos os outros papas, em esferas diferentes e mais baixas, terão motivos para chegar à mesma conclusão. Ninguém, certamente, sem alegar ter inspirações sobrenaturais, deveria assumir uma tarefa à qual obviamente nada menos que essa inspiração seja necessária. E, claramente, ninguém deveria abdicar de seu próprio julgamento em favor dos ensinamentos dos outros, a não ser que estivesse convencido de que esses outros possuem mais do que o conhecimento normal do assunto em questão. Se essas pessoas, que consideram possuir tanto o poder quanto o direito de punir os vícios dos outros, voltassem seus pensamentos para si mesmas, elas provavelmente veriam que têm muito trabalho para fazer em casa; e que, quando esse trabalho for completado, eles não terão disposição para fazer mais do que deixar que os outros conheçam os resultados de suas experiências e observações. Nesta esfera, seus esforços podem ser úteis; mas na esfera da infalibilidade e da coerção, elas, por razões bem conhecidas, provavelmente terão ainda menos sucesso no futuro do que tiveram os homens do passado.

IX. É óbvio agora, pelas razões já apresentadas, que o governo seria completamente impraticável se fosse tomar conhecimento dos vícios e puni-los como crimes. Todo ser humano tem seus próprios vícios. Quase todos os homens têm muitos. E eles são de todos os tipos; fisiológicos, mentais, emocionais; religiosos, sociais, comerciais, industriais, econômicos, etc., etc. Se o governo deve tomar conhecimento de quaisquer desses vícios e puni-los como crimes, então, para ser consistente, deve tomar conhecimento de todos eles e puni-los imparcialmente. A conseqüência seria a de que todos estariam na prisão por seus vícios. Não haveria ninguém livre para trancar as portas daqueles que estivessem atrás das grades. De fato, não existiriam suficientes cortes para processar os réus, nem prisões suficientes para abrigá-los. Toda a empreitada humana de aquisição de conhecimentos, e até mesmo de aquisição dos meios de subsistência, seria eliminada: pois todos nós seríamos constantemente processados e estaríamos sempre aprisionados por nossos vícios. Mas mesmo se fosse possível aprisionar todos os viciosos, nosso conhecimento da natureza humana nos diz que, via de regra, eles seriam muito mais viciosos na prisão do que jamais foram fora dela.

X. Um governo que puna todos os vícios imparcialmente é uma impossibilidade tão óbvia que ninguém jamais foi, ou jamais será, tolo o suficiente para propô-lo. O máximo que alguns propõem é que os governos devessem punir algum, ou no máximo alguns, vícios considerados mais grosseiros. Mas essa discriminação é completamente absurda, ilógica e tirânica. Que direito tem qualquer conjunto de homens de dizer "Os vícios dos outros homens nós puniremos, mas nossos próprios vícios ninguém punirá. Nós impediremos que os outros homens busquem sua própria felicidade de acordo com suas convicções, mas ninguém poderá nos impedir de buscar nossa própria felicidade de acordo com nossas próprias convicções. Nós impediremos que outros homens adquiram qualquer conhecimento experimental do que é conducente ou necessário às suas próprias felicidades, mas ninguém poderá nos impedir de adquirir conhecimento experimental daquilo que é conducente ou necessário à nossa própria felicidade"? Ninguém além de tratantes ou estúpidos jamais tem pretensões absurdas como essas. E, no entanto, evidentemente, é somente com esse tipo de pretensão que uma pessoa pode alegar ter o direito de punir os vícios dos outros e, ao mesmo tempo, alegar ser ela mesma isenta da punição.

XI.

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Algo como um governo, formado por uma associação voluntária, nunca teria sido imaginado se o objetivo proposto tivesse sido a punição de todos os vícios imparcialmente; porque ninguém deseja tal instituição ou estaria disposto a se submeter voluntariamente a ela. Mas um governo, formado por uma associação voluntária, para a punição de todos os crimes é uma idéia razoável; porque todos desejam para si proteção contra todos os crimes cometidos pelos outros, e também reconhecem a justiça de sua punição, se cometem um crime.

XII. É uma impossibilidade natural que o governo tenha o direito de punir os homens por seus vícios; porque é impossível que um governo tenha quaisquer direitos, exceto aqueles que os indivíduos que o compõem tinham anteriormente, enquanto indivíduos. Eles não poderiam delegar a um governo quaisquer direitos que eles próprios não possuíssem. Eles não poderiam contribuir ao governo com quaisquer direitos, exceto com aqueles que eles mesmos possuíam como indivíduos. Agora, ninguém, a não ser um tolo ou um impostor, pretende ter, como indivíduo, o direito de punir outros homens por seus vícios. Mas todos têm um direito natural, enquanto indivíduos, de punir os outros homens por seus crimes; pois todos têm um direito natural não apenas de defender suas pessoas e propriedades de agressores, mas também de assistir e defender todos os outros cujas pessoas ou propriedades sejam invadidas. O direito natural de cada indivíduo de defender sua própria pessoa e propriedade contra uma agressão, e de ir em assistência e em defesa dos outros que têm suas pessoas ou propriedades invadidas, é um direito sem o qual nenhum homem poderia existir na terra. E o governo não tem existência legítima, exceto quando incorpora e é limitado por esse direito natural dos indivíduos. Mas a idéia de que cada homem tem um direito natural de decidir o que são virtudes e o que são vícios — isto é, o que contribui para sua felicidade e o que não contribui —, e que deve ser punido por tudo aquilo que faz que não contribui para sua felicidade, é algo que ninguém jamais teve a impudência ou a estupidez de dizer. Somente aqueles que alegam que o governo tem algum poder legítimo, o qual nenhum indivíduo ou grupo de indivíduos jamais delegou ou poderia delegar a ele, alegam que o governo tem qualquer poder legítimo de punir vícios. É suficiente para um papa ou para um rei — que diz ter recebido sua autoridade diretamente do Paraíso para governar os outros homens — alegar possuir o direito, como enviado de Deus, de punir os homens por seus vícios; mas é um gritante e completo absurdo que qualquer governo que alegue derivar seu poder do consentimento de seus governados, pretender ter tal poder; porque todos sabem que os governados nunca poderiam concedê-lo. Eles o concederem seria uma absurdidade, porque seria a concessão de seus próprios direitos de buscar suas próprias felicidades, uma vez que ceder o direito de julgar o que é conducente para suas felicidades é o mesmo que abrir mão de todo o direito de buscar a própria felicidade.

XIII. Nós agora podemos ver quão simples, fácil e razoável é um governo que puna crimes, em comparação a um que puna vícios. Crimes são poucos, e facilmente distinguíveis de todos os outros atos; e a humanidade geralmente concorda quanto a quais atos são crimes. Em contraste, vícios são inúmeros; e não há duas pessoas que concordem, exceto em comparativamente poucos casos, quanto a o que são vícios. Além disso, todos desejam ter suas pessoas e propriedades protegidas contra a agressão de outros homens. Mas ninguém deseja ter sua pessoa e propriedades protegidas contra si mesmo; porque é contrário às leis fundamentais da natureza humana que alguém deseje prejudicar a si próprio. O indivíduo só deseja promover sua própria felicidade e ser seu próprio juiz quanto a o que promoverá, e pode promover, sua felicidade. Isso é o que todos desejam e a que têm direito como seres humanos. E embora nós todos cometamos muitos erros, e necessariamente devamos cometê-los dada a imperfeição de nosso conhecimento, esses erros não são argumento contra o direito, porque eles todos tendem a nos dar o próprio conhecimento de que precisamos, que buscamos e que não podemos adquirir de outra forma. Logo, o objetivo de punir crimes não só é totalmente diferente do objetivo de punir vícios, mas se opõe diretamente a ele. A punição de crimes pretende assegurar a todo homem a maior liberdade de que ele possa desfrutar — em consistência com os iguais direitos dos outros — para buscar sua própria felicidade através do uso de seu

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próprio julgamento e de sua própria propriedade. Por outro lado, a punição de vícios pretende privar todo homem de seu direito e de sua liberdade naturais de buscar sua própria felicidade através do uso de seu próprio julgamento e de sua propriedade. Estes dois objetivos, portanto, estão em direta oposição um ao outro. Eles se opõem tão diretamente quanto a luz e a escuridão, a verdade e a mentira ou a liberdade e a escravidão. São completamente incompatíveis um com o outro, e a pretensão de que os dois sejam adotados pelo mesmo governo é uma absurdidade, uma impossibilidade. Seria como pretender que os cidadãos de um governo cometessem crimes e impedissem crimes; que destruíssem a liberdade individual e protegessem a liberdade individual.

XIV. Finalmente, sobre a liberdade individual: todo homem deve necessariamente julgar e determinar para si o que é conducente e necessário a seu próprio bem-estar e o que o destrói; pois, se ele se omite da realização desta tarefa para si mesmo, ninguém mais pode realizá-la. E ninguém mais tentaria realizá-la para ele, a não ser em alguns poucos casos. Papas, padres e reis pretenderão realizá-la para ele em certos casos, se tiverem permissão para isso. Mas eles só a realizarão de forma que, ao fazê-la, possam auxiliar no cometimento de seus vícios e crimes. Em geral, eles somente a realizarão para fazerem o homem de idiota ou para o tornarem seu escravo. Pais, com melhores motivos que os outros, sem dúvida, também tentam freqüentemente fazer o mesmo trabalho. Quando coagem ou obrigam uma criança a se abster de fazer algo que não seja realmente perigoso para ela, lhe fazem um mal, não um bem. É uma lei da Natureza a de que, para adquirir conhecimento e para incorporar esse conhecimento em sua pessoa, cada indivíduo deve obtê-lo por si próprio. Ninguém, nem mesmo seus pais, podem lhe dizer qual é a natureza do fogo, de maneira que ele a conheça. Ele precisa experimentá-lo, ser queimado pelo fogo, antes que possa conhecer sua natureza. A Natureza sabe, mil vezes melhor que qualquer pai, a que ela tornou apto cada indivíduo, que conhecimento ele requer e como ele deve obtê-lo. Ela sabe que os processos que utiliza para comunicar esse conhecimento não são apenas os melhores, mas os únicos que podem ser efetivos. As tentativas dos pais de tornarem virtuosos seus filhos em geral nada mais são que tentativas de mantê-los em ignorância dos vícios. Nada mais são que tentativas de ensinar seus filhos a conhecer e preferir a verdade mantendo-os na ignorância das mentiras. Nada mais são que tentativas de impeli-los a buscar e apreciar a saúde mantendo-os na ignorância das doenças e de tudo o que causa doenças. Nada mais são que tentativas de fazer seus filhos amarem a luz mantendo-os na ignorância da escuridão. Ou seja, nada mais são que tentativas de tornar seus filhos felizes mantendo-os na ignorância de tudo o que os torna infelizes. Que os pais auxiliem seus filhos na busca destes pela felicidade, ao dar-lhes simplesmente os resultados de seus raciocínios e experimentos, é correto, natural e apropriado. Mas a prática da coerção em questões nas quais as crianças são razoavelmente competentes para julgar por si mesmas é apenas uma tentativa de mantê-las na ignorância. E esta é uma tirania tão grande, e uma violação tão grave do direito das crianças de adquirir conhecimento por si mesmas da forma que desejarem, quanto é a mesma coerção praticada sobre pessoas mais velhas. Tal coerção, praticada sobre crianças, é uma negação do direito delas ao desenvolvimento das faculdades que a Natureza lhes concedeu e do direito delas a serem o que a Natureza lhes capacitou para ser. É uma negação do direito delas a si mesmas e ao uso de suas próprias capacidades. É uma negação dos direitos delas à aquisição do mais valioso de todos os conhecimentos, a saber, o conhecimento que a Natureza, a grande professora, está pronta a conceder-lhes. Esta coerção não torna as crianças sábias ou virtuosas, mas as faz ignorantes e, conseqüentemente, fracas e viciosas; tal coerção perpetua através das crianças, de era para era, a ignorância, as superstições, os vícios e os crimes de seus pais. Isto é provado por toda página da história mundial. Os que sustentam opiniões contrárias a estas são aqueles cujas teologias falsas e viciosas, ou cujas idéias viciosas em geral, os ensinaram que a raça humana é naturalmente inclinada ao mal em vez do bem, ao falso em vez do verdadeiro; que a humanidade não volta naturalmente seus olhos para a luz, que ama a escuridão em vez da luz; que encontra sua felicidade apenas naquelas coisas que levam à sua miséria.

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XV. Mas estes homens que dizem que o governo deveria usar seu poder para impedir os vícios dirão, ou costumam dizer: "Nós reconhecemos o direito de um indivíduo a buscar sua felicidade à sua maneira e, conseqüentemente, o direito de ser tão vicioso quanto lhe aprouver; nós apenas defendemos que o governo proíba a venda para ele daqueles artigos usados por ele para cometer seus vícios." A resposta a isto é que a simples venda de qualquer artigo — independentemente do uso que é feito dele — legalmente é um ato perfeitamente inocente. A qualidade do ato de venda depende totalmente da qualidade do uso para o qual a coisa é vendida. Se o uso de determinada coisa é virtuoso e lícito, então a venda dessa coisa, para esse uso, é virtuoso e lícito. Se o uso que se faz dela é vicioso, então sua venda é também viciosa. Se seu uso é criminoso, então sua venda, para esse uso, é criminoso. O vendedor é, no máximo, um cúmplice no uso que é feito do artigo vendido, seja ele virtuoso, vicioso ou criminoso. Quando o uso que se faz é criminoso, o vendedor é cúmplice de um crime e é punível como tal. Mas quando seu uso somente é vicioso, o vendedor é somente cúmplice de um vício e, portanto, não é punível.

XVI. Mas se perguntará: "Não há o direito, da parte do governo, a impedir as ações daqueles que se inclinam à autodestruição?" A resposta é que o governo não tem quaisquer direitos na questão, dado que essas pessoas que são chamadas viciosas permaneçam sãs, compos mentis, capazes de exercer discernimento racional e autocontrole; pois, enquanto permanecerem sãs, elas devem poder julgar e decidir por si mesmas se o que se considera que são seus vícios são de fato vícios; se eles realmente as estão levando à destruição; e se, no todo, elas serão destruídas ou não. Quando se tornarem insanas, non compos mentis, incapazes de discernimento racional ou autocontrole, seus amigos ou vizinhos, ou o governo, devem cuidar delas e protegê-las de males e de todos aqueles que lhes infligiriam danos, da mesma maneira que fariam caso a insanidade lhes tivesse acometido por qualquer outra causa que não os supostos vícios. Porém, da suposição, por parte de seus vizinhos, de que um homem está no caminho da autodestruição, por causa de seus vícios, não se segue que ele seja insano, non compos mentis, incapaz de discernimento racional e autocontrole, de acordo com o significado legal destes termos. Homens e mulheres podem ser dados a vícios dos mais repugnantes, e a muitos deles — tais como a gula, o alcoolismo, a prostituição, a jogatina, as brigas, a mastigação de tabaco, o fumo, o uso do rapé, do ópio, o uso de espartilhos, a apatia, o desperdício, a avareza, a hipocrisia, etc., etc. —, e ainda assim serem sãos, compos mentis, capazes de discernimento racional e autocontrole, dentro do significado legal. E, enquanto forem sãos, devem poder controlar a si mesmos e suas propriedades, e serem seus próprios juízes quanto a onde seus vícios os levarão ao fim. Os observadores podem esperar, em cada caso individual, que o vicioso veja o fim para o qual ele tende e que seja induzido a modificar suas ações. Mas se ele escolher continuar no caminho chamado de destruição por outros homens, ele deve poder fazer isso. E tudo que se pode dizer sobre ele, em relação a sua vida, é que ele cometeu um grande erro em sua busca pela felicidade, e que os outros fariam bem em tomá-lo como exemplo. Em relação a sua condição em outra vida, esta é uma questão teológica com a qual a lei, neste mundo, não tem mais a ver do que tem com qualquer outra questão teológica relacionada com uma vida futura. Caso se pergunte como determinar a sanidade ou a insanidade de um homem vicioso, a resposta será: pelos mesmos tipos de evidência que determinam a sanidade ou insanidade daqueles que são chamados virtuosos, e de nenhuma outra forma. Isto é, pelos mesmos tipos de evidência pelos quais os tribunais legais determinam se um homem deve ser mandado a um asilo de lunáticos ou se ele tem competência para tomar decisões ou dispor de suas propriedades. Quaisquer dúvidas devem pesar em favor de sua sanidade, como em todos os casos, e não de sua insanidade. Se uma pessoa realmente se tornar insana, non compos mentis, incapaz de discernimento racional ou autocontrole, então é um crime que outros homens dêem ou vendam a ela os meios pelos quais ela pode ferir a si mesma.1 Não há crimes mais facilmente puníveis, não há casos nos quais os júris estariam mais prontos a

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condenar, que aqueles nos quais uma pessoa sã vende ou dá a um insano um artigo pelo qual este último provavelmente ferirá a si próprio.

XVII. Mas será dito que alguns homens se tornam, por conta de seus vícios, perigosos a outras pessoas; que um bêbado, por exemplo, às vezes é briguento e perigoso para sua família e outras pessoas. Perguntar-se-á: "Não tem a lei nada a dizer neste caso?" A resposta é: se, por conta de sua bebedeira ou por qualquer outra causa, um homem for de fato perigoso a sua família ou a outras pessoas, não apenas ele pode ter suas ações legitimamente reprimidas, tal como requer a segurança das outras pessoas, mas todas as outras pessoas — que sabem ou têm bases razoáveis para acreditar que ele é perigoso — podem ter reprimidos quaisquer de seus atos que forneçam os meios que podem torná-lo perigoso. Só que do fato de que um homem se torna briguento e perigoso após ingerir bebidas alcoólicas, e do fato de ser um crime dar ou vender bebidas a tal homem, não se segue que seja um crime vender bebidas a centenas de milhares de outras pessoas, que não se tornam briguentas ou perigosas ao bebê-las. Antes que um homem possa ser condenado de um crime por vender bebidas alcoólicas a um homem perigoso, deve-se demonstrar que aquele certo homem para quem se vendeu as bebidas era perigoso e que o vendedor sabia, ou tinha bases razoáveis para supor, que o homem se tornaria perigoso ao bebê-las. A presunção da lei é, em todos os casos, de que a venda é inocente; e o ônus da prova do crime, em todo caso particular, está com o governo. E o caso particular deve ser provado criminoso independentemente de todos os outros. A partir destes princípios, não há dificuldades em condenar e punir os homens pela cessão de quaisquer artigos a um homem que se torne perigoso pelo uso deles.

XVIII. Freqüentemente se diz que alguns vícios são transtornos (públicos ou privados), e que transtornos podem ser condenados e punidos. É verdade que qualquer coisa que de fato e legalmente for um transtorno (público ou privado) pode ser condenado e punido. Mas não é verdade que os meros vícios privados de um homem sejam, em qualquer sentido legal, transtornos a outros homens, ou ao público. Nenhum ato de uma pessoa pode ser um transtorno a outra, a não ser que obstrua ou interfira de alguma forma na segurança e tranqüilidade do uso ou gozo do que é legitimamente dela. O que quer que obstrua uma via pública é um transtorno e pode ser condenado e punido. Mas um hotel onde sejam vendidas bebidas, uma loja de bebidas ou mesmo um botequim não obstruem mais uma via pública do que um armazém comum, uma loja de jóias ou um açougue. O que quer que envenene o ar, o torne ofensivo ou insalubre é um transtorno. Mas nem um hotel, nem uma loja de bebidas, nem um botequim envenenam o ar ou o tornam ofensivo ou insalubre a outras pessoas. O que quer que obstrua a luz à qual um homem tem o direito legal é um transtorno. Mas nem um hotel, nem uma loja de bebidas, nem um botequim obstruem a luz de qualquer pessoa, a não ser nos casos em que uma igreja, uma escola ou uma residência igualmente a obstruem. Neste sentido, portanto, os primeiros não são transtornos maiores do que seriam os últimos.

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Algumas pessoas têm o hábito de dizer que uma loja de bebidas é perigosa da mesma forma que um armazém de pólvora é perigoso. Mas não há nenhuma analogia entre os casos. O armazém pode explodir acidentalmente, e especialmente por incêndios como os que freqüentemente ocorrem nas cidades. Por essas razões ele é perigoso para as pessoas e propriedades em sua vizinhança imediata. Mas bebidas não podem explodir dessa maneira, e portanto não são perigosos transtornos à sociedade como são os armazéns de pólvora nas cidades. Mas se diz, novamente, que locais para se beber freqüentemente estão cheios de homens barulhentos e violentos que perturbam a quietude da vizinhança e o sono do resto dos vizinhos. Isso pode ser verdade ocasionalmente, embora não freqüentemente. Mas quando isso ocorrer, em qualquer caso, o transtorno poderá ser suprimido pela punição do proprietário e de seus consumidores, e, se necessário, pelo fechamento do estabelecimento. Mas uma reunião de bebedores não é um transtorno maior que qualquer outra reunião barulhenta. Um beberrão alegre ou jovial não perturba mais a quietude de uma vizinhança que a gritaria de um fanático religioso. Uma reunião de beberrões barulhentos não é um transtorno maior que uma reunião de fanáticos religiosos barulhentos. Ambos são transtornos quando perturbam o descanso, o sono ou a quietude de seus vizinhos. Até mesmo um cachorro latindo, e assim perturbando o sono ou a quietude de uma vizinhança, é um transtorno.

XIX. Diz-se que incitar outra pessoa a cometer um vício é um crime. Isso é absurdo. Se qualquer ato particular é somente um vício, então um homem que incita outro a cometê-lo é simplesmente um cúmplice de um vício. Ele evidentemente não comete qualquer crime, porque o cúmplice não pode cometer ofensa maior que o responsável principal. Presume-se que toda pessoa sã, compos mentis, dotada de discernimento racional e autocontrole, seja mentalmente competente para julgar por si mesma a validade de todos os argumentos, prós e contras, que lhe sejam dirigidos para persuadi-la a fazer alguma coisa, dado que não seja empregada fraude para enganá-la. E se ela for persuadida ou induzida a executar o ato, o ato então é seu; e embora o ato possa vir a ser danoso a ela própria, ela não pode reclamar que a persuasão ou os argumentos, aos quais ela assentiu, foram crimes em si mesmos. Quando a fraude é praticada, o caso é, obviamente, diferente. Se, por exemplo, eu ofereço veneno a um homem assegurando-o de que é uma bebida segura e saudável, e ele, de boa-fé, o ingere, meu ato é um crime. Volenti non fit injuria é uma máxima do direito. A quem consente não se comete injúria. Isto é, nenhuma infração legal. E toda pessoa sã, compos mentis, capaz de discernimento racional ao julgar a validade ou a falsidade dos argumentos aos quais assente, está "consentindo", aos olhos da lei; ela toma para si toda a responsabilidade por seus atos quando nenhuma fraude intencional foi exercida sobre si. Este princípio, de que a quem consente não se comete injúria, não tem limites, a não ser em caso de fraudes ou no de pessoas incapazes de discernimento racional para o julgamento do caso particular. Se uma pessoa dotada de discernimento racional e não enganada por fraude consente à prática do mais grosseiro vício, impondo a si, dessa forma, os maiores sofrimentos morais ou físicos ou as maiores perdas pecuniárias, ela não pode alegar que sofreu uma injúria legal. Para ilustrar este princípio, tome-se o caso do estupro. Possuir uma mulher contra a vontade dela é o maior crime, a seguir do assassinato, que lhe pode ser cometido. Mas possuí-la com o consentimento dela não é crime; é, no máximo, um vício. E normalmente se sustenta que uma menina de não mais que dez anos de idade tem o discernimento requerido para que seu consentimento, embora incitado por recompensas ou promessas de recompensas, seja suficiente para converter o ato, que de outra forma seria um grave crime, num simples vício.2 Nós observamos o mesmo princípio no caso dos boxeadores. Se eu pousar meus dedos sobre outro homem contra a vontade dele, não importa quão levemente e quão pouco ele tenha sido injuriado, o ato é um crime.

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Mas se dois homens concordarem em dar suas caras a bater até que elas fiquem deformadas, isso não é um crime, é somente um vício. Nem mesmo duelos são considerados crimes, em geral, porque todo homem é dono da própria vida, e as partes concordam que uma pode tirar a vida da outra, se puder, pelo uso das armas acordadas e em conformidade com certas regras mutuamente aceitas. E esta é a avaliação correta da questão, a não ser que se diga (embora provavelmente não seja possível) que a "raiva é uma loucura" que tanto priva o homem de sua razão a ponto de torná-lo incapaz de qualquer discernimento. O jogo é outra ilustração do princípio de que a quem consente não se comete injúria. Se eu tomar um único centavo da propriedade de outro homem sem seu consentimento, o ato é criminoso. Mas se dois homens, que estejam compos mentis, dotados de razoável discernimento para julgar a natureza e os prováveis resultados de seus atos, se reúnem e voluntariamente apostam dinheiro nos dados, fazendo com que um deles perca todas as suas terras (não importando quão grandes sejam), isso não é um crime, mas somente um vício. Não é um crime nem mesmo auxiliar uma pessoa a cometer suicídio, se ela estiver de posse de sua razão. É uma idéia um tanto comum a de que o suicídio é, em si mesmo, uma evidência conclusiva de insanidade. Porém, embora possa ser normalmente uma evidência bastante forte de insanidade, não é conclusiva em todos os casos. Muitas pessoas, de posse, sem dúvidas, de suas faculdades racionais, já cometeram suicídio para escapar à exposição pública de seus crimes ou para evitar alguma outra grande calamidade. O suicídio, nesses casos, pode não ter sido o ato mais sábio, mas certamente não foi prova de qualquer tipo de insanidade.3 Estando dentro dos limites do discernimento racional, não foi um crime que outras o auxiliassem, através do fornecimento dos instrumentos necessários ou de qualquer outra forma. E se, em tais casos, não seria um crime auxiliar um suicídio, quão absurdo seria dizer que é um crime auxiliar algum ato verdadeiramente prazeroso e considerado útil por grande parte da sociedade?

XX. Algumas pessoas têm o hábito de dizer que as bebidas alcoólicas são a maior fonte de crimes; que "elas enchem nossas prisões de criminosos", e que este é motivo suficiente para proibir sua venda. Aqueles que dizem isso, se falam sério, são cegos e tolos. Eles evidentemente pretendem dizer que uma grande percentagem de todos os crimes que são cometidos entre os homens são cometidos por pessoas cujas paixões criminosas estão excitadas, no momento, pela ingestão de bebidas, em conseqüência da ingestão de bebidas. Essa idéia é totalmente absurda. Em primeiro lugar, os grandes crimes cometidos no mundo são incitados pela avareza e pela ambição. O maior de todos os crimes são as guerras engendradas pelos governos para saquear, escravizar e destruir a humanidade. Os outros grandes crimes cometidos no mundo são igualmente incitados pela avareza e pela ambição; e são cometidos não por uma paixão repentina, mas por homens calculistas que mantêm suas mentes calmas e claras, e que não pretendem ir para a prisão para pagar por eles. São cometidos não tanto por homens que violam as leis, mas por homens que, direta ou indiretamente, fazem as leis; por homens que se uniram para usurpar o poder arbitrário e para mantê-lo pelo uso da força e da fraude, e cujo objetivo ao usurpá-lo e mantê-lo, através de legislações injustas e desiguais, é assegurar para si mesmos vantagens e monopólios que os permitam controlar e explorar o trabalho e as propriedades dos outros homens, empobrecê-los e, assim, aumentar suas riquezas e poderes.4 As injustiças cometidas por esses homens, em conformidade com as leis — isto é, suas próprias leis —, são como montanhas em relação a montículos, quando comparadas com os crimes cometidos por todos os outros criminosos, em violação das leis.

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Mas, em terceiro lugar, há um grande número de fraudes, de vários tipos, cometidas em transações comerciais, cujos praticantes, com sua frieza e sagacidade, escapam do funcionamento das leis. E somente suas mentes frias e racionais poderiam habilitá-los a fazer isso. Homens sob a excitação de bebidas tóxicas não têm a disposição ou a constância necessárias para a prática bem sucedida dessas fraudes. Eles são os mais imprudentes, mal sucedidos, ineficientes e inofensivos de todos os criminosos com os quais as leis têm que lidar. Quarto. Os tais ladrões, salteadores, bandoleiros, falsários, fraudadores e vigaristas que assolam a sociedade podem ser qualquer coisa, mas não são beberrões descuidados. O ramo de atuação deles é perigoso demais para admitir os riscos em que a bebida os poria. Quinto. Os crimes que se pode dizer serem cometidos sob a influência de bebidas alcoólicas são assaltos e pilhagens, não muito numerosos e em geral não muito graves. Alguns outros crimes leves, como pequenos furtos ou outras pequenas invasões de propriedade, são às vezes cometidos sob a influência da bebida por pessoas de mente fraca, em geral não dadas ao crime. São poucas as pessoas que cometem esses crimes. Não se pode dizer que elas "enchem nossas prisões"; ou, se for possível dizer tal coisa, devemos ser parabenizados por precisar de tão poucas e pequenas prisões para mantê-los. O Estado de Massachusetts, por exemplo, tem um milhão e meio de pessoas. Quantas dessas estão presas agora por terem cometido crimes — não pelo vício da intoxicação, mas por crimes — contra pessoas ou propriedades instigadas por bebidas fortes? Eu duvido que haja uma em dez mil, isto é, cento e cinqüenta entre todas as pessoas; e os crimes pelos quais elas estão presas são infrações bem pequenas, em sua maioria. E eu acho que se verá que se deve apiedar desses homens muito mais do que puni-los, pois foi a pobreza e a miséria, não a paixão pela bebida ou pelo crime, que os levaram a beber e a cometer seus crimes sob a influência do álcool. A acusação de que a bebida "enche nossas prisões de criminosos" é feita, penso eu, apenas por aqueles homens que não são capazes de fazer mais do que chamar um bêbado de criminoso, e que não têm melhores fundamentos para suas acusações que o vergonhoso fato de sermos pessoas tão brutais e insensíveis a ponto de condenar pessoas tão fracas e infelizes quanto os alcoólatras, como se eles fossem criminosos. Os legisladores que autorizam e os juízes que praticam atrocidades como essas são intrinsecamente criminosos, a não ser que a ignorância deles seja tão grande — como provavelmente não é — que os desculpe. E, fossem eles punidos como criminosos, haveria mais razão em nossa conduta. Um juiz policial em Boston certa vez me disse que tinha o hábito de julgar alcoólatras (mandando-os para a prisão por trinta dias — eu acho que esta era a sentença estereotipada) à taxa de um a cada três minutos!, e às vezes mais rápido do que isso; condenando-os assim como criminosos e mandando-os à prisão sem piedade e sem investigar as circunstâncias, por uma enfermidade que os faria merecer compaixão e não punição. Os verdadeiros criminosos nesses casos não foram os homens que foram enviados à prisão, mas o juiz e seus auxiliares, que os mandaram para lá. Eu recomendo a essas pessoas, que estão tão perturbadas com a lotação de criminosos das prisões de Massachusetts, que empreguem ao menos alguma parte de sua filantropia para evitar que nossas prisões sejam ocupadas por pessoas que não cometeram crimes. Eu não lembro de já ter ouvido que as simpatias delas tenham sido exercidas nesse sentido. Pelo contrário, elas parecem ter uma paixão tão grande pela punição de criminosos que mal se preocupam em investigar se um candidato particular a punição é de fato um criminoso. Tal paixão, asseguro-as, é muito mais perigosa, e digna de muito menos caridade, moral e legal, que a paixão por bebidas alcoólicas. Parece estar em muito maior conformidade com o caráter impiedoso desses homens enviar um homem infeliz para a prisão por beber, e, assim, destruí-lo, degradá-lo, abatê-lo e arruinar sua vida, do que estaria alçá-lo da condição de pobreza e miséria que o levaram a se tornar um alcoólatra. Somente essas pessoas que têm pouca capacidade ou disposição para esclarecer, incentivar ou auxiliar a humanidade são possuídas pela paixão violenta de governar, comandar e punir. Se, em vez de apenas

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observarem e darem consentimento e sanção a todas as leis pelas quais o fraco é explorado, oprimido, desencorajado e, então, punido como criminoso, elas voltassem sua atenção para o dever de defender os direitos dele e de melhorar sua condição, de fortalecê-lo e permitir que ele ande com as próprias pernas, suportando as tentações que o rodeiam, elas teriam, penso eu, pouca necessidade de falar sobre leis e prisões para vendedores ou bebedores de rum, ou mesmo para qualquer outra classe de criminosos comuns. Se, em suma, esses homens, que estão tão ansiosos para suprimir o crime, suspendessem por um tempo seus pedidos de auxílio ao governo para que ele suprima os crimes dos indivíduos, para então pedir auxílio ao povo para suprimir os crimes do governo, eles demonstrariam maior sinceridade e bom senso do que demonstram agora. Quando as leis forem todas tão justas e eqüitativas a ponto de permitirem que todos os homens e mulheres vivam honestamente, virtuosamente, confortáveis e felizes, haverá muito menos ocasiões do que ora há para acusá-los de viver desonesta ou viciosamente.

XXI. Mas se dirá, novamente, que o uso de bebidas alcoólicas tende a levar as pessoas à pobreza, tornando-as assim um fardo para os contribuintes, e que esta é razão suficiente por que a venda delas deveria ser proibida. Há várias respostas a esse argumento. 1. Uma resposta é a de que se o fato de que o uso de bebidas leva à pobreza e à miséria for razão suficiente para proibir a venda delas, então é razão igualmente suficiente para a proibição do uso delas; pois é o uso, não a venda, que leva à pobreza. O vendedor é, no máximo, um cúmplice do bebedor. E é uma regra do direito e da razão a de que se o responsável principal de qualquer ato não é punível, o cúmplice não pode ser. 2. Uma segunda resposta ao argumento é a de que, se o governo tem o direito e o dever de proibir qualquer ato — que não seja criminoso — apenas porque ele supostamente leva à pobreza, então, pela mesma regra, ele tem o direito e o dever de proibir todo e qualquer outro ato — não criminoso — que, na opinião do governo, tende a levar à pobreza. E, a partir deste princípio, o governo não apenas teria o direito, mas o dever, de investigar cuidadosamente os assuntos privados de todo homem e os gastos pessoais de todas as pessoas, para determinar quais deles tenderam e quais não tenderam à pobreza, e proibir e punir todos aqueles da primeira classe. Um homem não teria direito de gastar um centavo de sua propriedade de acordo com sua vontade ou julgamento, a não ser que a legislatura fosse da opinião de que aquele gasto não o levaria à pobreza. 3. Uma terceira resposta ao mesmo argumento é a de que se um homem é levado à pobreza, ou mesmo à extrema miséria — por suas virtudes ou por seus vícios — o governo não tem qualquer obrigação de auxiliá-lo, a não ser que deseje. Ele pode deixá-lo perecer nas ruas ou depender da caridade privada, se assim quiser. Ele pode usar de seu livre arbítrio e julgamento na questão, pois ele está acima de qualquer responsabilidade legal no caso. Não é, necessariamente, um dever do governo auxiliar os pobres. Um governo — isto é, um governo legítimo — é simplesmente uma associação voluntária de indivíduos que se une para aqueles propósitos, e apenas para aqueles propósitos, que consideram apropriados. Se auxiliar os pobres — sejam eles virtuosos ou viciosos — não for um desses propósitos, então o governo, enquanto governo, não tem maior direito ou obrigação de ajudá-los do que uma companhia bancária ou ferroviária. A despeito de quaisquer reclamações morais à caridade que um homem pobre — sendo ele virtuoso ou vicioso — possa ter em relação aos outros homens, ele não tem reclamações legais para com eles. Ele deve depender totalmente da caridade deles, se eles desejarem. Ele não pode exigir, como direito legal, que eles o alimentem ou o vistam. Ele não tem maiores reclamações legais ou morais em relação a um governo — que não é senão uma associação de indivíduos — do que ele tem para com os indivíduos enquanto indivíduos privados. Assim, tanto quanto um homem pobre — virtuoso ou vicioso — não tem maior reclamação legal ou moral a comida e vestimentas em relação ao governo do que tem para com os indivíduos privados, um governo não tem maior direito que um indivíduo privado a controlar ou proibir os gastos ou as ações de um indivíduo com base no fato de que o levam à pobreza.

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O sr. A, enquanto indivíduo, claramente não tem nenhum direito de proibir quaisquer atos ou gastos do sr. Z por um medo de que esses atos ou gastos tendam a levar Z à pobreza, o que faria com que Z, conseqüentemente, em algum futuro incerto, fosse até A em desespero pedir caridade. E se A não tem o direito, enquanto indivíduo, de proibir quaisquer atos ou gastos da parte de Z, então o governo, que é uma mera associação de indivíduos, não pode ter tal direito. Certamente nenhum homem, que esteja compos mentis, sustenta seu direito de dispor e de usar sua propriedade por qualquer título sem valor que permitisse a qualquer um ou a todos os seus vizinhos — chamando a si mesmos pelo nome governo ou não — interferir e proibi-lo de fazer quaisquer gastos exceto aqueles que não o levassem à pobreza e a se tornar um esmoléu a implorar pela caridade deles no futuro. Se um homem, que esteja compos mentis, vier a ficar pobre por suas virtudes ou vícios, nenhum homem ou conjunto de homens pode ter qualquer direito de intervir em suas questões com base no fato de que poderá haver apelos futuros às suas caridades em favor dele; porque, se houvesse tais apelos, eles têm perfeita liberdade tanto de agir de acordo com suas próprias vontades ou discrições quanto de atender às solicitações. Este direito de recusar caridade aos pobres — sendo estes últimos virtuosos ou viciosos — é um direito sempre usado pelos governos. Nenhum governo faz mais provisões para os pobres do que deseja. Por conseqüência, os pobres dependem, em grande medida, da caridade privada. Em verdade, eles freqüentemente sofrem de doenças, e até mesmo morrem, porque nem a caridade pública nem a privada vêm em auxílio. Quão absurdo é dizer, então, que um governo tem o direito de controlar o uso de um homem de sua propriedade pelo medo de que ele venha a empobrecer e suplicar por caridade. 4. Uma quarta resposta ao argumento é a de que o grande e único incentivo que cada indivíduo tem a trabalhar e a criar riqueza é que ele possa dispor dela de acordo com suas vontades e discrições, para a promoção de sua própria felicidade e da felicidade daqueles que ama.5 Embora um homem possa freqüentemente, por inexperiência ou mal julgamento, gastar alguma porção dos produtos de seu trabalho de maneira imprudente, de uma forma que não promova seu maior bem-estar, ele ganha sabedoria, da mesma forma que em todas as outras questões, através da experiência; por seus erros tanto quanto por seus sucessos. E essa é a única maneira pela qual ele pode adquirir sabedoria. Quando ele se convence de que fez um gasto tolo, ele aprende a não mais fazê-lo. Ele precisa poder tentar seus próprios experimentos, e tentá-los para sua própria satisfação, nesta tanto quanto noutras questões; pois caso contrário ele não terá maior motivo para trabalhar ou criar riquezas. 5. Uma quinta resposta ao argumento é a de que se o dever do governo é vigiar os gastos de uma pessoa individual — que esteja compos mentis e não seja uma criminosa — para ver quais deles levam à pobreza e quais não, para proibir e punir os primeiros, então, pela mesma regra, ele deve vigiar os gastos de todas as outras pessoas, e proibir e punir todos aqueles que, em seu julgamento, tendam a levar à pobreza. Se tal princípio fosse executado imparcialmente, o resultado seria o de que todas as pessoas estariam tão ocupadas na vigia dos gastos umas das outras, e no testemunho, no processo e na punição de todos aqueles que tendessem a levar à pobreza, que não teriam tempo para criar qualquer riqueza. Todos aqueles capazes de trabalho produtivo estariam na prisão ou estariam ocupados exercendo os papéis de juízes, jurados, testemunhas ou carcereiros. Seria impossível criar cortes suficientes para os processos ou construir prisões suficientes para prender os transgressores. Todo trabalho produtivo cessaria; e os tolos que tanto desejavam evitar a pobreza não só seriam levados eles próprios à pobreza, à prisão e à fome, como levariam todos os outros à pobreza, à prisão e à fome. 6. Se for dito que um homem pode, ao menos, ser legitimamente compelido a sustentar sua família e, conseqüentemente, se abster de fazer gastos que, na opinião do governo, tendam a incapacitá-lo a exercer seu dever, várias respostas podem ser dadas. Mas esta é suficiente, a saber: nenhum homem, a não ser um tolo ou um escravo, reconheceria que qualquer família fosse a sua, se esse reconhecimento se tornasse uma desculpa, para o governo, para privá-lo de sua liberdade pessoal ou do controle de sua propriedade. Quando se permite a um homem desfrutar de sua liberdade natural e do controle de sua propriedade, sua família é, normalmente, quase universalmente, o objeto maior de seu orgulho e afeição; e ele empregará, não

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apenas voluntariamente, mas com o maior prazer, seus maiores poderes mentais e físicos não só para prover a ela as necessidades e os confortos normais da vida, mas também para esbanjar sobre ela todos os luxos e regalias que seu trabalho puder adquirir. Um homem não tem obrigação moral ou legal de fazer nada em favor de sua esposa ou de seus filhos, a não ser aquilo que ele possa fazer em conformidade com sua própria liberdade pessoal e com o seu direito natural de controlar sua propriedade de acordo com as próprias vontades. Se um governo pode interferir e dizer a um homem — que esteja compos mentis e que esteja cumprindo seus deveres para com sua família, da forma que ele os encara, de acordo com seu melhor julgamento, apesar de suas imperfeições — "Nós (o governo) suspeitamos que você não esteja empregando seu trabalho para o maior bem de sua família; nós suspeitamos que seus gastos e sua disposição de sua propriedade não são tão sensatos quanto poderiam ser, para o bem de sua família; portanto nós (o governo) colocaremos você e sua propriedade sob nossa vigilância especial e prescreveremos a você o que você pode e o que não pode fazer consigo próprio e com sua propriedade; sua família de agora em diante terá que procurar a nós (o governo), não a você, para ter suporte" — se um governo pode fazer isso, todo o orgulho, toda a ambição e toda afeição de um homem para com sua família seriam esmagados até o ponto em que a tirania humana pode esmagá-los; ele preferiria jamais ter uma família (que ele publicamente reconhecesse ser sua) ou preferiria arriscar tanto sua propriedade quanto sua vida para derrubar tal absurda, ultrajante e intolerável tirania. E qualquer mulher que desejasse que seu marido — estando ele compos mentis — se submetesse a tal afronta e injustiça não merece seu afeto ou qualquer outra coisa que não nojo e desprezo. E ele provavelmente logo a faria entender que, se ela escolhesse depender do governo, e não dele, para seu sustento e para o sustento de seus filhos, ela deveria depender exclusivamente do governo.

XXII. Uma resposta diferente e definitiva ao argumento de que o uso de bebidas alcoólicas tende a levar à pobreza é a de que, via de regra, ele coloca o efeito à frente da causa. Ele assume que é o uso de bebidas que causa a pobreza, em vez de ser a pobreza que causa o uso de bebidas. A pobreza é a mãe natural de quase toda a ignorância, todo o vício, todo o crime e toda a miséria que há no mundo.6 Por que é que uma parte tão grande da população trabalhadora da Inglaterra é bêbada e viciada? Certamente não é por que os trabalhadores são de natureza pior que a dos outros homens. É porque a pobreza extrema a que eles estão submetidos os mantêm em ignorância e servidão, destrói suas coragens e respeitos próprios, os sujeita a constantes insultos e injustiças, a amargas e incessantes misérias de todos os tipos, e finalmente os leva a tal desespero que a pequena trégua que a bebida e outros vícios possibilitam é, por ora, um alívio. Essa é a causa principal do alcoolismo e dos outros vícios de que sofrem os trabalhadores da Inglaterra. Se aqueles trabalhadores da Inglaterra, que ora são bêbados e viciosos, tivessem as mesmas chances na vida que as classes mais afortunadas tiveram; se tivessem sido criados em lares confortáveis, felizes e virtuosos, em vez dos lugares esquálidos, desgraçados e viciosos nos quais cresceram; se houvessem tido aquelas oportunidades de adquirir conhecimento e propriedades, de se tornarem inteligentes, felizes, independentes e respeitáveis, de assegurar para si próprios todos os prazeres intelectuais, sociais e domésticos a que as honestas e justamente recompensadas indústrias permitissem — se eles pudessem ter tido tudo isso em vez de terem uma vida de trabalho sem esperanças e sem recompensas, com a certeza de morte na fábrica, eles estariam tão livres de seus presentes vícios e fraquezas quanto estão aqueles que agora os reprovam. É inútil dizer que o alcoolismo, ou qualquer outro vício, apenas piora suas situações; pois tal é a natureza humana — a fraqueza da natureza humana, se assim você desejar — que os homens podem agüentar não mais que um certo nível de miséria antes que sua esperança e coragem desapareçam e que eles cedam a quase qualquer coisa que prometa alívio, embora ao custo de uma miséria ainda maior no futuro. Pregar moralidade ou temperança para tais infelizes pessoas, em vez de aliviar seus sofrimentos ou melhorar suas condições, é um insulto à condição delas.

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Será que aqueles que costumam atribuir a pobreza dos homens a seus vícios, em vez dos vícios à pobreza — como se toda pessoa pobre, ou a maioria delas, fosse especialmente viciosa —, nos dirão que toda a pobreza do último ano e meio7 foi imposta repentinamente — como se fosse num momento — a pelo menos vinte milhões de pessoas como conseqüência natural do alcoolismo ou de quaisquer outros vícios delas próprias? Teria sido o alcoolismo ou outro vício que paralisou, como um raio, todas as indústrias pelas quais elas viviam e que eram tão prósperas alguns dias antes? Teriam sido seus vícios que desempregaram os adultos dentre aqueles vinte milhões de pessoas, compeliram-nos a consumir suas parcas economias, se tinham alguma, e os obrigaram a se tornar pedintes — pedintes de trabalho e, fracassando, pedintes de pão? Teriam sido seus vícios que, simultânea e repentinamente, encheram suas casas de necessidades, miséria, doenças e morte? Não. Claramente não foi o alcoolismo nem qualquer outro vício dos trabalhadores que os levou à ruína e à desgraça. E se não foi isso, o que foi? Este é o problema que deve ser respondido; pois ele é recorrente, se coloca constantemente ante nós, e não pode ser ignorado. De fato, a pobreza de grande parte da humanidade, em todo o mundo, é o grande problema mundial. Que essa extrema e quase universal pobreza exista em todo o mundo, e que tenha existido durante todas as gerações passadas, prova que ela se origina em causas as quais a natureza humana comum daqueles que sofrem com ela não foi até hoje capaz de superar. Mas os que sofrem estão, ao menos, começando a ver essas causas e decidindo-se por eliminá-las, custe o que custar. E aqueles que imaginam que não têm nada a fazer além de atribuir a pobreza das pessoas a seus vícios, e repreendê-las por isso, então despertarão para o dia em que toda essa conversa estará no passado. E a questão então não mais será sobre quais são os vícios dos homens, mas quais são seus direitos?

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NOTAS: [1] Dar a um homem insano uma faca, ou qualquer outra arma ou coisa pela qual ele provavelmente se ferirá, é um crime. [2] O livro de estatutos de Massachusetts estipula que dez anos seja a idade na qual se presume que uma menina tenha discernimento suficiente para ser possuída com virtude. Mas o mesmo livro de estatutos estipula que nenhuma pessoa, homem ou mulher, de qualquer idade, de qualquer grau de sabedoria ou experiência, tem discernimento para poder comprar e beber um copo de bebida álcoólica por seu próprio julgamento! Que grande ilustração da inteligência legislativa de Massachusetts! [3] Catão cometeu suicídio para não cair nas mãos do César. Quem jamais suspeitou que ele fosse louco? Brutus fez o mesmo. Colt cometeu suicídio pouco mais de uma hora antes de ser enforcado. Ele fez isso para evitar a desgraça do enforcamento a seu nome e ao de sua família. Este, sendo um ato sábio ou não, claramente foi executado dentro das suas faculdades mentais normais. Alguém supõe que a pessoa que forneceu a ele o instrumento necessário foi um criminoso? [4] Uma ilustração deste fato é encontrada na Inglaterra, cujo governo, por mais de mil anos não tem sido mais que um bando de ladrões, tendo conspirado para monopolizar as terras e, tanto quanto possível, todas as outras riquezas. Esses conspiradores, chamando a si mesmos de reis, nobres ou freeholders, tomaram para si, através da força e da fraude, todos os poderes civis e militares; eles se mantêm no poder somente pela força, pela fraude e pelo uso corrupto de suas riquezas; eles empregam seus poderes exclusivamente para o roubo e para a escravização da grande massa de seu próprio povo, e para o espólio e escravização de outros povos. O mundo sempre esteve, e está atualmente, cheio de exemplos substancialmente similares. E o governo de nosso país não difere tanto dos outros neste aspecto quanto alguns de nós imaginam. [5] É a este incentivo somente que devemos toda a riqueza que já foi criada pelo trabalho humano e acumulada para o benefício da humanidade. [6] Excetuando-se aqueles grandes crimes os quais alguns poucos, chamando a si mesmos de governos, praticam sobre a maioria, por meio de tirania e extorsão organizadas e sistemáticas. E é somente a pobreza, a ignorância e a conseqüente fraqueza da maioria que permite que uma minoria unida e organizada adquira e mantenha tal poder sobre ela. [7] Isto é, de 1º de setembro de 1873 a 1º de março de 1875.

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O DIREITO DE IGNORAR O ESTADO

O DIREITO DE IGNORAR O ESTADO

HEBERT SPENCER Como corolário à proposição de que todas as instituições devem ser subordinadas à lei da igual liberdade, nós não temos escolha além de admitir o direito do cidadão de adotar uma condição de proscrição voluntária. Se todo homem tem a liberdade de fazer o que desejar, desde que não infrinja a igual liberdade de qualquer outro homem, então ele é livre para abandonar ligações com o estado — para recusar sua proteção e para se negar a custear seu suporte. É auto-evidente que, ao agir dessa forma, ele de forma alguma agride a liberdade dos outros, pois sua posição é passiva, e, enquanto passivo, ele não pode se tornar um agressor. É igualmente auto-evidente que ele não pode ser compelido a continuar a fazer parte de uma corporação política sem uma transgressão da lei moral, vendo que a cidadania envolve o pagamento de impostos; e tirar a propriedade de um homem contra sua vontade é uma violação de seus direitos. O governo sendo apenas um agente empregado em comum por um número de indivíduos para lhes assegurar certas vantagens, própria da ligação com ele implica que cada um deva dizer se ele vai ou não empregar esse agente. Se qualquer um se determinar a ignorar essa confederação de segurança mútua, nada pode ser dito a não ser que ele perde todo direito a seus bons serviços e expõe a si mesmo ao perigo dos maus tratos — algo que ele tem a liberdade de fazer, se quiser. Ele não pode ser coagido a entrar numa combinação política sem uma transgressão da lei da igual liberdade; ele pode abandoná-la sem cometer tal transgressão e, portanto, ele tem o direito de fazer isso. "Nenhuma lei humana é de qualquer validade se contrária à lei da natureza; e essas são válidas pois derivam todas as suas forças e suas autoridades mediata ou imediatamente deste original." Assim escreve Blackstone (1), a quem deixe que toda honra seja dada por ter se adiantado tanto às idéias de seu tempo e, de fato, podemos dizer de nosso tempo. Um bom antídoto, este, para as superstições políticas que tão amplamente prevalecem. Uma boa restrição ao sentimento de veneração do poder que ainda nos induz erradamente a aumentar as prerrogativas dos governos constitucionais, como já nos induziu a aumentar o dos monarcas. Deixe os homens aprenderem que uma legislatura não é "nosso Deus sobre a terra", embora, pela autoridade que atribuem a ela e as coisas que esperam dela, eles parecem pensar que é. Deixe-os aprender, em vez disso, que ela é uma instituição servindo a um propósito puramente temporário, cujo poder, quando não usurpado, é, no máximo, emprestado. Além disso, de fato, nós não vimos que o governo é essencialmente imoral? Não é ele o descendente do mal, trazendo todas as marcas de sua origem? Ele não existe porque o crime existe? Ele não é forte — ou, como dizemos, despótico — quando o crime é grande? Não há mais liberdade — isto é, menos governo — quando o crime diminui? E não deve o governo cessar quando cessa o crime, pela própria falta de objetos sobre os quais executar sua função? O poder autoritário não existe apenas por causa do mal, mas através do mal. A violência é empregada para mantê-lo, e toda violência envolve criminalidade. Soldados, policiais e carcereiros; espadas, cassetetes e correntes são instrumentos para infligir dor; e toda inflição de dor é, em abstrato, errada. O estado emprega armas más para subjugar o mal e é igualmente contaminado pelos objetos com o qual lida e pelos meios com o qual trabalha. A moralidade não pode reconhecê-lo, pois a moralidade, sendo simplesmente uma afirmação da lei perfeita, não pode aprovar nada que nasça e viva através de transgressões dessa lei. Por conseguinte, a autoridade legislativa não pode nunca ser ética — ela precisa sempre ser meramente convencional. Portanto, há uma certa inconsistência na tentativa de determinar a posição, estrutura e a condução corretas de um governo pelo apelo aos princípios fundamentais da retidão. Pois, como foi apontado, os atos de uma instituição a qual é tanto em natureza quanto em origem imperfeita não pode se adequar a lei perfeita. Tudo o que podemos fazer é determinar, em primeiro lugar, em quais atitudes uma legislatura precisa ter em relação à comunidade para evitar que sua existência seja apenas uma incorporação do errado; em segundo lugar, de qual forma ela precisa ser constituída para exibir a menor incongruência possível com a lei moral; e, em terceiro lugar, a qual esfera suas ações devem ser limitadas para evitar que ela multiplique aquelas transgressões da eqüidade que ela foi estabelecida para impedir. A primeira condição a ser preenchida antes que uma legislatura possa ser estabelecida sem violar a lei da igual liberdade é o reconhecimento do direito agora em discussão — o direito de ignorar o estado.(2)

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Os partidários do puro despotismo podem naturalmente acreditar que o controle do estado seja ilimitado e incondicional. Eles, que afirmam que os homens são feitos para os governos e não os governos para os homens, podem consistentemente sustentar que ninguém possa se retirar do âmbito da organização política. Mas aqueles que sustentam que as pessoas são a única fonte legítima de poder — que a autoridade legislativa não é original, mas delegada — não podem negar o direito de ignorar o estado sem dizer um absurdo. Pois, se a autoridade legislativa é delegada, se segue que aqueles por quem ela o é são os mestres daqueles para quem ela é conferida; se segue, além disso, que, como mestres, eles conferem a dita autoridade voluntariamente; e isso implica que eles podem dá-la ou retirá-la como lhes aprouverem. Chamar de delegação aquela que é desviada dos homens, quer queiram, quer não, não faz sentido. Mas o que aqui é verdade para todos coletivamente é igualmente verdadeiro para cada um separadamente. Como um governo somente pode agir pelo povo quando seu poder é concedido por ele, então só pode também agir pelo indivíduo quando seu poder é concedido por ele. Se A, B e C debatem se devem empregar um agente para executar para eles certo serviço, e se embora A e B concordem com isso, C discorde, C não pode ser equitativamente tornado uma parte no acordo a despeito de si mesmo. E isto precisa ser igualmente verdade para trinta como para três; e se de trinta, por que não trezentos, três mil ou três milhões? Das superstições políticas a que foram aludidas, nenhuma é tão universalmente difundida como a noção de que as maiorias são onipotentes. Sob a impressão de que a preservação da ordem sempre requererá que o poder seja dominado por algum partido, o senso moral de nosso tempo sente que tal poder não pode ser devidamente conferido para ninguém além da maior parte da sociedade. Ela interpreta literalmente o dito de que "a voz do povo é a voz de Deus", e, transferindo para um a sacralidade do outro, ela conclui que da vontade do povo — isto é, da maioria — não pode haver apelação. Contudo, esta crença é errônea. Suponha, pelo argumento, que, atingida por algum pânico malthusiano, a legislatura devidamente representando a opinião pública decretasse que todas as crianças nascidas durante os próximos dez anos devessem ser afogadas. Alguém pensa que esse decreto seria justificável? Se não, há evidentemente um limite ao poder da maioria. Suponha, novamente, que de duas raças vivendo juntas — os celtas e os saxões, por exemplo —, a mais numerosa determinasse que os outros devessem ser seus escravos. Seria válida a autoridade do maior número em tal caso? Se não, há algo a qual sua autoridade deve ser subordinada. Suponha, uma vez mais, que todos os homens que tenham rendimentos abaixo de 50 libras por ano resolvessem reduzir todos os rendimentos acima daquela quantia ao nível deles e que os excessos fossem apropriados para propósitos públicos. Essa resolução poderia ser justificada? Se não, precisa ser pela terceira vez confessado que há uma lei à qual a voz popular precisa se curvar. Qual, então, é essa lei senão a lei da pura eqüidade — a lei da igual liberdade? Essas limitações, que todos colocariam à vontade da maioria, são exatamente as limitações estabelecidas por aquela lei. Nós negamos o direito da maioria de matar, escravizar ou roubar, simplesmente porque o assassinato, a escravização e o roubo são violações daquela lei — violações grosseiras demais para serem negligenciadas. Mas se grandes violações dela são erradas, então também são as menores. Se a vontade dos muitos não pode sobrepor-se ao primeiro princípio da moralidade nesses casos, não pode em nenhum. De forma que, insignificante como for a minoria e desimportante como seja a violação de seus direitos, nenhuma violação desse tipo é permissível. Quando nós tornarmos nossa constituição puramente democrática, pensa para si o sincero reformador, nós teremos colocado o governo em harmonia com a justiça absoluta. Tal crença, embora talvez necessária para esta era, é profundamente errada. De forma alguma a coerção pode ser tornada justa. A forma mais livre de governo é apenas a forma menos questionável. O domínio dos muitos pelos poucos chamamos de tirania; o domínio dos poucos pelos muitos também é tirania, embora de um tipo menos intenso. "Você deve agir como nós desejamos, não como você deseja" é em todo caso a declaração; e se os cem a fazem para os noventa e nove, em vez dos noventa e nove para os cem, é apenas uma fração menos imoral. Dos dois partidos, qualquer um que faça essa declaração necessariamente fere a lei da igual liberdade: a única diferença sendo que num caso é ferida pelas pessoas que fazem parte das noventa e nove, enquanto no outro, pelas pessoas das cem. E o mérito da forma democrática de governo consiste somente nisso, que ele viole os direitos do menor número.

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A própria existência de maiorias e minorias é indicativa de um estado imoral. O homem cujo caráter se harmoniza com a lei moral nós vemos ser aquele que pode obter a completa felicidade sem diminuir a felicidade dos outros (cap. III). Mas a aplicação de arranjos públicos pelo voto implica uma sociedade consistida de homens que, caso contrário, seriam constituídos de outra forma; implica que os desejos de alguns não podem ser satisfeitos sem o sacrifício dos desejos dos outros; implica que em sua busca pela felicidade a maioria inflige uma certa infelicidade sobre a minoria; implica, portanto, uma imoralidade orgânica. Assim, de outro ponto de vista, nós novamente percebemos que mesmo em sua forma mais eqüitativa é impossível para o governo se dissociar do mal; e, além disso, que a não ser que o direito de ignorar o estado seja reconhecido, seus atos devem ser essencialmente criminosos. Que um homem seja livre para abandonar os benefícios e os encargos da cidadania pode-se inferir das admissões das existentes autoridades e da opinião corrente. Despreparados como provavelmente estão para uma doutrina tão extrema como a aqui mantida, os radicais de nossos dias inconscientemente professam suas crenças numa máxima que obviamente incorpora esta doutrina. Nós não continuamente os ouvimos citar a asserção de Blackstone de que "nenhum súdito da Inglaterra pode ser forçado a pagar quaisquer contribuições ou impostos mesmo para a defesa do reino ou para o sustento do governo, tais são impostos por seu próprio consentimento, ou pelo consentimento de seu representante no parlamento"? E o que isso significa? Significa, dizem eles, que todos os homens deveriam ter um voto. Verdade: mas significa muito mais. Se existe qualquer sentido nas palavras ele é uma distinta enunciação do próprio direito agora defendido. Ao afirmar que um homem não possa ser taxado a não ser que tenha dado direta ou indiretamente seu consentimento, ele afirma que pode se recusar a ser taxado; e se recusar a ser taxado é cortar toda conexão com o estado. Talvez seja dito que esse consentimento não é específico, mas geral, e que deve-se entender que o cidadão assentiu a tudo que seu representante fizer quando votou nele. Mas suponha que ele não votou nele; e, pelo contrário, fez tudo que era capaz para eleger algum outro que sustenta opiniões opostas — o que ocorre? A resposta provavelmente será que, tomando parte em tal eleição, ele tacitamente concordou em obedecer às decisões da maioria. Mas como, se ele não votou? Por que então ele não pode justificadamente reclamar de qualquer imposto, vendo que ele não fez nenhum protesto contra sua imposição. Então, curiosamente, parece que ele deu o seu consentimento por qualquer forma que agiu — se disse sim, se disse não ou se permaneceu neutro! Uma esquisita doutrina, esta. Aqui temos um infeliz cidadão a quem se pede que dê dinheiro a uma certa vantagem oferecida; e se ele empregar ou não os únicos meios para expressar sua recusa, nos é dito que ele praticamente concorda; se apenas o número de outros que concordam é maior que o número daqueles que discordam. E assim nós somos introduzidos ao original princípio de que o consentimento de A a alguma coisa não é determinado pelo que A diz, mas pelo que B venha a dizer! Aqueles que citam Blackstone devem escolher entre esse absurdo e a doutrina demonstrada anteriormente. Ou sua máxima implica o direito de ignorar o estado ou não faz o menor sentido. Há uma estranha heterogeneidade em nossas crenças políticas. Sistemas que tiveram seus apogeus e que estão começando lá e aqui a ver a luz do dia são improvisados com noções modernas completamente diferentes em qualidade e cor; e os homens seriamente mostram esses sistemas, os vestem e vivem neles sem consciência da grotesquidão deles. Este estado de transição em que estamos, que compartilha igualmente do passado e do futuro, dá origem a teorias híbridas exibindo a mais estranha união dos antigos despotismos e da liberdade vindoura. Aqui há tipos da antiga organização curiosamente disfarçados de germes da nova — peculiaridades demonstrando adaptação a um estado precedente modificados por rudimentos que profeciam algo que está por vir —, fazendo uma mistura tão totalmente caótica de relacionamentos que não há como dizer a que classe esses nascimentos da nossa era devem ser referidos. Como as idéias precisam necessariamente carregar a marca do tempo, é inútil lamentar o contentamento com o qual essas crenças incongruentes são sustentadas. Caso contrário, pareceria infeliz que os homens não seguissem até o fim as cadeias de raciocínio que levaram a essas modificações parciais. No caso presente, por exemplo, a consistência os forçaria a admitir que, em outros pontos além daquele que acabou de se notar, eles sustentam opiniões e usam argumentos nos quais o direito de se ignorar o estado está envolvido. Pois qual é o significado de Discordância? Já se foi o tempo em que a crença de um homem e seu modo de culto fossem tão determinados pela lei quanto seus atos seculares; e, de acordo com as provisões existentes

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em nosso livro-estatuto, ainda são. Graças ao crescimento de um espírito Protestante, entretanto, nós ignoramos o estado nesta questão — totalmente em teoria e parcialmente na prática. Mas como fizemos isso? Assumindo uma atitude a qual, se consistentemente mantida, implica um direito de ignorar o estado totalmente. Observe as posições das duas partes. "Este é o seu credo", diz o legislador, "você deve acreditar e abertamente professar o que está aqui estabelecido." "Eu não farei nada do tipo", responde o não-conformista, "eu prefiro ir para a prisão." "Suas ordens religiosas", prossegue o legislador, "devem ser as que prescrevemos. Você deve ir às igrejas que dotamos e adotar as cerimônias delas." "Nada me induzirá a fazer isso", é a resposta, "eu nego totalmente seu poder de ditar a mim essas questões, e pretendo resistir até o fim." "Finalmente", adiciona o legislador, "nós requereremos que você pague tais somas de dinheiro para o suporte destas instituições religiosas como acharmos apropriado." "Nenhum centavo você terá de mim", exclama nosso resoluto Independente, "mesmo se eu acreditasse nas doutrinas de sua igreja (nas quais eu não acredito), eu ainda assim me rebelaria contra sua interferência; e se você me tomar minha propriedade, isso será feito com o uso da força e sob protestos." Agora, a que esse procedimento equivale quando considerado em abstrato? Ele equivale a uma afirmação pelo indivíduo do direito de exercer uma de suas faculdades — o sentimento religioso — sem permissão ou impedimento, e sem qualquer limite além daquele estabelecido pelas iguais reclamações dos outros. E o que significa ignorar o estado? Simplesmente uma afirmação do direito similar de exercer todas as suas faculdades. Um é apenas uma expansão do outro — tem a mesma base que o outro — e deve ter validade ou não junto com o outro. Os homens de fato falam de liberdades civis e religiosas como se fossem coisas diferentes: mas a distinção é arbitrária. Elas são partes do mesmo todo e não podem ser filosoficamente separadas. "Sim, podem", interpõe um opositor, "a afirmação de uma é imperativa por ser um dever religioso. A liberdade de cultuar Deus da forma que parece correto é uma liberdade sem a qual o homem não pode executar o que acredita ser comandos Divinos e, portanto, a consciência requer que ele a mantenha." Nada mais verdadeiro; mas e se o mesmo puder ser asseverado com relação a todas as outras liberdades? E se a manutenção delas também for uma questão de consciência? Nós não vimos que a felicidade é a vontade Divina — que apenas exercendo nossas faculdades essa felicidade é alcançável — e que é impossível exercê-las sem a liberdade? (cap. IV) E se essa liberdade para o exercício das faculdades for uma condição sem a qual a vontade Divina não puder ser executada, a preservação da qual é, pelo que diz nosso opositor, um dever. Ou, em outras palavras, parece que não apenas a manutenção da liberdade de ação pode ser uma questão de consciência mas deve sê-la. E assim é demonstrado claramente que as reivindicações de ignorar o estado em matérias religiosas e seculares são em essência idênticas. A outra razão comumente atribuída para a não-conformidade admite similar tratamento. Além de resistir ao que o estado ditar em abstrato, o discordante resiste a ele através da desaprovação das doutrinas ensinadas. Nenhuma injunção legislativa o fará adotar o que ele considera ser uma crença errônea; e, tendo em mente seu dever para com os outros homens, ele se recusa a ajudar através de suas riquezas a disseminação dessa crença errônea. Essa posição é perfeitamente inteligível. Mas ela é uma posição a qual ou faz com que seus defensores também defendam a não-conformidade civil ou os deixa num dilema. Pois por que eles se recusam a auxiliar a disseminação do erro? Porque o erro é adverso à felicidade humana. E sobre quais bases qualquer parte da legislação secular é desaprovada? Pela mesma razão — porque é pensada como adversa à felicidade humana. Como então pode-se mostrar que o estado deve ser resistido num caso e não no outro? Alguém afirmará deliberadamente que se o governo exigir nosso dinheiro para ajudar a ensinar o que consideramos a produção do mal, nós devemos nos recusar, mas que se o dinheiro for para o propósito de fazer o que pensamos que produzirá o mal, nós não devemos resistir? E, no entanto, tal é a proposição daqueles que reconhecem o direito de ignorar o estado em questões religiosas, mas o negam em questões civis. A substância deste capítulo novamente nos lembra da incongruência entre uma lei perfeita e um estado imperfeito. A praticidade do princípio aqui mostrado varia diretamente em relação à moralidade social. Numa comunidade totalmente viciosa, sua admissão produziria uma anarquia. Numa comunidade completamente virtuosa sua admissão seria tanto inócua quanto inevitável. O progresso em direção a uma condição de saúde social — uma condição, isto é, na qual as medidas curativas da legislação não serão mais necessárias — é um progresso rumo a uma condição na qual essas medidas curativas serão deixadas de lado e a autoridade que as prescreve será desconsiderada. As duas mudanças são de necessidade coordenada. Esse sistema moral cuja

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supremacia fará a sociedade harmônica e o governo desnecessário é o mesmo senso moral o qual faz com que cada homem afirme sua liberdade ao ponto mesmo de ignorar o estado — é o mesmo senso moral o qual, detendo a maioria de coagir a minoria, eventualmente tornará o governo impossível. E como as meras manifestações diferentes do mesmo sentimento devem ter uma relação constante umas com as outras, a tendência de repudiar os governos crescerá apenas no mesmo ritmo que os governos se tornarem desnecessários. Que ninguém fique alarmado, portanto, com a promulgação da doutrina acima mencionada. Há muitas mudanças para serem feitas antes que ela possa começar a exercer muita influência. Provavelmente um longo tempo vai passar antes que o direito de ignorar o estado seja geralmente admitido, mesmo em teoria. Demorará ainda mais antes que ela receba reconhecimento legislativo. E mesmo nesse momento, haverá muitas limitações sobre o exercício prematuro dela. Uma experiência áspera instruirá suficientemente aqueles que possam cedo demais abandonar a proteção legal. Existe, na maior parte dos homens, um tal amor pelos arranjos já experimentados e um pavor tão grande de experimentos que eles provavelmente não exercerão esse direito até que seja seguro fazê-lo.

Tradução por Erick Vasconcellos do capítulo 19 de Social Statics, de 1851,"The Right to Ignore the State".

NOTAS: [1] [N.T.] Sir William Blackstone (1723-1780), jurista inglês que escreveu o famoso tratado sobre a common law em quatro volumes Commentaries on the Laws of England (1765-1769). [2] Daí pode se tirar um argumento pela taxação direta; porque somente quando a taxação é direta a repudiação do fardo estatal se torna possível.

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OBJEÇÕES À INTERVENÇÃO GOVERNAMENTAL

OBJEÇÕES À INTERVENÇÃO GOVERNAMENTAL

JOHN STUART MILL O objeto deste Ensaio é defender como indicado para orientar de forma absoluta as intervenções da sociedade no individual, um princípio muito simples, quer para o caso do uso da força física sob a forma de penalidades legais, quer para o da coerção moral da opinião pública. Consiste esse princípio em que a única finalidade justificativa da interferência dos homens, individual e coletivamente, na liberdade de ação de outrem, é a autoproteção. O único propósito com o qual se legitima o exercício do poder sobre algum membro de uma comunidade civilizada contra a sua vontade é impedir dano a outrem. O próprio bem do indivíduo, seja material seja moral, não constitui justificação suficiente. As objeções à interferência governamental, quando ela não envolve desrespeito à liberdade, podem ser de três gêneros. O primeiro gênero é relativo a coisas mais adequadas a serem feitas pelos indivíduos do que pelo governo. Em geral, ninguém está mais em condições de conduzir um negócio, ou de determinar como e por quem deva ser conduzido, do que os pessoalmente interessados nele. Esse princípio condena as interferências, outrora tão comuns, da Legislatura, ou dos funcionários governamentais, nos processos ordinários da indústria. Essa parte do assunto, porém, foi suficientemente explanada por autores de economia política, e não se relaciona particularmente com os princípios deste ensaio. A segunda objeção é ligada mais de perto com o nosso assunto. Há muitos casos nos quais, embora os indivíduos, em regra, não possam fazer a coisa em apreço tão bem como os funcionários governamentais, é, entretanto, desejável que seja feita por eles, antes que pelo governo, como um meio para a sua educação mental – um modo de robustecer as suas faculdades ativas, exercitando o seu discernimento, e proporcionando-lhes familiaridade com os assuntos cujo trato lhes é assim deixado. Esta é, não a única, mas uma das principais razões que recomendam o julgamento pelo júri (em casos não políticos), as instituições locais de caráter livre e popular; a condução dos empreendimentos industriais e filantrópicos por associações voluntárias. Essas questões não são de liberdade, e só por tendências remotas se ligam ao assunto; mas são questões de desenvolvimento. Esta não é a ocasião de se demorar nessas coisas como aspectos da educação nacional, como constituindo, na verdade, o treinamento peculiar de um cidadão, a parte prática da educação política de um povo livre, o que tira para fora do círculo estreito do egoísmo pessoal e familiar, e o acostuma à compreensão dos interesses coletivos – habituando-o a agir por motivos públicos e semipúblicos e a guiar a conduta por alvos que unem hábitos e poderes, uma constituição livre não pode ser cumprida nem preservada, como se exemplifica pela natureza muito freqüentemente transitória da liberdade política em países nos quais ela não repousa sobre uma base suficiente de liberdades locais. A administração dos negócios puramente locais pelas localidades, e dos grandes empreendimentos industriais pela união daqueles que voluntariamente fornecem os meios pecuniários, é, ademais, recomendada por todas as vantagens atribuídas neste ensaio à individualidade de desenvolvimento e à diversidade dos modos de ação. As operações governamentais tendem a ser, por toda a parte, semelhantes. Com os indivíduos e as associações voluntárias, ao contrário, há ensaios diversos, e uma infinda variedade de experiência. O que o Estado pode utilmente fazer é tornar-se um depósito central da experiência resultante dos muitos ensaios, e um ativo fator da sua circulação e difusão. O que lhe compete é habilitar cada experimentador a se beneficiar das experiências alheias, ao invés de não tolerar outras experiências senão as próprias. A terceira e mais eficaz razão para limitar a interferência do governo é o grande perigo de lhe aumentar desnecessariamente o poder. Toda função que se acrescente às já exercidas pelo governo difunde mais largamente a influência deste sobre as esperanças e os temores, e converte, cada vez mais, a parte mais ativa e ambiciosa do público em pingentes do governo, ou de algum partido que visa tornar-se governo. Se as estradas, as ferrovias, os bancos, os escritórios de seguros, as grandes sociedades anônimas, fossem ramos do governo; se, ademais, as corporações municipais e conselhos locais, com tudo que hoje recai sob a sua alçada, se tornassem departamentos da administração central; se os empregados de todos esses diversos empreendimentos fossem nomeados e pagos pelo governo, e deste dependessem para cada ascensão na vida;

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nem toda a liberdade de imprensa e toda a constituição popular da legislatura poderiam fazer deste, ou de outro país, países livres senão em seu nome.

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QUE ESPÉCIE DE DESPOTISMO DEVEM TEMER AS NAÇÕES DEMOCRÁTICAS

QUE ESPÉCIE DE DESPOTISMO DEVEM TEMER AS NAÇÕES

DEMOCRÁTICAS

ALEXIS DE TOCQUEVILLE

Observei, durante minha temporada nos Estados Unidos, que uma situação social semelhante à dos americanos poderia oferecer singulares facilidades à implementação do despotismo, e mostrei, ao regressar à Europa, como a maior parte dos nossos príncipes já se tinham servido das idéias, dos sentimentos e das necessidades que essa mesma situação social fazia surgir, para estender a esfera do seu poder. Isso me levou a crer que as nações cristãs talvez acabassem por sofrer alguma opressão, semelhante à que outrora pesou sobre vários povos da Antiguidade. Um exame mais detalhado do assunto e cinco anos de meditações novas não diminuíram em nada os meus temores, mas mudaram o seu objeto. Jamais se viu, nos séculos passados, um soberano tão absoluto e tão poderoso que tenha tentado administrar sozinho e sem recorrer a poderes secundários, todas as partes de um grande império; nem sequer um tentou submeter indistintamente todos os seus súditos aos detalhes de uma norma uniforme, nem desceu até junto de cada um deles, para regê-lo e conduzi-lo. A idéia de semelhante empreendimento jamais se apresentara ao espírito humano, e se a algum homem terá ocorrido concebê-la, a insuficiência de luzes, a imperfeição de processos administrativos e, sobretudo, os obstáculos naturais que a desigualdade suscita o teriam logo detido na execução de desígnio tão vasto. Sabemos que, na época do maior poder dos Césares, os diferentes povos que viviam no mundo romano tinham ainda conservado costumes e hábitos diversos: embora sujeitas ao mesmo monarca, a maior parte das províncias era administrada separadamente; eram cheias de municipalidades poderosas e ativas e, embora todo o governo do império estivesse concentrado apenas nas mãos do imperador, e ele continuasse sempre, quando necessário, árbitro de todas as coisas, os detalhes da vida social e da existência individual fugiam ordinariamente ao seu controle. É verdade que os imperadores possuíam um poder imenso e sem contrapartida, que os permitia entregar-se livremente aos caprichos dos seus pendores e a empregar para satisfazê-los toda a força do Estado; muitas vezes, ocorreu-lhes abusar desse poder para arbitrariamente tirar de um cidadão os bens ou a vida; a sua tirania pesava prodigiosamente sobre alguns, mas não se estendia sobre um grande número; prendia-se a alguns objetivos principais maiores e esquecia o resto; era violenta e contida. Parece que, se o despotismo viesse a se estabelecer nas nações democráticas de hoje, teria outras características: Seria mais amplo e mais brando, e desagradaria os homens sem atormentá-los. Não duvido que, nos séculos de luzes e de igualdade, como os nossos, os soberanos mais facilmente consigam concentrar todos os poderes públicos em suas mãos apenas, e penetrar mais habitual e mais profundamente no círculo dos interesses privados, como jamais o pode fazer qualquer daqueles da Antiguidade. Mas essa mesma igualdade, que facilita o despotismo, torna-o mais suave; já vimos como, à medida que os homens se tornam mais semelhantes e mais iguais, os costumes públicos passam a ser mais humanos e mais suaves; quando nenhum cidadão tem um grande poder ou grandes riquezas, a tirania, de certa forma, fica sem ocasião ou teatro de ação. Como todas as fortunas são medíocres, as paixões são naturalmente contidas, a imaginação limitada, os prazeres simples. Essa moderação universal se faz sentir no próprio soberano e detém dentro de certos limites o impulso desordenado dos seus desejos. Independentemente dessas razões, tiradas da própria natureza da situação social, poderia acrescentar muitas outras, fora de meu tema; desejo, porém, manter-me dentro dos limites que me fixei. Os governos democráticos poderão tornar-se violentos e cruéis em certos momentos de grande efervescência e de grandes perigos; mas essas crises serão raras e passageiras. Quando penso nas pequenas paixões dos homens de hoje em dia, na brandura dos seus costumes, na extensão das suas luzes, na pureza da sua religião,

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QUE ESPÉCIE DE DESPOTISMO DEVEM TEMER AS NAÇÕES DEMOCRÁTICAS

na brandura da sua moral, nos seus hábitos laboriosos e ordenados, na austeridade em que se mantêm quase todos, no vício como na virtude, não temo que encontrem em seus chefes tiranos, mas antes tutores. Não creio, pois, que a espécie de opressão de que povos democráticos se acham ameaçados se assemelhe a algo do que a precedeu no mundo; nossos contemporâneos não poderiam encontrar na lembrança a sua imagem. Em vão procuro uma expressão que reproduza exatamente a idéia que tenho e que a encerre; as antigas palavras, despotismo e tirania não convêm de maneira alguma. O fenômeno é novo; é preciso, pois, defini-lo, já que não posso dar-lhe um nome. Procuro descobrir sob que traços novos o despotismo poderia ser produzido no mundo; vejo uma multidão inumerável de homens semelhantes e iguais, que sem descanso se voltam sobre si mesmos à procura de pequenos e vulgares prazeres, com os quais enchem a alma. Cada um deles, afastado dos demais, é como que estranho ao destino de todos os outros: seus filhos e seus amigos particulares para ele constituem toda a espécie humana, quanto ao restante dos seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-os e não os sente; existe apenas em si e para si mesmo, e, se ainda lhe resta uma família, pode-se ao menos dizer que não mais tem pátria. Acima destes, eleva-se um poder imenso e tutelar, que se encarrega sozinho de garantir o seu prazer e velar sobre a sua sorte. É absoluto, minucioso, regular, previdente e brando. Lembraria os homens para a idade viril; mas, ao contrário, só procura fixá-los irrevogavelmente na infância; agrada-lhe que os cidadãos se rejubilem, desde que não pensem senão em rejubilar-se. Trabalha de bom grado para a sua felicidade, mas deseja ser o seu único agente e árbitro exclusivo; provê à sua segurança, prevê e assegura as suas necessidades, facilita os seus prazeres, conduz os seus principais negócios, dirige a sua indústria, regula as suas sucessões, divide as suas heranças; que lhe alta tirar-lhes inteiramente, senão o incomodo de pensar e a angústia de viver? É assim que, todos os dias, torna menos útil e mais raro o emprego do livre arbítrio; é assim que encerra a ação da vontade num pequeno espaço e, pouco a pouco, tira a cada cidadão até o emprego de si mesmo. A igualdade preparou os homens para todas essas coisas, dispondo-os a sofrer e muitas vezes até a considerá-las como um benefício. Depois de ter tomado cada um por sua vez, dessa maneira, e depois de o ter petrificado sem disfarce, o soberano estende o braço sobre a sociedade inteira; cobre a sua superfície com uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes, através das quais os espíritos mais originais e as almas mais vigorosas não seriam capazes de vir à luz para ultrapassar a multidão; não esmaga as vontades, mas as enfraquece, curva-as e as dirige; raramente força a agir, mas constantemente opõe resistência à ação; nunca destrói, mas impede de nascer, nunca tiraniza mas comprime, enfraquece, prejudica, extingue e desumaniza, e afinal reduz cada nação a não ser mais que rebanho de animais tímidos e diligentes, dos quais o governo é o pastor. Sempre acreditei que essa espécie de servidão regulada e pacífica, cujo retrato acabo de traçar, poderia conjugar-se mais facilmente do que imaginamos com algumas das formas exteriores da liberdade, e que não lhe seria impossível estabelecer-se à própria sombra da soberania do povo. Nossos contemporâneos são constantemente trabalhados por duas paixões inimigas: sentem eles a necessidade de ser conduzidos e o desejo de permanecer livres. Não podendo destruir nem um nem outro desses instintos contrários, esforçam-se por satisfazer ao mesmo tempo a ambos. Imaginam um poder único, tutelar, todo-poderoso, mas eleito pelos cidadãos. Combinam a centralização e a soberania do povo. Isso lhes dá algum descanso. Consolam-se por ser tutelados, pensando que eles mesmos escolheram seus tutores. Todo indivíduo suporta ser fixado, porque vê que não é um homem nem uma classe, mas o próprio povo, que segura a ponta da corrente. Nesse sistema, os cidadãos por um momento abandonam a dependência, para indicar o seu senhor, e depois voltam a ela. Hoje em dia, há muitas pessoas que se acomodam muito facilmente a essa espécie de compromisso entre o despotismo administrativo e a soberania do povo, e que pensam ter garantido suficientemente a liberdade dos indivíduos, quando é ao poder nacional que a entregam. Mas isso não me basta. A natureza do senhor me importa muito menos que a obediência.

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Entretanto, não quero negar que semelhante constituição seja infinitamente preferível àquela que, depois de ter concentrado todos os poderes, viesse a colocá-los nas mãos de um homem ou de um corpo irresponsável. De todas as diferentes formas que o despotismo democrático poderia tomar, essa seria sem dúvida a pior. Quando o soberano é eleito ou vigiado de perto por uma legislatura realmente eletiva e independente, a opressão que faz com que os indivíduos sofram às vezes é maior; mas é sempre menos degradante, porque cada cidadão, enquanto contido e reduzido à impotência, pode ainda imaginar que, obedecendo, só se submete a si mesmo, e que é a uma das suas vontades que sacrifica todas as demais. Compreendo igualmente que, quando o soberano representa nação e depende dela, as forças e os direitos que se tiram a cada cidadão não servem somente ao chefe do Estado, mas aproveitam ao próprio Estado, e que os particulares tiram algum fruto do sacrifício que fizeram da sua independência a bem do público. Criar uma representação nacional num país muito centralizado é, pois, diminuir o mal que a extrema centralização pode produzir, mas não é destruí-lo. Bem sei que, dessa maneira, conserva-se a intervenção individual nas questões mais importantes; ela não é menos suprimida nas pequenas e nas particulares. Esquecemo-nos de que é sempre no detalhe que é perigoso escravizar os homens. Por minha parte, seria levado a julgar a liberdade menos necessária nas grandes que nas menores coisas, se pensasse que jamais se poderia ter a certeza de uma sem possuir a outra. A sujeição nas pequenas questões se manifesta todos os dias e se faz sentir indistintamente a todos os cidadãos. Embora não os leve ao desespero, contraria-os constantemente e os leva a renunciar ao uso da vontade. Pouco a pouco, oblitera o seu espírito e enfraquece a sua alma, ao passo que a obediência, que é devida apenas em reduzido número de circunstâncias muito graves, mas muito raras, só de longe em longe denota a servidão, e só a faz pesar sobre certos homens. Em vão encarregaríamos aqueles mesmos cidadãos que tornamos tão dependentes desse poder central de escolher de vez em quando os representantes desse poder; esse uso tão importante, mas tão curto e tão raro, do seu livre arbítrio, não impedirá que percam pouco a pouco a faculdade de pensar, de sentir e de agir por si mesmos, e que não venham a cair assim, gradualmente, abaixo do nível da humanidade.

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SOBRE O SOCIALISMO

SOBRE O SOCIALISMO

ALEXIS DE TOCQUEVILLE

Nada poderemos ganhar ao não discutir questões que põem em dúvida as raízes de nossa sociedade, questões essas que, mais cedo ou mais tarde, deverão ser enfrentadas. No fundo do projeto que está em discussão, talvez sem o conhecimento de seu autor – mas eu a percebo claramente – , está a questão do socialismo. [Longa excitação – murmúrios da esquerda.] Sim, cavalheiros, mais cedo ou mais tarde, a questão do socialismo, que todos parecem temer e que ninguém até agora ousou debater, deverá ser discutida, e essa assembléia deverá decidi-la. Somos obrigados a esclarecer essa questão, que pesa sobre o peito da França. Confesso ser esse o meu principal motivo para subir à tribuna hoje: que a questão do socialismo seja finalmente resolvida. Eu preciso saber, a Assembléia nacional precisa saber, toda a França precisa saber – a Revolução de Fevereiro é uma revolução socialista ou não? [“Excelente!”] Não é minha intenção analisar aqui os diferentes sistemas que possam ser classificados como socialistas. Apenas quero tentar revelar características comuns a todos eles e verificar se podemos dizer que a Revolução de Fevereiro as apresentou. A primeira característica de todas as ideologias socialistas, creio eu, é um apelo vigoroso, extremo, às todas as paixões materiais dos homens. [Sinais de aprovação.] Assim, alguns disseram: “Vamos reabilitar o corpo”; outros, que “o trabalho, mesmo os mais pesados, não deve ser apenas útil, mas prazeroso”; outros dizem que “os homens devem ser pagos não de acordo com seu mérito, mas de acordo com sua necessidade”; por fim, disseram aqui que o objetivo da Revolução de Fevereiro, do socialismo, seria proporcionar riquezas infinitas para todos. Uma segunda característica, sempre presente, é um ataque, direto ou indireto, ao princípio da propriedade privada. Desde o primeiro socialista que disse, há 50 anos, que “a propriedade é a origem de todos os males do mundo”, ao socialista que falou dessa tribuna e que, menos generoso que o primeiro, passando da propriedade para seu proprietário, exclamou que “propriedade é roubo,” todos os socialistas, insisto, todos, atacam, direta ou indiretamente, a propriedade privada. [”É verdade, é verdade.”] Não pretendo afirmar que todos que o fazem agem da forma franca e brutal que um de nossos colegas adotou. Mas digo que todos os socialistas, por meios mais ou menos diretos, se não destroem o princípio sobre o qual ela se baseia, transformam-no, diminuem-no, obstruem-no, limitam-no e moldam-no como algo completamente estranho ao que nós conhecemos e com que nos familiarizamos, desde o começo dos tempos, como propriedade privada. [Sinais de concordância.] Agora, a terceira e final característica, a qual, aos meus olhos, melhor descreve os socialistas de todas as escolas e nuances, é a profunda oposição à liberdade individual e o desprezo à liberdade de pensamento, ou seja, um total desrespeito ao indivíduo. Eles incessantemente tentam mutilar, restringir, obstruir a liberdade individual de toda e qualquer maneira. Afirmam que o Estado não deve agir apenas como diretor da sociedade, mas ser o mestre de cada homem, e não apenas o mestre, mas o guardião e instrutor. [ “Excelente.”] Por medo de permitir ao homem que erre, o Estado deve se colocar para sempre a seu lado, acima dele e em torno dele, para melhor guiá-lo e preservá-lo, ou seja, para confiná-lo. Na verdade, eles clamam pelo confisco da liberdade humana, em graus maiores ou menores, [Mais sinais de aprovação.], de forma que, se eu estivesse tentando resumir o que é o socialismo, diria que ele é simplesmente um novo sistema de servidão. [Grande aprovação.] Não entrarei na discussão dos detalhes desses sistemas. Apenas indiquei o que é o socialismo, apontando suas características universais. Elas são suficientes para permitir sua compreensão. Em qualquer lugar que você encontrar essas características, certamente encontrará o socialismo, e onde quer que o socialismo esteja, essas características são encontradas.

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SOBRE O SOCIALISMO

Cavalheiros, será que o socialismo, como tantos disseram, é a continuação, a conclusão legítima, o aperfeiçoamento da Revolução Francesa? Será que ele é, como fingem alguns, o desenvolvimento natural da democracia? Não, ele não é um nem outro. Lembrem-se da Revolução! Reexaminem as impressionantes e gloriosas origens da nossa história moderna. Como insistia ontem um orador, foi através do apelo às necessidades materiais do homem que a Revolução Francesa realizou aqueles grandes atos que maravilhou todo o mundo? Vocês acreditam que a Revolução falava de salários, de bem estar, de riquezas ilimitadas, de satisfação das necessidades materiais?

Cidadão Mathieu: Eu não disse nada desse tipo. Cidadão de Tocqueville: Você acredita que, ao falar dessas coisas, toda uma geração de homens se levantaria para lutar por elas nas fronteiras, se exporia aos riscos da guerra, enfrentariam a morte? Não, cavalheiros. A Revolução realizou aquilo tudo por falar sobre coisas grandiosas, sobre o amor a um país, sobre honrar a França, por falar de virtude, generosidade, abnegação, glória. Estejam certos, cavalheiros, que apenas através do apelo aos sentimentos mais nobres que se pode alcançar as alturas mais elevadas. [ “Excelente, excelente.” ] E em relação à propriedade, cavalheiros: é verdade que a Revolução Francesa resultou em uma guerra dura e cruel contra alguns proprietários. Porém, em relação ao princípio da propriedade privada, a Revolução sempre o respeitou. Ela o colocou no topo da lista em suas constituições. Nenhum povo tratou esse princípio com maior respeito. Ele estava gravado na fachada de suas leis. A Revolução Francesa fez ainda mais. Não apenas consagrou a propriedade privada, ela a universalizou. A Revolução viu um número ainda maior de pessoas terem acesso à propriedade. [ Exclamações variadas. “Exatamente o que queremos!”] É graças a isso, cavalheiros, que hoje não precisamos temer as conseqüências fatais das idéias socialistas que estão espalhadas por todo o país. É porque a Revolução Francesa povoou o território francês com dez milhões de proprietários que nós podemos, sem perigo, permitir que essas doutrinas apareçam entre nós. Elas podem, sem dúvida, destruir a sociedade, mas graças à Revolução Francesa, elas não prevalecerão e não nos causarão danos. [ “Excelente.” ] E finalmente, cavalheiros, a liberdade. Há uma coisa que me choca mais do que qualquer outra. É que o Antigo Regime, que sem dúvida diferia em muitos aspectos do sistema de governo que os socialistas reivindicam (e precisamos compreender isso), estava, em sua filosofia política, muito mais próximo do socialismo do que se pensa. Muito mais próximo do que estamos hoje. Na verdade, o Antigo Regime assegurava que somente o Estado era sábio e que os cidadãos são seres fracos e debilitados que devem ser eternamente guiados pela mão para que não se machuquem. Afirmava que era necessário obstruir, conter e restringir a liberdade individual; que, para assegurar a abundância dos bens materiais, era imperativo organizar a indústria e impedir a livre competição. Sob esse aspecto, o Antigo Regime propunha as mesmas coisas que os socialistas de hoje. Foi a Revolução Francesa que negou isso. Cavalheiros, o que foi isso que quebrou as correntes que, de todos os lados, impediam a livre movimentação dos homens, dos bens e das idéias? O que restabeleceu a individualidade do homem, que é a sua verdadeira grandeza? A Revolução Francesa! [ Aprovação e clamor ] Foi a Revolução Francesa que aboliu todos esses obstáculos, que arrebentou as correntes que vocês trariam de volta sob um novo nome. E não foram apenas os membros dessa assembléia imortal – a Assembléia Constituinte, a assembléia que fundou a liberdade, não apenas na França, mas em todo o mundo – que rejeitaram as idéias do Antigo Regime. Foram os homens eminentes de todas as assembléias que a seguiram! E após essa grande revolução, o resultado será aquela sociedade que os socialistas nos oferecem, uma sociedade formal, organizada, fechada, onde o Estado é responsável por tudo, onde o indivíduo não conta, onde a comunidade acumula todo o poder, toda a vida, onde o fim designado para um homem é apenas o seu bem estar material – essa sociedade em que o próprio ar sufoca e em que a luz mal consegue penetrar? Foi para essa sociedade de trabalhadores incansáveis, antes animais capacitados do que homens livres e civilizados, que a Revolução Francesa aconteceu? Foi por isso que tantos homens morreram no campo de

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batalha, na forca, que tanto sangue nobre molhou a terra? Foi por isso que tantas paixões foram inflamadas, que tanta inteligência, tanta virtude andou por essa terra? Não! Eu juro pelos homens que morreram por essa grande causa! Não foi por isso que morreram. Foi por algo muito maior, mais sagrado, que merecia mais dedicação, deles e da humanidade. [“Excelente.”] Se ela aconteceu apenas para criarmos um sistema como esse, a Revolução foi um desperdício terrível. Um Antigo Regime aperfeiçoado teria servido adequadamente. [Clamor prolongado.] Mencionei agora há pouco que o socialismo fingia ser a continuação legítima da democracia. Não pesquisei pessoalmente, como alguns de meus colegas fizeram, pela etimologia real dessa palavra, a democracia. Não vou revirar o jardim das raízes gregas, como foi feito ontem, para procurar a origem dessa palavra. [Risos.] Procuro pela democracia onde eu a vi, viva, ativa, triunfante, no único país da terra onde ela existe e no único lugar onde ela possivelmente poderia ter-se estabelecido com estabilidade no mundo moderno – na América. [Sussurros.] Lá se encontra uma sociedade na qual as condições sociais são ainda mais iguais do que entre nós; em que a ordem social, os costumes, as leis, são todas democráticas; onde todos os tipos de pessoas entraram e onde cada indivíduo ainda possui uma completa independência, mais liberdade do que se tem notícia em qualquer outro lugar ou tempo; um país essencialmente democrático, as únicas repúblicas completamente democráticas que o mundo já conheceu. E nessas repúblicas procurar-se-á em vão o socialismo. Não apenas as teorias socialistas não cativaram a opinião pública, como possuem um papel tão insignificante na vida intelectual e política dessa grande nação que não se poderia nem ao menos dizer que as pessoas as temem. Os Estados Unidos são, hoje, o único país no mundo onde a democracia é completamente soberana. Além disso, é o país onde as idéias socialistas, as quais os senhores presumem estar de acordo com a democracia, tiveram menor influência, o país onde aqueles que apóiam as causas socialistas estão, por certo, um uma posição de desvantagem. Eu, pessoalmente, não acharia inconveniente, se fossem para lá propagar sua filosofia, mas para seu próprio bem, eu não os aconselharia. [Risos]

Um deputado: As mercadorias deles estão sendo vendidas agora. Cidadão de Tocqueville: Não, cavalheiro. A democracia e o socialismo não são conceitos interdependentes. Eles não são apenas diferentes, mas filosofias opostas. É compatível com a democracia instituir um governo intrometido, superabrangente e restritivo, desde que ele tenha sido escolhido pela população e aja em nome do povo? Será que o resultado não seria a tirania, sob o disfarce de um governo legítimo que, ao se apropriar dessa legitimidade asseguraria para si o poder e a onipotência que de outra forma lhe faltaria? A democracia expande a esfera da independência pessoal; o socialismo a confina. A democracia valoriza o que o homem tem de melhor; o socialismo faz de cada homem um agente, um instrumento, um número. A democracia e o socialismo só possuem uma coisa em comum – a igualdade. Mas percebam bem a diferença. A democracia visa a igualdade através da liberdade. O socialismo busca a igualdade pela força e a servidão. [ “Excelente, excelente.”] Dessa forma, a Revolução de Fevereiro não deve ser “social”, e se é exatamente isso que ela não deve ser, devemos ter a coragem de dizê-lo. Se ela não deve ser isso, devemos ter energia para proclamar em voz alta que ela não deveria sê-lo, como faço agora. Quando alguém se opõe aos fins, deve se opor aos meios pelos quais se chega a esses fins. Quando alguém não possui nenhum desejo em relação ao fim, não deve entrar pelo caminho que levará até ele. O que foi proposto hoje foi a nossa entrada nesse caminho. Não deveremos seguir aquela filosofia política que Baboeuf abraçou com tanto entusiasmo [gritos de aprovação] – Baboeuf, o avô de todos os socialistas modernos. Não devemos cair na armadinha que ele indicou, ou melhor, sugeriu, através de seu pupilo e biógrafo Buonarotti. Ouça às palavras de Buonarotti. Elas merecem atenção, mesmo depois de cinqüenta anos.

Um deputado: Não há babovistas aqui.

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Cidadão de Tocqueville: “A abolição da propriedade individual e o estabelecimento da Grande Economia Nacional era o objetivo final de seus [de Baboeuf] trabalhos. Mas ele compreendeu bem que tal ordem não poderia ser estabelecida imediatamente após a vitória. Ele acreditava que seria essencial que o Estado agisse de tal forma que todas as pessoas aboliriam a propriedade privada através da realização de suas próprias necessidades e interesses.” Aqui estão os principais métodos que ele concebeu para realizar seu sonho. (Veja bem, ele é seu próprio panegirista, estou apenas citando.) “Para estabelecer, através das leis, uma ordem pública na qual os proprietários, provisoriamente autorizados a manter seus bens, descobririam que não possuiriam riquezas, nem o direito de dispor de seus bens ou receber por eles, em que, forçados a gastar uma grande parte de sua renda em investimentos ou impostos, esmagados sob o peso da tributação progressiva, afastados das questões públicas, privados de qualquer influência, formando, dentro do Estado, nada além de uma classe de estranhos suspeitos, seriam forçados a deixar o país, abandonar os seus bens ou limitar-se a aceitar o estabelecimento da Economia Universal.”

Um deputado: Nós já estamos nesse ponto!

Uma voz da esquerda: Sim! [ “Não! Não!” (interrupção)] Cidadão de Tocqueville:: Aqui está, senhores, o programa de Baboeuf. Espero sinceramente que esse não seja o programa da República de Fevereiro. Não, a República de Fevereiro deve ser democrática e não socialista.

Uma voz da esquerda:Sim! [ “Não! Não!” (interrupção)] Cidadão de Tocqueville: E se não for socialista, o que ela deverá ser?

Um deputado da esquerda: Monarquista! Cidadão de Tocqueville (se virando para a esquerda): Ela poderá ser, talvez, se o Sr. deixar que isso aconteça, [ grande aprovação], mas ela não será. Se a Revolução de Fevereiro não é socialista, o que, então, ela é? Será ela, como muitas pessoas dizem e acreditam, um mero acidente? Será que ela não necessariamente acarreta uma mudança completa no governo e nas leis? Eu acho que não. Quando discursei em janeiro na Câmara dos Deputados, na presença da maioria dos delegados, que murmuravam em suas mesas, embora por diferentes razões, da mesma forma que vocês murmuravam agora a pouco – [ “Excelente, excelente”] (O orador se vira à esquerda) – eu lhes disse: cuidem-se. A Revolução está no ar. Será que vocês não conseguem senti-la? A Revolução se aproxima. Será que vocês não conseguem vê-la? Estamos sentados sobre um vulcão. Ficará registrado que eu disse isso. E por quê? – [Interrupção vinda da esquerda.] Será que eu tive a fraqueza mental de supor que a revolução se aproximava porque esse ou aquele homem estava no poder, ou porque esse ou aquele acontecimento provocaram a raiva política da nação? Não, cavalheiros. O que me fez acreditar que a revolução se aproximava, o que realmente produziu a revolução, foi isso: eu vi a negação básica dos princípios mais básicos que a Revolução Francesa espalhou pelo mundo. O poder, a influência, as honras, e por que não, a própria vida, estavam sendo confinados dentro dos limites estreitos de uma só classe, como nenhum outro país do mundo antes fizera. Foi isso que me fez acreditar que a revolução estava à nossa porta. Eu vi o que aconteceria a essa classe privilegiada, o que sempre acontece quando existem aristocracias pequenas e exclusivas. O papel de estadista não existia mais. A corrupção crescia a cada dia. A intriga tomou o lugar da virtude pública e tudo se deteriorou.

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Como a classe mais alta. E entre as classes mais baixas, o que estava acontecendo? Cada vez mais se libertando, tanto intelectual quanto emocionalmente, daqueles cuja função era liderá-los, o povo em sua maioria se encontrou naturalmente inclinado em direção àqueles que lhes eram amigáveis, entre os quais estavam demagogos perigosos e utopistas inúteis daquele tipo com o qual temos nos ocupado aqui. Por eu ter visto essas duas classes, uma pequena, outra numerosa, separando-se pouco a pouco uma da outra – uma imprudente, insensível e egoísta, outra cheia de inveja, resistência e raiva, por eu ter visto essas duas classes isoladas e avançando em direções opostas, eu disse – e tinha razões para isso – que a revolução estava levantando a sua cabeça e logo estaria sobre nós. [ “Excelente!”] Era para estabelecer algo parecido com isso que a Revolução de Fevereiro aconteceu? Não, cavalheiros. Recuso-me a acreditar nisso. Tanto quanto qualquer um de vocês, acredito no contrário. Desejo o oposto, não apenas pelos interesses da liberdade, mas também pela segurança pública. Eu admito que não trabalhei pela Revolução de Fevereiro, porém, tendo ela ocorrido, desejo que ela seja uma revolução séria e comprometida, porque desejo que seja a última. Sei que apenas revoluções dedicadas perduram. Uma revolução que não defende nada, que, contaminada com a esterilidade desde seu nascimento, que destrói sem construir, não faz nada além de dar à luz novas revoluções. [Aprovações.] Assim, desejo que a Revolução de Fevereiro tenha um significado, claro, preciso e grande o suficiente para que todos vejam. E qual é esse significado? Em resumo, a Revolução de Fevereiro deve ser uma continuação real, uma execução sincera e honesta daquilo que a Revolução Francesa defendia, deve ser a atualização daquilo que nossos pais ousaram sonhar. [ Grande concordância.]

Cidadão Ledru-Rollin: Peço permissão para falar. Cidadão de Tocqueville: É isso que a Revolução de Fevereiro deve ser, nem mais nem menos. A Revolução Francesa defendia a idéia que, na ordem social, não deve haver classes. Ela nunca incentivou a divisão dos cidadãos em proprietários e proletários. Não se encontrará essas palavras, carregadas de ódio e guerra, em nenhum dos grandes documentos da Revolução Francesa. Pelo contrário, ela foi baseada na filosofia de que, politicamente, não devem existir classes; a Restauração, a Monarquia de Julho, defendiam o oposto. Devemos permanecer com nossos pais. A Revolução Francesa, como já disse, não possuía a pretensão absurda de criar uma ordem social que colocava nas mãos do Estado o controle sobre o destino, o bem estar, a afluência de cada cidadão, que substituía a altamente questionável “inteligência” do Estado pela inteligência prática e útil dos governados. Ela acreditava que essa tarefa era grande o suficiente para garantir a cada cidadão esclarecimento e liberdade. [“Excelente”.] A Revolução teve essa crença firme, nobre, orgulhosa, de que vocês parecem carecer, que é suficiente para homens corajosos e honestos ter essas duas coisas, esclarecimento e liberdade, e para não pedir nada mais daqueles que o governam. A Revolução foi baseada nessa crença. Ela não determinava tempo ou meios de viabilizá-la. É nosso dever permanecermos com ela e, dessa vez, cuidar para que ela se realize. Por fim, a Revolução Francesa desejava – e foi isso que a fez não apenas ser beatificada, mas santificada aos olhos da população – introduzir a caridade na política. Ela concebeu a noção de dever em relação aos pobres, aos que sofrem, algo mais extenso, mais universal do que qualquer coisa já implementada. É essa idéia que deve ser recapturada, não, repito, trocando a inteligência individual pela do Estado, mas agindo para ajudar aqueles que têm necessitades, aqueles que, após ter esgotado seus recursos, seriam jogados à miséria caso não lhes fosse oferecido auxílio, através de meios que o Estado já possui à sua disposição.

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Essencialmente, é isso que a Revolução Francesa buscava, e é o que nós devemos fazer. Então, eu pergunto? Será que isso é socialismo?

Grito da esquerda: Sim! Sim, o socialismo é exatamente isso. Cidadão de Tocqueville: De forma alguma! Não, isso não é socialismo, mas cristianismo aplicado à política. E não há nada que... (Interrupção...)

Cidadão Presidente: Você não pode ser ouvido. É obvio que você não possui a mesma opinião. Você terá a sua chance de falar da tribuna, mas não interrompa.

Cidadão de Tocqueville: Não há nada que dê aos trabalhadores o direito de fazer reivindicações ao Estado. Não há nada na Revolução que force o Estado a colocar-se no lugar da do cuidado individual, no lugar do mercado, no lugar da integridade individual. Não há nada que autorize o Estado a interferir nas questões industriais ou a impor suas regras à indústria, a tiranizar o indivíduo para governá-lo melhor, ou, como se afirma audaciosamente, para salvá-lo de si mesmo. Não há nada além do cristianismo aplicado à política. Sim, a Revolução de Fevereiro deve ser cristã e democrática, mas ela não deve ser, sob qualquer circunstância, socialista. Essas palavras resumem o que eu penso e encerro aqui o que eu tinha a dizer.

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POR QUE NÃO SOU CONSERVADOR

POR QUE NÃO SOU CONSERVADOR

F. A. HAYEK 1. O conservadorismo não oferece nenhum objetivo alternativo Numa época em que a maioria dos movimentos considerados progressistas advoga uma invasão cada vez maior da esfera da liberdade individual (2), aqueles que prezam a liberdade tendem a resistir a essa invasão com toda as suas energias. Ao fazê-lo, geralmente se encontram lado a lado com os que costumam resistir às mudanças. Em questões de política corrente, eles praticamente não têm outra escolha, hoje, senão apoiar os partidos conservadores. Contudo, embora a posição que tentei definir também seja muitas vezes tida como “conservadora”, é bem diferente daquela à qual tradicionalmente se costuma atribuir o termo. Uma situação em que os defensores da liberdade se unem aos verdadeiros conservadores em sua oposição comum a mudanças que ameaçam igualmente seus ideais diferentes é muito perigosa. Por essa razão, é importante distinguir claramente a posição que tomamos aqui daquela que sempre foi conhecida – talvez com maior propriedade – como conservadora. O verdadeiro conservadorismo é uma atitude legítima, provavelmente necessária, e com certeza bastante difundida, de oposição a mudanças drásticas. Desde a Revolução Francesa, representa um papel importante na política européia. Até o surgimento do socialismo, o oposto do conservadorismo era o liberalismo. Este conflito não encontra equivalente na história dos Estados Unidos da América, porquanto o que na Europa se chamava “liberalismo” aqui representava a tradição comum, sobre a qual fora constituído o Estado americano: assim, o defensor da tradição americana era um liberal no sentido europeu (3). A confusão piorou com a recente tentativa de transplantar para a América o tipo europeu de conservadorismo, que, por ser alheio à tradição americana, assumiu caráter de certo modo singular. E, além disso, os radicais e socialistas americanos já haviam começado a se denominar “liberais”. Não obstante, continuarei, por enquanto, a chamar de liberal a posição que defendo e que, acredito, difere tanto do verdadeiro conservadorismo quanto do socialismo. Contudo, devo esclarecer, desde já, que o faço com crescente apreensão e que mais tarde terei de considerar qual seria a denominação mais adequada para o partido da liberdade. Isto ocorre não apenas de o termo “liberal” nos Estados Unidos ser, hoje, causa de constantes equívocos, como também de, na Europa, o tipo predominante de liberalismo racionalista já muito tempo abrir caminho para o socialismo. Direi agora o que considero a objeção decisiva ao verdadeiro conservadorismo: por sua própria natureza, o conservadorismo não pode oferecer uma alternativa ao caminho que estamos seguindo. Por resistir às tendências atuais poderá frear desdobramentos indesejáveis, mas, como não indica outro caminho, não pode impedir sua evolução. Por esta razão, o destino do conservadorismo tem sido invariavelmente deixar-se arrastar por um caminho que não escolheu. A luta pela supremacia entre conservadores e progressistas só afeta o ritmo, não o rumo dos acontecimentos contemporâneos, mas, embora seja necessário “frear o curso do progresso” (4), pessoalmente não posso limitar-me a ajudar a puxar o freio. Antes de mais nada, os liberais devem perguntar não a que velocidade estamos avançando, nem até onde iremos, mas para onde iremos. De fato, o liberal difere muito mais do coletivista radical dos nossos dias do que o conservador. Enquanto este geralmente representa uma versão moderada dos preconceitos de seu tempo, o liberal dos nossos dias deve opor-se, de maneira muito mais positiva, a alguns dos conceitos básicos que a maioria dos conservadores compartilha com os socialistas.

2. A relação triangular dos partidos O quadro geralmente apresentado da posição relativa dos três partidos contribui muito mais para confundir do que para esclarecer suas verdadeiras relações. Habitualmente a representação é a de posições diferentes numa linha imaginária, com os socialistas à esquerda, os conservadores à direita e os liberais mais ou menos ao centro. Nada mais errôneo. Se utilizássemos um diagrama, a figura mais apropriada seria a de um triângulo, com os conservadores ocupando um ângulo, os socialistas puxando para o segundo e os liberais para o terceiro. Contudo, como os socialistas há muito tempo exercem maior pressão, o que ocorreu foi que os conservadores tenderam a ser arrastados pelo pólo socialista mais que pelo pólo liberal e, sempre que lhes

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convinha, adotaram as idéias que a propaganda radical fazia parecer respeitáveis. Comumente foram os conservadores que fizeram mais concessões ao socialismo, chegando mesmo a empunhar suas bandeiras. Defensores da política de centro (5), desprovidos de objetivos próprios, os conservadores sempre se pautaram pelo princípio de que a verdade está entre os extremos – e conseqüentemente mudam sua posição toda vez que um movimento mais radical surge em qualquer um dos lados. A posição que em determinada época podemos definir corretamente como conservadora depende, portanto, do rumo das tendências existentes no momento. Como, nessas últimas décadas, a evolução tem seguido em geral o rumo do socialismo, pode parecer que tanto conservadores quanto liberais se tenham preocupado basicamente em freá-la. Contudo, a verdade é que, fundamentalmente, o liberalismo quer tomar outro caminho, e não permanecer parado. Embora hoje possa, às vezes, subsistir a impressão contrária, porque houve uma época em que o liberalismo era mais amplamente aceito e alguns de seus objetivos estavam mais próximos de ser alcançados, nunca foi uma doutrina retrógrada. Jamais existiu período em que os liberais tivessem encontrado sua realização plena e em que o liberalismo não esperasse um aperfeiçoamento ainda maior das instituições. O liberalismo não é contrário à evolução e à mudança; e, nos casos em que transformações espontâneas são asfixiadas pelo controle governamental, advoga profundas reformas na política de governo. No que diz respeito à maioria das atividades governamentais, no mundo de hoje, os liberais não têm por que preservar a situação como está. Na verdade, o liberal acredita que o mais urgente e necessário em quase todo o mundo seja a eliminação completa dos obstáculos à evolução espontânea. O fato de nos Estados Unidos ainda ser possível defender a liberdade individual defendendo as instituições mais antigas não nos deve impedir de perceber a diferença entre liberalismo e conservadorismo. Para o liberal estas instituições são preciosas não porque existem já muito tempo, ou porque são americanas, mas porque correspondem aos ideais que tanto preza.

3. A diferença básica entre conservadorismo e liberalismo Antes de considerar os pontos principais nos quais a atitude liberal se opõe de maneira definitiva à atitude conservadora, devo salientar que os liberais poderiam ter aprendido e se beneficiado muito com as obras de alguns pensadores conservadores. Devemos ao seu dedicado e reverente estudo do valor de algumas instituições análises profundas (pelo menos fora da área econômica), que constituem verdadeiras contribuições à nossa compreensão de uma sociedade livre. Por mais reacionários que possam ter sido na política homens como Coleridge, Bonald, De Maistre, Justus Möses ou Donoso Cortès, eles mostraram uma compreensão do significado das instituições que evoluíram espontaneamente, como por exemplo, o idioma, o direito, a moral e as convenções, que antecipou as perspectivas científicas modernas, que poderia ter sido útil aos liberais. Mas a admiração dos conservadores pela evolução espontânea geralmente se aplica apenas ao passado. Em geral, falta-lhes a coragem de aceitas as mudanças não planejadas das quais surgirão novos instrumentos da realização humana. Com isso, chegamos ao primeiro ponto no qual as atitudes liberais e conservadoras diferem radicalmente. Como muitas vezes os escritores conservadores reconheceram, uma das principais características da atitude conservadora é o medo da mudança, uma desconfiança tímida em relação ao novo enquanto tal (6), ao passo que a posição liberal se baseia na coragem e na confiança, na disposição de permitir que as transformações sigam seu curso, mesmo quando não podemos prever aonde nos levarão. Não haveria por que contestar os conservadores se eles simplesmente não gostassem de mudanças muito rápidas nas instituições e na política de governo; de fato, neste caso, justifica-se o cuidado e o lendo progresso. Mas os conservadores tendem a utilizar os poderes do governo para impedir as mudanças ou limitar seu âmbito àquilo que agrada às mentes mais tímidas. Ao contemplar o futuro, carecem de fé nas forças espontâneas de ajustamento, que levam os liberais a aceitar mudanças sem apreensão, mesmo sem saber como as adaptações necessárias se efetivarão. Com efeito, faz parte da atitude liberal supor que, especialmente no campo econômico, as forças auto-reguladoras do mercado de alguma maneira gerarão os necessários ajustamentos às novas condições, embora ninguém possa prever como farão isso no caso particular. Talvez não exista um fator que contribui mais para as pessoas freqüentemente se mostrarem relutantes em deixar que o mercado funcione do que sua incapacidade de conceber como, sem controle deliberado, pode surgir o equilíbrio necessário entre a oferta e a procura,

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entre as importações e as exportações, e assim por diante. O conservador só se sente seguro e satisfeito quando tem a garantia de que alguma sabedoria superior observa e supervisiona as mudanças, somente quando sabe que já uma autoridade encarregada de verificar que elas se dêem dentro da “ordem”. Esse temor em confiar em forças sociais incontroladas está intimamente ligado a duas outras características do conservadorismo: sua paixão pela autoridade e sua falta de compreensão das forças econômicas. Como não confia nem em teorias abstratas nem em princípios gerais (7), não compreende as forças espontâneas nas quais se baseia uma política de liberdade nem dispõe de bases para formular princípios de política de governo. Para os conservadores, a ordem aparece como o resultado da atenção contínua da autoridade, à qual, para tanto, se deve permitir tomar qualquer medida necessária em circunstâncias especificar, sem que se precise ater-se a uma norma rígida. A aceitação de princípios pressupõe uma compreensão das forças gerais que coordenam as ações humanas na sociedade; porém, é exatamente de tal teoria da sociedade e em especial da teoria do mecanismo econômico que o conservadorismo evidentemente carece. O conservadorismo foi completamente incapaz de elaborar um conceito geral sobre a maneira pela qual a ordem social consegue sustentar-se, e seus modernos defensores, ao tentar construir uma base teórica, quase sempre acabaram apelando quase exclusivamente para autores que se consideravam liberais. Macaulay, Tocqueville, Lord Acton e Lecky certamente se consideravam liberais e com justiça; e mesmo Edmund Burke permaneceu um Whig da velha guarda até o fim e estremeceria à simples idéia de ser considerado um Tory. Voltemos, porém, ao assunto principal, que é a característica complacência dos conservadores com os atos da autoridade estabelecida e sua preocupação primordial de que essa autoridade não seja enfraquecida e não de que seu poder seja mantido dentro de certos limites. Isto não se concilia com a preservação da liberdade. Em termos gerais, poderíamos afirmar que o conservador não se opõe à coerção ou ao poder arbitrário, desde que utilizador para fins que ele julga válidos. Ele acredita que, se o governo for confiado a homens probos, não deve ser limitado por normas demasiado rígidas. Como se trata de indivíduo essencialmente oportunista e desprovido de princípios, ele espera que os bons e os sábios governem, não meramente pelo exemplo, como todos queremos, mas por uma autoridade a eles conferida e por eles exercida (8). Como o socialista, o conservador preocupa-se menos com o problema de como deveriam ser limitados os poderes do governo do que com o de quem irá exercê-los; e, como o socialista, também se acha no direito de impor às outras pessoas os valores nos quais acredita. Quando digo que o conservador carece de princípios, não quero com isso afirmar que ele careça de convicção moral. O conservador típico é, de fato, geralmente um homem de convicções morais muito fortes. O que quero dizer é que ele não tem princípios políticos que lhe permitam promover, junto com pessoas cujos valores morais divergem dos seus, uma ordem política na qual todos possam seguir suas convicções. É o reconhecimento desses princípios que possibilita a coexistência de diferentes sistemas de valores, a qual, por sua vez, permite construir uma sociedade pacífica, com um emprego mínimo da força. Sua aceitação significa que podemos tolerar muitas situações com as quais não concordamos. Há muitos valores conservadores que me atraem mais do que muitos valores socialistas, porém a importância que um liberal atribui a objetivos específicos não lhe serve de justificativa suficiente para obrigar outros a submeter-se a eles. Não duvido que alguns de meus amigos conservadores ficarão chocados com as “concessões” às opiniões modernas que eu teria feito na Parte III deste livro. Contudo, embora possa não gostar, tanto quanto eles, de algumas das medidas mencionadas e até votasse contra elas, não conheço nenhum princípio geral ao qual recorrer para persuadir os que têm opinião diferente de que tais medidas são inaceitáveis na sociedade que eu e eles desejamos. Para conviver com os outros é preciso muito mais do que fidelidade aos nossos objetivos concretos. É necessário um comprometimento intelectual com um tipo de ordem em que, até nas questões que um indivíduo considera fundamentais, os demais têm o direito de buscar objetivos diferentes. É por esse motivo que para o liberal os ideais morais, bem como os ideais religiosos, não podem ser objeto de coerção, enquanto conservadores e socialistas não reconhecem esses limites. Às vezes, penso que o atributo mais marcante do liberalismo, que o distingue tanto do conservadorismo, quanto do socialismo, é a idéia de que convicções morais quanto a questões de conduta que não interferem diretamente com a esfera individual protegida pela lei não justificam a coerção dos demais. Isso também pode explicar por que parece muito mais fácil para o socialista arrependido encontrar um novo lar espiritual entre os conservadores do que entre os liberais.

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Em última análise, a posição conservadora baseia-se no princípio de que, em qualquer sociedade, há indivíduos reconhecidamente superiores, cujos valores, padrões e posições, sua herança espiritual, precisariam ser protegidos, e que deveriam exercer maior influencia nos assuntos públicos do que os demais. Obviamente, o liberal não nega que existam pessoas superiores; ele não é um defensor do igualitarismo. O que ele nega é que qualquer um possa ter a autoridade de decidir quem são essas pessoas superiores. Enquanto os conservadores tendem a defender uma determinada hierarquia estabelecida e pretendem que a autoridade proteja o status daqueles que eles prezam, os liberais acreditam que não haja respeito por valores estabelecidos que justifique o recurso ao privilégio ou ao monopólio ou a qualquer poder coercitivo do Estado para proteger estas pessoas das forças da transformação econômica. Embora o liberal esteja plenamente cônscio do importante papel que as elites culturais e intelectuais representaram no avanço da civilização, também crê que essas elites devem dar provas da capacidade de manter sua posição obedecendo às mesmas normas aplicadas a todos os outros. Intimamente ligada a isso é a atitude comum dos conservadores em relação à democracia. Já deixei claro anteriormente que não considero o governo da maioria um fim em si mesmo, mas apenas um meio, ou talvez mesmo a menos nociva das formas de governo existente. Mas penso que os conservadores enganam a si próprios quando atribuem à democracia todos os males de nosso tempo. O mal maior é o governo ilimitado, e ninguém tem o direito de fazer uso de um poder ilimitado (9). Os poderes de que a democracia moderna dispõe seriam ainda mais intoleráveis nas mãos de alguma pequena elite. Sem duvida alguma, foi somente quando o poder passou para as mãos da maioria que se julgou desnecessário continuar limitando o poder do Estado. Nesse sentido, democracia e Estado com poderes ilimitados estão intimamente ligados. Inaceitável não é a democracia, e sim o Estado com poderes ilimitados, e não vejo por que os indivíduos não devam ter o direito de aprender a limitar o âmbito do governo da maioria bem como o de qualquer outra forma de governo. Seja como for, as vantagens da democracia como método de mudança pacífica e de educação política parecem tão imensas, se comparadas com as de qualquer outro sistema, que não consigo simpatizar com a corrente antidemocrática do conservadorismo. Não é quem governa, mas o grau de poder do governo, que me parece ser o problema essencial. Está claramente demonstrado na esfera econômica que a oposição dos conservadores a um exagerado controle governamental não constitui uma questão de princípio, mas visa aos objetivos específicos do governo. Os conservadores geralmente se opõem às medidas coletivistas e dirigistas na área industrial e, neste caso, os liberais freqüentemente encontrarão neles aliados. Mas, ao mesmo tempo, os conservadores adoram comumente uma atitude protecionista e já, muitas vezes, apoiaram medidas socialistas na agricultura. De fato, embora as restrições hoje feitas à indústria e ao comércio sejam principalmente conseqüência de opiniões socialistas, as restrições igualmente importantes na área da agricultura foram em geral introduzidas pelos conservadores, em época anterior. E, em sua tentativa de desacreditar a livre iniciativa, muitos líderes conservadores rivalizaram com os socialistas (10).

4. A fraqueza do conservadorismo Já me referi às diferenças entre conservadorismo e liberalismo no campo puramente intelectual; pretendo, porém, retomar o tema porque, nele, a típica atitude do conservadorismo não apenas constitui uma séria fraqueza como também tende a prejudicar qualquer movimento que a ele se alie. Os conservadores instintivamente acreditam que, mais do que qualquer outro fator, são as novas idéias que ocasionam as mudanças. Contudo, corretamente do seu ponto de vista, o conservadorismo teme novas idéias porque não dispõe de princípios próprios para opor a elas; e, por desconfiar da teoria e faltar-lhe imaginação quanto a qualquer conceito que a experiência ainda não tenha comprovado, o conservadorismo pauta seu comportamento pelo conjunto de idéias herdadas em dado momento. E, como geralmente não acredita no poder do debate, seu último recurso é, em geral, alegar uma sabedoria superior, fundamentada em uma virtude elevada que ele próprio se atribui. Este contraste se manifesta mais claramente nas diferentes atitudes de ambas as tradições em relação ao avanço do conhecimento. Embora o liberal não considere toda mudança um progresso, ele encara o avanço do conhecimento como uma das metas principais do esforço humano e confia em que lhe proporcione uma

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solução gradual para os problemas e dificuldades que esperamos poder resolver. Sem preferir o novo apenas por ser novo, o liberal está consciente de que é da essência da realização humana produzir o novo; e está preparado para conviver com o novo conhecimento, goste ou não de seus efeitos imediatos. Pessoalmente, acho que o aspecto mais reprovável da atitude conservadora é sua tendência a rejeitar novos conhecimentos, ainda que bem fundamentados, porque desaprova algumas das conseqüências que aparentemente decorrem deles – ou, mais francamente, seu obscurantismo. Não nego que os cientistas, como qualquer pessoa, são dados a modismos e excentricidades e que devemos ser cautelosos em aceitas as conclusões às quais os levam suas teorias mais recentes. Mas os motivos de nossa relutância precisam ser racionais e não devem ser condicionados pela consternação que sentimos quando as novas teorias abalam nossas mais caras convicções. Sou pouco paciente com os que se opõem, por exemplo, à teoria da evolução ou às chamadas explicações “mecanicistas” dos fenômenos da vida, simplesmente por causa de algumas conseqüências morais que, a princípio, parecem decorrer dessas teorias, e ainda menos paciente com os que consideram irreverente e ímpio indagar a respeito de certas questões. Ao recusar-se a enfrentar os fatos, o conservador contribui para enfraquecer sua própria posição. Freqüentemente, as conclusões que a mentalidade racionalista tira das novas interpretações científicas de modo algum decorrem delas. Contudo, somente se tomarmos parte da avaliação das conseqüências da novas descobertas saberemos se elas se adaptam ou ao à nossa visão de mundo, e, em caso afirmativo, como se adaptam. Caso se comprove que nossas convicções morais dependem de pressupostos factuais errados, não seria moral defender tais convicções recusando-nos a reconhecer os fatos. Aliada à desconfiança dos conservadores em relação a tudo que é novo e incomum está sua hostilidade ao internacionalismo e sua tendência a um nacionalismo exagerado. Isto também contribui para enfraquecer sua posição na luta das idéias, e não pode alterar o fato de as concepções que estão modificando nossa civilização não respeitarem fronteiras. Entretanto, a recusa de estudar novas idéias acaba simplesmente privando o indivíduo do poder de opor-se efetivamente a elas quando necessário. A evolução das idéias é um processo universal e somente os que participam ativamente dos debates poderão exercer uma influência significativa. Não é válido argumentar que uma idéia é antiamericana, antibritânica ou antigermanica, tampouco um ideal errôneo ou perverso é melhor somente por ter sido concebido por um de nossos compatriotas. Muito mais poderia dizer da estreita relação entre conservadorismo e nacionalismo, mas não me deterei na questão porque pode parecer que minha posição me impede de simpatizar com qualquer forma de nacionalismo. Acrescentarei apenas que normalmente é a tendência nacionalista que leva o conservadorismo a se aproximar do coletivismo: é muito pequena a distância que vai entre pensar em termos de “nossa” indústria ou “nossos” recursos e exigir que esse patrimônio nacional seja administrado de acordo com o interesse nacional. Contudo, quanto a esse aspecto, o liberalismo do continente europeu derivado da Revolução Francesa praticamente não difere do conservadorismo. Não é necessário dizer que esse tipo de nacionalismo é plenamente compatível com um profundo respeito pelas tradições nacionais. Porém, o fato de eu preferir e mesmo reverenciar algumas tradições de minha sociedade não precisa obrigar-me a ser hostil a tudo que seja incomum e diferente. Somente à primeira vista parecer paradoxal que o antiinternacionalismo conservador seja tão freqüentemente associado ao imperialismo. Na verdade, quanto mais uma pessoa não gosta do que é diferente e julga superiores os seus métodos, mais tenderá a considerar sua missão “civilizar” os demais (11), não pelas relações livres e voluntárias preferidas pelos liberais, mas proporcionando-lhes as graças de um governo eficiente. É significativo que nesse aspecto habitualmente encontremos os conservadores de mãos dadas com os socialistas, contra os liberais, não apenas na Inglaterra, conde os Webb (12) e seus fabianos (13) eram francamente favoráveis ao imperialismo, ou na Alemanha, onde o socialismo de Estado e o expansionismo colonial caminhavam lado a lado e encontravam apoio do mesmo grupo de “socialistas de cátedra”, mas também nos Estados Unidos, onde, até durante o mandato de Theodore Roosevelt, se observou que “os jingoístas e os reformadores sociais (14) se uniram e formaram um partido político que ameaçou tomar o governo e utilizá-lo para seu programa de paternalismo cesarista, perigo que agora parece ter sido conjurado somente pelo fato de que os outros partidos adotaram seu programa abrandando seu conteúdo e forma” (15).

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5. Racionalismo, anti-racionalismo e irracionalismo Há um aspecto, porém, que podemos afirmar que o liberal ocupa uma posição de centro, a meio caminho entre o socialista e o conservador: ele está tão distante do racionalismo primitivo do socialista, que pretende reconstruir todas as instituições de acordo com um padrão prescrito por sua razão individual, quanto do misticismo ao qual o conservador freqüentemente precisa recorrer. O que defini como a posição liberal tem em comum com o conservadorismo uma desconfiança em relação à razão, na medida em que o liberal está muito consciente de que não sabemos todas as respostas e não tem certeza de que as respostas de que dispõe sejam de fato as certas ou mesmo se poderemos ter respostas para tudo. Além disso, o liberal não se recusa a buscar o apoio de quaisquer hábitos ou instituições não racionais que revelaram válidos. O liberal difere do conservador na disposição de aceitar esta ignorância e de admitir que sabemos muito pouco, sem reivindicar uma autoridade de origem supranatural do conhecimento sempre que rua razão falhar. Deve-se admitir que o liberal, em alguns casos, é fundamentalmente um cético (16) – mas aparentemente é necessário certo grau de desconfiança para deixar que os outros busquem sua felicidade à sua maneira e para defender com coerência esta tolerância, que é uma característica essencial do liberalismo. Isto não significa necessariamente que um liberal não tenha uma convicção religiosa. Ao contrário do racionalismo da Revolução Francesa, o verdadeiro liberalismo não é contrário à religião, e apenas posso deplorar a militância anti-religiosa, essencialmente não liberal, que animou grande parte do liberalismo no continente europeu no século XIX. No entanto, tal característica não é essencial ao liberalismo, como o demonstram claramente seus ascendentes ingleses, os antigos Whigs, que, ao contrário, talvez simpatizem demais com uma determinada crença religiosa. Nesse aspecto, o que distingue o liberal do conservador é que, por mais profundas que sejam suas convicções espirituais, ele nunca se considerará no direito de impô-las aos demais e o fato de, para ele, o espiritual e o temporal serem esferas distintas que não devem ser confundidas.

6. A denominação do partido da liberdade O que afirmei até agora deveria bastar para explicar por que não me considero um conservador. Muitos acharão, contudo, que essa posição dificilmente corresponde ao que costumavam chamar de “liberal”. Portanto, verificamos agora se esta denominação ainda é adequada ao partido da liberdade. Já observei que, embora durante toda minha vida eu me tenha definido um liberal, nos últimos tempos tenho feito isto com crescente apreensão – não apenas porque nos Estados Unidos o termo liberal dá margem a constantes equívocos, mas também porque me venho tornando cada vez mais consciente da grande distância existente entre a minha posição e a do liberalismo racionalista do continente europeu ou mesmo a do liberalismo inglês dos utilitaristas. Ficaria extremamente orgulhoso de me definir um liberal, se liberalismo ainda tivesse o significado que lhe atribuiu um historiador inglês que, em 1827, falava da revolução de 1688 como o “triunfo dos princípios que, na linguagem de hoje, são chamados liberais ou constitucionais” (17), ou se ainda pudéssemos, com Lord Acton, classificar Burke, Macaulay e Gladstone como os três maiores liberais, ou se fosse ainda possível, com Harold Laski, considerar Tocqueville e Lord Acton “os liberais mais autênticos do século XIX” (18). Porém, por mais que me sinta tentado a julgar o liberalismo desses pensadores um verdadeiro liberalismo, devo reconhecer que os liberais do continente europeu, em sua maioria, defenderam idéias às quais aqueles pensadores se opuseram firmemente e que foram motivados mais pelo desejo de impor ao mundo um padrão racional preconcebido do que pela vontade de favorecer uma evolução espontânea. O mesmo ocorre como o movimento que se denominou liberalismo na Inglaterra, pelo menos desde os tempos de Lloyd George. É, portanto, necessário reconhecer que o que chamei de “liberalismo” pouca relação tem com qualquer movimento político que hoje assim se denomina. Também se pode questionar se as associações históricas evocadas atualmente por esse termo favorecem o êxito de qualquer movimento. É possível discordar quanto à conveniência de, em tais circunstâncias, tentarmos resgatar o termo daquilo que consideramos seu emprego incorreto. Pessoalmente, acredito cada vez mais que utilizá-lo sem longas explicações gera enorme confusão e que, como rótulo, se tornou mais obstáculo do que força motriz.

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Nos Estados Unidos, onde se tornou quase impossível usar o termo “liberal” no sentido em que o utilizei, emprega-se em seu lugar o termo “libertário”. Talvez esteja aí a resposta; no entanto, de minha parte, considero-a particularmente sem atrativo. Na minha opinião, tem um excessivo sabor artificial, de sucedâneo. Eu preferiria um termo que definisse o partido da vida, o partido que apóia o crescimento livre e a evolução espontânea. Mas, por mais que me esforçasse, não consegui encontrar um termo descritivo e confiável.

7. Recorrendo aos velhos “Whigs” Caberia recordar, entretanto, que, quando os ideais que venho tentando reafirmar se difundiram pela primeira vez no mundo ocidental, o partido que os representava tinha um nome famoso. Foram os ideais dos Whigs ingleses que inspiraram o que mais tarde ficou sendo conhecido em toda a Europa como o movimento liberal (19) e deram origem aos conceitos que os colonizadores americanos levaram consigo e que os guiaram em sua luta pela independência e no estabelecimento de sua Constituição (20). De fato, até o momento em que o caráter desta tradição foi alterado pelas idéias oriundas da Revolução Francesa, com sua democracia totalitária e suas inclinações socialistas, o partido da liberdade era conhecido pelo nome Whig. Esse termo morreu no país em que nasceu, em parte porque, durante algum tempo, os princípios que ele representava deixaram de ser distintivos de apenas um partido e, em parte, porque os homens que se denominavam Whigs não permaneceram fiéis a seus princípios. Os próprios partidos Whig do século XIX, tanto na Grã-Bretanha quanto nos Estados Unidos, acabaram fazendo cair em descrédito o nome do partido entre os radicais. Todavia, ainda é verdade que, como o liberalismo tomou o lugar do whiguismo somente depois que o movimento pela liberdade absorveu o racionalismo grosseiro e militante da Revolução Francesa e como nossa tarefa em grande parte é libertar essa tradição das influências de um exagerado racionalismo, nacionalismo e socialismo que nela penetraram, whiguismo é historicamente o nome correto para designar as idéias nas quais acredito. Quanto mais aprendo a respeito da evolução das idéias, mais tenho consciência de que sou um impenitente Whig da velha guarda. O fato de me confessar um velho Whig obviamente não significa que pretendo voltar à situação em que nos encontrávamos no fim do século XVII. Um dos propósitos deste livro foi mostrar que as doutrinas, formuladas pela primeira vez naquela época, continuaram a crescer e a se desenvolver até cerca de setenta ou oitenta anos atrás, embora já tivessem deixado de constituir o objetivo principal de um partido específico. Desde então, aprendemos muitas noções que nos deveriam permitir reafirmar aquelas doutrinas de maneira mais satisfatória e eficaz. Entretanto, embora exijam uma reformulação à luz de nosso conhecimento atual, os princípios básicos permanecem os mesmos dos velhos Whigs. Indubitavelmente, a história mais recente do partido com esta denominação levou alguns historiadores a se perguntar se de fato existiu um corpo de princípios Whig; no entanto, só posso concordar com Lord Acton em que, embora alguns “patriarcas da doutrina gozassem de péssima fama, o conceito de uma lei superior, acima dos códigos municipais, com a qual se iniciou o whiguismo, constitui o feito supremo dos ingleses e seu grande legado para a nação” (21), e, podemos acrescentar, para o mundo. Trata-se da doutrina sobre a qual se assenta a tradição comum dos países anglo-saxônios. É a doutrina da qual o liberalismo do continente europeu absorve tudo que ela tem de mais valioso. É a doutrina em que se fundamenta o sistema americano de governo. Em sua mais pura forma, é representada nos Estados Unidos não pelo radicalismo de Jefferson, nem pelo conservadorismo de Hamilton ou mesmo de John Adams, mas pelas idéias de James Madison, o “pai da Constituição” (22). Não sei se ressuscitar esse velho nome será uma medida prática. O fato de que para o povo, tanto nos países anglo-saxônios, como nos demais, hoje, o termo não possui conotações definidas talvez seja mais uma vantagem do que uma desvantagem. Para as pessoas que conhecem a história das idéias, é certamente a única denominação que expressa o significado da tradição. E, se whiguismo define o que os verdadeiros conservadores e mais ainda os inúmeros socialistas que se tornaram conservadores mais cordialmente odeiam, isto revela um instinto sadio de sua parte. De fato, esta palavra define o único conjunto de ideais que sempre se opôs a todo poder arbitrário.

8. Princípios e possibilidades práticas

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Pode-se indagar se o nome do partido da liberdade é realmente tão importante. Num país como os Estados Unidos, que de modo geral ainda tem instituições livres e onde, portanto, a defesa daquilo que existe é quase sempre a defesa da liberdade, talvez não seja prejudicial os defensores da liberdade se intitularem conservadores, embora, mesmo aqui, sua associação com indivíduos de natureza conservadora muitas vezes represente motivo de constrangimento. Até quando indivíduos apóiam as mesmas medidas ou instituições, deve-se perguntar se eles as aprovam simplesmente porque existem ou porque são intrinsecamente boas. Não se deve permitir que sua resistência comum à tendência coletivista nos impeça de compreender que a crença na liberdade integral se baseia essencialmente numa atitude de corajosa aceitação do futuro e não em uma atitude nostálgica em relação ao passado, tampouco em uma admiração romântica por aquilo que foi. É, porém, absolutamente imperativa a necessidade de uma distinção clara quando, como ocorre em vários países da Europa, os conservadores já aceitaram em grande parte o credo coletivista – que já tanto tempo domina a política, que muitas de suas instituições já são aceitas como um fato consumado, constituindo motivo de orgulho para os partidos “conservadores” que as criaram (23). Nesse caso, os que acreditam na liberdade não podem evitar o conflito com os conservadores e são obrigados a adotar uma atitude basicamente radical contra os preconceitos populares, as posições de poder estabelecidas e os privilégios profundamente arraigados. Tolices e abusos não mudam sua essência apenas porque se tornaram princípios de política de governo consagrados pelo tempo. Embora a máxima quieta non movere possa, em algumas ocasiões, conter muita sabedoria para o estadista, não pode satisfazer um filósofo político. O filósofo pode desejar que certa medida seja com cautela, e não antes que a opinião pública esteja preparada a apoiá-la; mas não pode aceitar medidas apenas porque sancionadas pela opinião pública corrente. Num mundo em que a necessidade básica se tornou, como no início do século XIX, libertar o processo de crescimento espontâneo dos obstáculos e das dificuldades criados pela insensatez humana, as esperanças do filósofo político devem concentrar-se na persuasão e na obtenção do apoio daqueles que por natureza são “progressistas”, aqueles que, embora atualmente busquem mudanças na direção errada, pelo menos estão dispostos a examinar criticamente o que existe e a modificá-lo sempre que necessário. Espero não ter levado o leitor a interpretar mal a palavra “partido”, que utilizei para designar grupos de pessoas que defendem um conjunto de princípios intelectuais e morais. Não foi objetivo deste livro tratar da política partidária de um país ou outro. O filósofo político deverá deixar que o “animal astuto e traiçoeiro, vulgarmente chamado de estadista, ou político, cujas opiniões são fruto da momentânea flutuação dos fatos” (24), resolva a questão de como os princípios que tentei reconstituir juntando os fragmentos de uma tradição podem traduzir-se em um programa de atração popular. A tarefa do filósofo político é influenciar a opinião pública e não organizar o povo para a ação. E ele terá êxito somente se não se voltar para aquilo que é politicamente possível agora, mas defender com firmeza “os princípios gerais duradouros” (25). Nesse sentido, duvido que possa existir uma filosofia política conservadora. O conservadorismo pode muitas vezes representar um conceito útil e prático, mas não nos proporciona nenhum princípio orientador capaz de influenciar a evolução futura.

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NOTAS (1) – A epígrafe do posfácio foi extraída de Acton, History of Freedom, página 1. (2) – Isto ocorre há mais de um século e, já em 1855, J. S. Mill dizia (ver meu livro John Stuart Mill and Harriet Taylor [Londres e Chicago, 1951], página 216) que “quase todos os projetos dos reformadores sociais de hoje são realmente liberticidas”. (3) – B. Crick, “The Strange Quest for na American Conservatism”, Review of Politics, XVII (1955), 365, afirma com razão que “o Americano normal que se intitula ‘conservador’ é na verdade liberal”. Parece que a relutância desses conservadores em recorrer a essa denominação, mais adequada, só começou com o abuso do termo durante a época do “New Deal”. (4) – A expressão foi empregada por R. G. Collingwood, The New Leviathan (Oxford: Oxford University Press, 1942), página 209. (5) – O atual primeiro-ministro britânico Harold Macmillan escolheu este título para seu livro programático The Middle Way (Londres, 1938). (6) – Ver Lord Hugh Cecil, Conservatism (“Home University Library” [Londres, 1912]), página 9: “O conservadorismo natural… é uma atitude contrária à mudança, que decorre em parte de certa desconfiança em relação ao desconhecido”. (7) – Ver a reveladora descrição que o conservador K. Feilling faz de si mesmo em Sketches in Nineteenth Century Biography (Londres, 1930), página 174: “A direita, como um todo, tem horror a idéias, pois não é o homem prático, nas palavras de Disraeli, ‘aquele que põe em uso os erros de seus predecessores’? Por longos períodos de sua história, os direitistas indiscriminadamente resistiram a todos os avanços e, ao reclamar o respeito pelos antepassados, muitas vezes costumam reduzir a opinião ao preconceito individual do passado. Sua posição se tornará ainda mais fácil de ser defendida, porém mais complexa, se acrescentarmos que esta direita domina incessantemente a esquerda; que ela vive da constante inoculação de idéias liberais e desta forma sofre as conseqüências de uma situação de compromisso que nunca chega a ser definida.” (8) – Espero que me desculpem por estar repetindo aqui as palavras com as quais, em outra situação, defini uma importante questão: “O principal mérito do individualismo que [Adam Smith] e seus contemporâneos defenderam é aquele de constituir um sistema no qual os homens maus podem ocasionar um mínimo de prejuízo. Trata-se de um sistema social que não depende para seu funcionamento de encontrarmos bons homens para dirigi-lo, nem de que todos os homens se tornem melhores do que são, mas de um sistema que utiliza homens em toda a sua variedade e complexidade, algumas vezes bons e algumas vezes maus, algumas vezes inteligentes e muitas vezes imbecis” (Individualism and Economic Order [Londres e Chicago, 1948], página 11). (9) – Cf. Lord Acton em Letters of Lord Acton to Mary Gladstone, ed. H. Paul (Londres, 1913), página 73: “O perigo não é que uma classe não tenha capacidade de governar. Nenhuma classe tem capacidade de governar. A lei da liberdade tende a abolir o predomínio de uma raça sobre outra, de um credo sobre outro, de uma classe social sobre outra”. (10) – J. R. Hicks falou com propriedade, quanto a esse assunto, da semelhança entre as “caricaturas do jovem Disraeli, de Marx e de Goebbels” (“The Pursuit of Economic Freedom”, What We Defend, Ed. E. F. Jacob (Oxford [Oxford University Press, 1942], página 96). Sobre o papel dos conservadores a esse respeito ver também a minha Introdução à obra Capitalism and the Historians, por mim editada (Chicago: University of Chicago Press, 1954), páginas 19 e seguintes. (11) – C.f. J. S. Mill, On Liberty, ed. R. B. McCallum (Oxford, 1946), página 83: “Na minha opinião, nenhuma comunidade tem o direito de obrigar outra a se civilizar”.

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(12) – N.T. – Sidney e Bratrice Webb. (13) – N.T. – Fabian Society – organização socialista fundada em 1884 na Inglaterra. (14) – N.T. – Referência ao “movimento progressista”, que se iniciou em 1910 e se cristalizou em 1911, com a fundação da Liga Nacional Republicana Progressista, base de sustentação da candidatura do ex-presidente Theodore Roosevelt, dissidente republicano e líder dos progressistas, à presidência dos Estados Unidos na campanha de 1912. (15) – J. W. Burgess, The Reconciliation of Government with Liberty (Nova Iorque, 1915), página 380. (16) – Cf. Learned Hand, The Spirit of Liberty, Ed I. Dilliard (Nova Iorque, 1923), página 190: “O espírito da liberdade é aquele que não tem total convicção de estar certo”. Ver também a famosa frase de Oliver Cromwell em sua Letter to the Gerneral Assembly of the Church of Scotland, 3 de agosto de 1650: “Eu vos suplico, pelas entranhas de Cristo, pensai se não estaríeis errados”. É significativo que essa seja provavelmente a frase mais conhecida do único “ditador” da história britânica! (16) – H. Hallam, Constitutional History, 1827 (ed. “Everyman”), III, 90. Segundo se afirma freqüentemente, o termo “liberal” deriva do nome do partido dos liberales espanhóis no início do século XIX. No entanto, estou mais inclinado a acreditar que derive do termo utilizado por Adam Smith, por exemplo em W. o. N., II, 41: “o sistema liberal de livre exportação e livre importação” e página 216: “permitir que cada homem persiga seu interesse pessoal à sua maneira, baseado na idéia liberal de igualdade, liberdade e justiça.” (17) – Lord Acton em Letters to Mary Gladstone, página 44. Cf. também sua opinião a respeito de Tocqueville em Lectures on the French Revolution (Londres, 1910), página 357: “Tocqueville era um Liberal da mais pura cepa – um liberal e nada mais, profundamente desconfiado da democracia e seus congêneres, igualdade, centralização e utilitarismo”. Também em Nineteenth Century, XXXIII (1893), 885. A afirmação de H. J. Laski ocorre em “Alexis de Tocqueville and Democracy”, em The Social and Political Ideas of Some Representative Thinkers of the Victorian Age, ed. F. J. C. Hearnshaw (Londres, 1933), página 100, onde ele diz: “Penso que é possível entender sua posição (Tocqueville) e a de Lord Acton a respeito do poder total considerando que eram os liberais mais autênticos do século XIX”. (18) – Já no começo do século XVIII, um observador inglês afirmava: “Praticamente nunca vi um estrangeiro vivendo na Inglaterra, fosse ele de origem holandesa, alemã, francesa, italiana ou turca, que não se tornasse Whig em pouco tempo, depois de conviver conosco” (Citado por G. H. Guttridge, English Wiggism and the American Revolution [Berkeley: University of California Press, 1942], página 3). (19) – Nos Estados Unidos, no século XIX, o uso do termo Whig infelizmente apagou da memória o fato de que este mesmo termo, no século XVIII, representava os princípios básicos que pautaram a revolução, conquistaram a independência e moldaram a Constituição. Foi nas sociedades Whig que o jovem James Madison e John Adams desenvolveram seus ideais políticos. (cf. E. M. Burns, James Madison [New Brunswick, N. J.: Rutgers University Press, 1938], página 4); foram os princípios Whig que, como Jefferson diz, orientaram todos os juristas que constituíam a grande maioria dos signatários da Declaração da Independência e dos membros da Comissão Constitucional (ver Writings of Thomas Jefferson [“Memorial Ed.” (Washington, 1905)], XVI, 156). A defesa dos princípios Whig foi levada a tal ponto que mesmo os soldados de Washington se vestiam com o tradicional “azul e ocre”, as cores dos Whigs, assim como os foxites (N. T.: seguidores de Charles James Fox [1749-1806], político britânico que se tornou um dos mais destacados membros do grupo Whig, liderado por Edmund Burke) do Parlamento britânico, que foram preservadas até nossos dias nas capas da Edinburgh Rewiew. Se uma geração socialista fez do whiguismo seu alvo principal, esta é mais uma razão para os adversários do socialismo defenderem esta denominação, hoje a única que define corretamente os princípios dos liberais gladstonianos, dos homens da geração de Maitland, Acton e Bryce, a última geração cujo objetivo principal era a liberdade e não a igualdade ou a democracia. (20) – Lord Acton, Lectures on Modern History (Londres, 1906), página 218

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(21) – Cf. S. K. Padover na sua Introdução a The Complete Madison (Nova Iorque, 1953), página 10: “Na terminologia moderna, Madison seria rotulado como liberal centrista e Jefferson como um radical”. Isto é correto e importante, embora devamos recordar que E. S. Corwin (“James Madison: Layman, Publicist e Exegete”, New York University Law Review, XXVII [1952], 285) fale na “rendição [final de Madison] à influência do radicalismo de Jefferson”. (22) – Cf. a profissão de fé política do Partido Conservador britânico, The Right Road for Britain (Londres, 1950), páginas 41-42, que declara, justificadamente, que “esta nova concepção [dos serviços sociais] foi aperfeiçoada pelo governo de coalizão com uma maioria de ministros conservadores e a plena aprovação da maioria conservadora na Câmara dos Comuns. (...) Nós estabelecemos o princípio para os sistemas de pensões, licença, salário-desemprego, indenização em caso de acidentes de trabalho e um sistema nacional de saúde”. (23) – A. Smith, W. o. N., I, 432. (24) – Ibid.

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OS FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DA LIBERDADE

O USO DO CONHECIMENTO NA SOCIEDADE

F. A. HAYEK

I Qual é o problema que buscamos resolver quando tentamos construir uma ordem econômica racional? Partindo de alguns pressupostos amplamente aceitos, a resposta é bastante simples. Se detivéssemos todas as informações relevantes, se pudéssemos tomar como ponto de partida um sistema de preferências estabelecido, e se tivéssemos completo conhecimento dos meios disponíveis, o resto do problema seria simplesmente uma questão de lógica. Ou seja, a resposta para a pergunta por qual é o melhor uso dos meios disponíveis está implícita em nossos pressupostos. As condições que devem ser satisfeitas para a solução desse problema ideal foram completamente analisadas e podem ser melhor expostas em um modelo matemático: sucintamente, diríamos que as taxas marginais de substituição entre qualquer dois bens ou fatores devem ser as mesmas independentemente dos seus diferentes usos. Este, no entanto, decididamente não é o problema econômico que a sociedade enfrenta; e o cálculo econômico que desenvolvemos para resolver esse problema lógico, embora seja um importante passo na direção da solução do problema econômico da sociedade, não oferece ainda uma resposta para ele. O motivo disto é que os “dados” totais da sociedade a partir dos quais são feitos os cálculos econômicos nunca são “dados” a uma única mente para que pudesse analisar as suas implicações – e nunca serão. O caráter peculiar do problema de uma ordem econômica racional se caracteriza justamente pelo fato de que o conhecimento das circunstâncias nas quais precisamos agir nunca existe de forma concentrada e integrada, mas apenas como pedaços dispersos de conhecimento incompleto e freqüentemente contraditório, distribuído por diversos indivíduos independentes. O problema econômico da sociedade, portanto, não é meramente um problema de como alocar “dados” recursos – se por “dados” entendermos algo que esteja disponível a uma única mente que possa deliberadamente resolver o problema com base nessas informações. Ao invés disso, o problema é de como garantir que qualquer membro da sociedade fará o melhor uso dos recursos conhecidos, para fins cuja importância relativa apenas estes indivíduos conhecem. Ou, para dizê-lo sucintamente, o problema é o da utilização de um conhecimento que não está disponível a ninguém em sua totalidade. O caráter fundamental desse problema tem sido, infelizmente, obscurecido, e não iluminado, por muitos dos recentes refinamentos na teoria econômica, e em particular pelos usos variados da matemática. Embora o problema de que eu queira tratar primordialmente nesse artigo seja o problema da organização de uma economia racional, para seguir esse caminho precisarei de repetidamente chamar atenção para as ligações íntimas que esse problema possui com certas questões metodológicas. Muitos dos argumentos que pretendo apresentar são, de fato, conclusões alcançadas por meio de diferentes caminhos de raciocínio que inesperadamente convergiram. Mas, do modo como eu hoje entendo essas questões, essa convergência não é uma coincidência. Parece-me que muitas das divergências que surgem tanto no campo da teoria econômica quanto no da política econômica possuem uma origem comum em uma má compreensão da natureza do problema econômico da sociedade. Essa má compreensão, por sua vez, se deve a uma aplicação indevida de hábitos mentais desenvolvidos para lidar com problemas da natureza aos fenômenos sociais.

II Na linguagem comum, definimos a palavra “planejar” como o conjunto das decisões inter-relacionadas relativas à alocação dos nossos recursos disponíveis. Toda atividade econômica, nesse sentido, é planejamento; e, em qualquer sociedade em que várias pessoas colaborem, o planejamento, independentemente de quem o faça, terá de basear-se em certos conhecimentos; e esses conhecimentos não estarão disponíveis em primeira instância para o planejador, mas antes para alguém que deverá retransmiti-los ao planejador. Os vários modos pelos quais o conhecimento chega às pessoas que o utilizam para elaborar seus planos é um problema crucial para qualquer teoria que almeje explicar o processo de mercado; e o problema de qual é melhor meio de

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utilizar o conhecimento que está inicialmente disperso entre várias pessoas independentes é pelo menos um dos principais problemas para a política econômica – ou para qualquer tentativa de conceber um sistema econômico eficiente. A resposta para essa pergunta está intimamente relacionada com outra questão que emerge aqui: a de quem está planejando. Toda a divergência sobre “planejamento econômico” parte dessa questão. Não está em discussão se se deve planejar ou não, mas sim se o planejamento deve ser feito de forma centralizada, por uma autoridade única para todo o sistema econômico, ou se ele deve ser dividido entre vários indivíduos. No sentido específico em que o termo é utilizado nas controvérsias contemporâneas, planejamento significa necessariamente planejamento central – direcionar todo o sistema econômico de acordo com um projeto unificado. A competição, por outro lado, significa uma descentralização do planejamento, que será realizado por muitas pessoas independentes. O caminho do meio entre essas duas posições – muito falado, mas pouco apreciado quando visto em prática – é a delegação do planejamento para certas indústrias organizadas, isto é, a instituição de monopólios. A questão de qual desses sistemas será mais eficiente depende principalmente da questão de qual deles podemos esperar um uso mais completo do conhecimento existente. E isto, por sua vez, depende de se nós temos uma probabilidade maior de conseguir colocar todo o conhecimento que está disperso entre vários indivíduos à disposição de uma autoridade central, ou de dar aos indivíduos um conhecimento adicional suficiente para que eles se tornem capazes de integrar os seus planos aos dos outros.

III Ficará imediatamente evidente que, neste ponto, a resposta será diferente de acordo com os diferentes tipos de conhecimento; e a resposta para a nossa pergunta irá, conseqüentemente, voltar-se para a importância relativa de diferentes tipos de conhecimento; aqueles que mais provavelmente estarão à disposição de indivíduos particulares, e aqueles que teríamos mais certeza de encontrar na posse de um órgão constituído por especialistas bem escolhidos. Se hoje em dia é tão amplamente aceito que a segunda opção é preferível, isto ocorre porque um tipo de conhecimento – o conhecimento científico – ocupa nos dias de hoje um lugar tão proeminente na imaginação pública que chegamos a esquecer que esse não é o único tipo de conhecimento relevante. Pode-se admitir que, em relação ao conhecimento científico, um órgão com um punhado de especialistas bem escolhidos seja a melhor opção para melhor dominar o conhecimento disponível – embora isso, obviamente, seja meramente trocar um problema por outro: o problema de como escolher esses especialistas. O que desejo frisar é que, mesmo presumindo que esse problema pudesse ser imediatamente resolvido, ele seria apenas parte de um problema maior. Hoje é quase uma heresia sugerir que o conhecimento científico não corresponde à totalidade do conhecimento. Mas um pouco de reflexão irá mostrar que, sem sombra de dúvida, existe um corpo importantíssimo de conhecimento desorganizado que não pode ser chamado de científico, entendendo “científico” como o conhecimento de certas regras gerais: o conhecimento de certas circunstâncias particulares de tempo e lugar. É em relação a isso que praticamente todo indivíduo tem alguma vantagem comparativa em relação a todos os outros, pois ele possui informações únicas sobre que tipos de usos benéficos podem ser feitos com certos recursos; usos estes que só acontecerão se a decisão de como utilizá-los for deixada nas mãos desse indivíduo ou for tomada com sua cooperação ativa. Basta apenas lembrarmos o quanto precisamos aprender em qualquer profissão depois de termos completado nossa formação teórica, quão grande é a parte da nossa vida profissional em que passamos aprendendo habilidades específicas, e quão valioso, em todas as circunstâncias da vida, é o conhecimento das pessoas, das condições locais e de certas circunstâncias especiais. Conhecer e saber operar uma máquina que não estava sendo adequadamente explorada, ou a habilidade de alguém que poderia ser mais bem aproveitada, ou estar consciente de um excedente de reservas que pode ser usado durante uma interrupção temporária do fornecimento, é tão útil socialmente quanto o conhecimento das melhores técnicas alternativas. O transportador que ganha sua vida descobrindo como melhor aproveitar seu espaço de carga que ficaria vazio, o agente imobiliário cujo conhecimento consiste quase exclusivamente em encontrar oportunidades temporárias, ou o arbitrageur, que lucra a partir das diferenças locais entre os

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preços de certos bens – todos eles realizam trabalhos eminentemente úteis que são baseados em um conhecimento especial das circunstâncias de um momento fugidio, desconhecido por outros. É curioso que nos dias de hoje esse tipo de conhecimento seja amplamente menosprezado, e que as pessoas que fazem uso dele para alcançarem privilégios sobre pessoas com melhor preparo teórico ou técnico sejam vistas quase como se estivessem fazendo algo desonrado. Mas, embora conquistar privilégios usando um conhecimento superior quanto às condições de comunicação e transporte seja visto como algo quase desonesto, a verdade é que, para a sociedade, é quase tão importante fazer o melhor uso possível dessas oportunidades quanto das últimas descobertas científicas. Esse preconceito tem uma influência considerável sobre o fato de as pessoas costumarem adotar uma atitude mais desfavorável em relação ao comércio do que em relação às atividades produtivas. Mesmos os economistas que se crêem totalmente imunes às rasas falácias materialistas do passado constantemente cometem os mesmos erros em relação às atividades relacionadas à aquisição de conhecimento prático – e o motivo disso parece ser que, segundo o modo como eles vêem o mundo, esse tipo de conhecimento já deveria estar “dado” em vez de ser algo que precise ser buscado. A idéia mais comum na atualidade parece ser a de que todo conhecimento desse tipo deveria estar constantemente disponível para todo mundo e, como isso não ocorre, critica-se a ordem econômica atual por ser supostamente irracional. Essa concepção ignora o fato de que o método de tornar esse conhecimento amplamente disponível é precisamente o problema que precisamos resolver.

IV Se hoje em dia está na moda minimizar a importância do conhecimento das circunstâncias particulares de tempo e espaço, isso se deve em grande medida a pouca importância dada à questão da incerteza em si mesma. De fato, parte dos pressupostos (que geralmente estão apenas implícitos) adotados pelos “planejadores” diferem dos seus oponentes tanto em relação à capacidade de mudanças imprevistas causarem alterações substanciais nos planos de produção quanto em relação à freqüência com que isso ocorre. Evidentemente, se fosse possível fazer previamente planos econômicos detalhados para períodos significativamente longos, e depois segui-los à risca, de modo que nenhuma outra decisão econômica importante fosse necessária, a tarefa de elaborar um planejamento completo para toda a atividade econômica não seria algo tão inatingível. Talvez valha a pena frisar que os problemas econômicos surgem sempre e exclusivamente em decorrência de mudanças. Enquanto as coisas continuam exatamente como estavam antes – ou ao menos quando elas prosseguem de acordo com o que se esperava delas – então não surgirão novos problemas que exijam soluções, não havendo, portanto, necessidade de que se elabore um novo planejamento. A crença de que a mudança – ou ao menos os pequenos ajustes cotidianos – se tornou menos importante nos tempos modernos parte do princípio de que a contenção dos problemas econômicos também se tornou menos importante. Por esse motivo, as pessoas que costumam menosprezar a importância da incerteza são as mesmas que argumentam que as questões econômicas já não são tão importantes quanto o conhecimento tecnológico. Será verdade que, graças ao sofisticado aparato da indústria moderna, só é preciso tomar decisões econômicas em intervalos longos; como na hora de decidir se uma nova fábrica deve ser construída, ou um novo procedimento deve ser introduzido? É verdade que, uma vez que uma fábrica tenha sido construída, o resto é mais ou menos mecânico, determinado por suas características, deixando pouco a ser mudado para adaptar-se às eternas flutuações de cada momento? A experiência prática dos homens de negócios, até onde eu a conheço, não sustenta essa crença amplamente aceita. Pelo menos nas áreas de negócios que são competitivas – e apenas essas áreas servem de modelo para essa questão – a tarefa de impedir os custos de subir exige um luta constante, que absorve grande parte da energia do administrador. É fácil para um administrador ineficiente gastar as pequenas sobras de onde saem os lucros; é um lugar-comum da experiência empresarial que, com as mesmas condições técnicas, a mesma produção pode ser feita dentro de uma variedade enorme de custos – mas isso não é igualmente conhecido

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pelos que estudam apenas economia. O próprio desejo – freqüentemente declarado pelos produtores e engenheiros – de ser autorizado a fazer seus projetos sem considerações financeiras é um testemunho eloqüente do poder que esses fatores exercem sobre seu trabalho diário. Um dos motivos para a crescente incapacidade dos economistas de atentarem para as constantes pequenas mudanças que compõem o todo da atividade econômica é provavelmente que eles estão cada vez mais preocupados com dados estatísticos, que passam uma imagem muito mais estável da economia do que os pequenos movimentos diários. No entanto, a relativa estabilidade dos grandes dados estatísticos não pode ser explicada – como os estatísticos freqüentemente querem fazer crer – pelas “leis dos grandes números” ou pela mútua compensação de pequenas mudanças aleatórias. O número dos elementos com que eles lidam não é grande o suficiente para que essas forças acidentais produzam estabilidade. O continuo fluxo de bens e serviços é mantido por ajustes deliberados e constantes, por novas decisões tomadas diariamente à luz de circunstâncias que eram desconhecidas até o dia anterior, pela decisão de B de entrar em cena quando A deixa de executar o seu papel. Mesmo a maior e mais mecânica das fábricas segue adiante em grande parte por causa de um ambiente que pode lhe prover todas as suas demandas inesperadas: novas telhas para seu telhado, papéis para seus documentos, e todos os mil e um tipos de equipamentos que não podem ser produzidos pela própria fábrica, mas que, para que ela continue a funcionar, precisam estar facilmente disponíveis no mercado. Nesse instante, devo brevemente observar que o tipo de conhecimento de que tenho tratado é de um tipo que, por sua própria natureza, não pode ser transposto para dados estatísticos e que, por isso, não pode ser colocado à disposição de uma autoridade central que delibere a partir de levantamentos estatísticos. As estatísticas que essa autoridade teria de utilizar surgiriam exatamente por meio das abstrações das pequenas diferenças entre as coisas, juntando como se fossem elementos de um só tipo itens com diferentes características de lugar, qualidade e outras características particulares, que seriam muito importantes para tomar uma decisão específica. Conseqüentemente, planejamento central baseado em informações estatísticas, por sua própria natureza, não pode levar em consideração diretamente as circunstâncias de tempo e lugar, precisando encontrar algum jeito de essas decisões serem deixadas para alguém que esteja no local.

V Se pudermos convir que o problema econômico da sociedade é basicamente uma questão de se adaptar rapidamente às mudanças das circunstâncias particulares de tempo e lugar, parece ser evidente que, por conseqüência, as decisões fundamentais devem ser deixadas a cargo de pessoas que estejam familiarizadas com essas circunstâncias, que possam conhecer diretamente as mudanças relevantes e os recursos imediatamente disponíveis para lidar com elas. Não podemos esperar que essa problema seja resolvido por meio da transmissão de todo esse conhecimento para um diretório central que, depois de ter integrado todo esse saber, emita uma ordem. Precisamos da descentralização porque apenas assim podemos garantir que o conhecimento das circunstâncias particulares de tempo e lugar sejam prontamente utilizados. Mas o homem que está dentro de uma situação particular não pode tomar decisões com base apenas em seu conhecimento dos fatos relativos aos seus arredores imediatos, pois, apesar de este ser um conhecimento íntimo, é também limitado. No entanto, persiste o problema de como transmitir a esse homem informações suficientes para que ele seja capaz de encaixar suas decisões no padrão geral das mudanças do sistema econômico como um todo. De quanto conhecimento ele precisa para ser bem sucedido nisso? Quais dos eventos que acontecerão além do seu horizonte imediato de conhecimento são relevantes para sua decisão imediata, e quão bem ele precisa conhecer esses eventos? Praticamente não há nada que ocorra no mundo que não possa influenciar a decisão que ele precisa tomar. Mas ele não precisa conhecer esses eventos em si mesmos, nem precisa conhecer todos os seus efeitos. Para ele, não é importante saber o porquê de um certo tipo de parafuso estar sendo mais procurado em uma época específica, ou porque os sacos de papéis estão mais facilmente disponíveis que os sacos de lona, ou porque trabalhadores especializados ou máquinas específicas momentaneamente se tornaram difíceis de encontrar. Tudo que ele precisa saber é quão mais ou menos difícil está a aquisição de certas coisas em relação a outras

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coisas que também lhe interessam, ou se a demanda por outras coisas que ele produz ou usa é mais ou menos urgente. Ele sempre está preocupado com a importância relativa de coisas particulares, enquanto os fatores que alteram essa importância relativa não lhe interessam de forma alguma, exceto na medida dos próprios efeitos causados sobre as coisas concretas do seu ambiente. É em relação a isso que aquilo que chamei de “cálculo econômico” nos ajuda, ao menos por analogia, a entender como esse problema pode ser resolvido – na verdade, como ele já está sendo resolvido – pelo sistema de preços. Mesmo se existisse uma única mente controladora que possuísse todos os dados sobre um sistema econômico pequeno e restrito, ela não iria dar-se ao trabalho de repassar por todas as relações entre fins e meios que talvez possam ser afetadas a cada vez que algum pequeno ajuste na alocação recursos fosse feito. De fato, uma das grandes contribuições da lógica pura da escolha é ter demonstrado conclusivamente que mesmo uma única mente onisciente só poderia resolver esse tipo de problema por meio da construção e da constante utilização de taxas de equivalência (ou “valores” ou “taxas marginais de substituição”), ou seja, por meio da atribuição de um índice numérico a cada tipo de recurso que, sem ser derivado de nenhuma propriedade dessa coisa em particular, ainda refletisse ou condensasse sua relevância na estrutura total dos meios e fins. Para cada pequena mudança, ela teria que considerar apenas esses índices quantitativos (ou “valores”), no qual a informação relevante estaria concentrada; e, ao ajustar as quantidades uma a uma, ela poderia reorganizar todos os elementos sem precisar retomar todo o quebra-cabeça desde o início nem precisar parar a cada etapa para analisar novamente todos os elementos e suas ramificações. Basicamente, em um sistema no qual o conhecimento dos fatos relevantes está disperso entre várias pessoas, os preços podem servir para coordenar as diferentes ações de várias pessoas do mesmo modo como os valores subjetivos ajudariam aquela mente onisciente a coordenar as diferentes partes do seu plano. Vale a pena contemplar por um instante um exemplo muito simples e comum do sistema de preços em ação para ver exatamente o que ele pode fazer. Suponha por um instante que, em algum lugar do mundo, uma nova oportunidade de usar alguma matéria prima surgiu – tomemos o estanho como exemplo – ou então que alguma das fontes de estanho tenha sido eliminada. Para o nosso exemplo não importa – e é muito significativo que isso não importe – qual dessas duas causas tenham aumentado a escassez de estanho. Tudo que os usuários de estanho precisam saber é que parte do estanho que eles costumavam consumir agora está sendo usado com mais proveito em outro lugar e, em decorrência disto, eles precisam ser mais econômicos em seu uso. Não é preciso nem que boa parte deles saiba de onde essa demanda mais urgentemente surgiu, nem mesmo em prol de quê eles irão poupar esses recursos. Basta que alguns deles saibam diretamente da existência da nova demanda e transfiram recursos para ela, que algumas outras pessoas percebam o vazio que foi então criado e ajam para preenchê-lo com recursos de outras fontes, e então o efeito irá rapidamente se espalhar por todo o sistema econômico, influenciando não apenas todos os usos do estanho, mas também os usos dos seus substitutos, e dos substitutos desses substitutos, assim como a oferta de todas as coisas feitas de estanho, e a dos seus substitutos dessas coisas, e assim por diante; e tudo isso ocorre sem que a grande maioria daqueles que realizam essas substituições saiba nada sobre a causa original dessas mudanças. O todo age como se fosse um único mercado, mas isso não ocorre porque cada um dos seus membros pôde analisá-lo como um todo, mas sim porque os campos limitados da visão de cada um tinham alcance suficiente para que, através de inúmeros intermediários, a informação relevante fosse comunicada para todos. O mero fato de que há um preço para cada bem – ou, melhor dizendo, que cada preço local está ligado de certa forma com o custo de transportá-lo para esse local, e assim por diante – traz a mesma solução que uma única mente dotada de todas as informações (embora ela seja apenas uma possibilidade imaginária) teria alcançado, ainda que essas informações na verdade estejam dispersas entre todas as pessoas envolvidas no processo.

VI Precisamos entender o sistema de preços como um mecanismo de transmissão de informações para podermos entender sua verdadeira função – uma função que ele cumpre evidentemente com menos perfeição na medida em que os preços se tornam mais rígidos. (Mas mesmo quando preços tabelados se tornam extremamente rígidos, as forças que normalmente atuariam causando mudanças no preço permanecem agindo, exercendo

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uma influência considerável sobre as mudanças em outros aspectos dos contratos). O principal aspecto desse sistema é a economia de conhecimento com que ele opera; ou, em outros termos, é quão pouco os participantes individuais precisam saber para ser capazes de tomar as decisões corretas. De forma abreviada, por meio de um certo tipo de símbolo, apenas a informação mais essencial é transmitida adiante, e apenas para aqueles que estão interessados nela. Não seria apenas uma metáfora se disséssemos que o sistema de preços é tipo um caixa registrador, ou um sistema de telecomunicações que permite aos produtores individuais observar apenas o movimento de alguns fatores – do mesmo modo como um engenheiro pode se concentrar apenas nos consoles de alguns mostradores – para adaptar as suas atividades às mudanças que eles conhecem apenas a partir do que é mostrado pelo movimento dos preços. Evidentemente, esses ajustes provavelmente nunca são “perfeitos” no sentido de perfeição que os economistas utilizam em suas análises sobre o equilíbrio econômico. No entanto, temo que nosso hábito teórico de abordar cada problema com a presunção de um conhecimento mais ou menos perfeito da parte de quase todos os envolvidos quase nos tenha cegado para a verdadeira função do mecanismo de preço, levando-nos a aplicar de forma enganosa padrões inadequados para julgar sua eficiência. É maravilhoso que em uma situação na qual haja escassez de um tipo de matéria prima, sem que nenhuma ordem seja dada, sem que talvez não mais que um punhado de pessoas saibam a causa dessa escassez, dezenas de milhares de pessoas cujas identidades jamais serão conhecidas, mesmo depois de meses de investigação, começam então a utilizar essa matéria ou seus subprodutos de maneira mais econômica; ou seja, todas elas agem na direção correta. Isto, em si mesmo, é suficientemente maravilhoso; mesmo que, em um mundo de incertezas constantes, nem tudo consiga se organizar tão perfeitamente para que suas porcentagens de lucros se mantenham constantemente no mesmo nível considerado “normal”. Usei deliberadamente a palavra “maravilha” para chocar o leitor e retirá-lo da complacência com que costumamos dar como certo o funcionamento desse mecanismo. Estou convencido de que se isso fosse o resultado de um projeto humano consciente, e que as pessoas guiadas pelas mudanças dos preços soubessem que suas decisões possuem uma importância muito maior do que a realização dos seus fins imediatos, então esse mecanismo seria louvado como um dos maiores triunfos da mente humana. O seu azar é duplo: nem ele é o fruto de um projeto humano, nem as pessoas guiadas por ele costumam entender porque elas fazem as coisas que são levadas a fazer. Mas aqueles que clamam por uma “direção consciente” – e que não podem acreditar que algo que tenha sido criado sem um planejamento (e, de fato, sem que nem mesmo alguém o compreendesse como um todo) possa resolver problemas que nós mesmos não podemos resolver conscientemente – devem lembrar-se do seguinte: o problema é precisamente de como expandir a extensão da utilização dos recursos além da extensão do entendimento de um único indivíduo; e, portanto, trata-se de um problema de como administrar a necessidade de controle consciente, e de como dar incentivos para os indivíduos tomarem as decisões desejáveis sem que alguém lhes diga o que fazer. O problema de que estamos tratando aqui de forma alguma diz respeito exclusivamente à economia, pois ele surge junto com quase todos os outros verdadeiros fenômenos sociais, com a linguagem e boa parte da nossa herança cultural, constituindo de fato o problema central de toda ciência social. Como Alfred Whitehead disse, em relação a outra coisa, “Um truísmo profundamente falso, repetido por todos os manuais e nos discursos das pessoas eminentes, diz que devemos cultivar o hábito de pensar sobre o que estamos fazendo. O oposto é que é verdadeiro. A civilização progride quando aumentamos o número de trabalhos importantes que podemos realizar sem pensar neles”. Isso possui uma profunda importância no campo social. Usamos constantemente fórmulas, símbolos e regras cujo significado não entendemos, mas por meio dos quais podemos ter acesso a conhecimentos que, individualmente, não possuímos. Criamos essas práticas e instituições tomando como base os hábitos e instituições que se mostraram bem sucedidos em suas próprias esferas e que se tornaram a fundação em cima da qual construímos a civilização. O sistema de preços é apenas uma dessas criações que o homem aprendeu a usar (embora ele ainda esteja longe de ter aprendido a usá-lo perfeitamente), depois que se deparou com ele, mesmo antes de entendê-lo. Por meio dele não apenas a divisão de trabalho, mas também o uso coordenado de recursos baseado em conhecimentos amplamente divulgados se tornam possíveis. As pessoas que gostam de ridicularizar qualquer sugestão de que é assim que as coisas funcionam distorcem nosso argumento ao insinuar que estamos dizendo que é por algum milagre que um sistema como esse se desenvolveu espontaneamente, tornando-se o mais

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O USO DO CONHECIMENTO NA SOCIEDADE

adequado para a civilização moderna. Trata-se exatamente do contrário: o homem pode criar essa divisão do trabalho sobre a qual a nossa civilização se sustenta justamente porque ele se deparou com um método que a tornou possível. Caso isso não tivesse ocorrido, ele talvez tivesse desenvolvido um tipo inteiramente diferente de civilização, talvez o “Estado”dos cupins, ou outra coisa totalmente inimaginável. Tudo que podemos dizer é que até agora ninguém conseguiu produzir um sistema alternativo no qual certas características do sistema existente – que são respeitadas mesmo por aqueles que o atacam violentamente – possam ser preservadas, especialmente em relação à capacidade do indivíduo de escolher seus objetivos e, conseqüentemente, de dispor livremente de suas habilidades e conhecimento.

VII Por vários motivos, é ótimo que a necessidade do sistema de preços para qualquer cálculo racional em uma sociedade complexa já não seja mais objeto de discussão apenas entre grupos com opiniões políticas distintas. A tese segundo a qual sem o sistema de preços nós não poderíamos preservar uma sociedade baseada numa divisão de trabalho tão extensiva quanto a nossa foi recebida com gritos de chacota quando Mises a apresentou há vinte e cinco anos. Hoje os argumentos que alguns ainda apresentam para rejeitar essa tese não são mais exclusivamente políticos, e isso cria um atmosfera muito mais receptível a discussões ponderadas. Quando vemos Leon Trostky argumentando que o “cálculo econômico é inimaginável sem as relações de mercado”; quando o professor Oscar Lange promete ao professor von Mises uma estátua de mármore no futuro Diretório de Planejamento Central, e quando o professor Abba P. Lerner redescobre Adam Smith, enfatizando que a utilidade essencial do sistema de preços consiste em induzir o indivíduo a fazer aquilo que é do interesse geral no instante em que busca realizar seus próprios interesses, então, as divergências já não podem ser atribuídas a preconceitos políticos. Os dissidentes restantes parecem claramente divergir dessa posição por motivos puramente intelectuais e, mais particularmente, por causa de diferenças metodológicas. Uma declaração recente do professor Joseph Schumpeter em seu Capitalismo, socialismo e democracia fornece um exemplo perfeito dessas diferenças metodológicas que tenho em mente. O autor é um dos economistas mais proeminentes entre aqueles que analisam o fenômeno econômico a partir de algum ramo do positivismo. Para ele, esses fenômenos surgem por conseqüência do mútuo efeito exercido por certas quantidades objetivas de bens, quase como se não houvesse intervenção alguma de mentes humanas. Apenas por causa desses pressupostos, posso compreender a declaração seguinte – e, para mim, espantosa. O professor Schumpeter argumenta que a possibilidade do cálculo racional na ausência de um mercado para os fatores de produção é uma decorrência da proposição teórica segundo a qual “os consumidores que estão avaliando (demandando) os bens de consumo ipso facto também estão avaliando os meios de produção que entram na produção daqueles bens” (1). Tomada literalmente, essa declaração é simplesmente falsa. Os consumidores não fazem nada disso. O que o “ipso facto do professor Schumpeter provavelmente significa é que a avaliação dos fatores de produção está implícita, ou que se segue necessariamente, da avaliação dos bens de consumo. Mas isso também não é verdadeiro. A implicação é uma relação lógica que só pode ser afirmada com segurança a partir de pressupostos que estejam para o mesmo indivíduo. É evidente, no entanto, que os valores dos fatores de produção não dependem exclusivamente da avaliação dos bens de consumo, mas também das condições de fornecimento dos vários fatores de produção. Apenas um único indivíduo que conhecesse todos esses fatores simultaneamente poderia encontrar uma respostas derivada diretamente desses dados. O problema prático surge, no entanto, precisamente porque esses dados nunca estão inteiramente disponíveis para um único indivíduo, e porque, por conseqüência, é necessário para resolver esse problema a utilização de conhecimentos que estão dispersos por vários indivíduos. O problema, portanto, não estaria de forma alguma resolvido se demonstrássemos que todos os dados, se estivessem disponíveis para uma única mente (como hipoteticamente estariam para o economista que observasse o problema), iriam por si mesmos determinar a solução; ao invés disso, precisaríamos demonstrar como uma solução poderia ser produzida pela interação entre as pessoas que, individualmente, possuem apenas um conhecimento parcial. Presumir que todo o conhecimento possa ser colocado à disposição de uma única mente, do modo como presumimos que ele pode estar disponível para nós, como economistas dedicados

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O USO DO CONHECIMENTO NA SOCIEDADE

a analisar uma questão, equivale a fugir do problema e menosprezar tudo que é importante e relevante no mundo real. Que um economista da estatura do professor Schumpeter tenha caído em tal armadilha por causa da ambigüidade que o termo “dado” tem para os incautos dificilmente poderia ser considerado um simples erro. Isto sugere, de fato, que há algo de fundamentalmente errado com uma abordagem que freqüentemente despreza uma parte essencial dos fenômenos com os quais temos que lidar:a inevitável imperfeição do conhecimento humano e a necessidade decorrente de um processo por meio do qual o conhecimento seja constantemente adquirido e transmitido. Qualquer abordagem – como grande parte da economia matemática com suas várias equações simultâneas – que parta do pressuposto de que o conhecimento das pessoas corresponde aos fatos objetivo de cada situação, irá sistematicamente deixar de lado aquilo que é a nossa principal tarefa explicar. Estou longe de negar que, em nossa sistema, a análise do equilíbrio econômico tem uma atividade útil a desempenhar, mas quando chega o ponto em que ela ofusca nossos principais intelectuais, fazendo-os acreditar que a situação que estão descrevendo tem uma relevância direta para a solução de problemas práticos, está mais que na hora de nos lembrarmos que esse tipo de análise não lida com o processo social de forma alguma, e de que isso não é mais do que uma etapa preliminar para a investigação do problema principal.

NOTAS [1] Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Democracia [Capitalism, Socialism, and Democracy (New York; Harper, 1942), p. 175]. O professor Schumpeter é, me parece, o responsável pela criação do mito segundo o qual Pareto e Barone teriam “resolvido” o problema do cálculo econômico no socialismo. O que eles e muitos outros fizeram foi apenas elencar as condições que deveriam ser satisfeita para uma alocação racional de recursos, e observar que essas condições eram essencialmente as mesmas do estado de equilíbrio de um mercado competitivo. Isso é inteiramente diferente de saber como a alocação de recursos segundo essas condições pode ser observada na prática. O próprio Pareto (de quem Barone praticamente tomou quase tudo que tinha a dizer), longe de declarar ter resolvido esse problema prático, de fato, negou explicitamente que ele poderia ser resolvido sem o auxílio do mercado. Vejam o seu Manuel d'économie pure (2d ed., 1927), pp. 233–34, [“Manual de economia pura”]. As passagens relevantes estão citadas em uma tradução inglese no início do meu artigo Socialist Calculation: The Competitive ‘Solution’ [“O cálculo socialista: a ‘solução’ competitiva”] in Economica, New Series, Vol. VIII, No. 26 (May, 1940), p. 125.].

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OS FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DA LIBERDADE

AS TENDÊNCIAS NOS ASSUNTOS HUMANOS

MILTON E ROSE FRIEDMAN

O objetivo desse curto ensaio é apresentar uma hipótese de que uma grande mudança na política social e econômica seja precedida por uma alteração no clima da opinião intelectual. Uma tendência intelectual é espalhada pelo público seguindo o hábito do intelectual varejista: professores e pastores, jornalistas nos jornais e na televisão, especialistas e políticos. Existem tendências poderosas nos assuntos humanos, interpretadas como a entidade coletiva que chamamos de sociedade, bem como nos assuntos individuais. As tendências nos assuntos da sociedade demoram a se tornar evidentes, como uma maré que começa a inundar a outra. Cada tendência permanece por um longo período – décadas, não horas – uma vez que começa a alagar, e deixa suas marcas em sua sucessora mesmo depois que recua. Em quase todas as tendências, uma crise pode ser identificada como o catalisador de uma grande mudança na direção das políticas.

A Ascensão do Laissez Faire: A Tendência de Adam Smith A primeira tendência que examinaremos começa na Escócia do século XVIII, com uma reação ao mercantilismo expresso nos escritos de David Hume, através dos livros A Teoria dos Sentimentos Morais e, principalmente, A Riqueza das Nações (1776), ambos de Adam Smith. No outro lado do Atlântico, o ano de 1776 também viu a proclamação da Declaração de Independência, que era, de várias formas, gêmea política da Ciência Econômica de Smith. O trabalho de Smith rapidamente se tornou comum entre os fundadores dos Estados Unidos. No início do século XIX as idéias de laissez-faire, da operação da mão invisível, da indesejabilidade da intervenção governamental nas questões econômicas, haviam sido arrastadas, primeiramente para o mundo intelectual, para chegarem a seguir às políticas públicas. A revogação das mercantilistas Leis do Trigo (Corn Laws), em 1846, é, em geral, considerada o triunfo final de Adam Smith, com um atraso de 70 anos. Na verdade, algumas reduções nas tarifas alfandegárias começaram bem antes e muitos itens não agrícolas continuaram a ser protegidos por tarifas até 1874. Assim, levou-se quase um século até o término de uma resposta a Adam Smith.

A Experiência Americana Os outros países da Europa e os Estados Unidos não seguiram a liderança britânica em estabelecer um mercado completamente livre. Entretanto, durante a maior parte do século XIX, os impostos sobre a importação eram, em primeiro lugar, para geração de receita (não para proteção). Exceto por alguns anos após a guerra de 1812, a alfândega provia a metade ou mais da metade da receita federal. Foi assim até a Guerra Hispano-Americana no fim do século. Barreiras não-tarifárias, como cotas, não existiam e o movimento de capital e pessoas estava longe de ser impedido. Medir o papel do governo em uma economia não é fácil. Uma forma disponível, embora reconhecidamente imperfeita, é a proporção do gasto governamental em relação à renda nacional. No auge do laissez-faire, o gasto governamental em tempos de paz correspondia a menos de 10 por centro do PIB nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. O gasto federal era, em geral, menor que 3 por cento, com metade indo para os militares. Em uma escala maior, a tendência que invadiu o século XIX trouxe uma liberdade econômica e política ainda maior. Apesar de ocasionais crises e pânicos financeiros, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos experimentaram um crescimento econômico memorável. Os Estados Unidos, em particular, se tornaram a Meca para os pobres

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de todos os países. Isso foi um resultado da adoção crescente do laissez-faire como um princípio guia da política governamental.

A Ascensão do Estado do Bem-Estar Social Esse progresso incrível não evitou que a maré intelectual refluísse do individualismo em direção ao coletivismo. Como podemos explicar essa mudança na tendência intelectual, quando as dores do crescimento das políticas do laissez-faire já haviam sido vencidas há tempos e ganhos positivos impressionantes haviam sido atingidos? Dois efeitos do sucesso do laissez-faire encorajaram uma reação:

• Em primeiro lugar, o sucesso fez problemas residuais aparecerem com mais destaque, encorajando reformadores a pressionar por soluções governamentais e fazendo o público simpatizar com seus apelos.

• Em segundo lugar, parecia mais razoável prever que o governo seria eficiente ao atacar esses problemas. Um governo severamente limitado pode fazer menos favores. Assim, há pouco incentivo para a corrupção de funcionários públicos e o serviço público oferece poucos atrativos àqueles que visam o enriquecimento pessoal.

O governo se engajava, primeiramente, em aplicar as leis contra assassinato, roubos e afins, e em prover serviços municipais, como uma polícia local e o serviço de proteção contra o fogo – atividades que engendravam um apoio quase unânime dos cidadãos. A Grã-Bretanha foi ainda mais longe em direção ao completo laissez-faire, se tornando lendária no fim do século XIX e no início do século XX por seu funcionalismo público incorruptível e seus cidadãos cumpridores da lei – precisamente o oposto de sua reputação um século antes. Porém, em torno de 1900, a doutrina do laissez-faire tinha, de certa forma, perdido sua influência sobre o povo inglês. Nos Estados Unidos, o desenvolvimento foi similar, embora atrasado. Em 1929, os gastos federais totalizavam apenas 3.2 por cento do PIB; metade disso era gasto com os militares, mais os juros do défice público. Os gastos dos governos federal, estadual e local no que hoje é conhecido como renda mínima, previdência e assistência social somavam menos de 1 por cento da renda nacional. O mundo das idéias, entretanto, era diferente. Em 1929, o socialismo se tornou a ideologia dominante nos campi do país. New Republic e The Nation eram as revistas preferidas dos intelectuais e [o socialista] Norman Thomas era seu herói político. Claro que o grande catalisador dessa grande mudança foi a Grande Depressão, que demoliu a confiança nos empreendimentos privados por parte da população, que passou a considerar o envolvimento governamental como sendo o único recurso eficiente em tempos de crise e a tratar o governo como um potencial benfeitor, ao invés de simplesmente um policial ou um juiz.

A Ressurreição do Livre Mercado: A Tendência de Hayek Durante o predomínio da idéias socialistas houve, claro, contracorrentes – mantidas vivas por Friedrich Hayek e alguns de seus colegas na Grã-Bretanha; por Ludwig Von Mises e seus discípulos na Áustria; e por Albert Jay Nock, H. L. Mencken, e outros nos Estados Unidos. Provavelmente, O Caminho da Servidão, de Hayek, em 1944, foi a primeira invasão sobre a visão intelectual dominante. Ainda assim, no início, o impacto do livre mercado sobre a tendência dominante na opinião intelectual foi pequeno. Mesmo para aqueles que, como nós, estavam promovendo ativamente o livre mercado nos anos 1950 e 1960, é difícil lembrar o quanto o clima intelectual daquele tempo estava forte e penetrante. A história de dois livros escritos por nós, ambos direcionados para o público comum e promovendo as mesmas políticas, mostra uma evidência impressionante na mudança no clima das opiniões. O primeiro, Capitalismo e

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Liberdade, publicado em 1962, e que venderia mais de 400.000 exemplares nos dezoito anos seguintes, não recebeu resenha em nenhum periódico popular americano da época. O segundo, Free to Choose [Livre para Escolher], publicado em 1980, foi resenhado por todas as grandes publicações e se tornou o livro de não-ficção mais vendido dos Estados Unidos, atraindo atenção mundial. Maiores evidências das mudanças no clima intelectual são percebidas pela proliferação de Think Tanks que promovem as idéias de governos limitados e confiança no livre mercado.

Traduzindo Idéias em Ações O mesmo contraste é verdadeiro em relação às publicações. A The Freeman, da FEE, é a única que consigo me lembrar, que promova as idéias da liberdade há 30 ou 40 anos. Hoje, várias publicações promovem essas idéias, embora com grandes diferenças em áreas específicas: The Freeman, National Review, Human Events, The American Spectator, Policy Review e Reason. Mesmo The Nation e New Republic não são mais os constantes proponentes da ortodoxia socialista que eram há três décadas. Por que houve essa grande mudança na postura do público? A força persuasiva de livros como O Caminho da Servidão, de Hayek, A Nascente e Quem é John Galt?, de Ayn Rand e o nosso Capitalismo e Liberdade, entre vários outros levaram as pessoas a pensar sobre o mesmo problema de uma forma diferente e a se tornarem conscientes de que o fracasso governamental era real. A experiência transformou em cinzas as grandes esperanças que os coletivistas e socialistas depositaram na Rússia e na China. Na verdade, a única esperança desses países vem de seus movimentos recentes em direção ao livre mercado. Da mesma forma, a experiência, digamos, enfraqueceu as esperanças extravagantes colocadas no socialismo fabiano e no Estado do Bem-Estar Social na Grã-Bretanha e no New Deal, nos Estados Unidos. Um grande projeto governamental após o outro, todos iniciados com as melhores intenções, resultaram em mais problemas que soluções. Poucos, hoje em dia, consideram que a estatização de empreendimentos é um meio de se promover uma produção mais eficiente. Poucos ainda acreditam que todo problema social pode ser solucionado pelo aporte de dinheiro do governo (ou seja, dos contribuintes). Nessas áreas, as idéias liberais – no sentido original da palavra “liberal”, do século XIX – venceu a guerra. O crescente fardo da tributação levou a população em geral a reagir contra o crescimento do governo e de sua ampla influência. As idéias desempenharam um papel fundamental, como nos episódios anteriores, por manterem as opções abertas e por fornecerem políticas alternativas a serem adotadas quando há necessidade de mudanças. Como nas duas ondas anteriores, a prática deixou as idéias para trás. Assim, tanto a Grã-Bretanha quanto os Estados Unidos estão mais longe do ideal de uma sociedade livre do que estavam há 30 ou 40 anos, em quase todas as dimensões. Em 1950, o gasto pelos governos federal, estadual e municipal, nos Estados Unidos era de 25 por cento da renda nacional; em 1985, era 44 por cento. Nos últimos 30 anos várias agências governamentais foram criadas: um Departamento de Educação, um Fundo Nacional para as Artes e outro para as humanidades, EPA, OSHA, e daí por diante. Funcionários públicos, nessas e em outras agências decidem por nós qual são os nossos interesses. Tanto nos Estados Unidos, quanto na Grã-Bretanha, o respeito à lei declinou no século XX, sob o impacto do aumento da esfera de ação do governo, fortemente reforçada nos Estados Unidos através da Lei Seca. O aumento da variedade de favores que os governos poderiam fazer, leva a um firme aumento daquilo que os economistas chamam de rent-seeking e o público chama de lobby de interesses especiais. A Grã-Bretanha foi ainda mais longe em direção ao coletivismo do que foram os Estados Unidos, e ainda permanece mais coletivista – com uma alta taxa de gastos governamentais em relação à renda nacional e uma estatização da indústria muito mais extensa.

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Apesar de tudo, a prática começou a mudar. Acreditamos que a crise catalítica que ativou a mudança foi a onda mundial de inflação durante os anos 1970, originada pelo crescimento monetário excessivamente amplo nos Estados Unidos dos anos 1960. O episódio foi catalítico em dois respeitos:

• Primeiro, a estagflação destruiu a credibilidade da política monetária e fiscal keynesiana e, a partir daí, a capacidade governamental de ajustar a economia; • E segundo, trouxe para a disputa o “peso da tributação”, através da indexação dos reajustes dos impostos aos aumentos de salários em conseqüência da inflação e o repúdio implícito à dívida governamental.

Já nos anos 1970, o serviço militar obrigatório havia sido encerrado, as linhas aéreas foram desregulamentadas e a regulação Q, que limitou as taxas de juros que os bancos podiam pagar sobre os depósitos, eliminada. Em 1982, o Conselho de Aeronáutica Civil, que regulava as linhas aéreas, foi extinto. Como nas ondas anteriores, as tendências de opinião e prática tinham varrido o mundo. O contraste entre a estagnação daqueles países mais pobres, que se engajaram no planejamento central (Índia, as ex-colônias africanas, países da América Central) e o rápido progresso dos poucos que seguiram uma política de livre mercado (notadamente os quatro Tigres Asiáticos: Hong Kong, Singapura, Taiwan e Coréia do Sul) reafirmaram, com vigor, a experiência dos países ocidentais desenvolvidos. No fim das contas, a força das idéias, empurrada pela pressão dos acontecimentos, claramente não respeita a geografia, a ideologia ou o nome dos partidos.

Conclusão Dois novos pares de marés estão subindo nesse momento na opinião pública, uma em direção à confiança renovada nos mercados, e outra em direção a um governo mais limitado. Se as marés já completas servirem como referência, a atual onda na opinião está se aproximando da meia idade e nas políticas públicas está em sua infância. Assim, ambas estão, ainda, subindo e o estado de inundação, certamente nos negócios, ainda está por vir. Para aqueles que acreditam em uma sociedade e em uma atividade governamental estritamente limitada, essa é uma razão para otimismo, mas não uma razão para complacência. Nada é inevitável sobre o curso da história – por mais que, em retrospecto, isso possa parecer. Porque vivemos em uma sociedade amplamente livre, tendemos a esquecer quão limitados são os período de tempo e as partes do globo em que já houve algo parecido com liberdade política. O estado comum para a humanidade é a tirania, a servidão e a miséria. Uma vez que uma tendência de opiniões ou de negócios está fortemente estabelecida, ela tende a subjugar contracorrentes e permanecer por muito tempo rumo à mesma direção. As tendências são capazes de ignorar geografias, rótulos políticos e outros obstáculos à sua continuidade. Apesar disso, também é válido lembrar que seu sucesso tende a criar condições que podem, no fim das contas, revertê-las. A maré encorajadora nas questões que estão na infância também pode ser subjugada por uma maré renovada de coletivismo. O papel expandido do governo, mesmo nas sociedades ocidentais que se orgulham de serem parte do mundo livre, criou muitos grupos de interesse, que resistirão ferozmente à perda dos privilégios que passaram a considerar seus direitos.

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OS FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DA LIBERDADE

LUDWIG VON MISES Os animais são guiados por impulsos naturais. Eles se rendem ao impulso que os comanda naquele momento e que deve ser satisfeito. Os animais são marionetes de seus desejos. A superioridade do homem pode observada pelo fato de que ele escolhe entre alternativas. Ele regula o seu comportamento deliberadamente. Ele pode dominar seus impulsos e desejos; o homem tem o poder de conter desejos de satisfação que poderiam forçar- lhe a renunciar à realização de objetivos mais importantes. Em resumo: o homem age; ele escolhe intencionalmente seus fins. É nisso que pensamos quando afirmamos que o homem é uma pessoa moral, responsável por sua conduta.

A liberdade como um postulado da moralidade Todos os ensinamentos e preceitos da ética, sejam eles baseados em um credo religioso ou em uma doutrina secular, como a dos filósofos estóicos, pressupõem essa autonomia moral do indivíduo e, dessa maneira, têm apelo sobre sua consciência. Eles pressupõem que o indivíduo é livre para escolher entre os vários modelos de conduta e exigem que ele se comporte conforme regras definidas, as regras da moralidade. Faça as coisas certas, evite as coisas erradas. É obvio que as incitações e admoestações da moralidade só fazem sentido quando dirigidas a indivíduos que sejam livres. Elas seriam vãs se fossem dirigidas a escravos. Seria inútil dizermos a um escravo o que é moralmente bom e o que é moralmente mau. Ele não é livre para determinar seu comportamento; ele é forçado a obedecer as ordens de seu mestre. Seria difícil culpá-lo, caso preferisse submeter-se às ordens de seu mestre a sujeitar-se a ameaças de punições cruéis, não só a si mesmo como também à sua família. É por isso que a liberdade não é apenas um postulado político, mas também um postulado de toda moralidade religiosa ou secular.

A luta pela liberdade Ainda assim, por milhares de anos, uma parcela considerável da humanidade esteve completamente ou, ao menos, sob vários aspectos, privada do poder de escolha entre o que é certo e o que é o errado. Na antiga sociedade de status, a liberdade de se agir de acordo com a própria escolha era seriamente restrita para o estrato mais baixo da sociedade – a grande maioria da população – por um sistema de controles rígidos. Uma formulação famosa desse princípio foi o estatuto do Sacro Império Romano que conferiu aos príncipes e condes do Reich (o Império) o poder e o direito de determinar a afiliação religiosa de seus súditos. Os orientais se submeteram docilmente a essa situação. Porém, os povos cristãos da Europa e seus descendentes assentados em territórios britânicos no exterior foram incansáveis em sua luta pela liberdade. Passo a passo, eles aboliram todos os privilégios e proibições das castas até que finalmente conseguiram estabelecer um sistema que os arautos do totalitarismo tentam manchar chamando de sistema burguês.

A supremacia dos consumidores O fundamento econômico desse sistema burguês é a economia de mercado, na qual o consumidor é soberano. O consumidor – ou seja, todas as pessoas – , ao comprar ou deixar de comprar um produto, determina o que deve ser produzido, em que quantidade e de qual qualidade. Os empresários são forçados, por meio de lucros e prejuízos, a obedecer às ordens dos consumidores. Só prosperam os empreendimentos que fornecem os produtos e serviços de melhor qualidade e com preços mais baratos que os consumidores desejam comprar. Aqueles que não conseguem satisfazer o publico sofrerão perdas e, por fim, serão forçados a deixar o mercado.

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Nos tempos pré-capitalistas, os ricos eram os donos grandes extensões de terra. Eles ou seus antepassados tinham obtido suas propriedades a partir de presentes – feudos – concedidos pelos soberanos que, com sua ajuda, tinham conquistado o país e subjugado seus habitantes. Esses proprietários aristocratas eram verdadeiros lordes, já que não dependiam da preferência dos consumidores. Porém, os ricos de uma sociedade industrial capitalista estão sujeitos à supremacia do mercado. Eles adquirem riqueza por servirem aos consumidores melhor do que outras pessoas e perdem sua riqueza quando outras pessoas passam a satisfazer os desejos dos consumidores de forma melhor ou mais barata. Em uma economia de livre mercado, os proprietários do capital são forçados a investi-lo onde ele melhor sirva a população. Dessa maneira, a propriedade dos bens de capital é continuamente transferida para as mãos daqueles que foram mais bem sucedidos na satisfação de consumidores. É isso que os economistas querem dizer quando eles chamam a economia de mercado de uma democracia na qual cada centavo dá direito a um voto.

Os aspectos políticos da liberdade O governo representativo é o resultado político da economia de mercado. O mesmo movimento espiritual que criou o capitalismo moderno substituiu, por representantes eleitos, o governo autoritário dos monarcas absolutos e as aristocracias hereditárias. Foi esse tão condenado liberalismo que nos trouxe a liberdade de consciência, de pensamento, de expressão, de imprensa, e que pôs um fim à perseguição intolerante aos dissidentes. Um país livre é aquele em que cada cidadão é livre para moldar sua vida de acordo com seus próprios planos. Ele é livre para competir no mercado pelos empregos mais desejados e para competir na política pelos cargos mais elevados. Ele não depende dos favores de uma pessoa mais do que essa pessoa depende de seus favores. Se ele deseja obter sucesso no mercado, deve satisfazer os consumidores; se ele deseja ser bem sucedido na vida pública, deve satisfazer os eleitores. Esse sistema trouxe um crescimento populacional e uma melhora no padrão de vida inédita em toda a história nos países capitalistas da Europa ocidental, nos Estados Unidos e na Austrália. O famoso homem comum tem à sua disposição confortos com os quais os homens mais ricos dos tempos pré-capitalistas não poderiam nem sonhar. Ele está em posição de gozar de feitos espirituais e intelectuais da ciência, da poesia e da arte, que anteriormente estavam disponíveis apenas à pequena elite das pessoas ricas. E ele é livre para adorar a Deus da maneira que sua consciência lhe disser.

A deturpação socialista da economia de mercado Todos os fatos a respeito da operação do sistema capitalista foram deturpados e distorcidos por políticos e escritores que usurparam o rótulo do liberalismo, a escola de pensamento que no século XIX acabou com o reinado arbitrário dos monarcas e aristocratas e pavimentou o caminho para o livre comércio e para as empresas. Segundo esses defensores da volta do despotismo, todos os males que assolam a humanidade são resultados das maquinações sinistras das grandes corporações. O que é necessário para se produzir riqueza e felicidade para todas as pessoas decentes é a colocação de todas as corporações sob o estrito controle governamental. Eles admitem, embora apenas indiretamente, que isso significaria a adoção do socialismo, o sistema da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Porém, declaram que o socialismo será algo completamente diferente nos países ocidentais, em comparação com o que ele é na Rússia. E, de qualquer forma, dizem, não existe outro método para se retirar os imensos poderes que as gigantescas corporações possuem e evitar que elas causem ainda mais danos aos interesses da população. Contra toda essa propaganda fanática, é necessária uma ênfase contínua na verdade, de que foram as grandes corporações que viabilizaram as melhoras inéditas do padrão de vida das massas. Bens luxuosos, feitos para um número comparativamente pequeno de ricos, podem ser produzidos por pequenas empresas. Porém, o princípio fundamental do capitalismo é a produção para a satisfação dos desejos da multidão. As mesmas pessoas que são empregadas pelas grandes corporações são os principais consumidores dos bens produzidos. Se você olhar em torno da casa de uma família de rendimento médio, você verá em favor de quem as

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engrenagens estão girando. São as grandes corporações que fazem com que todos os feitos tecnológicos modernos sejam acessíveis ao homem comum. Todos recebem os benefícios da produção em grande escala. É uma tolice falar do “poder” das grandes corporações. A grande marca do capitalismo é que o poder supremo sobre todas as questões econômicas pertence aos consumidores. Todas as grandes corporações cresceram a partir de um começo modesto até seu tamanho atual em razão da preferência de seus consumidores. Seria impossível para uma firma pequena ou média produzir todos os produtos sem os quais nenhum americano atualmente gostaria de viver. Quanto maior for a corporação, mais dependente ela é da disponibilidade dos consumidores de comprar as suas mercadorias. Foram os desejos – ou, como alguns dizem, a estupidez – dos consumidores que levaram a indústria automobilística à produção de carros cada vez maiores, e que hoje as forçam a produzir carros cada vez menores. As cadeias de lojas e as lojas de departamentos têm a necessidade de ajustar suas operações diariamente, mais uma vez, buscando satisfazer os novos desejos de seus consumidores. A lei fundamental do mercado é: o freguês tem sempre razão. Um homem que critica a condução das transações comerciais e finge conhecer métodos melhores para o abastecimento dos consumidores não passa de um fanfarrão. Se acredita que seus planos são os melhores, por que ele mesmo não os experimenta? Sempre haverá nesse país capitalistas em busca de um investimento lucrativo para seus fundos, e eles estariam prontos para fornecer o capital necessário para qualquer inovação razoável. A população sempre estará disposta a comprar o que é melhor ou mais barato, ou melhor e mais barato. O que conta no mercado não são as imaginações fantásticas, são as ações. Não foi conversando que os “magnatas” enriqueçam, mas prestando um serviço aos consumidores.

A acumulação de capital beneficia a todos Hoje em dia está na moda ignorar silenciosamente o fato de que toda melhora econômica depende da poupança e da acumulação de capital. Nenhum dos feitos maravilhosos da ciência e da tecnologia poderiam ter sido utilizados na prática se o capital necessário não tivesse sido disponibilizado anteriormente. O que impede que nações subdesenvolvidas obtenham todas as vantagens de todos os métodos ocidentais de produção, e assim acabem mantendo as massas na pobreza, não é a falta de familiaridade com as teorias tecnológicas, mas a insuficiência de capital. Comete-se um erro gravíssimo sobre os problemas enfrentados pelos países em desenvolvimento quando se afirma que precisam de conhecimento técnico, de “know-how”. Os seus empresários e seus engenheiros, a maioria deles graduados nas melhores escolas da Europa e dos Estados Unidos, estão bem familiarizados com a situação da ciência aplicada contemporânea. O que os deixa de mãos atadas é a falta de capital. Há cem anos, os Estados Unidos eram ainda mais pobres do que essas nações subdesenvolvidas. O que fez os Estados Unidos passarem a ser o país mais rico do mundo foi o fato de que o “duro individualismo” dos anos anteriores ao New Deal não colocava grandes obstáculos no caminho dos empreendedores. Os empresários enriqueceram porque consumiam apenas uma pequena parte de seus lucros e injetavam uma parte bem maior de volta em seus negócios. Assim, enriqueceram a si e a todas as pessoas. Foi essa acumulação de capital que aumentou a produtividade marginal do trabalho e, conseqüentemente, os níveis salariais. No capitalismo, a avareza dos empresários beneficia não apenas os próprios empresários, mas também outras pessoas. Existe uma relação recíproca entre a aquisição de riqueza por meio do serviço prestado aos consumidores e da acumulação de capital, e a melhora nos padrões de vida dos assalariados que formam a grande maioria dos consumidores. As massas desempenham simultaneamente os papéis de de assalariados e de consumidores interessados no florescimento do comércio. Era isso que os antigos liberais tinham em mente quando declararam que na economia de mercado prevalece a harmonia dos verdadeiros interesses de todos os grupos da população. É na atmosfera moral e mental desse sistema capitalista que o cidadão americano vive e trabalha. Ainda existem em algumas partes dos Estados Unidos situações que parecem ser altamente insatisfatórias para os habitantes prósperos dos distritos mais avançados, que ocupam a maior parte do país. Porém, o progresso mais veloz da industrialização teria, há tempos, varrido do mapa essas áreas de subdesenvolvimento, caso as

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políticas infelizes do New Deal não tivessem desacelerado a acumulação de capital, essa ferramenta insubstituível do desenvolvimento econômico. Acostumado às condições do ambiente capitalista, o americano médio tem certeza de que, a cada ano, as empresas fabricarão algo novo e melhor. Olhando para trás, para os anos de sua própria vida, ele percebe que alguns utensílios que eram completamente desconhecidos em sua juventude e que vários outros que, naquela época, poderiam ser usados apenas por uma pequena minoria, hoje são utensílios básicos em quase qualquer casa. Ele tem plena confiança de que essa tendência prevalecerá no futuro. Ele chama isso simplesmente de “estilo de vida americano” e não pensa seriamente sobre o que fez essa melhora contínua da oferta de bens materiais ser possível. Ele não está seriamente perturbado com a ocorrência de fatores que certamente podem não apenas frear a acumulação de capital, mas também produzir em breve uma desacumulação. Ele não se opõe às forças que – através do estúpido aumento dos gastos públicos, da redução da acumulação de capital, até mesmo da contribuição para o consumo de partes do capital investido nas empresas e, finalmente, da inflação – estão drenando as próprias bases de seu bem material. Ele não está preocupado com o crescimento do estatismo que, onde quer que tenha sido testado, resultou apenas na produção e na preservação de condições as quais, em sua opinião, são terrivelmente ruins.

Não existe liberdade individual sem liberdade econômica Infelizmente, muitos de nossos contemporâneos não conseguem perceber o que uma mudança radical nas condições morais do homem, a ascensão do estatismo e a substituição da economia de mercado pela onipotência governamental deverá ocasionar. Eles estão iludidos pela idéia de que existe um dualismo nítido nas coisas humanas, que há de um lado uma esfera de atividades econômicas e de outro lado um campo de atividades que são consideradas não econômicas. Eles acreditam que não existe nenhuma conexão entre esses dois campos. A liberdade que o socialismo abole é “apenas” a liberdade econômica, enquanto todas as outras liberdades permanecem intocadas. Entretanto, essas duas esferas não são independentes, como afirma essa doutrina. Os seres humanos não flutuam em regiões etéreas. Tudo que um homem faz deverá, necessariamente, de uma forma ou de outra, afetar a esfera econômica ou material, e necessita de sua capacidade de interagir com essa esfera. Para poder sobreviver, ele deve trabalhar e ter a oportunidade de lidar com alguns bens materiais reais. A confusão se manifesta na idéia popular de que o que está acontecendo no mercado se refere apenas ao lado econômico da vida e da ação humana. Porém, na verdade, os preços do mercado refletem não apenas “preocupações materiais” – como a obtenção de alimentos, moradias e outros confortos – mas também algumas preocupações que são geralmente chamadas de espirituais, mais elevadas ou mais nobres. A observação ou a não-observação dos mandamentos religiosos – de se abster totalmente da prática de certas atividades, se abster delas apenas em dias específicos, de se prestar assistência aos mais necessitados, de se construir e manter locais de culto, entre outros – é um dos fatores que determina a oferta e a demanda de vários bens de consumo e, dessa maneira, determina também os preços e a condução dos negócios. A liberdade que a economia de mercado garante ao indivíduo não é apenas “econômica”, não é distinta de algum outro tipo de liberdade. Ela implica na liberdade de também se decidir todas aquelas questões que são consideradas morais, espirituais e intelectuais. A verdade é que os indivíduos podem ser livres para escolher entre o que consideram certo ou errado apenas se forem economicamente independentes do governo. O que cega muitas pessoas a respeito das características essenciais de qualquer sistema totalitário é a ilusão de que esse sistema será operado precisamente da forma que consideram desejável. Ao apoiarem o socialismo, elas supõem que o “Estado” fará sempre o que desejam que seja feito.

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LUDWIG VON MISES A demonstração teórica das conseqüências das tarifas protecionistas e do livre comércio é o ponto chave da economia clássica. Isso é tão claro, tão óbvio, tão indisputável, que seus oponentes foram incapazes de propor qualquer argumento contrário que não pudesse ser imediatamente refutado por ser completamente errado e absurdo. Apesar disso, atualmente nós ainda encontramos tarifas protecionistas – na verdade, encontramos até mesmo proibições às importações – em todas as partes do mundo. Até mesmo na Inglaterra, a mãe do livre comércio, o protecionismo está hoje em ascensão. O princípio da autarquia nacional ganha novos partidários a cada dia que passa. Mesmo países com poucos milhões de habitantes, como a Hungria e a Tchecoslováquia, estão tentando, por meio de uma política de tarifas altas e de proibições às importações, se tornarem independentes do resto do mundo. A idéia básica da política do comércio exterior dos Estados Unidos é impor tarifas alfandegárias sobre todos os bens produzidos no exterior a baixo custo para compensar a diferença. O efeito dessas políticas é a interferência na divisão internacional do trabalho para, dessa maneira, reduzir de forma geral a produtividade do trabalho. A única razão pela qual esse resultado não se tornou mais perceptível é o avanço do sistema capitalista, que tem sido, até agora, suficiente para contrabalançá-lo. Entretanto, não pode haver dúvidas de que todos estariam mais ricos hoje caso as tarifas protecionistas não tivessem transferido artificialmente a produção de locais mais favoráveis para outros menos favoráveis. Sob um sistema de comércio completamente livre, o capital e o trabalho poderiam ser empregados onde quer que as condições fossem mais favoráveis à produção. Outros locais seriam utilizados, desde que fosse possível a produção em qualquer lugar sob condições mais favoráveis. Até o ponto em que, como resultado do desenvolvimento dos meios de transporte, dos avanços na tecnologia e de uma exploração mais completa de países abertos recentemente ao comércio, se descubra a existência de locais mais favoráveis à produção do que aqueles que estavam sendo utilizados, então, a produção se transferiria para essas novas localidades. O capital e trabalho tendem a se mover de áreas onde as condições são menos favoráveis à produção para outras mais favoráveis. Porém, a migração de capital e trabalho não pressupõe apenas a completa liberdade de mercado, mas também a ausência total de obstáculos ao seu movimento de um país a outro. Isso estava longe de ser realidade quando a doutrina clássica do livre comércio foi desenvolvida. Uma grande quantidade de obstáculos impedia o livre movimento do capital e do trabalho. Por conta do desconhecimento das condições, da insegurança generalizada em relação à lei e à ordem e de várias outras razões similares, os capitalistas relutavam em investir em países estrangeiros. Como no caso dos trabalhadores, também era impossível para os capitalistas deixarem sua terra natal, não apenas por sua ignorância em relação às línguas estrangeiras, como também por causa de dificuldades legais e religiosas, entre outras. No início do século XIX era verdade que, de certa forma, o capital e o trabalho podiam se movimentar livremente dentro dos países, mas havia obstáculos no caminho de seu movimento de um país para outro. A única justificativa para a distinção na teoria econômica entre o comércio interno e externo é baseada no fato de que internamente existe mobilidade de capital e trabalho, o que não é verdadeiro a respeito do comércio entre nações. Dessa forma, o problema que a teoria clássica tinha que solucionar pode ser formulado da seguinte maneira: quais são os efeitos do livre comércio de bens de consumo entre um país e outro, caso a mobilidade do capital e do trabalho entre ambos seja restrita? A doutrina de Ricardo forneceu uma resposta a essa pergunta. Os ramos de produção se distribuem entre os países de forma que um deles destina seus recursos àquelas indústrias que possuem maior superioridade sobre as de outros países. Os mercantilistas temiam que um país com condições de produção desfavoráveis importaria mais do que exportaria e assim, no fim das contas, ficaria sem dinheiro algum; e exigiam a criação de tarifas protecionistas e proibições sobre importações a tempo de evitar que essa deplorável situação emergisse. A doutrina clássica mostra que esses pavores mercantilistas não têm fundamento, já que mesmo um país cujas condições de produção em cada ramo da indústria são menos favoráveis do que nos outros países, não precisa temer por exportar menos do que importa. A doutrina clássica demonstrou, de forma

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brilhante e indiscutível – de forma, aliás, nunca contestada – que mesmo os países com condições de produção relativamente favoráveis devem ver como uma vantagem a importação de produtos de países com condições de produção comparativamente desfavoráveis daquelas mercadorias que também produziriam muito bem, mas não tão bem quanto produzem outras mercadorias em cuja produção se especializaram. Assim, o que a teoria clássica do livre comércio diz ao governante é que existem países com condições naturais de produção relativamente favoráveis e outros com condições relativamente desfavoráveis. Na ausência de interferência por parte dos governos, a divisão internacional do trabalho irá, por si, resultar em cada país encontrando o seu lugar na economia mundial, não importando como suas condições de produção sejam comparáveis às de outros países. Claro, os países com condições comparativamente favoráveis serão mais ricos do que outros, mas esse é um fato que não pode ser alterado por medidas políticas de qualquer espécie. Isso é simplesmente conseqüência da diferença dos fatores naturais da produção. Era essa a situação com que se confrontava o antigo liberalismo, e a essa situação ele respondeu com a doutrina clássica do livre comércio. Porém, desde os dias de Ricardo, as condições do mundo se modificaram consideravelmente, e o problema que a doutrina do livre comércio teve de enfrentar nos sessenta anos anteriores à explosão da Guerra Mundial foi completamente diferente daquele com o qual ela se ocupou no fim do século XVIII e no início do século XIX, pois o século XIX eliminou parcialmente os obstáculos que, no começo, tinham obstruído o caminho do livre trânsito de capital e trabalho. Na segunda metade do século XIX, era muito mais fácil para um capitalista investir seu capital no exterior do que na época de Ricardo. A lei e a ordem estavam estabelecidas sobre fundações consideravelmente firmes; o conhecimento de países estrangeiros, seu estilo e costumes tinha se espalhado; e as sociedades anônimas ofereciam a possibilidade de divisão de riscos dos empreendimentos no exterior entre muitas pessoas e, dessa forma, os reduzia. Obviamente, seria um exagero se disséssemos que no começo do século XX o capital tinha tanta mobilidade para transitar de um país a outro quanto para atravessar o território de um mesmo país. Para sermos exatos, certas diferenças ainda existiam; ainda assim, a suposição de que o capital deveria permanecer dentro das fronteiras de cada país já não existia mais. E o mesmo se aplicava ao trabalho. Na segunda metade do século XIX, milhões de pessoas deixaram a Europa para buscar melhores oportunidades de emprego em outros países. Naquele momento, as condições pressupostas pela doutrina clássica do livre comércio, a imobilidade do capital e do trabalho, não mais existiam e, da mesma forma, a distinção entre os efeitos do livre mercado no comércio interno e no comércio externo também perderam sua validade. Se o capital e o trabalho podem se mover entre um país e outro de forma tão livre quanto se movem internamente, então não há maiores justificativas para se fazer uma distinção entre os efeitos do livre mercado no comércio interno e externo. Então, o que era dito em relação ao primeiro valia também para o segundo: o resultado do livre comércio é que os locais utilizados pela produção serão apenas aqueles nos quais as condições sejam comparativamente favoráveis, enquanto aqueles nos quais as condições de produção sejam comparativamente desfavoráveis permanecerão inutilizados. O capital e o trabalho fluem de países com condições menos favoráveis de produção em direção àqueles em as condições de produção são mais favoráveis, ou mais precisamente, dos países europeus, já colonizados e altamente povoados, em direção à América e a Austrália, áreas que ofereciam condições de produção mais favoráveis. Para as nações européias que tiveram ao seu dispor os territórios do exterior aptos à colonização por europeus, além das antigas áreas de colonização da Europa, isso não significava simplesmente que agora poderiam acomodar parte de sua população no exterior. No caso da Inglaterra, por exemplo, alguns de seus filhos agora moravam no Canadá, na Austrália e na África do Sul. Os imigrantes que deixaram a Inglaterra puderam manter a cidadania e a nacionalidade inglesa em seus novos lares. Porém, na Alemanha a questão era um pouco diferente. O alemão que imigrava para o território de um país estrangeiro estava entre os membros de uma nação estrangeira. Ele se tornava um cidadão de um Estado estrangeiro, e se esperava que após uma, duas ou até três gerações, sua ligação com o povo alemão desaparecesse e seu processo de assimilação como membro de uma nação estrangeira estivesse completo. A Alemanha pôde apenas assistir com indiferença enquanto uma parte de seu capital e de seu povo emigrava para o exterior. Não devemos cometer o erro de supor que os problemas de política comercial que a Inglaterra e a Alemanha tiveram que enfrentar na segunda metade do século XIX fossem os mesmos. Para a Inglaterra, a questão era

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saber se dever-se-ia ou não permitir que uma grande quantidade de cidadãos emigrasse para seus domínios e não havia razão alguma para se atrapalhar essa imigração. Entretanto, para a Alemanha, o problema era se deveria esperar em silêncio, enquanto seus cidadãos emigravam para as colônias britânicas, para a América do Sul e para outros países, onde se esperava que esses emigrantes, com o passar do tempo, abrissem mão de sua cidadania e nacionalidade, da mesma forma que centenas de milhares, na verdade milhões, que emigraram anteriormente, tinham feito. Por não querer que isso acontecesse, o Império Alemão, que durante os anos 1860 e 1870 vinha se aproximando cada vez mais de uma política de livre comércio, mudou sua política no fim dos anos 1870 para o protecionismo, a partir da imposição de tarifas sobre a importação, buscando resguardar a agricultura e a indústria alemã contra a competição estrangeira. Sob a proteção dessas tarifas, a agricultura alemã foi capaz de suportar a competição com fazendas que cultivavam em terras melhores, no leste europeu e em outros continentes, e a indústria alemã pode formar cartéis que mantiveram o preço interno acima do mercado mundial, possibilitando o uso dos lucros, obtidos internamente através do cartel, para financiar suas vendas por um preço inferior ao de seus competidores no exterior. Porém, o objetivo supremo da volta do protecionismo não foi realizado. Quanto mais os custos de vida e de produção cresciam na Alemanha, como conseqüência direta das tarifas protecionistas, mais difícil ficava a posição comercial do país. Certamente, foi possível para a Alemanha a realização de um grande aperfeiçoamento industrial nas primeiras três décadas da era da nova política comercial. Porém, esse aperfeiçoamento teria acontecido mesmo na ausência das tarifas protecionistas, já que ele foi, primeiramente, resultado da introdução de novos métodos nas indústrias químicas e siderúrgicas da Alemanha, o que possibilitou uma melhor utilização dos recursos naturais abundantes do país. A política antiliberal, ao abolir o livre trânsito do trabalho no mercado internacional e restringir consideravelmente até mesmo a mobilidade do capital eliminou, de certa forma, a diferença que existia nas condições do mercado internacional entre o começo e o fim do século XIX e as reverteu àquelas que prevaleciam na época em que a doutrina do livre mercado foi formulada pela primeira vez. Mais uma vez, o capital e acima de tudo o trabalho tiveram seu movimento impedido. Sob as condições hoje existentes, o livre comércio de bens de consumo não despertaria nenhum movimento migratório. Mais uma vez, ele resultaria em uma situação na qual os indivíduos do mundo se ocupariam daqueles ramos e modelos de produção em que encontrassem condições relativamente mais favoráveis em seus próprios países. Porém, quaisquer que sejam os pré-requisitos para o desenvolvimento do comércio internacional, as tarifas protecionistas só servem para uma coisa: para evitar que a produção aconteça onde as condições naturais e sociais lhe são mais favoráveis e fazer com que ela aconteça onde as condições lhe são menos favoráveis. Dessa forma, o resultado do protecionismo é sempre a redução da produtividade do capital humano. O defensor do livre mercado está longe de negar que o mal que as nações do mundo desejam combater por meio de uma política protecionista seja realmente um mal. O que defende é que os meios recomendados pelos imperialistas e protecionistas não podem eliminar esse mal. Ele propõe um jeito diferente. Uma das características da atual situação internacional que o liberal deseja modificar para podermos criar as condições indispensáveis para uma paz duradoura é a questão dos imigrantes de países como a Alemanha e a Itália, criados como enteados na divisão do mundo, que devem viver em áreas onde, por conta da adoção de políticas antiliberais, são condenados a perder a sua própria nacionalidade.