onde está o dinheiro?

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O desejo de intervir na realidade é tema que não pode ser tabu nos dias atuais, mas um temavital e diretamente relacionado ao sentido que um grupo pretende dar a sua ação. Os textosque seguem estão diretamente ligados a essa vontade, política, de intervir na realidade comosujeitos da história. Se o desejo é real, como tal deve ser levado a sério, principalmente quandona base deste desejo está uma ação cuja finalidade legítima é modificar uma realidade social,não de qualquer jeito, não de qualquer forma, mas através da participação cidadã.Entretanto, o processo de desenvolvimento do sistema capitalista por ser permeado e nutridopelo cientificismo, pela técnica, pelo racionalismo, pelo individualismo exacerbado, pelacompetitividade destrutiva, pelo egoísmo ganancioso, pela trucagem manipulativa dacomunicação, por um modo que se pretende único e verdadeiro de vivermos (não só as coisasdo econômico, mas também da produção da vida) reduz toda a complexidade que compõe oser humano, a um critério quantitativo: acumulação de moeda, dinheiro. Esta lógica estábaseada no processo de tentativa de imposição de uma única ordem e contém necessariamenteuma desordem. Podemos começar pela exclusão de milhões de seres humanos das mínimascondições de vida, seja de alimentos, de saúde, de educação, de viver sua própria cultura, dotrabalho, seja das mais variadas instâncias de poder e decisão, todas hierarquizadas.Essa dita desordem tenta ser atenuada através dos apelos mais diversos como a caridade, afilantropia, a doação de horas para ajuda alheia (o chamado solidarismo mecânico já preconizadopor Durkheim), campanhas contra a fome, a pobreza, elaboração de políticas públicas baseadasno assistencialismo paternalista estatal (frentes de trabalho provisórias, ajuda de custos a famíliasque manterem seus filhos nas escolas, tickets do leite, distribuição de ranchos - cestas básicas -alimentares, etc.).Para aqueles que estão de acordo com esta lógica fundamentalista, os ditos excluídos sãotidos como os perdedores, os vagabundos, os inaptos, os ingeniais, os de estruturascognitivas abaixo da média aceitável pelas medidas desenvolvidas pelo cientificismopsicologizante, os tidos como burros, medíocres, os que não são brancos ou que se negama passar por um processo de branqueamento, os que fazem parte de culturas tidas comoinferiores, os moradores/as das periferias urbanas (vilas, favelas, etc.), mas para nós quetemos por pressuposto da ação social a solidariedade, esta lógica não faz sentido.Nossa lógica não esta fundada apenas na razão instrumental, dicotomizada de um corpoou de um estado emocional. Nosso compromisso político é o de construir com o outro,respeitando-o em sua diferença, seja cultural ou racial, para juntos construirmos um projetoque contemple a diversidade, o novo, o diferente, sem exclusão. Para tanto, acreditamosque outros modos de pensar a vida, o econômico e o social é possível, desde que seressignifique as nossas relações a partir de pressupostos éticos muito mais abrangentesque aqueles que pautam liberdade individual e narcisista.O livro que apresentamos é pretensioso porque seu conteúdo não se contenta apenas emfazer reflexões acadêmicas sobre economia política; não se trata de mais um conjunto detextos prescritivos ou de fórmulas para atenuar os desajustes, desigualdades e atrocidadescausados pelo capitalismo, mas sim de uma ressignificação do pacto social nacontemporaneidade. Por isso sua formatação é modular, plural resultado de um trabalhocoletivo, pautado na ética e na democracia, que são os pontos fundantes da sua organização.No livro, enfocamos o dinheiro. Mesmo sabendo que o dinheiro não explica tudo, temosa consciência de que ele pode ser um instrumento fundamental e ainda pouco exploradode combate à exclusão econômica e social a que são submetidas imensas parcelas dapopulação mundial.

TRANSCRIPT

  • Onde est o dinheiro?

    Dacasa EditoraPorto Alegre, 2002

  • CapaAna Lis Empinotti

    Criao logotipoAna Lis Empinotti

    Redao textos holandesesGuus Peterse

    Arte final capa e logotipoRenato Pinto Lubianca

    GrficosFrancesco Settineri

    Tradues Holands-PortugusMarianne Christina Scheffer

    Diagramao e Projeto GrficoPubblicato Design Editorial

    Fone: (51) [email protected]

    Porto Alegre RS

    Direitos de PublicaoDacasa Editora

    Caixa Postal 505790041-970 - Porto Alegre, RS

    [email protected]: (51) 9982.7878

  • Dacasa EditoraPorto Alegre, 2002

    Onde est o dinheiro?

    Henk van ArkelPaulo Peixoto de Albuquerque

    Camilo RamadaHeloisa Primavera

    (organizadores)

  • ...nada mais difcil na sua preparao, mais duvidoso no xito e mais perigoso nos seus efeitos queestar junto com pessoas que querem promover inovaes. Porque essas pessoas tero como oponentesfirmes aqueles que se beneficiam da situao anterior e tero frgeis defensores entre os que sebeneficiariam da nova situao. Esta fragilidade se explica parcialmente, pelo medo dos adversrios quetem a lei ao seu lado e parcialmente pela desconfiana das pessoas que no creem em algo que aindano foi experimentado na realidade.

    Nicolo Machiavelli - O Prncipe 1513

    Onde est o dinheiro?

    Onde est o dinheiro?O gato comeu, o gato comeu

    Que ningum viu?O gato fugiu, o gato fugiu

    O seu paradeiro est no estrangeiro.

    Onde est o dinheiro?Eu vou procurar e hei de encontrar

    E com o dinheiro na moEu compro um vagoEu compro a nao

    Eu compro at seu corao.

    Onde est o dinheiro?O gato comeu, o gato comeu

    Que ningum viu?O gato fugiu, o gato fugiu

    O seu paradeiro est no estrangeiro.

    Onde est o dinheiro?No norte no est

    No sul estar?Tem gente que sabe e no diz

    Est tudo por um trizE a est o X

    E no se pode ser feliz.

    (Jos Maria de Abreu - Francisco Mattoso - Paulo Barbosa)

  • Agradecimento EspecialJacque, obrigados pelo apoio moral e estratgico desde o princpio.

  • Sumrio

    Movimento Monetrio Mosaico: Nosso Livro ................................................................................. 9

    Apresentao ................................................................................................................................ 11

    1. O Que o dinheiro? ................................................................................................................. 15

    1.1 Como surge o dinheiro? ............................................................................................... 15

    1.2 Desenvolvimento pela disponibilidade do dinheiro ....................................................... 17

    1.3 Desenvolvimento pelo investimento do excedente ....................................................... 19

    1.4 Crdito como motor da economia ................................................................................ 21

    1.5 Juros ............................................................................................................................. 23

    2. Para onde vai o dinheiro? ........................................................................................................... 29

    2.1 O nascimento do dinheiro ............................................................................................. 29

    2.2 Os juros: uma taxa perptua .......................................................................................... 30

    2.3 Vrias formas de perda de dinheiro em circulao ......................................................... 31

    2.4 As conseqncias da escassez do dinheiro: acelerao ou crise ...................................... 36

    2.5 Crdito e garantia .......................................................................................................... 36

    2.6 O eixo de sustentao do sistema monetrio: o endividamento ..................................... 39

    3. Dinheiro e pobreza ................................................................................................................... 43

    3.1 Reconceituando razes de pobreza ................................................................................ 45

    3.2 Dimenso internacional da pobreza ............................................................................... 49

    3.3 Crise conjuntural e desertos monetrios ........................................................................ 52

    4. O revs da moeda: diferentes prticas realizadas ....................................................................... 57

    4.1 Bancos de trigo ............................................................................................................. 59

    4.2 Microcrdito ................................................................................................................. 59

    4.3 Banco popular: a experincia do banco palmas no conjunto palmeira ............................ 61

    4.4 Clubes de trocas............................................................................................................ 64

    4.5 Dinheiro respaldado por prefeituras ............................................................................... 68

    4.6 Dinheiro respaldado por empresas ................................................................................ 69

    4.7 Liquidaes sem dinheiro dentro de uma corporao transnacional ................................ 71

    4.8 Transaes sem dinheiro entre empresas: o barter (comercial) e o wir (solidrio) ................ 73

    4.9 Hank Monrobey: sistema sys e os circuitos de capital lquido ....................................... 75

    5. Que fazer e como fazer: estratgias e tticas ............................................................................ 79

    5.1 Estratgia: diferentes nveis........................................................................................... 79

    5.1.a Primeiro Nvel: orientao policntrica ............................................................ 81

    5.1.b Segundo Nvel: orientao regiocntrica ......................................................... 85

    5.1.c Terceiro Nvel: orientao geocntrica ............................................................. 86

  • 5.2 Consideraes estratgicas e tticas ............................................................................. 89

    5.2.a Moeda social mais eficiente .......................................................................... 89

    5.2.b Nossos prprios valores so a garantia dos crditos bancrios. ....................... 90

    5.2.c Redes de trocas e cadeias produtivas limites e alternativas .............................. 91

    5.2.d Concorrncia pelo dinheiro ou pelo mercado .................................................. 97

    5.2.e Jiu-jitsu socio-econmico:

    como aplicar de forma positiva dinmicas existentes ..................................... 102

    5.2.f Apreender das mudanas de hoje para aproveitar a chance ............................ 107

    6. O Movimento Monetrio Mosaico: uma utopia prtica ........................................................... 113

    7. Alianas Estratgicas E Propostas Globais ............................................................................... 123

    7.1 Alianas estruturais ..................................................................................................... 123

    7.2 Alianas Institucionais ................................................................................................. 141

    7.3 Propostas globais ........................................................................................................ 144

    8. Lanar a moeda: os projetos do MoMoMo ............................................................................. 149

    8.1 Fomento ..................................................................................................................... 149

    8.2 Redes de trocas inter-empresariais ............................................................................. 158

    8.3 Cadeia produtiva que internamente usa moeda social ................................................ 162

    8.4 Circuitos de capital lquido (CCL) ............................................................................... 165

    8.5 Administrao pblica que garanta o dinheiro local .................................................... 170

    8.6 Juros negativos: Silvio Gesell ...................................................................................... 172

    8.7Aplicao dos mtodos ................................................................................................ 173

    9. Escritores e organizaes que apoiaram o processo ................................................................ 175

    9.1 Autores ....................................................................................................................... 175

    9.2 Organizaes .............................................................................................................. 178

    Bibliografia e Cyberografia .......................................................................................................... 185

    Literatura: ......................................................................................................................... 185

    Sites: ................................................................................................................................ 189

  • Movimento Monetrio Mosaico: nosso livro

    Nos dias 19, 20 e 21 de novembro se reuniram em Porto Alegre diferentes pessoas que h muitovem trabalhando para a criao de um livro em portugus sobre Moeda Social.

    Entre eles, Sergio Kapron, da Sedai, e Jutta Barth, do GTZ, que patrocinaram partedeste encontro.

    Participaram deste trabalho Joo Joaquim e Sandra Magalhes, do Banco Palmas, de Fortaleza;Heloisa Primavera, da Rede Global de Trocas, Argentina; Ana Barcellos, da Universidade deSanta Catarina (UFSC), Florianpolis; Luis Oscar, da Universidade Federal do Rio Grande doSul (UFRGS)/Compras Coletivas; Henk van Arkel, diretor da Stichting Strohalm, Holanda;Ruth Espinola Soriano, do PACS, Rio de Janeiro; Anibal, do sistema M.I.D.A.$; Rodrigo Lopese Alvaro Delatorre, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Camilo Ramada,da Strohalm; Paulo Albuquerque e Francesco Settineri, da Universidade do Vale do Rio dosSinos (Unisinos); Adriane Ferrarini, da Sedai; Euclides Andr Mance, do IFiL, em Curitiba.

    Nestes dias trabalhou-se principalmente a concepo do livro. Desfragmentamos ereconstrumos o material preliminar que estava em nossas mos e, entre as discusses, chegou-se s seguintes decises:

    Pblico Alvo: o livro est dirigido para a "formao de formadores". No pretende ser umtrabalho acadmico, nem uma cartilha. Ele tem sua profundidade, mas ao mesmo tempo foiescrito em linguagem acessvel.

    Objetivos do livro e do Movimento Monetrio Mosaico (MoMoMo): a curto prazo, o de gerar(auto)confiana entre aqueles que pretendem construir experincias e projetos pilotos a partirdo conhecimento de experincias e dos pressuposto do movimento monetrio; a mdio prazo, desmistificar a mecnica dos fluxos monetrios, pela criao de outras lgicas monetrias deapropriao dos fluxos de capitais do sistema vigente e verticalizar estas lgicas junto aosmovimentos sociais; e, a longo prazo, construir um novo sistema financeiro internacional.

  • O titulo do livro: "Onde fica o dinheiro? Pistas para a construo do Movimento MonetrioMosaico" foi decidido num processo de discusso coletiva, cujo resultado final no teve ganhadoresou perdedores, mas sim o valor agregado de estar criando juntos um movimento slido (Ondefica o dinheiro um tema da Msica Popular Brasileira, interpretada por muitos artistas).

    O lanamento do livro: no Frum Social Mundial.

    Nas discusses a estrutura do livro foi profundamente transformada e adaptada. Estas adaptaesfizeram o livro mais coerente e mais acessvel

    Nossa idia que voc pode ler este livro por partes separadas. Quer ler como fazer novasformas de dinheiro? V diretamente ao fim! Quer saber quais so os segredos de nossa estruturamonetria ? Comece j. Ou leia como experincias no convencionais j mostraram as diferentespossibilidades do dinheiro no quarto captulo. Quais estratgias podemos visualizar? Quaisacontecimentos mundiais nos favorecem? E, o mais interessante de tudo: como vamos interligartodas nossas experincias de dinheiro numa rede integral onde todos os nveis econmicospodem intercambiar bens e servios, produzir e consumir, poupar e investir, sem ficar tributrios.

    Tributrios ao que? Tributrios ao sistema monetrio global, que emite dinheiro contra juros,desta forma endividando cada vez mais a humanidade.

    Estes modelos que nos propomos so uma sada da opresso do sistema vigente, e por isso quemerecem nossa energia.

    Foram trs dias inspiradores e ativantes: muitas coisas esto acontecendo no MovimentoMonetrio Mosaico. E tem muitos desafios adiante! Imediatamente aps o encontro a maioriados participantes teve que ir rpido embora, por estar preparando iniciativas monetrias emViamo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Argentina, e at Holanda.

    Depois desses trs dias, a equipe trabalhou na verso final dos textos. Todos trabalhamos muitono ms de dezembro, que j caraterizado por sua grande quantidade de tarefas, compromissos,e coisas do ltimo momento.

    Mas nosso propsito sempre foi criar um livro de alta qualidade, num processo saudvel. Achamosque realizamos este propsito.

    Se voc agora l este livro, nosso livro ganha sua realizao: a interligao com o leitor, ou aleitora.

    Camilo RamadaCoordenador do Processo do Livro

  • APRESENTAO

    "Do nada tambm sai algo. Mas para isso preciso estar dentro,simultaneamente, de alguma forma. No possvel dar a algum o quej no se tem de antemo. Ao menos como desejo, se no se recebercomo um presente o que lhe est sendo entregue. Precisa ser perguntado,mesmo que de um modo vago. No se pode ter algo como resposta, seno houver uma pergunta antes. Por isso tantas coisas claras permanecemsem ser vistas, como se no existissem". (Ernst Bloch)

    O desejo de intervir na realidade tema que no pode ser tabu nos dias atuais, mas um temavital e diretamente relacionado ao sentido que um grupo pretende dar a sua ao. Os textosque seguem esto diretamente ligados a essa vontade, poltica, de intervir na realidade comosujeitos da histria. Se o desejo real, como tal deve ser levado a srio, principalmente quandona base deste desejo est uma ao cuja finalidade legtima modificar uma realidade social,no de qualquer jeito, no de qualquer forma, mas atravs da participao cidad.

    Entretanto, o processo de desenvolvimento do sistema capitalista por ser permeado e nutridopelo cientificismo, pela tcnica, pelo racionalismo, pelo individualismo exacerbado, pelacompetitividade destrutiva, pelo egosmo ganancioso, pela trucagem manipulativa dacomunicao, por um modo que se pretende nico e verdadeiro de vivermos (no s as coisasdo econmico, mas tambm da produo da vida) reduz toda a complexidade que compe oser humano, a um critrio quantitativo: acumulao de moeda, dinheiro. Esta lgica estbaseada no processo de tentativa de imposio de uma nica ordem e contm necessariamenteuma desordem. Podemos comear pela excluso de milhes de seres humanos das mnimascondies de vida, seja de alimentos, de sade, de educao, de viver sua prpria cultura, dotrabalho1, seja das mais variadas instncias de poder e deciso, todas hierarquizadas.

    1 Conforme notcia veiculada pelo Jornal Zero Hora de 10/07/2001, a fome alcana 50 milhes de brasileiros. Fonte:Fundao Getulio Vargas. Maiores informaes: www.fgv.br

  • Essa dita desordem tenta ser atenuada atravs dos apelos mais diversos como a caridade, afilantropia, a doao de horas para ajuda alheia (o chamado solidarismo mecnico j preconizadopor Durkheim), campanhas contra a fome, a pobreza, elaborao de polticas pblicas baseadasno assistencialismo paternalista estatal (frentes de trabalho provisrias, ajuda de custos a famliasque manterem seus filhos nas escolas, tickets do leite, distribuio de ranchos - cestas bsicas -alimentares, etc.).

    Para aqueles que esto de acordo com esta lgica fundamentalista, os ditos excludos sotidos como os perdedores, os vagabundos, os inaptos, os ingeniais, os de estruturascognitivas abaixo da mdia aceitvel pelas medidas desenvolvidas pelo cientificismopsicologizante, os tidos como burros, medocres, os que no so brancos ou que se negama passar por um processo de branqueamento, os que fazem parte de culturas tidas comoinferiores, os moradores/as das periferias urbanas (vilas, favelas, etc.), mas para ns quetemos por pressuposto da ao social a solidariedade, esta lgica no faz sentido.

    Nossa lgica no esta fundada apenas na razo instrumental, dicotomizada de um corpoou de um estado emocional. Nosso compromisso poltico o de construir com o outro,respeitando-o em sua diferena, seja cultural ou racial, para juntos construirmos um projetoque contemple a diversidade, o novo, o diferente, sem excluso. Para tanto, acreditamosque outros modos de pensar a vida, o econmico e o social possvel, desde que seressignifique as nossas relaes a partir de pressupostos ticos muito mais abrangentesque aqueles que pautam liberdade individual e narcisista.

    O livro que apresentamos pretensioso porque seu contedo no se contenta apenas emfazer reflexes acadmicas sobre economia poltica; no se trata de mais um conjunto detextos prescritivos ou de frmulas para atenuar os desajustes, desigualdades e atrocidadescausados pelo capitalismo, mas sim de uma ressignificao do pacto social nacontemporaneidade. Por isso sua formatao modular, plural resultado de um trabalhocoletivo, pautado na tica e na democracia, que so os pontos fundantes da sua organizao.

    No livro, enfocamos o dinheiro. Mesmo sabendo que o dinheiro no explica tudo, temosa conscincia de que ele pode ser um instrumento fundamental e ainda pouco exploradode combate excluso econmica e social a que so submetidas imensas parcelas dapopulao mundial.

    quase como olhar o mundo de ponta cabea! Por isso mesmo, pode ser difcil de acreditarnesta poca de pessimismo generalizado. "Reinventar o mercado ou reinventar ocapitalismo?" dizem os mais cticos. J escutamos vrias vezes essa opinio. Achamosque hora de discutir com profundidade, por isso aqui estamos, apresentando nossasidias da maneira mais compreensvel que conseguimos fazer. Pedimos que as dvidas nos

  • sejam encaminhadas. Responderemos o mais rpido possvel, porque para ns esse assunto absolutamente vital. Queremos mostrar que, longe de ser s uma ajudinha para passarmomentos mais difceis, as moedas sociais so um tremendo instrumento de liberao daspessoas e comunidades. Vemos nelas a possibilidade de instrumentar uma transformaoradical das relaes entre as pessoas e, por isso, necessrio que nada fique sem compreenso.

    Nosso objetivo neste livro instrumentalizar o desenvolvimento de prticas monetriasinovadoras. Tem um carter pioneiro e, porque no dizer, ousado, na medida em que propeque possvel as pessoas serem protagonistas de algo essencial para a sua sobrevivncia nasociedade, que o acesso ao dinheiro e, vinculado a isto, em termos de um mosaico maisamplo, ao trabalho e aos bens e servios essenciais para a vida.

    Os temas nele apresentados partem do pressuposto que a participao de todos/as os envolvidos/as em empreendimentos econmicos possvel e que os processos que envolvem a organizaoe produo do trabalho (seja prestao de servios ou produo de bens), nos conduzem apensar que o Movimento Monetrio Mosaico um fator de inovao social necessrio parapromover a mudana. O Movimento Monetrio Mosaico recupera o saber acumulado dasociedade, ressignificando processos sociais econmicos modelados pela alienao e pormecanismos de controle social que anulam a possibilidade de se pensar o mundo sob outra tica.

    Assim, este livro no somente mais um instrumento metodolgico, mas pretende serinstrumento de ao coletiva - por isso, aberto, plural distribuidor de poder. O prprio livrono deixa de ser um mosaico. Mosaico, composto por partes distintas e separados, mas queem seu conjunto formam uma totalidade. No existe um autor, mas muitas mos, cabeas ecoraes que, do seu jeito e com as suas possibilidades, contriburam com um pedao porqueacreditam que estes sonhos, se sonhados juntos, podem se tornar realidade. possvel que oleitor veja este mosaico refletido a partir das diferentes linguagens ou abordagens. Nossapreocupao no se centrou no rigor da uniformidade, mas em garantir que todos os temas oupedaos possam convergir para o objetivo maior com um grau de harmonia e inter-relao.

    Participar deste livro um momento privilegiado de escrever com outros companheiros sobreessa alternativa de vida que se reconstri com a Socioeconomia Solidria. um prazer fazerchegar a milhares de pessoas a nossa certeza de que uma outra economia possvel e que elaj est viva, navegando em guas do capitalismo, mas dando seu testemunho de um modomais prazeroso e gostoso de se viver!

    A equipe

  • O que o dinheiro? 15

    1. O QUE O DINHEIRO?

    O cenrio onde atua o Movimento Monetrio Mosaico o cenrio do dinheiro. Estamosativamente reinventando o dinheiro para que ele cumpra suas funes (intercmbio,investimento, poupana, medida de valor) de uma forma que respalde, sustente e fortifiquenossos projetos sociais e culturais.

    Antes de ver quais iniciativas j existem, quais so nossas vises estratgicas e nossos propostosprticos, neste captulo vamos brevemente olhar o dinheiro bancrio que predomina hoje.O que vem a ser este dinheiro, como funciona, de onde vem, como circula e onde fica?

    Na histria humana se utilizaram os mais variados objetos como meios de troca, a exemplodas sementes, colares, peles e conchas, que poderiam ser comparados, por essa funo, com odinheiro que seria anos depois utilizado de maneira formal.

    Compreender o que o dinheiro imprescindvel para que se possa entender osfundamentos bsicos do Sistema Monetrio vigente e como ele poder ser melhorado, nosomente do ponto de vista econmico mas, principalmente, dos reflexos que causa sociedade como um todo.

    necessrio salientar que tanto o dinheiro como o sistema monetrio so resultados dacriatividade, da capacidade e da necessidade humana, e que no surgiram num simples piscarde olhos. Pode-se entender, portanto, que possvel criar um outro sistema, j que este no esttico, nem tampouco imutvel.

    1.1 COMO SURGE O DINHEIRO?

    Aparte de meios de troca como a sal e as conchas e os metais preciosos, que historicamenteserviram como moeda, aqui brevemente mostramos como surgiu o dinheiro abstrato comrespaldo mais ou menos concreto, que conhecemos hoje.

  • O que o dinheiro?16

    Os egpcios, h cinco mil anos, foram os primeiros a terem grandes estoques de gros. Emsuas sociedades, o gro guardado era utilizado como lastro para a circulao de bens eservios. O proprietrio dos gros tinha que pagar determinados custos de armazenagem.Desta forma, preferia muitas vezes emprest-los (sem juros) do que deix-los guardados,transformando o estoque em capital de giro (veja cap. 4.1).

    Ao redor do ano zero, em Jerusalm, dava-se um bnus de crdito em base de ouro existenteno templo. Estes bnus tinham credibilidade como dinheiro porque os curas e o ouro doTemplo garantiam seu valor.

    J na Idade Mdia, os comerciantes europeus podiam gastar de sua riqueza somente dentrode um determinado reino, o que gerava uma circulao maior e efetiva nos pequenos burgos.

    Nesta mesma poca os ourives (tesoureiros) na Itlia descobriram que podiam emprestarmuito mais papis representando um valor em ouro, do que a quantidade que eles tinhamrealmente nos seus cofres. Eles guardavam o ouro dos comerciantes ricos para evitar queestes fossem saqueados e entregavam um comprovante, que confirmava a existncia desteouro e garantia que na entrega do mesmo receberia o nobre metal de volta. Essa garantiade valor era reconhecida e aceita entre os comerciantes, tornando-se um novo meio deintercmbio, nascendo assim, o dinheiro em bilhete.

    Os ourives observaram que no era necessrio mudar o ouro de seus cofres a todo momento,porque sempre havia comerciantes que preferiam usar as garantias (bilhetes) e, quantomais confiana adquiriam estas garantias, havia menos necessidade de troc-las por ouro.Os ourives colocaram disposio dos comerciantes mais "garantias", ou seja, deram ummaior nmero de "garantias" do que o valor em ouro que haviam guardado. E como todosno cobravam suas garantias por ouro ao mesmo tempo, no havia problemas em emprestarsempre a mais. Em realidade criaram dinheiro do nada. Com efeito, esta foi uma das primeirasformas de criar dinheiro, tendo por base o crdito, e que at hoje em dia a base da circulaodo dinheiro.

    Claro que a confiana na circulao do novo dinheiro era muito importante, quanto areputao dos ourives e dos Templos que faziam com que as pessoas aceitassem este papelcomo dinheiro. Os cheques e as transferncias nos bancos atuais representam o dinheirodas pessoas, e so aceitos porque as pessoas confiam que o banco vai garanti-lo. Um dosfatores de maior importncia a confiana de que o documento vale como dinheiro.

    O dinheiro capitalista de hoje teve momentos de desenvolvimento consciente, como naConferncia de Bretton Woods, em 1944, ou o momento em que o dlar foi desligado doouro, em 1971. As bases do sistema monetrio atual so: dinheiro emitido a base de crditos,

  • O que o dinheiro? 17

    com lastro parcial (como os vales emitidos pelos ourives na Itlia) e taxado com juros pelosbancos emissores. Finalmente uma essncia do dinheiro de hoje: emitido por bancosprivados que mantm o poder de emiti-lo, sob o controle de uma pequena oligarquia.

    Mais adiante ser descrito como emitido o dinheiro, como entra em circulao, e quais soos efeitos destes crditos e seus juros para a economia.

    Aqui, o que importa saber que o dinheiro, como conhecido hoje, foi criado num processohistrico e que a estrutura que resultou desse processo no nica nem inevitvel. Muitasoutras formas de dinheiro existiram, existem e existiro.

    No captulo 4 sero citados muitos exemplos de diferentes formas de dinheiro, pois forame ainda so inmeras as formas que o homem, atravs de sua criatividade, refaz para dinamizaras trocas e assim suprir suas necessidades. Todos os exemplos citados tm, em si, uma baseterica que pode ser essencial para as alteraes propostas ao sistema monetrio atual.Resgata-se a idia de que a crise pela qual passa a economia mundial no est na existnciado dinheiro, mas sim na base terica do sistema monetrio que rege as relaes econmicase polticas, e traz reflexos gigantescos ao social.

    1.2 DESENVOLVIMENTO PELA DISPONIBILIDADE DO DINHEIRO

    Nos tempos remotos, quase todas as pessoas produziam tudo o que precisavam para suasobrevivncia: roupas, casas, alimentao e outros bens. Ao passar do tempo, as pessoascomearam a trocar produtos e servios entre si, podendo se especializar nas tarefas quemais tinham conhecimento. Com a intensificao das trocas, surgiu a moeda, que facilitavaas operaes. Esta criao humana, o dinheiro, resultou numa das estruturas mais dinmicase efetivas da humanidade.

    Com dinheiro as pessoas puderam comprar produtos que no poderiam produzir por si mesmas,liberando-as para fazerem outras coisas; assim, puderam especializar-se naquilo que melhorsabiam fazer. Hoje seria cada vez mais difcil uma pessoa fazer tudo o que necessita para sobreviver.

    Tomemos o seguinte caso: se um trabalhador - um lavrador que produz hortalias, porexemplo - precisa comprar um peixe, ele pode compr-lo com dinheiro, que atua comoinstrumento de troca. Tendo esse meio de troca, o lavrador pode continuar o seu trabalho,enquanto um outro trabalhador - o pescador - pesca para ele. Havendo um meio, uminstrumento, de troca no h necessidade que cada um desenvolva todas aes para darconta das suas necessidades; as pessoas podem dedicar-se a uma tarefa, especializando-senaquilo que fazem e com isso serem mais produtivas.

  • O que o dinheiro?18

    Numa sociedade complexa como a nossa, o desenvolvimento no teria sido possvel se nohouvesse um instrumento de troca que, alm de fixar um preo s mercadorias e servios,permite que as pessoas guardem seu dinheiro para utiliz-lo em outro momento. Sem odinheiro, sem a moeda, seria muito mais difcil para as pessoas trocarem produtos e servios.

    isso o que compreendemos como desenvolvimento: a possibilidade de se especializar paraproduzir produtos mais complexos, e de intercambiar estes produtos como um meio de trocas.

    Pode-se perceber que o dinheiro pode dinamizar o intercmbio de produtos e servios dentrode uma sociedade. No exemplo acima eram apenas dois bens, peixes e hortalias, que tambmpoderiam ser trocados diretamente entre si, sem a utilizao de dinheiro. Mas ampliando esteexemplo, incluindo um lenhador e um ferreiro, alm do pescador e do lavrador, cada um delescom seus produtos que os outros trs desejam, as atividades de trocas se tornariam bem maiscomplexas. Ampliando ainda mais o ltimo exemplo e trazendo-o para a realidade dos dias dehoje, em que se necessita de uma gama ainda maior de produtos e servios, seria impossvel arealizao de trocas sem um instrumento apropriado, como o dinheiro.

    A disponibilidade de moeda como instrumento de trocas estimula o desenvolvimento de umacomunidade, de uma regio ou de um pas. Quanto mais dinheiro circula, quanto mais estedinheiro pode facilitar intercmbios, quanto mais cada um de ns pode se especializar numaatividade. Quanto mais nos especializamos em nossas atividades, quanto maior o nvel denossos produtos, j que no todos somos bons pescadores, lavradores, ou ferreiros. Nossodesenvolvimento econmico, porm, est diretamente ligado disponibilidade de um meiode intercmbio, que nas pocas modernas o dinheiro. Por isso so necessrios mecanismosde criao deste meio ou, em termos econmicos, de emisso de dinheiro.

    Na Europa, a partir da Idade Mdia, estes meios foram disponibilizados, por exemplo,pelos ourives italianos, ou, mais adiante, pelo Banco da Inglaterra, que aumentaram aquantidade disponvel de circulante e, portanto, o desenvolvimento e o bem estar naquelecontinente nas referidas pocas. Hoje, so os bancos que emitem dinheiro, como serdemostrado no captulo 2.

    bem verdade que existiram outras fontes que disponibilizaram dinheiro extra, o quefez acelerar o desenvolvimento europeu (por exemplo, o ouro e a prata conquistadosnas colnias europias, nos sculos XVI e XVII), que serviram como dinheiro paraorganizar as relaes econmicas. importante ressaltar que no foi s o valor direto doouro que fez a Europa enriquecer. Muito mais importante que o ouro, foi a criao dedisponibilidade de um circulante (dinheiro). Isto fez com que os europeus pudessemintercambiar, se especializar e dinamizar suas produes, ensejando sociedade europiaum desenvolvimento de forma integral.

  • O que o dinheiro? 19

    Num sistema monetrio onde o dinheiro se acumula nos centros financeiros e no circula nascomunidades, estas perdem a possibilidade de criar as especializaes e os intercmbiosnecessrios para se desenvolver e faz com que suas capacidades sejam desperdiadas.

    isto exatamente o que faz o sistema monetrio capitalista: acumula o dinheiro, deixandoas comunidades sem o meio necessrio para se desenvolver.

    1.3 DESENVOLVIMENTO PELO INVESTIMENTO DO EXCEDENTE

    A prosperidade e o bem estar material de um grupo (ou sociedade) emergem em grandeparte em funo dos investimentos em atividades que aumentam a produo. Dito deoutro modo, a prosperidade resultado, na maioria das vezes, das inverses ou dosinvestimentos que as pessoas fazem para aumentar a produo a partir de determinadascondies.

    Quando o mar lanou Robinson Crusoe numa ilha isolada, ele soube sobreviver tecendouma rede de pesca e fazendo uma lana. Ao fazer isso, ele no s melhorou sua situao paraobter algo para comer, mas melhorou estruturalmente suas condies de sobrevivncia.Mas para tecer a rede e construir a lana foi necessrio gastar um tempo nestes instrumentos.Durante o tempo em que tecia a rede e construa a lana, ele no pde caar, muito menoscoletar o que comer; ento, para fazer isto, ele foi obrigado a optar entre duas situaes:abastecer-se previamente para no passar fome, enquanto trabalhava na rede e lana, oucomear a produzir ambas e passar fome at poder us-las para garantir seu alimento.

    Dito deste modo estas aes podem parecer estranhas e raras mas, mesmo sem perceber,o cotidiano repleto de atitudes semelhantes, em que se reserva parte do que se dispeno presente para poder desfrutar no futuro, ou que se baixam as condies de hoje, paramelhor-las estruturalmente amanh. Estas aes de melhorar estruturalmente nossascapacidades pela aplicao do excedente, os livros de economia chamam de investimento.

    Os investimentos no so outra coisa que um mecanismo de juntar o excedente da produopara poder aplic-lo de forma produtiva. Na histria humana existiram muitas formasnas quais o excedente da produo foi acumulado e investido, a maioria delas compulsrias.

    No sculo XV a rainha catlica Isabel de Espanha expulsou os rabes da Pennsula Ibrica.Para financiar esta guerra, confiscou as posses dos judeus, conseguindo assim aumentar ofluxo de dinheiro para seus cofres. O resultado foi a formao de um capital necessriopara ser utilizado na guerra contra os mouros e, quando a guerra acabou, havia ainda umvolume to grande de capital que poderia ser utilizado para outros investimentos. E assimo fez, patrocinando a investida de Cristvo Colombo em busca de novos caminhos para

  • O que o dinheiro?20

    as ndias, que terminou por descobrir novas terras e buscar riquezas na Amrica. Assim ofazendo, investiu uma parte do excedente econmico num projeto de explorao, de negciose de roubos; uma viagem que propiciou uma riqueza incalculvel para si e para o seu imprio.

    O mecanismo de investir o excedente aponta para uma situao que historicamente se repete.Tradicionalmente numa sociedade existe um grupo, uma elite, que atribui a si mesma os resultadosou os lucros produzidos por todos. Nesta acumulao centralizada de dinheiro muitos so ostrabalhadores e poucos, pouqussimos na verdade, os que desfrutam dos resultados financeirosda produo fruto do trabalho. interessante ver que, dependendo de como esta abundncia utilizada, pode promover o desenvolvimento duma sociedade ou no. Se a elite usa o excedentepara festas e consumo, a sociedade pode se torna decadente. Mas, se o excedente investido deforma dinmica, a sociedade pode se desenvolver. O que essencial saber que para que haja odesenvolvimento de uma comunidade so necessrios mecanismos para apartar o excedente eaplic-lo de forma produtiva. O fato de que, historicamente, na maioria das vezes isto foi realizadode forma exploratria e forada, no quer dizer que no seja possvel realiz-lo com mtodosmais dinmicos, democrticos e igualitrios.

    O excedente no resultado de aes mgicas. Como ele aparece e utilizado precisa serentendido, porque ele indica para um mecanismo que tanto pode ser de renovao, quantode deteriorao e estagnao.

    Nos velhos tempos, os excedentes eram acumulados com a utilizao da fora ecompulsoriamente. Hoje, o capitalismo tem formas bem mais dinmicas para fazer omesmo: a riqueza proporcionada pelo excedente automaticamente est sendo usada porpoderes annimos do mercado. Os juros e os lucros fazem com que o excedente (surplus)da produo chegue, no mais aos nobres, mas aos investidores, capitalistas, comerciantes,aos bancos. Como funciona isto?

    preciso ter presente que no momento em que as pessoas ganham dinheiro, ele nemsempre fica com elas, pois existem vrios instrumentos ou meios atravs dos quais estedinheiro flui para os setores mais poderosos e mais fortes da sociedade. Estes mecanismosso os bancos, onde a maioria das pessoas guarda seu dinheiro.

    No sistema capitalista os investidores tem a disponibilidade de todos os excedentes peloscrditos bancrios, que so baseados no dinheiro disponvel nas contas bancrias. Elesno precisam forar voc ou eu para disponibilizar nossas poupanas, como a RainhaIsabel fez com os judeus. Eles s precisam convencer os bancos de que o investimentogerar lucros. Isto faz que o capitalismo seja bem mais dinmico que outras formas de seapropriar do excedente. No capitalismo, s quem investe pode se apropriar do excedente.Isto faz com que o excedente seja sempre investido produtivamente.

  • O que o dinheiro? 21

    Desta forma a disponibilidade do dinheiro excedente para os investidores dinamiza toda aproduo e resulta no desenvolvimento da sociedade.

    Esta atribuio direta do excedente atravs do sistema monetrio faz que o capitalismoseja o sistema mais dinmico e renovador na histria, como foi determinado por seumaior crtico, Karl Marx.

    1.4 CRDITO COMO MOTOR DA ECONOMIA

    O crdito, como conceito, um tipo de transao comercial em que um gasto, seja em investimentoou consumo, facilitado de imediato, enquanto o pagamento acontece depois de um determinadotempo. Os fatores mais relevantes dessa transao so a confiana e o tempo a decorrer entre aaquisio e a liquidao da dvida.

    A maioria das empresas, umas mais e outras menos, dependem de emprstimos para financiarseus investimentos. Sendo assim, o crdito como um motor na economia, facilitandoinvestimentos e desenvolvimento. Mas, no se deve pensar o crdito somente relacionadocom as empresas; os prprios consumidores tambm utilizam sistemas de crdito paracomprarem produtos que no podem pagar de uma s vez. O governo, para realizar atividadesde investimentos nas cidades, estados e pas tambm faz uso de financiamentos de crdito.V-se, ento, que no sistema monetrio, o crdito desempenha um papel central, como umcorao, bombeando fluxos de capital de um lado para o outro.

    Na maioria das vezes o crdito emprestado criando novo dinheiro. a forma do modelocapitalista de emitir dinheiro: outorgando crditos. O dinheiro novo surge no momentoem que concedido crdito. Neste captulo vamos nos aprofundar em alguns aspectosdeste crdito.

    de suma importncia ressaltar que a ciranda dos crditos, alm de gerar novasoportunidades de investimento, tambm resulta num poo de dvidas. Quem estemprestando o dinheiro, por certo, deseja uma remunerao sobre o montante, que seconhece como juros. Esses juros sero discutidos no prximo pargrafo.

    O crdito pode ser gerado num determinado local e o dinheiro pode ser aplicado emoutro . Assim, muitas pessoas na Europa conseguem emprstimos a juros de 6% ao anoe os aplicam na Bolsa de Valores nos Estados Unidos da Amrica (EUA) que, at hpouco, proporcionava rendimentos de 15 a 20% ao ano. A localidade da inverso, emgeral, eleita por razes especulativas. Isto significa que no so determinantes osvalores intrnsecos para a acessibilidade do capital, mas principalmente o aumento dorendimento esperado.

  • O que o dinheiro?22

    Graas globalizao e liberalizao dos mercados de capital, o dinheiro pode ser transportadopelo mundo na velocidade do tempo de da luz, e ser aplicado onde so obtidos os maioresrendimentos, mais atrativos. Isto implica que o dinheiro disponvel para respaldar crditostambm pode procurar os maiores lucros no mercado mundial. Assim, o pequeno agricultorda ndia est, na verdade, concorrendo na aquisio de capital com empresas multinacionais.

    muito importante ressaltar que o valor de crdito est baseado no valor de mercado ao invsdo valor inerente. Assim, surge uma situao na qual o crdito se concentra em regies comelevado valor de mercado. Nessas regies as empresas de mdio porte tambm conseguemdinheiro com facilidade. O outro lado da moeda que a falta de crdito tambm se concentra;nas regies onde isso acontece, mesmo pessoas com boas idias e empresas de excelentecapacidade tm grandes dificuldades em conseguir capital. Mesmo que consigam crdito,elas iniciam suas atividades no mercado local onde h pouca oferta de dinheiro e, portanto, difcil obter algum retorno. Assim, a falta de crdito cria uma realidade prpria:a impossibilidade de fazer florescer uma atividade.

    Tomemos por exemplo uma pequena empresa de computadores do Vale do Silcio (SiliconValley) e uma no Chile. Ambas tm boa posio no mercado, tm clientes, a administrao daempresa eficiente e apresentam bom gerenciamento do dinheiro, mas as duas necessitam denovo capital e, portanto, emitem aes. O investidor europeu precisa decidir. A pequenaempresa nos EUA est representada no NASDAQ. Nesta Bolsa de Valores, at pouco, subiamos valores das aes com dezenas de porcentos por ano. Nem tanto pelos valores das empresas,mas pelo valor do mercado no total, e pela grande demanda de aes. A empresa no Vale doSilcio, portanto, conseguir emprstimos mais facilmente do que sua concorrente chilena.

    Alm disso, os juros cobrados sobre emprstimos nas regies pobres so muitas vezes superioresaos cobrados em regies desenvolvidas, tornando quase impossvel qualquer nova atividadeeconmica. Esta espiral de misria alimentada por custos bancrios mais elevados, por causade riscos maiores; com isso, geram inflao maior e menor atividade econmica, etc.

    Na mesma espiral de impossibilidade de investimentos semelhantes esto tambm os bairrosempobrecidos dos pases mais ricos. Num determinado momento, a ausncia de crdito setornou a causa da impossibilidade do bem-estar, enquanto que, segundo os banqueiros, ela uma conseqncia.

    s vezes o governo ou uma agncia de fomento ao desenvolvimento ou um investidor privadooptam por investir, de uma vez, muito dinheiro em determinado bairro. A regio porturia deLondres um exemplo: tratava-se de um bairro decadente que foi restaurado num grandeprojeto e que hoje um dos pontos mais prestigiosos da cidade. O interessante que surge

  • O que o dinheiro? 23

    ento um impulso contrrio: a expectativa de um valor futuro gera valor de crdito e esta secumpre per si - como h um fluxo de dinheiro para o bairro e ele recebe benfeitorias, aumentao valor esperado do bairro como um todo e as casas decadentes passam a ter maior valorimediato. S esta valorizao mais que suficiente para dar retorno aos investimentos daagncia de fomento.

    Como visto, o crdito traz fora e dinmica economia. Nosso modelo monetrio estbaseado nestes crditos para emitir moeda e criar a quantidade necessria de dinheiro. Masao mesmo tempo, j que nosso sistema monetrio est nas mos duma pequena oligarquia,este crdito implica numa dependncia cada vez maior, deixando o mundo inteiro dependentedo sistema financeiro. O mecanismo que realiza esta dependncia o sistema de juros.

    1.5 JUROS

    Sem ser radical, nem exagerar, eu lhe digo: a terceira guerra mundial jcomeou. uma guerra silenciosa, mas porm no menos sinistra. Estaguerra est destruindo Brasil, o continente latino-americano, e praticamentetodo o Terceiro Mundo. No morrem soldados, mas infantes, ao invs demilhes de feridos, tem milhes de desempregados. Ao invs de pontes, sodestrudas fbricas, escolas, hospitais e economias inteiras. uma guerrado Oeste rico, contra o continente Latino-Americano e o Terceiro Mundo.

    O motivo desta guerra a dvida externa, e o arma mais importante so osjuros, um arma mais mortfera que a bomba atmica, e mais destrutiva queo raio laser.

    Lus Incio Lula da Silva.

    A essncia crtica ao sistema monetrio vigente que ele funciona base de juros. Nosoutros itens poder ser visto exatamente o que so os efeitos da base de nosso dinheiro.Aqui s ser examinado superficialmente o que so os juros.

    Juros para ns so uma das evidncias da vida. Se uma pessoa pedir um emprstimo aobanco, pagar juros; se fizer poupana, receber juros. Mas isto no uma situaoequilibrada: o que ela receber ser bem menor do que pagar. No Brasil o exemplo bemclaro: algum que depositou 100 reais na poupana num banco, no dia 1 de julho de 1994(data de lanamento do real), tem hoje 374 reais e 34 centavos. J se esse mesmo algumsacou 100 reais no cheque especial, na mesma data, tem hoje uma dvida de 139 mil, 259reais e 10 centavos, no mesmo banco. Ou seja: com 100 reais do cheque especial voc ficadevendo nove carros populares, e com o da poupana, consegue comprar apenas quatro pneus.

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    0

    2000

    4000

    6000

    8000

    10000

    12000

    14000

    1 5 9 13 17 21 25 29 33 37 41 45 49 53 57 61 65 69 73 77 81 85 89 93 97 101

    crescimento exponecial 5%

    crescimento linear 20%

    No passado os juros nem sempre eram aceitos. Tanto a Bblia como o Alcoro, e muitos outroslivros sagrados, chamavam de usura e consideravam pecado inaceitvel por parte daqueles quese aproveitavam para auferir ganhos sobre emprstimos concedidos. Nossa conceito tico emoral quase sempre aponta no mesmo: quem pediria a seu vizinho que lhe retornasse duasxcaras de acar, quando lhe tivesse pedido emprestada apenas uma?

    Hoje os juros so a essncia do sistema monetrio e os banqueiros que fixam as taxas so membrosrespeitados de nossa comunidade. E mais: muitos economistas e analistas financeiros no achampossvel um sistema monetrio funcionar sem eles. Os juros so definidos como o custo dodinheiro. Isto uma forma de legitim-los, mas um argumento falso. Se os juros somenterepresentassem o custo dos bancos para manterem suas administraes e os seguros que elesprecisam para os crditos que eventualmente no retornam, esses juros no seriam cumulativos.Seriam gastos exatamente em pagar os salrios dos empregados dos bancos e pagar os custos doscrditos perdidos. Os juros no so tanto o custo do dinheiro, mas muito mais o preo dodinheiro: um preo artificialmente alto, pela apropriao nas mos duma pequena oligarquia dopoder de sua emisso.

    Os juros so taxados de forma exponencial, resultando de uma percentagem cumulativano s sobre o crdito inicial, mas tambm so cobrados juros sobre juros. Quem conheceum pouquinho de matemtica sabe o que implica um crescimento exponencial. umcrescimento que aumenta sua velocidade continuamente.

    Um crescimento desta forma to explosivo, que, depois de um tempo de acelerao, eleganha velocidades to extremas, que j os recursos humanos para controlar seus efeitosse tornam ineficientes.

    Isto leva a que os efeitos dos juros em nossas vidas acelerem suas influncias! H cemanos os efeitos totais dos juros no necessariamente eram to visveis, mas hoje ospagamentos de juros esto escravizando populaes e naes, levando explorao contnuade recursos naturais e humanos.

    Crescimento exponencial e crescimento linear

  • O que o dinheiro? 25

    Por seu carter exponencial, os juros nos obrigam a pensar no curto prazo, estimulando adegradao ambiental. S imagine: os retornos que podem dar processos naturais no soexponenciais, eles so lineares, estveis. Imaginemos os peixes nos oceanos se reproduzindouns 7% (constantes) por ano, e os juros a uma taxa de 5% (cumulativa). Isto explicar por que financeiramente bem mais vantajoso pescar todos os peixes no mar hoje, vend-los e guardar estedinheiro num banco contra juros, que deix-los nadar tranqilos e a cada ano recolher umaparte. Como isso?

    No primeiro ano o monte de dinheiro cresce uns 5%. Isto um pouco menos do que a capacidadenatural dos peixes em se reproduzir. No segundo ano cresce de novo os mesmos 5%, mais os 5%sobre os 5%, um total de 5,25%. No terceiro ano, um pouquinho mais que 5,5%. At aquiparecem os peixes ser mais produtivos que os juros. Mas o que acontece com um crescimentoexponencial? No oitavo ano, a renda dos juros cumulativos so de 7% do montante inicial. Aos15 anos, a renda de uns 10%; aos 20 anos, 12,6%, e isto vai crescendo cada vez mais rpido! Aos50 anos, j so mais de 50% anuais os retornos dos juros! Muito mais do que nenhuma espcie depeixes pode se reproduzir. exatamente isto o que acontece quando governos decidem saquearas riquezas naturais de seus pases para amortizar suas dvidas externas: a renda constante eeterna que estas riquezas do, no pode competir com os juros que so taxados sobre as dvidas.

    Mas uma eleio totalmente ridcula e cnica: todos sabemos que se destrumos todos nossosrecursos, o dinheiro que virou a represent-lo no ter mais nenhum valor! O economista KennethBoulding se expressou claramente: Quem acredita num crescimento exponencial contnuo,em um planeta finito, ou um louco, ou um economista.

    Os juros e a acumulao de riquezas

    necessrio saber que ns no s pagamos juros para nossos crditos, mas os pagamos cada vezque compramos po, que tomamos caf, ou quando pagamos o aluguel da casa. Cada investimentoque implica num crdito resulta no pagamento de juros. Cada padaria que compra uma novamquina, cada produtor de caf que obtm um crdito para comprar sementes, cada casacomprada com um crdito, todos pagam juros. Esses juros sempre so embutidos nos preoscobrados do consumidor e por isso que em cada compra que fazemos pagamos juros. Hoje ospreos pagos pelo consumidor podem ter de 25 at 70% de juros, acumulados na sua trajetriapela cadeia produtiva!

    O que percebemos que os juros so um mecanismo muito eficiente para a acumulao deriquezas, por aqueles que detm o poder financeiro. Na populao humana, s 10 por centorecebem na sua vida mais ou menos a mesma quantidade de juros que eles pagam; 80 por centopagam muito mais juros do que recebem e uma elite, 10 por cento da humanidade, recebembem mais lucro por parte dos juros do que eles pagam.

  • O que o dinheiro?26

    Normalmente os mais vulnerveis, gente e pases pobres, so os que precisam de capital parapromover o desenvolvimento. Como no tem capital, pedem emprestado. Na prtica, surgedesta maneira um dficit estrutural de dinheiro num crculo vicioso. Isto implica em um dficitsistemtico para sociedades, pases e comunidades, no qual o novo dinheiro criado e geranovos pagamentos dos juros da dvida. O uso do dinheiro como meio de intercmbio se esvazia,porque continuamente retirado do circuito produtivo.

    Os juros so um mtodo bem efetivo de acumular sem trabalhar. Isto no s uma realidadepara indivduos que se aposentam e vivem dos juros que eles recebem pelo seu capital,mas num nvel bem mais elevado, para comunidades e estados. O fato de os pases pobresestarem condenados eternamente a pagarem juros interminveis sobre dvidas velhas,obriga-os a competirem no mercado mundial para obterem os dlares necessrios parapagar estes juros. Desta forma os juros so um mtodo excelente dos pases ricos de ficarcom os excedentes dos pases pobres.

    Mas os juros no criam s riqueza. Eles so a causa da pobreza para grandes partes dapopulao mundial. Ao mesmo tempo em que os pases ricos se enriquecem ainda mais,os pases pobres ficam sem o circulante necessrio para as comunidades se autogestionarem.Aqui, os altos nveis de desemprego significam um desperdcio enorme de possibilidadese recursos humanos. Isto tem que ficar claro: no s a pobreza direta da perda de recursoshumanos e naturais, mas uma pobreza mais estrutural, causada pela ausncia de meio deintercmbio e de um desenvolvimento autnomo, so causadas pelos juros.

    Os juros e a inovao

    Uma ironia histrica que esta forma de tributo obrigou a pases como o Brasil a se desenvolverrapidamente. Isto resultou numa indstria moderna e competente. Mas como o objetivo destamodernizao nunca foi o de beneficiar a populao, ao mesmo tempo de ter uma produomoderna, existem condies humanas e sociais medievais.

    No devemos esquecer que os juros tm efeitos desastrosos tambm nos pases ricos. A Holandaapresenta os juros como o segundo posto no oramento, pagando mais de juros do que aplica emeducao ou sade. A economia nos centros capitalistas, que necessita gerar os juros cumulativossobre seus investimentos, est continuamente se acelerando para criar estes lucros.

    A conseqncia inevitvel de uma economia onde os investimentos so taxados com juros queas taxas de juros crescem exponencialmente e a produo tenha que seguir crescendo parapoder pagar estas taxas. Desta forma, essa economia submetida a uma fora predadora, na quala lgica ser sempre produzir mais para criar mais consumo, mais explorao da natureza, maisexplorao do meio ambiente e, conseqentemente, dos seres humanos.

  • O que o dinheiro? 27

    Nos enredamos num crculo incontrolvel de novos produtos, novos meios de produo,mais produtos, mais meios de produo, destruio e substituio de produtos e meios deproduo acelerada, de altos rendimentos e mais concentrao de renda e uma acumulaocontnua do capital e poder nas mos de um pequeno grupo.

    O paradoxal que nas regies ricas o ritmo da vida est mais e mais acelerado e, ao mesmotempo, menor a qualidade de vida em funo da necessidade de manter-se no ritmo docrescimento do dinheiro.

    No se pode negar a importncia e as conseqncias para a vida diria da criao dedinheiro taxada com juros. Vivemos em um sistema econmico no qual sempre h umdficit estrutural de dinheiro, e a maioria das naes est condenada a produzir excedentepara pagamento destes juros.

    por isso que procuramos desenvolver uma economia sem juros, onde o dinheiro circule porrazes de produo e de comrcio, e no por razes financeiras.

  • Para onde vai o dinheiro? 29

    2. PARA ONDE VAI O DINHEIRO?

    No primeiro captulo, o dinheiro e alguns de seus aspetos foram descritos. J foramintroduzidos termos como emisso, crditos, juros, acumulao. Neste captulo nosso propsito de esclarecer exatamente como e onde o dinheiro capitalista nasce, como ele circula equais so suas dinmicas.

    2.1 O NASCIMENTO DO DINHEIRO

    A circulao do dinheiro comea quando o dinheiro emitido. Existem muitas formas deemitir dinheiro. Uma forma, a mais clssica, quando um governo, ou outro rgo,imprime moedas e bilhetes e os gasta pagando por produtos ou servios da sociedade.

    Esta forma de emisso de dinheiro foi importante, mas no mundo capitalista, s 3% dodinheiro em circulao so moedas e bilhetes, ao passo que 97% dinheiro virtual, emcontas correntes, cartes de crdito, etc. De onde vem todo este dinheiro?

    Para responder essa pergunta, precisamos voltar aos ourives (tesoureiros) italianos, queemitiam garantias de ouro sem ter todo esse metal nos seus cofres. J que muitas pessoasprefeririam as garantias ao ouro mesmo, por sua comodidade de uso, muito ouro nuncaera recolhido. Os ourives podiam emitir at dez vezes mais garantias do ouro que elesguardavam, auferindo grandes lucros pelos juros que eles taxavam.

    Este sistema pode parecer fraudulento mas, ao mesmo tempo, facilitou o desenvolvimentoacelerado da Europa, pela disponibilidade de dinheiro para facilitar transaes (ver item1.3). Hoje, o sistema bancrio capitalista est baseado exatamente nesta dinmica, quetem o nome de respaldo parcial. Cada livro de economia bsica explica como os bancosnecessitam ter um respaldo pelos crditos que eles emitem de mais ou menos dez porcento. Cada pas, em sua lei bancria, define a percentagem exata; mais ou menos omesmo nas diferentes partes do mundo.

  • Para onde vai o dinheiro?30

    Tendo um certo respaldo em suas reservas, os bancos comerciais privados tm o direito,por lei, de emitir dez vezes mais dinheiro, novo dinheiro, nascido da nada! No , porm,a poupana de outro que voc est emprestando. A maioria do crdito que anotado nasua conta bancria, e que voc paga incluindo os juros, dinheiro novo que previamenteno existia e est respaldado pelas jurisprudncias nacionais. Os 97% mencionados daquantidade total de dinheiro , ento, crdito bancrio.

    Os bancos emitem dinheiro para circular na economia produtiva e as comunidades. Eles criam este dinheiro(100) na base de um respaldo parcial (10).

    2.2 OS JUROS: UMA TAXA PERPTUA

    O crdito que cria novo dinheiro taxado com juros. Se pensarmos bem, isto paradoxal:eu te empresto uma coisa que ainda nem existe, mas te taxo um juro cumulativo!

    Fora outros aspetos, por exemplo, morais (ver item 1.5), vamos analisar aqui o efeito dosjuros para o prprio sistema monetrio. J que conclumos que 97% do dinheiro circulandohoje so crditos bancrios, podemos deixar os demais 3% de lado neste momento, efazer como que todo dinheiro fosse crdito.

    Ento, visualisamos o dinheiro entrar na circulao taxado com juros. Se um montantede 100 reais (dlares, pesos ou marcos) entra em circulao, taxado com 10% de juros,depois de um ano devero sair de circulao 110 reais: o pagamento do crdito mais osjuros. Mas o que acontece? O prprio crdito cria uma falta de dinheiro em circulao naordem de 10 reais. De onde vm os 10 reais? Neste sistema, onde a nica forma de criardinheiro o crdito, os 10 reais tero que ser criados com um novo crdito. Masestecrdito tambm ter seus juros!

  • Para onde vai o dinheiro? 31

    As taxas dos juros criam uma falta de dinheiro nas sociedades.

    Quanto mais crditos os bancos emprestam, tanto mais falta de dinheiro eles criam. Destaforma cada vez mais e mais crditos so necessrios, criando um endividamento quecresce continuamente. isso exatamente o que est acontecendo hoje no mundo: umendividamento contnuo das pessoas, governos e empresas, no s no mundo pobre, mastambm no mundo rico.

    No Movimento Monetrio Mosaico isto deve estar completamente claro: os bancos, quesupostamente tm a funo de facilitar o dinheiro para a economia, na realidade esto criandocontinuamente a falta de dinheiro na mesma.

    2.3 V`RIAS FORMAS DE PERDA DE DINHEIRO EM CIRCULAO

    Como foi descrito, o sistema monetrio baseado em crditos taxados com juros cria seu prpriodficit de dinheiro. Desta forma o circuito produtivo perde dinheiro diretamente ao circuitofinanceiro. Isto deixa as comunidades sem o meio de trocas, indispensvel para seudesenvolvimento (ver cap. 1).

    No sistema monetrio vigente existem mais formas nas quais as comunidades perdem o dinheirocirculante.

    Drenagem do circuito produtivo pelo circuito financeiro.

    Quando ns falamos em dinheiro, devemos distinguir dois circuitos monetrios separados. Oprimeiro, trata da produo e do consumo, o segundo, distante da produo, trata do mundofinanceiro especulativo que negocia em aes, em reivindicaes e em dbitos de ttulos.

    O dinheiro tem uma finalidade diferente nos dois circuitos. O produtivo necessita-o como meiode troca para anotar comrcios, enquanto o especulativo usa-o para anotar as transaes tambm,mas aqui o prprio dinheiro a mercadoria mais importante.

  • Para onde vai o dinheiro?32

    Os dois circuitos no so separados inteiramente: o dinheiro flui entre ambos os circuitos,causando um vazamento de liquidez no circuito produtivo. Desta forma, o dinheiro seencontra abundantemente no circuito financeiro mas escasso no circuito produtivo.O circuito financeiro drena o dinheiro do circuito produtivo de diversas maneiras.A razo principal para esta diviso a diferena nos retornos.

    Se os lucros e os investimentos estiveram equilibrados, a circulao do dinheiro seria continuada.

    Porm, os baixos percentuais de remunerao de um investimento na produo, seja emuma loja ordinria ou fbrica, no podem ser comparados ascenso explosiva dos retornosno circuito financeiro. A diferena to grande que gera dois mundos totalmentediferentes.

    Imaginemos um capitalista que tem dinheiro para investir e compra aes de umafbrica. A fbrica, a cada ano, ter que pagar uma parte de seus lucros como dividendosao investidor. Se ele investir estes valores novamente no circuito produtivo, noacontecer nenhuma drenagem. Mas se o capitalista preferir investir nos circuitosespeculativos, a esse dinheiro no mais estar disponvel para o circuito produtivo.

    Isto gerar uma drenagem do dinheiro do circuito produtivo ao circuito especulativo.Esta drenagem sempre terminar prejudicando a comunidade local, j que osprodutores compensam a drenagem pagando salrios menores.

  • Para onde vai o dinheiro? 33

    Os investidores preferem especular. A circulao do dinheiro quebra-se.

    Ns fomos ensinados que as bolsas so um mecanismo de subministrar dinheiro dosinvestidores s companhias. Quando uma companhia precisa de dinheiro, ela emite aes,que vende aos investidores. Desta forma ela obtm o dinheiro necessrio para seusinvestimentos. Isto acontece, sem dvida. As companhias recuperam dinheiro do circuitofinanceiro atravs dos estoques novos, mas cada vez menos. Quando uma companhiaemite aes, ela tem que pagar anualmente uma parte de seus lucros aos investidores.

    Pesquisas do economista Doug Henwood nos Estados Unidos demostram que entre 1901e 1996, as bolsas forneceram somente 4% do capital de funcionamento de companhiasno-financeiras. Ao mesmo tempo, entre 1980 e 1996, um lquido de 11% do capital foiretirado pelas bolsas das companhias. Isto foi feito com as retomadas e as restituies dosestoques por companhias e pelos pagamentos anuais dos lucros aos investidores.

    A maioria das transaes nas bolsas de valores no implica em novas emisses de aes;so apenas de compra e venda de aes existentes, por parte de especuladores que achamque o valor das aes vai crescer ou descer. Todas estas transaes no trazem dinheironenhum aos produtores, mas ao mesmo tempo existem tantas ganncias no circuitoespeculativo que esses negcios atraem dinheiro no s de especuladores, mas tambm

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    cada vez mais a poupana das populaes. Um exemplo disto o fluxo do dinheiro daspoupanas para a aposentadoria. Seus prmios encontram uma sada para os circuitosfinanceiros. J que muita gente est investindo em fundos de penso, neste momento, asquantidades envolvidas so enormes.

    Esses fluxos de dinheiro geram seus prprios lucros: j que cada vez mais dinheiro estadisponvel para comprar mais ou menos a mesma quantidade de aes, os preos destascrescem aceleradamente. Assim, a tentao de levar seu dinheiro ao circuito especulativo cada vez maior. Isto causa um acelerada submisso do mundo produtivo ao financeiro,com conseqncias importantes e riscos considerveis. Quanto mais elevada a remuneraodo capital proposta pelo circuito financeiro, mais forte sua atrao, e mais forte a pressosobre o setor produtivo para expandir.

    Destas diferentes formas, o circuito financeiro suga uma quantidade contnua do circuitoprodutivo. Isto pode ser percebido facilmente, se compararmos as quantidades enormes dedinheiro circulando nas bolsas, com as dificuldades que tm os produtores de obter um crditopara investir produtivamente.

    Drenagem do circulante local pela produo global

    Como vimos no primeiro captulo, a comunidade precisa de um meio abstrato para realizartrocas e inverses, para poder se desenvolver. A suco do dinheiro pelo circuito financeirorepresenta uma das causas da falta de circulante local, porque os produtores pagaro menossalrios e isto causar uma falta de circulante nas comunidades.

    Mas existe uma outra perda do dinheiro das comunidades produo global, onde os indivduosso muito mais responsveis: a perda de poder aquisitivo que acontece quando so compradosprodutos produzidos fora de nossa comunidade.

    J faz algumas dcadas que super e agora hyper e mega-mercados esto se instalando naAmrica do Sul. O capital estrangeiro investe aqui, prometendo empregos e acesso a produtosbaratos. Exemplos so as cadeias Carrefour e BIG. Mas o que acontece quando as comunidadescompram nessas empresas? - J que o dinheiro dos investimentos vem de fora, os lucrostambm iro para fora. O resultado uma perda de dinheiro de nossa comunidade para omercado mundial. E mesmo se o Carrefour ou o BIG fossem nacionais, a compra de produtosde cadeias produtivas de capital intensivo sugaria o dinheiro em circulao na comunidadeonde se instalaram e o levariam para a economia globalizada.

    Para o consumidor individual, uma compra num BIG pode parecer vantajosa, j que ospreos podem ser mais baixos que na loja do bairro. Mas, o dinheiro da compra retornaao mercado mundial, e quem sabe quando voltar. Desta forma, a chance do indivduoganhar este dinheiro diminui.

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    Drenagem do dinheiro por causa dos juros

    J foram discutidos os juros como causa da drenagem contnua do dinheiro dascomunidades ao sistema financeiro. Cada vez que um produtor obtm um crdito parainvestir, cada vez que um cidado obtm um crdito hipotecrio para comprar uma casa,cada vez que um consumidor usa um carto de crdito, o fluxo de juros cresce.

    Assim podemos visualizar as diferentes formas de drenagens do dinheiro, deixando ascomunidades sem os meios necessrios para se autogestionar.

    As diferentes causas de perda de dinheiro da circulao local/produtiva.

    1. A perda causada pelos pagamentos de juros para o dinheiro emitido base de crditos.

    2. A perda de dinheiro do circuito produtivo aos investidores.

    3. O dinheiro dos investidores que no investido produtivamente mas levado ao

    circuito especulativo

    4. A perda de dinheiro das comunidades produo global.

  • Para onde vai o dinheiro?36

    2.4 AS CONSEQNCIAS DA ESCASSEZ DO DINHEIRO:ACELERAO OU CRISE

    A perda de dinheiro do circuito produtivo ao circuito financeiro tem grandes conseqncias.O que acontece quando falta o dinheiro em relao quantidade de atividade econmica?

    Acontece, paradoxalmente, uma acelerao enorme da economia. Por qu? Porque quandofalta dinheiro, e a nica forma de entrar novo dinheiro um crdito, e cada agente na economiavai tentar evitar solicitar esse crdito. Isto resulta numa acelerada atividade, para competir peloescasso dinheiro em circulao. Pense nisto quando passar na rua pelos camels, com seusmilhares de produtos, ou quando voc ver que sua maionese ou seu xampu tem inovado suacomposio pela terceira vez em um ano. Muitas destas atividades so estimuladas, aceleradas,pela falta de dinheiro em circulao.

    Voc acha que no centro do capitalismo, na Europa ou nos bairros ricos aqui no Brasil, aondetodas as riquezas do mundo fluem, as pessoas esto tranqilas, desfrutando a vida e olhando oresto do mundo trabalhar? Desculpe, mas voc esta equivocado/a! Mesmo ali a acelerao daproduo to intensa que as pessoas trabalham 60 horas por semana, com 2 ou 3 semanas defrias por ano!

    O que aconteceria se a economia nose acelerasse desta forma? As taxas dos juros seguiriamcrescendo, empobrecendo as pessoas e empresas, e causando uma crise. Isto exatamente o queaconteceu em grande parte da Amrica Latina.

    Uma economia baseada em juros tem s duas opes: crescimento ou crise.

    2.5 CRDITO E GARANTIA

    Segundo o dicionrio, crdito significa prova de confiana dada a algum, a quem no se temmotivo para desconfiar; segurana na verdade de alguma coisa (Novo Dicionrio da LnguaPortuguesa. Aurlio Buarque de Holanda. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro)

    Neste item queremos brevemente explorar os temas da confiana e do respaldo quanto ao temados crditos.

    Crdito e confiana

    a incerteza em relao ao outro ou a desconfiana sobre a capacidade que este outro tem emhonrar seus compromissos que afeta seriamente a confiana das pessoas que investem no setorprodutivo, provocando comportamentos de precauo e retrao que bloqueiam novosinvestimentos.

  • Para onde vai o dinheiro? 37

    A existncia de arquiplagos de desenvolvimento e de desertos monetrios apenasdemonstram que a confiana junto com o crdito so os elementos necessrios querespaldam a atividade econmica.

    Dito de outro modo, confiana o processo pelo qual as pessoas estabelecemcomportamentos intencionais de oposio ao individualismo e as atitudes egostas com opropsito explcito de estabelecer formas de cooperao, e o crdito traduz contrapartidasrecprocas para superar situaes de carncia e/ou desvantajosas decorrentes da aplicaoradical das leis do mercado que lesam a dignidade da pessoa humana.

    A falta de um respaldo scio-econmico concorre para a falta de crdito e,consequentemente, na falta de dinheiro para as pessoas, grupos ou comunidades.

    E, quando as pessoas ficam sem instrumento para mudar, investir no processo produtivo,o crdito deixa de ser um instrumento capaz de promover o desenvolvimento para serum instrumento de controle social, cujo carter predador se evidencia no seu fluxo: deixaro creditado (quem recebe) num eterno presente1 de carncia porque o dinheiro fluiatravs das amortizaes do emprstimo para o credor (quem empresta).

    Os juros cobrados nas regies pobres so muitas vezes superiores aos cobrados em regiesdesenvolvidas, tornando quase impossvel qualquer nova atividade econmica.

    Esta espiral de misria alimentada por custos bancrios mais elevados cujos riscos somaiores tambm em funo da fragilidade econmica.

    E assim nos enredamos no eterno presente, pois o crdito com juros elevados gerainflao que, por sua vez, concorre para uma menor atividade econmica e, portanto,maior risco, etc.

    Nesse sentido, faz-se necessrio nos darmos conta da falcia do crdito. Primeiro, porqueo valor de crdito est baseado no valor de mercado ao invs do valor inerente que decorre doprocesso produtivo. por isso que o crdito se concentra em regies com elevado valorde mercado, na qual grupos, pessoas ou empresas conseguem dinheiro com facilidade;enquanto falta crdito para pessoas, grupos ou empresas com boas idias e com excelentecapacidade tcnico produtiva, impossibilitando de fazer florescer uma atividade.

    Segundo, porque a falta de crdito cria uma realidade negativa prpria, isto , uma espiral-de-impossibilidades na qual os investimentos, por no se diferenciarem, promovem

    1 Hobsbawn, E. Era dos Extremos: o breve sculo XX. So Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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    atividades pouco especializadas ou complementares, de modo que mobilizam um mercadolocal cuja caracterstica maior est no pouco dinheiro para consumir localmente e, portanto,de difcil ampliao do processo produtivo e do bem-estar local.

    Estes dois elementos permitem entender que o respaldo do crdito no est nas garantiasmas, ao contrrio, na promoo generalizada do crdito.

    Crdito ento, baseado em garantia ou valores de produo na economia. Por isso ques se confia em dinheiro que pode adquirir bens e servios. Por isso s concedido crditoou para atividades produtivas, ou para algum capaz de honrar seus compromissos. Emoutras palavras, que tenha condies de garantir que o dinheiro de outros tenha rendimento emfuno da expectativa de lucro. Ter rendimentos ou possibilitar uma expectativa de lucropassa a ser uma garantia.

    preciso ter presente que so nossas prprias capacidades de trabalho e bens, portanto,a garantia do crdito, mesmo porque um banco pode criar dinheiro do nada, mas necessitade nossos valores (bens) para dar cobertura a este dinheiro.

    Aqui se visualiza um elemento chave no crdito que na maior parte das vezes escamoteadopelo sistema financeiro: nossa prpria capacidade produtiva (o trabalho) a garantiados crditos a serem recebidos.

    Nossos prprios valores so a garantia dos crditos

    Crdito baseado em valores de produo na economia. Ns s confiamos em dinheiroque pode adquirir bens e servios. Por isso s concedido crdito ou para atividadesprodutivas, ou para algum com um ingresso, rendimento, uma garantia ou umaexpectativa de lucro. S quem tem a possibilidade de ter lucro obtm um crdito parauma inverso, s quem tem uma casa obtm uma hipoteca e s quem tem um ingressofixo obtm um carto de credito. Portanto, nossas prprias possibilidades, bens ecapacidades so a garantia do crdito.

    O banco cria dinheiro do nada (ver item 2.1), mas necessita de nossos valores para darcobertura a este dinheiro. Mas ns pagamos juros ao banco! Este um conhecimentoestratgico importante: os bancos so to dependentes da economia real (para dar coberturaaos crditos) quanto a economia real dependente do sistema financeiro (para a concessodos crditos). Este ponto de vista pode ser utilizado, na Economia Solidria, para utilizaros prprios valores como garantia para a prpria moeda.

    Isto exatamente o que j acontece na prtica da Moeda Social: se algum quer participarde um Clube de Troca, ele/a deve demonstrar previamente que tem capacidade de ganhar

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    suas unidades internas. Assim, a prpria produtividade uma garantia dos crditosa serem recebidos. Nas redes de transaes entre empresas, como a WIR, hnecessidade de garantias adicionais. Numa rede de empresas, uma empresa se obriga,mediante contrato, a aceitar tantas unidades internas quantas a prpria empresa gasta.Nestas dinmicas so possveis e necessrios uma srie de refinamentos conceituais(ver itens 8.2, 8.3 e 8.4), mas o princpio sempre o mesmo: ao invs de pedir a umbanco para capitalizar nossos valores e de pagar juros sobre o mesmo, a EconomiaSolidria nos ensina a basear nosso prprio meio de troca em nossos prprios valores.Assim, ela se libera da dependncia do sistema financeiro e economiza,simultaneamente, o pagamento de juros. isto que faz com que a Economia Solidriapossa trabalhar de modo to mais econmico e que, somente com base nisso, ela jpossa concorrer com o capitalismo!

    Agora, uma coisa importante para se levar em conta : se ns usarmos nossos prpriosvalores como lastro para nossas prprias moedas, o que exatamente esse lastro?Nos Clubes de Trocas, o lastro garantido pelas relaces sociais. Na rede WIR, olastro j mais jurdico. No item 8.1 ser apresentado o sistema FOMENTO, onde olastro da moeda social moeda nacional. Somente se lograrmos criar lastroscomparveis, as diferentes moedas podero circular nos diferentes sistemas. Esse um sonho do Movimento Monetrio Mosaico: ter diferentes moedas sociais quecirculem no s no seu prprio sistema, mas que possam ser aceitas, sem risco algum,noutros modelos tambm.

    2.6 O EIXO DE SUSTENTAO DO SISTEMA MONET`RIO:O ENDIVIDAMENTO

    Como o sistema econmico atual est baseado na criao de dinheiro com base em crdito omodo mais importante pelo qual a quantidade de dinheiro cresce a concesso denovos crditos. Mas isto tambm implica dizer que quanto maior a quantidade dedinheiro, tanto maior a disponibilidade de crdito e, portanto, maior o volume totalde dvidas.

    Olhando por este ngulo vivemos num sistema de endividamento, tentando empurraras dvidas para longe de ns, ou seja, para os agentes mais fracos. Um sistema que girasobre o crdito, gira sobre endividamento. Quando observamos o enorme crescimentona quantidade de dinheiro dos ltimos anos, s podemos concluir que ocorreu umenorme endividamento. O economista ingls Michael Rowbotham pesquisou esteassunto.

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    Crescimento simultneo de M4 e do endividamento na Inglaterra (Michael Rowbotham).

    Este grfico demostra como o crescimento do montante de dinheiro foi acompanhado deum crescimento igual do endividamento (de pessoas, empresas e governo). A parte dodinheiro que no baseada em dvidas, as moedas e os bilhetes, hoje no significa mais de3% do montante de dinheiro total.

    Observamos que o M4 (termo tcnico dos economistas para a quantidade total de dinheiro)na Inglaterra cresceu explosivamente no perodo ps-guerra.

    Deste M4 somente 3% circulam na forma de moedas e notas. Este o nico dinheiro queentra em circulao na forma de gastos e no de emprstimos. O resto da quantidade dedinheiro, todos os crditos em contas bancrias, cartes de crdito, cheques, hipotecas,contas correntes esto baseados em crdito. Isto est bastante claro no grfico: oendividamento total na Inglaterra aumentou exatamente na mesma proporo que o totalda quantidade de dinheiro.

    Nos primeiros itens vimos que a razo pela qual as dvidas e a quantidade de dinheirocrescem to exponencialmente o fato de que so cobrados juros sobre todos estes crditosque entram em circulao.

    Um latino-americano, asitico ou africano sabe que, at hoje, seu pas paga prestaespor dvidas contradas anos atrs. Mas na Europa isto tambm acontece. O pagamento dejuros , para o governo dos Pases Baixos, o segundo maior item do oramento, pagamentoque consome muito mais dinheiro do que ensino ou sade pblica. Portanto, os pasespobres no devem aos pases ricos mas todos os pases devem ao sistema financeiro.E isto no se aplica somente aos governos mas tambm aos indivduos. Nos EUA o nvel

    70 0

    60 0

    50 0

    40 0

    30 0

    20 0

    10 0

    065 0 70 0 75 0 80 0 85 0 90 0 95 0

    Q uantidade M onetria

    milh

    es

    de lib

    ras

    ano

    Total de dv idas pblicas e p rivadas

  • Para onde vai o dinheiro? 41

    de endividamento pessoal (hipotecas, cartes de crdito, etc.) cresceu tanto na ltimadcada que Alan Greenspan, diretor do Banco Central, manifestou sua preocupao como fato repetidas vezes: na primeira crise que surgir, o castelo de cartas poder desmoronare as pessoas no tero condies de pagar os juros e as prestaes assumidas. Isto poderter reflexos na economia internacional. Tambm a classe mdia na Amrica Latina estentrando de olhos abertos nesta armadilha, atrada pelos brilhantes Shopping Centers epadres de consumo maravilhosos; as pessoas esto se afundando, cada vez mais, emdvidas. Enquanto h crescimento est tudo bem. Mas mesmo um pequeno choque pode,nesta situao, ter enormes conseqncias.

    Analisando isto tudo verificamos que o sistema monetrio nos coloca diante de umaopo injusta: ser pobre ou ter dvidas (ou ser to esperto que consegue repassar o problemapara outros).

    Se queremos capitalizar nossas capacidades, a nica forma que temos de nos endividarcom os bancos, pagando juros. Para um indivduo isto pode funcionar: ele pode ser espertoe gerar seu investimento, mais os juros. Mas para a comunidade, na sua totalidade, isto uma perda de dinheiro (ver item 2.3).

    Capitalizar nossas capacidades para nos desenvolver.

    O renomado economista peruano Hernando de Soto foi convidado, nos ltimos anos, aexpor em todo mundo sua nova viso de como a pobreza pode ser resolvida. De Soto temuma teoria bastante radical de como realizar desenvolvimento.

    s legalizar todos os bens informais nos pases pobres. Como quasenoventa por cento das casas no existem oficialmente, tambm no possvel obter uma hipoteca sobre as mesmas. Legalizando-as cria-seno mundo pobre um potencial econmico de 9.300 bilhes de dlares.Isto mais do que vinte vezes o total do auxlio ao desenvolvimentodesde a Segunda Guerra. Para os bancos surge ento um gigantescomercado de financiamento.

    Assim falou ele durante sua visita aos Pases Baixos.

    claro que De Soto est ciente de que uma parcela significativa dos problemas dospases pobres provocado pela falta de dinheiro. De Soto claramente percebe que a fontedo dinheiro so os crditos, e que a base dos crditos so os lastros. Se os pases pobreslegalizassem a economia informal, se criaria uma grande fonte de lastros.

    Novos lastros, para novo dinheiro, para novos investimentos, para fins comerciais e parao consumo. Pode ser que De Soto tenha razo. Que espao seria gerado se o mundo

  • Para onde vai o dinheiro?42

    pobre pode obter dinheiro capitalizando (hipotecando) seus bens? Um espao enorme:9.3000 bilhes de dlares, puramente para circular! Simultaneamente os juros exigiroseu tributo e, a, de forma acelerada. A economia no poderia se dar ao luxo de proporcionarbem-estar, mas deveria crescer para honrar os encargos dos juros, conceder novos emprstimos,ter confiana para assumir novas dvidas. Muitas das pessoas que contratarem uma hipotecasero obrigadas a contratar novos emprstimos para pagar os juros. A capitalizao de nossosbens no sistema monetrio atual significa que nos sujeitamos ao pagamento de tributos ao capitalfinanceiro. Se dermos ouvidos a De Soto e realmente injetarmos 9.300 bilhes de dlares naeconomia pobre, os bancos recebero, s no primeiro ano, a um juro de 10% ao ano, 930 bilhes.Este dinheiro ter de ser pago. Assim, estaremos a caminho de um novo desastre!

    Mesmo assim, o que De Soto diz muito importante: a rejeio de bens de capital como garantiado capital faz com que a economia informal esteja em grande desvantagem na obteno dedinheiro e, portanto, reprimida em sua dinmica.

    Alm disso, possvel fazer uso do potencial apontado por De Soto e, ao mesmo tempo,evitar a armadilha dos juros. Para isto necessrio unir-se s evoluese transformaes mais modernas do mundo do dinheiro. Uma empresa que compra outraempresa com suas prprias aes tambm evita os custos dos juros.

    Redes avanadas de compensao mtua podem, da mesma forma que uma empresa pagacom aes, fazer com que seus prprios bens de capital formem a base das possibilidades de trocasmtuas. E assim no h necessidade de pagar juros. Nesse modalidade, onde ns mesmoscriamos nosso espao de crdito, tem-se, ao final, uma base mais estvel do que o sistemamonetrio normal.

    No possvel capitalizar nossas capacidades sem nos endividarmos e ficarmos escravosdos juros? No Movimento Monetrio Mosaico, deste tipo de sistemas avanados decompensao mtua que esperamos muito se quisermos, no futuro, nos livrar dos tributosao centro financeiro capitalista. No capitulo 8 poder ser visto como em Circuitos de CapitalLquido a Economia Solidria poder capitalizar suas prprias capacidades dentro de umarede independente do sistema financeiro. Isto gerar a mesma capacidade dedesenvolvimento que foi descrita por Hernando De Soto, mas sem a drenagem do dinheiropelo pagamento de juros!

  • Dinheiro e Pobreza 43

    3. DINHEIRO E POBREZA

    Existem pases ricos, existem pases pobres. Pases que prosperam e outros que se estancam.Como que isto acontece?

    Que foras concorrem para que um pas seja rico e outro pobre?

    Ser que isto ocorre por fora do destino?

    A natureza ou o tipo de meio ambiente influi?

    A existncia ou no de matrias-primas variadas pode ser determinante?

    Ou quem sabe, a natureza psquica de um povo?

    Brasil um pas pobre? Um pas desenvolvido?

    Como classific-lo?

    Pensando bem, o Brasil um pais rico. Vejamos porqu.

    O Brasil possui uma das maiores biodiversidades do planeta (Amaznia, Cerrado,Pantanal), um nvel de complexidade econmica, social e cultural que lhe permite competircom os pases mais desenvolvidos do mundo. Muitos brasileiros vivem em condiestotalmente modernas, com tecnologias e padres de vida iguais aos de moradores deNova York, Amsterdam ou Tquio.

    No entanto, por que um pas que produz 90% da sua energia eltrica est em crise enecessita do racionamento, por que a subabitao e as favelas crescem cada vez mais nosgrandes e mdios centros urbanos?

    Se temos a possibilidade e o acesso a um imensa variedade de produtos naturais, porque ainda a vidase constri to duramente?

  • Dinheiro e Pobreza44

    Por que uma pas to rico est to pobre economicamente?

    Aparentemente h outros aspectos mais importantes e que possuem um papel muitomais importante e no conseguimos distinguir.

    Nos parece que se h algo a fazer para eliminar a pobreza, seja ela no Brasil ou no mundo,temos que identificar e compreender como se gera a prosperidade

    Existe algumas condies para que a prosperidade se efetive? Nos parece que sim.

    Em todo caso, duas condies econmicas so importantes.

    Primeiro: deve existir suficiente meios de produo ou ento, estes devem ser construdosou serem adquiridos. Segundo: a organizao da sociedade tem que ser efetiva, isto ,deve haver uma boa colaborao entre os segmentos ou partes que participam do processoprodutivo, e uma especializao da produo deve ser possvel para que seus produtos eservios cheguem ao consumidor.

    Estes questionamentos tm nos mostrado que a pobreza complexa, possui vriasdimenses. H um senso comum de que as pessoas so pobres porque no se esforam osuficiente e que a pobreza algo irreversvel e aceitvel, faz parte da natureza.

    O que a realidade nos mostra que as oportunidades no so as mesmas para as pessoas.O crescimento econmico e tecnolgico no se derramou sobre toda a populao, comose esperava; ao contrrio, concentrou-se e tem gerado ndices alarmantes de aumento dadesigualdade social e da pobreza.

    Criou-se um crculo perverso de pobreza: dificuldades de nutrio inicial; desestruturaofamiliar, muitas vezes caracterizada por situaes de alcoolismo, uso de drogas, violnciadomstica e abuso sexual, falta de acesso e permanncia na escola e em atividades culturaise artsticas; expulso do mercado de trabalho. Estas carncias vo configurando umaidia mais ampla, que a da excluso social, que se auto-reproduz. Torna-se cada vez maisdifcil sair do crculo e as distncias sociais vo aumentando.

    Com isto, queremos desmistificar um outro senso comum, de que a pobreza produto decarncias exclusivamente materiais, que eqivale to somente diferena de acessomonetrio. Esto inseridas em todo um contexto de desvalorizao das culturas e sabereslocais, matando a identidade do povo e impondo valores consumistas e individualistas, aruptura de processos coletivos e do sentimento de pertencer a grupos sociais e comunidade. Sem razes e sem referncias significativas, o povo vira massa de manobrapara as grandes peripcias econmicas. Construir caminhos para resgatar o seuprotagonismo o nosso objetivo maior.

  • Dinheiro e Pobreza 45

    Por isto, sem perder de vista todas estas dimenses que envolvem a pobreza, a propostadeste livro nos leva a enfoc-la em sua dimenso monetria a partir de quatro situaesou explicaes:

    1. Pobreza pela falta de dinheiro;

    2. Pobreza pela incapacidade para poupar ou investir;

    3. Pobreza pela juros que levam perda do valor do dinheiro;

    4. Pobreza pela perda do poder aquisitivo.

    3.1 RECONCEITUANDO RAZES DE POBREZA

    Populaes e pases bem organizados economicamente tem a possibilidade de seespecializar e otimizar sua produtividade e produo. O inverso tambm verdadeiro.Pobreza pode ser uma conseqncia da falta de especializao gerada pela falta deorganizao econmica. Especializao e organizao dependem muito da presena desuficiente dinheiro disponvel na comunidade.

    obvio que existe uma falha sistemtica no sistema monetrio, porque uma quantidadesignificativa de dinheiro est faltando nos lugares onde h mais necessidade de se organizar.Alm disso, o problema da dvida externa dos pases pobres vem intensificando este drama,pois sabe-se que o hemisfrio sul envia mais dinheiro por ano para os pases do norte porpagamento de amortizaes e juros de suas dvidas, do que recebe deles como apoio.Estes pagamentos implicam em defasagem monetria e a diminuio das possibilidadesde intercmbio, especializao e organizao local.

    Mas por que o dinheiro flui para outros lugares e foge dos lugares onde mais necessitado?

    As explicaes so mltiplas e complexas. Aqui nos interessam as que so diretamenteligadas ao sistema monetrio. A seguir descrevemos quatro aspectos que de certo modocaracterizam a pobreza e organizam o cenrio que vivemos:

    Pobreza como resultado da perda do poder aquisitivo

    Um bom exemplo de como um sistema monetrio que funciona mal pode criar pobreza a Europa dos anos 30. A Grande Crise de 1929, que comeou com a quebra da bolsa deNova York, prejudicou todos os setores econmicos. A pobreza nasceu inesperadamenteda noite para o dia. Existia muita capacidade mas ela estava ociosa. Fbricas vazias, pessoasdesempregadas. As pessoas e seus governos no tinham conhecimento econmico paracolocar a capacidade disponvel em bom uso. E quem no tinha recursos a receber, logono tinha para gastar.

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    John Maynard Keynes, um famoso pensador econmico da poca, apontava que a perda depoder aquisitivo significava a perda de possibilidades de trocar bens na comunidade. Quandoa comunidade no troca, suas capacidades econmicas no so otimizadas. A proposta doKeynes para os governos empobrecidos: gastar! Gastar mais dinheiro, para que a sociedadetenha ingresso, e assim criar uma circulao de bens e servios. O dinheiro gasto pelogoverno seria resgatado adiante, quando ele retornaria como pagamento de impostos.

    A crise na Europa felizmente durou menos de 10 anos, fazendo com que as pessoas pudessemrecuperar e utilizar capacidades produtivas antigas. Ainda tinham no seu consciente coletivoa lembrana de uma economia dinmica.

    Mas imaginemos o que teria acontecido se esta depresso tivesse durado varias geraes?Seguramente teriam acontecido dois fatos: primeiro, como efeito direto, falta de dinheiroem circulao, e por conseqncia, desorganizao econmica. Segundo e por conseqncia,falta de conhecimento industrial e individual no sentido de saber usar maquinas para produzirou das pessoas saberem se organizar para trabalhar juntos. Numa crise prolongada, asperdidas no so s econmicas, mas tambm a destruio, ou nao-desenvolvimento, dasestruturas sociais e de certos aspetos da conscincia humana. Esta a atual situao damaioria das pessoas que vivem nos pases subdesenvolvidos no hemisfrio Sul.

    A falta de dinheiro para intermediar trocas no cria apenas uma falta de consumo, masmuito mais: uma falta de interao e, ass