oração de sapiência proferida na cerimónia de abertura do...

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1 Oração de Sapiência proferida na Cerimónia de Abertura do II Curso de Estágio de 2008 Exmo. Senhor Presidente do Tribunal da Relação do Porto Exmo. Senhor Presidente do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados Exmo. Senhor Presidente do Centro de Estágio Exmo. Senhor Presidente do Conselho de Deontologia Exmo. Senhor Conselheiro do Conselho Superior Prezadas e Prezados Colegas Minhas Senhoras e Meus Senhores As minhas primeiras palavras são de agradecimento para o honroso, embora imerecido, convite, que, penso, só se compreende devido à benevolência de dois queridos Amigos e Colegas, o Dr. Guilherme Figueiredo e o Dr. Rui Assis, ilustres Presidentes, respectivamente, do Conselho Distrital do Porto e do Centro de Estágio. Seguidamente, também vos confesso, não me sinto muito à vontade com este pomposo e erudito nome, Oração de Sapiência, sob o qual são intituladas estas intervenções. Fico mesmo intimidado e peço-vos benevolência, porque nada de sábio tenho para vos dizer.

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1

Oração de Sapiência proferida na Cerimónia de Abertura do II Curso

de Estágio de 2008

Exmo. Senhor Presidente do Tribunal da Relação do Porto

Exmo. Senhor Presidente do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos

Advogados

Exmo. Senhor Presidente do Centro de Estágio

Exmo. Senhor Presidente do Conselho de Deontologia

Exmo. Senhor Conselheiro do Conselho Superior

Prezadas e Prezados Colegas

Minhas Senhoras e Meus Senhores

As minhas primeiras palavras são de agradecimento para o honroso,

embora imerecido, convite, que, penso, só se compreende devido à

benevolência de dois queridos Amigos e Colegas, o Dr. Guilherme

Figueiredo e o Dr. Rui Assis, ilustres Presidentes, respectivamente, do

Conselho Distrital do Porto e do Centro de Estágio.

Seguidamente, também vos confesso, não me sinto muito à vontade

com este pomposo e erudito nome, Oração de Sapiência, sob o qual são

intituladas estas intervenções.

Fico mesmo intimidado e peço-vos benevolência, porque nada de sábio

tenho para vos dizer.

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A Oração de Sapiência é uma bonita tradição medieval e caracteriza-se

por ser um discurso denso (principalmente as Académicas), à escolha

do orador, que é pronunciado, a maioria das vezes, na abertura do ano

lectivo das Universidades, mas também, algumas vezes, na abertura de

Cursos, como este de Estágio, que representem, de algum modo, o

início de percurso de uma etapa ou ciclo de vida.

Aqui permitam-me recordar, até porque foi o estabelecimento onde me

licenciei, sendo as que melhor conheço, as magníficas orações de

sapiência proferidas por ocasião da abertura do ano lectivo na

Universidade de Coimbra, desde José Alberto dos Reis, acerca da

missão de não só instruir mas também educar das Universidades, de

Manuel de Andrade que discorreu brilhantemente sob a

“jurisprudência dos interesses” alicerçado no pensamento e

metodologia de Philiph Heck, de Almeida Costa, acerca da

peregrinação do Homem ao seu encontro com o Direito, do Homem,

livre para se perder e livre para se salvar, a Orlando de Carvalho com

a sua densa teia problemática do velho brocardo latino “Ius Quod

Iustum”, ou seja, dar a cada um o que é seu, passando por muitos

outros, não resistindo eu de deixar de citar Cabral Moncada com a

análise do problema do direito natural no pensamento contemporâneo,

e isto num momento em que o direito natural, como referiu Rui

Figueiredo Marcos, já não era cosmológico, nem antropológico, nem

teológico, nem sequer racionalista, mas, enfim, simplesmente

axiológico, isto é, um direito natural dos valores.

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Além do mais, esta Oração de Sapiência de Cabral Moncada, que aqui

destaco, mais do que o tema abordado, teve o condão de nos dizer

como devia pensar-se e não precisamente aquilo que devia pensar-se a

tal respeito.

Isto é, o que realmente importa transmitir não é um pensamento

determinado, mas sim como estruturar o pensamento a respeito de um

determinado assunto, sem imposição de dogmas ou do que quer que

seja.

Como é lógico, não vou abordar temas desta envergadura, não só

porque me falta o talento e o saber, mas também porque as aqui

minhas e meus queridos Colegas destinatários, nas suas várias etapas

de formação, já deixaram o ensino universitário, indo agora iniciar o

seu estágio com vista ao exercício da complexa e fascinante profissão

de Advogado.

Apesar de fascinante, a nossa profissão tem sido alvo de sentimentos

antagónicos, pois, normalmente, ao contrário de todas as outras,

lidamos com a conflitualidade social e temos uma parte contrária de

carne e osso como nós, tudo diferente da medicina e da engenharia, por

exemplo, onde a chamada parte contrária não tem rosto humano,

sendo a doença o que se tem de vencer na Medicina e as forças da

natureza o que se tem de vencer na Engenharia.

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Assim temos que, se por um lado, a Advocacia, no dizer de Voltaire, é a

mais bela profissão do mundo, e, segundo Palma Carlos, é mesmo

tocar as estrelas.

Por outro lado, desde Shakespeare que dizia que os Advogados não

eram precisos para nada, deviam desaparecer, ser mesmo mortos, ao

filho do conhecido actor Harrison Ford, que numa entrevista que

fizeram à família Ford dizia ao entrevistador “o meu pai é actor de

cinema; às vezes faz de boa pessoa, outras vezes faz de advogado”.

Depois disto, neste sentido de vos alertar para a incompreensão que,

muitas vezes, gera a nossa profissão, peço-vos desculpa, mas não me

contenho e queria-vos contar uma história, ao que me dizem verídica, e

que se passou com um simples Guarda Florestal de um parque dos

EUA.

História esta que abriu, aqui há uns anos atrás, o discurso de um

brilhante jurista.

Discutia-se nesse Parque Florestal uma forma de reduzir os

atropelamentos que estavam a acontecer frequentemente, não só de

pessoas como de animais.

Na semana em causa tinham sido atropelados, na mesma zona, ora

vejam, um Advogado e um esquilo.

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Na análise das respectivas ocorrências os peritos estavam a procurar

determinar entre dois locais distintos tidos como possíveis, qual o que

corresponderia ao atropelamento do Advogado e qual o que

corresponderia ao atropelamento do esquilo.

Depois de acesa discussão, até porque os peritos não se entendiam, é

chamado o Guarda Florestal que, com toda a sua simplicidade apontou

de imediato o local onde o esquilo tinha sido colhido.

Quando estupefactos os peritos lhe perguntaram porque ele achava tão

categoricamente que aquele era o local onde tinha sido colhido o

esquilo, ele respondeu, simplesmente, porque existem rastos de

travagem antes do atropelamento.

Voltando agora o fio à meada, após este parêntesis, nesta segunda fase

da vossa formação vão lidar essencialmente com o importante tema da

deontologia e com os também não menos importantes temas

processuais que têm a ver com a tramitação e ritual que devem seguir

os processos judiciais.

É a fase, como se costuma dizer, da “Law in Action”.

Isto é, após uma componente universitária mais teórica, vão agora as

minhas e os meus queridos Colegas entrar numa componente mais

técnica e virada para a Advocacia, onde, porque conheço alguns, vão

ter excelentes mestres aqui no Centro de Estágio.

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Por conseguinte, também não vos irei falar de nenhum destes temas da

segunda fase da vossa formação, a fase do estágio.

Aproveitem, porque não é todos os dias que se tem o privilégio de ter

este “crème de la crème” de formadores.

Posso-lhes dizer ainda que o mês passado, em Bucareste, no Congresso

Mundial da União Internacional dos Advogados, fui um dos

convidados, com várias outros Colegas, tendo havido a preocupação de

escolher um Advogado por país, para fazer uma comunicação e

intervir no debate acerca da criação de uma nova Comissão no âmbito

da União Internacional dos Advogados.

Comissão esta que irá ser criada de propósito e que tem como

objectivo, única e simplesmente, a Formação e o Acesso à profissão de

Advogado.

Vejam pois a importância que a Formação está a assumir, mesmo nos

Fóruns Internacionais, agora mais do que nunca.

Deixei-me também dizer-lhes que o sistema de formação em vigor em

Portugal foi dos mais elogiados, o que para mim nem foi novidade, pois

dos contactos que tenho tido com Colegas do estrangeiro ao longo da

minha vida profissional, posso referir, sem margem para dúvidas, que

os Advogados Portugueses estão ao mais alto nível.

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Gostava assim de vos dizer algumas palavras, que possam, de algum

modo, contribuir para a vossa formação, mas que estejam fora, não só

do âmbito universitário, mas também do âmbito das disciplinas que

vão abordar no curso de estágio.

Ora, quem vos está aqui a falar tem um currículo muito pequeno e ao

mesmo tempo muito grande.

Isto porque, se tivesse que fazer um currículo, quase que chegaria

escrever a palavra Advogado, simplesmente Advogado, um currículo

muito pequeno, mas que poderá tornar-se muito grande se se

acrescentarem todas as vivências que representam ser Advogado já há

mais de vinte anos.

Minhas queridas e meus queridos Colegas, o que aprenderam na

Faculdade de Direito é um instrumento muito importante para todos

os que estão aqui na plateia almejam, e com toda a legitimidade, cheios

de sonhos, aspirações e desejos, que é o de virem a exercer a profissão

de Advogado.

Mas, não tenham ilusões, porque, como acabei de referir, o que

aprenderam na Faculdade de Direito é apenas um das ferramentas,

não a ferramenta.

Capacitem-se disso, pois não quero que cheguem ao extremo de dizer

daqui a uns anos, como se retira da mensagem do livro “A Mistificação

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da América” (The Greening of América) de Charles Reich, antigo

Professor da Escola de Direito de Yale, onde o mesmo parece que

murmura para os ex-alunos que saíram de Yale (a mais conceituada

escola de direito dos EUA, juntamente com Harvard), ora bolas,

passados estes anos todos esquecemo-nos de vos ensinar a advogar…

Quem sai da Faculdade de Direito é óbvio que não sabe o que se passa

nas trincheiras, nem lhe foram ensinadas as coisas que farão dia sim

dia não como Advogados.

Começo-vos então por dizer, embora a frase esteja já um pouco gasta,

que um Advogado que só saiba de direito nem de direito sabe.

Um Advogado tem de saber, além do Direito, essencialmente do

Mundo e da Vida.

Importa pois fazer uma breve reflexão acerca do que é o Mundo

actual.

Actualmente, o progressivo processo de Globalização com tudo o que

tem de bom e com tudo o que tem de mau, está definitivamente

instalado.

O progresso científico, desde a descoberta do ADN à recente

elaboração final do desenho do mapa do genoma humano, se em muito

vai ajudar a sociedade, também cria múltiplos problemas e questões

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jurídicas, desde a escolha dos filhos por processos genéticos, à recusa

de trabalho a quem se preveja que pelo seu código genético em breve

vai contrair uma doença, etc.

Por outro lado, a evolução e a mobilidade tecnológica fazem com que

todos os anos milhões de pessoas mudem de trabalho sem mudar de

profissão, num constante exercício de renovação a que não escaparão

os Advogados.

Ora, considerando a actual conjuntura social e última e

principalmente, a actual conjuntura económico financeira, resultante

dos novos e sofisticados produtos que se criaram e serviços existentes,

decorrentes da evolução dos tempos, das novas formas de gerir, do

avanço científico, das telecomunicações e outros, vemos, como refere

Joaquim Aguiar, que o Estado sem o poder de controlar as pessoas e a

mobilidade dos factores económicos e financeiros, perdeu também um

outro importante poder, e deveras mais relevante, que era o poder do

Estado para controlar o tempo …. o tempo da evolução histórica …das

inter-relações dos grupos sociais, o tempo da mudança nas culturas e

nas configurações sociais.

Tanto os últimos anos do século XX como os primeiros anos deste

século XXI, demonstraram que era um verdadeiro mito poder pensar-

se que o Estado tinha o poder produzir a sociedade e a sua organização

e, desse modo, permitir ao poder político produzir-se a si próprio ao

conseguir controlar a evolução da sociedade.

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Este controlo fazia-se com a mediação do plano nos regimes socialistas,

e com a mediação do mercado, com menor ou maior influência do

Estado, no liberalismo e no social liberalismo.

Para o modelo socialista estatizado, a apropriação colectiva dos meios

de produção e o plano elaborado pelas autoridades centrais garantiam

a condução linear da economia, sem ciclos económicos, e da sociedade,

garantindo a satisfação das necessidades básicas de todos os seus

elementos.

Para os modelos liberais e sociais liberais, os estímulos bem doseados

de política fiscal e de política monetária, com o apoio envolvente das

políticas de segurança social, permitiriam, segundo estes modelos,

obter estas duas estabilidades, a da economia, controlando os ciclos

económicos e assegurando um crescimento sustentado, e da sociedade,

reduzindo a intensidade dos conflitos de classes.

No entanto, estes dois mitos desagregaram-se, e o mais curioso é que

não foi porque tenham sido derrotados politicamente por uma outra

proposta vencedora.

O desenvolvimento tecnológico e a sua sofisticação atrás referida,

fizeram com que estes modelos, única e simplesmente, se

desagregassem por dentro.

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Vejam que o que Osama Bin Ladem não conseguiu com o atentado às

Torres Gémeas foi agora, ao que parece, não só alcançado mas

muitíssimo ultrapassado, com a crise financeira desencadeada pelo

denominado fenómeno do “subprime” nos EUA.

Nesta análise do Mundo em geral em que nós Advogados estamos

inseridos, além dos fenómenos já elencados da globalização e do

progresso tecnológico, com toda a sua mobilidade e sofisticação, não

podemos deixar de fazer alusão à Comunicação Social, dado que esta

vai, no futuro, mais do que nunca, influenciar o actual paradigma do

exercício da Advocacia.

Hoje em dia, a chamada Imprensa já não é o quarto poder como

Honoré de Balzac dizia com a perspicácia e sensibilidade de quem

escreveu que “o amor é a poesia dos sentidos”.

A Imprensa é, isso sim, não o quarto, mas o primeiro poder dos

poderes.

É de pensar como, hoje em dia, estamos longe da Comunicação Social

de há um par de décadas atrás, não sendo necessário recuar aos

tempos do Leipzer Zeitung, primeiro jornal diário do mundo criado na

Alemanha em 1660.

Todas as correntes filosóficas influenciaram os Media, principalmente

o Iluminismo, mas, verdadeiramente, só se começou a sentir a

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importância dos Media no século XIX, quando a Imprensa se tornou

numa indústria com o desenvolvimento da rotativa.

E a importância desta passou a ser tão significativa que já em 1820,

segundo Hegel, o jornal é a oração laica matinal do homem moderno.

No início do século XX os filósofos seguidores de Hegel e Marx, logo

nessa altura, denunciaram o perigo da industrialização e

estandardização da cultura referindo-se à imprensa.

Em meados do século XX as Instituições, segundo Karl Popper, são a

Economia de Mercado, a Democracia Política e, vejam só, os Media.

Aliás, esta Sociedade Aberta de Popper para o austríaco Friedrich

Hayek seria uma Grande Sociedade com os referidos três

intervenientes, Economia de Mercado, Democracia Política e Media,

totalmente ligados e entrelaçados, pois que dependentes uns dos outros,

embora com antagonismos, num autêntico e perfeito “ménage à trois”.

Nos anos sessenta Marshall MacLuhan lucidamente refere que nos

Media até então o que tinha sido importante era a mensagem, mas

agora mais importante do que o conteúdo da mensagem é o Media que

permite a sua transmissão.

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Esta “estandardização da cultura”, ou seja, a homogeneização cultural

promovida pelos Mass Media, acabou por domesticar e moldar a

Opinião Pública.

A Opinião Pública em vez de corresponder a uma real força

modelizadora e mobilizadora dos projectos colectivos, passa a ser não

mais do que uma forma interiorizada de modelos forjados pela

indústria cultural (os Mass Media).

Como salienta, neste seguimento, Adriano Duarte Rodrigues in “O

Campo dos Media”, Comunicação & Linguagens, a Opinião Pública

passa a ser mais objecto do que sujeito autónomo de uma vontade e

saber colectivos.

Repare-se que o espaço encolheu num tempo que se acelera, fruto da

aliança entre a informática e as telecomunicações.

A Televisão passou a ser (e agora também a Internet) a grande

educadora e líder de comportamento.

A sua influência é enorme e penetrante, porque lecciona ao domicílio, é

praticamente grátis, e fá-lo a novos e velhos, universitários e

analfabetos, ricos e pobres, etc.

É o mais influente arquitecto do nosso Universo como referiu o na

altura Senhor Presidente da Assembleia da República, Dr. Almeida

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Santos, na sessão de encerramento do V Congresso dos Juízes

Portugueses.

Forma e deforma, cria e destrói e confunde ficção com realidade.

Nos últimos anos a excessiva empresarialisação dos meios de

Comunicação Social tornou-os escravos das audiências.

A informação procura a todo o custo a obtenção de picos de audiência,

aposta em slogans e frases mediáticas, sendo a informação sumária

para não dizer, muitas vezes, absolutamente primária.

Os Media para não fugir ao que hoje se passa com a maioria das

pessoas, pois todas pensam saber superficialmente de tudo mas

profundamente acabam por não saber nada de nada, permitem-se

fazer afirmações completamente deslocadas e até investigar, julgar,

absolver e condenar, e tudo muito rápida e eficazmente, em

contraposição com a lentidão dos Tribunais.

As opiniões, as entrevistas, as mesas redondas, quadradas e de

qualquer formato sucedem-se, assim como os fóruns e outros que tais,

começando as pessoas a confundir ficção com realidade e o ar do

tempo a reinar, que é o ir na onda e é o que pensam precisamente as

pessoas que não pensam, como dizia há tempos o editorial do Jornal

Expresso.

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Este modo de agir dos Media atingiu toda a sociedade Portuguesa, ao

qual não escapou a Justiça.

O que vos queria pois referir é que os Advogados de futuro têm de

aprender a lidar com este tipo de sociedade mediática, o que é

incontornável, pois a liberdade de expressão é um dos grandes valores

de referência de uma sociedade livre.

A liberdade de Imprensa é um corolário da liberdade de expressão,

sendo aquela outro valor que ninguém põe em causa, tendo-se vindo a

consolidar nas sociedades democráticas toda uma luta que começou em

1695 quando em Inglaterra foi reconhecido à Imprensa (pela Coroa

Inglesa) o direito de impressão sem autorização prévia.

Aqui chegados, convém lembrar, e isto sim diz-nos directamente

respeito, que a regra base das audiências judiciais é de que devem ser

públicas.

Mais, hoje em dia já ninguém contesta que as autoridades judiciárias

devem permanecer expostas às críticas da Sociedade.

O princípio da publicidade dos processos e das decisões judiciais não

poderá jamais ser posto em causa.

A Imprensa tem de ser Livre e a Justiça tem de ser Aberta.

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Este princípio fundamental de Justiça Aberta e Transparente só

poderá ter restrições em casos especiais, quando possa pôr em causa,

por exemplo, a garantia de realização de um julgamento justo e

imparcial.

A Justiça e as autoridades judiciárias (assim como a Política e os

políticos), têm de estar expostas à sociedade e inclusive sujeitas ao

debate público com a necessária publicidade, tudo conforme refere

Gomes Canotilho.

Recorrendo à conhecida máxima “Justice must not only be done; it must

be seen to be done”.

Nos Estados Unidos da América já tivemos julgamentos televisionados

em directo.

Embora com determinadas regras e sem que esta premonição

signifique qualquer concordância antecipada de minha parte, estou

convencido que no futuro poderá ser permitida a transmissão de

julgamentos também noutros países.

As reservas que poderiam existir face a uma possível “encenação”

excessiva das salas de audiência, têm vindo a perder terreno, dado que

com o desenvolvimento tecnológico (vejam, outra vez o

desenvolvimento tecnológico a moldar a sociedade) podem-se fazer

filmagens com pequenas câmaras e bem escondidas.

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De igual modo se tem referido que em vez de se criticar a Imprensa

pelas suas reportagens acerca do que se passou no Tribunal, dever-se-

ia deixar ao telespectador assistir aos debates, sem interposta pessoa,

para que tirasse as suas própria conclusões e ver afinal como tudo se

passa.

Esta discussão tem ultrapassado os países anglo-saxónicos pelo que já

em França se pergunta “si la presse et le public doivent être admis au

procès, pourquoi pas les caméras ?”

Não vamos entrar na discussão deste controverso tema da transmissão

dos julgamentos pela televisão, porque, no fundo, o que vos quero dar é

simplesmente uma ideia da “revolução” por que está a passar o Mundo

à qual a Advocacia não escapará.

O que eu vos quero alertar é que é importante que os Advogados

mantenham a sua dignidade, seus princípios éticos e deontológicos,

perante esta sociedade de Câmaras de Filmar e parangonas nos

jornais.

A Comunicação Social já demonstrou o apetite voraz que tem pelos

casos judiciários, e o que passa na Comunicação Social acerca da

Justiça e dos Advogados é a ideia que fica para o público da nossa

profissão.

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Para o Público, os 15 segundos em que aparece a falar um Advogado

debaixo dos holofotes da Televisão é o retrato da Advocacia.

Estes 15 segundos são o momento, e prevalecem sobre séculos de

existência da nossa profissão e sobre o mister de milhões de

Advogados.

Um verdadeiro salto mortal fazendo tábua rasa de tudo o que está

para trás.

Mas, é assim, não fosse o arquétipo do telespectador médio, dentro

desta nossa normalidade ética contemporânea, um verdadeiro e

arvorado génio da síntese.

Daqui para frente, tenham consciência disso Minhas Queridas e Meus

Queridos Colegas, o Advogado no futuro vai ter que saber conviver,

por este andar, com um Mundo de Câmaras de Filmar e Microfones.

Ora, todo este estado da Nação, ou melhor, do Mundo, originou uma

mutação vertiginosa na Advocacia nos últimos anos.

E quem nos trouxe esta mutação foi, nada mais nada menos,

desculpem voltar a insistir na tecla, o desenvolvimento tecnológico,

com tudo o que tem de bom e com tudo o que tem de mau, mas sendo

imparável, e tendo vindo para ficar, cada vez com maior sofisticação.

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As modificações operadas na profissão de Advogado nos últimos vinte

anos ultrapassam e bem as modificações dos últimos séculos, e quem

não estiver preparado para evoluir será condenado pelas mutações em

curso.

A maioria dos futuros Advogados que estão nesta plateia, embora a

Advocacia individual tenha o seu papel a desempenhar sendo bom que

nunca desapareça, não vão por certo trabalhar sozinhos mas em

sociedades ou grupos de advogados, vão ter de ter uma cultura extra

jurídica mas ao mesmo tempo vão, parece evidente, ter que se

especializar num ramo de direito específico, vão ter ao alcance do

teclado do seu computador toda a informação jurídica possível, vão ter

de falar e escrever em Inglês, a língua franca actual, vão ter de

trabalhar com estrangeiros e no estrangeiro, dado que com o evoluir

do processo de integração na União Europeia e crescente globalização,

os Advogados Portugueses serão cada vez mais Advogados da Europa

e do Mundo.

Sendo este o futuro que penso vos está reservado, não descurem nunca

a vossa formação em todos os campos.

A cultura extra jurídica é essencial para a nossa profissão.

Sentimento este que já está a chegar às Universidades, e não apenas

nas Escolas de Direito, mas em todas as Faculdades.

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Recentemente, parece que a Universidade de Harvard, uma das

melhores do mundo, e pioneira nos métodos de ensino, está a ensaiar

uma reforma com vista à introdução de temas gerais em todos os seus

cursos.

E o lema, a título apenas exemplificativo, é que ao verdadeiro poeta e

escritor só faz bem se além de linguística tiver noções de botânica, ao

historiador se tiver noções de literatura, ao médico se souber

psicologia, ao advogado, e porque não, se tiver noções básicas um

pouco mais avançadas de Matemática, e por aí fora.

Noções estas de Matemática, disciplina que não escolhi

propositadamente por muitos juristas lhe serem avessos, mas sim

porque, o que vos digo com toda a franqueza, é não só extremamente

útil para determinados ramos do Direito Societário, Fiscal e

Financeiro, mas também porque nos ajuda a raciocinar em abstracção.

Se me permitem um conselho, uma das lacunas que por vezes noto nos

nossos Colegas é precisamente a dificuldade do treino da abstracção e

a falta de raciocínio rigoroso, ambos essenciais para que se possa ser

um bom jurista, e que nos são dados e de que maneira pelo estudo da

Matemática, e não da Matemática complicada, não se assustem.

Quanto à benesse de agora o jurista passar a ter toda a informação na

ponta dos dedos frente a um teclado de computador, quero lembrar-

lhes, também, que uma máquina de calcular não ensina Matemática.

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Uma coisa é ter em abstracto toda a informação, outra é saber desse

todo o que ir buscar, o que é adequado ao caso concreto, os acórdãos

que, por exemplo, parecem ter um sumário igual, mas se ler-mos o caso

em concreto e seu desenvolvimento, são completamente antagónicos.

Recordem que toda a informação tem de ser colhida e tratada

cuidadosamente para se aferir da sua aplicabilidade ao caso concreto

que temos em mãos.

Não se iludam com esta pretensa facilidade de tudo estar em bases de

dados, pois quanto mais bases de dados houver mais conhecimentos de

Direito e Formação adequada é necessário obter, para se poder não só

filtrar como relacionar tudo o que elas, bases de dados, nos podem vir

a fornecer.

A informática é das melhores invenções existentes mas cuidado

porque, desculpem o que vou dizer, o computador em si é um idiota

chapado, pois não raciocina para além de determinados limites, e só

deita para fora o que lhe metermos dentro.

Um conselho que vos dou, para uma útil recolha de informação e dados

para enfrentar o problema que se nos depara, como ensina Mark H.

McCormack em “O que não se ensina nas Faculdades de Direito”, é

que a primeira e mais importante tarefa de um Advogado é ouvir

atentamente o cliente.

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Depois de ouvirem atentamente o cliente procurem, dentro do bom

senso e razoabilidade, verificar como pode ser resolvido o caso ou o

problema em concreto.

De começo, nada de Códigos, nada de consulta de Códigos.

É um excelente exercício para a vossa formação tentarem resolver os

casos que surjam, em primeiro lugar, pelo bom senso e razoabilidade.

Só depois vão ao Código, mas atenção, depois é mesmo obrigatório ir

ao Código.

Não pensem que estou a dar um cartão vermelho aos Códigos.

Nada disso, estou apenas a situar o seu “tempo de entrada em jogo”.

O legislador normalmente é razoável e tem bom senso, por isso, a

solução, pelo menos no aspecto geral, com Código ou sem Código, é

normalmente idêntica.

Trata-se de um método tão eficiente que vos posso dizer que ainda hoje

o uso.

Isto é importante referir, porque o jurista saído da Faculdade tem o

vício tremendo de, antes de ouvir atentamente o cliente e debruçar-se

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sobre todas as “nuances” do caso em concreto, já estar a abrir o

Código.

Há vários anos atrás quando dei formação no campo da

Responsabilidade Civil, numa série de empresas, a não licenciados e

licenciados em Direito, muitas vezes os não licenciados tinham

melhores prestações porque, ao contrário dos licenciados em Direito,

não tinham o vício de tentar encontrar tudo no Código.

Pensavam e reflectiam previamente, isso sim, sobre o problema em si.

Depois de pensado e reflectido o assunto, vamos então aos Códigos.

Os Códigos são essenciais, mas o nosso cérebro está primeiro.

Lembrem-se que ouvir e reflectir é a base, e isto em todas profissões.

Em Inglaterra, ao que me foi dado saber, chegou-se à conclusão que

grande parte dos erros médicos ocorre porque o médico não ouve o

doente.

Manda logo fazer exames e às vezes as coisas não vêm nos exames, ou

os exames só podem ser bem analisados com um complemento

exaustivo do que se passa com o paciente, havendo elementos que

apenas ele, doente, pode fornecer.

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O Advogado que abre de imediato o Código, antes de saber os exactos

contornos do problema que tem em mãos, é como o Médico que manda

fazer logo exames sem se preocupar em ouvir e examinar o doente.

Atrás também referi o tema da especialização, que penso ser o destino

da maioria dos Advogados no futuro.

A vida e o direito tornaram-se bastantes complexos, e hoje em dia o

problema não é só o de interpretar a lei, mas, desde logo, o de saber

qual é a que está em vigor, o que foi revogado, o que não foi, as

disposições transitórias, etc.

E não se pense que só em Portugal, em todo Mundo isto acontece.

Um Colega dos EUA referiu-me que em 50 anos tiveram dois Códigos

de Impostos, mas de há vinte anos para cá as alterações saem, não de

ano a ano, não de mês a mês, não de semana a semana, não dia a dia,

mas, pasme-se, de hora a hora.

No entanto, cuidado com a forma de especialização ….

Primeiro tem de se ser um bom Jurista, um bom Clínico Geral,

sabedor do Direito na sua globalidade.

É preciso ter uma boa tabuada, um bom ABC como se costuma dizer.

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Ter uma boa tabuada dá para fazer boas contas e um bom ABC dá

para escrever bem.

Então, depois sim, especialização, mas primeiro, repito, é preciso

raciocinar e pensar o Direito como um todo.

Isto porque, o direito não é estanque e os diferentes ramos do Direito

comunicam entre si.

Posso-vos dizer que quem sabe apenas de um ramos do Direito pouco

sabe, inclusive desse mesmo ramo.

Comparo o Sistema Jurídico ao “Sistema Metabólico” do Corpo

Humano onde também não há fronteiras.

Um bom especialista de fígado tem de saber um pouco de tudo.

Caso contrário, ao tentar curar o fígado vai estragar os rins.

Quanto a este tema recordo um episódio que se passou com um grande

cirurgião plástico hoje em dia, que, anos atrás, pretendeu estagiar com

um dos maiores especialistas da altura, a exercer no Brasil, penso que

o Prof. Pitanguy.

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Quando se preparava para iniciar o estágio teve ainda que esperar uns

anos, porque o famoso cirurgião só “admitia estagiários” na sua equipa

de cirurgia plástica com vários anos de cirurgia geral.

Que interessa fazer-se uma bela operação de transformação de uma

barriga feia numa linda barriga, se ao mesmo tempo se danificarem

outros órgãos e tecidos que não fazem parte da cirurgia estética ?

Quanto ao mais, não quero terminar sem vos referir que além da busca

do saber e do domínio das técnicas da profissão, nunca se conformem

quando, à primeira vista, a lei não vos der a solução que considerem

justa, nem esqueçam nunca a dimensão humana que a Advocacia tem

de ter.

Um Advogado conformado não será nunca um verdadeiro Advogado.

Como escreveu Gustav Radbuch, citado pelo Prof. Figueiredo Dias,

devemos crer, sempre e firmemente na nossa profissão mas, ao mesmo

tempo, temos a obrigação de, constantemente, duvidar dela nas mais

profundas regiões da nossa consciência moral.

Embora possa parecer uma irresponsabilidade da minha parte dizê-lo,

às vezes é preciso dar um pontapé na Lei na busca da solução justa.

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Mas, para se dar o tal pontapé e conseguir alcançar a solução

imaginativa e engenhosa que se almejava, não se iludam, é preciso

saber muito Direito.

José Cardoso Pires, nosso brilhante escritor já falecido, dizia que para

escrever bem a primeira condição é saber gramática; a segunda é

esquecê-la.

E, pensando bem, o famoso Picasso, antes de evoluir para a chamada

síntese entre o surrealismo e o cubismo, foi um grande retratista que

definia os rostos com uma precisão exemplar, pois só um grande pintor

conseguiria depois fazer e pintar aquelas “Picassadas” que, para

alguns, à primeira vista, parecem nenhum significado poder ter.

Lembrem-se, agora no que diz respeito à dimensão humana da nossa

profissão, que vão ter acesso à mais profunda intimidade, aos mais

legítimos anseios e desejos, e a tudo o mais que tem a ver com a vida da

mais maravilhosa invenção do Criador, a Pessoa Humana.

Nunca percam a dimensão Humana da profissão.

Sejam humildes e simples, como dizem os Budistas, o mais alto grau de

espiritualidade é fazer a cama e arrumar o quarto todos os dias.

Sejam tolerantes, por muito sábios que sejam, pois “ninguém sabe o

suficiente para ser intolerante”, como referia Karl Popper.

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Enfim, respeitem tanto o vosso cliente como o vosso adversário, e

lembrem-se sempre, tanto nesta vossa fase de formação, o estágio que

agora iniciam, como ao longo da vossa vida profissional, à qual auguro

os maiores sucessos, que ninguém é tão grande que não possa

aprender, nem tão pequeno que não possa ensinar.

E aqui termino.

Muito obrigado a todos pela paciência com que me escutaram.

Porto, 28 de Novembro de 2008

(Miguel Cerqueira Gomes)