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DISTRIBUIÇÃO GRATUITA ANO II ZE RO E D I ç ã O N O V D E Z J A N

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distribuição gratuitaano ii zero

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N o V d e Z J A N

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cena7.art.br

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aLLan da rosa

VaLÉria aLVes

Luciane r.amos

aLeXandre bisPo

sidneY santiagoneLson inocÊncio

LiLiane braga

mÁrcio barbosa nabor Jr..

quilombo

a revista o meneLicK 2º ato é uma publicação trimestral da mandeLacreW comunicação e FotograFiarua roma, 80 – sala 144 / ceP: 09571-220são caetano do sul/ sP - tel. (11) 99651 [email protected]

direção e ProJeto grÁFiconabor Jr. l mtb 41.678

comerciaLmaria cecília braga

diagramaçãoVictor Hugo

conseLHo editoriaL, reVisão e Leitura crÍticanabor Jr., christiane gomes, alexandre bispo e renata Felinto.

distribuição gratuita em centros culturais, galerias de arte, shows, festas, feiras, festivais, casas noturnas, lojas e zonas de conflito.

Foto

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suPer consciÊncia negra, 2012aquarela, nanquim e acrílica sobre papel30 x 25 cm artista: renata FeLinto (cubo-preto.blogspot.com)

inaicYra FaLcão

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6 O MENELICK 2º ATO

operação

aláfia

Capi tane-ada pelo músico, pro-

dutor, DJ e agitador cultural Eduardo Brechó, e seu generoso

acervo de discos com os mais varia-dos swings do que conhecemos como

música negra para dançar, o coletivo Alá-fia (formado há pouco mais de um ano e

meio na cidade de São Paulo) com seus sho-ws concorridos, performances elogiadas e par-

cerias cults, encerra o ano como uma das gratas revelações da movimentada cena independente musical paulistana.

“Nossa proposta está bastante ligada à luta da juventude negra e à cultura de quebrada. É música afrourbana na essência. Até agora,

Texto Nabor Jr. / Colaboração Liliane Braga (Quisqueya Brasil) / Foto diana Basei (dianabasei.com)

todos nossos shows e trabalhos têm sido li-gados a essa estética. O nosso público nos reconhece nesse lugar também. Desde o co-meço da banda não queríamos ser levianos ou superficiais nos assuntos e temas que tra-tamos”, enfatiza Brechó.

A previsão do grupo é a de que o lançamen-to do aguardado combo “CD, disco virtual e vi-nil” (que já esta sendo gravado) aconteça ainda nos primeiros meses de 2013 através de uma recém fechada parceria com a YB Music (que já produziu nomes como Coletivo Instituto, Curu-min, Nação Zumbi, Turbo Trio, Clube do Balanço, Trio Mocotó, Z´África Brasil entre outros).

Porém, a curiosidade por trás da jovem e

até aqui bem sucedida trajetória do grupo está no coringa que o coletivo carrega nas mangas, semelhante ao que – guardadas as devidas pro-porções - na recente história da música inde-pendente de São Paulo, através do olhar aten-to do produtor Daniel Ganjaman fez bombar o Coletivo Instituto e o rapper Criolo: a conver-gência de interesses sonoros aliada a uma bem ajustada união de talentos individuais em torno de um projeto em comum. Além de uma boa pitada daquilo que o poeta Vinícius de Moraes costumava chamar de: “a arte do encontro”. E é justamente neste ponto que reside os mistérios que envolvem a “cósmica” formação do Aláfia.

Para além da musicalidade do grupo, um

bem dosado e autêntico conjunto de referências da música negra tradicional e contemporânea, especialmente a produzida na diáspora ameri-cana e que resulta em um som com forte “pega-da” jazz, funk e rap, aliada a potentes pitadas dos batuques presentes nos terreiros de can-domblé, a química musical que cerca o Aláfia está intimamente atrelada ao que os próprios músicos do coletivo definem como “providên-cia dos encontros”.

“Cada um de nós aqui tem um interesse pelas questões do universo afro em todos os seus sentidos, sejam elas religiosas, culturais, sociais. Alguns mais outros menos. E por algum

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motivo, que eu particularmente não sei explicar qual é, essas pessoas acabaram se encontrando e desenvolvendo uma parada que tem a ver com elas próprias, uma linha só”, afirma Xênia França, uma das vocalistas do grupo que ainda conta com os nomes de Jairo Pereira (voz), Lu-cas Cirillo (gaita), Alysson Bruno (percussão), Gabriel Catanzaro (baixo), Pipo Pegoraro (gui-tarra), Filipe Gomez (bateria), Gil Duarte (flauta e trombone) e do já citado “agregador” Eduardo Brechó (violão e voz).

O barulho que a recente união do Aláfia causou na cena black indie de Sampa pode ser conferido já na primeira apresentação do grupo,

em maio de 2011, no antigo Bar B, localizado na região central de São Paulo: casa cheia e gente pra fora logo na estreia do grupo. A partir de então, o que era para ser uma apresentação iso-lada fruto de uma imersão musical de um grupo de músicos com interesses estéticos em comum, transformou-se em uma mini-temporada, no próprio Bar B, com apresentações estendendo--se por seis meses. Estava formado o Aláfia (que na língua africana iorubá significa felicidade e caminhos abertos).

“Antes deste show nós experimentamos muitas coisas, gravamos, ensaiamos. Pessoas foram chegando, outras saindo. A princípio, quando a gente idealizou o Aláfia, nós não ide-alizamos a banda, na verdade a gente idealizou

o espetáculo, o show”, recorda-se Brechó.

De lá pra cá, o noneto que traz em sua me-mória coletiva inspirações sonoras que vão do batuque de umbigada e os ensaios de escola de samba até o jongo e os bailes black, já se apre-sentou em algumas das mais hypadas casas da noite paulistana, tais como Matilha Cultural, Studio SP, Tapas Club, Zé Presidente e Centro Cultural Rio Verde. Também deram as caras nas quebradas da zona sul, leste, do interior de São Paulo e em festivais como Cidade Sonora, Virada Cultural, Sarau das Artes (promovido pelo SESC Interlagos) e teve a agenda de shows passeando pelas páginas dos principais guias

culturais da cidade.Entre as boas parcerias já firmadas, que

passam por nomes como o dos Mc´s Rincón Sapiência, Sombra e do poeta Zinho Trin-dade, destaque para a música Ela é Favela (Brechó, Lurdez da Luz, Jairo Pereira e Xê-nia França) gravada com a versátil cantora e rapper Lurdez da Luz (indicada no ano de 2011 ao Vídeo Music Brasil na categoria Me-lhor Videoclipe com o single Andei) e lança-da no álbum Coletivo Urbano – Volume 1 (2012), coletânea que reuniu para sua gravação, no SESC Pompeia, artistas representativos da música de São Paulo, como Rômulo Fróes e Kiko Dinucci.

Passados pouco mais de um ano e meio

de ensaios, apresentações e alguns poucos trabalhos postados na internet, fica claro que muito mais do que providências e encontros (casuais ou não), é a sonoridade ímpar que aos poucos vem sendo construída pelo Alá-fia (procure pelas ótimas O Homem Que Virou Música, Pera Lá, Nas Voltas do Baile Black) a “chave do negócio” de uma ainda promissora união que tem repertório para dar samba. Ou o verdadeiro xirê (forma como é conhecida a reunião dos orixás nas casas de can-domblé) idealizado por Brechó. Vale a pena acompanhá-los em 2013.

Aí fala Aláfia!

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Jairo Pereira é artista multimídia, com for-mação em artes dramáticas pela Universida-

de de Mogi das Cruzes. dentre vários trabalhos no teatro, fez parte da Cia. Parnas, da diretora Catherine Marnas, na França. Também já passou por países como Grécia e Angola com espetácu-los teatrais. Atualmente mantém na internet o canal diário Preto, assistido por cerca de 6 mil pessoas semanalmente.

Baixista com mais de 10 anos de carreira, “sempre na música popular”, Gabriel Catanzaro acumula

no currículo uma série de shows e gravações de trilhas para teatro e filmes. integrou nos anos noventa o gru-po Fulminantes Mc’s (que conquistou o primeiro lugar do Festival de Novos Talentos da Secretaria de Cultura do estado de São Paulo na categoria Black Music).

Concorrido músico e produtor musical, Pipo Pegoraro juntou um time tão talentoso para

fazer os instrumentais do seu segundo disco solo Taxi Imã (2011), que pouco depois das gra-vações esses músicos formaram uma das bandas mais comentadas do momento, o Bixiga 70. de quebra, Taxi Imã ainda foi eleito pela MTV e pelo site UoL como um dos dez melhores ál-buns de 2011.

Cantora, compositora e modelo, Xênia Fran-ça começou sua carreira na cena paulistana

em 2007 cantando sambas e samba-rock no ex-tinto  Capadoxe. em 2009, foi convidada pelo ra-pper emicida para gravar Volúpia na mixtape Sua mina ouve meu Rap também e mais tarde gravou Isso não pode se perder na mixtape emicidio. em 2011 dividiu o palco do Festival Black na Cena com o rapper Slim Rimografia. Também integra os vo-cais da banda Mr. Chocolate.

Grande agregador do grupo, Eduardo Brechó é poeta, dJ, compositor, produtor e presença fre-

quente nos palcos da noite paulistana e nos saraus das bordas da cidade. Conhecido por suas poesias, composições e forte atuação periférica, já teve mú-sicas gravadas por artistas independentes da cena carioca e recentemente teve uma de suas composi-ções Quintal (composta em parceria com os demais integrantes do Aláfia), entoada pela cantora Karla da Silva, no programa The Voice Brasil, da Rede Globo.

Filipe Gómez é multi-instrumentista e produtor musical. Já passou por diversos estúdios e pro-

dutoras de São Paulo trabalhando como técnico de som e operador de áudio. Também gravou e produziu dezenas de bandas, jingles e trilhas para filmes publi-citários, curtas e documentários. É sócio na produtora Timpani Áudio e responsável pelo áudio do programa estúdio Showlivre (showlivre.com) e do programa Pode isso? (yahoo.com.br)

“Nascido e criado” dentro de um terreiro de candomblé, onde também se iniciou

na percussão, Alysson Bruno já passou por tradicionais grupos paulistanos difusores da música afro-brasileira, tais como: Núcleo de Música do Abaçaí, Kamberimbá e Batucada Tamarindo. em 2003, participou da gravação do elogiado Agô, da orquestra Heartbreakers. Atualmente é um dos percussionistas das con-corridas aulas de dança afro da Sala Crisan-tempo, na Vila Madalena.

Gaitista e compositor, Lucas Cirillo fundou no início dos anos 2000 o coletivo de músi-

ca instrumental improvisada FRiGAZZ. Também participou das gravações do dVd especial Luis Gonzaga 100 anos (no Auditório ibirapuera) pro-movido pelo Canal Brasil em parceira com a gra-vadora YB. Já dividiu o palco com nomes como dj Tudo, Maracatu estrela Brilhante e ellen oleria.

o flautista cearense Gil Duarte (que não está na foto), líder da banda Gil duarte e

Sistema Asimov de Som,  já integrou a banda  SoulZé e gravou na trilha sonora do filme Xin-gu (2012), juntamente com Antônio Pinto. Tam-bém tem no currículo participações na banda Monjolo (SP).

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individualmente, a maioria dos integrantes do aláfia têm no currículo bons serviços prestados ao cenário musical independente de são Paulo. confira aqui que é quem neste xirê.

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COMO SURGIU O PROJETO? EDUARDO BRECHÓEu tinha umas composições minhas que

eu sempre tive o desejo de reunir um pessoal pra tocar, mas pessoas que pudessem ter algum tipo de identifi cação com essas músicas que eu fazia. Todo esse pessoal que hoje está no grupo eu já vinha fazendo algum tipo de contato para produzir algo que nós não sabíamos exatamen-te o que era, mas que era algo que nos unia. Eu estava apenas aglutinando pessoas, mas sentia que todos tinham coisas em comum e que jun-tos somaríamos.

Me lembro que no fi nal de 2010, no aniver-

sário do Jairo, eu estava na casa dele, em Suza-no, e nós pegamos um caderninho e escrevemos algumas coisas, projetamos algumas coisas. E isso foi se desenvolvendo até maio de 2011, quando nós fi zemos o primeiro show. Essa for-mação aqui (a atual) se fi xou em maio de 2011, praticamente. Apenas o Gil e o baterista (Filipe Gomez) chegaram no show seguinte. Mas foi especialmente após a gravação da música Ela é Favela que começamos a se fi xar mais como banda, com ensaios e tal.

JAIRO PEREIRALembro que um dia estávamos fazendo um

som com a MPC (Media Player Classic) quando um amigo nosso que trabalha com vídeo e tal, o Pedro Watanabe, veio e trouxe um amigo. Aí estávamos conversando sobre vídeo e ele, Wa-tanabe, montando uma base qualquer. E de re-pente o amigo dele disse que tocava uma gaita. Eu falei “como assim?” Ele foi ao carro, pegou a gaita e naquele dia foi a primeira união sonora

que mostrou uma cara de Aláfi a com uma mú-sica que hoje em dia inclusive está nosso reper-tório, que é Em Punga. O cara que pegou a gaita foi o (Lucas) Cirillo.

COMO ERAM OS ENCONTROS NO INÍCIO DO PROJETO?

LUCAS CIRILLOA antiga casa do Eduardo (Brechó), na Vila

Madalena, no quintal do seu João, que era onde nos encontrávamos no início, era como um por-tal, porque você entrava tinha uma sala cheia de discos, as ideias comendo soltas. Ficávamos trancados durante horas. Era tipo um laborató-rio. Foi um momento muito produtivo.

XÊNIA FRANÇA...(nossos ensaios e encontros na casa do

Brechó) era uma espécie de momento “Novos Baianos”. Eu lembro nitidamente quando a gen-te começou que não tínhamos hora para dormir ou para acabar, a gente estava sempre na casa do Eduardo, e situações muito loucas acontecendo dentro de um ambiente só porque a gente que-ria fazer uma parada que a gente não sabia bem o que era, nós só queríamos que aquilo existisse, se materializasse. E de tanta vontade rolou.

COMO FUNCIONA O PROCESSO

DE COMPOSIÇÃO DOS ARRANJOS? LUCAS CIRILLOVou falar em ordem cronológica mais ou

menos como funciona nosso processo de ar-ranjo das músicas. Primeiro, chega o Eduardo com o violão e mostra a música para gente, ou, se não, vem o Eduardo com uma música que já tem uma base feita na MPC pelo Jairo. Aí vai o Gabiru (Gabriel Cantazaro) pega o baixo e co-meça a dedilhar. Aí o Eduardo fala “não, vamos por aqui, ou por ali”. Depois vem o Alysson e chega com toda a pesquisa dele...

ilustração gil duartebecodapoeira.tumblr.com

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EDUARDO BRECHÓA maioria das músicas que executamos já

são antigas. Já tem uns cinco anos por aí. E eu já as pensava de algumas maneiras. E quando che-gou ao Aláfi a nós temos uma instrumentação e um tipo de formação. Então as músicas servem para o nosso som, e não o nosso som vai servir para a música.

Hoje nós pensamos muito por setores, nú-cleos, e isso sem dúvida foi o ponto crucial para o crescimento individual da banda.

Quando falo que dividimos por setores,

quero dizer a gente separa a música por naipes: a sessão rítmica, a harmonia e as vozes. Nós queremos muito nos aprofundar nisso daqui pra frente que é o lance de conseguir trabalhar separado todas essas coisas e depois trabalhar-mos juntos. Porque hoje a gente trabalha tudo muito junto e acho que as coisas que a gente mais gosta foram as coisas que conseguimos fa-zer em separado. Então por exemplo, o Cirillo chegava com o Pipo e falava: “vamos fazer essa frase aqui”. Então eles faziam os dois, ali, sepa-radinho, fazendo isso, e quando nós nos juntá-vamos era muito legal. Porque eles tinham pego uma estrutura e se dedicado exclusivamente a aquilo e não era algo imediato como na hora da criação. Então fi cou mais ou menos assim: Gil, Cirillo e Pipo.

O DISCO DE VOCÊS FOI POSTER-

GADO VÁRIAS VEZES. QUAIS FORAM OS IMPECILHOS PARA A CONCLU-SÃO DESTE PROCESSO?

LUCAS CIRILLONossa primeira vontade era gravar o disco

ao vivo, mas não rolou. Estávamos com a ideia de fazer uma viagem para fazer o disco, fazer o disco viajando e tal. Nos armamos, cada um deu um jeito no seu trampo, ou deu um cambau mesmo, pegamos férias de uma semaninha, en-fi m. A gente sempre houve a lenda, os “Novos Baianos” gravaram um disco assim, fulano tam-bém gravou. E a gente foi e vimos que quatro dias para gravar um disco com uma banda com nove pessoas não ia dar muito certo. Mas foi bom pra gente se conhecer melhor. Voltamos também com bastante pressa pra gravar o disco e entramos no estúdio.

XÊNIA FRANÇANo palco, a gente sente um défi cit de não

conseguir passar nossa mensagem musical para as pessoas da maneira que a gente gostaria. A vibe a gente consegue transmitir. Talvez isso não seja questão mais importante, mas para nós, como músicos e pessoas que estamos nos dedicando a um processo cada um aqui com sua segurança de referência do que gostaria de colocar para fora, no palco a gente sente uma necessidade de dar para as pessoas uma coisa que às vezes não acontece, mas que no disco a gente gostaria de passar.

JAIRO PEREIRAA banda é nova, nossa união é nova. E no

meu modo de ver nós tivemos a pretensão de achar que poderíamos fazer um trabalho já no começo, porque a gente tinha uma idéia mui-to amadurecida do que poderia ser o Aláfi a. Mas dentro desse tempo de idas e vindas, das possibilidades e não possibilidades, isso só nos fez crescer mais porque nos mostrou caminhos mais possíveis e mais ricos.

EDUARDO BRECHÓEstamos gravando o disco já faz um ano e

pouco. O disco já rodou, bateu, foi, voltou. A concepção inicial do trabalho travou muito essa questão do disco. A gente começou a trabalhar o disco totalmente em oposição ao nosso espetá-culo. Porque a gente não conseguia reproduzir o espetáculo no disco. Então esse é um dos mo-tivos principais do disco não ter saído ainda. É claro que, para gente, como banda, é um pouco afl itiva essa espera, porque existe uma expecta-tiva grande de todo mundo aqui. Mas, enfi m, ele vai sair agora no início de 2013.

É POSSÍVEL DEFINIR O ALÁFIA? EDUARDO BRECHÓSer afrourbano é uma consequência natu-

ral. Tem o conceito, mas a princípio é uma con-sequência dos nossos interesses. Naturalmente, cada um de nós, de uma forma ou de outra já estava nessa caminhada. Individualmente nós já tinhamos nossas vivencias diaspóricas.

É claro que há uma direção. Por isso que o

repertório do Aláfi a tem a ver com a coisa míti-ca. Na minha concepção, tem uma coisa de xirê. Nós tratamos de temas e dos mitos em que nós nos baseamos na tradição. A mesma cosmovi-são mítica a gente tem no espetáculo, de uma maneira urbana.

No espetáculo tem essa coisa afro, da qual nós

podemos nos desprender de repente, mas a estru-tura, a mítica, que é afro pelas nossas infl uências in-dividuais, essa estrutura mítica deve permanecer.

Assista ao vídeo com a entrevista omenelick2ato.com

saiba + sobre a bandafacebook.com/aifalaalafi a

NABOr Jr. é jornalista especializado em jornalismo cultural e fotógrafo. Fundador e diretor da MANdeLA-CReW Comunicação e Fotografi a e da revista o MeNeLi-CK 2º ATo

LILIANE BrAGA é jornalista, mestre em Psicologia Social (PUC-SP), produtora cultural e fundadora da Quisqueya Brasil (projetos afro-diaspóricos de cultura e educação) / quisqueyabrasil.com.br

PArA VEr

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CONsCIêNCIA

NEGrA EM CArTAz

20ANOs DEPOIs

Texto Nelson inocencio

Em tempos de ações afirmativas e, obvia-mente, cientes de toda a discussão que tais po-líticas públicas suscitam, nos parece oportuno revisitar o processo que antecedeu a este mo-mento histórico, protagonizado pelo movimen-to negro e reforçado pelas parcerias deste com outros segmentos da sociedade civil no curso das últimas décadas do século 20. A leitura so-bre os antecedentes das políticas de Estado di-recionadas à população afro-brasileira aqui pro-posta tem como referência a perspectiva de uma cultura visual alternativa ao modelo eurocêntri-co, pensada a partir da militância anti-racismo. Para tanto, aceitei o tentador convite formulado pela revista O Menelick 2º Ato no intuito de re-ver parte do texto referente ao livro Consciência negra em cartaz, resultado de minha disserta-ção de mestrado concluído em 1993, quando a conjuntura política era bem mais árida.

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12 O MENELICK 2º ATO

O referido trabalho se assentava na análise de cerca de trinta cartazes produzidos nos anos oitenta e cujo foco era a valorização da imagem dos afro-brasileiros na busca de representações visuais que não projetassem este segmento como destituído de suas qualidades. Não por acaso, o terreno da cultura visual continua a ser até hoje, reproduzindo as palavras de Nilma Lino Gomes (professora da Faculdade de Educação da Uni-versidade Federal de Minas Gerais) ao abordar questões de imagem, uma permanente zona de conflito. E eu acrescentaria que nesta seara as imagens elaboradas pelo pensamento hegemô-nico, as quais nos formam e também nos colo-nizam, não passam mais desapercebidamente. Enfim, tratar deste assunto é percorrer laboriosas construções políticas, ideológicas e estéticas.

No que concerne ao movimento negro pro-priamente dito, vale dizer que, do ponto de vista conceitual, preferimos adotar a generosi-dade de Lélia Gonzales que alega existirem vá-rios movimentos no âmbito do que chamamos movimento negro. Assim sendo podemos de-senvolver algumas reflexões reconhecendo as circunstâncias que envolvem este movimento dentro do espectro com o qual estamos lidando.

Certa vez participando em uma mesa de debate em evento referente à presença negra no cinema, ouvi um crítico da área afirmar que do seu ponto de vista o movimento negro era uma cópia mal acabada do modelo estadunidense. Certamente divergi do seu argumento tecendo considerações sobre a dimensão do olhar ati-vista no caso brasileiro. Procurei explicar que acerca das visões para além das fronteiras na-cionais o referido movimento procurava esta-belecer vínculos identitários não apenas com a luta dos afro estadunidenses, mas dentro do seu projeto havia espaço suficiente para outras aproximações. A proposta do presente artigo é a de abordar esta resiliência que traduz, em certa medida, este movimento e contradiz o ar-gumento de meu colega.

Por qual razão rejeito a ideia de que o mo-vimento negro nascido aqui seria uma espécie de fake daquele originado nos Estados Unidos? Como um fenômeno que é produto da contra-cultura nacional o movimento negro brasileiro contemporâneo assumiu um posicionamento que implica na ampliação do olhar como se a militância enxergasse o mundo a partir de uma lente grande angular. Isto possibilitou a cons-tituição de uma macrovisão capaz de agregar tanto o local quanto o global.

Da perspectiva local as entidades negras se predispuseram a rever o passado (talvez inspi-radas pelo significado do ideograma Sankofa). Os grupos organizados afirmaram a existência de lutas coletivas históricas como formação de quilombos, revoltas urbanas, irmandades religiosas, imprensa abolicionista, criação de agremiações e clubes comunitários no período pós-abolição, bem como valorizaram experi-ências posteriores a exemplo da Frente Negra Brasileira e do Teatro Experimental do Negro. Tais ações terminaram por colocar sob suspeita a intoxicada historiografia oficial, habituada a tornar invisíveis ou tratar com demérito as lutas populares do segmento negro.

As ações em âmbito local foram mais além, objetivando destacar que a população negra não se constituía em minoria, conforme os dados censitários existentes durante o regi-me autoritário. Aliás, diga-se de passagem, no período da ditadura, como qualquer assunto que perturbasse a “ordem”, a discussão sobre racismo também se constituía em subversão. Militantes negros atuaram na clandestinidade enfrentando dificuldades mesmo entre os mo-vimentos revolucionários também entorpeci-dos pelo fenômeno que Luiza Bairros chama de determinismo econômico, ou seja, a crença de

que todos os males de nossa sociedade advêm da luta de classes ou das iniquidades de cunho socioeconômico. Mesmo após o término do re-gime de exceção, ainda que a contribuição dos movimentos de contracultura no ocidente tives-se dado visibilidade à existência de outras ca-tegorias sociais para além da classe, está lógica continuou a perseguir a discussão política sobre relações raciais no país a ponto da pesquisado-ra Suely Carneiro afirmar em certa ocasião que: “Entre esquerda e direita eu continuo preta!”.

Em síntese a trajetória do movimento negro contemporâneo pode ser subdivida da seguinte maneira: em primeiro lugar o protesto/ denún-cia, a fim de desconstruir o mito da democracia racial. Em segundo lugar o projeto/ proposta

que significava pensar o país a partir do olhar ativista. Neste estágio são referencias A Con-venção do Negro pela Constituinte em 1986 e a Marcha Zumbi dos Palmares: contra o racismo, pela cidadania e a vida em 1995 (Tricentenário de Zumbi). Em último vem o período da exe-cução/gestão pública, fato que apesar de signi-ficativo, da perspectiva das políticas públicas de combate ao racismo, não deixa de revelar tensões na relação entre movimento social e Es-tado. Se por um lado há um ganho em termos de dimensão simbólica quando negros, que são referências da militância, passam a assumir car-gos públicos, por outro se instaura a sensação de cooptação política, posto que na condição de gestores suas ações ficam condicionadas aos programas políticos partidários que nem sem-pre estarão em consonância com as reivindica-ções do movimento social. Contudo, há que se considerar que caso essas pessoas não ocupas-sem os espaços conquistados (as chamadas bre-chas no entendimento gramsciano), outras cer-tamente os ocupariam. Trata-se inegavelmente de uma questão paradoxal e complexa que não deixa de ser um dos desdobramentos da luta anti-racismo no Brasil.

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Após falarmos sobre o desenvolvimento de uma consciência negra constituída a partir da experiência local importa destacar como o mo-vimento negro contemporâneo brasileiro man-teve-se concomitantemente informado acerca dos acontecimentos históricos internacionais desde a colonização. Certamente houve a rever-beração de vários desses episódios no seio da militância negra formada em nosso país.

Aqui nas Américas podemos tomar como marco a memória da revolução em San Do-mingo, atual Haiti, comandada por Toussaint L’Ouvreture, fazendo daquela ilha o primeiro território livre do jugo colonial no chamado Novo Mundo, fato que se deu na transição do século 18 para o século 19. Também do lado de cá vamos observar posteriormente a contri-buição do jamaicano Marcus Garvey e a emer-gência do pan-africanismo, protagonizado por ele e por outros como William Du Bois, cujo intuito era o de proporcionar uma aproxima-ção, sobretudo, ideológica entre as sociedades afro-americanas e africanas no início do século 20. Aqui é oportuno fazermos uma pausa para explicar que, por afro-americanas compreende-mos, assim como a antropóloga estadunidense Sheila Walker, toda essa complexa configuração das comunidades negras no Brasil, Colômbia, Venezuela, Equador, Peru, Uruguai, Guiana, Suriname, Cuba, Haiti, Jamaica, República Do-minicana entre outras nações, além, obviamen-te, dos Estados Unidos, mas não restringimos o conceito de afro-americano a este último país, posto que as noções de identidades americanas precisam transcender as fronteiras de um úni-co Estado. O uso do conceito americano para aludir somente aos Estados Unidos é, portanto, fruto da herança colonial.

Na primeira metade do século 20 o mo-vimento conhecido como Negritude que teve como principais referências Aimé Cesaire, da Martinica, e Leopold Sedar Senghor, do Sene-gal, não passou desapercebidamente aos olhos do ativismo negro no Brasil. Nos anos cinquen-ta eclodem as lutas de descolonização africana.

100 anos de mentira. Grupo União e Consciência

Negra, Arte: iran, 1988.

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14 O MENELICK 2º ATO

colônias rebeldes e internas a exemplo da Revol-ta dos Cravos que atingiu na base o legado sala-zarista. Outras independências viriam mais tar-de a exemplo do Zimbabwe e Namíbia. Vários países africanos se tornaram independentes das metrópoles europeias. Nos embates políticos além de N’Krumah notabilizaram-se persona-lidades como Amilcar Cabral, Agostinho Neto, Sekou Touré, Jomo Keniatta, Samora Machel, Eduardo Mondlane entre outros. O fenômeno

da independência fez surgir a Organização da Unidade Africana como instrumento norteador das relações entre as nações livres que nasciam naquele momento. Todavia, ainda perdurava o apartheid na África do Sul ceifando a vida de milhares de pessoas, algumas das quais se cons-tituíam em lideranças importantes como Steve Biko, protagonista do Movimento da Consciên-cia Negra. A derrota daquele nefasto regime só

No processo deflagrado, Ghana sob o governo de Kwame N’Krumah, se torna o primeiro país independente. Neste fluxo acontecem várias emancipações, às vezes pela via da negociação, às vezes pela via do conflito armado. O período de descolonização continuou pelos anos seten-ta com a vitória pelas armas de Angola, Guiné--Bissau, Cabo Verde e Moçambique. Portugal manteve-se no atraso não acompanhando as mudanças. O governo colonial luso sofreu der-rotas externas nos enfretamentos bélicos com as

o futuro também precisa ser negro. Coordenadoria especial do Negro – CoNe. Prefeitura Municipal de são Paulo. Foto: João Roberto Ripper/ Agencia F4.

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O MENELICK 2º ATO 15

aconteceria no apagar das luzes do século 20 e sob enorme pressão internacional. O apartehid

moribundo é abolido, Nelson Mandela deixa de ser preso político para se eleger presidente, nas primeiras eleições sul-africanas verdadeiramen-te democráticas. Mandela, no entanto, herda o ônus de governar uma nação multirracial de-pois do trauma e ainda intoxicada por décadas de intolerância imposta pela hegemonia branca. Como refl exo dessas lutas vimos ativistas afro--brasileiros registrarem seus fi lhos com nomes africanos, fenômeno que reforça a identidade com uma África descolonizada.

De volta aos anos cinquenta lembramos a luta pelos direitos civis e todos os enfrentamen-tos daí decorrentes. A despeito do que afi rmou o colega que dividia a mesa comigo no evento sobre a presença negra no cinema, menciona-do anteriormente, a solidariedade, e não sub-missão, do ativismo negro local com o protesto negro nos Estados Unidos é parte do processo, como esperamos ter argumento sufi cientemen-te no sentido de respaldar esta ideia. Sem dúvi-da a contribuição de Rosa Parks e o boicote da população negra ao transporte público, Martin Luther King e a marcha dos cem mil a Washing-ton, Malcolm X e a radicalidade necessária, ape-sar das divergências com Elijah Mohamed e os muçulmanos negros que culminaram em sua execução, Stockley Carmichael como protago-nista do Poder Negro, o surgimento dos Pante-ras Negras (Black Panther Party for Self Defen-se) e a valorosa contribuição de Bob Seale, Huey Nilton, Angela Davis e Eldridge Cleaver. Todos estes episódios fomentaram e inspiraram as lu-tas anti-racismo no mundo, inclusive no Brasil, onde a militância procurava desenvolver as es-tratégias possíveis visando superar o cinismo das elites nacionais que peremptoriamente ne-

gavam a existência de racismo em nossa socie-dade. A tática empregada por tal segmento era a de afi rmar uma pretensa fraternidade partilha-da por negros e brancos apesar das discrepân-cias históricas e sociais entre ambos segmentos.

Todas essas circunstâncias infl uenciaram a produção imagética no sentido de afi rmar iden-tidades negras de outra perspectiva. A partir do momento em que o protesto negro se adensa no mundo as identidades visuais construídas para negros passam a confl itar com as identidades visuais construídas por negros. Em outras pala-vras, as ações das elites nacionais, por exemplo, no sentido de aprisionar a população negra às imagens que a conectam ao ridículo, ao cari-cato, ao jocoso, ao exótico, algo que aconte-cia quase que impunemente, agora passam a enfrentar as vozes dissonantes, tendo que se deparar com a produção contra-hegemônica das imagens adversas. Estas constituem outro lugar de fala no qual negros não são mais ob-jetos, porém sujeitos na elaboração de referen-ciais imagéticos valorizados.

Interessa-nos olhar o alcance atual desse episódio ocorrido em um passado recente. Não foi por acaso que houve um aumento signifi ca-tivo do número de autodeclarados negros no país. Sem ilusões e ingenuidade, é obvio que devemos perceber o oportunismo peculiar, pro-duto do nosso tão celebrado jeitinho brasilei-ro, ante as possibilidades de políticas de ações afi rmativas que se avizinham. Isto também tem impacto na autodeclaração. Como afi rma a pes-quisadora Viviane Coelho, existe uma nítida diferença entre afrodescendentes e afroconve-nientes. Contudo, é preciso lembrar que mesmo antes da conjuntura atual constatava-se o des-locamento de pessoas negras que outrora não se sentiam confortáveis afi rmando uma identi-dade vinculada ao segmento de origem. O mo-vimento destas pessoas em direção à uma nova conduta marcada pelo auto-conceito positivo em relação ao grupo de pertencimento é percep-tível antes mesmo do advento das cotas raciais.

Não se trata aqui de assumir nenhum determinismo imagético, mas devemos reco-nhecer que discurso verbal articulado a um valoroso repertório de imagens propiciaram avanços insofi smáveis a ponto de percebermos mudanças de comportamento sintomáticas na população negra. É preciso não esquecer o al-

cance das imagens construídas por ativistas, ou elaboradas a partir das suas ideias. Elas muitas vezes denunciavam e concomitantemente suge-riam mudanças, chocavam e simultaneamente faziam pensar, a dor e a delícia de ser negro se refl etiam nessas representações visuais. Tudo se dava com a fi rme intenção de afi rmar o caráter não apenas nacional, mas também internacional da luta contra o racismo e ao mesmo tempo nos fazer pensar na constituição das redes de soli-dariedade entre negros, pois afi nal, de acordo com Luther King: “Fomos trazidos em diferen-tes navios, agora nos encontramos no mesmo barco”. Este barco comum também leva a bor-do os conteúdos da ideologia imagética. Ainda que, por força das circunstâncias diaspóricas, não falemos as mesmas línguas, certamente partilhamos imagens senão idênticas ao menos cúmplices entre si.

NELsON INOCENCIO é professor assistente do departamen-to de Artes Visuais, vinculado ao instituto de Artes da Uni-versidade de Brasília. É coordenador do Núcleo de estudos afro-brasileiros ligado ao Centro de estudos Avançados Multi-disciplinares da UnB. Mestrado em Comunicação com a disser-tação “Consciência negra em cartaz”, doutorando no PPG Arte da UnB, com estudo acerca do Museu Afro Brasil em São Paulo.

enciclopédia Brasileira da diáspora Africana. Nei LopesSão Paulo: Selo Negro, 2004.

Brasil: raízes do protesto negro. Série Passado e Presente nº 28 Clóvis Moura São Paulo: Global, 1983.

PArA LEr

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Imagine aquela paisagem idílica dos anos 50, o morro, a feijoada, a alegria e no rádio Noel Rosa, Elizeth Cardoso e Pixinguinha... Pois foi neste cenário que em 4 de dezembro de 1940 nasceu a atriz Lizette Negreiros, diva negra do Teatro Paulista. Fruto da união entre um ferroviário e uma doméstica, sua ancestra-lidade é marcada por misturas: de um lado a avó alemã, que fugiu da Europa para casar-se com um violonista negro e alto, do tipo canela fi na. Do outro, o avô de origem sírio-libanesa amalgamado com uma linda cabocla, que en-louqueceu e morreu de tristeza.

Primogênita de cinco fi lhos, Lizette é natural da cidade de Santos, litoral do estado de São Pau-lo. Mas, como costuma dizer, não é fi lha da praia e sim do morro, ou melhor, do alto do Morro São Bento. Foi através dos Toques (nome com que era batizado os antigos saraus promovidos por sua família) e pelo rádio de uma vizinha, onde ouvia atenta os programas de radio- teatro da época, que ainda criança passou a nutrir gosto pela arte.

Por motivos fi nanceiros, e desde cedo assu-

mindo as tarefas de cuidar dos irmãos e do lar, não pode dar sequência a vida escolar, tendo es-tudado até o quinto ano. Porém, nas horas vagas, graças ao gosto pela leitura, devorava todos os jornais que vinham da ferrovia, os livros da mãe e as inesquecíveis histórias de M.Delly - pseudô-nimo de um casal de irmãos franceses que utili-zavam este nome em muitos dos textos editados pela famosa Biblioteca das Moças (coleção de ro-mances publicada pela Companhia Editora Na-cional, no Brasil, entre 1920 e 1960, especializada em literatura para jovens mulheres).

Aos 15 anos de idade transferiu-se para

São Vicente e, a partir de então, sua vida mudou completamente. Começou a participar de progra-mas de radio como caloura e foi membro de di-versas companhias de teatro amador e profi ssio-nal da baixada santista, entre eles: Grupo Persan, Grupo Tevec e Grupo Real Centro português.

Somente em 1969 veio para São Paulo para

integrar a Cia. de Teatro Paulo Autran. E com a peça Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, fez sua passagem de atriz amadora para profi ssional. Entre as dezenas de encenações pro-tagonizadas em palcos paulistanos, destaque para os espetáculos Barco Sem Pescador (1965), O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá (1983), Antes de Ir ao Baile (1986) e Guaiú, A Ópera das Formigas (1989).

Além das mais de quatro décadas dedicadas aos palcos, Lizette também emprestou seu caris-ma, delicadeza e ímpeto dramático a Televisão e ao Cinema, onde participou de fi lmes como Eles

Não Usam Black-Tie (1981), O Baiano Fantasma (1984), Vera e A hora da Estrela (1985), de Suza-na Amaral (todos longas-metragens importantes na fi lmografi a brasileira), André Louco (1990). Na televisão atuou na TV Tupi, Rede Record e Ban-deirantes, onde participou de tele-teatros, minis-séries e novelas inesquecíveis, como Alma de Pe-dra (1998), Moinhos de Vento (1983), Os Imigrantes (1981), Papai Coração (1976), Canção para Isabel (1979), sempre imprimindo talento e soberania diante de todo o racismo, indiferença e invisibili-dade legado aos atores negros.

Em 1979 encantou o Brasil na novela Como salvar meu casamento, quando interpretou Zita (empregada irreverente que dava conselhos a fa-mília branca). O sucesso da personagem foi tama-nho que pode ser visto novamente no fundamen-tal A Negação do Brasil (2001), de Joel Zito Araújo.

No anos 80, mesmo com uma carreira já consolidada, prêmios e notoriedade, os convi-tes minguaram. Diante do quadro de total ex-clusão dos negros no audiovisual ou de uma participação sempre episódica, somando-se as péssimas condições de trabalho que eram destina-das aos artistas pretos, Lizette fez um escolha, não fazer televisão e cinema por uma questão de so-brevivência moral e assim resolveu dedicar-se ao teatro, especialmente infanto-juvenil, e ao serviço público. Tornou-se, então, curadora do Teatro In-fantil do Centro Cultural São Paulo (CCSP). E uma década depois colheu os frutos desta decisão. Nos anos 90, tornou-se uma das atrizes mais laureadas do Estado de São Paulo, recebendo prêmios como Coca-Cola, APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), APETESP (Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de São Paulo) e Tro-féu Mambembe.

Com simplicidade, discrição e fala mansa, Li-zette Negreiros, hoje aos 72 anos, respeitada como uma das grandes conhecedoras do teatro infantil de São Paulo, toca sua vida dividida entre a cura-doria de teatro do CCSP e a pesquisa estética do Grupo Ventoforte, companhia paulistana de tea-tro com a qual encenou nos anos de 2006 e 2007 o espetáculo infantil A Centopeia e o Cavaleiro, exibi-do no Brasil e em mais onze países.

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sIDNEY sANTIAGO KUANzA é ator membro da Cia. os Crespos, articulador da rede Kultafro e estudante de So-ciologia e Política (FeSP/SP).

Assista à entrevista com a artista omenelick2ato.com

PArA VEr

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Duro ver o irmão mais velho em espasmo de sangue, no chão tremendo mús-culos da cara. Mero pacote inchado, quem dividiu beliche contigo. Um fio de respi-ração, retorcido, travado, indicando que ainda tá do lado de cá da fronteira com a morte. Isso é ainda pior do que saber que o próximo é tu.

Ali, estrebuchando entre convulsão e paralisia, o mano Valagume. De tão moído na porrada já era até um ser invertebrado. Tanta culpa no cartório que um escrivão só não dava conta de sumariar o arquivo. Agora um fiapo, orelha rasgada e sola agu-lhada, peito furado de cigarro.

- Caçú, meu irmãozinho: nosso boletim de ocorrência a gente traz na pele e no CEP.– Valagume ainda forte, era só a primeira noite de zuação, cabeça esverdeada,

desenfiada da tortura vomitada dum balde. Dizia que as mulheres de farda são as piores no arrocho, mais ruim que os cana macho. Coturno miúdo mira melhor o chu-te, primazia no apertar dos bagos. Mão pintada de esmalte furou seu queixo e abriu a bochecha com lápis. Ele ia amarrado em vassouras e voltava torto, cada vez mais mutilado. Firmaram um trato medonho com a lei: Caçú só iria pro arrebento depois que Valagume tombasse de vez. Essa já foi a primeira porrada na casca quebradiça do psicológico.

- Lincha, resolve na peixeira, nem gasta munição com esses traste! - Época do povo esperneando no controle remoto, infeccionando telefone com mensagens de execu-ção pra Deus e os coronéis - Apartamento de bandido é no cemitério, quintal de bandido é a vala! - Júri de internet bate o martelo na mesa e na testa, esporra na macheza do sofá. - Hoje eu como na gamela trincada, amanhã na porcelana! - Multidão já balança a bandeira de proteção ao patrimônio. Um dia há de pagar seguro pros herdeiros, assinar com caneta tinteiro o testamento da mansão na praia, contratar a vigilância ... um dia... é só parar de trabalhar um pouco pra dar tempo de ganhar a dinheirama toda. Milhões.

Uns têm crença na guerreiragem individual, esforço de titã e de monge, alpinista de elevador pra cargo bom, subir e assinar o destino de vencedor. Outros pregam a força do povo unido, única vereda pra reverter a vampiragem e desfrutar junto de escola com lousa, banheiro sem fedô, churrasco sem miséria, beira de piscina, talvez um veleiro... Quem tem mais sapiência? Quem molha mais o pé na poça da ilusão? Caçú se perguntava quando salpicava orégano nas pizzas. Na pizzaria seu trampo, UTI de cada noite, embalsamado em molho de tomate. Lembrava do Tonho, moto-boy que adorava orégano. Tomou aço na nuca quando ia entregar uma meia calabre-sa, represália da corporação pro assassinato de um PM no Jardim Maxixe. Constou como troca de tiros a defesa da ordem. Rádio pôs entrevista lacrimogênea com a esposa do soldado exaltado, herói da família brasileira. Nenhum chiadinho de esta-ção ouviu mãe nem filha de Tonho nem de nenhum dos outros 15 que comeram fogo naquela madrugada, do Jardim Maxixe ao Jardim Cará no município de Saboão da Terra. Teve jornal que publicou foto do enterro, flash do desespero, capacete sangra-

o iLudidodo, mas ficou nisso que já tá bom pra vender.

E Valagume ali currado, bostado, depila-do, unha arrancada, dois narizes e cinco olhos na cara de tanta porrada. Espasmos antece-diam a morte que teimava em demorar mi-nutos eternos. Na despedida recebeu jantar de gala colocado na boquinha, aviãozinho na colher servindo arroz embolotado com vidro moído. E Caçú buscava paz no temporal da cabeça pra bolar sua fuga. Até aceitava caixão mas sem esse escarro todo. Sem esculacho, sem chupar nem sentar em nada à base de co-ronhada.

Inda cinco dias antes, Valagume tragava sua planta no quintal, sorrindo de criar seu pivete, encantado na pureza do filhote e na paciência de ensinar a jogar futebol de botão. Manha crescente do menino segurando a pa-lheta, o tóquinho do tôquinho no campo de madeira verde, a proeza de ir botando curveta no passe, a medida da força no dedo em dis-parar pro gol. Delícia de tomar gol da crian-ça. Pureza. - O muleque faz o gol em mim, grita gooool com braço pro alto e vem todo sorridente me abraçar, cê acredita, Caçú? Ó a inocência... Justo ni mim, do goleiro da caixinha de fósforo vazado, perdendo a decisão... meu carrasco vem comemorar comigo.

Juntava toda famiage pra ver o guri in-ventar o dia e mostrar a magia do óbvio nas suas vidas, perguntar se o zero é o nada ou é o muitão do número mil. Caçú querendo tra-quinar, viajar na ideia com o sobrinho, mas perante os adultos se limitava a observar, tra-vado na muralha da sua timidez, quietinho.

- Coronel, o senhor destoa da média. Tem ti-rocínio, habilidade admirável de comando, domi-na a medida da força no dedo em disparar pro necrotério. Bem superior à inteligência desses seus jagunços que atiram porque só pensam em promoção, em bônus caveira. – diria baixinho o sussurro na orelha do patrício - Apesar do con-tinente que nos separa entre meu moleton e seu colete à prova de balas, nossa cor nos une, com-preendo sua grandeza. - Caçú pintava na mente a fala garbosa de comício que deveria pro-nunciar mas que sua sem-gracice não permi-tia. Assim ganhou consideração na quebrada, a sabedoria de quem fala pouco. Só ele sabia o quanto queria contar... e a saliva fervendo na boca, engripada na vergonha de dizer.

teXto aLLan da rosa

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Respirou, tentou prorrogar sua condução pro inferno, soltar a letra pro coronel, mas sua voz saiu ganindo, baixinha. Nos pés, o resto-lho do mano velho Valagume ainda gemia.

Tantos julgavam a arrogância de Vala-gume, o gosto de submeter. Mas Caçú desde pequeno sabia, sabia e não entendia, que se alguém abrisse canal de misericórdia na hora do sopapo, aí seu irmão já cancelava qualquer arreio, não maltratava. Quem pedisse descul-pa com alma no olho ganhava breque no cas-tigo e brinde de saúde.

Assim, Caçú tinha que arrematar de uma vez aquela agonia do irmão destroçado no chão, terminar aquela bagaceira, mas não po-dia dar o tempo de Valagume olhar clamando piedade, senão não conseguiria justiçar. No desespero quis chamar o coronel prum par-ticular, balbuciou, mas o que saiu já foi rouco morrendo na boca. Palavra tremida evaporan-do a cada sílaba... até veio a atenção do coro-nel, mas num soslaio fingindo pena, rebaixan-do inda mais o fraquejo de Caçú.

Então numa faísca de respiro Caçú voou e sentou o pé na boca de Valagume. Essa bo-tinada arrancou dois dentes que se entalaram na goela do mano. Caçú feito um centroavan-te de pebolim no bar do Quentura, sede do Zulu Futebol Clube em Saboão da Terra. Fi-nou o irmão mais velho, findou agonia.

Foi a dinamite pra atenção dos fardados. O coronel encarou Caçú, o próximo do pau-de-arara, mas timidez nenhuma azucrinou o mais novo. Desatou a voz no volume pro gal-pão todo entender qual era tua panca:

- Vacilão! Era meu irmão mais velho, me en-sinou o beabá do proceder mas era vacilão. Teve os remédios dos caminhos na mão e negou. Sabia que era de sua necessidade mas negou. Coronel, eu tenho uma proposta pra ti, você que sobe la-deira e desce viela caçando sabe que sempre tem uma mira apontando pra tua orelha. Tu vai girar fechado e voltar seguro de onde for.

A sobrancelha do majorengo inda rascu-nhou um desdém na testa franzida, mas ha-via uma fresta ali na vista que delatava seu ego, a sintonia da sua ambição. Pinicava na alma a oferta daquele maloqueiro. Tinha que ser do quilate noventa, preço da vida, porque era nessa beiradinha que tava a biografia do rapaz, já na linha de ser embonecado pelos fardados.

No raio do deboche, o coronel ri da au-dácia vagabunda. Mostra a fieira de homens sentados nos degraus do porão, atirando suas bitucas pra madrugada. Honrado, mostra os

da sua tropa que preferem quebrar dentes e as concursadas que desfru-tam é desentupir ouvido. Cochicha pra Caçú sobre as taras dos que go-zam branco, pastoso e quentinho na mão quando esvaziam lata de quero-sene incendiando favela. – Estão só te esperando pro recreio, neguinho.

A Caçú só cabe jogar o xadrez da sobrevivência. Se entrar no reio dessa onda defeca na calça do terror e se urina.

- Eu não tô esmolando, excelência. Tô te oferecendo a glória.

O coronel se esforça pra não de-latar a fagulha entre seus cílios.

- Eu sei o segredo de fechar corpo, coronel. Imortal. Só tomba se tu mesmo vacilar e quebrar a regra. Te passo o segredo e tu não se preocupa mais nem com esses lobos da tua matilha nem com os urubus de fora do time. Pode invadir qualquer brenha, se meter em labirinto de favela, buscar o acerto... pode escoltar qualquer safado e até dispensar esse colete.

O coronel mastiga o interesse num palito, desafina de leve a sua

máscara. Bigode se eriça.- Meu irmão nunca botou fé, se finou. Olha

aí! – Caçú aproveita e chega pertinho pra con-ferir que seu mano Valagume morreu mesmo, que acabou a dor. Coladinho no morto, viu numa mesa a renca de luvas de borracha, só esperavam o comando pra lhe azucrinar.

– Eu caminho onde quero, ninguém me pega e eu não cato ninguém. Sabia que ia ficar aqui três noites guardado esperando a hora de te passar o segredo. Sem ninguém tocar na minha pele. Porque minha missão é te passar o desenho e sair inteiro.

O coronel olha fixo, seu corpo já se esti-cou, já pede mais calma pros soldados, manda sargento buscar um café. Caçú quer anunciar mais alto, esparramar a negociata pra horda toda, mas segura um bocadinho. Só queria não ser torturado, agora quer também não morrer, mas se crescer demais a garganta per-de a vantagem. E vai descobrindo que é ve-lhaco como nem sabia.

- Tu tem sensibilidade, tem origem, não tem? Sabe que não é papinho. Vem da tua família também essa força, mesma fonte da minha. Tá na tua presen-ça, na tua aura, não vê quem não quer ou não sabe. – E sussurra macio: - Esses bruto aí não te com-preende, coronel... – Caçú ainda arando joga a semente. O coronel, que leva o livro dos livros para as mães na volta do culto, que extermina as ervas daninhas em nome dos concílios de Deus, que teve sua luz numa perseguição:

- Um meliante sapecava quilo de tiro mas nenhum me acertava, eu ainda era sargento. Vi um anjo cantando e empunhando a foice do bem. Anunciava a ceifa no jardim. - A revelação guiou o músculo da coragem pra limpar os pastos do rebanho. Abençoada missão de conduzir as almas pro julgamento de Deus.

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Na igreja, respeitando hierarquia, nunca decretou nada mas já segurou no cinto um pos-suído pelos espíritos das trevas. A solução dos pastores, mais sabidos, mais elevados na admi-nistração dos problemas de sujeira, de finanças e escrituras, foi repelir o demo na pancada. De-pois notícia correu que o fiel tava surtando epi-lético, que tentava era puxar remédios do bolso e não um tridente, mas quem tava ali sabe que a atmosfera... as orelhas geladas do crente fi-cando mais pontudas, pretas. Quem tem fé vê e viu.

O coração uma almofada, ser da congrega-ção mais negra da zona sul. Via ali a purifica-ção, a entrega, a redenção da escravidão. Os ir-mãos pretos das mesmas travessias, no templo dividindo a guarida de cada versículo. A doçu-ra dos jovens subindo avenida, já em alta noi-te cantando louvores, patota devota. A crença sem tormentas passando pelo vale do fogo e da fumaça nas rodinhas da maloca, dos ilíci-tos dichavados. Segurança de passarem juntos pelos grupinhos mais escamosos dos fariseus. Segurança.

- Não teme, coronel. Não tem nada de posses-são, macumba, demonice. Vai baixar nada em você, força nenhuma, que cavalo sem sela não guenta reio. Vai ser o inverso, tu é que vai mudar de cor-po. Vai entrar em carapaça de tartaruga, vagaroso, longa a vida, verdadeiro colete à prova de balas é esse que tu vai ter. Também vai saber tornar em corpo de onça, rastejando ligeiro, o bote certo. E em corpo de rato também, entrar em qualquer bi-boca apavorando só com a fuinha, se alastrando fácil, dominando tudo que é subterrâneo. Isso não é pecado, coronel, não se aflija. Não é de seita, isso é teu. Vai encontrar o que é dos teus poros. Taí na tua íris, taí nas tuas lembranças de criança, nas con-

versa que tinha com os bicho, no jeito que sentia que era da turma deles. Lembra? Elementar.

A curriola fardada não tava gostando mas se calava. Censu-rável aquele molho, já nem era tão justo subir o cara sem tirar um sarro, sem descarregar a adrenalina da batalha, sem ver o fulano jubilado... já tão peque-no o soldo de cada um, tem que restar um bocadinho de porquê pra continuar nessa vida...

Mas o coronel mordeu o beiço e denunciou a tremedeira no coco. Experiente, calejado, como abraçou assim esse apli-que? Ansiedade maestra lhe regendo. Apalpava o casco de jabuti no lugar da costela. Fa-ria o bigode ainda, sendo rato? O coronel surfava nas nuvens do desejo. Vesgo de ganância. Um olho viajava na sua pele de pinta de onça, o outro vigiava seus guardas, que sentia um bo-chicho no ar. Caçú sussurrou a jogatina - O senhor... aliás, você... manja que tem uma pá de subordi-nado aqui só butucando teu cargo, né, chefe? Tenho mais uma fortale-za pra ti. Um colar rezado e ben-zido, coronel, pra inveja de dentro de casa. Esse sim vai ser teu docu-mento, mas se perder, zicou. Igual vocês faz com nóis quando tamo sem o RG. Ele te garante. Se não tiver a dispor tu toma nas costas.

E Caçú ia subindo a bar-ganha, crescendo exigência. Só sobreviver já não era o mais desejado, sentiu que dava pra montar um castelo. Abocanhar e não apenas lambiscar. Sabia também de casas extorquidas pelos milicos na chantagem de controlar territórios e de não prender ex-aliados. Coronel mandou trazer as chaves de um sobrado enroladas num quepe. Farejou o desagrado dos seus subordinados, não armavam

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escarcéu, disciplina não permite, mas iam se es-folando no rancor miúdo. Saíram dois tenentes, o Leite-de-Cobra e o Ressecuela. Montavam sua casa de caboclo?

– Não, coronel. É pouco pra tanto reinado. Tu sabe que pro patuá vale uma moradia, mas pra teu império, não. (Pensou na filha do PM. Escambo majestoso. O che-fe daria, mas Caçú não arriscaria). Na diplomática hipocrisia da chantagem, impôs uma mina gostosa e obediente. De desfilar, mostrar o trato no dengo e na hierarquia. Mas bater não, só se precisasse. Es-sas bacaninha vinha de família e ele sabia, ouvia dos mais velhos, que no começo sempre se devia mostrar no soco o papel de cada um no dueto. Mas exigiu uma já adestrada, que ele era de paz e ra-cional, nunca apreciou pancada. A técnica com o amorzinho seria uma didática só se muito necessá-ria, uma pedagogia justa, pra manter a ordem no terreiro. - Me providencia uma mulher, coronel, é a paga.

Debaixo daquela espessura de marra, o coronel quase caiu do sapato. Deu uma cambalhota na con-versa: - Tu vai ter, menino. Mas me prova que teu corpo não rompe com ponta nem com aço, que não trepida.

Caçú já tinha afanado a soberba do coronel e ago-ra ou tava atolado numa lameira ou tava na crista.

– Claro. Pode já pegar das metranca nova. Dessas levinha que o governo deu prucês agora, de alta defi-nição. Pode apontar e meter o arrebite que não vai me fazer nem um talho. Mas primeiro me traz a formosa e também uma moto pra eu colorir meu caminho.

Coronel mandou buscar as duas possantes pe-didas. Deu endereço da sobrinha malcriada, que dizia que Deus não existia. Agora ela ia ter a certe-za. Chegou rápido, encapuzada numa garupa. Coi-sa fina pro machinho.

Caçú precisava de mais tempo pra sua mutreta. Ladino, dali sairia anjo ou carniça. – Coronel, muda. Metralhadora pode falhar, explodir na mão, zuar o po-rão aqui. Busca um machado. Pode passar três vezes no meu pescoço, vai dar nada. Aí eu vou embora com o que é meu. Justo?

Pensou sua timidez da vida toda. Melhor man-

ter a mudez, a gagueira guarda-da? Ou demorou pra ser locutor, papagaiar pra dominar picadei-ro? Lembrou da vó. “Quem fala demais dá bom dia a cavalo”. Dizia também que nos momen-tos extremos é que surgia o es-pírito verdadeiro de cada pes-soa. Quem parecia ser medroso, carreava uma cidade nas mãos. Quem parecia generoso, entrava na gaiola da mesquinharia. Na hora das urgências transborda-va a gamela. Ele passou a fala-dor num rasgo de um segundo e assim arquitetou seu passo. Jogou e ganhou.

Chegou o machado. Nunca tinha cortado pescoço, só pulsos. Era hora de aflorar os segredos que o coronel desconhecia. Caçú se via no rolê com sua moto e sua mina, inteirão, vivaço. Com tudo que sempre quis.

A lâmina varou aquela gar-ganta toda. Foi a comédia pra tropa. O coronel engoliu o quei-xo de tanta vergonha e dali pra sempre ganhou seu nome de guerra. Batizado “O Iludido”, a piada do século. Decapitado, o caçula ruiu sobre a posta de Va-lagume, que ainda soltou mais um arroto final fedendo a teimo-sia de seguir vivo.

ALLAN DA rOsA é historiador, angoleiro e pedagogo. Criador das edições Toró. Autor de “da Cabula” (Teatro), “Vão” (Poesia), entre outros títulos. Apresenta o programa “À beira da palavra”, aos sábados, 14h, na Rádio USP FM.

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22 O MENELICK 2º ATO

MárioAlguns anos após ser sancionada a Lei Áu-

rea, a população da cidade de São Paulo pas-sava por um processo intenso de arranjos, aco-modações, coibição e contenção. Nesse tempo, medidas higienistas foram tomadas para conter e “organizar” aquilo que parecia um caos.

Um tempo de intensa repressão aos corti-ços, de urbanização progressiva, de práticas sanitaristas a todo o vapor, disputas entre repu-blicanos e monarquistas, além da substituição da mão de obra escrava pelo trabalho dos imi-grantes europeus na cafeicultura. Opressão as manifestações culturais da população negra no centro da cidade eram comuns e as epidemias de doenças transmissíveis se alastravam. Era a primeira década da república.

Em meio a essa energia desvairada e frené-tica nasce, em 9 de outubro de 1893, Mário de Andrade, pautando condições, reformulando ideias. Surge um dos mais importantes homens que iria mudar todo o cenário artístico e cultu-ral da cidade conservadora daqueles anos.

Texto Valéria Alvesilustração João Paulo Cruz

Impetuoso, sensível e obstinado, Mário foi o criador e primeiro em muitas atividades ligadas à cultura nacional. Referenciado como grande poeta, escritor, folclorista, mu-sicólogo, ensaísta, crítico literário e excelen-te fotógrafo, agitou a Sampa dos anos 20 num movimento ousado que até hoje causa surpresa e incômodos.

São muitas as vertentes artísticas desse grande escritor, poeta e musicista. Intensas e di-versas também foram suas relações e circulação no mundo da política.

Apresentamos aqui um breve inventário, fragmentos e memória desse genial e insti-gante escritor.

PAULICÉIA DESVAIRADA

Mário de Andrade fez parte de um mo-mento muito importante na história das políti-cas culturais e para a institucionalização desse

campo no Brasil. Revendo elementos históricos que compõem a vida cultural da cidade, nos de-paramos com uma São Paulo de intensas ma-nifestações culturais africanas e afro-brasileira desde o século 18. Irmandades negras, terreiros de candomblés, congadas, batuques e samba promovidos pela população negra residente na região central e nas vilas, faziam parte do cená-rio cultural da cidade.

Todavia, ao se tentar preservar a imagem de uma São Paulo dos Bandeirantes e dos imigran-tes, as expressões culturais populares foram por vezes reprimidas, controladas e ocultadas pelas autoridades públicas. .

A elite paulistana considerava essas mani-festações como estranhas à cidade, ao desenvol-vimento, além, de um perigo para a nação. Essa elite visando consolidar-se e interagir com o ca-pitalismo, experimentado nas nações européias, depara-se com os resquícios da escravidão, com as manifestações culturais e religiosas negras , com uma população multicolorida por conta

inventário e memória

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da miscigenação.Com isso a elite paulistana se via deslocada do que seria o ideal de uma civi-lização branca, assim, houve uma tentativa de abolir e desconsiderar essas manifestação como parte da cultura nacional.

Entretanto, nessa época em que a cultura era restrita às belas-artes e à arte erudita, Mario de Andrade abarcou fazeres e saberes populares e colocou a cultura popular como foco. Dessa forma, expande de maneira revolucionária o conceito de cultura, que até então estava restrita ao que pensavam as camadas altas.

Mário foi diretor do Departamento de Cul-tura da Cidade de São Paulo. Dentre seus proje-tos fez a junção entre cultura popular e patrimô-nio em 1935.Essa foi a primeira política pública para a cultura.

Suas medidas foram consideradas inovado-ras e ambiciosas para a época. Mário de Andra-de foi de fato o precursor das políticas públicas culturais e dos financiamentos para a educação cultural e, a partir de então, começou a surgir um universo de produções.

Sua preocupação estava em ampliar o re-pertório cultural da população e descortinar a autêntica tradição brasileira.

Mário apresenta um anteprojeto que tinha como inclinações a memória dos grupos cultu-rais populares, as diversidades dos saberes ar-tísticos e culinários das etnias que compunham o ethos do que ele chamava de brasilidade.

O escritor e agora dirigente público se pre-ocupava com todos os segmentos da população. Sua intenção era a de democratizar a arte e pro-mover o acesso aos variados registros culturais. Pressuponha que a cultura tinha que ser vista e vivida de forma plural, valorizada e respeitada em sua diversidade.

SEMANA DE ARTE MODERNA

O poeta e romancista Mário do Andrade é considerado o criador da poesia moderna e a figura principal do movimento de van-guarda paulista.

Esteve à frente da Semana de Arte Moderna em 1922, ano, também, do lançamento de seu livro Paulicéia Desvairada. Importante publi-cação porque nela, Mario apresenta os novos rumos das artes visuais e da literatura no Brasil.

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ilustração João Paulo Cruz(flickr.com/photos/51483018@N04)

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Essa semana teve como foco central a opo-sição às formas clássicas, a ruptura dos padrões antigos de arte, busca por novas formas de ex-pressão utilizando-se de novos recursos como cores vivas, cubos, esculturas. O evento aconte-ceu no Teatro Municipal de São Paulo e, embora seja conhecido como Semana de Arte Moderna, foram apenas três dias de muito frisson, reações de espanto, repúdio, emoções, vaias, aplausos e algazarras.

Neste evento foi apresentado uma varieda-de de seguimentos artísticos: Literatura, músi-ca, poesia, pintura e escultura. Artistas consa-grados do modernismo brasileiro como Anita Malfatti, Victor Brecheret, Oswald de Andrade, Villa Lobos, Di Cavalcante, Plínio Salgado, além do próprio Mário, apresentaram novas formas de expressões artísticas.

Os artistas propunham novos padrões es-téticos, uma busca pela liberdade e por uma identidade própria movidas, também, por um sentimento nacionalista. Para isso, a ruptura com a arte de vanguarda e a liberdade para ex-perimentação foram imprescindíveis. Novas práticas foram criadas durante essa semana, por exemplo, a recitação de poesias que até en-tão eram somente escritas, as artes plásticas feitas em esculturas e maquetes com contornos arrojados e modernos. Foi um momento de ex-perimentar novos caminhos e se afastar das de-finições sobre um ideal de arte.

A Semana de 22, que na época não teve mui-ta importância e que foi ganhando valor com o passar do tempo, culminou em diversos movi-mentos artísticos e culturais. Em São Paulo, por exemplo, em outubro de 1979, foi fundado num porão da Praça Benedito Calixto, o grupo de Te-atro Lira Paulistana. O próprio nome foi tirado da obra homônima de Mário de Andrade.

Faziam parte da Lira, artistas que diziam trazer a herança do modernismo em suas mani-festações, eram eles: Ná Ozzeti, Tetê Espíndola, Arrigo Barnabé, Itamar Assunção, o Grupo Lín-gua de Trapo, Cida Moreira, Eliete Negreiros, Zé Eduardo Nazário.

Mário de Andrade e seus companheiros ao idealizar e realizar a Semana de Arte Moder-na abandona de vez os antigos ideias estéticos e desafia a elite paulistana fissurada pelos pa-drões europeus do século XIX.

MACUNAÍMA: O ANTI-HERÓI BRASILEIRO

Alguns anos após a Semana de 22, Mário de Andrade publica uma das suas mais importan-tes obras: o livro Macunaíma. Considerado um dos maiores romances modernistas, foi escrito e publicado em 1928. Esta publicação revela, mais uma vez, além da criatividade, o lado irônico, provocativo e subversivo do autor.

Com uma estrutura inovadora, a obra sur-realista de Mário de Andrade, critica o Roman-tismo, a miscigenação, o sincretismo religioso e a linguagem culta, esta, alvo constantes nas falas da personagem, um menino preto retin-to nascido numa tribo indígena, um anti-herói brasileiro: preguiçoso, mentiroso, malandro, um representante do povo que tem um encanta-mento pela cidade grande e pela máquina.

Nesta rapsódia, Mário procurou valorizar a linguagem popular e o multiculturalismo bra-sileiro, criticando de forma irônica a linguagem culta escrita e única valorizada. Em várias pas-sagens, o autor satiriza a gramática, sobretudo o afastamento da escrita e de como as pessoas se comunica no dia a dia. Aliás, aproximar a fala da escrita foi um dos alvos do autor em Macu-naíma. Em vários trechos, ele substituiu “se” por “si”, defendia o uso da linguagem, da pro-núncia brasileira e não da portuguesa.

Em Macunaíma Mário faz uma revisão do indianismo romântico, e uma crítica ao passa-do, procura através da cultura popular, do fol-clore, reconstruir a cultura nacional.

Quase todos os escritos de Mário de An-drade causaram algum incomodo. Amar, Verbo

Intransitivo de 1927, por exemplo, romance que contava a iniciação sexual do jovem Carlos com a alemã Elsa, uma mulher mais velha contra-tada por seu pai, causou um escândalo entre os quatrocentões paulista, assim, também foi com as obras Paulicéia Desvairada, 1922 e A Escrava que não é Isaura,1925.

MANUSCRITO PRETO

Além da profunda relação que Mário de Andrade manteve com a cultura popular, o escritor fez alguns estudos sobre as manifes-tações culturais da população negra no Brasil e suas contribuições para o folclore. Entre elas destacamos o Maracatu, Lundu, os Congos e o Samba Rural Paulista.

No entanto, a maneira de compreender o negro no Brasil, ficou mais evidente em um dos seus escritos: o manuscrito Preto. Nele, através de artigos, cartas e documentos, Má-rio faz uma espécie de estudo antropológico sobre a presença e a contribuição da popula-ção negra no Brasil.

A pesquisa realizada por Angela Teodoro Grillo aponta, que este estudo foi desenvolvido por Mário ao longo de 20 anos sendo encerrado somente com a morte do autor em fevereiro de 1945. Revela que entre as obras publicadas, dois importantes artigos; “A superstição da cor pre-ta”,1938 e “Linha de côr”,1939, evidenciaram as dificuldades e preconceitos vividos pela popu-lação negra.

Mário teve uma participação valorosa e fundamental nas comemorações do Cinqüen-tenário da Abolição. Mas, para além, de ficar apenas enunciando seus feitos, acredito ser dig-no e instigante reproduzir trechos do artigo “A Superstição da Côr Preta”, publicados no Bole-tim Luso-Africano em dezembro de 1938. Neste escrito Mário da Andrade mais uma vez surpre-ende a todos:

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A sUPErsTIÇÃO DA COr PrETA

Na sessão solene realizada pelas associações negras de São Paulo no dia dois de maio, para celebrar o Cinqüentenário da Abolição, não pude deixar de sorrir melancolizado ouvindo um dos oradores negros da noite falar em “negros de alma de arminho”. Assim, era ele mesmo, um negro, a esposar essa fácil e trágica antinomia de origem branco-europeia pela qual se considera a cor branca simbolizadora do Bem e a negra sim-bolizadora do Mal. Mas não é apenas esse ora-dor negro a esposar a detestável tradição branca do simbolismo das cores [...] Se qualquer de nós brasileiros se zanga com alguém de cor duvidosa e quer insultá-lo, é freqüente chamar-lhe: Negro! Eu mesmo já tive que suportar esse possível in-sulto em minhas lutas artísticas, mas parece que ele nem foi muito lá convincente nem conseguiu me destruir, pois que vou passando bem, muito obrigado. Mas é certo que se insultamos alguém chamando-lhe” negro”, também nos instantes de grande carícia, acarinhamos a pessoa amada cha-mando-lhe “meu negro”, “meu nego”. [...] No Brasil, não existe realmente uma linha de cor. Por felicidade, entre nós, negro que se ilustre pode galgar qualquer posição. Machado de Assis é o nosso principalíssimo e indiscutido clássico de língua portuguesa e é preciso não esquecer que

já tivemos Nilo Peçanha na Presidência da Re-pública. Mas semelhante verdade não oculta a verdade maior de que o negro entre nós sofre da-quela antinomia branco-europeia que lembrei de início, e que herdamos por via ibérica. É ver que o branco, o possível branco, o despreza, o insulta exclusivamente por superstição. Não é porque as culturas afro-negras sejam inferiores às euro-péias na conceituação do progresso ou na apli-cação do individualismo; não é, muito menos, porque as civilizações negras sejam civilizações “naturais”, não foi inicialmente por nenhuma in-ferioridade técnica ou prática ou intelectual que o negro se viu depreciado ou limitado social-mente pelo branco: foi simplesmente por uma superstição de cor. Na realidade mais inicial: se o branco renega o negro e o insulta, é por simples e primária superstição...

É com essa atmosfera que encerro mais um dos capítulos da vida e obra desse genial escritor, poeta, musicólogo, ensaísta: Mário de Andrade.

Processo de criação do estudo Preto, um inédito de Mário de Andrade. 01/09/2010 - ffl ch.usp.brAngela Teodoro Grillo.

VALÉrIA ALVEs é antropóloga, pesquisadora e produ-tora cultural.

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TeXTo MÁRCio BARBoSA / FoToS MANdeLACReW (UMA NoiTe No SAMBARYLoVe BLACK / 19.oUT.2012)

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s quatro jovens que chegam ao pequeno salão localizado na pacata rua da Barra Funda estão entusiasmados. Um dos rapazes particularmente é dono de uma íntima e con-tida alegria, já que é a primeira vez que vai ao salão de baile. Ele chega à bilheteria, compra o ingresso e, quando os quatro entram, descortina-se para ele uma realidade

diferente. A primeira sensação é a de ter entrado em um mundo paralelo. Luzes escuras, giratórias, música em alto volume, e jovens como ele dançam animadamente, causando-lhe certa comoção por causa da alegria espontânea que acompanha os gestos de braços, pernas, quadris...

O salão está repleto, as roupas são bem cuidadas, alguns suam, outros circulam de um lado a outro. Meninas e rapazes se olham com interesse. Nas caixas, o som que começa a tocar é o de Natalie Cole cantando This Will Be, e gritos de aprovação se fazem ouvir. Depois uma sequência de músicas traz aos ouvidos Tim Maia, Jorge Ben, Bebeto, e então braços se trançam nos volteios ritmados do samba-rock. De repente as cores se tornam mais suaves, o ritmo do som diminui, uma luz negra se acende. Marvin Gaye começa a cantar Let’s Get it On e mais gritinhos são ouvidos. Ca-sais se formam para dançar juntos, colados. Os rapazes circulam, chamam as meninas para dançar, são rejeitados, insistem com outras e logo muitos estão dançando. É a sessão de lentas.

O jovem que entrou pela primeira vez no salão aos poucos vai se acostumando com aquele burburinho de sons e vozes, aquela riqueza de luzes e cores. Mas o que o choca mais é que, dife-rentemente do que vive no seu dia-a-dia, ali a maioria das pessoas é negra, e ele se sente bem. De algum modo, assim que colocou os pés no salão São Paulo Chic, teve certeza de que estava num lugar ao qual pertencia.

Dos meados da década de 70, época em que os bailes no São Paulo Chic lotavam, para cá, houve pouca mudança em termos desse sentimento de identidade que os bailes da população negra provocam.

As equipes de som se profi ssionalizaram. As modestas caixas acústicas que faziam a alegria dos dançarinos nos pequenos salões foram substituídas por grandes equipamentos de som durante o movimento Black São Paulo, uma extensão do movimento Black Rio que, ainda no fi nal dos anos 70, trocou o ritmo do samba-rock pelo soul e funk de James Brown, Sly and Family Stone, Bar Kays... E isso não ocorreu sem confl itos. Os jovens que aderiam a essa nova onda do soul eram chamados de “neguinhos pop” por aqueles adeptos do som mais antigo. O termo “pop” na verdade se referia mais às músicas de apelo comercial que tocavam nas rádios, mas passou a denominar o soul.

Porém, a nova onda se espalhava rapidamente. Na época em que não havia internet, centenas de negros se reuniam no viaduto do Chá ao cair da tarde das sextas-feiras e as felipetas circulavam por ali anunciando os próximos bailes, sob os olhares e eventuais revistas de muitos policiais mili-tares e sob a atenção de alguns policiais federais, já que aquela reunião podia ser subversiva.

Enquanto em salões como São Paulo Chic o baile comportava um número menor de pessoas, o movimento soul procurava amplos espaços e começava a trazer milhares de pessoas para seus bailes. O aspecto da identidade começou a se acentuar. Nas paredes dos salões, como a Associação Atlética São Paulo, eram exibidos fi lmes e documentários, a exemplo de Wattstax, que versavam sobre a luta dos afro-americanos em busca de cidadania.

O fato é que os bailes sempre fi zeram parte da vida da população negra. A musicalidade e o ritmo são intrínsecos à maioria das culturas tradicionais africanas e essa herança é expressa, de di-versas formas, pelos afro-brasileiros. Desde o pós-abolição, as diversas entidades que se formaram tiveram nos bailes uma expressão importante como atividade de lazer. Impedidos de entrar em festas de brancos, os afrodescendentes construíram seu próprio campo de entretenimento. A Frente Negra, por exemplo, tinha o grupo das Rosas Negras, que organizava as grandes festas na década

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de 30. Mas essas festas tinham não só um caráter recreativo, como também cultural e pedagógico, pois havia palestras, apresentação de grupos de teatro e outras atividades culturais.

Nas décadas de 70 e 80 o movimento soul retomou esse caráter mais educativo das festas. Algu-mas lideranças do movimento negro iam lá fazer discursos, panfletar, chamar aquele contingente de jovens em sua maioria negros para uma ação política.

Isso trouxe resultados nos anos seguintes, especialmente para o movimento hip hop, que nasceu nesse ambiente em que as equipes de som estão mais organizadas e os discursos mais afinados com a busca de uma identidade étnica. As equipes proporcionaram espaço para que grupos de rap viessem mostrar seus trabalhos. Os Racionais MCs, por exemplo, começaram a se apresentar nos bailes da equipe Zimbabwe, uma das pioneiras do movimento soul, que, transformada em selo musical, lançou o grupo. Outras equipes, como Chic Show e Black Mad, também gravavam artistas não só de rap como de outros gêneros, a exemplo do pagode, que divulgavam em seus programas nas rádios, como Bandeirantes e 105 FM. Além disso, algumas equipes adquiriram seus próprios salões, como o Clube da Cidade, na Barra Funda.

Os Carlos, Tranza Negra, Eduardo, Amaury são nomes que evocam nostalgias, e nostalgia é uma palavra que ainda denomina alguns tipos de bailes, frequentados por uma população mais adulta, como os do Musicália e Musicaliando, nomes parecidos que encobrem alguns conflitos que esse campo abarca.

Clubes como Alepo, Casa de Portugal, Homs fazem parte da história de vida de pessoas que fo-ram e vão a esses locais para dançar, se divertir, estar em um lugar com seus iguais. DJs (herdeiros do pioneiro Sr. Osvaldo e sua “orquestra invisível”), dançarinos, empresários, cantores, donos de equipe, seguranças compõem um contingente que vibra nos subterrâneos da cidade.

Alguns lugares marcaram gerações, como o Sambary Love, no bairro da Bela Vista, com seus dois ambientes sempre cheios: um em que tocava o gênero “black” (as muitas variações do R&B) e outro dedicado ao samba-rock e pagode ao vivo. Como outros bailes, ali também era frequentado por pes-quisadores, militantes, ativistas.

O baile “de preto”, baile “black”, baile nostalgia, baile soul, o baile, enfim, é esse local para o qual convergem expectativas, alegrias, emoções. Não é só a música e dança que o caracterizam, embora sejam o apelo mais forte; não é frequentado só por negros, mas é um campo em que se constroem identidades, expressas nos gestos, nas roupas, na estética, no comportamento.

Aqueles quatro jovens que chegaram ao salão São Paulo Chic na década de 70 talvez hoje não fossem ao baile, talvez fossem para a “balada”. Às vezes a impressão é de que a época gloriosa dos bailes já passou. Mas certas paixões voltam, como o samba-rock. As gerações vão se reinventando e recriando os bailes, que continuam aproximando as pessoas nas periferias, no centro, ou mesmo nas casas noturnas da Vila Madalena. Nos bailes, a vida ainda pulsa numa dança que se perpetua.

MÁrCIO BArBOsA é pesquisador e um dos coordenadores do Quilombhoje (grupo paulistano de escritores formado em 1980 por nomes como Cuti, oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Abelardo Rodrigues, entre outros, com o objetivo de discutir e aprofundar a experiência afro-brasileira na literatura). Fez as entrevistas e textos do livro Frente Negra Brasileira e é um dos coordenadores do projeto que resultou na edição do livro e vídeo Bailes - Soul, Samba-Rock, Hip Hop e Identidade em São Paulo. Também tem contos e poe-mas presentes em diversas antologias.

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polêmica em torno da comerciali-zação do acarajé* por ex-fi lhas de santo do Candomblé, atuais evan-gélicas pentecostais, e a proibição da venda dos bolinhos por ocasião

da Copa do Mundo de 2014, a ser realizada no Brasil, trouxeram à tona preconceitos latentes na cultura nacional em torno das práticas culturais afro-brasileiras. Neste texto apresento algumas ideias sobre a importância da comida no can-domblé e sua relação com o sagrado.

UM MITO BEM CONHECIDO

Diz à história que Deus não gostou nada da cesta de legumes e frutas que lhe dedicou o jovem Caim. Seu irmão Abel, por sua vez, sa-crifi cou à divindade um novilho branco. Entre vegetais e sangue, frutas e carne, entre o agri-cultor e o pastor, Deus preferiu a oferenda do último. Nesta famosa tragédia bíblica os ali-mentos aparecem associados à relação entre o humano e o sagrado. Ela nos fala dos gostos de Deus. A justifi cativa por preferir a carne, o san-gue, ao invés da colorida cesta de vegetais, le-gumes e frutas era por que no coração de Caim havia falsidade, ele não ofertava de verdade, pois tinha inveja do irmão...

Essa história vai longe no tempo e, atual-mente, não são todas as religiões que oferecem comida, tanto para os deuses, quanto para fi éis e visitantes em dias de celebrações especiais, como o faz o Candomblé. Nesta religião a comida de-sempenha importante papel na organização das crenças, na relação que se estabelece entre o fi el e seu corpo, entre eles e os orixás. Os orixás são deuses ligados às forças da natureza: vento,

texto alexandre bispoilustrações Juliana brecht

julianabrecht.com

terra, fogo, ar, água e vegetação. Como no mito acima descrito, as divindades mantêm relações de troca e reciprocidade com os crentes. A con-trapartida de uma boa oferenda alimentar são os cuidados que os orixás dispensam à cabeça dos seus fi lhos. Cabeças devem ser cuidadas e é importante que os fi éis deem as devidas obri-gações evitando sal e dendê para Oxalá (orixá da criação), amassando o feijão para o bolinho frito de Iansã (orixá dos ventos e tempestades), cozinhando bem o quiabo de Xangô, separando o feijão preto para Ogum.

Há dois tipos de comida no candomblé, uma para os deuses e outra para os humanos. Há re-feições em que ambos participam. Por enquanto retenham a seguinte distinção: os orixás comem o Yanlé, e os homens o Ageum ou o Unjé. Quem faz a comida é a Yabassé, cozinheira, e eu con-vido você a conhecer um pouco sobre a comida que se come no terreiro, ou Ilê.

* sobre a discussão em torno da Fifa: http://religioesafroen-trevistas.wordpress.com/2012/11/05/goleiro-felipe-entra-na-luta-pelas-baianas-do-acaraje-e-quer-apoio-de-boleiros/

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foi Mãe Menininha (1894-1986). Segundo Do-rival Caymmi (1914-2008) Menininha tinha a “Oxum mais bonita”. Outro templo que surgiu da Casa Branca foi o Ilê Axé Opô Afonjá, que em 2010 completou 100 anos de idade tendo sido tombado pelo IPHAN (Instituto de Patri-mônio Histórico e Artístico Nacional) em 28 de julho de 2000, tal qual ocorreu com o acarajé, em 2004. Nesta casa destaca-se sua atual líder Stella de Oxóssi (1925), cujo orixá associado às matas e à fartura alimentar é Odé Kayodé que significa o “Caçador de alegrias”.

Nessas três casas tradicionalmente, e em muitas outras que foram e continuam surgindo, há uma figura especial conhecida pelo povo de santo como Yabassé. Ela é a mãe da cozinha e manipula os alimentos que darão de comer aos homens (ageum) e aos deuses (Yanlé). Exú, dife-rente dos outros orixás come tudo o que a boca come. Sua comida é o Ipadê que consiste nos seguintes ingredientes: água, acaçá (bolinho de milho branco envolvido em folha de bananeira), bebida alcoólica, azeite de dendê e farinha de mandioca. Ogum que na ordem do xirê (festa) é reverenciado logo após seu irmão Exú, já gosta

* sobre o acarajé de Jesus: Leia o texto do Jaime sodré, mundoafro.atarde.uol.com.br/?p=5008

do Oxoxó (milho cozido com pedaços de coco). Oxum, orixá das águas doces recebe como ofe-renda o Adun, comida feita de milho pilado, azeite de dendê e mel, mas há também o Ipeté: massa de inhame com camarão e, finalmente o omolocum: feijão fradinho e ovos.

São estes apenas alguns exemplos de ali-mentos servidos aos orixás no candomblé, há muitos outros que não comentarei aqui, pois este é apenas um texto introdutório. Lem-bremos que o candomblé não é uma religião monoteísta, mas cultua vários deuses, daí a variedade de suas preferências. Tais comidas identificam o paladar sagrado, mas há aque-las que fazem a alegria dos frequentadores das festas. Há uma circulação entre gostos divinos e terrenos, e os alimentos participam desse movimento. Come-se aí feijoada, aca-rajé, inhame, quiabo, cebola, arroz de forno, moqueca de peixe fresco e bolo confeitado. Este como se poderia esperar fica para o fim da festa. Que fique claro: as comidas de santo não precisam de temperos e a eles são ofere-cidas certas partes dos animais como patas, cabeças e alguns órgãos.

CANDOMBLÉ: YANLÉ, AGEUM, YABASSÉ, ILÊ

As mais antigas notícias sobre os cultos africanos no Brasil trazem à tona a palavra ca-lundu. O termo de origem banto abrangia até o século 18 danças coletivas, cantos e músicas acompanhadas de percussão. Muitos de seus praticantes foram perseguidos por, segundo o ponto de vista da Santa Inquisição portuguesa, fazerem feitiçarias: curas mágicas, benzimen-tos, rezas, amarrações, como pedacinhos de pano para conquistar a pessoa amada, banhos de ervas, poções mágicas. Tudo, aliás, super atual se considerarmos que na contemporanei-dade pastores evangélicos comercializam água sagrada, toalhas curativas, abraços suados, pe-daços de papel e orações mágicas sobre retra-tos fotográficos e, entre algumas falsas baianas, acarajé de Jesus.

Foi no século 19, porém, que surgiu o que hoje conhecemos como terreiros de candom-blé. A mais antiga casa conhecida é a Casa Branca do Engenho Velho, em Salvador, Bahia. Desta casa mãe surgiram os célebres terrei-ros do Gantois, cuja figura mais conhecida

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CONVERSA DE COZINHAO primeiro intelectual brasileiro que escre-

veu sobre esses ingredientes na Bahia foi Manuel Raimundo Quirino (1851-1923), já apresentado aos leitores de O Menelick 2° Ato por Valéria Alves (ano II, edição 08). Em seu texto: A arte culinária na Bahia[1], Quirino apresenta receitas a ele descritas por negros baianos mostrando a diversidade dos pratos que surgiram com a pre-sença tanto de mulheres quanto de homens nas cozinhas das elites daquele estado.

Comento a seguir apenas dois pratos bem conhecidos: o acarajé e a feijoada. O primeiro é preparado com feijão fradinho. Segundo Quirino “o feijão fica de molho até soltar a casca; depois, o mesmo é passado em pedra ou moinho, resul-tando em massa que será temperada com cebola ralada e sal. A massa deverá ser bem misturada, dando a consistência desejada, sempre se uti-lizando a colher de pau para preparar a liga. O azeite é colocado em grande frigideira, panela rasa ou tacho. Quando estiver fervendo, as por-ções da massa de feijão são fritas até se tornarem

douradas pelo óleo de palma. O cheiro gosto-so da fritura aromática atiça qualquer apetite. O acarajé pode ser comido com ou sem molho nagô”. Eu já comi vários acarajés com ou sem molho. Essa iguaria vem sofrendo acréscimos e mesmo seu tamanho lembra hoje um big mac, fruto das disputas entre o tradicional (o acarajé já circula há pelo menos 300 anos) e o fast food. Justamente o que a Fifa (Fédération Internatio-nale de Football Association) quer pôr de fora da Arena Fonte Nova (BA) e mesmo nos arredores do estádio as vendedoras ambulantes, imposição esta que a Associação das Baianas do Acarajé e Mingau (ABAM) e sua presidente Rita Santos não admitem. Nem de Jesus, nem da Fifa, o aca-rajé é de Iansã e de suas devotas baianas.

Eu já fui há muitas festas de Ogum, pois este Deus tem muitos filhos, e comi feijoada, prato que agrada a este orixá e a muitos brasileiros. Na verdade é o feijão preto que o atrai. A feijoada por sua vez é servida em suas festas para os filhos de santo e para o público que fica na assistência curtindo o xirê. Para o folclorista Luis da Câma-

ra Cascudo (1898-1986), a feijoada é a comida mais popular do Brasil, apreciado por todas as classes sociais. O prato é uma variada reunião de verduras e carnes: linguiça, paio, salsichas, char-que, carne de sol, orelha de porco[2]. Ele varia de acordo com a região em que é servido. Em São Paulo, por exemplo, é comum o acompanhamen-to de couve, torresmo, farofa e molho de pimenta. Tenho um amigo que ainda exige a laranja no fim. Para que a receita tenha sucesso, nos diz Manuel Querino: “É condição essencial que o feijão seja novo para que a feijoada se torne apetitosa, pre-ferindo-se o denominado mulatinho, se bem que outros dêem mais valor ao feijão preto” [3].

Por sua diversidade cultural e imensidão geo-

gráfica, o Brasil tem vários pratos típicos, tais como o churrasco gaúcho, o frango com quiabo mineiro, a feijoada baiana e o virado a paulista, em São Pau-lo, por exemplo. Mas os pratos da cozinha baiana se tornaram muito famosos e a feijoada é o prin-cipal entre deles. Outros pratos como moqueca de peixe fresco, moqueca de ovos cozidos, frigideira de camarão, camarão ensopadinho com chuchu,

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arroz de forno, mocotó, galinha ao molho pardo, sarapatel, leitoa assada, canjica de milho entre ou-tros são afro-brasileiros.

Stella de Oxóssi nos lembra: “Não há orixá como o estômago, pois recebe sacrifícios diaria-mente” [4] e completa: “O estômago é como uma divindade, precisa ser respeitado e cuidado”.

ALEXANDRE BISPO é cientista social e mestre em an-tropologia social, ambos pela USP. Também pesquisa e escreve sobre artes visuais buscando entender as re-lações entre gênero, sexualidade e raça. É membro do conselho editorial da revista o Menelick 2º Ato.

[1] Querino, manuel. a arte culinária da bahia. 3. ed. ed martins Fontes. 2011[2] cascudo, Luís da câmara. dicionário do folclo- re brasileiro. global editora e distribuidora Ltda. são Paulo. 2001.[3] Querino, manuel. de algumas noções do siste- ma alimentar da bahia. in: costumes africanos no brasil, p.147. 2. ed. recife: FundaJ, editora massangana, Funar te, 1988.[4] oXÓssi, stella. Provérbios/ÒWe. 2007.

NOTAs DE rODAPÉ

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INAICYrA FALCÃOTeXTo LUCiANe RAMoS SiLVA / iMAGeNS ARQUiVo PeSSoAL

TeAR e TRAMA de UMA ARTiSTA

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É mês da consciência negra, fervor das ações, encontros, debates e contestações foca-das nas questões que instigam e inquietam a realidade da diáspora negra. O Brasil das ma-trizes africanas, múltiplo em nuances de negri-tude de norte a sul, revela-se em belezas, sabe-dorias e profundos desafios em ser negro sem artifícios ou paliativos.

A consciência negra é ainda pouco compre-endida como reflexão sobre a responsabilidade de uma mudança que não se concretiza apenas na prática do negro, mas de todos brasileiros – o genocídio em curso nas periferias das grandes metrópoles é indício gritante do quanto nosso país retrocede em suas desigualdades.

Fomos a Salvador, território de marcantes pisadas negras, orgulhosas e participativas, mas também de inúmeros revezes e contradi-ções, e conversamos com uma das principais referências no pensamento sobre corpo, an-cestralidade e as dimensões contemporâneas para a educação e a arte. Cruzamos as águas da trajetória de Inaicyra Falcão, doutora e livre do-cente recém aposentada pelo Departamento de Artes da UNICAMP , onde lecionou por mais

de duas décadas e permanece coordenando o Grupo Interdisciplinar de Pesquisa “Rituais e Linguagens: a elaboração estética”, orientando pesquisadores e fomentando a presença das matrizes africanas na academia - um universo ainda pouco poroso para os saberes negros. Vale lembrar que no espaço mais específico da for-mação em dança raramente os currículos uni-versitários incorporam as técnicas de matrizes africanas e o estudo de suas linguagens como rumos para o treinamento do bailarino. Irônica realidade: o saber fazer das matrizes africanas parece ser ainda “estrangeiro”.

Além de acadêmica, Inaicyra é artista e pesquisadora, percebendo o mundo a partir do sensível, da transformação e do encanta-mento. Herdeira na sexta geração da família dos Asipá, uma das linhagens fundadoras do reino de Ketu, é filha de Mestre Didi, sacer-dote, escritor e artista plástico e neta de Mãe Senhora, terceira yalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá. Estabelecendo distinções daquilo que é “da porteira para fora” e “ da porteira para dentro” ( metáfora de mãe Senhora, que diz respeito à territorialidade da tradição nagô), Inaicyra recria toda a experiência e lembrança

de sua infância, da vida cotidiana em conver-sas, festas, comidas... cortando búzios ou ou-vindo contos.

Suas inserções em territórios de tradição ioruba atravessaram o Atlântico desembo-cando na Universidade de Ibadan, Nigéria, onde obteve o título de mestre em artes tea-trais. Suas pesquisas ganharam corpo com as experiências no Laban Centre for Movement and Dance Center ( Inglaterra) , no Studio Alvin Ailey ( Nova York) e finalmente em sua pesquisa de doutorado na Faculdade de Educação da USP quando propõe o método de trabalho “Corpo e Ancestralidade” , que toma o universo mí-tico da cultura afro brasileira como referên-cia principal para acessar a ritualização dos gestos e cantos bem como os elementos vivos nos hábitos alimentares, formas de vestir, pensar e agir que mostram a ancestralidade ,não como algo estritamente ligado ao passa-do, mas como recriação do vivido.

Seu método abriu importantes caminhos para a prática pedagógica valorizadora não só das culturas negras, mas do pensamento criativo e da experiência estética que catali-

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sam emoções, memórias e levam a um proces-so de aprendizagem que recupera, atualiza e potencializa as trajetórias pessoais.

Com o trabalho Okan Awa - cânticos da tradição yorubá – Inaicyra semeia o campo do canto lírico inspirada nas energias dos elementos da natureza, recriando poesias e músicas sagradas.

Na entrevista, vemos diversas possibilida-des de ler, interpretar e girar com a tradição, percebendo a dança como prática que pode e deve ser reinventada no espaço profano atu-alizando a experiência simbólica para a sala de aula, incentivando-nos a praticar artes e pedagogias alicerçadas nas cartilhas do cor-po presente, dos gestos e rodas das matrizes negras. Cientes de onde viemos, podemos ca-minhar com o pés fi rmes em nossas ances-tralidades, aprofundar as raízes e fl utuar com galhos que nos levam a todos os lugares.

Se no imaginário social brasileiro preva-lece a carência e pobreza de valores, respon-demos com abundância e sabedoria. Louvada seja a fartura, como disse Inaicyra.

Nestes últimos dias acontece aqui em Sal-vador uma série de encontros que levantam questões sobre identidade, representação e que questionam as histórias introjetadas e a responsabilidade de reconstruir essas histó-rias e elaborar outros discursos.

Pois é... Nunca fui militante, mas estou consciente, tenho esse compromisso, tanto que meu trabalho sempre veio com esses elementos, especifi camente da cultura em que nasci, a cul-tura nagô, iorubá. Quando eu estava na univer-sidade, em meus trabalhos, quando deixavam, quando eu tinha que fazer as coreografi as, por exemplo no segundo ano, que aprendemos o negócio do espelho, bloco, aquilo, aquilo outro, eu inventei um mito, uma história de um deus que vinha e aquela comunidade estava morren-do e as pessoas sofrendo e vinha esse deus, bo-tei uma máscara com palhas, quer dizer, porque era o universo que permeava meu cotidiano, de ver as histórias dos livros do meu pai, de ir para o terreiro com a minha avó. Fora disso eu ia pra escola como todo mundo que vai. Quer ver um exemplo que eu acho muito interessante o Wole Soyinka que vem ai... .Ele fala inglês mais do que o britânico. Quando faz um trabalho, escre-

ve com esse inglês. Agora, é claro que ele faz re-ferências a cultura dele, livros que falam sobre a mitologia, os hábitos. Quanto mais a gente via-ja, vive, mais escolhas temos. Imagina se perco o eixo de onde eu sou, quem sou e pra onde eu quero ir!

E como que você enxerga a dinâmica das tradições; no seu trabalho existe uma referên-cia bem forte ao conhecimento das sabedorias tradicionais, mas sem perder a conexão com o dia a dia e com as renovações inevitáveis. São inevitáveis, você concorda?

Concordo, não tem como, já é assim. Quan-do eu era pequena, ia para o terreiro onde eu aprendi - um aprendizado lúdico, vamos dizer assim, de brincadeira e tal, mas eu tinha que ir pra escola Getúlio Vargas... de malinha, senta-va na cadeirinha e fi cava escutando muitas ve-zes “aí o negro, as raças, raça branca, negro é assim, nariz assim, é isso, é aquilo”, um monte de coisa que eles falavam e eu pensava “eu não vejo isso”, porque o Axé Opô Afonjá parecia que era uma coisa de outro mundo; aquelas se-nhoras com anáguas, com aquelas roupas com muito dourado... Então é inevitável, a minha

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própria tradição se vê que não é em si, ela precisa se readaptar. Vivemos cada vez mais pressionados, a maneira de ser é em si o próprio aprendizado. Antigamen-te, as pessoas tinham tempo para fi car nas

comunidades aprendendo o cotidiano, as comidas, as músicas, as danças, os toques. Hoje em dia não tem mais esse tempo. An-tigamente a pessoa tinha um aprendizado amplo, a tradição no seu sentido amplo, de

um cotidiano de uma maneira de ser, de ver, de pensar, muito mais amplo do que agora, quer dizer ela própria também precisa dessa transformação.

Mas, como nós estamos falando de tra-dição e transformação, você pode falar sobre seu trajeto na dança ... que passa pelas sabe-dorias tradicionais, a experiência na Nigéria e na Europa?

O que eu acho muito interessante é que as coisas vêm naturalmente pra mim. Quando entro na escola de dança, aprendo aquelas téc-nicas todas, mas eu não deixo o que sou, nin-

guém me mandou fazer, mas eu já tô botando as minhas musicas. Mesmo quando a gente aprendeu técnica Merce Cunningham, eu colo-quei de acompanhamento uma faixa de um disco “Eu Bahia”, que era “berimbau e viola”. Meu trabalho fi cou completamente diferente das outras pessoas. Acredito que tem uma ca-racterística, que talvez tenha sido essa, sempre questionadora e querendo mostrar outra possi-bilidade. Eu pensava: “Mas por que que a minha dança, só a minha dança, é dança africana?”. Não tinha nem chegado ainda na África. Talvez nos meus gestos tivesse aqueles movimentos da-queles cotidianos dos orixás. Quando eu fazia qualquer outro trabalho com a minha criativi-dade, com a minha coreografi a, vinha sempre essa questão.

Eu queria dançar, porque antes de mais nada, eu tinha uma sede muito grande de ser uma artista, de me expressar. Quando eu tive a oportunidade de ir pros EUA, fui e fi quei estu-dando dança, aí a fi cha caiu: justamente as pes-soas que criam seus estilos de dança, elas ques-tionam suas histórias, sua identidade. Precisei

ver mais, conhecer mais, aprofundar mais essa história. Quando retornei ao Brasil, pleiteei uma bolsa. Fui pra lá (Nigéria) com o intuito de criar uma Cia de dança. Mas, puxa vida que surpresa, eu não via a dança em lugar nenhum e era aque-le sufoco, eu não conhecia toda história da colo-nização, pensava, estereotipado “Olha, lá tá todo mundo dançando”, gente ... nada disso. Em com-pensação as pessoas eram doutoras, trabalhan-do a sua cultura. Quando eu vi os livros e mui-tas peças de teatro encenando os mitos e tudo mais, eu disse, “Gente, como que é isso, mestrado, doutorado. Ah, eu quero fazer isso!”. Quando en-tro pra fazer minha dissertação de mestrado, fi z um projeto que seguia a dança de Xangô. É tudo muito da minha cabeça, tanto que eu sigo Cam-pbell, que diz “muitas vezes, você é capturado pelo seu mito, pelo seu próprio mito, pela sua própria história”. Eu mesma tô envolvida nela, não tem como alguém mandar, vem assim. Só que quando eu fi z, passei no mestrado, vi que a pesquisa precisaria de mais tempo. Faço a dan-ça ritual na Bahia, já chamando a atenção, por ser questionadora, sempre questionei colocar a cópia da dança dos orixás no palco. Embora

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tenha até feito, quando entrei no grupo do Olo-dumorilá, no Brasil Tropical até fi z, mas sempre eu fi quei meio encucada, porque se tinha certa releitura desses movimentos. Quer dizer, onde é que fi cava o papel desse artista? Hoje em dia posso até entender, são vários níveis de criação, desde a representação até uma criação mais abstrata. E tem esses que são imbuídos dos sen-timentos, da emoção de algo que vai além da-quilo que permite se colocar dentro da história. Isso fi cou muito na minha cabeça “Vou chamar a atenção do mito e do simbolismo como elementos motivadores do processo coreográfico, de criação coreográfica”. No oxê você pode ter as linhas retas e uma série de coisas, você pode chegar e fazer sua viagem no abebé, no xaxaráá, nas cores, tem um bando de coisa, fogo, ... e nisso como estudar mais essa questão do movimento?

Isso foi em 83, 84 na Nigéria. Estava na bi-blioteca e encontrei o livro do Laban ( Rudolf von Laban). E aí ele veio falando sobre o so-car, pilar.. eu disse, gente... isso é o homem! A fi losofi a dele, os princípios dos movimentos, na educação, a notação do movimento. Esse livro pra mim foi uma luz. Quando vi a bio-grafi a dele “Gente ... as danças dos orixás são

ancestrais, é a dança do homem, e isso não é reli-gião, são gestos miméticos, é algo arcaico, ances-tral ao homem”. A partir daí, essas matrizes, eu queria estudar melhor.

Dá para pensarmos em um espaço de for-mação rigoroso a partir das linguagens de ma-trizes africanas?

Ah, sim, com certeza, acho que tem um tra-balho bastante disciplinado. É preciso consciên-cia, acredito que agora já está melhor, quando eu vejo hoje o que se diz de dança, chama “dan-ça afro” - quando eu voltei pro Brasil, há mais de 22 anos, morei 22 anos pra lá e fui pra São Paulo, passei por Salvador. Eu tinha uma ideia de discutir o que é Afro o que não é Afro. Mas logo de cara eu disse, “Não, isso não é pra mim”. Como eu pensei em construção, em proposta de transformação, não posso fi car me desgastando com algo que não vai me levar a nada. Então, pensei, melhor fazer a minha proposta. Quando eu via essas pessoas, eu dizia “Aquele som las-cado tim-tá-tim-tan, gente... a pessoa não tem tem-po de pensar, não tem uma reflexão”. Eu achava que estava tudo muito no físico. Parece que não entende o que está fazendo, fi ca parecendo ma-

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rionete, uma repetição de coisas. Quando falo da preparação, falo da consciência da palavra, da consciência corporal. E era fácil entender, porque que eu tinha isso, porque passei por uma escola, fi z uma adaptação do ensinamen-to da escola que eu tive, a Universidade da Bahia, que tinha aquela coisa alemã e ameri-cana. Eu via como começavam as aulas, isso está carregado comigo, por isso que eu digo, as histórias das pessoas é que fazem com que eu faça um trabalho assim, essa é a minha his-tória, eu não vim do nada. A gente vai vendo as possibilidades que o pé tem, também do pé e tem todo o trabalho que vamos ciscar, abre pé, fecha pé, quer dizer uma série de possibi-lidades de movimentos que a gente tem com o corpo pra justamente poder expressar o que eu quero depois, né?

As danças negras estão necessariamente vinculadas a religiosidade?

Não, pra mim, não. Estou falando da cultu-ra em si, onde tem esses elementos da natureza que regem essa cultura da ancestralidade. Hoje, entre os iorubas, na prática, existem aqueles que regem a religião cristã. Eles foram colonizados, tem o cristão, o muçulmano, que é uma religião que predomina inclusive no país inteiro.

Então... na Unicamp teve uma professora

que dava aula e que os alunos também se ma-nifestavam, que os orixás vinham também... Eu não entendo, sinceramente, eu não entendo. Isso me preocupa, como que você pode num espaço plural de sala de aula trazer os elemen-tos dessa história, dessa cultura? Como, se você não entende que aqueles gestos são gestos do dia a dia, de alguém que estava na fazenda, de alguém que tem uma criança no colo, de outro que se você entrar no mato sem nada, você vai abrir os caminhos, você puxa aqui, você puxa lá, quer dizer, se você não traz esses elementos... Se você conhece outras culturas, por exemplo na tradição indiana, Ganesh é muito parecida com Exu. Você amplia o conhecimento, você tem outras possibilidades.

Mas antes de tudo você tem que ver o movi-mento que faz no corpo. A dança e o mundo são pra todos. Pessoalmente, acho que é delicado e me preocupa muito essa questão plural na sala de aula, acho que você fi car agradando aos qua-tro ventos, só falar de orixá, o outro tem seu deus.

Como levar pra sala de aula sem falar de religião?

Acho que é pelo cotidiano, que é isso que eu fi z, por isso que eu dei aula esse tempo todo. Em-bora num determinado semestre, eu propunha trabalhar um mito específi co, “Por que oxalá usa ekodidé”, por exemplo, levamos o mito e cada um foi trabalhando, eu fi z com que cada um trouxesse a sua história dentro do mito. E eu me lembro que tinha uma menina, tinha aquela coisa do ogum dela, ela lutava karatê... Ela trouxe dentro desse viés, estudou o mito, as características dessa força mítica, como era, guerreiro que abre caminho, e criou uma coreografi a dentro disso. Inspirado no mito, mas a coreografi a já é outra coisa...

Tem uma frase interessante que eu gosta-ria que você comentasse: “Da porteira pra den-tro / da porteira pra fora”.

Ah! minha avó, é Mãe Senhora que dizia isso. Isso é uma sabedoria incrível, né? Porteira pra dentro, porteira pra fora. Eu sou uma pessoa da porteira pra fora. Aliás, tem um senhor ( ) ele fez, escutou meu disco e fez um artigo, acho que tem lá na internet, lá no meu site, e ele disse assim: “você da porteira pra fora, mas sempre se alimentando do que acontece da porteira pra dentro”.

Como as matrizes negras aparecem em nos-sas refl exões? Você falou que quando chegou na Nigéria, tinha aquele imaginário todo do que era a África e na verdade era outra coisa.

Eu não vejo nem diferença entre os contem-porâneos, quem tá vivendo agora, quem tá vi-vendo na Nigéria tratando de dança, como a gente aqui também falando de dança afro-brasi-leira, não tem diferença, a busca tá sendo igual-zinha. E isso é um exemplo claro no trabalho que a gente conhece mais, o da Germaine (Ger-maine Acogny) que faz referência justamente a esse diálogo. Quer dizer, ela adota a história dela. Ela aprendeu uma técnica e depois apren-deu a outra, uma que vem de sua história e ou-tra realmente aprendida e incorporada. Surge, então, o olhar dela, quer dizer, a mesma coisa é Inaicyra, acho que fi ca dentro desse limiar aí, da contemplação e da inquietação . É a inquieta-ção que permite você sair da zona do conforto. Estou querendo é essa coisa que permite você entrar também na história do indivíduo, trazer a história dele, para dialogar com a sua, com o que está sendo proposto.

LUCIANE rAMOs sILVA é doutoranda em Artes da Cena e mestre em antropologia, ambas pela UNiCAMP, e graduada em ciências sociais pela USP. Atua na área de estudos africanos, educação e artes do corpo. É antropóloga do Acervo África (centro de pesquisas e atividades culturais ligadas ao continente africano), professora de estudos africanos na FACAMP e professora de dança afro na Sala Crisantempo. Atu-almente suas pesquisas de campo se direcionam para as ações em dança contemporânea da África ociden-tal e os refl exos na realidade brasileira.

Corpo e ancestralidade – uma proposta pluri-cultural de dança-arte-educação. São Paulo, Editora Terceira Margem, 2006. 2ª. Edição.

Rituais e Linguagens da cena: Trajetórias e pesquisas sobre corpo e ancestralidade. Curitiba, Editora CRV, 2012.

Leia a entevista com Inaicyra Falcão na íntegra: omenelick2ato.com

CD Okan Awa – Cânticos da tradição Yorubá. 2002.

PArA LEr

PArA OUVIr

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a HistÓria tem outro Lado. o seu. omeneLicK2ato.com

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