o_poder_publico_municipal_e_as_igrejas.pdf

5
www.gilsonsantos.com © Direitos Autorais, 2012, Gilson Santos www.gilsonsantos.com.br 1 O Poder Público Municipal e as Igrejas Gilson Santos A pluralidade de religiões vai se estabelecendo em todos os municípios do país; religiões de todos os tipos e tendências. E quando se toca em religião, toca-se num nervo muito sensível das pessoas. Toca-se também em variados, arraigados e, não raramente, em divergentes interesses. Nas próximas eleições municipais alguns candidatos deverão se apresentar prometendo defender interesses diversos desse ou daquele grupo religioso. Isto tem ocorrido repetidamente em eleições passadas. E a bem da verdade, há muitos grupos religiosos que esperam favorecimentos do governo e das autoridades. Há os que aguardam incentivos, vantagens em convênios, repasse de verbas para determinadas ações religiosas, ajuda para construções... Uma reflexão acerca deste tema é muito importante. Geralmente as Leis Orgânicas Municipais preveem que é vedado ao município “estabelecer cultos religiosos com igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes, relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da Lei, a colaboração de interesse público”. E o mesmo texto de lei costuma dispor que é vedado ao município instituir impostos sobre “templos de qualquer culto”. Assim, a legislação dos municípios brasileiros exclui a intervenção do poder público municipal para defender ou patrocinar qualquer culto religioso como tal. Como lidamos com esta lei? Qual deve ser, portanto, com base no dispositivo constitucional refletido na Lei Orgânica, a relação entre o poder público municipal e os grupos religiosos? Ao poder público, em nosso regime democrático e de direito, não cabe defender este ou aquele culto, esta ou aquela confissão religiosa, mas assegurar a todos e a todas a liberdade de funcionamento, na forma da lei. E em tais condições, quando um culto ou confissão religiosa recorre ao poder do Estado para defender os seus dogmas, as suas doutrinas e as suas práticas religiosas, geralmente dá provas de que não tem consistência para subsistir à luz da fé que o inspira ou da razão em que se apoia. E geralmente quando determinado grupo religioso solicita dos cofres públicos subvenções e aportes para a promoção de si mesmo demonstra que não é capaz de sobreviver com as contribuições

Upload: zesilva1505

Post on 11-Nov-2015

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • www.gilsonsantos.com

    Direitos Autorais, 2012, Gilson Santos www.gilsonsantos.com.br

    1

    O Poder Pblico Municipal e as Igrejas

    Gilson Santos

    A pluralidade de religies vai se estabelecendo em todos os municpios do pas;

    religies de todos os tipos e tendncias. E quando se toca em religio, toca-se num nervo

    muito sensvel das pessoas. Toca-se tambm em variados, arraigados e, no raramente, em

    divergentes interesses.

    Nas prximas eleies municipais alguns candidatos devero se apresentar

    prometendo defender interesses diversos desse ou daquele grupo religioso. Isto tem ocorrido

    repetidamente em eleies passadas. E a bem da verdade, h muitos grupos religiosos que

    esperam favorecimentos do governo e das autoridades. H os que aguardam incentivos,

    vantagens em convnios, repasse de verbas para determinadas aes religiosas, ajuda para

    construes... Uma reflexo acerca deste tema muito importante.

    Geralmente as Leis Orgnicas Municipais preveem que vedado ao municpio

    estabelecer cultos religiosos com igrejas, subvencion-los, embaraar-lhes o

    funcionamento ou manter com eles ou seus representantes, relaes de dependncia ou

    aliana, ressalvada, na forma da Lei, a colaborao de interesse pblico. E o mesmo texto

    de lei costuma dispor que vedado ao municpio instituir impostos sobre templos de

    qualquer culto. Assim, a legislao dos municpios brasileiros exclui a interveno do poder

    pblico municipal para defender ou patrocinar qualquer culto religioso como tal. Como

    lidamos com esta lei? Qual deve ser, portanto, com base no dispositivo constitucional

    refletido na Lei Orgnica, a relao entre o poder pblico municipal e os grupos religiosos?

    Ao poder pblico, em nosso regime democrtico e de direito, no cabe defender este

    ou aquele culto, esta ou aquela confisso religiosa, mas assegurar a todos e a todas a

    liberdade de funcionamento, na forma da lei. E em tais condies, quando um culto ou

    confisso religiosa recorre ao poder do Estado para defender os seus dogmas, as suas

    doutrinas e as suas prticas religiosas, geralmente d provas de que no tem consistncia

    para subsistir luz da f que o inspira ou da razo em que se apoia. E geralmente quando

    determinado grupo religioso solicita dos cofres pblicos subvenes e aportes para a

    promoo de si mesmo demonstra que no capaz de sobreviver com as contribuies

  • www.gilsonsantos.com

    Direitos Autorais, 2012, Gilson Santos www.gilsonsantos.com.br

    2

    voluntrias daqueles que nele acreditam e almejam v-lo crescer! E quando o poder pblico,

    nestas condies, deixa de assegurar a todas as confisses religiosas o direito de serem

    praticadas, e passa a defender ou promover determinado culto em detrimento de outros, esse

    poder pblico contribui para fomentar a desordem e perturbar a paz pblica, que de seu

    dever preservar.

    A liberdade de cada culto ou confisso religiosa inclui o direito de ensinar e praticar

    suas doutrinas. Se este ensino implica em crticas a outros cultos ou confisses religiosas

    refiro-me particularmente s crticas a crenas, doutrinas ou a sistemas , em princpio, no

    cabe ao poder pblico interferir em favor de um ou de outro, mas assegurar parte

    presumidamente atingida o direito de defender-se, baseando-se em suas prprias doutrinas,

    em seus prprios dogmas e em suas prprias prticas religiosas. Diga-se, no obstante, que

    no se pode negar a quem quer que seja o direito de questionar doutrinas, dogmas e ensinos

    tanto de natureza religiosa, quanto de natureza filosfica ou mesmo cientfica. No Brasil

    temos assistido a um crescente comprometimento deste princpio, desta feita principalmente

    por parte de movimentos ditos seculares e no religiosos. O que no cabe a nenhuma

    confisso religiosa o direito de impor ou de obrigar a quem quer que seja a aceitar suas

    doutrinas e prticas. Em nosso regime democrtico de direito, a nica forma legtima de uma

    confisso religiosa crescer e desenvolver-se, sob a proteo das leis gerais do Estado, a

    persuaso baseada nos princpios da f que defende e na luz da razo em que se apoia.

    Os evanglicos batistas sempre se mostraram enfticos na defesa da separao de

    competncias entre a Igreja e o Estado. Este sempre foi um dos conceitos histricos dos

    grupos batistas. Roger Williams, pastor batista norte-americano, estabeleceu na colnia de

    Rhode Island um governo cujo princpio fundamental foi a liberdade religiosa. Historiadores

    de nvel razovel e de nimo isento so capazes de confirmar que o servio dos batistas

    causa da liberdade religiosa insuspeitvel. O artigo VI da Constituio Americana sobre

    liberdade religiosa foi introduzido, em 1789, tambm com o esforo cooperativo dos batistas.

    E sabemos todos ns que os republicanos brasileiros buscaram na Constituio Americana a

    inspirao para estabelecerem a liberdade religiosa na nascente repblica brasileira.

    Certamente que o atual contexto impe novos desafios no que respeita ao

    relacionamento entre Igreja e Estado. No obstante, a nossa Lei prev que o poder pblico

    deve ser leigo, visto que o Estado no tem funo alguma eclesistica. Aqui a Igreja deve ser

    livre num Estado livre. A religio tem que ser voluntria, no imposta. Em nosso pas, nossas

    leis reconhecem que no h poder civil ou religioso que, com justos direitos, possa compelir

    os homens a uma forma de culto especfica ou exigir-lhes tributo para a manuteno de uma

    organizao religiosa a qual no pertenam, ou a cujo credo no subscrevam. De fato, muitas

  • www.gilsonsantos.com

    Direitos Autorais, 2012, Gilson Santos www.gilsonsantos.com.br

    3

    das guerras europeias, muitas das perturbaes internas que afligiram os estados europeus e

    das catstrofes religiosas que eclodiram na Idade Mdia (e ainda mesmo depois), resultaram

    das rivalidades entre a Igreja e o Estado. Muitas das guerras religiosas europeias teriam sido

    evitadas se j se houvesse concludo por uma melhor equao desses fatores. Ainda hoje, em

    alguns contextos de totalitarismo religioso, a falta de absoro deste princpio tem produzido

    cenas dramticas de intolerncia. Mesmo aqui no Brasil, a instituio de uma Igreja Oficial

    por quase quatrocentos anos produziu muitos e danosos e irreparveis episdios de

    intolerncia religiosa. Ainda que seja possvel ter-se uma igreja oficial e instituir-se a

    tolerncia, poca no era o que se cria e praticava. Nesse tempo, em geral os religiosos

    daqui consideravam que a separao entre a Igreja e o Estado, se posta em prtica, iria

    significar a erradicao do sentimento religioso e das esperanas espirituais do homem.

    Com isto no estamos querendo dizer que a Igreja Crist depende condicionalmente

    da liberdade religiosa para sobreviver e expandir-se. Nem de longe. A Igreja Crist

    compreende-se como um patrimnio da graa eletiva, como uma comunidade peregrina, que

    tem vivido boa parte da histria, em muitos lugares do mundo, e mesmo atualmente, em

    condies de perseguio e clandestinidade. O sangue dos mrtires tem sido sementeira da

    Igreja. Uma grande lio que o povo de Deus aprendeu com a monarquia hebraica, e que foi

    enfatizada pelo maior descendente de Davi, que o Reino de Deus no deste mundo, e

    no pode ser igualado, em sua massa ou volume, a qualquer um dentre os reinos polticos que

    tm sido estabelecidos na trajetria humana. A histria testemunhou pocas em que a

    Cristandade dependeu das benesses e do afago de Csar para expandir o reino espiritual de

    Cristo, recorrendo ao poder da espada, como ocorreu dramaticamente na era das Cruzadas.

    Conquanto a Igreja Crist n0 dependa das benesses de Csar e nem mesmo da liberdade

    religiosa, geralmente os cristos so gratos por esta ltima. Porm, se ela lhes for subtrada,

    no o ser, contudo, a sua liberdade da alma.

    Tambm no se est defendendo que o Estado e suas leis no reflitam de alguma

    maneira os valores cristos. Segundo os nossos censos mais recentes, a sociedade brasileira,

    em sua maioria, professa algum tipo de f religiosa dentro da chamada Cristandade. E se,

    como define a nossa lei-mor, todo poder emana do povo e exercido em seu nome, ento

    seria de se estranhar que nossas leis reflitam os valores democrticos de uma sociedade que

    majoritariamente professa credos da Cristandade? Os totalitarismos elitistas, as manobras

    polticas aristocrticas e guetos de opinio de setores especficos ou da imprensa e da mdia

    so expresses de uma minoria, geralmente inconformada, que se deseja impor ao

    sentimento do povo.

  • www.gilsonsantos.com

    Direitos Autorais, 2012, Gilson Santos www.gilsonsantos.com.br

    4

    Alm do critrio estatstico, h que se compreender o critrio histrico-cultural.

    Considere-se, por conseguinte, que h a religio e tambm a tradio e a histria. O Brasil

    tem histrica formao crist; a tradio do pas crist. Como exemplo, temos os locativos,

    como os nomes de cidades, e os smbolos religiosos e tradicionais que esto por todo canto.

    Os prprios nomes e sobrenomes dos brasileiros, em evidente expressividade, indicam a

    tradio judaico-crist. O Estado no pode, portanto, abolir por decreto as tradies

    profundas da sociedade. Alm disso, enfatize-se que o Estado brasileiro, embora laico, no

    atesta, quer seja num sentido de negao ou de oposio. A prpria Constituio Federal

    institui o Estado Democrtico sob a proteo de Deus. Os cristos em geral reconhecem que

    o Estado deve sim estar separado da Igreja, mas no de Deus, e sua teologia implica em que

    ambos, Igreja e Estado, so subordinados a Ele, embora cada um em sua prpria jurisdio. A

    legislao, ao prever o Estado laico, institui algo positivo e justo, reconhecendo a autonomia

    do Estado em relao a qualquer grupo religioso, o que inclui, como dado essencial, o

    respeito pela liberdade privada e pblica dos cultos das diversas religies, desde que no

    atentem contra as leis, a ordem e a moralidade pblica.

    O ponto que nos toca aqui, portanto, que nossas leis preveem que as funes da

    Igreja so distintas das funes do poder pblico. Assim sendo, acautelem-se nossas

    autoridades municipais em favorecer qualquer grupo religioso ou obstar a algum em

    particular, pois isto subverte o princpio de iguais direitos e iguais privilgios concedidos a

    todos, que constitui uma parte das nossas leis orgnicas municipais. Tanto por seu lado

    poltico como por seu lado religioso, o axioma da dissociao entre o poder pblico e grupos

    religiosos tem toda razo de ser. A hbrida aliana coloca em questo a liberdade civil e a

    liberdade da alma. E se h uma instncia no Brasil onde este princpio tem sido

    repetidamente solapado a municipal. Patrimnio e numerrios pblicos das

    municipalidades brasileiras no so para subvencionar religio alguma. Eles no deveriam

    ter destinao religiosa em particular. Reconhecemos certamente que quando um grupo

    religioso institui organizaes ou projetos especficos, em alguma rea que a sociedade

    atribui como competncia do Estado, ento este poder estabelecer convnios especficos,

    segundo critrios transparentes e pblicos. Porm, preciso que se reconhea claramente a

    utilidade e o interesse pblicos de tais organizaes e projetos. Os evanglicos brasileiros no

    deveriam esperar que os seus impostos venham financiar algum culto religioso ao qual no

    podem endossar. E nem deveriam esperar que os impostos de seus concidados no

    evanglicos patrocinem o seu culto e a sua evangelizao. H muitas reas de carncia em

    nossos municpios, as quais o poder pblico tem o dever de atenuar. Nelas o municpio deve

    investir, e com urgncia!

  • www.gilsonsantos.com

    Direitos Autorais, 2012, Gilson Santos www.gilsonsantos.com.br

    5

    Esperamos que nossas futuras autoridades realizem o melhor governo possvel. E

    como cidados sabemos de nosso dever em cooperar da melhor maneira. Porm, qu sunt

    Csaris Csari et qu sunt Dei Deo. A Csar o que de Csar, e a Deus o que Deus!