olavo de carvalho - aristóteles em nova perspectiva

196
7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 1/196

Upload: tibartz

Post on 02-Apr-2018

220 views

Category:

Documents


5 download

TRANSCRIPT

Page 1: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 1/196

Page 2: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 2/196

Aristótelesem Nova

Perspectiva

Page 3: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 3/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

OBRAS DE OLAVO DE CARVALHO

Universalidade e Abstração São Paulo, Speculum, 1983

O Crime da Madre Agnes ou: A Confusão entre Espiritualidade e Psiquismo

São Paulo, Speculum, 1983 Astros e Símbolos

São Paulo, Nova Stella, 1983Símbolos e Mitos no Filme “O Silêncio dos Inocentes”

Rio, IAL & Stella Caymmi, 1993Os Gêneros Literários: Seus Fundamentos Metafísicos

Rio, IAL & Stella Caymmi, 1993O Caráter como Forma Pura da Personalidade

Rio, Astroscientia Editora, 1993 A Nova Era e a Revolução Cultural:

Fritjof Capra & Antonio GramsciRio, IAL & Stella Caymmi, 1994

(1ª ed., fevereiro; 2ª ed., revista e aumentada, agosto)O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César ( Ensaio

sobre o Materialismo e a Religião Civil )Rio, Diadorim, 199

O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais BrasileirasRio, Faculdade da Cidade Editora e Academia Brasileira de Filosofia,

1996; 2a. ed., id.

EM PREPARO: A Dialética Simbólica: Aulas e Conferências

História Essencial da FilosofiaO Olho do Sol: Ensaio sobre a Inteligência

3

Page 4: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 4/196

OLAVO DE CARVALHO

Aristóteles em Nova Perspectiva

I NTRODUÇÃO À TEORIA DOSQUATRODISCURSOS

TOPBOOKS

Copyright © Olavo de Carvalho, 1996

Composição e fotolitos:Art Line Produções Gráficas Ltda.

Page 5: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 5/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Todos os direitos reservados pelaTOPBOOKS EDITORA E DISTRIBUIDORA DE LIVROS LTDA.

Rua Visconde de Inhaúma, 58 gr. 413 - CEP 20091-000Rio de Janeiro - RJ - Tel.: (021) 233-8716

________________________________________________

Impresso no Brasil

5

Page 6: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 6/196

O LAVO DE C ARVALHO

Dedico este livro a minha mãe NICÉAPIMENTEL DE CARVALHO

e à memória de meu paiLUIZ GONZAGA DE CARVALHO

6

Page 7: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 7/196

“Quanto maior a obra pensada de um pensador a qual não coincide demaneira alguma com a extensão e onúmero de seus escritos , tantomaior, nessa obra, aquilo que foideixado sem pensar, isto é, aquilo que,através dela e somente dela, chega anós como jamais pensado.”

MARTIN HEIDEGGER

Page 8: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 8/196

SUMÁRIO

OLAVO DE CARVALHO.............................4

Prólogo .........................................................................11

Nota Prévia à Primeira Edição de Uma FilosofiaAristotélica da Cultura................................................22

ARISTÓTELES EM NOVA PERSPECTIVA...................................................................25

INTRODUÇÃO À TEORIA DOS QUATRODISCURSOS..............................................25

I. Os Quatro Discursos ................................................26

II. Um Modelo Aristotélico da História Cultural......50

III. A Presença da Teoria Aristotélica do Discurso naHistória Ocidental........................................................60

IV. A Tipologia Universal dos Discursos...................84I. Conceitos de base....................................................85II. Possibilidade de uma tipologia universal dosdiscursos.....................................................................87III. Escala das premissas............................................89

IV. Os quatro discursos..............................................92V. Os Motivos de Credibilidade..................................98

I. Discurso Poético ....................................................98II. Discurso Retórico................................................106III. Discurso Dialético..............................................110

Page 9: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 9/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

IV. Discurso Analítico.............................................111

VI. Marcos na história dos estudos aristotélicos noOcidente......................................................................114

VII. Notas para Uma Possível Conclusão................124

ARISTÓTELES NO DENTISTA...............135

POLÊMICA ENTRE O AUTOR E A SBPC.................................................................135

I. De re aristotelica opiniones abominandæ............136ou: Miados de um gato morto..................................136I. Da bibliografia......................................................139II. Originalmente velho............................................142III. Muito assunto para um livro só ........................143IV. As ciências introdutórias ...................................144V. Apofântico...........................................................145VI. A função da Dialética........................................148VII. Valha-me S. Gregório! ....................................150VIII. Não acerto uma ...............................................153IX. Novamente a Dialética ......................................154X. Do saber desinteressado......................................156XI. Poética e mímese ...............................................158XII. Verossímil?.......................................................161XIII. Tragédia e metafísica......................................163XIV. Evolução histórica...........................................165XV. Continuo não acertando uma............................167XVI. Os Quatro Discursos no tempo.......................168XVII. Conclusão .....................................................171

II. Desafio aos usurpadores corporativistas ...........178

III. Cartas a Ênio Candotti.......................................183

9

Page 10: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 10/196

O LAVO DE C ARVALHO

Primeira ..................................................................183Segunda....................................................................184

Leituras Sugeridas.....................................................189a) Traduções mais recomendáveis dos textos deAristóteles que interessam ao tema do presente estudo

..................................................................................189 b) Comentários e Estudos.........................................190c) Outras obras de interesse para o estudo dos QuatroDiscursos..................................................................193

Índice Onomástico......................................................195

10

Page 11: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 11/196

PRÓLOGO

ste livro é velho e é novo: reproduz o textode Uma Filosofia Aristotélica da Cultura

(Rio, IAL & Stella Caymmi, 1994), mas acrescidode quatro capítulos (IV, “A Tipologia Universaldos Discursos”1 , V, “Os Motivos deCredibilidade”, VI, “Marcos na História dosEstudos Aristotélicos”, e VII, “Notas para umaPossível Conclusão”), e de um suplemento,Aristóteles no Dentista: Polêmica entre o Autor ea SBPC. Os capítulos acrescentados não sãonovos, mas inéditos: circularam, até agora,apenas como apostilas de meus cursos. Quantoao suplemento, que circulou por um tempo num folheto que anexei a alguns exemplares deUmaFilosofia Aristotélica da Cultura , mas não atodos, reúne: (a) o texto com que respondi àinacreditável “Avaliação crítica” que o ComitêEditorial da revistaCiência Hoje2 fez deUma

Filosofia Aristotélica da Cultura; (b) o artigo que

E

1 Distribuído em 1987, em formato de apostila, aos alunos docurso “Introdução à Vida Intelectual”. — Quanto ao capítulo II, éapenas a segunda parte do Capítulo I deUma Filosofia Aristotélica da Cultura, que achei melhor desmembrar.2 Da SBPC, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

Page 12: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 12/196

O LAVO DE C ARVALHO

publiquei emO Globoem resposta a dois bocósde mola (ou antes, de borla e capelo), que saíamem defesa do indefensável e aproveitavam paraopinar contra uma tese que admitiam não ter lido(tratando-se portanto de um caso de telepatiacrítica); (c) algumas das cartas que remeti aodiretor da publicação, Ênio Candotti, tentandoconscientizá-lo de suas obrigações, esforço a queele resistiu com a bravura necessária a me fazer compreender finalmente o que a velha teologiaqueria dizer com a expressão ignorantiainvincibilis.

Na polêmica eclodida em torno deUmaFilosofia Aristotélica da Culturaentre dezembrode 1994 e fevereiro de 1995 na imprensacarioca, o mais curioso foi que meus oponentes, pródigos em opiniões sobre a pessoa de um autor que nunca tinham visto mais gordo nem viramdepois da dieta, não fossem capazes de dizer umasó palavra sobre o conteúdo da tese aquidefendida, a qual certamente escapava nãosomente à sua compreensão como também ao seu

círculo de interesses, sendo, como é,inteiramente alheia a conversas fúteis de velhascorocas. Desafiados publicamente a discuti-la, preferiram refugiar-se no terreno dos insultos pessoais, onde suas alminhas trêmulas e

12

Page 13: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 13/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

rancorosas se sentiam mais protegidas por ser talvez seuhabitatnatural. Mas, pela coincidênciainfausta ou fausta de que a essa polêmica emOGlobocorresse parelha uma outra, sobre diversoassunto, pelas páginas doJornal do Brasil ,aconteceu que as duas disputas acabaram seconfundindo. Não se confundiriam, é certo, semuitas cabeças supostamente intelectualizadas,neste país, não percebessem as coisas menossegundo as distinções categoriais de Aristótelesdo que segundo uma pueril superposiçãoeisensteiniana de imagens ou uma “lógica dasaparências” de molde epicúreo, método em queum suíno ou galináceo pode revelar certa períciaantes mesmo de atingir a idade madura. E comoo assunto da segunda polêmica fosse nada menosexplosivo que o julgamento moral daintelligentzia , que, certo ou não, eu acusava decumplicidade inconsciente com o banditismocarioca3 , aconteceu que muitos membros daclasse, sentindo-se atingidos num ponto qualquer vulnerável da sua epiderme corporativa e nãosabendo ao certo de onde vinha a pancada,acharam que, por via das dúvidas, era melhor se precaverem também contra o meu inocentíssimo Aristóteles. Para o que, naturalmente, era

melhor mesmo não tê-lo lido. O resultado foiefetivamente umimbroglio , no melhor estilocrioulo doido , em que se aliaram má consciência,

3 Refiro-me à série de artigos “Bandidos & Letrados”, que o Jornal do Brasilcomeçou a publicar em 28 de dezembro de 1994.

13

Page 14: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 14/196

O LAVO DE C ARVALHO

vaidades classistas, picuinhas ideológicas, uma prodigiosa incultura filosófica e uma firmedecisão de não entender nada, para dar combateem cerrada frente única a algo que não tinham amenor idéia do que fosse, mas no qual suascélulas olfativas, desconfiadíssimas como as deum capiau em Nova York, acreditavamreconhecer o vago odor de uma ameaça temível. Ao ver todos aqueles pintainhos correndoesbaforidos para baixo das asas protetoras dasolidariedade corporativa, não pude deixar deconjeturar que, na peça que se encenava em seucirquinho mental, me haviam atribuído o papelde raposa no galinheiro. Atribuição muitolisonjeira para a minha diminuta pessoa, mas, positivamente, maluquice. Ou talvez não: talvez pressentimento certeiro de que uma voz que fale perfeitamente a sério , com aquela sinceridadeque une coração e cérebro,ethos e logos , podeestragar todo o efeito da comédia tão meticu-losamente montada em que se transformou a vidaintelectual brasileira, pode espantar o público e forçar a troupe de surrados palhaços a buscar outro emprego. Não sei, na verdade nem meinteressa: o problema é deles.

Meuproblema, o único que no caso vinha ao

caso, era saber se existe ou não uma unidade dosquatro discursos na lógica de Aristóteles e sedela podemos aproveitar alguma coisa para anossa busca atual de um saber interdisciplinar. Não entendo como aqueles fulanos chegaram a

14

Page 15: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 15/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

imaginar que um sujeito metido até a goela numaquestão encrencada como esta pudesse ter tempoou curiosidade de saber a opinião deles sobre asua pessoa, da qual ele mesmo não se dá otrabalho de pensar coisa alguma desde que,liberto dos conflitos egocêntricos da adoles-cência, descobriu existir um vasto mundo para ládo seu umbigo. Muito menos penso o que quer que seja a respeito dessas criaturas, cujaconduta no caso, por mais evidentementeestúpida que seja, não me dá elementos para julgar no todo suas respectivas personalidades,que não conheço e que, no sentido mais rigorosoda palavra, não são assunto. Criar opiniõessobre seus semelhantes é uma das ocupaçõesmais ociosas a que um homem pode dedicar sua porca vida. Como dizia Henry James,masterstalk about things; servants, about people.

O Capítulo V, reprodução de uma aula doSeminário de Filosofia , ajudará o leitor aapreender a perspectiva histórica em que, naevolução dos estudos aristotélicos no mundo, seinsere deliberadamente a minha investigaçãosobre os Quatro Discursos; e esta perspectiva,uma vez que o olhar a tenha abrangido ao menosnum relance, permitirá enxergar a importância

vital que o tema deste livro tem não somente para a História da Filosofia, mas para aconcepção de uma cultura global e integrada, deuma educação global e integrada, nas quais sedepositam hoje as melhores esperanças da

15

Page 16: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 16/196

O LAVO DE C ARVALHO

humanidade. O contraste entre a altitude destascogitações e a mesquinhez das reações que olivro suscitou nesta parte do mundo não meinfunde nenhuma revolta, já que minha alma pecaminosa é antes inclinada à gula, à preguiçae à luxúria do que a espumar de cólera, mas simuma tristeza sem remédio, cheia de presságiossombrios sobre o papel que este país pretenderepresentar na História espiritual do mundo.Tristeza que disfarço rindo — rindo o risomelancólico do espectador inerme ante umatragicomédia histórica.

De qualquer maneira, a reprodução dessesdocumentos no presente volume não tem só a finalidade de registrar para os pósteros umalamentável realidade do presente. Minha res- posta ao “consultor” da SBPC contém algunsdesenvolvimentos importantes do argumentocentral, inclusive desde o ponto de vista me-tafísico, que propositadamente se omitira nocorpo do trabalho. Se outros méritos não tem oincógnito personagem, não se lhe pode negar este, de me haver dado a ocasião de explicaçõesque, esperando a oportunidade de receber desenvolvimentos mais minuciosos, talvez nãochegassem a dar-se nunca4.

É preciso acrescentar ainda que nem todomundo, no meio universitário, imita em seu modo

4 Refiro-me especificamente aos §§ 1, 12 e 13 do documento, cujaleitura muito ajudará o leitor a compreender o alcance de minhatese central.

16

Page 17: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 17/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

de pensar aqueles três neurônios que, segundo asúltimas contagens, existem na cabeça do diretor de Ciência Hoje , e dos quais, por medida deeconomia, ele desfruta em condomínio com os profs. Gilberto Velho e Carlos HenriqueEscobar, não deixando nenhum para o sr. Antônio Callado (o qual os tinha em profusão,mas gastou tudo para escrever oQuarup). O sr.Fernando de Mello Gomide, em carta aO Globoa respeito do episódio, fez observações pertinentes sobre a incultura filosófica dasnossas elites científicas. Logo depois aUniversidade Católica do Salvador, BA, na pessoa do coordenador acadêmico do seu Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Prof. Dante Augusto Galeffi, tomou a iniciativa delavar a honra da comunidade universitáriabrasileira, convidando-me a dar uma série deconferências sobre o tema deste livro, o que fizem maio de 1995 (sob o título que depois adotei para o presente volume) para uma platéia dasmais inteligentes e aplicadas que já vi entreestudantes brasileiros. Quem terminou de retirar a nódoa com que este episódio manchara areputação do nossoestablishmentacadêmico foio prof. Miguel Reale, ao aceitar uma versão

abreviada deste trabalho para apresentação no V Congresso Brasileiro de Filosofia (São Paulo,setembro de 1995), onde finalmente tive aoportunidade de ouvir e responder a objeçõesdignas e inteligentes, apresentadas por três

17

Page 18: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 18/196

O LAVO DE C ARVALHO

autênticos homens de saber: Milton Vargas, Romano Galeffi e Gaston Duval.

Não posso aqui deixar de agradecer a todosos que me apoiaram nessa batalha, que não procurei nem rejeitei, contra a ignorânciaestabelecida. Evandro Carlos de Andrade abriuas páginas de O Globo para que nelas eu medefendesse, tornando menos desigual o combateque se travava entre um ilustre desconhecido e agaleria inteira dos cardeais reunidos em concíliosob as bênçãos apostólicas do papa Ennius I.Elizabeth Orsini fez a excelente reportagem quetrouxe o assunto a público. Bruno Tolentino, coma veia satírica que herdou de seu antepassado Nicolau, comprou a briga, saiu em campo etornou os figurões da SBPC objeto de riso na-cional. E, entre os muitos que escreveram a mime aos jornais cariocas em minha defesa, devouma menção especial ao filólogo Daniel Brilhante de Brito. Umas semanas antes de aencrenca eclodir na imprensa, eu havia mandadoum exemplar deUma Filosofia Aristotélica daCulturaa esse respeitado helenista, pedindo-lheque inspecionasse com rigor minhaselucubrações sobre o vocabulário de Aristóteles.Fiz isso tremendo de medo, consciente de que

meus conhecimentos de língua grega nãoestavam muito acima do nível da cultura filosófica do “avaliador” sbpecéico. Só eu sei oalívio que senti quando o mestre, em vez de mechamar a um canto para me passar um sabão,

18

Page 19: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 19/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

escreveu aoJornal do Brasilpara me elogiar em público, na hora mesma em que os filosofófagos procuravam me assar vivo.

Não é necessário dizer que todo este episódioda SBPC me impressionou profundamente,mostrando-me que a inépcia das nossas classesletradas podia ser muito mais vasta do que asamostras casuais que dela me haviam chegadoaté então podiam ter-me levado a suspeitar. Oimpacto desta experiência foi, num primeiromomento, deprimente, como no caso de um professor que, tendo dado o melhor de si paraexplicar durante meses um determinado tópico,de repente se desse conta de que a classe nãoentendera absolutamente nada. A percepção dainocuidade de seus esforços pedagógicos viria aí,como veio para mim, acompanhada de umterrível sentimento de solidão, de estar numaterra estranha, rodeado de desconhecidos. Lembrei-me então doDiálogo da Conversão doGentio , onde o Pe. Manoel da Nóbrega, falandode seu contentamento inicial com as primeiras

conversões de índios, relata a triste decepçãoque sofreu em seguida, ao perceber que sehaviam convertido por mero comodismo e semcaptar o menor sentido na pregação queaparentemente os cristianizara. Imagino a

19

Page 20: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 20/196

O LAVO DE C ARVALHO

solidão desse homem, a milhares de quilômetrosde casa, ao perceber que falara para as paredes,ou melhor, não havendo paredes no Novo Mundo, para os coqueiros e tatus-bolinhas. Foiisso precisamente o que senti ante oparecer daSBPC: a vida intelectual no Brasil era realmenteumparecer , sem nenhumser por dentro, e eu eraum idiota perfeito que me dirigira a seus protagonistas na ilusão de estar dialogando comcriaturas vivas. Foi nesse instante que nasceu, deinício obscura e indefinida, a inspiração do livroO Imbecil Coletivo , como a de uma espécie detratamento de choque para despertar omoribundo. E hoje, quando ouço essas mesmascriaturas proclamarem que o escrevi parachamar atenção sobre mim, noto que estão aindamais longe da realidade do que mesmo oepisódio da SBPC me fez julgar que estavam; pois nem suspeitam que o escrevi unicamente para chamar sua atenção sobre si mesmas.

Ao reeditar agora estas pacíficas especula-ções que deram origem a tantos combates, e aocontemplar a agitação furiosa dessas pobrescriaturas que me recusam a condição de filósofosó para dar a si mesmas a ilusão de que teriam o poder de me outorgá-la, tenho vivo em mim o

sentimento da ironia da situação. Lembra-me acena do filme de Woody Allen, em que o heróisem nenhum caráter, Zellig, internado numhospício e recebendo em seu quarto a visitadiária da psiquiatra, acredita ser o terapeuta que

20

Page 21: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 21/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

recebe a paciente em seu consultório. Não por coincidência, Zellig era, na sua universidadeimaginária, catedrático de masturbação.

Rio de Janeiro, setembro de 1996.

21

Page 22: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 22/196

O LAVO DE C ARVALHO

NOTA PRÉVIA À PRIMEIRAEDIÇÃO DE U MAF ILOSOFIAA RISTOTÉLICA DAC ULTURA

m formato de apostila, o primeiro dostextos que compõem este livreto vem

circulando entre meus alunos desde 1993, e osegundo desde 1992. Resumem porém uma idéiaque apresento em meus cursos desde 1987: a

idéia de que, na filosofia de Aristóteles, aPoética, a Retórica, a Dialética e a Lógica(Analítica), fundadas em princípios comuns, formam uma ciência única.

E

Uma opinião tão contrária às tendênciasdominantes desde vários séculos na interpre-tação de um grande filósofo deveria, ao apre-sentar-se em público sob forma de livro, por miúdo e modesto que seja, comparecer inteira, precisa e acompanhada de uma demonstraçãotanto quanto possível extensiva. Não é o casodeste livreto. A idéia apresenta-se aqui emresumo compacto, sem mais escoras do que umas

22

Page 23: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 23/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

indicações, muito gerais, das linhas dedemonstração cabíveis5.

Não que ela esteja ainda em germe no cé-rebro do autor: sua exposição completa e suademonstração cabal já foram dadas, váriasvezes, nos meus cursos, sendo gravadas em fita etranscritas em apostilas6 . Uma vidaanormalmente agitada, que em nada se aproximada imagem idealizada do pacatoscholar entreseus livros, que o tema deste livro poderiasugerir ao leitor, tem-me impedido dar a essematerial o formato verbal adequado e definitivo,razão pela qual tive de optar, um dia, entre publicar minha interpretação de Aristóteles emabreviatura provisória ou aguardar que algumespertinho, desses que constituem um bom terçoou quarto da nossa população letrada, tendo-aouvido em meus cursos e conferências, ou talvezreproduzida por alguém que dela tivesse ouvido falar de longe, a apresentasse logo como sua própria e originalíssima descoberta.

Pois não somente descobri esta coisa, masdediquei-lhe depois alguns anos suplementaresde minha vida, dando-lhe amplas aplicações práticas no domínio da pedagogia e da meto-dologia filosófica, que o mestre Estagirita, se as

visse, não as renegaria de todo, ao menos5 O presente volume vai um pouco além: exemplifica, no CapítuloIV, uma dessas linhas de demonstração.6 Uma Filosofia Aristotélica da Culturacontinha só os capítulosde I a III.

23

Page 24: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 24/196

O LAVO DE C ARVALHO

segundo me lisonjeia crer. E, sem lamber a cria,não vou no entanto entregá-la de mão beijada ao primeiro gavião que passe.

Eis aí que, por mero resguardo de prioridade,resolvi publicar este resumo, que, se por breve é insatisfatório, não peca, segundo creio, por nenhuma imprecisão ou grave lacuna, e queademais serve de introdução a exposições maiscompletas que se seguirão, com a ajuda de Deus.

Rio, agosto de 1994.

24

Page 25: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 25/196

Aristóteles em Nova Perspectiva

I NTRODUÇÃO À TEORIA DOSQUATRO DISCURSOS

Page 26: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 26/196

I. OS QUATRODISCURSOS 7

Á EMBUTIDAnas obras de Aristóteles umaidéia medular, que escapou à percepção de

quase todos os seus leitores e comentaristas, daAntigüidade até hoje. Mesmo aqueles que a perceberam — e foram apenas dois, que eu saiba,ao longo dos milênios — limitaram-se a anotá-la

de passagem, sem lhe atribuir explicitamente umaimportância decisiva para a compreensão da filo-sofia de Aristóteles8. No entanto, ela é a chave

H

7 Em vez de reproduzir exatamente o texto da primeira edição,este capítulo segue a versão ligeiramente corrigida que, sob otítulo “A estrutura doOrganon e a unidade das ciências dodiscurso em Aristóteles“, apresentei no V Congresso Brasileiro deFilosofia, em São Paulo, 6 de setembro de 1995 (seção de Lógicae Filosofia da Ciência).8 Esses dois foram Avicena e Sto. Tomás de Aquino. Avicena(Abu 'Ali el-Hussein ibn Abdallah ibn Sina, 375-428 H. /985-1036 d.C.) afirma taxativamente, na sua obraNadjat (“A

Salvação”), a unidade das quatro ciências, sob o conceito geral de“lógica”. Segundo o Barão Carra de Vaux, isto “mostra quanto eravasta a idéia que ele fazia desta arte", em cujo objeto fizera entrar “o estudo de todos os diversos graus de persuasão, desde ademonstração rigorosa até à sugestão poética” (cf. Baron Carra deVaux, Avicenne,Paris, Alcan, 1900, pp. 160-161). Sto. Tomás deAquino menciona também, nosComentários às Segundas

Page 27: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 27/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

mesma dessa compreensão, se por compreensãose entende o ato de captar a unidade do pensamento de um homem desde suas própriasintenções e valores, em vez de julgá-lo de fora;ato que implica respeitar cuidadosamente oinexpresso e o subentendido, em vez de sufocá-lona idolatria do “texto” coisificado, túmulo do pensamento.

A essa idéia denominoTeoria dos Quatro Discursos.Pode ser resumida em uma frase: odiscurso humano é uma potência única, que seatualiza de quatro maneiras diversas: a poética, aretórica, a dialética e a analítica (lógica).

Dita assim, a idéia não parece muito notável.Mas, se nos ocorre que os nomes dessas quatro

Analíticas, I, 1.I, nº 1-6, os quatro graus da lógica, dos quais, provavelmente tomou conhecimento através de Avicena, masatribuindo-lhes o sentido unilateral de uma hierarquia descendenteque vai do mais certo (analítico) ao mais incerto (poético) e dandoa entender que, da Tópica "para baixo”, estamos lidando apenascom progressivas formas do erro ou pelo menos do conhecimentodeficiente. Isto não coincide exatamente com a concepção deAvicena nem com aquela que apresento neste livro, e que me parece ser a do próprio Aristóteles, segundo a qual não há propriamente uma hierarquia de valor entre os quatro argumentos,mas sim uma diferença de funções articuladas entre si e todasigualmente necessárias à perfeição do conhecimento. De outrolado, é certo que Sto. Tomás, como todo o Ocidente medieval, nãoteve acesso direto ao texto daPoética. Se tivesse, seria quase

impossível que visse na obra poética apenas a representação dealgo “como agradável ou repugnante” (loc. cit., nº 6), sem meditar mais profundamente sobre o que diz Aristóteles quanto ao valor filosófico da poesia (Poética, 1451 a). De qualquer modo, é umfeito admirável do Aquinatense o haver percebido a unidade dasquatro ciências lógicas, raciocinando, como o fez, desde fontes desegunda mão.

27

Page 28: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 28/196

O LAVO DE C ARVALHO

modalidades de discurso são também nomes dequatro ciências, vemos que segundo essa perspectiva a Poética, a Retórica, a Dialética e aLógica, estudando modalidades de uma potênciaúnica, constituem também variantes de umaciência única. A diversificação mesma em quatrociências subordinadas tem de assentar-se na razãoda unidade do objeto que enfocam, sob pena defalharem à regra aristotélica das divisões. E istosignifica que os princípios de cada uma delas pressupõem a existência de princípios comunsque as subordinem, isto é, que se apliquem por igual a campos tão diferentes entre si como ademonstração científica e a construção do enredotrágico nas peças teatrais. Então a idéia que acabode atribuir a Aristóteles já começa a nos parecer estranha, surpreendente, extravagante. E as duas perguntas que ela nos sugere de imediato são:Terá Aristóteles realmente pensado assim? E, se pensou, pensou com razão? A questão biparte-se portanto numa investigação histórico-filológica enuma crítica filosófica. Não poderei, nasdimensões da presente comunicação, realizar acontento nem uma, nem a outra. Emcompensação, posso indagar as razões daestranheza.

O espanto que a idéia dos Quatro Discursos provoca a um primeiro contato advém de umcostume arraigado da nossa cultura, de encarar alinguagem poética e a linguagem lógica ou cientí-fica como universos separados e distantes,

28

Page 29: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 29/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

regidos por conjuntos de leis incomensuráveisentre si. Desde que um decreto de Luís XIVseparou em edifícios diversos as “Letras” e as“Ciências”9, o fosso entre a imaginação poética ea razão matemática não cessou de alargar-se, atése consagrar como uma espécie de lei constitutivado espírito humano. Evoluindo como paralelasque ora se atraem ora se repelem mas jamais setocam, asduas culturas, como as chamou C. P.Snow, consolidaram-se em universos estanques,cada qual incompreensível ao outro. GastonBachelard, poeta doublé de matemático,imaginou poder descrever esses dois conjuntos deleis como conteúdos de esferas radicalmenteseparadas, cada qual igualmente válido dentro deseus limites e em seus próprios termos, entre osquais o homem transita como do sono para avigília, desligando-se de um para entrar na outra,e vice-versa10: a linguagem dos sonhos nãocontesta a das equações, nem esta penetra nomundo daquela. Tão funda foi a separação, que9 V. Georges Gusdorf,Les Sciences Humaines et la PenséeOccidentale, t. I, De l'Histoire des Sciences à l'Histoire de laPensée, Paris, Payot, 1966, pp. 9-41.10 A obra de Bachelard, refletindo o dualismo metódico do seu pensamento, divide-se em duas séries paralelas: de um lado, ostrabalhos de filosofia das ciências, comoLe Nouvel Esprit

Scientifique, Le Rationalisme Appliqué , etc.; de outro, a sériededicada aos “quatro elementos” — La Psychanalyse du Feu, L'Air et les Songes, etc., onde o racionalista em férias exercelivremente o que chamava “o direito de sonhar”. Bachelard parecia possuir um comutador mental que lhe permitia passar deum desses mundos ao outro, sem a menor tentação de lançar entreeles outra ponte que não a liberdade de acionar o comutador.

29

Page 30: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 30/196

O LAVO DE C ARVALHO

alguns desejaram encontrar para ela umfundamento anatômico na teoria dos dois he-misférios cerebrais, um criativo e poético, outroracional e ordenador, e acreditaram ver umacorrespondência entre essas divisões e a dupla yin-yangda cosmologia chinesa11. Mais ainda, julgaram descobrir no predomínio exclusivo deum desses hemisférios a causa dos males dohomem Ocidental. Uma visão um tanto mistifi-cada do ideografismo chinês, divulgada nosmeios pedantes por Ezra Pound12, deu a essateoria um respaldo literário mais do quesuficiente para compensar sua carência defundamentos científicos. A ideologia da “NovaEra” consagrou-a enfim como um dos pilares dasabedoria13.

11 Para um exame crítico dessa teoria, v. Jerre Levy, “Right Brain,Left Brain: Fact and Fiction” (Psychology Today, may 1985, pp.43 ss.).12 Ezra Pound fez um barulho enorme em torno do ensaio deErnest Fenollosa,The Chinese Characters as a Medium for Poetry (London, Stanley Nott, 1936), dando ao Ocidente aimpressão de que a língua chinesa constituía um mundo fechado,regido por categorias de pensamento inacessíveis à compreensãoOcidental exceto mediante uma verdadeira torção do conceitomesmo de linguagem. O simbolismo chinês, no entanto, é bemmais parecido com o Ocidental do que imaginam os apreciadoresde abismos culturais. Uma similaridade patente que tem escapado

a essas pessoas é a que existe entre a estrutura doI Chinge asilogística de Aristóteles.13 A crença na teoria dos dois hemisférios é comum a todos osteóricos e gurus da “Nova Era”, como Marilyn Ferguson, ShirleyMacLaine e Fritjof Capra. Sobre este último, v. meu livroA NovaEra e a Revolução Cultural. Fritjof Capra & Antonio Gramsci,Rio, Instituto de Artes Liberais & Stella Caymmi Editora, 1994. O

30

Page 31: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 31/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

Nesse quadro, o velho Aristóteles posava, junto com o nefando Descartes, como o protótipomesmo do bedel racionalista que, de régua em punho, mantinha sob severa repressão o nossochinês interior. O ouvinte imbuído de tais crençasnão pode mesmo receber senão com indignadoespanto a idéia que atribuo a Aristóteles. Elaapresenta como um apóstolo da unidade aquele aquem todos costumavam encarar como umguardião da esquizofrenia. Ela contesta umaimagem estereotipada que o tempo e a cultura dealmanaque consagraram como uma verdadeadquirida. Ela remexe velhas feridas, cicatrizadas por uma longa sedimentação de preconceitos.

A resistência é, pois, um fato consumado.Resta enfrentá-la, provando, primeiro, que a idéiaé efetivamente de Aristóteles; segundo, que éuma excelente idéia, digna de ser retomada, comhumildade, por uma civilização que se apressouem aposentar os ensinamentos do seu velhomestre antes de os haver examinado bem. Não poderei aqui senão indicar por alto as direções

mais curioso desta teoria é que ela pretende vencer a esquizofreniado homem Ocidental e começa por dar a ela um fundamentoanatômico (afortunadamente, fictício). — É evidente, pelo que se

verá a seguir, que não levo muito a sério as tentativas, tão meritó-rias no intuito quanto miseráveis nos resultados, de superar odualismo mediante a mixórdia metodológica generalizada queadmite como critérios de validade científica a persuasividaderetórica e a efusão imaginativa (v. por exemplo Paul Feyerabend,Contra o Método, trad. Octanny S. da Motta e LeônidasHegenberg, Rio, Francisco Alves, 1977).

31

Page 32: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 32/196

O LAVO DE C ARVALHO

onde devem ser buscadas essas duasdemonstrações.

Aristóteles escreveu umaPoética, uma Re-tórica, um livro de Dialética (osTópicos) e doistratados de Lógica ( Analíticas I e II), além deduas obras introdutórias sobre a linguagem e o pensamento em geral (Categorias e Da Interpretação). Todas essas obras andaram prati-camente desaparecidas, como as demais deAristóteles, até o século I a. C., quando um certoAndrônico de Rodes promoveu uma edição deconjunto, na qual se baseiam até hoje nossosconhecimentos de Aristóteles.

Como todo editor póstumo, Andrônico teve decolocar alguma ordem nos manuscritos. Decidiutomar como fundamento dessa ordem o critérioda divisão das ciências emintrodutórias (oulógicas), teoréticas, práticas e técnicas (ou poiêticas, como dizem alguns). Esta divisão tinhao mérito de ser do próprio Aristóteles. Mas, comoobservou com argúcia Octave Hamelin14, não hánenhum motivo para supor que a divisão dasobras de um filósofo em volumes devacorresponder taco-a-taco à sua concepção dasdivisões do saber. Andrônico deu essacorrespondência por pressuposta, e agrupou os

manuscritos, portanto, nas quatro divisões. Mas,14 “É talvez excessivo exigir que as obras de um autor correspondam ponto por ponto à classificação das ciências talcomo a compreende esse autor.” (Octave Hamelin,Le Systèmed'Aristote, publié par Léon Robin, 4e. éd., Paris, J. Vrin, 1985, p.82.)

32

Page 33: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 33/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

faltando outras obras que pudessem entrar sob orótulo técnicas, teve de meter lá aRetórica e aPoética, desligando-as das demais obras sobre ateoria do discurso, que foram compor a unidadeaparentemente fechada doOrganon, conjunto dasobras lógicas ou introdutórias.Somada a outras circunstâncias, essa casua-lidade editorial foi pródiga em conseqüências,que se multiplicam até hoje. Em primeiro lugar, aRetórica — nome de uma ciência abominada pelos filósofos, que nela viam o emblema mesmode seus principais adversários, os sofistas — nãosuscitou, desde sua primeira edição por Andrônico, o menor interesse filosófico. Foi lidaapenas nas escolas de retórica, as quais, para piorar as coisas, entravam então numa decadênciaacelerada pelo fato de que a extinção dademocracia, suprimindo a necessidade deoradores, tirava a razão de ser da arte retórica,encerrando-a na redoma de um formalismonarcisista15. Logo em seguida, aPoética, por suavez, sumiu de circulação, para só reaparecer noséculo XVI16. Estes dois acontecimentos parecemfortuitos e desimportantes. Mas, somados, dão15 Refiro-me ao período da chamada “retórica escolar”. V. ErnstRobert Curtius,Literatura Européia e Idade Média Latina, trad.

Teodoro Cabral, Rio, INL, 1957, pp. 74 ss.16 Isso torna ainda mais engraçada a trama d'O Nome da Rosa, deUmberto Eco, trama propositadamente impossível que oespectador desinformado toma como ficção verossímil: pois como poderia surgir uma disputa em torno da desaparecida SegundaParte daPoéticade Aristóteles, numa época que desconhecia até aPrimeira?

33

Page 34: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 34/196

O LAVO DE C ARVALHO

como resultado nada menos que o seguinte: todoo aristotelismo ocidental, que, de iníciolentamente, mas crescendo em velocidade a partir do século XI, foi se formando no período que vaidesde a véspera da Era Cristã até oRenascimento, ignorou por completo aRetóricaea Poética. Como nossa imagem de Aristótelesainda é uma herança desse período (já que aredescoberta daPoética no Renascimento nãodespertou interesse senão dos poetas e filólogos,sem tocar o público filosófico), até hoje o quechamamos de Aristóteles, para louvá-lo ou paramaldizê-lo, não é o homem de carne e osso, masum esquema simplificado, montado durante osséculos que ignoravam duas das obras dele. Emespecial, nossa visão da teoria aristotélica do pensamento discursivo é baseada exclusivamentena analítica e na tópica, isto é, na lógica e nadialética, amputadas da base que Aristóteles tinhaconstruído para elas na poética e na retórica17.17 No quadro medieval, o fenômeno que descrevo tem certamentealguma relação com uma estratificação social que colocava ossábios e filósofos, classe sacerdotal, acima dos poetas, classe deservidores da corte ou artistas de feira. Ostatus inferior do poetaem relação aos sábios nota-se tanto na hierarquia social (veja-se o papel decisivo que no desenvolvimento literário medievaldesempenharam osclerici vagantes, ou goliardos, todo um

“proletariado eclesiástico” à margem das universidades), quantona hierarquia das ciências mesmas: os estudos literários estavamrigorosamente fora do sistema educacional da escolástica, e asmais elevadas concepções filosóficas da Idade Média foramescritas num latim bastante grosseiro, sem que isto, na ocasião,suscitasse qualquer estranheza e muito menos reações deescândalo esteticista como as que viriam a eclodir no

34

Page 35: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 35/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

Mas a mutilação não parou aí. Do edifício dateoria do discurso, haviam sobrado só os doisandares superiores — a dialética e a lógica —, boiando sem alicerces no ar como o quarto do poeta na “Última canção do beco” de ManuelBandeira. Não demorou a que o terceiro andar fosse também suprimido: a dialética, consideradaciência menor, já que lidava somente com ademonstração provável, foi preterida em benefício da lógica analítica, consagrada desde aIdade Média como a chave mesma do pen-samento de Aristóteles. A imagem de umAristóteles constituído de “lógica formal +sensualismo cognitivo + teologia do PrimeiroMotor Imóvel” consolidou-se como verdadehistórica jamais contestada.

Mesmo o prodigioso avanço dos estudos biográficos e filológicos inaugurado por Werner Jaeger 18 não mudou isso. Jaeger apenas derrubouo estereótipo de um Aristóteles fixo e nascido pronto, para substituir-lhe a imagem vivente deum pensador que evolui no tempo em direção àmaturidade das suas idéias. Mas o produto finalda evolução não era, sob o aspecto aqui abordado,muito diferente do sistema consagrado pela IdadeMédia: sobretudo a dialética seria nele um

Renascimento. Cf., a propósito, Jacques Le Goff,Os Intelectuaisna Idade Média, trad. Luísa Quintela, Lisboa, Estudios Cor, 1973,Cap. I § 7.18 V. Werner Jaeger,Aristoteles. Bases para la Historia de su Desarrollo Intelectual, trad. José Gaos, México, Fondo de CulturaEconómica, 1946 (o original alemão é de 1923).

35

Page 36: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 36/196

O LAVO DE C ARVALHO

resíduo platônico, absorvido e superado na lógicaanalítica.

Mas essa visão é contestada por alguns fatos.O primeiro, ressaltado por Éric Weil, é que oinventor da lógica analítica jamais se utiliza delaem seus tratados, preferindo sempre argumentar dialeticamente19. Em segundo lugar, o próprioAristóteles insiste em que a lógica não trazconhecimento, mas serve apenas para facilitar averificação dos conhecimentos já adquiridos,confrontando-os com os princípios que osfundamentam, para ver se não os contradizem.Quando não possuímos os princípios, a únicamaneira de buscá-los é a investigação dialéticaque, pelo confronto das hipóteses contraditórias,leva a uma espécie de iluminação intuitiva que põe em evidência esses princípios. A dialética emAristóteles é, portanto, segundo Weil, umalogicainventionis, ou lógica da descoberta: o verdadeirométodo científico, do qual a lógica formal éapenas um complemento e um meio de verifi-cação20.

19 Essa constatação fez surgir por sua vez a disputa entre osintérpretes que consideram Aristóteles um pensador sistemático(que parte sempre dos mesmos princípios gerais) e os que oenxergam como pensador aporético(que ataca os problemas um

por um e vai subindo na direção do geral sem ter muita certeza deaonde vai chegar). A abordagem sugerida no presente trabalhotem, entre outras, a ambição de resolver essa disputa. V., adiante,Cap. VII.20 V. Éric Weil, “La Place de la Logique dans la PenséeAristotélicienne”, emÉssais et Conférences, t. I, Philosophie,Paris, Vrin, 1991, pp. 43-80.

36

Page 37: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 37/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

Mas a oportuna intervenção de Weil, sedesfez a lenda de uma total hegemonia da lógicaanalítica no sistema de Aristóteles, deixou delado a questão da retórica. O mundo acadêmicodo século XX ainda subscreve a opinião de Sir David Ross, que por sua vez segue Andrônico: a Retóricatem “um propósito puramente prático”;“não constitui um trabalho teórico” e sim “ummanual para o orador”21. Mas àPoética, por seulado, Ross atribui um valor teórico efetivo, semreparar que, se Andrônico errou neste caso, podetambém ter se enganado quanto àRetórica.Afinal, desde o momento em que foiredescoberta, aPoética também foi encaradasobretudo como “um manual prático” e interessouantes aos literatos do que aos filósofos22. De outrolado, o próprio livro dosTópicospoderia ser vistocomo “manual técnico” ou pelo menos “prático” — pois na Academia a dialética funcionava

21 Sir David Ross,Aristóteles, trad. Luís Filipe Bragança S. S.Teixeira, Lisboa, Dom Quixote, 1987, p. 280 (o original inglês éde 1923).22 Desde a sua primeira tradução comentada (FrancescoRobortelli, 1548), aPoética redescoberta vai moldar por doisséculos e meio os padrões do gosto literário, ao mesmo tempoque, no campo da Filosofia da Natureza, o aristotelismo recua, banido pelo avanço vitorioso da nova ciência de Galileu e Bacon,

Newton e Descartes. Isto mostra, de um lado, a total separaçãoentre o pensamento literário e a evolução filosófica e científica(separação característica do Ocidente moderno, e que se agravaráno decorrer dos séculos); de outro, a indiferença dos filósofos pelotexto redescoberto. Sobre as raízes aristotélicas da estética doclassicismo europeu, v. René Wellek,História da Crítica Moderna, trad, Lívio Xavier, São Paulo, Herder. t. I, Cap. I.

37

Page 38: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 38/196

O LAVO DE C ARVALHO

exatamente como tal: era o conjunto das normas práticas do debate acadêmico. Enfim, aclassificação de Andrônico, uma vez seguida ao pé da letra, resulta em infindáveis confusões, asquais se podem resolver todas de uma vezmediante a admissão da seguinte hipótese, por mais perturbadora que seja: como ciências dodiscurso, a Poética e a Retórica fazem parte doOrganon, conjunto das obras lógicas ouintrodutórias, e não são portanto nem teoréticasnem práticas nem técnicas. Este é o núcleo dainterpretação que defendo. Ela implica, porém,uma profunda revisão das idéias tradicionais ecorrentes sobre a ciência aristotélica do discurso.Esta revisão, por sua vez, arrisca ter conseqüências de grande porte para a nossa visãoda linguagem e da cultura em geral. Reclassificar as obras de um grande filósofo pode parecer uminocente empreendimento de eruditos, mas écomo mudar de lugar os pilares de um edifício.Pode exigir a demolição de muitas construçõesem torno.

As razões que alego para justificar essa mu-dança são as seguintes:

l. As quatro ciências do discurso tratam dequatro maneiras pelas quais o homem pode, pela

palavra, influenciar a mente de outro homem (oua sua própria). As quatro modalidades de discursocaracterizam-se por seus respectivosníveis decredibilidade:

38

Page 39: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 39/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

(a) O discurso poético versa sobre opossível( ς23, dínatos), dirigindo-se sobretudo àimaginação, que capta aquilo que ela mesma pre-sume ( ς, eikástikos, “presumível”;

, eikasia, “imagem”, “representação”).(b) O discurso retórico tem por objeto overossímil( ς, pithános) e por meta a

produção de umacrença firme( ς, pístis)que supõe, para além da mera presunçãoimaginativa, a anuência davontade; e o homeminfluencia a vontade de um outro homem por meio da persuasão ( , peitho), que é umaação psicológica fundada nas crenças comuns. Sea poesia tinha como resultado umaimpressão, odiscurso retórico deve produzir umadecisão,mostrando que ela é a mais adequada ouconveniente dentro de um determinado quadro decrenças admitidas.

(c) O discurso dialético já não se limita asugerir ou impor uma crença, mas submete ascrenças à prova, mediante ensaios e tentativas detraspassá-las por objeções. É o pensamento quevai e vem, por vias transversas, buscando averdade entre os erros e o erro entre as verdades( , diá = “através de” e indica tambémduplicidade, divisão). Por isto a dialética é

também chamada peirástica, da raiz peirá( = “prova”, “experiência”, de onde vêmς, peirasmos, “tentação”, e as nossas

23 Por dificuldades técnicas de edição, omito aqui os acentos das palavras gregas.

39

Page 40: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 40/196

O LAVO DE C ARVALHO

palavras empiria, empirismo, experiência etc.,mas também, através de ς, peirates, ”pirata”: o símbolo mesmo da vidaaventureira, da viagem sem rumo predetermi-nado). O discurso dialético mede enfim, por ensaios e erros, aprobabilidademaior ou menor de uma crença ou tese, não segundo sua meraconcordância com as crenças comuns, massegundo as exigências superiores da racio-nalidade e da informação acurada.

(d) O discurso lógico ou analítico, finalmente, partindo sempre de premissas admitidas comoindiscutivelmente certas, chega, peloencadeamento silogístico, àdemonstração certa( ς, apodêixis, “prova indestrutível”)da veracidade das conclusões.

É visível que há aí umaescala de credibili-dade crescente: do possível subimos ao veros-símil, deste para o provável e finalmente para ocerto ou verdadeiro. As palavras mesmas usadas por Aristóteles para caracterizar os objetivos decada discurso evidenciam essa gradação: há, portanto, entre os quatro discursos, menos umadiferença de natureza que de grau.

Possibilidade, verossimilhança, probabili-dade razoávele certeza apodícticasão, pois, os

conceitos-chave sobre os quais se erguem asquatro ciências respectivas: a Poética estuda osmeios pelos quais o discurso poético abre àimaginação o reino do possível; a Retórica, osmeios pelos quais o discurso retórico induz a

40

Page 41: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 41/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

vontade do ouvinte a admitir uma crença; aDialética, aqueles pelos quais o discurso dialéticoaverigua a razoabilidade das crenças admitidas, e,finalmente, a Lógica ou Analítica estuda os meiosda demonstração apodíctica, ou certeza científica.Ora, aí os quatro conceitos básicos são relativosuns aos outros: não se concebe o verossímil forado possível, nem este sem confronto com orazoável, e assim por diante. A conseqüênciadisto é tão óbvia que chega a ser espantoso quequase ninguém a tenha percebido: as quatrociências são inseparáveis; tomadas isoladamente,não fazem nenhum sentido. O que as define ediferencia não são quatro conjuntos isoláveis decaracteres formais, porém quatro possíveisatitudes humanas ante o discurso, quatro motivoshumanos para falar e ouvir: o homem discursa para abrir a imaginação à imensidade do possível, para tomar alguma resolução prática, paraexaminar criticamente a base das crenças quefundamentam suas resoluções, ou para explorar as conseqüências e prolongamentos de juízos jáadmitidos como absolutamente verdadeiros,construindo com eles o edifício do saber científico. Um discurso é lógico ou dialético, poético ou retórico, não em si mesmo e por sua

mera estrutura interna, mas pelo objetivo a quetende em seu conjunto, pelo propósito humanoque visa a realizar. Daí que os quatro sejamdistinguíveis, mas não isoláveis: cada um deles sóé o que é quando considerado no contexto da

41

Page 42: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 42/196

O LAVO DE C ARVALHO

cultura, como expressão de intuitos humanos. Aidéia moderna de delimitar uma linguagem“poética em si” ou “lógica em si” pareceria aosolhos de Aristóteles uma substancializaçãoabsurda, pior ainda: uma coisificação alienante24.Ele ainda não estava contaminado pelaesquizofrenia que hoje se tornou o estado normalda cultura.

2. Mas Aristóteles vai mais longe: ele assinalaa diferente disposição psicológica correspondenteao ouvinte de cada um dos quatro discursos, e asquatro disposições formam também, da maneiramais patente, uma gradação:

24 Quatro fatos da história do pensamento contemporâneo fazemressaltar a importância dessas observações. 1°) Todas as tentativasde isolar e definir por seus caracteres intrínsecos uma “linguagem poética”, diferenciando-a materialmente da “linguagem lógica” eda “linguagem cotidiana” fracassaram redondamente. V., a re-speito, Mary Louise Pratt,Toward a Speech Act Theory of Liter-ary Discourse, Bloomington, Indiana University Press, 1977. 2°)De outro lado, desde Kurt Gödel é geralmente reconhecida aimpossibilidade de extirpar do pensamento lógico todo resíduointuitivo. 3)° Os estudos de Chaim Perelman (Traité del’Argumentation. La Nouvelle Rhétorique, Bruxelles, UniversitéLibre, 1978), Thomas S. Kuhn (The Structure of Scientific Revolutions) e Paul Feyerabend (cit.) mostram,convergentemente, a impossibilidade de erradicar da provacientífico-analítica todo elemento dialético e mesmo retórico. 4)°Ao mesmo tempo, a existência de algo mais que um mero

paralelismo entre princípios estéticos (vale dizer, poéticos, emsentido lato) e lógico-dialéticos na cosmovisão medieval éfortemente enfatizada por Erwin Panofsky ( Architecture Gothiqueet Pensée Scolastique, trad. Pierre Bourdieu, Paris, Éditions deMinuit, 1967). Esses fatos e muitos outros no mesmo sentidoindicam mais que a conveniência, a urgência do estudo integradodos quatro discursos.

42

Page 43: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 43/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

(a) Ao ouvinte do discurso poético cabeafrouxar sua exigência de verossimilhança,admitindo que “não é verossímil que tudo sempreaconteça de maneira verossímil”, para captar averdade universal que pode estar sugerida mesmo por uma narrativa aparentemente inverossímil25.Aristóteles, em suma, antecipa asuspension of disbelief de que falaria mais tarde Samuel Taylor Coleridge. Admitindo um critério deverossimilhança mais flexível, o leitor (ouespectador) admite que as desventuras do heróitrágico poderiam ter acontecido a ele mesmo ou aqualquer outro homem, ou seja, são possibilidades humanas permanentes.

(b) Na retórica antiga, o ouvinte é chamado juiz, porque dele se espera uma decisão, um voto,uma sentença. Aristóteles, e na esteira dele toda atradição retórica, admite três tipos de discursosretóricos: o discurso forense, o discursodeliberativoe o discursoepidíctico, ou de louvor e censura (a um personagem, a uma obra, etc.)26. Nos três casos, o ouvinte é chamado a decidir:sobre a culpa ou inocência de um réu, sobre autilidade ou nocividade de uma lei, de um projeto, etc., sobre os méritos ou deméritos dealguém ou de algo. Ele é, portanto, consultado

como autoridade: tem o poder de decidir. Se no25 V. Poética, 1451 a-b.26 Sobre as três modalidades na tradição retórica, v. HeinrichLausberg,Elementos de Retórica Literária, trad. R. M. RosadoFernandes, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed., 1972.

43

Page 44: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 44/196

O LAVO DE C ARVALHO

ouvinte do discurso poético era importante que aimaginação tomasse as rédeas da mente, paralevá-la ao mundo do possível num vôo do qualnão se esperava que decorresse nenhumaconseqüência prática imediata, aqui é avontadeque ouve e julga o discurso, para, decidindo, criar uma situação no reino dos fatos27.

(c) Já o ouvinte do discurso dialético é,interiormente ao menos, um participante do processo dialético. Este não visa a uma decisãoimediata, mas a uma aproximação da verdade,aproximação que pode ser lenta, progressiva,difícil, tortuosa, e nem sempre chega a resultadossatisfatórios. Neste ouvinte, o impulso de decidir deve ser adiado indefinidamente, reprimidomesmo: o dialético não deseja persuadir, como oretórico, mas chegar a uma conclusão queidealmente deva ser admitida como razoável por ambas as partes contendoras. Para tanto, ele temde refrear o desejo de vencer, dispondo-sehumildemente a mudar de opinião se osargumentos do adversário forem mais razoáveis.O dialético não defende um partido, masinvestiga uma hipótese. Ora, esta investigação sóé possível quando ambos os participantes dodiálogo conhecem e admitem os princípios

básicos com fundamento nos quais a questão será julgada, e quando ambos concordam em ater-sehonestamente às regras da demonstraçãodialética. A atitude, aqui, é de isenção e, se27 Retórica, 1358 a — 1360 a.

44

Page 45: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 45/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

preciso, de resignação autocrítica. Aristótelesadverte expressamente os discípulos de que nãose aventurem a terçar argumentos dialéticos comquem desconheça os princípios da ciência: seriaexpor-se a objeções de mera retórica, prostituindoa filosofia28.(d) Finalmente, no plano da lógica analítica,não há mais discussão: há apenas a demonstraçãolinear de uma conclusão que, partindo de premissas admitidas como absolutamenteverídicas e procedendo rigorosamente peladedução silogística, não tem como deixar de ser certa. O discurso analítico é o monólogo domestre: ao discípulo cabe apenas receber e ad-mitir a verdade. Caso falhe a demonstração, oassunto volta à discussão dialética29.

De discurso em discurso, há um afunilamento progressivo, um estreitamento do admissível: dailimitada abertura do mundo das possibilidades passamos à esfera mais restrita das crençasrealmente aceitas napraxis coletiva; porém, damassa das crenças subscritas pelo senso comum,só umas poucas sobrevivem aos rigores datriagem dialética; e, destas, menos ainda são asque podem ser admitidas pela ciência comoabsolutamente certas e funcionar, no fim, como28 Tópicos, IX 12, 173a 29 ss.29 Entre a analítica e a dialética, “a diferença é, segundoAristóteles, aquela que há entre o curso de ensinamento dado por um professor e a discussão realizada em comum, ou, para dizer deoutro modo, a que há entre o monólogo e o diálogocientíficos” (Éric Weil,op. cit., p. 64).

45

Page 46: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 46/196

O LAVO DE C ARVALHO

premissas de raciocínios cientificamente válidos.A esfera própria de cada uma das quatro ciênciasé portanto delimitada pela contigüidade daantecedente e da subseqüente. Dispostas emcírculos concêntricos, elas formam o mapeamentocompleto das comunicações entre os homenscivilizados, a esfera do saber racional possível30.

3. Finalmente, ambas as escalas são exigidas pela teoria aristotélica do conhecimento. ParaAristóteles, o conhecimento começa pelos dadosdos sentidos. Estes são transferidos à memória,imaginação ou fantasia ( ), que osagrupa em imagens ( , eikoi, em latimspecies, speciei), segundo suas semelhanças. Ésobre estas imagens retidas e organizadas nafantasia, e não diretamente sobre os dados dossentidos, que a inteligência exerce a triagem ereorganização com base nas quais criará osesquemas eidéticos, ou conceitos abstratos dasespécies, com os quais poderá enfim construir os juízos e raciocínios. Dos sentidos ao raciocínioabstrato, há uma dupla ponte a ser atravessada: afantasia e a chamadasimples apreensão, que30 É quase impossível que Aristóteles, cientista natural com amente repleta de analogias entre a esfera dos conceitos racionais eos fatos da ordem física, não reparasse no paralelismo — direto e

inverso — entre os quatro discursos e os quatro elementos,diferenciados, eles também, pela escalaridade do mais denso parao mais sutil, em círculos concêntricos. Num curso proferido noIAL em 1988, inédito exceto numa série de apostilas sob o títulogeral de “Teoria dos Quatro Discursos”, investiguei maisextensamente esse paralelismo, que aqui não cabe senãomencionar de passagem.

46

Page 47: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 47/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

capta as noções isoladas. Não existe salto: sem aintermediação da fantasia e da simples apreensão,não se chega ao estrato superior da racionalidadecientífica. Há uma perfeita homologia estruturalentre esta descrição aristotélica do processocognitivo e a Teoria dos Quatro Discursos. Não poderia mesmo ser de outro modo: se o indivíduohumano não chega ao conhecimento racional sem passar pela fantasia e pela simples apreensão,como poderia a coletividade — seja apolis ou ocírculo menor dos estudiosos — chegar à certezacientífica sem o concurso preliminar e sucessivoda imaginação poética, da vontade organizadoraque se expressa na retórica e da triagem dialéticaempreendida pela discussão filosófica?

Retórica e Poética uma vez retiradas do exílio“técnico” ou “poiêtico” em que as puseraAndrônico e restauradas na sua condição deciências filosóficas, a unidade das ciências dodiscurso leva-nos ainda a uma verificaçãosurpreendente: há embutida nela toda umafilosofia aristotélica da cultura como expressãointegral do logos. Nessa filosofia, a razãocientífica surge como o fruto supremo de umaárvore que tem como raiz a imaginação poética, plantada no solo da natureza sensível. E como a

natureza sensível não é para Aristóteles apenasuma “exterioridade” irracional e hostil, mas aexpressão materializada doLogos divino, acultura, elevando-se do solo mitopoético até oscumes do conhecimento científico, surge aí como

47

Page 48: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 48/196

O LAVO DE C ARVALHO

a tradução humanizada dessa Razão divina,espelhada em miniatura na autoconsciência dofilósofo. Aristóteles compara, com efeito, areflexão filosófica à atividade autocognoscitivade um Deus que consiste, fundamentalmente, emautoconsciência. O cume da reflexão filosófica,que coroa o edifício da cultura, é, com efeito,gnosis gnoseos, o conhecimento do conhe-cimento. Ora, este se perfaz tão somente noinstante em que a reflexão abarcarecapitulativamente a sua trajetória completa, istoé, no momento em que, tendo alcançado a esferada razão científica, ela compreende a unidade dosquatro discursos através dos quais se elevou progressivamente até esse ponto. Aí ela está preparada para passar da ciência ou filosofia àsabedoria, para ingressar na Metafísica, queAristóteles, como bem frisou Pierre Aubenque, prepara mas não realiza por completo, já que oreino dela não é deste mundo31. A Teoria dosQuatro Discursos é,nesse sentido, o começo e otérmino da filosofia de Aristóteles. Para alémdela, não há mais saber propriamente dito: hásomente a “ciência que se busca”, a aspiração doconhecimento supremo, dasophia cuja posseassinalaria ao mesmo tempo a realização e o fim

da filosofia.

31 V. Pierre Aubenque,Le Problème de l'Être chez Aristote. Éssaisur la Problematique Aristotélicienne, Paris, P.U.F., 1962.

48

Page 49: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 49/196

II. UM MODELOARISTOTÉLICO DA HISTÓRIA

CULTURAL

AVITALIDADEda filosofia aristotélica da cultura podeser evidenciada por uma sua aplicação e extensãoóbvia, que Aristóteles não fez, mas que podemosfazer em seu nome: a Teoria dos QuatroDiscursos não descreve apenas a estrutura básicado mundo cultural, mas também a sua dinâmica,ou pelo menos um dos princípios básicos da suaevolução. Podemos denominá-loprincípio dasucessão dos discursos dominantes.

Esse princípio resume-se assim:Cada um dosquatro discursos desfruta de autoridade duranteum certo período da história, e a ordem da

sucessão dos discursos dominantes acompanha aescala da credibilidade crescente, do poético para o analítico. Por “autoridade” entendo ofundamento implícito da credibilidade automática

Page 50: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 50/196

O LAVO DE C ARVALHO

que o público concede ao discurso da classedominante.

1. O discurso poético surge com os primeirosoráculos, na noite dos tempos. É por excelência odiscurso de uma casta sacerdotal. É o molde dosVedas, dos poemas de Homero, doTao-te-kingedo Antigo Testamento. Caracteriza-se por insistir “relativamente muito pouco numa separação claraentre sujeito e objeto: o acento é antes colocadono sentimento de que sujeito e objeto estãoligados por uma potência ou energia comum...comum à pessoa humana e ao ambiente natural...As palavras estão carregadas de poder ou deforças dinâmicas”; pronunciá-las “pode ter repercussões sobre a ordem da natureza”32.

2. O discurso poético vai perdendo suaautoridade, no Ocidente, com a dissolução dareligião grega tradicional a partir do séc. VII a.C., com o advento do individualismo religioso edo culto de Dionísios, quando a poesia se tornaum instrumento de expressão de emoçõesindividuais, não compartilhadas necessariamente pela comunidade33. O discurso retórico começa a

32

Northrop Frye,Le Grand Code. La Bible et la Littérature, trad.Cathérine Malamoud, Paris, Le Seuil, 1984, pp. 44-45.33 Cf. Eduard Zeller,Outlines of the History of Greek Philosophy,ed. Wilhelm Nestle, transl. by L. R. Palmer, New York, MeridianBooks, 1955, pp. 24-36 (o original alemão é de 1883; trata-se deum resumo, feito pelo próprio autor, da sua obra monumentalPhilosophie der Griechen).

50

Page 51: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 51/196

Page 52: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 52/196

O LAVO DE C ARVALHO

torna socialmente dominante (apesar de toda aexpansão das escolas filosóficas no mundoantigo) antes do fim da Era Patrística, a partir dequando vai progressivamente se tornando oinstrumento básico de unificação da doutrinacristã e de sua defesa contra as heresias(superando a argumentação puramente retóricados primeiros exegetas, como Tertuliano). O augedo prestígio da dialética é alcançado na grandeescolástica do século XIII, quando a linguagemdialética é definitivamente assumida comoroupagem “oficial” do pensamento cristão. Oidealismo alemão, cinco séculos mais tarde, éuma reação dialética tardia ante o avanço da novaciência de base lógico-analítica35.

4. O discurso lógico-analítico fica em segundo plano até o século XVI, quando o racionalismoclássico, com Spinoza, Descartes, Malebranche eLeibniz começa a impor o primado de umaciência integralmente dedutiva36. O novo modeloinfluenciará até mesmo a teologia católica: noséc. XVIII, aTeologia Moralde Sto. Afonso deLigório surge como um monumento dodedutivismo, em matéria que se poderia crer profundamente hostil a esse gênero de ordenação.

35

Sobre a dialética no Idealismo alemão, v. a obra sempre atual deJosiah Royce,Lectures on Modern Idealism, de 1906 (trad.espanhola de Vicente P. Quintero,El Idealismo Moderno, BuenosAires, Imán, 1945).36 V. José Ortega y Gasset,La Idea de Principio en Leibniz y laEvolución de la Teoría Deductiva, em Obras Completas, Madrid,Alianza Editorial, 1983, t. 8.

52

Page 53: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 53/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

Reforçado pelos avanços das matemáticas, odedutivismo alcançará o cume da sua autoridadeno séc. XX, com a nova física teórica de Einsteine Planck, a lógica matemática, o sucesso dosmodelos informáticos, etc. O império da ciência éo império da lógica analítica37.

5. A cada transferência do eixo de prestígio, odiscurso anterior não cai em desuso, mas muda delugar, adquirindo novas funções, que acabam por produzir mudanças profundas na sua constituiçãointerna:

(a) Com o reinado da retórica, a poesia deixade ser a linguagem de uma religião coletiva, paratornar-se expressão de sentimentos individuais,37

Isso não significa que a credibilidade pública do argumento sedeva ao fato de ele ter realmente um fundamento científico(lógico-analítico), mas simplesmente ao fato de que o públicosupõe que ele o tem. Do mesmo modo, na época da hegemonia dodiscurso mitopoético, nem sempre este discurso precisaria ter realmente as propriedades assinaladas por Frye; bastava que astivessena expectativa do público. Hoje, leis contra o fumo, por exemplo, ou decretos anti-inflacionários, não são aceitos porquetêm realmente um fundamento científico (coisa que se podediscutir indefinidamente), mas porque o público acredita que têm.A autoridade do pajé, igualmente, não se funda necessariamenteem poderes mágicos reais, mas na crença geral de que ele tem poderes mágicos. Em todos os casos, o fundamento dacredibilidade tem algo de uma profecia auto-realizável: se a

sociedade acredita que uma idéia tem fundamento científico,apóia com verbas as pesquisas que vão na direção dela, enegligencia a investigação em outras direções; e, como bem viuLévi-Strauss, a crença geral num poder mágico é, até certo pontoao menos, fonte real de poder mágico (v. “O feiticeiro e suamagia”, emAntropologia Estrutural, trad. Chaim Samuel Katz eEginardo Pires, Rio, Tempo Brasileiro, 1975).

53

Page 54: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 54/196

O LAVO DE C ARVALHO

ao mesmo tempo que toma consciência de sicomo meio de expressão e, em decorrência, seaprimora tecnicamente: em oposição à grandezasimples e natural dos épicos, vêm os delicadosrequintes da lírica grega.

(b) A retórica, ao perder sua autoridade, sofretrês alterações fundamentais: lª, torna-se objetode sistematização erudita, com Quintiliano (só se pode sistematizar num esquema fechado aquiloque já não tem vigência, atualidade; comparadasà suma de Quintiliano, asRetóricasde Aristótelese de Cícero — dirigidas a um público interessadono seu uso prático imediato — parecem esboços parciais e provisórios); 2ª, já não é usada tantoem discursos políticos e forenses, mas nacomunicação privada (ars dictandi, a arte deescrever cartas); 3ª, começa a fundir-se com a poética, organizando um recenseamento abran-gente dos topoi, lugares-comuns, figuras de pensamento e de linguagem para todos osobjetivos e situações; e é deste recenseamentoque nasce toda a literatura moderna38 e mesmo oconceito Ocidental de “literatura” como atividadeautônoma.

(c) Com o fortalecimento do discurso analítico(sobretudo a partir da fundação da primeira

Faculdade de Ciências por Napoleão), o discursodialético, acuado, procura um refúgio no campo

38 Curtius, op. cit ., Cap. I, vê nesse fenômeno a origem doscaracteres peculiares que distinguem a literatura européia de todasas demais literaturas.

54

Page 55: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 55/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

da História e das “humanidades”, tentando aíconservar seus privilégios em oposição ao avançovitorioso do método lógico-analítico que vaidominando as ciências naturais. O resultado éduplo: de um lado, a formação das atuais“ciências humanas”; de outro lado, com Hegel eMarx, a elevação da dialética a uma filosofiaintegral da História. Daí nasce um duplo conflito,que conservou uma certa atualidade no nossoséculo pelo menos até a década de 70: de umlado, a disputa entre ciências humanas e naturais;de outro, a guerra entre marxistas e neopositi-vistas39.

Interessante e ao mesmo tempo trágico é odestino do discurso poético num mundo regido pela lógica analítica. Inicialmente, a poética vaise tornando cada vez mais consciente de si comoconjunto de meios lingüísticos, fazendo com quea “literatura” adquira aos poucos um lugar autônomo como expressão de cultura. Mais tarde,com Mallarmé e Joyce, essa autonomia é levadaàs últimas conseqüências: a forma literária proclama sua independência de qualquer 39 Tema ainda atual, ao menos no Brasil: a disputa entresocialdemocratas e neoliberais opõe a autoridade da dialética à dalógica analítica. Elucidar as diferenças de pressupostos

metodológicos é a única maneira, a meu ver, de arbitrar comalguma justiça esse debate, como procurei fazer nas páginas finaisde O Jardim das Aflições. Não é preciso dizer que, num caso e nooutro, autoridade não significa validade, mas apenas expectativade validade: nem sempre a dialética dos socialdemocratas ou alógica dos neoliberais ultrapassa,de fato, o nível das alegaçõesretóricas.

55

Page 56: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 56/196

O LAVO DE C ARVALHO

“conteúdo”, corta seus laços com o mundo daexperiência humana e do saber. O “fechamento”da poética em si mesma, que é em parte um protesto radical e desesperado contra o primadodo discurso analítico, dá a certas obras daliteratura do séc. XX um tom enigmático quesimula o mistério, a linguagem mágica da primitiva poesia oracular. Mas é expressãoindividual, sem autoridade pública, e ninguémespera que tenha poder sobre a natureza externa.É oráculo “vazio”, pura forma conceptual deoráculo sem verdadeira função oracular 40. É umfim de ciclo.

A Teoria dos Quatro Discursos contém portanto, implicitamente, todo um modelodescritivo da história cultural, que pode ser aplicado, com bons resultados, também a outrascivilizações. Por exemplo, no mundo islâmico afase inicial oracular começa com a revelaçãocorânica e as sentenças do Profeta; logo emseguida formam-se os partidos, cada qual comsua retórica41; a proliferação dos discursos

retóricos cria a necessidade da triagem dialética,40 V. Hugo Friedrich, Estrutura da Lírica Moderna, trad. brasileira, 2a. ed., São Paulo, Duas Cidades, 1991, Cap. I.41 A retórica mussulmana atinge imediatamente o cume da perfeição já na primeira geração subseqüente à do Profeta, com oimâm Ali.

56

Page 57: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 57/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

que vem com Al-Kindi, Al-Ghazzali, Avicena;finalmente a teologia islâmica se organiza emsistema dedutivo graças aos grandescomentaristas ortodoxos, como Bukhari. No séc.XX, a teologia do movimento fundamentalistaleva o conseqüencialismo abstrato a extremos, por exemplo com Said Qutub, no comentário emtrinta volumes, À Sombra do Corão— oequivalente, por sua estrutura (não por seuconteúdo, é claro), àTeologia Moral de Sto.Afonso.

Que essa teoria, embora não seja um modeloexplicativo-causal mas apenas descritivo, tenhauma força elucidativa tão profunda quandoaplicada à evolução histórica das civilizações, écoisa que não deve estranhar, de vez queAristóteles é, afinal, o inventor mesmo do con-ceito de evolução orgânica, pelo qual aidentidade de uma substância não é apenas seu padrão estático, mas a matriz de suastransformações no tempo, dialética da permanência na mudança. Aristóteles foi ainda o

introdutor da explicação genética, não somenteem ciências naturais, mas na história do pensamento. É uma exigência intrínseca do mé-todo dialético: cada um dos tratados deAristóteles começa por uma resenha histórica, em

57

Page 58: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 58/196

O LAVO DE C ARVALHO

que o estado presente de uma questão é explicado pela evolução temporal dos debates — o quetorna Aristóteles, no fim das contas, também oinventor do gênero “História das ciências”. Nãohá nada de estranho em que dele proceda, mesmoapós tantos séculos, a inspiração de um novomodelo de história da cultura.

Estranho é que a visão aristotélica da unidadeda cultura tenha se esvanecido ao longo dos tem- pos, sem que nenhum dos nostálgicos da unidade perdida tenha se lembrado de procurá-la emAristóteles, julgando mais fácil ir buscá-la naChina42.

42 Como ocorre, por exemplo, em F. Capra,O Ponto de Mutação,trad. Álvaro Cabral, São Paulo, Cultrix, 1982.

58

Page 59: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 59/196

III. A PRESENÇA DA TEORIAARISTOTÉLICA DODISCURSO NA HISTÓRIAOCIDENTAL43

Á LHES FOI DITO, nas aulas anteriores, que estecurso se baseia numa idéia original de

Aristóteles; que essa idéia, embutida e como queoculta nocorpus dos escritos aristotélicos, tinhade ser desenterrada e mostrada à luz do dia, paraque então pudéssemos tirar dela os princípios deuma nova pedagogia44.

J

Todos sabem que Aristóteles escreveu umaPoética, uma Retórica, um tratado sobre aDialética (osTópicos)e um conjunto de livrossobre a Lógica, ou, como ele preferiria chamá-la,a Demonstração Analítica, reunidos sob o nomegeral deOrganon.

43

Aula proferida noSeminário Permanente de Filosofia e Humanidadesdo Instituto de Artes Liberais, em maio de 1992.Gravação em fita, transcrita pelos alunos e corrigida pelo autor.44 As aplicações pedagógicas da Teoria dos Quatro Discursos nãoserão assunto do presente volume. Não são um projeto, e sim umtrabalho já em execução há quase uma década noSeminário deFilosofia.

Page 60: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 60/196

O LAVO DE C ARVALHO

Sabem, igualmente, da importância das idéiasde Aristóteles na evolução do pensamentoocidental, e estão cientes de que esses livros, emespecial, serviram de regra e moldura para uminfinidade de idéias e criações da mente européiadurante mais de dois mil anos. Livros tãoinfluentes devem, logicamente, ter estendido seuraio de ação também à Educação. De fato,gerações e gerações de filósofos e cientistasforam adestradas noOrganon, assim comogerações de poetas, oradores, dramaturgos eromancistas absorveram daPoéticae da Retóricamuitas das regras básicas do seu ofício.Aristóteles, sem dúvida, é um dos pais da culturaeuropéia, junto com Platão. Para medirmos aextensão da influência exercida pelos doisfilósofos na formação dessa cultura, basta notar que as outras duas forças formadoras, que a ela sesomaram, foram ambas criações coletivas,sedimentadas em séculos de experiência: oDireito romano e a Teologia judaico-cristã. Naorigem da cultura européia, a contribuição dosdois filósofos gregos ombreia-se, em importânciae durabilidade, ao legado de duas civilizaçõesinteiras.

Mas, apesar da sua magnitude, a influência de

Aristóteles seguiu, ao longo dos séculos, umalinha de desenvolvimento que, quando a examineide mais perto, me pareceu estranha e anormal. Jáveremos do que se trata. Porém mais estranhoainda me pareceu o fato de que, em geral, os

60

Page 61: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 61/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

historiadores não tivessem reparado nessaanormalidade.

Para descrever por alto esse esquisitíssimofenômeno, tenho de primeiro fazer um recuo efalar da gnoseologia de Aristóteles.

É amplamente sabido que, no debate secular entre gnoseologias empiristas e racionalistas, a deAristóteles ocupa uma posição intermediária que,na falta de melhor nome, se chama deintelectualista. Esta posição intermediária foicom freqüência mal interpretada, de modo queAristóteles pôde ser qualificado, conforme aocasião, ora de racionalista integral, ora de paidos empiristas.

Protótipo do racionalista puro foi Spinoza, se-gundo o qual o raciocínio solitário, operandoapenas segundo suas próprias leis eindependentemente de dados externos, podeatingir as mais altas verdades, ao passo que daexperiência não se obtêm senão conhecimentosincertos e acidentais.

O oposto simétrico de Spinoza é John Locke,apóstolo do empirismo radical. Segundo Locke, ohomem nasce como uma folha em branco, na qualas experiências sucessivas vão registrandoimagens, até que, por acumulação de casos

semelhantes, as imagens se organizam por simesmas em padrões a cujo conjunto damos onome de “razão”; de modo que a razão mesmanasce da experiência.

61

Page 62: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 62/196

O LAVO DE C ARVALHO

O chamado intelectualismo de Aristótelesconsiste em atribuir à razão e à experiênciafunções interligadas e complementares, de modoque, na discussão quanto à origem doconhecimento, nenhuma delas pode reivindicar unilateralmente a primazia da sua contribuição.Mas não se trata apenas de um equilíbrioestático entre os contrários. Aristóteles foitambém o inventor de um conceito que setornaria, até hoje, dos mais fecundos na filosofiae nas ciências, que é o conceito dedesenvolvimento orgânico; e, como tal,acreditava que só se pode conhecer bem um enteou fenômeno quando se estuda a sua gênese e odesenvolvimento progressivo das estruturasinternas que o constituem. Por isto, ao abordar o problema do conhecimento, ele descrevia aorigem e o desenvolvimento do aparato cognitivohumano de tal maneira que tanto a perspectivaempirista quanto a racionalista se encaixavamnela harmoniosamente, cada qual referida a umafase e a um aspecto do processo cognitivo.Quando se perdeu de vista esta unidade doconhecimento como potência de uma forma vivaque cresce e se desenvolve, surgiu então o debatede empiristas contra racionalistas, e Aristóteles, à

revelia, passou a ser alistado ora num, ora noutrodos partidos.Raciocinando aristotelicamente: Só podemos

compreender uma disputa, e eventualmenteresolvê-la, quando investigamos o terreno comum

62

Page 63: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 63/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

do qual emergiram os antagonismos; ainvestigação da gênese terminará, na maior partedos casos, por revelar os adversários como nadamais que “irmãos inimigos”. Em Aristóteles, defato, encontra-se como que uma síntese inicialcujos elementos, séculos mais tarde, viriam aexteriorizar-se, divididos, no antagonismo deracionalistas e empiristas.

Segundo Aristóteles, todo conhecimentohumano tem origem, temporalmente, nassensações. Se os cinco sentidos não nosinformassem do que se passa no mundo, nãoteríamos conhecimento nenhum. Mas todos os bichos têm sensações, e neste sentido sabem tantoquanto nós. Se alguns bichos sabem mais do queos outros, a diferença não deve ser buscada nassensações, e sim em alguma outra função, queneles tenha um desenvolvimento decisivamentesuperior. Esta função é amemória45. O homem éo animal que tem a memória mais rica ediferenciada, e por isto sabe mais do que osoutros animais.

Até aqui, Aristóteles parece um empirista.Mas a memória, para ele, não é mero registro passivo. Ela é também faculdade imaginativa, quecombina e funde as imagens, criando novos

padrões. Memória e imaginação são paraAristóteles uma só e mesma faculdade, que eledenominafantasia, e que realiza duas operaçõesdiversas conforme repita as mesmas imagens ou45 Met ., A, 1, 980a21-30.

63

Page 64: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 64/196

O LAVO DE C ARVALHO

as combine com outras formando uma multidãoinesgotável de misturas. A simples imagem retidana memória, que reproduz esquematicamente umente ou um fato, Aristóteles denomina-afantasma(sem conotações macabras). À medida que osfantasmas se acumulam na memória, esta passa areagir criativamente, recombinando essasimagens, esquematizando-as, selecionando-as esimplificando-as, de modo que umamultiplicidade de fantasmas parecidos uns com osoutros pode se condensar numa imagem única. Aimaginação organiza os conteúdos da memória,alinhando batalhões de fantasmas em imagenssintéticas, ou esquemas, que designam as coisasespécie por espécie, e não unidade por unidade.Deste modo, para reconhecer a idéia de “vaca”,um homem não precisa recordar, uma por uma,todas as vacas que já viu, o que tornaria inviávelo trabalho da inteligência; mas ele produz naimaginação uma só imagem esquemática de vaca,e esta indica “todas” as vacas, ou, dito emterminologia técnica, aespécievaca. A imagem prototípica indica a “essência” da espécie vaca,que abarca sinteticamente todas as vacas. Não por coincidência, a palavra gregaeidos, queAristóteles emprega, significa ao mesmo tempo

“essência” e “imagem”; e, em latim, a palavraspecies significa indiferentemente “espécie”, nosentido de “classe de semelhantes”, ou também“imagem”. É a imaginação que faz a ponte entreo conhecimento sensorial e o pensamento lógico.

64

Page 65: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 65/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

O pensamento lógico consiste,essencialmente, de coerência entre esquemas. Eleé uma vasta estruturação de relações decontigüidade, sucessão, pertinência, oposição,semelhança, diferença, escalaridade hierárquica,etc. etc. Como poderia realizar estas operaçõesdiretamente sobre a variedade inesgotável dosdados sensíveis? Se estes não estivessem previa-mente selecionados, resumidos e simplificados namemória e imaginação, seria preciso a força deum pensamento divino para conter numa molduralógica toda a multiplicidade inabarcável do quenos chega pelos sentidos. Mas o pensamentológico não opera direto sobre o percebido, e simsomente sobre a parte selecionada e simplificadaque se deposita e permanece na memória, sob aforma de esquemas ouespécies.

É assim que se torna possível a conquistasuprema do pensamento lógico: oconceito. Oconceito abarca numa só operação mental nãosomente espécies de entes, mas espécies derelações entre entes, e espécies de espécies, isto é,gêneros. E de gênero em gênero pode ir subindo, para abarcar as relações mais gerais e universaisaté conceber as relações meramente possíveis e asgradações de possibilidade que hierarquizam e

relacionam as possibilidades entre si.Mas o conceito é nada mais que um esquema puramente verbal (ainda que inexpresso), quesimplifica ainda mais o esquema sensível comque a memória por sua vez resumia toda uma

65

Page 66: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 66/196

O LAVO DE C ARVALHO

espécie de seres. Isto quer dizer que o pensamento só age desde um certo nível degeneralidade para cima. Daí a importânciaestratégica da imaginação: para os cinco sentidos,só existe oaqui e agora, o caso concreto, o dadoimediato; para o pensamento, só existe o con-ceito, o geral, o esquema de esquemas, cada vezmais rarefeito e universal. Sem a mediaçãoimaginativa, essas duas faculdades cognitivasestariam separadas por um abismo. O homemteria talvez sensações como um coelho; e talvez por dentro até pensasse alguma coisa, como umcomputador; mas não poderia pensar sobre o quesente de fato, isto é, raciocinar sobre aexperiência vivida; nem poderia, de outro lado,orientar a experiência pelo raciocínio, buscandonovos conhecimentos. Seria tão eficiente quantoum computador operado por um coelho, e tãovivo quanto um coelho desenhado na tela de umcomputador.

O pensamento lógico não seria possível sem aajuda desta faculdade tantas vezes desprezada,caluniada, abandonada às crianças e aos loucos: aimaginação. Quando, pela mediação imaginativa,o que foi a nósapresentado pelos sentidos setorna representação, imagem repetida de mim

para mim mesmo, então e só então torna-se possívelpensar . Muitas vezes, meditando nisto,verifiquei que é um milagre, ou, se quiserem, um paradoxo. Pois, para o pensamento, só existe ogenérico, e o genérico não é nada em particular,

66

Page 67: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 67/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

enquanto, para os sentidos, a imagem é sempre deum ser singular e concreto. A imaginação produzum estranho ser, aespécie, que, ao mesmo tempo,é singular e é genérica. Nos sentidos, uma vaca éuma vaca. No pensamento, o conceito de vacanão é vaca nenhuma, é só um esquema mental.Mas, na imaginação, uma vaca é uma vaca oumuitas vacas, a gosto do freguês, e é também umavaca que é todas ao mesmo tempo; e é nestamaluquice que se fundamenta a conexão entre pensamento lógico e realidade vivida. Por istomais tarde Ricardo e Hugo de S. Vítor home-nageariam a imaginação com o títuloimaginatiomediatrix— “imaginação mediadora”. E, muitosséculos depois, Benedetto Croce confessaria: “Seo homem não fosse animal fantástico, não seriatambém animal lógico”46. Nas cosmologiasgregas e medievais, a imaginação ou fantasia foitida como o análogo, no microcosmo humano, doque é a Alma do Mundo na escala cósmica;através da Alma do Mundo os arquétipos eternoscontidos na Razão divina ou Logos descem e setornam seres reais viventes. E, no mundo cristão,a Alma do Mundo foi identificada à SantaVirgem, Mãe do Logos encarnado. A teoriaaristotélica da imaginação está no fundo de tudo

isto.Assim, segundo Aristóteles, o conhecimentose constitui de uma série de filtragens, seleções e

46 Benedetto Croce,Logica come Scienza del Concetto Puro, Bari,Laterza, 1971 [ 1ª ed., 1905 ], p. 5.

67

Page 68: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 68/196

O LAVO DE C ARVALHO

estruturações progressivas, que começam nossentidos (na experiência) e culminam naestruturação racional do conhecimento. Esta, por sua vez, organiza racionalmente a ação, possibilitando uma nova e forma de experiência,e assim por diante. Cada faculdade que, naescalada cognitiva, vai entrando em ação, operauma nova seleção entre o acidental e o essencial,e insere os conhecimentos obtidos numa estruturacada vez mais ampla, coesa e funcional. Oconhecimento não vem da experiência, nem darazão: vem da estruturação racional da expe-riência depositada na memória e depurada pelaimaginação; estruturação essa que se molda, deum lado, na constituição do homem enquanto ser biológico e, de outro, nos princípios ontológicosuniversais captados intuitivamente ediversamente refletidos nas formas dos quatrodiscursos. O conhecimento é para Aristóteles um processo unitário, orgânico, que se eleva progressivamente desde as formas elementares,comuns ao homem e ao animal, até as grandessínteses da ciência e da filosofia.

Esta unidade, este caráter orgânico doconhecimento, é a tese principal da gnoseologiade Aristóteles. É uma herança que, abandonada

durante os séculos de disputa entre racionalistas eempiristas, foi retomada no século XX por Maurice Pradines, com sua “lei da gênese

68

Page 69: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 69/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

recíproca” das faculdades cognitivas47, por JeanPiaget com sua teoria genética das estruturaslógicas48, assim como, num domínio mais restrito, pela gramática gerativade Noam Chomsky. Asemente aristotélica continua dando frutos.

Mas a unidade do processo cognitivo, emAristóteles, é um resultado ou expressão daunidade do homem mesmo. A gnoseologia deAristóteles provém da sua antropologia, ouconcepção do homem.

O homem é, para Aristóteles, o animalracional. Animalidade racional é a definição ouessência do homem. Animalidade e racionalidadeestão fundidas nele de modo essencial einseparável. A descrição do processo cognitivo,dada por Aristóteles, não é nada mais que anarrativa da passagem do conhecimento animal,ou puramente sensível, ao conhecimento racionalou propriamente humano. Mas não se tratadaquilo que Engels chamouconversão do animalem homeme sim de uma perfeita continuidade,através de uma mutação que não faz outra coisasenão revelar, na forma final adquirida por um ser em sua evolução, uma essência que, presentedesde a origem, dirigia ocultamente essaevolução49.

47 Cf. Maurice Pradines,Traité de Psychologie Générale, t. I, LePsychisme Élémentaire, 3e éd., Paris, P.U.F., 1948, pp. 108-109,376-379, 390-396 e 691-726.48 V. Jean Piaget,Biologie et Connaissance, Paris, Gallimard,1967.

69

Page 70: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 70/196

O LAVO DE C ARVALHO

É preciso compreender isto à luz da teoriaaristotélica dapotênciae doato. “Ato” quer dizer efetivo, pleno, patente, realizado. A terminologiafilosófica ainda usa a palavra “atual” nestesentido, o que soa às vezes estranho, porque a palavra portuguesaactual, ao perder o c daortografia antiga, perdeu junto com ele a acepçãode efetividade, conservando somente a decontemporaneidade, por sua vez muito restritaem relação ao sentido doato aristotélico.

A potência é definida pelo ato, e não aocontrário. Todo poder é poder de manifestar-seem ato de poder, e por isto a potência não podeser concebida em si e independentemente do ato.O ato, por seu lado, é ato independentemente da potência (por isto o supremo poder, Deus, é assimdefinido por Aristóteles: Ato puro).

Deste modo, quando Aristóteles define ohomem como animal racional, ele não quer dizer

49 É também nesse sentido profundo, e não só como estudioso deanatomia comparada, que Aristóteles foi considerado pelo próprioCharles Darwin um precursor da teoria da evolução. Mas, quandoentendemos que o evolucionismo aristotélico é moldado segundoa teoria da potência e do ato, torna-se plausível buscar também emAristóteles um princípio de arbitragem e conciliação entre asteorias evolucionistas e anti-evolucionistas, mediante o uso dadialética que distingue entre as várias acepções dos conceitos.

Durante muito tempo, acreditou-se que havia incompatibilidadeentre os conceitos fixos das espécies e a evolução animal; creioque se poderia superar essa incompatibilidade pela simplesdistinção entre espécies lógicas (metafísicas) e biológicas, umadistinção que certamente não escaparia ao próprio Aristóteles, quetanto enfatizou a inexistência de formas lógico-matemáticas purasna natureza.

70

Page 71: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 71/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

nem que todos os homens sejam racionaisefetivamente e em tudo, nem que a razão sejauma “potência impotente”, incapaz de se efetivar.Ao contrário: o homemenquanto espécie édefinido pela potência da razão, justamente namedida em que nele essa potência busca efetivar-se e pode fazê-lo. Um homem pode,acidentalmente, estar privado dos meios deefetivar a potência da razão, mas aespéciehumana é humana justamente porque, nela, essa potência tende a converter-se em ato e de fato ofaz na maioria dos casos. (Aprivação, segundoAristóteles, é uma anormalidade, e a definição deuma espécie expressa justamente o que nela énormal, ou melhor, normativo.)

Pode-se dizer que um bebê recém-nascido“ainda não é” racional, que nele a razão estáembutida, em estado latente. Mas razão potencial já é razão, e não outra coisa, porque é potencial justamente na medida em que tende a converter-se em ato. Deste modo, a história da gênese doconhecimento humano não é outra coisa senão ahistória da passagem da razão humana da potência ao ato.Do conhecimento sensitivo parao imaginativo e deste para o racional não existecorte nem ruptura, mas sim somente a progressiva

efetivação da potência racional que já estáembutida nas sensações mesmas. Homóloga ecomplementarmente, cada ente material tem, nasua forma sensível, a expressão do seu princípiointerno de organização, que constitui o seu

71

Page 72: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 72/196

O LAVO DE C ARVALHO

aspecto inteligível. Por uma sucessão dedepurações abstrativas, o conhecimento consisteem captar então o inteligívelno sensível (e nãofora e acima dele, como pretendia o platonismo).

Como, por outro lado, na metafísicaaristotélica cada ser tem umaenteléquia, oufinalidade imanente, que o define e ocultamente odirige para a meta em que se realiza plenamente,é claro que a razão, como enteléquia, dirige desdedentro a evolução cognitiva do homem até a plena efetivação da potência que o define. Destemodo, a razão não “surge” de repente e desdefora, sobrepondo-se à imaginação e às sensações,mas já está de algum modo embutida, imbricada eagente na sensitividade e, depois, na imaginação.Karl Marx, grande admirador de Aristóteles,tiraria depois a conclusão implícita nestagnoseologia, ao observar que no homem oconhecimento pelos sentidos não é uma simplesfunção animal, mas é, desde o início,sensitividadehumana50. E Maurice Pradines iriamais além, com uma grandiosa tentativa de des-crever a atuação oculta da inteligência racionalimbricada na sensibilidade, como uma bússolasecreta que dirige os primeiros ensaios cognitivosdo recém-nascido51. O homem não é racional só

quando raciocina, mas também, implicitamente,quando percebe e imagina. Ele não poderia

50 Cf. Karl Marx, 1ªTese sobre Feuerbach.51 Pradines,loc. cit..

72

Page 73: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 73/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

humanizar-se nunca se já não fosse humanodesde o início.

Esta breve descrição da gnoseologia e daantropologia aristotélicas poderia ser completadacom a da cosmologia de Aristóteles, que mostra ocosmos escalonando-se em graus hierárquicosdesde a Razão divina até os seres do mundosensível. Isto mostraria a gênese do conhecimentohumano como uma espécie de imagem invertida edialeticamente complementar da estrutura domundo. Mas seria uma explicação demasiadoextensa, e na verdade não é preciso fazê-la paraque se compreenda perfeitamente bem aondequero chegar.

Quero chegar à conclusão inevitável de que,se o processo cognitivo, para Aristóteles, é umaunidade orgânica que vem das sensações, passa pela imaginação, se eleva ao pensamento e chegaà organização racional do mundo, sem salto nemdescontinuidade, do mesmo modo ométododoconhecimento, o Organon ou instrumentometodológico que estrutura a atividade científica,deveria ser também uma unidade coesa, aexpressão de um organismo em evolução semhiatos. Ele deveria abarcar todas as modalidadesde conhecimento, do sensitivo ao racional,

estabelecendo os elos e passagens de um a outro, bem como as conversões e retornos, de modo quevíssemos as etapas desenvolvendo-se umas dedentro das outras, sem ruptura. Para esse fim,Organon deveria conter, antes da lógica

73

Page 74: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 74/196

O LAVO DE C ARVALHO

propriamente dita, uma “lógica da imaginação”,sem a qual a armadura das ciências arriscariareduzir-se a um mero conjunto de esquemasformais, sem ligação com a realidade daexperiência. Dito de outro modo, e pensandomais no aspecto pedagógico doOrganon: aformação do sábio não deveria começar peladisciplina da imaginação?

No entanto, quando examinamos os escritosmetodológicos de Aristóteles, oOrganon, talcomo o conhecemos hoje na forma consagrada daseleção feita por Andrônico de Rodes e repetidaem todas as edições posteriores docorpusaristotélico, vemos que ele já começa doconhecimento racional para cima; ocupa-se daciência dos conceitos como se estes fossemcausasui e não requeressem, como condição prévia,uma ciência das imagens. Comparada com a suagnoseologia, com a sua antropologia e com a suacosmologia, a metodologia de Aristóteles pareceuma estátua que, começando da cintura paracima, boiasse no ar sem pernas nem pedestal.

Muitos escritos de Aristóteles, é verdade, perderam-se. A história dos manuscritos deAristóteles é um verdadeiro romance deaventuras, no qual a maior parte dos personagens

termina morta ou desaparecida. Talvez entreesses desaparecidos estivesse uma metodologiado conhecimento imaginativo. Qualquer que sejao caso, o que passou para a História como

74

Page 75: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 75/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

metodologia de Aristóteles é o que está noOrganon, e só.

Tal como está, o Organon, no entanto,continuou a exercer uma grande influência nafilosofia, nas ciências e na Educação, ao longodos séculos, sem que ninguém se lembrasse de perguntar aonde tinha ido parar o conhecimentoimaginativo, tão importante no esquema total dafilosofia de Aristóteles. Durante toda a IdadeMédia, o Organon desempenhou, no ensinosuperior da filosofia, o papel de instrumento e de propedêutica filosófica que lhe foraoriginariamente destinado, sem que suscitassequalquer estranheza o fato de que ele abria acessosomente às ciências e à filosofia, mas não aqualquer forma de conhecimento imaginativo. Não é estranho que isto ocorresse numa época emque as artes se desenvolveram pelo menos tantoquanto a filosofia, e em que os princípios daarquitetura ( para mencionar só uma das artes(guardam uma relação tão estreita com os princípios do pensamento lógico52?

Ao mesmo tempo, o público continuou, desdea Antigüidade, a ler aRetóricae a Poética (estamenos, como se verá adiante), mas como se nadativessem a ver com oOrganon e não fossem

senão obras marginais, de índole mais prática queteórica, compostas pelo sábio grego nas horas defolga do labor filosófico “verdadeiramente sério”.

52 V. Erwin Panofsky,Architecture Gothique et Pensée Scolas-tique, trad. Pierre Bourdieu, Paris, Les Éditions de Minuit, 1978.

75

Page 76: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 76/196

O LAVO DE C ARVALHO

O público interessado naRetórica e naPoética, de fato, foi se diferenciando cada vezmais do público filosófico “de ofício”, que seconcentrava na leitura doOrganon e no dostratados de Física e Metafísica, deixando aquelestrabalhos de assunto “literário” para as pessoasmais imaginativas, menos intelectuais e... menoscapacitadas.

A Retórica continuou a despertar interesse,mas muito pouco entre os filósofos e mais entreos professores de gramática. Mesmo aimportância política da obra foi diminuindo como tempo. À medida que a democracia antiga sedissolvia, cedendo lugar a regimes maiscentralizados, já não havia mais necessidade deoradores, porque os debates públicos escas-seavam; e a Retórica foi se tornando meroexercício escolar.

Quanto àPoética, acabou por ser quase quetotalmente esquecida, já na Antigüidade, permanecendo no ostracismo até o fim da IdadeMédia. Segundo informa o eminente filólogoSegismundo Spina, “aPoética não deve ter tidomuita difusão na Antigüidade. O próprio Horácio,cuja Ars Poeticaé visivelmente inspirada na dofilósofo grego, não demonstra haver conhecido

diretamente a Poética de Aristóteles”53

. NoOriente ainda houve algum interesse por ela: umaversão siríaca surgiu no século VI, e foi passada

53 Segismundo Spina,Introdução à Poética Clássica, São Paulo,F.T.D., 1967, p. 47.

76

Page 77: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 77/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

para o árabe no século XI. No Ocidente, só noRenascimento “aPoéticade Aristóteles se tornouobjeto de curiosidade, de edições, estudos etraduções... A estética clássica elaborada ao longodo século XVI na Itália tem seu fundamento no pequeno código aristotélico”54. O primeirotrabalho a chamar a atenção para essa obra pareceter sido o comentário de Francesco Robortelli, publicado em 1548.

A partir de então um volume crescente detraduções e comentários foi expandindo ainfluência daPoética, que do século XVI aoXVIII está no centro dos debates pró e contra aestética do classicismo. Curiosamente, esseinteresse se restringe quase que exclusivamenteaos poetas, dramaturgos, teóricos da literatura, bem longe do grêmio dos filósofos de ofício.Estes, por seu lado, não só permaneceram alheiosao ressurgimento daPoéticacomo também foramse afastando cada vez mais do Aristóteles queconheciam, movidos pela rebelião geral contra aescolástica, que explode pela mesma época einaugura a chamada filosofia moderna, comDescartes, Bacon, Newton, Galileu, Leibniz. Estafilosofia, movida por um novo conceito deexperiência (a experiência matematizável,

proposta por Galileu, em oposição ao velhocritério da experiência sensível imediata, de-fendido pelos escolásticos), foi tomando viascada vez mais divergentes do pensamento54 Spina,loc. cit..

77

Page 78: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 78/196

O LAVO DE C ARVALHO

medieval (e, portanto, de Aristóteles, ao menoscomo o entendia a Idade Média). Não faltaramhistoriadores que interpretassem a eclosão dafilosofia e da ciência renascentistas como umalibertação de um jugo aristotélico de mais dequinze séculos.Que coisa mais estranha! O Renascimento,como todo mundo sabe, veio com umarevalorização das letras, da poesia e da retórica,que passaram a ter uma projeção cultural que lhesfora negada na Idade Média, com o primado dafilosofia acadêmica. Essa revalorização ocorre junto e em parte graças à redescoberta daPoéticaaristotélica, de modo que Aristóteles, no instantemesmo em que acreditam destroná-lo no campocientífico, ressurge como patrono dorenascimento literário.

O mais esquisito de tudo é o seguinte. A IdadeMédia, ainda que nada tendo encontrado sobre oconhecimento imaginativo em Aristóteles,cultivou e elevou a uma grande perfeição essamodalidade de conhecimento, como se vê emtoda a estética dos Vitorinos55, de Sto. Tomás deAquino56, de S. Boaventura, bem como na síntese pedagógica das Artes Liberais que deu a DanteAlighieri a fórmula da perfeição artística: as

verdades doQuadriviumvazadas nas formas do55 V. Edgar De Bruyne,Estudios de Estetica Medieval, trad.Armando Suárez, o. p., Madrid, Gredos, 1958, vol. III, pp.214-265.56 V. Umberto Eco,Il Problema Estetico in Tommaso d’Aquino, 2ªed., Milano, Bompiani, 1970.

78

Page 79: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 79/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

Trivium. Em suma, o universo medieval éabsolutamente incompreensível sem referência aum tipo de pensamento imaginativo, simbólico, oqual parece, no entanto, haver se desenvolvidototalmente à margem das idéias estéticas deAristóteles, só redescobertas no século XVI. Ora,o advento da ciência moderna coincide, justamente, com a dissolução desse pensamentosimbólico, que, na entrada da modernidade, vaisendo substituído cada vez mais por um sistemaclassificatório, de base puramente lógico-analítica57.

Talvez por isto aPoética de Aristóteles tenhasido compreendida, então, num sentidomarcadamente racionalista, ao ponto de a poéticaclássica dos séculos XVI e XVII entrar para aHistória como um sinônimo de rigorismoformalista e de controle férreo do imaginário.Mas podemos realmente interpretar Aristótelesnesse sentido, ou este é somente o Aristótelesvisto por um século racionalista?

Qualquer que seja o caso, a sucessão deepisódios que estou recordando marca uma dasetapas mais intrincadas da evolução do pensamento Ocidental. Os fatos que aquimenciono estão longe de terem sido elucidados

pelos historiadores. Na verdade, a maior partedestes nem mesmo se deu conta da estranheza doseventos: um Aristóteles que ressurge enquanto

57 V. Gilbert Durand,Science de l’Homme et Tradition, Paris,Tête-de-Feuilles/Sirac, 1978.

79

Page 80: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 80/196

O LAVO DE C ARVALHO

outro declina, uma ascensão das artes (emdetrimento da pura filosofia) ao mesmo tempoque desaparece ou se desvaloriza a linguagemsimbólica, uma estética racionalista fundada numautor que valorizava o conhecimento imaginativocomo condição prévia do racional — tudo istoforma um emaranhado tão denso, que já basta para dar por terra com o simplismo do esquema“Idade MédiaversusRenascimento”, identificadocom “aristotelismoversus ciência moderna”. Astransformações que ocorreram nessa época nãoforam uniformes, mas, das artes à ciência, dafilosofia à religião, foram, em muitos casos,variadas, confusas e mesmo contraditórias.Sobretudo, a história da influência aristotélica perde aqui toda a sua aparente linearidade, parase enroscar num nó de contradições.

Se, porém, olharmos para o outro lado domundo, para o Oriente, de onde nos vieram emversão árabe, a partir do século XI, as obras deAristóteles, veremos que aí as coisas tomaram umrumo diferente. É claro que também aí houveconfusões (como por exemplo a de se tomar como obra de Aristóteles, durante séculos, umaTeologia da escola neoplatônica), mas o pontoque aqui interessa é que, na filosofia islâmica,

Aristóteles foi compreendido de maneira um pouco diferente, e que talvez devamos olhar paraessa filosofia em busca da solução para algunsdos enigmas acima apontados. Mas isto é tarefade historiador. A mim, aqui, cabe ressaltar o se-

80

Page 81: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 81/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

guinte ponto: na filosofia islâmicaconservou-seao menos a noção geral de uma metodologiaintegral de Aristóteles, unindo o conhecimentoimaginativo ao conhecimento racional, ao mesmotempo que esta noção se perdia no Ocidente. Esta perda — que, por seu lado, restaria a ser expli-cada — poderia estar na raiz das confusões quemencionei.

Avicena, por exemplo, afirma explicitamenteque a Lógicaaristotélica, ouOrganon, se divideem Poética, Retórica, Dialética e Lógica propriamente dita, além da Sofística.

Notem bem: ele diz que aPoética e a Re-tórica fazem parte doOrganon tanto quanto osTópicos, as Analíticasetc.. Avicena pouco maisnos diz a respeito, mas o que disse já é suficiente para mostrar que ele entendeu a unidade dasciências do discurso em Aristótelesaproximadamente no sentido que nos interessa.

Ora, no Ocidente não se entendeu assim. Osfilósofos Ocidentais concentraram suas atençõesna Lógica e na Dialética, deixando a Poética e aRetórica para os professores de Gramática...Perdeu-se, com isto, a visão da unidade orgânicada metodologia de Aristóteles58. A parteamputada e relegada a segundo plano vingar-se-ia

58 Sto. Tomás, no trecho citado na n. 1, chega a mencionar agradação de credibilidade, mas tomando-a no sentido de umaescala devalidade, o que resulta em julgar os quatro discursosdesde o ponto de vista da analítica, tomada como modelo de perfeição a que os outros discursos tenderiam. Isto é, Sto. Tomásresvala no assunto, mas não chega a penetrar nele.

81

Page 82: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 82/196

O LAVO DE C ARVALHO

mais tarde, voltando sob as vestes de estéticaclássica no Renascimento, enquanto no campofilosófico a nova ciência renascentista ia se- pultando a versão escolástica da Lógica eDialética aristotélicas. Ironias da História.

82

Page 83: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 83/196

IV. A TIPOLOGIAU NIVERSAL DOSDISCURSOS59

MA VEZ ASSENTADOque segundo Aristótelesos tipos fundamentais do discurso são

quatro, resta perguntar se ele tem razão; se naverdade não são três, ou cinco, ou noventa, e seno seu arranjo recíproco não conviria antes dispô-los numa ordem diversa e segundo uma outragrade de relações; resta averiguar enfim quaisargumentos podemos convocar em defesa daconcepção aristotélica que não foram propostos — e talvez nem sequer antevistos — pelo próprioAristóteles. Resta demonstrar anecessidadelógica da hipótese dos quatro discursos, de preferência entrando no tema por um lado

diferente daquele por onde o aborda o Estagirita,de modo a evidenciar que por outra vias se chegaao mesmo resultado. E se existe uma abordagem

U

59 Aula gravada em fita, transcrição por Ana Célia Rodrigues. SãoPaulo, 1989. Distribuída aos alunos do Rio de Janeiro em 1991.

Page 84: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 84/196

O LAVO DE C ARVALHO

que, inventada por Aristóteles, quase nunca é praticada por ele, é justamente a via analítico-demonstrativa. Raciocinarei, portanto, à maneirade Spinoza, por pura dedução,more geometrico,mostrando que por este caminho se chega aosmesmos resultados que a filologia sugere pelainterpretação dos textos e a dialética sustenta pelaexclusão das hipóteses contrárias.

I. Conceitos de base

1. Todo discurso é movimento, étranscursode uma proposição a outra. Tem um termo iniciale um termo final: premissas e conclusão, com umdesenvolvimento no meio. A unidade formal dodiscurso depende da sua unidade de propósito,isto é, da disposição das várias partes em vista daconclusão desejada.

2. Premissa é aquilo que é tomado como jásabido ou já admitido, e que, deste modo, ficaaquém do discurso. Há premissas explícitas eimplícitas: as primeiras são mencionadas noinício ou no corpo do discurso; as segundas nãosão declaradas. A omissão das premissas pode ser

proposital ou não. O emissor pode ter certascrenças tão arraigadas e habituais que, sem pensar nelas, as tome inadvertidamente como premissas; neste caso as denominamos

84

Page 85: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 85/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

pressupostos, para diferenciá-las das premissasomitidas intencionalmente.

3. A unidade de propósito manifesta-se pelofato de que as várias partes que compõem umdiscurso devem estar ligadas por algum nexo, sejaele lógico, analógico, cronológico, etc. Denominoa este nexounidade formal, com a ressalva deque vários tipos de nexo, presentes num mesmodiscurso, podem servir a uma mesma unidade de propósito.

4. O propósito de todo discurso é suscitar umamodificaçãono ouvinte, por tênue e passageiraque seja. Mudar de opinião é ser modificado;receber uma informação é ser modificado; sentir uma emoção é ser modificado.

5. À aceitação, pelo receptor, da modificação proposta, denominocredibilidade.

6. Chamocredibilidade iniciala disposição prévia de acompanhar um discurso, aceitando aomenos provisoriamente as suas premissas;credibilidade final, a plena aceitação damodificação proposta.

A credibilidade inicial exige a aceitação aomenos provisória das premissas; ela mesma éuma premissa. A credibilidade final consiste naaceitação das conclusões, bem como

(implicitamente ao menos) das conseqüências quedelas possam decorrer.7. Definição de discurso. — Sendo a premissa

o já acreditado, as conclusões serão aquichamadas oacreditável. Discurso é, portanto, o

85

Page 86: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 86/196

O LAVO DE C ARVALHO

trânsito do acreditado ao acreditável, por meiode um encadeamento de nexos.

8. Discurso eficazé aquele que alcança acredibilidade final;discurso malogrado, aqueleque, partindo da credibilidade inicial, não chega àcredibilidade final. (Neste sentido, a rejeição damodificação, pelo ouvinte, é tambémmodificação, só que negativa.)

9. Todo discurso visa à credibilidade final positiva.

10. Estes conceitos, princípios e critériosaplicam-se a todos os discursos, de todos osgêneros possíveis: da oratória parlamentar à poesia lírica, da notícia de jornal ao tratadofilosófico, da reprimenda moral feita por um pai aseu filho até o relatório anual de uma empresa aseus acionistas. A demonstração destaaplicabilidade universal decorrerá da teoriamesma que se expõe nos parágrafos seguintes.

II. Possibilidade de uma tipologiauniversal dos discursos

Tipologia é uma diferenciação segundoextremos, ou pólos. Toda tipologia assenta-se emdiferenças máximas, que podem ser puramenteideais, inencontráveis na prática, e das quais oselementos reais se aproximem numa assíntota,sem poder alcançá-las.

86

Page 87: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 87/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

Pode haver uma tipologia dos discursos,deduzida aprioristicamente do conceito mesmo dediscurso? A infinidade dos discursos existentes — para não falar dos discursos possíveis —, bemcomo a variedade inabarcável das suas formas,motivos, assuntos e estilos, parece indicar quenão. Porém, o conceito de discurso — trânsito doacreditado ao acreditável — já inclui, por si, aidéia de um máximo e de um mínimo: porque oacreditado é, por si mesmo, o maximamenteacreditável, e o acreditável, ao fim do discurso, éo que deverá vir a ser acreditado. Portanto, semuma escala que vá do maximamente acreditável(que é o já acreditado, portanto a credibilidade járealizada) até o minimamente acreditável (que é asimples possibilidade teórica de vir a ser acreditado) não poderia haver discurso nenhum.A escala de credibilidade — quer das premissas,quer das conclusões — é uma condição de possibilidade da existência do discurso. Estecaráter escalar da credibilidade mostra que umatipologia teórica ea priori dos discursos é nãosomente possível, mas necessária. Se nãoexistisse uma escala dos discursos segundo acredibilidade, não poderia haver discursos.

Surge então a pergunta: A escala deve basear-

se na credibilidade das premissas ou dasconclusões? A resposta é: obviamente, das premissas, porque delas depende a credibilidadedas conclusões. Como a conclusão de umdiscurso pode ser premissa de um outro discurso

87

Page 88: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 88/196

O LAVO DE C ARVALHO

tão logo seja acreditada, segue-se que há umaescala das premissas, e dos graus desta escalasurgirão os graus da escala ou tipologia teóricados discursos.

III. Escala das premissas

Não importando qual seja a sua matéria ouassunto, a totalidade das premissas possíveisabrange portanto uma escala que vai domaximamente crível ao minimamente crível.

MÁXIMO(certo, verdadeiro)

MÍNIMO(possível)

O grau máximo de credibilidade é aquele quese atribui ao absolutamente verdadeiro, ouabsolutamente certo. Falo, aqui, do ponto de vistaformal e funcional: pouco importa que a premissamaximamente acreditada seja realmente

88

Page 89: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 89/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

verdadeira ou certa em seu conteúdo, isto é,materialmente verdadeira; o que interessa é queno discurso, sejatomada como verdadeira. Naescala daveracidade, o oposto ao absolutamenteverdadeiro é o absolutamente falso. Porém, naescala dacredibilidade, que é o que nos interessa,se o grau máximo de credibilidade cabe aoabsolutamente verdadeiro — ou tomado como tal —, o grau mínimo não poderia caber aoabsolutamente falso, porque o admitido comofalso não é jamais tomado como premissa denada, precisamente porque já impugnado. Dizer que algo é falso equivale a rejeitá-lo como premissa, e portanto a rejeitar suasconseqüências, isto é, rejeitar o discurso; e isto,exceto no caso da demonstração lógicaad absurdum, nos tira do campo da tipologia dosdiscursos. Na demonstraçãoad absurdum, por seu lado, o reconhecidamente falso éhipoteticamente admitido como verdadeiro, justamente para demonstrar que leva a conclusõesabsurdas; portanto, mesmo neste caso acredibilidade da premissa é que fundamenta a possibilidade do discurso. Assim, o minimamentecrível — pólo inferior da nossa escala — nãocorresponde ao falso, porque o falso não é

minimamente crível; éincrível, portanto está forae abaixo da escala de credibilidade. Se o graumáximo cabe ao absolutamente verdadeiro, ograu mínimo corresponde aominimamenteverdadeiro, isto é, aomeramente possível. Abaixo

89

Page 90: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 90/196

O LAVO DE C ARVALHO

do possível, isto é, abaixo de um mínimo de possibilidade, existe somente o impossível, que éo incrível, que é o falso, que está fora da escala.

A tipologia dos discursos possíveis começa portanto com a polarização das premissas (e portanto dos decorrentes discursos) emmaximamente críveis (ou absolutamenteverdadeiras) e minimamente críveis (oumeramente possíveis).

Aí terminaria a tipologia, se ela se reduzisse auma simples escala linear; os demais tipos dediscursos teriam de ser determinadosarbitrariamente segundo um número indefinidode graus nessa escala, ou concluídosempiricamente do exame da variedade dosdiscursos realmente existentes, o que seria umtrabalho sem fim e resultaria num númerotambém indefinido de tipos intermediários.Portanto: ou termina aí a nossa escala ou temosde encontrar uma outra dupla de extremos, umaoutra polaridade, que, articulando-se com a primeira, produza um sistema de direçõesextremas em cruz, maximamente irredutíveis: osistema das quatro direções transforma a escalaem tipologia, transforma a simples gradaçãoquantitativa em diferenciação qualitativa.

IV. Os quatro discursos

90

Page 91: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 91/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

Se todo discurso é movimento, partindo dealgo para chegar a algo, e se excluímos a possibilidade dodiscurso infinito, que partisse docomeço absoluto de tudo para chegar ao absolutofim de todas as coisas, passando por todas ascoisas possíveis, então podemos concluir quetodo discurso é segmento. Pode ser prolongadoindefinidamente, para trás — rumo aofundamento último das premissas — ou para afrente, na série indefinida das conseqüências60. Oque o faz deter-se num ponto qualquer — paratrás, fixando ou dando por pressupostas as premissas que permanecerão indiscutidas, ou paraa frente, renunciando às conseqüências que se prolonguem para além de um determinado ponto — é uma simples decisão humana. Podemosadmitir, é claro, princípios universais que seriamo extremo limiteanterior dos discursos, mas istonão muda em nada o que dissemos, porque,recuando até um princípio universal, um discursonão encontraria um limite aquém do qual fosseimpossívelcontinuar recuando, mas apenas olimite da evidência, da obviedade, aquém do qualo prosseguir é desnecessário, embora nãoimpossível. O discurso que recuasse até ofundamento último— ou melhor, primeiro—

poderia continuar indefinidamente; apenas tornar-se-ia redundante, detendo-se na exploração

60 Isto vale também para as narrativas: toda narrativa pode, em princípio, recuar indefinidamente na direção dos antecedentes ou prosseguir indefinidamente no relato dos conseqüentes.

91

Page 92: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 92/196

O LAVO DE C ARVALHO

indefinida do já sabido e na repetição doevidente. De outro lado, a extensão indefinida dasconseqüências poderia escapar aos limites dohumanamente pensável, ou pelo menos doverificável, mas, teoricamente, nem por isto seriaobrigado a deter-se. Assim, há uma extensãoilimitada no começo, para dentro do oceano deevidência dos princípios primeiros, e umaextensão indefinida de conseqüênciasinverificáveis ou irrelevantes no outro extremo. Oque determina o começo e o fim de todo discursonão é, portanto, o conceito de discurso enquantotal, mas um fator real empírico: a vontade, ou aconveniência humana contingente que move à produção deste ou daquele discurso em particular.

Este fator empírico é, simplesmente,o desejode uma certeza máximaou a inconveniência decontentar-se com uma certeza mínima; ou ainda odesejo de estender a credibilidade desde o sabidoao sabível. Em cada discurso individualmenteconsiderado, uma decisão humana corta o eixo daescala de credibilidade, estabelecendo, em cruz,outra polaridade: em cada caso concreto,acerteza máxima nem sempre é possível, e acerteza mínima nem sempre basta para os finsdesejados. Desta constatação, surgem dois tipos

intermediários de discursos. Note-se bem:doistipos, e não somente um, como o seria o simples ponto intermediário da escala vertical. Esses dois pontos ou tipos intermediários são, de um lado, odiscurso quetende a uma certeza máxima mas

92

Page 93: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 93/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

não pode obtê-la, e o discurso que, sem necessitar de uma certeza máxima, nem tender a ela,podeobter algo mais do que uma certeza mínima.Entre o discurso que se fundamenta noabsolutamente verdadeiro e o que se fundamentano meramente possível surgem doisintermediários que não são pontos de uma escalalinear, mas movimentos, tensões, dinamismos,que tendem, lateralmente, a ir de um pontomáximo a um mínimo, ou de um mínimo a ummáximo, assim:

MÁXIMO(certo)

MÍNIMO(possível)

O primeiro é o que parte de uma credibilidadesuficiente, ou seja, o que parte doprovável; osegundo é o que, não podendo chegar aoverdadeiro e nem mesmo ao provável, tambémnão se contenta com o meramente possível, masdeseja overossímile parte doverossímil.

Eis aí os quatro níveis de veracidade segundoAristóteles: ocerto, o provável, o verossímile o

93

Page 94: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 94/196

O LAVO DE C ARVALHO

possível. Eis aí os quatro tipos de premissas queos discursos podem tomar como pontos de partida, e também os graus de credibilidade a que podem aspirar em suas conclusões. Conforme ograu de veracidade de suas premissas, cadadiscurso só demanda ser crido no grau decredibilidade que a elas corresponde: se parte domeramente possível, não pretende mais do queconclusões meramente possíveis, e se parte doabsolutamente verdadeiro deseja impor conclusões absolutamente verdadeiras. Este é ofundamento universal ea priori dos quatrodiscursos enfocados noOrganonde Aristóteles:

1. O discursoanalítico— ou lógico-formal — é aquele que parte de premissas tidas comoabsolutamente certas, ou universalmente aceitas,e procede num desenvolvimento rigorososegundo as leis formais do pensamento, a lógicasilogística, para alcançar conclusõesabsolutamente certas ou universalmenteobrigantes.

2. O discursodialéticoé aquele que parte de premissas que podem ser incertas, mas que sãoaceitas sob determinadas circunstâncias e por um público mais ou menos homogêneo e conhecedor do assunto, isto é, parte de premissasprováveis.

Admitindo várias linhas de desenvolvimento possíveis para tais premissas, o discurso dialéticocompara e confronta esses desenvolvimentos,excluindo-os ou combinando-os também segundoas regras da coerência lógica.

94

Page 95: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 95/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

3. O discursoretórico parte das convicçõesatuais do público, sejam elas verdadeiras oufalsas, e procura levar a platéia a uma conclusãoverossímil.

4. O discursopoéticoparte do gosto ou doshábitos mentais e imaginativos do público e, jogando com as possibilidades que aí seencontrem, procura criar uma aparência, umsimulacro, levando o público a aceitar provisoriamente como verdadeiro, por livreconsentimento, algo que se admitiu de antemãoser apenas uma ficção ou uma convenção.

95

Page 96: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 96/196

O LAVO DE C ARVALHO

Esquema Final daTIPOLOGIAUNIVERSAL DOSDISCURSOS

EIXO VERTICAL: necessidade.EIXO TRANSVERSAL: contingência.

DialéticoProvável

AnalíticoVerdadeiro

RetóricoVerossímil

PoéticoPossível

96

Page 97: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 97/196

V. OS MOTIVOS DE CREDIBILIDADE

IMOS que os quatro discursos se diferenciamsobretudo pelos seus graus e modos de

credibilidade. Agora vamos estudar mais pormenorizadamente os motivos psicológicos quedeterminam a credibilidade em cada um dosquatro casos.

V

I. Discurso Poético

Tem credibilidade pela suamagia: faz oouvinte “participar” de um mundo de percepções,evocações, sentimentos, de modo que, nãoexistindo hiato entre o poeta e o seu público, acomunhão — espiritual e contemplativa — devivências “é como se a própria vidafalasse” (expressão que alguém usou a respeitode Tolstói, mas que, idealmente, se aplica ao poeta em geral). Por isto dizia Samuel Taylor Coleridge que uma das condições básicas para aapreciação da poesia é umasuspension of disbelief , suspensão da dúvida, da exigência

Page 98: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 98/196

O LAVO DE C ARVALHO

crítica realista. O ouvinte ou leitor da obra poética coloca provisoriamente “entre parênteses” o juízo crítico, de modo a poder participar mais diretamente da vivênciacontemplativa que lhe é proposta. A analogiaentre a contemplação da arte e a(epokhé ) fenomenológica é patente: em ambos oscasos, suspendemos o juízo de “existência” paramais livremente apreender as “essências”.

A credibilidade, no discurso poético, assume portanto a forma de umaparticipação consentidanuma vivência contemplativaproposta pelo poeta.

O efeito “mágico” dessa participação requer também, como condição preliminar, acomunidade de língua e de linguagem entre poetae ouvinte; eles devem não apenas falar correntemente a mesma língua, mas ter umdomínio equivalente do vocabulário, da sintaxe,etc.: O que o poeta diz deve ser apreendidoinstantaneamente e sem demasiadas mediaçõesintelectuais, ou então o efeito poético não se produz. Mas há, é claro, uma diferença: odomínio que o poeta possua dos recursoslinguísticos deve ser ativo — no sentido de ele poder usá-los criativamente —, e o do ouvinte

basta que seja passivo: que possa captar o sentidodesse uso, ainda que sem saber produzir elemesmo um efeito semelhante.

Por isso é que obras poéticas escritas numaépoca remota, com palavras estranhas ao nosso

98

Page 99: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 99/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

vocabulário ou construções frasais para nósinusitadas, não despertam mais efeitos poéticos, anão ser que a barreira de dificuldades sejaretirada artificialmente, pela intervenção de umfilólogo ou explicador ou pelo nosso esforço pessoal de pesquisa, de análise e de interpretação.A apreciação estética de obras antigas ouestranhas é uma experiência indireta, que se fazatravés da mediação intelectual e crítica. E comono homem vulgar a atividade intelectual crítica ea vivência direta estão separadas por um abismoque só uma longa educação pode transpor, essaexperiência é, na prática, inacessível à maioriadas pessoas. A possibilidade de “recuperar” osentido originário e vivo da experiência poéticadepende então da cultura e da capacidade doleitor: quanto mais efeitos ele esteja aos procedimentos interpretativos técnicos, menos penosa lhe será a mediação intelectual e maisfácil seu acesso à vivência poética. Para o leitor principiante, o esforço mesmo de interpretação setorna um obstáculo, e muitos universos poéticoslhe estão fechados. O estudo habitual da filologia,o exercício constante da interpretação, abremhorizontes de cuja existência o leitor vulgar nemsequer suspeita.

Há é claro, exceções, obras que, emboraescritas numa outra época, permanecemacessíveis de modo mais ou menos direto e nãooferecem aparentemente maiores dificuldades deinterpretação. Em muitos casos esta facilidade

99

Page 100: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 100/196

O LAVO DE C ARVALHO

aparente é enganosa; baseia-se em afinidadesfortuitas. O leitor acaba apreciando a obra por motivos que nada têm a ver com ela. O homemhabituado às idéias psicalíticas aprecia oÉdipo Rei se dar-se conta de que o Édipo de Sófoclesnão tinha complexo de Édipo: só o de Freud. Ouo jovem sequioso de “experiência mística” forados quadros do “dogma” que ele julga estreito, se baba de admiração por S. João da Cruz, sem notar que fora do dogma católico não há a mínima possibilidade de compreender realmente S. Joãoda Cruz. É como um índio que, desembarcandono Rio ou em São Paulo e deparando uma estátuade Peri e Ceci, desenvolvesse grande admiração pela cidade por julgar que ali os índios fossemobjetos de culto público. Ou como o Barão deItararé, que ingressou no Integralismo por haver entendido que o lema do movimento fosse:“ Adeus, Pátria e Família”.

É só a verdadeira cultura literária que podecurar esses desvarios subjetivistas, os quais me parece que hoje em dia constituem o padrãomesmo do gosto literário entre os jovens dauniversidade. Sua formação literária, feita na basedo culto ocasional de autores escolhidos a esmo — segundo a preferência dos professores ou

segundo as oscilações da moda — não lhes permite uma visão de conjunto do mundo dasletras, nem no sentido histórico, nem no sentidode uma hierarquia de valores, nem mesmo no deum sistema de gêneros e formas; de modo que

100

Page 101: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 101/196

Page 102: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 102/196

O LAVO DE C ARVALHO

ilusória: reconhecer que não se compreende é àsvezes o requisito preliminar da compreensão. Por isto não há nada mais indigesto ao educador doque um jovem apegado às suas próprias opiniões,como um velho ranheta, desconfiado, hostil,fechado num muro de defesas.Um outro reparo que se deve fazer, para evitar confusões, é que a “comunhão de vivências”, aque me referi acima, é espiritual e contemplativa,não diretamente sensorial e emotiva. Comoobserva Carlos Bousoño, quando o poetadescreve sua dor de dentes isto não faz doerem osdentes do leitor: prova de que se trata decontemplação de vivências, e não de vivenciaçãodireta. Advertência desnecessária a quemcompreenda, desde logo, que todos os quatrodiscursos se dirigem ao espírito, ao homemenquanto sujeito cognoscente e não diretamenteenquanto existente; mas que se torna necessáriaquando se considera que a incompreensão destecaráter indireto e representativo de todo discursoé regra geral entre os jovens leitores, que por isto pedem à obra literária emoções diretas e fáceis,sem mediação estética, confundindo a vida com aarte, sem dar-se conta que, por esse caminho, sóacabarão por cultuar uma arte repetitiva e

narcótica, “reacionária” no sentido de barrar aohomem o acesso a toda experiência que já nãoesteja no seu circuito preferencial e rotineiro.

O que foi dito da comunidade de linguagem, por outro lado, também não significa que a obra

102

Page 103: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 103/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

poética, para nos comover, deva ser escrita noestilo da nossa fala corrente, para não suscitar estranheza. Ao contrário. Se a fala corrente, por si, tivesse o dom de nos comover, viveríamosimersos num mar de emoções e não cairíamos jamais na banalidade e no tédio. O discurso poético justamente rompe esse estado de banalidade e de tédio, e o consegue por sua“estranheza”. Mas há dois tipos deestranhamento: mágico e intelectual. Oestranhamento intelectual cria entre nós e a obra poética uma distância crítica, que enfraquece ouanula a experiência poética; o estranhamentomágico, em contrapartida, confere à linguagem poética uma auréola de prestígio e de autoridadeoraculares, com a qual ela pode subir à esfera doque a estética romântica denominava “osublime”, para além do simplesmente “belo”. Adiferença é que uma dessas formas deestranhamento vem acompanhada de umsentimento de rejeição, de inconformidade, ao passo que a outra produz o fascínio e a participação. Não cabe ver aqui em detalhe comose produzem esses efeitos. (O estranhamento ditobrechtiano, que é do tipo intelectual, é coisatotalmente diversa. Que o aluno não caia em

confusões: o teatro de Brecht leva o espectador aestranhar criticamentea ação dos presonagens, enão a obra enquanto tal. Nesse sentido, conservasua influência “mágica”, aliás poderosa, por trásde uma cortina de distanciamento crítico.) Por

103

Page 104: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 104/196

O LAVO DE C ARVALHO

enquanto, o que interessa é assinalar que acredibilidade do discurso poético, em todos oscasos, vem da “magia” possibilitada pela participação consentida numa vivênciacontemplativa, e que esse consentimento tomaconcretamente a forma de umasuspension of disbelief , de uma concordância (provisória edescomprometida) de “entrar no jogo”.

Finalmente: a comunidade de vivências, sedeve ser entendida em sentido espiritual econtemplativo, e não físico, não tem de ser vistacomo algo que se limite à esfera “subjetiva” daexperiência. Nada exclui a hipótese de que, por meio espiritual, a obra poética chegue a operar efeitos “físicos” no leitor, e que esses efeitossejam objetivos e repetíveis, uma vez atendidasas condições culturais e psicológicas requeridas.Parece, realmente, que nas fases iniciais dacultura humana, a linguagem poética éreconhecida como detentora por excelência dessafaculdade, e mesmo do poder de desencadear, pela magia da palavra, efeitos físicos na naturezaem torno. As origens comuns da poesia e damagia (entendida esta como ciência e técnica daoperação com forças sutis da natureza)constituem um assunto espinhoso e complexo, e

deveremos abordá-lo com mais cuidado emetapas mais avançadas do nosso curso. Por enquanto, devemos apenas assinalar que aexperiência poética não é de maneira algumadependente da pura arbitrariedade subjetiva; que,

104

Page 105: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 105/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

atendidas as condições iniciais, isto é, oconsentimento à participação e a comunidade derecursos linguístico, o efeito poético se segue por linhas perfeitamente identificáveis; e que tudoisto deve ser objeto de ciência e não de arbítrio.

II. Discurso Retórico

Visa, essencialmente, a persuadir alguém afazer ou a deixar de fazer alguma coisa: aprovar ou rejeitar uma lei, mover a guerra ou estabelecer a paz, eleger ou derrubar um governante, absolver ou condenar um réu. Todo discurso retóricocontém, assim, de maneira mais ou menos

explícita, um comando ou um apelo. Ele tencionaque esse apelo seja atendido, esse comandoobedecido.

Sua influência sobre o ouvinte é portanto bemdiferente daquela do discurso poético. Esteoperava uma transformação na alma do ouvinte,mas, como esta transformação ocorria emcamadas muito profundas, não podia resultar numefeito exterior imediato e prático, traduzir-se logonuma decisão ou ação precisa e determinada. Odiscurso poético, na verdade, antes predispõe delonge a certas atitudes, do que as ordena ousolicita. A influência do discurso retórico émenos profunda, porém mais evidente e imediata,mais traduzível em ações exteriores. Enquanto odiscurso poético procura absorver a alma inteira

105

Page 106: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 106/196

O LAVO DE C ARVALHO

do ouvinte, deixando nela uma marca profundaque se integre na sua personalidade “como se a própria vida falasse”, mas abdicando, por istomesmo, de tirar disso qualquer proveito práticoimediato, o discurso retórico contenta-se cominfluenciar o ouvinte durante um determinado período de tempo e para os fins de umadeterminada decisão ou ação em particular. Oadvogado que discursa no foro não pretendetransformar de maneira profunda e duradoura aalma dos jurados, mas apenas persuadi-los aabsolver ou a condenar o réu naquela precisacircunstância. Se depois eles se arrependerem dovoto, pouco importa: a influência da retóricatermina no ponto exato em que a ação sedesencadeou conforme o esperado.

O discurso poético não dá ao ouvintenenhuma ordem determinada. Mesmo quandoexpressa mandamentos, como no caso dos épicosreligiosos, o faz numa linguagem simbólica quedá margem a toda uma variedade deinterpretações posteriores, e é só através destas(expressas, por sua vez, em linguagem dialéticaou retórica) que os mandamentos, muito gerais,se convertem em normas determinadas. Algunstextos sacros, no entanto, contêm exortações e

comandos explícitos, de mistura com expressõessimbólicas. Por isto alguns tratadistas, comoFrye, preferem classificar esses textos numgênero intermediário, oKerigma, misto de poético e retórico. Pode-se admitir esta

106

Page 107: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 107/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

denominação, com a ressalva de que, em tododiscurso, os elementos poéticos e retóricos nuncaestarão fundidos numa massa homogênea, mas permanecerão sempre passíveis de distinção.

O discurso retórico, por sua vez, emite sempreuma ordem ou pedido que, mesmo implícito, serásempre concreto e determinado; motivo pelo qualtem de ser de intelibilidade literal e imediata (istoé, imediatamente referida às circunstâncias práticas que lhe interessam). Um discurso poético pode ter tantas “interpretações” quantas se queira,sem que isto prejudique em nada o seu efeito, queàs vezes é tanto mais profundo quanto maisvariadas as interpretações. Um discurso retórico,ao contrário, tem de ser unívoco: se puder ser interpretado em vários sentidos, não terá eficácianenhuma. Palavras obscuras podem fascinar oucomover; mas não podem transmitir uma ordem precisa e determinada. (O que não quer dizer queum discurso retórico em particular não possatambém conter virtudes poéticas e, neste sentido,reverberar numa multiplicidade de sentidossimbólicos, contanto que o literal estejagarantido.)

A credibilidade do discurso retórico consisteem sua faculdade de fazer o ouvinte querer

alguma coisa (ou rejeitar alguma coisa). Esteefeito se obtém por uma identificação, ao menosaparente e momentânea, da vontade do ouvintecom a vontade do orador. Este faz o ouvintesentir que a proposta contida no discurso

107

Page 108: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 108/196

O LAVO DE C ARVALHO

coincide, em última instância, com a vontadeíntima do próprio ouvinte. Já não se trata portanto, somente de uma participação consentidanuma certa vivência comtemplativa, mas naadmissão consentida de uma identidade devontades, portanto de decisões.O discurso retórico apela, no fundo, aosentimento de liberdade do ouvinte, ao seuimpulso de decidir, de agir por si mesmo, deafirmar sua vontade. Por isto a Retórica antigaconsiderava importante que o orador captasse primeiro as inclinações do auditório, para poder fazer a ponte entre essas inclinações e o objetivodesejado.

Há, é claro, pontes falsas: o orador faz oauditório imaginar que quer uma coisa, quando defato quer outra, que o orador trata de fazê-loesquecer por uns momentos. Mas a eficácia detais truques é bastante limitada, e seu usoconstante reduz a nada a credibilidade do orador.A retórica verdadeira se baseia sempre naautêntica vontade do auditório, procurandoapenas orientá-la ou transformá-la suavemente,sem forçar mudanças nem muito menos ludibriar o auditório. Abraham Lincoln, um dos maioresoradores de todos os tempos, disse: “Você pode

enganar algumas pessoas durante muito tempo oumuitas pessoas durante algum tempo, mas não pode enganar a todo mundo o tempo todo.” Oretórico sabe que a vontade, em última análise,não pode ser persuadida senão a fazer

108

Page 109: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 109/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

precisamente o que quer, e que no máximo é possível trocar uma vontade superficial emomentânea por outra mais profunda, já latenteno coração do auditório. Nesse sentido, a retóricaapela para o que exista de melhor na alma doouvinte, e tem por isto uma função moral e política, como exercício da decisão responsável.

III. Discurso Dialético

Pretende convencer por meios racionais,independentemente da vontade do ouvinte e oumesmo contra ela. Para que isto se torne possível,não é necessário outra condição preliminar senão

que o ouvinte admita a arbitragem da razão eaceite algumas premissas em comum com oorador, geralmente tiradas das crenças correntesdo seu meio social ou cultural, do senso comumou do consenso científico.

Note-se que, na escala dos discursos, vaidiminuindo do poético ao analítico a quota deconfiança inicial que se exige do ouvinte. Odiscurso poético requeria asuspension of disbelief , que é quase uma entrega; o discursoretórico exige pelo menos confiança e simpatia pela pessoa do orador (ou então ele terá deconquistá-las). O discurso dialético exige muitomenos: o ouvinte tem apenas de confiar no seu próprio poder de raciocínio e nas premissasgeralmente admitidas; o rumo do discurso será

109

Page 110: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 110/196

O LAVO DE C ARVALHO

controlado pelo próprio ouvinte, sempre pronto arejeitar as conclusões que lhe pareçam escapar dasequência lógica.

A credibilidade do discurso dialético depende, portanto, exclusivamente de dois fatores:

1º O ouvinte tem de se comprometer a seguir a lógica do argumento e a aceitar comoverdadeiras as conclusões que não possa refutar logicamente.

2º É preciso encontrar um terreno comum deonde tirar as premissas.

Essa credibilidade depende, enfim, do grau decultura do ouvinte e da sua honestidadeintelectual. O discurso dialético dirige-se a umouvinte racional e razoável, que pretendeconduzir-se de maneira racional e razoável, queaceite submeter sua vontade à razão, e que possuaalguns conhecimentos em comum com o orador.Seu sucesso depende de que encontre um ouvintenessas condições.

IV. Discurso Analítico

Partindo de premissas que são tomadas comoevidentes e inquestionáveis, e pretendendo chegar a resultados que, nos limites dessas premissas,deverão ser aceitos como absolutamente certos,sua credibilidade depende de duas coisas: que oouvinte seja capaz de acompanhar passo a passoum raciocínio lógico cerrado, sem perder o fio, e

110

Page 111: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 111/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

que ele esteja ciente da veracidade absoluta das premissas. A primiera condição depende dotreino lógico especializado. A segunda só serealiza em dois casos: (a) quando se trata de premissas muito gerais, que ninguém possa negar em sã consciência, como por exemplo o princípioda contradição; (b) quando o discurso se dirige aum público científico, informado, apto a tomar como absolutas certas premissas específicas(tiradas de um determinado setor da ciência), seja por ter as condições de verificá-las diretamente,seja por ter a habilidade de lidar com premissasadmitidamente relativas fazendo abstração destarelatividade e admitindo, por uma convençãocientífica, tratá-las provisoriamente comoabsolutas, deixando fora da discussão o que asdesminta. Dito de outro modo, o discursoanalítico só pode funcionar quando trata deverdades muito gerais para um público geral oude verdades específicas para um público muitoespecializado.

Por exemplo, um público de físicos podeadmitir mais ou menos convencionalmente certos princípios da física, sabendo que poderão ser derrubados amanhã ou depois, mas concordando,não obstante, em continuar a tomá-los como

absolutamente válidos enquanto não foremderrubados, ao mesmo tempo em que faz, por outro lado, todo o esforço para derrubá-los. Estaatitude mental, que casa o absoluto rigor lógicodas conseqüências com o senso da permanente

111

Page 112: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 112/196

O LAVO DE C ARVALHO

revogabilidade das premissas, e que é um traço proeminente do espírito científico, pode ser extremamente desconfortável para o ouvinte,mesmo culto, que não possua um treinamentoespecializado. A credibilidade do discursoanalítico depende, em última análise, dacapacidade científica do auditório. Vale, aqui, aadvertência de Santo Alberto Magno, de que amuitos, “afeitos à vulgaridade e à ignorância, lhes parece triste e árida a certeza filosófica, seja porque, não tendo estudado, não são capazes deentender tal linguagem, ignorando a eficácia doaparato silogístico, seja pela limitação ou falta derazão ou de engenho. Com efeito, uma verdadeque se obtenha com certeza por via silogística éde tal condição que não pode facilmente alcançá-la aquele que não estude, e está totalmenteincapacitado para ela aquele que seja de visãocurta”61.

61 Opera omnia, XVI/1, p. 103.

112

Page 113: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 113/196

VI. MARCOS NA HISTÓRIA DOS ESTUDOSARISTOTÉLICOS NO OCIDENTE

HISTÓRIA dos estudos aristotélicos noOcidente constitui-se de um certo número

de descobertas notáveis, que de tempos emtempos trouxeram à luz novos aspectos da obrado Estagirita.

A No Séc. I a. C. a revelação dos textos

aristotélicos encontrados e editados por Andrônico de Rodes marca o início da era dosestudos aristotélicos.

No Séc. VI d. C., a tradução das obras lógicasde Aristóteles por Boécio assinala o começo daabsorção do pensamento aristotélico pela Igreja,um processo que culminaria no séc. XIII com Sto.Tomás de Aquino. Boécio é considerado por istoo primeiro escolástico. Antes dele, Aristótelesnão era, decerto, ignorado, mas a visão que se

tinha dele era muito genérica, sua figura seconfundia com a dos platônicos sob adenominação comum “a Academia”.

Nos Comentários a Aristóteles por Sto.Alberto Magno e Sto. Tomás de Aquino (Séc.

Page 114: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 114/196

O LAVO DE C ARVALHO

XIII), pela primeira vez o Ocidente tem umavisão completa e estruturada do pensamento deAristóteles, que desde a Antigüidade só foraconhecido de maneiras parciais e fragmentárias.

No Séc XVI vem a redescoberta do texto daPoética, desaparecido desde a Antigüidade. Aedição com comentários por Francesco Robortelli provoca umfrisson em toda a Europa letrada etem como resultado a formação da estéticaliterária do classicismo, que dominará a literaturaOcidental até o séc. XVIII62.

No Séc. XIX, a Edição-padrão dos textos deAristóteles pela Academia de Berlim, sob aresponsabilidade de Imannuel Bekker, expandeformidavelmente o interesse pelos estudosaristotélicos. Em decorrência, a visão sistêmicado pensamento de Aristóteles, inaugurada pelosescolásticos, é aperfeiçoada e confirmada numasérie de trabalhos notáveis, principalmente deFélix Ravaisson,Ensaio sobre a Metafísica de Aristóteles (1837), Franz Brentano, A Diversidade das Acepções do Ser segundo Aristóteles(1862), e Octave Hamelin,Le Systèmed’Aristote (curso de 1904-5, publicado postumamente por Léon Robin em 1920).

62 V. René Wellek,História da Crítica Moderna, trad. LívioXavier, São Paulo, Herder, 1967, t. I, Caps. I-VII; Philippe VanTieghem, Petite Histoire des Grandes Doctrines Littéraires enFrance. De la Pléiade au Surréalisme, Paris, P.U.F., 1946, pp.1-58; Paul Hazard,La Crise da la Conscience Européenne— 1680-1715, Paris, Gallimard, 1967, t. I, Chaps. I-II.

114

114

Page 115: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 115/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

Na entrada do Séc. XX a visão sistêmica écontestada por Werner Jaeger ( Aristóteles. Bases para a História de seu Desenvolvimento, 1923).Segundo Jaeger, fundador da escola dita“genética”, Aristóteles começou como metafísico platônico puro, terminou como um cientistanatural “positivo”, descrente da metafísica. A posição de Jaeger é radicalizada por PierreAubenque (O Problema do Ser em Aristóteles,1962), que nos mostra um Aristóteles trágico,quase cético, em oposição à religiosidade platônica.

Em resposta, Ingemar Düring (O“Protréptico” de Aristóteles. Tentativa de Reconstrução, 1961) valoriza o método genético,sondando os textos juvenis de Aristóteles, aomesmo tempo que invalida a tese jaegeriana deuma mudança substancial de orientação que teriaocorrido na maturidade do filósofo.Paralelamente, Augustin Mansion (FilosofiaPrimeira, Filosofia Segunda e Metafísica em Aristóteles, 1958) e Eugenio Berti ( A Unidade doSaber em Aristóteles, 1965) invalidam a segunda parte da tese de Jaeger, mostrando que emAristóteles a Física é inseparável de suaMetafísica.

Uma linha totalmente nova de investigações éinaugurada por Éric Weil ( A Lógica noPensamento Aristotélico, 1951), ao propor a teserevolucionária de que a dialética, e não a lógica, éo método científico por excelência em

115

Page 116: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 116/196

O LAVO DE C ARVALHO

Aristóteles. A tese é demonstrada em detalhe por Jean-Paul Dumont ( Introdução ao Método de Aristóteles, 1986). Ela concorre decisivamente,mas por via transversal, para provar a unidade dosistema aristotélico, contra Jaeger e Aubenque.

Houve, é claro, centenas, milhares de outrostrabalhos notáveis. Mas esses oito episódiosmarcam os instantes decisivos, as mudançassubstanciais de orientação no entendimento dafilosofia de Aristóteles e na sua absorção peloOcidente.

Meu trabalho procurou encaixar-seconscientemente nessa evolução63, aproveitandoas contribuições de Weil e Dumont para fundar avisão de um Aristóteles muito mais sistêmico,

63 É óbvio que a história dos estudos aristotélicos abrange outrosdesenvolvimentos interessantes, entre eles alguns bem recentes,mas não na direção dos temas que interessam a este estudo. V. por exemplo M. A. Sinaceur [ org. ],Aristote Aujourd’hui. Études Réunies à l’Occasion du 2 300e Anniversaire da la Mort duPhilosophe, Paris, Ères, 1988). Alguns interessam mais de pertoao nosso tema, mas em nada reforçam ou debilitam a tese aquiapresentada: refiro-me especialmente a David Metzger,The Lost Cause of Rhetoric. The Relation of Rhetoric and Geometry in Aristotle and Lacan, Carbondale and Edwardsville, Southern Illi-nois University Press, 1995, e a Victor Gomez-Pin,El Orden Aristotélico, Barcelona, Ariel, 1984. Já a recente onda de debatesaristotélicos no meio anglo-saxônico concentra-se, de um lado, na

interpretação doDe Anima, para averiguar se a psicobiologiaaristotélica pode ou não ser considerada uma precursora do atualfuncionalismo materialista (v. Martha C. Nussbaum and AmélieOksenberg Rorty,Essays on Aristotle’sDe anima, Oxford,Clarendon, 1995); de outro, em questões de ética (v. AnthonyKenny, Aristotle on the Perfect Life, Oxford, Clarendon Press,1995) (temas bem diversos daquele abordado no presente livro.

116

116

Page 117: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 117/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

muito mais coeso e “orgânico” do que osescolásticos mesmos poderiam ter suspeitado.

Weil conjeturou que uma nova abordagem dométodo de Aristóteles produziria uma reviravoltana visão da sua filosofia como um todo. Essanova abordagem partia da pergunta (tão óbviaque ninguém a tinha feito ao longo de vinteséculos):Se a lógica é tão central em Aristóteles, por que ele não a usa nunca em seus tratados, preferindo a exposição dialética?

Aprofundando a hipótese de Weil, Dumontdemonstrou meticulosamente que “quem seativesse a uma interpretação rasa doaristotelismo, que reduzisse osTópicos[ isto é, aDialética ] a um mero discurso introdutório dasSegundas Analíticas[ isto é, da Lógica ], faria doaristotelismo uma tentativa de fundar um puroformalismo lógico, o que aliás aconteceu comfrequência. [ E com isto ] nos impediria dereconhecer a força criadora e a profundidadegenial dosTópicos, que são a obra de um jovemfilósofo já possuidor de um método original[ grifo meu ]. O método de Aristóteles torna possível uma metafísica apta a confrontar os pontos de vista complementares que exprimem adiversidade das causas”64.

Antes mesmo de conhecer o trabalho deDumont, mas dando por certas as conclusões de

64 Jean-Paul Dumont,Introduction à la Méthode d’Aristote, 2e.éd., Paris, Vrin, 1992, p. 208.

117

Page 118: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 118/196

O LAVO DE C ARVALHO

Weil que ele viria a confirmar, levantei com basenelas as seguintes questões:

1. Se Aristóteles desde jovem já possuía ométodo dialético integral, entãoele o crioudurante os anos em que lecionava Retórica na Academia Platônica.A Retórica e a Dialéticadesenvolveram-se, portanto, simultaneamente eem íntima associação, e não esta depois daquela.O próprio Aristóteles situa a Dialética como umaprofundamento teórico da Retórica e a Retóricacomo uma expressão “política” da Dialética. Neste caso, porém, a separação dosTópicose da Retórica, feita mais tarde por Andrônico, só temo valor de um arranjo editorial, e não reflete o parentesco estreito das duas ciências tal como oimaginava Aristóteles.

2. Weil tem toda a razão ao enfatizar aimportância dos Tópicos, cujo menosprezolevaria, como bem viu Dumont, a transformar oaristotelismo “num puro formalismo lógico”,contrário às intenções declaradas do Estagirita,segundo o qual a lógica nada descobre, masapenas confirma. Mas dizer isto não basta.Aristóteles não admite nenhuma separação,nenhum abismo entre a formalização lógica e oconhecimento sensível; essa separação define,

para ele, o conhecimento logicamente corretomas ontologicamente falso. Daí seu menosprezomal disfarçado pelas matemáticas, que elequalifica de um estudo bom para os adolescentes.Porém, nesse caso, deve existir, no próprio

118

118

Page 119: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 119/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

método aristotélico, uma ponte entre o pensamento discursivo e os sentidos, sob pena deo método reduzir-se a pura formalização semligação com o real.

3. Onde está essa ligação? NosTópicosnão pode estar, pois a dialética não parte dos dadosimediatos, e sim das opiniões científicascorrentes. Tem de estar mais abaixo. NaRetóricatambém não está, pois a argumentação retóricatambém não parte diretamente dos dadossensíveis, e sim das opiniões vulgares correntes.

4. Aristóteles é, dentre os filósofos, aqueleque mais enfatizou a unidade sistêmica do saber. Não teria sentido, portanto, ele empregar ummétodo cortado em dois andares estanques — discurso em cima, sentidos em baixo, como numaespécie de cartesianismoavant la lettre. Aocontrário: para que o aristotelismo tivesse omínimo de coerência, era preciso quea estruturado seu método tivesse uma homologia rigorosacom a estrutura global da ciência aristotélica.Ora, esta ciência parte dos seres sensíveissingulares, para elevar-se gradualmente, atravésdas espécies e gêneros, ao ser universal. A pontecognitiva entre os seres sensíveis e as espécies é,segundo Aristóteles, afantasia (função que para

ele designa simultaneamente memória eimaginação). A fantasia, enquanto fenômeno real,é estudada no tratado Sobre a Psique(psicologia). Falta, portanto, para completar ahomologia entre o método e o sistema da ciência,

119

Page 120: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 120/196

O LAVO DE C ARVALHO

aquela parte do método que correspondesse, nasciências, à psicologia, e que estudasse o método pelo qual, partindo dos dados sensíveis, seformam as imagens ( fantasmas) de onde virão emseguida os conceitos das espécies. Nos escritos deAristóteles que chegaram até nós, essa parte dométodo não existe. Mas existem menções a estaquestão na Poética. A poesia, segundoAristóteles, age sobreo corpohumano, através dosom e da imagem (no teatro), e, mostrandoverdades universais nas ações de personagensindividuais, funciona de maneira exatamenteanáloga à fantasia, onde a imagem de um corpono espaço pode representar não um ser singular,mas a sua espécie, fazendo a ponte entre perceber e pensar. Logo, a Poética corresponde, na esferado método — isto é, das ciências do discurso — ao “primeiro andar”, à conexão entre os dadosdos sentidos e o universo do discurso. A poesia éa ponte entre “mundo” e “discurso”. Sem a poética, compreendida como semente do métododiscursivo, o aristotelismo fica amputado de suaraiz material e sensível, à qual o Estagirita davatanta importância, e cuja defesa foi o motivo desua ruptura, tão precoce, com a doutrina platônicadas idéias.

Partindo dessas bases, minha tese mostra, demaneira muito mais radical do que em Weil eDumont, a unidade profunda da inspiração que preside a toda a obra aristotélica. Ela corta ocaminho, definitivamente, a toda tentativa de

120

120

Page 121: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 121/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

fazer do aristotelismo um instrumento a serviçode um dualismo trágico, de um materialismo oude um neoplatonismo matematizante. Ela leva àsúltimas consequências a tese aristotélica daunidade do saber, mostrando que essa unidadenão pode realizar-se inteiramente no nível dodiscurso, mas requer a inserção do discurso nomundo sensível, na vida biológica e no contextosocial. O discurso, para Aristóteles, não forma ummundo separado, mas faz parte do esforçonatural, “biológico”, do ente vivo para elevar-se àconcepção do universal que o inclui.

Minha tese procura resgatar o espírito“sistêmico” e “ecológico” do aristotelismo, numtempo em que a cultura universal busca

ansiosamente resgatar o sentido sistêmico eunitário do saber e a integração do conhecimentonuma visão ecológica — ou ecocósmica — do ser vivente. Esse anseio expressa-se de maneiraeloqüente, por exemplo, em Edgar Morin:

“Estou cada vez mais convicto de quea ciência antropo-social necessitaarticular-se com a ciência da natureza, ede que esta articulação requer umareorganização da estrutura mesma do

saber .”65

65 Edgar Morin,La Méthode. I. La Nature de la Nature, Paris, LeSeuil, 1977, p. 9.

121

Page 122: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 122/196

O LAVO DE C ARVALHO

Tendo-se em conta que Aristóteles é um dos pais-fundadores da cultura e da ciência Ocidentale o inventor mesmo da noção de “estrutura dosaber”, que poderia ser mais importante para odebate científico contemporâneo do queredescobrir em sua obra a raiz do espíritointegrativo e sistêmico reivindicado por Morin?

122

122

Page 123: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 123/196

VII. NOTAS PARA UMA POSSÍVELCONCLUSÃO

IDÉIAdos Quatro Discursos, não exposta em parte alguma dos textos de Aristóteles,

pervade todo o seu pensamento e estásubentendida não só nas teses da Física, daMetafísica, da Ética e da Política, mas no própriomodus exponendi et argumentanditípico doEstagirita.

A

É nela, e não no conteúdo explícito das tesesdefendidas em cada etapa do desenvolvimentointelectual de Aristóteles, que se deve buscar achave da unidade do sistema aristotélico. A meuver, chega a ser estranho que alguém pensasse poder contestar essa unidade mediante o apelo aconsiderações biográficas, aliás amplamenteconjeturais; porque no aristotelismo como emqualquer outra filosofia, como aliás em qualquer empreendimento humano, a unidade última jamais pode ser atingida no domínio dasrealizações, e permanece sempre como um ideal

Page 124: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 124/196

O LAVO DE C ARVALHO

orientador que só aparececomo tal antes docomeço e depois do fim.

Que o fim a que tende o esforço de Aristóteles(a constituição do saber como sistemademonstrativo e apodíctico( permaneceu sempre para ele apenas um ideal, é coisa que se evidencia pelo fato mesmo de que em nenhum dos tratadosconhecidos o mestre emprega a demonstraçãológica, preferindo a via dialética. Se entendemos, pela Teoria dos Quatro Discursos, que paraAristóteles o conhecimento é como uma árvore,que lança suas raízes no solo das sensações e seeleva gradativamente através da imaginação, davontade e do pensamento até a certeza apodíctica,temos de admitir que a vida do conhecimentohumano não pode cortar jamais suas raízes eencerrar-se num sistema demonstrativo, sem queeste sistema, no mesmo ato, esteja condenado anão abranger senão os planos mais gerais eabstratos da esfera das coisas conhecidas e que,deste modo, deixe de ser conhecimento efetivo para se tornar apenas fórmula de umconhecimento possível, a efetivar-se, justamente,no retorno às coisas singulares que os sentidosnos oferecem. O sábio, no sentido aristotélico,não é aquele que se elevou ao céu das essências

platônicas, mas aquele que, retornando dasalturas, sabe ir re-conhecendo, na variedade dascoisas sensíveis que se lhe apresentam no espaçoe no tempo, o princípio de unidade que nelas seinsinua. A sabedoria aristotélica não é somente

124

124

Page 125: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 125/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

episteme, mas fronesis, sabedoria do agir,guiamento da alma no lusco-fusco das situaçõescambiantes da vida. A realização completa dosistema demonstrativo dispensaria afronesis, porque nos converteria em deuses ou anjos.

O debate entre os que apostam numAristóteles sistemático ou num Aristótelesaporético resolve-se assim num Aristóteles que,circularmente, sobe à unidade do sistema pela viaaporética (dialética) e retorna à variedade daexperiência problemática trazendo do céu aquelarecordação da luz da unidade, que é precisamentea fronesis, guiamento do homem na investigaçãocientífica como na vida ativa.

É nessa circularidade dinâmica(e não na purae simples arquitetônica das teses explícitas(quereside a unidade essencial do sistema aristotélico,não unidade simples, mas unidade do diverso,como em tudo o que é real e vivente; mais ainda,unidade que é definida por umaenteléquia (oideal do sistema) e não pela simples coerêncialógica, mais ou menos mecânica, entre as partes,ou por uma utópica (e desnecessária) persistênciadas mesmas convicções ao longo de uma vida; porque a unidade não é nunca, no ser vivo, e principalmente no ser vivo chamado homem,

equivalência estática de todos os momentos, massim tendência, através do diverso, a umafinalidade que tudo abrange, explica e redime.

Nunca podemos esquecer que Aristóteles, aoentrar na Academia, já trazia extensos

125

Page 126: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 126/196

O LAVO DE C ARVALHO

conhecimentos de anatomia e fisiologiaadquiridos no ambiente doméstico, e que estesconhecimentos já haviam impregnado nele profundamente a idéia daorganicidade, ou daunidade no diverso, que orientará todas as suasespeculações lógicas, físicas, metafísicas e éticase será a marca inconfundível do seu estilo de pensar.

Já nas suas primeiras investigações sobre ateoria do discurso, registradas no livro dasCategorias, aparece o problema da diversidadedas acepções do ser. Chega a ser fantástico que osanalistas modernos atribuíssem a soluçãoaristotélica deste problema a especulações puramente gramaticais e lingüísticas66, em vez de buscar a inspiração delas na simples experiênciada unidade do diverso, que o jovem filósofotrouxera de seu aprendizado de filho de médico.

Após ter descrito o sistema das categoriasdesde um ponto de vista puramente lógico elingüístico, isto é, como simples classificação dos predicados possíveis, Jonathan Barnes pergunta67:“Por que a mudança de classes de predicados paraclasses de seres?” Curiosa pergunta, pois essa passagem, essa mudança, só existe para Barnes ede modo geral para o intérprete moderno,66 Parece que o primeiro a lançar essa hipótese foi Rudolf Carnap.Para desmenti-la basta atentar para o fato de que as primeirasespeculações gramaticais na Grécia são posteriores de mais dedois séculos a Aristóteles.67 Jonathan Barnes,Aristóteles, trad. Marta Sansigre Vidal, 2ª ed.,Madrid, Cátedra, 1993, p. 72.

126

126

Page 127: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 127/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

acostumado a tomar o ponto de vista lógico-lingüístico como prévio e independente, mas não para Aristóteles. Para este, não é o conhecimentoque segue os modelos da linguagem, mas esta éque se lhe apresenta, desde logo, segundo omodelo que ele já conhecia: o modelo orgânicoda unidade no diverso. O sistema das categorias éum enfoque biológico da linguagem e do pensamento, não um enfoque lógico-lingüisticodo conhecimento.

Tanto assim é que a unidade no diverso é achave com que Aristóteles busca resolver todosos problemas que depara: desde os problemas dométodo (como as famosas resoluções dialéticassegundo as diferentes acepções de uma mesma palavra68) até os da física (segundo os diferentes pontos de vista por que se pode enfocar, por exemplo, a alma), e até as questões supremas dametafísica69.

Ora, a unidade do diverso, sendo a supremachave, não pode, por sua vez, ser explicada efundamentada: ela parece ser, para Aristóteles,uma daquelas verdades primeiras que nãonecessitam de provas, embora nela sefundamente, como bem demonstrou Dumont, o princípio mesmo do método dialético que, por sua

vez, conduzirá à revelação dos primeiros princípios da analítica.

68 V. Dumont,op. cit.69 V. Franz Brentano,De la Diversité des Acceptons de l’Êtred’après Aristote(1862), trad. Pascal David, Paris, Vrin, 1992.

127

Page 128: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 128/196

O LAVO DE C ARVALHO

Se perguntamos por onde tomou consciênciadesse princípio supremo o jovem Aristóteles, só podemos encontrar esta resposta: nacontemplação do organismo vivo.

Na Academia, porém, Aristóteles vem aaprender uma noção que, fundida a essa, daránascimento à teoria dos Quatro Discursos, àcriação de todo o método aristotélico e àdefinitiva tomada de posse, pelo jovem filósofo,dos poderes espirituais que lhe eram próprios.

Essa noção é aquela que Platão transmite por meio da metáfora da Linha70. O diagrama éexposto na República, obra da maturidade dePlatão, donde podemos presumir que era matériade ensino e debate na Academia precisamente nomomento em que ali chegava o jovem Aristóteles,no qual deve ter deixado profunda impressão aquele tipo de impressão fertilizante que eleatribui aos ritos de mistérios.

νοησις αρχαι

επιστημε νοητα

διανοια μαθηματιχα

πιστις ζωα

70 Rep., 509d6 até 511e5.

128

128

Page 129: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 129/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

δοξα δοξαστα

ειχασια ειχονες

Na extrema esquerda e de baixo para cima, a primeira coluna diz:doxa (opinião) eepisteme(ciência), isto é, a modalidade inferior e asuperior de conhecimento. Na extrema direita, osobjetos respectivos dessas modalidades deconhecimento:doxasta e noeta. Nas colunas domeio, à esquerda aparecem as faculdadescognitivas, duas da opinião (eikasiaou faculdadeimaginativa;pistis, ou faculdade de crer), duas daciência (dianoia ou pensamento; noesis ou,digamos assim para abreviar, intuiçãointelectual), formando uma escala ascendente. Àdireita, os objetos de conhecimentocorrespondentes a essas faculdades:eikones ouimagens; zoa ou entidades vivas e moventes;mathematikaou entidades matemáticas; e, por fim,arkhai, princípios ou modelos supremos.

Platão não explica em parte alguma essesconceitos com precisão, mas é manifesto que háaí a armadura geral da gnoseologia platônica. É patente também a rigorosa correspondência entreas quatro faculdades que aparecem na coluna decentro-esquerda e os quatro discursos deAristóteles:

FACULDADE(Platão) DISCURSO(Aristóteles)

129

Page 130: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 130/196

O LAVO DE C ARVALHO

poéticoς retórico

dialéticoς analítico (apodíctico)

A mais elementar prudência recomendaenxergar nesse esquema platônico a origemremota dos conceitos dos quatro discursos e daesquematização das ciências respectivas por Aristóteles.

Mais interessante ainda é observar que umacorrespondência simétricanão se verificaexatamente entre os objetos que Platão assinala àsquatro faculdades (coluna do centro-direita) e osobjetos dos quatro discursos, em escala

ascendente do poético ao analítico. Se as imagenssão o objeto do discurso poético, os entes vivosnão são objetos do discurso retórico, mas dodialético, que segundo Aristóteles é o método próprio da física; os entes matemáticos, por suavez, são para Aristóteles objetos de demonstraçãoapodíctica, não de disputa dialética, e finalmenteos arkhai ou princípios supremos não são, nosistema aristotélico, objetos de discurso nenhum,mas de conhecimento intuitivo auto-evidente (aoqual se chega, é verdade, pela mediação dadialética).Tanto a simetria quanto a assimetria aíassinaladas mostram que Aristóteles ficou profundamente impressionado pela escala platônica das modalidades de conhecimento (ao

130

130

Page 131: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 131/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

ponto de conservá-la na definição dos quatrodiscursos), mas que, tentando dar a essasmodalidades uma conceituação rigorosa que nãoencontrara no platonismo, e ao mesmo tempodesejando dar à escala um sentido organicistasegundo o estilo de pensar que lhe era próprio,acabou por se ver obrigado a romper a simetriado modelo platônico e por dar às suasespeculações gnoseológicas pessoais uma direçãodiversa. Conservação e superação do platonismosão de fato, em todos os momentos do seudesenvolvimento, as constantes do esforço deAristóteles.

Não por coincidência, o topo da escala é azona mais inquietante da comparação entre osdois esquemas, platônico e aristotélico. Se no platonismo o saber supremo,noesis, nos dá oconhecimento dosarkhai ou princípios, e se noaristotelismo, por outro lado, o discurso supremo,o analítico, não nos dá propriamenteconhecimento nenhum, mas apenas a certezaapodíctica dos conhecimentos já obtidos, entãovemos que está subentendido em Aristóteles oideal de um conhecimento em que o discursoanalítico plenamente realizado coincida com aauto-evidência dos arkhai conhecidos por

intuição intelectual, ou seja: em que a plenitudeda capacidade de provar equivalha à plenitude daevidência intuitiva. Dito de outro modo: osupremo ideal do conhecimento incluiria a umtempo, unidas numa síntese indissolúvel, a

131

Page 132: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 132/196

O LAVO DE C ARVALHO

evidência imediata da intuição e a coercitividadeda prova racional. Somente a realização desteideal permitiria que o saber fosse sistemático de pleno direito, sem nenhum resíduo aporético. Masé um ideal que nem pode ser realizado nemabandonado. Não pode ser realizado, porque suarealização efetiva para todos os domínios doconhecimento equivaleria ao infinito quantitativoem ato, que o próprio Aristóteles demonstra ser impossível. Nem pode ser abandonado, porque éa imagem do conhecimento infinito (nãoquantitativo) que move e estrutura a conquista dosaber possível, que sem ele se perderia numempirismo destituído de estrutura racional e detoda fundamentação apodíctica71.

Eis por que Aristóteles é um pensador a umtempo sistemático e aporético; eis por que,orientando-se pela regra ideal do sistema (lógico-analítico), procede, na prática, pelo métododialético; eis por que visando sempre ao universale ao eterno, insiste em buscá-lo semprehic et nunc, nos entes particulares sensíveis; eis por queele proclama, a um tempo, em aparentecontradição, que a suprema realidade é Deus e71 O tema da ciência apodíctica como ideal normativo seriaretomado, mais de dois milênios depois, por Edmund Husserl, em

A Crise das Ciências Européias. Husserl veria na retomada desseideal a única esperança de salvação da humanidade européia anteas catástrofes que se aproximavam. O presente trabalho inspira-se,declaradamente, nesse programa de Husserl (v.La Crisi delleScienze Europee e la Fenomenologia Trascendentale, a cura diWalter Biemel, trad, Enrico Filippini, Milano, Il Saggiatore, 4ªed., 1972, pp. 40-43).

132

132

Page 133: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 133/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

que a única realidade que existe são os entes particulares sensíveis, especialmente os seresvivos; e eis, enfim, por que Aristóteles viria a setornar, dentre os filósofos gregos, o mestre predileto dos pensadores cristãos: porque seu pensamento prenuncia, no enigma douniversalno singular vivente, o mistério da Encarnação. Adevoção ativa à suprema ciência, à sabedoriainfinita, é, em última instância, a essência de todaverdadeira filosofia e de toda verdadeira religião.

133

Page 134: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 134/196

Aristóteles no DentistaPolêmica entre o Autor e a SBPC

Page 135: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 135/196

I. DE RE ARISTOTELICA OPINIONESABOMINANDÆ

ou: Miados de um gato morto

Considerações deprimentes acerca da

“Avaliação crítica” de meu trabalhoUma Filosofia Aristotélica da Cultura pelo Comitê de Editores da revistaCiência Hoje , da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência

A NTECEDENTES. — Em fins de 1993, meuescrito “Uma Filosofia Aristotélica da Cultura”,resumo de umas aulas sobre “Pensamento eAtualidade de Aristóteles“ que eu vinha proferindo na Casa de Cultura Laura Alvim, foi

encaminhado à SBPC para avaliação e eventual publicação na revistaCiência Hoje, por iniciativado Dr. Ivan da Costa Marques, membro dessasociedade científica, o qual muito me honravacom sua presença no curso.

Page 136: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 136/196

O LAVO DE C ARVALHO

Passado quase um ano, como não viesseresposta, senti-me liberado para publicar o artigoem livro. No começo de outubro de 1994 recebida gráfica os primeiros exemplares,impecavelmente impressos. No mesmo dia — mera coincidência ou sincronismo junguiano, seilá —, encontrei na portaria do meu prédio umenvelope da SBPC com a devolução dosoriginais, o aviso de que o artigo fora rejeitado pelo Comitê de Editores e a sugestão de que,sendo um trabalho sobre educação emOdontologia (sim, isto mesmo: Odontologia),encontraria melhor acolhida numa revistaespecializada.

Escrevi então à revista, informando que nemeu nem o próprio Aristóteles tínhamos a menor idéia do interesse dentário das nossasespeculações; que a devolução era tardia edesnecessária, de vez que o trabalho já estava publicado em livro; e que, diante da esquisiticedo motivo alegado para a recusa, parecia que otrabalho não tinha sequer sido examinado.

Passados uns dias, recebi da editora da revistauma carta enfezada, que jogava numa datilógrafaa culpa pelo deslize odontológico e asseguravaque o artigo fora examinado com muitíssima

atenção por pessoas capacitadas — e como provaanexava um “Parecer técnico” em dez linhas euma “Avaliação crítica” em duas páginas e meiade letras miúdas.

136

136

Page 137: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 137/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

O “Parecer” aprovava a publicação do artigo,desde que cortado de sua segunda parte72, masrecomendava passar a questão ao exame de umsegundo especialista. A “Avaliação crítica” traziaa opinião do segundo especialista, decisivamentecontrária à publicação. Nas páginas que se seguem, examino ponto por ponto, pela ordem em que se apresentam, asrazões do “especialista”, onde encontrei:

Erros graves de informação histórica 3Erros por desconhecimento dos textosaristotélicos

5

Erros graves de interpretação do textoaristotélico

8

Paralogismos 3Inversões do significado do textocriticado

2

Erros de ortografia 3Outros 2TOTAL 26MÉDIA POR PÁGINA 10

— o que, levando-se em conta a posição do ditocujo como consultor da maior revista científica brasileira, é motivo suficiente para a gente por as

72 Os motivos são explicados adiante no § 17.

137

Page 138: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 138/196

O LAVO DE C ARVALHO

mãos na cabeça e perguntar: Mas o que é que estáacontecendo neste país, meu Deus

I. Da bibliografia

1. O consultor, ou consultora, começa por assinalar a desatualização bibliográfica do autor:

O autor parece ignorar a imensa produção sobre Aristóteles publicadanos últimos anos, seja em revistasespecializadas, nos anais decongressos, em teses e livros que, hámuito, superaram os estreitos quadrosda interpretação escolástica e a

“imagem estereotipada que o tempoconsagrou como verdade adquirida”. Acontraposição de um Aristóteles“guardião da esquizofrenia” (o Aris-tóteles da Escolástica) e o Aristóteles“apóstolo da unidade” apresentadacomo novidade “chocante” pareceindicar que o autor não temacompanhado os debates que sedesenvolvem em inúmeros centros de pesquisa...

O artigo criticado contesta as interpretaçõesde Aristóteles que vêem uma separação ouoposição radical entre os discursos poético-

138

138

Page 139: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 139/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

retórico e dialético-analítico no pensamento doEstagirita.

Seria esse tipo de interpretação uma velharia já superada de há muito pela “imensa produção”de estudos a respeito? Contestá-la seria nada maisque chutar um gato morto? O consultor asseguraque sim; que só a um novato desinformadoocorreria apresentar essa contestação como uma“novidade chocante”.

É surpreendente, portanto, que ele mesmoassegure, linhas adiante, que

o discurso dos poetas assim como odiscurso dos juristas pertencem a outroregistro e não conduzem ao discursocientífico, antes dele se afastam ... Odiscurso dos poetas assim como o dosretóricos não introduz nem prepara odiscurso da ciência que representa, ao

contrário, uma ruptura em relação aestes ...

É incompreensível. De um lado, o consultor diz que a imagem dualista da teoria aristotélicado discurso é uma peça de museu, que já nemvale mais a pena contestar. De outro, ele a

defende como sua própria opinião pessoal.Acusa-me de chutar um gato morto ao mesmotempo que exibe o gato vivo. E o desgraçado do bicho, trazido ao palco, mia sem parar.

139

Page 140: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 140/196

O LAVO DE C ARVALHO

O consultor não conhece o bastante o estado presente dos debates para saber que a velha opi-nião continua vigente ou não se conhece a simesmo o bastante para perceber que ele próprioacredita nela?

Minha hipótese é que ele não conhece o bastante nem uma coisa nem a outra: avaliandoentão meus conhecimentos pelos seus, e minhaautoconsciência pela sua, supôs poder meimpressionar com um blefe.

2. Blefe, sim, porque, ao acusar o que lhe parece ser o meu desconhecimento da bibliografiarecente sobre o assunto, ele se esquiva de indicar,nela, um só título pertinente ao tema, cujaignorância pudesse lesar gravemente aformulação ou as conclusões do meu estudo73. Nem poderia, aliás, indicá-lo, de vez que o tema éraríssimo e praticamente ignorado pelosestudiosos.Tomado em conjunto, é tema ausenteda bibliografia, como assinalei no meu trabalho,desde Sto. Tomás de Aquino.

73 O consultor reclama da “pobreza da bibliografia apresentada”.Ele não explicita se é pobreza de qualidade ou de quantidade,mas, como ali constam títulos de Jaeger, Weil, Hamelin, Ross eZeller, clássicos dos estudos aristotélicos, suponho que se refira à

quantidade.Será que o supradito costuma ler a revistaCiência Hoje?Caso leia, perceberá que vinte e cinco remissões são um númeroque está dentro da média em geral apresentada nos artigos que alise publicam. Ultrapassar essa média — com o risco, ademais, demultiplicar citações inúteis — seria nada mais que falta deeducação.

140

140

Page 141: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 141/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

A exigência de respaldo bibliográfico numtema sobre o qual não há nenhum só pode partir de alguém que ignora a bibliografia existente enão tem a menor idéia do estado da questão.

3. É verdade que, em muitos pontos, asinterpretações escolásticas de Aristóteles estãosuperadas. Em muitos pontos, mas não naqueleque assinalo. Este jamais foi sequer discutido,como o sabe qualquer conhecedor da bibliografia.Aspectos isolados da teoria dos discursos têmsido abordados com certa freqüência, mas poucoajudam a confirmar ou desmentir minhainterpretação de conjunto. É justamente o silênciogeneralizado em torno deste tema que tornou possível que a interpretação dualista da teoria dosdiscursos penetrasse fundo nos hábitos mentaisda intelectualidade Ocidental, a ponto de tornar-se um pressuposto inconsciente. Um pressupostoinconsciente é uma idéia em que a gente acreditasem saber que acredita: ela domina e manipula pelas costas quem não lhe dá importância. Oconsultor mesmo personifica um exemplo típico eflagrante, ao deixar-se arranhar por um gatomorto.

II. Originalmente velho

Prossegue o consultor:

141

Page 142: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 142/196

O LAVO DE C ARVALHO

O autor apresenta uma tese a seuver revolucionária e inovadora... que,

sem sombra de dúvida, é totalmente original mas que...etc. etc.

Lisonjeiro mas, novamente, incompreensível.Como poderia ser original a tese que, por desconhecimento da bibliografia recente, nadamais fizesse que contestar velhas teses jásuperadas?

III. Muito assunto para um livro só

Em seguida, o consultor passa a apontar “alguns equívocos sérios” que julga ter encontrado no meu trabalho:

Aristóteles não tratou do discurso sónos livros catalogados comoOrganon;tanto a Poéticacomo aRetórica , assim

como o Livro IV da Metafísica , têmcomo objeto a análise do discurso —discurso dos sofistas, discurso dos poetas, discurso dos juristas oudiscurso da ciência.

Errado. O Livro IV daMetafísica— ou, mais propriamente, o livro da Metafísica, de vez quea titulação romana só é adotada em edições

142

142

Page 143: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 143/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

populares (espero que o consultor não conheçaAristóteles só por elas) — não trata da análise dodiscurso, mas do conceito mesmo da “filosofia primeira”. Mesmo um gênio como Aristótelesnão conseguiria, no pouco mais de uma dezena de páginas que compõem esse capítulo, delimitar oterritório de uma ciência nova e ainda encontrar espaço para discutir alio discurso dos sofistas, odiscurso dos poetas, o discurso dos juristasetc...

IV. As ciências introdutórias

Reconhecendo embora que Aristóteles tratou

dos discursos em obras não pertencentes aoOrganon, afirma o consultor:

Isto não justifica a inclusão da Retórica e da Poética entre as“ciências introdutórias”, uma vez queestas são consideradas introdutóriasem relação à “ciência primeira” ou“ciência buscada” posteriormente

denominada metafísica .

Erradíssimo. A dialética e a lógica — ciênciasdo Organon — não são introdutórias somente àmetafísica, masàs ciências teoréticas em geral emesmo às ciências práticas e técnicas. Nem poderia ser de outro modo, porque as ciências em

143

Page 144: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 144/196

O LAVO DE C ARVALHO

Aristóteles formam um sistema e oOrganon éintrodução ao sistema, não a uma ciência em particular. Isto é uma obviedade que nenhum principiante ignora. O próprio consultor, com asingular coerência que caracteriza o seuraciocínio, reconhece linhas adiante que adialética é o método da Ética.

V. Apofântico

Lá vem mais:

O discurso dos poetas assim como o

discurso dos juristas pertencem a outroregistro e não conduzem ao discursocientífico, antes dele se afastam como“outros discursos”. Essa distinção é bem marcada quando Aristótelesrestringe suas análises ao “logosapophantico” , único a abarcar aquestão da verdade/falsidade,distinguindo-o da interjeição e da prece(expressões do sentimento e do desejo). A função “apofântica” do discursocientífico, noção absolutamente centralem Aristóteles, é totalmente ignorada pelo autor.

144

144

Page 145: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 145/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

Valha-me Deus! Nunca esperei viver o bastante para chegar a ver um professor defilosofia confundir apofânticoe apodíctico!

Apofântico, meu filho, é simplesmentesentença declarativa, que afirma ou nega algumacoisa, ao passo que a interjeição ou a prece nadaafirmam nem negam. Como supor que só eexclusivamente o discurso da ciência (o discursológico-analítico) é apofântico, que os demaisnada afirmam nem negam? Um advogado que proclama ser o réu inocente nada está afirmando?O juiz que o decreta culpado nada afirma? Oépico que narra que Telêmaco saiu em busca deseu pai e não o encontrou nada afirma nem nega?Uma asneira dessas certamente jamais passou pela cabeça de Aristóteles.

Os quatro discursos são apofânticos, todosigualmente: todos afirmam e negam; todos podemser — cada qual a seu modo e em seu próprionível — verdadeiros ou falsos. Nenhum deles émera interjeição ou apelo.

Eles diferem, sim, no seu nível de veracidade,ou melhor, de credibilidade, e o discursocientífico difere dos outros por ser o únicodemonstrativo, passível de prova irrefutável, istoé, o únicoapodíctico— e não, cáspite!,apofân-

tico.A confusão é tão grosseira, tão primária, queme dá uma mistura de desgosto e pena ter dedestrinchá-la para um posudo acadêmico,

145

Page 146: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 146/196

O LAVO DE C ARVALHO

consultor da maior instituição científica do país.É deprimente.

Eu não desejaria insistir neste assunto, mas,só para dar um exemplo, como o nosso consultor poderia conciliar a noção da poesia comomimesis(que segundo ele ignoro) com a assertivade que somente o discurso científico éapofântico? Como poderia o poeta imitar arealidade sem nada afirmar ou negar sobre ela?

Ademais, Aristóteles declara que a poesia “émais filosófica do que a História”, já que fala dohomem em geral enquanto a História trata apenasdo particular. Como poderia a poesia enunciar verdades gerais sobre o homem sem afirmar ounegar o que quer que fosse, e limitando-se asoltar gemidos e interjeições?

É verdade, sim, que Aristóteles exclui daanalítica, e atribui à poética e à retórica, o estudodas sentenças não-apofânticas, isto é, daquelasque se limitam a expressar desejos, pedidos ouordens74. Mas seria francamente abusivo concluir daí que na intenção do filósofo a poética e aretórica deveriam limitar-se rigorosamente aoestudo desse tipo de sentenças, excluindo de seucampo toda proposição apofântica: istosimplesmente inviabilizaria essas duas ciências,

esvaziando de todo significado os conceitos de possibilidade e verossimilhança. “A analítica sótrata das proposições apofânticas” não é o mesmoque “Só a analítica trata das proposições74 Peri Herm., 4: l7a.

146

146

Page 147: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 147/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

apofânticas”. O que Aristóteles quis dizer, notexto assinalado, é claramente que o estudo da poética e da retórica abrangetambémtipos desentenças que vão além da área de interesseestrito da analítica, o que aliás é óbvio.

VI. A função da Dialética

Quanto às considerações sobre a Dialética, o autor ignora a função que Aristóteles (embora a contragosto) lheconfere quando se trata de estabelecer

os princípios da própria analítica.1. Se digo que as quatro ciências do discurso

são inseparáveis, que há entre elas uma escala decredibilidade crescente e que esta escalacorresponde aos graus pelos quais o homemascende das percepções sensíveis ao saber racional apodíctico, está óbvio que cada uma prepara o terreno para a seguinte. Como eu poderia ter dito essas coisas ignorando a funçãoque a dialética exerce na busca dos princípios daanalítica, eis algo que ultrapassa o entendimentohumano.

2. O consultor demonstra seu apego à velhaimagem de Aristóteles, (que ele mesmo qualifica

147

Page 148: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 148/196

O LAVO DE C ARVALHO

de velharia superada), ao colocar, entre parênteses, que Aristóteles “a contragosto”reconhece a dívida da analítica para com a dialé-tica. Por que “a contragosto”? A expressãosubentende um certo menosprezo que Aristótelesteria por esta ciência em comparação com aquela,quando na verdade a tendência crescente daexegese aristotélica (com a qual o consultor sediz tão atualizado) é reconhecer como válida atese de Weil, segundo a qual a dialética é paraAristóteles o método por excelência, do qual aanalítica não é mais que uma extensão e comple-mento75. É claro que subscrevo resolutamenteessa tese. Por isto mesmo, vejo na nota que oconsultor coloca entre parênteses um sinalevidente de que ele ainda está preso à velhaimagem de Aristóteles que contesto em meutrabalho, imagem na qual não resta à dialéticasenão uma função localizada e secundária.

Donde se extrai um precioso conselho: Antesde menosprezar um gato morto, certifique-se deque não é um leão vivo.

75 V., por exemplo, Jean-Paul Dumont,Introduction à la Méthoded’Aristote, 2e. Éd. révue et augmentée, Paris, Vrin, 1992.

148

148

Page 149: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 149/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

VII. Valha-me S. Gregório!

Em seguida o informadíssimo põe-se a me dar lições de História:

“Todo aristotelismo que se formouno início da era cristã até o Renasci-mento”. A afirmação do autor é inteiramente equivocada uma vez que“no início da era cristã” Aristóteles eraignorado pelos Padres da Igreja e só setorna conhecido na Europa nachamada Alta Idade Média (séc. XII)graças aos árabes invasores, à Escolade tradutores de Toledo e

posteriormente a S. Gregório Magno ea S. Tomás de Aquino.

A estas lições devo responder que:

1. S. Gregório Magno não poderia ter feitocoisa nenhuma no século XII e muito menos“posteriormente”, já que morreu no ano de 604.Quem escreveu sobre Aristóteles na épocamencionada foi Sto.Alberto Magno (malditadatilógrafa!).

Mas mesmo com relação a Sto. Alberto seriaabsurdo dizer que ele difundiu Aristóteles naEuropa cristã, de vez que ele só empreendeu seusComentários para apaziguar a gritaria que selevantava de toda parte contra aFísica do Es-

149

Page 150: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 150/196

O LAVO DE C ARVALHO

tagirita, a qual, defendendo a hipótese daeternidade do mundo, parecia contrariar de frentea letra das Escrituras. Como não pode existir gritaria nenhuma contra um autor desconhecido, éclaro que a obra de Alberto é efeito e não causada difusão de Aristóteles. Tomás, por seu lado, é posterior a Alberto, de quem foi discípulo e cujosComentárioscompletou.

2. A idéia de que Aristóteles só foi conhecidono Ocidente a partir do século XII pode estar consagrada em livretos populares de divulgação,mas não há um só conhecedor da matéria que nãosaiba tratar-se de um erro primário. O que foitrazido ao Ocidente por meio dos árabes foramsomente livros deFísica. As obras lógicas e a Metafísica, pelo menos, sempre foram lidas — em versões melhores ou piores, diretamente ouatravés de comentários —, amadas e odiadas naEuropa cristã desde os primeiros séculos.Encontro-as citadas e discutidas, com maior oumenor extensão e exatidão, em inúmeras passagens de Sto. Agostinho, em Clemente deAlexandria (séc. II), em Eusébio de Cesaréia (séc.III), em Sto. Isidoro de Sevilha (séc. VI), no anô-nimo autor daConfutatio dogmatum quorundam

Aristotelicorum(ano 400), em Irineu de Leão(séc. II), em Mário Vitorino (séc. III), emArnóbio de Sicca (séc. III), em Fírmico Materno(séc. IV), em Marcelo de Ancira (séc. IV), emSão Basílio Magno (séc. IV), em Eunômio de

150

150

Page 151: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 151/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

Cícico (séc. IV), em Nemésio de Emesa (séc. IV)e em Teodureto de Ciro (séc. V), sem levar emconta a existência, nos tempos patrísticos, de todauma escola teológica cristã inspirada emAristóteles (a escola antioquina), bem como astraduções, seja de Aristóteles mesmo, seja doscomentários de Porfírio, empreendidas por Boécio muito antes que os tradutores de Toledotivessem nascido e que Alberto e Tomásexistissem sequer sob a forma deespermatozóides76.

Isto é o que eu — um completo ignorante da bibliografia — pude localizar. Imagino o que oconsultor, sujeito informadíssimo, nãoencontraria se consentisse em estudar o assuntoantes de ensiná-lo.

Bem, pode-se perguntar, se consultei todosesses autores, por que não os citei? Simples: porque, de tudo o que eles falam sobreAristóteles, nada encontrei que se referisse aotema do meu trabalho, e a obrigação das citaçõesé serem pertinentes, e não mostrar erudição à toa,como meu consultor desejaria que eu fizesse.

3. Quem ignora as fontes de um tema clássicoe só sabe do assunto pela bibliografia recente não

76 É evidente que nada se encontra, na época patrística, que seaproxime da profundidade e amplitude das exegeses aristotélicasdo século XIII. Mas, entre dizer que esse aristotelismo primitivoera de baixa qualidade e que ele não existiu absolutamente, adiferença é a mesma que há entre afirmar que o parecer da SBPCé uma droga e que a SBPC não emitiu paracer nenhum.

151

Page 152: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 152/196

O LAVO DE C ARVALHO

pode ser considerado um conhecedor, e sim nomáximo um novato esforçado. Isto, supondo-seque meu consultor conheça de fato a bibliografiarecente. Mas é óbvio que ele não a conhece, devez que a leitura, seja dos trabalhos de Dumont,Düring, Millet, Barnes, seja mesmo dos livrosclássicos de Brentano, Jaeger, Ravaisson,Hamelin, Mansion, Le Blond, Ross etutti quanti,lhe mostraria de cara a impossibilidade de opinar sobre o assunto só com base neles e sem acessodireto às fontes; e se ele tivesse ido às fontes nãoteria dito o que disse.

VIII. Não acerto uma

“Sobretudo a dialética seria umresíduo platônico, absorvido esuperado na lógica analítica.” Embora Aristóteles considere a analítica ummétodo mais rigoroso e próprio para aciência do que a dialética platônica,isso não quer dizer que considere adialética “absorvida e superada”...

1. Finalmente o consultor disse algo com quese pode concordar: que Aristóteles, após construir a lógica, conserva a dialética como um métodoválido. Ao dizer isto ele se opõe com razão àcrença de que “a dialética seria um resíduo

152

152

Page 153: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 153/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

platônico, absorvido e superado na lógicaanalítica”. Só que, curiosissimamente, ele atribuiesta opinião a mim, sem reparar que ela é justamente aquela que rejeito com veemência.

Na verdade, é a opinião da escola de Solmsen,à qual, endossando Weil, me oponhoexpressamente quanto a esse ponto77. É certo que,no artigo, não citei Solmsen, mas isto não eranecessário de vez que a opinião dele a respeito édiscutida no trecho citado de Éric Weil.

Com que propósito me atribui o consultor uma opinião que contesto? Para mais facilmente poder refutá-la e apresentar como seus os méritosde uma argumentação alheia? Ou ele o fazsimplesmente porque não sabe ler?

IX. Novamente a Dialética

Após ter resgatado a dialética, segundo odesejo de Aristóteles, o consultor põe tudo a perder quando diz que ela só permanece ummétodo válido porque

existem campos do saber ou regiões doser que, por não serem regidos pela ne-cessidade, não podem ser abordados por uma analítica.

77 V. Uma Filosofia Aristotélica da Cultura. Introdução à Teoriados Quatro Discursos(Rio, IAL/Caymmi, 1994), p. 16.

153

Page 154: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 154/196

O LAVO DE C ARVALHO

1. Quer o consultor ter a bondade de meexplicar como uma dialética restringida aoscampos “não regidos pela necessidade” poderiaestabelecer, segundo ele disse anteriormente, os princípios da analítica? Seriam estes meramente probabilísticos e “não regidos pela necessidade”?

2. Na verdade, Aristóteles atribui à dialéticaum papel muito mais decisivo que o de umalógica ad hoc para os campos do saber “nãoregidos por uma necessidade”. Os textos sãomuito claros neste ponto, e assinalam à dialéticauma tripla função: 1ª, ela é uma lógica do provável, ou do razoável; 2ª, ela é uma prática pedagógica, um treinamento do espírito para adiscussão científica; 3ª, ela é o método paraencontrar os princípios fundadores de qualquer ciência nova78.

3. Enfim, a dialética que Aristóteles conservanão é a platônica, mas a sua própria, bemdiferente dela tanto na função quanto na técnica enas finalidades.

X. Do saber desinteressado

78 Top., I, 2, 101a-b.

154

154

Page 155: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 155/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

“As quatro ciências do discursotratam de quatro maneiras pelas quaiso homem pode, pela palavra,influenciar a mente de outro homem.”Com essa afirmação, o autor novamente ignora o conceito delogosapofântico e a afirmação de que aciência teórica é “inútil edesinteressada” — condição de pos-sibilidade de sua objetividade eliberdade. A ciência teórica não visa“influenciar a mente de outro homem”,mas tornar manifesto pelo discurso o próprio ser.

1. O consultor reincide na confusão entreapofântico e apodíctico, sobre a qual nada maistenho a declarar.

2. Quando Aristóteles afirma que a ciênciateorética é desinteressada, quer dizer que ela nãovisa a quaisquer finspráticos, mas certamentenão quer dizer que o conhecimento da verdadenão seja uma finalidade desejável, nem muitomenos que a demonstração da verdade, feita pelodiscurso lógico-analítico, seja um ato inócuo que

não deve exercer nenhuma influência sobre o ou-vinte. Ao contrário, a demonstração apodícticaexerce a mais impositiva das influências, aooferecer conclusões que devem ser obrigatoriamente admitidas por quem seja capaz

155

Page 156: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 156/196

O LAVO DE C ARVALHO

de compreendê-las. Como bem disse a esserespeito Clemente de Alexandria (um daquelesPadres da Igreja que, segundo o consultor, nuncaouviram falar de Aristóteles), “o dado lógico proveniente das demonstrações produz, na almadaquele que bem seguiu a cadeia demonstrativa,uma fé tão vigorosa que ela não lhe permitesequer imaginar que o objeto demonstrado possaser diferente do que é, e o subtrai à influência dasdúvidas que querem se insinuar em nosso espírito para nos enganar”79.

A distinção mesma entre dialética e analíticanão pode ser bem concebida senão por referênciaa uma concretíssimasituação de discurso, àdiferente relação, num caso e noutro, entre falantee ouvinte: “A diferença [ entre a dialética e aanalítica ], diz Éric Weil, é segundo Aristótelesaquela que há entre o curso dado por um professor e a discussão empreendida em comum,ou, para dizê-lo de outro modo, aquela que háentre o monólogo e o diálogo científicos.”80

Quando o mestre em seu monólogo manifesta — apofanticamente — a verdade mesma do ser, origor e a objetividade da ciência hão de consistir em que o ouvinte permaneça surdo e indiferente?

Nosso consultor arma uma falsa oposição

entre “influenciar os homens” e “demonstrar a79 StromataA, VI, 33,2.80 Éric Weil, “La place de la logique dans la penséearistotélicienne”, emÉssais et Conférences, vol. I, Paris, Vrin,1991, p. 64 (cit. na n. 20 deUma Filosofia Aristotélica daCultura).

156

156

Page 157: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 157/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

verdade”, e a atribui ao próprio Aristóteles, oqual jamais poderia aceitá-la.

XI. Poética e mímeseIncansável, prossegue o consultor em busca

de meus equívocos:

“A Poética não trata do possível(segundo Aristóteles este é o objeto da Retórica), mas de um gênero literário:a Tragédia... O autor ignora o papelcentral damimesise da catharsis.”

1. A Poética não trata da tragédia, mas da poesia em geral, da qual a tragédia é somenteuma das modalidades. É verdade que da obra sórestaram a introdução e a seção referente àtragédia, mas o sumiço das demais partes nãoestava certamente nos planos de Aristóteles, e aintrodução contém aliás suficientes indicaçõessobre o poético em geral.

2. Quanto à afirmação de que aPoética nãotrata do possível, o próprio Aristóteles, após ter classificado a obra literária como uma espécie demimesisou imitação, esclarece: “A obra própriado poeta não é narrar as coisas que realmente

157

Page 158: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 158/196

O LAVO DE C ARVALHO

sucederam, mas aquelas que poderiam ter acontecido ou que são possíveis.”81

Somente um leitor muito desatento nãoreconhecerá aí os dois elementos que, no métodoaristotélico, compõem uma definição: o gênero próximo e a diferença específica. A poesia pertence portanto ao gêneromimesis, é umaforma de imitação, e sua diferença específica éque não imita o acontecido (como o faz por exemplo a História), mas sim o possível.

A imitação do possível éa definição mesmada obra poética, e quem quer que perca de vistaesta definição não entenderá grande coisa do queAristóteles diz em seguida sobre a tragédia. É precisamente o caso do nosso consultor — segundo o qual, no entanto, sou eu quem ignora o papel central damimesis. Qual papel, porcamiséria!, senão aquele assinalado na definição?

Quanto à catharsis, da qual também noentender do consultor ignoro tudo, sei pelo menosque segundo Aristóteles ela não poderia ocorrer caso a poesia, como a história, imitasse o real enão o possível. Porque, em Aristóteles, o real ésempre particular e o possível é genérico. É por imitar o genérico e não o particular que “a poesiaé mais filosófica do que a história e tem um

caráter mais elevado”82

. Ora, “o particular [ oureal histórico ] é o que fez Alcebíades ou o quelhe sucedeu”, e interessa a Alcebíades mais que a81 Poét., 1451a.82 Id. Ibid.

158

158

Page 159: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 159/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

ninguém. O genérico, por seu lado, interessa atodos os homens: se nos comovemos com adesgraça do herói, é porque ela não é o destinoreal e particular de fulano ou beltrano, mas odestino genérico que pode se abater sobrequalquer um de nós. Se a poesia imitasse o realhistórico como tal, não haveria catarse nenhumaque pudesse resistir ao efeito distanciador — quase brechtiano — da célebre pergunta deShakespeare: “Que é que eu tenho a ver comHécuba, ou Hécuba comigo?” A definição da poesia como imitação do possível leva-nos assimao coração mesmo do mistério dacatharsis — mais uma palavra grega que o nosso consultor emprega apenas a título de blefe pseudo-erudito,sendo, como é, incapaz de compreender as maisóbvias implicações do conceito83.

XII. Verossímil?

Ainda sobre o mesmo assunto:

83

Permito-me lembrar ao assanhado teorizador do teatro gregoque sou autor de três pequenos livros sobre o tema da poética:OCrime da Madre Agnes ou a Confusão entre Espiritualidade ePsiquismo(São Paulo, Speculum, 1983),Símbolos e Mitos noFilme “O Silêncio dos Inocentes”(Rio, IAL/Caymmi, 1992) eOsGêneros Literários: Seus Fundamentos Metafísicos(Rio,IAL/Caymmi, 1993).

159

Page 160: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 160/196

O LAVO DE C ARVALHO

“Segundo palavras do próprio Aristóteles, o verossímel (sic) é um ele-mento central da Tragédia — não se vêentão como pode ser tomado como oelemento definidor da Retórica.

1. Em primeiro lugar, meu amigo,verossímelé a vó. E não venha com aquela conversa de quefoi a datilógrafa, porque você escreve essa coisanada menos de três vezes.

2. Quanto ao verossímil, há uma diferençaóbvia entre o verossímil poético e o verossímilretórico. Na definição da poesia, Aristótelesemprega a expressão “verossimilmente possível”,ao passo que na argumentação retórica o queconta é o verossímil como tal, ou, dito de outromodo, o “verossimilmente real”. Não há comoconfundir: o argumento retórico tem de ser verossímil no sentido de imitar o verdadeiro, oreal, o histórico, e não o meramente possível. Nodiscurso forense, por exemplo, o advogado não procura, por meio da verossimilhança, mostrar que o réu épossivelmenteinocente, mas que ele éinocente de fato: a verossimilhança, aqui,consiste numa persuasão, num forte assentimento

da vontade, embora sem provas dialeticamenteconcludentes e muito menos apodícticas. Já naobra poética, como se viu acima, o espectador tem apenas de admitir apossibilidadedos eventos — e, neste sentido, a exigência de

160

160

Page 161: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 161/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

verossimilhança é atenuada, segundo a regraaristotélica de que “é verossímil que às vezes ascoisas se passem de maneira inverossímil”. Se, aocontrário, o espectador admitisse os fatos comoreais, errando de clave e ouvindo retoricamente odiscurso poético, a poesia perderia imediatamenteseu efeito catártico, pois estaria falando somente“de Alcebíades“ e não do gênero humano. Estar persuadido de uma possibilidade não é o mesmoque estar persuadido de um fato.

A confusão é, para dizer o mínimo, bobinha.

3. Quem usa o termo “verossímil” para definir o tipo de credibilidade da retórica é o próprioAristóteles. Com seu palpite despropositado oconsultor mostra apenas desconhecer o textogrego, onde o emprego da palavranão deixa margem para a menor dúvida quanto aesse ponto.

É um escândalo que um trabalho científicoseja submetido ao julgamento de quem sóconhece o assunto por leituras de segunda mão enão tem condições de avaliar sequer o empregodo vocabulário.

XIII. Tragédia e metafísica

“Da ilimitada abertura do mundodas possibilidades”... A afirmação do

161

Page 162: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 162/196

O LAVO DE C ARVALHO

autor é equivocada: não existe em Aristóteles uma “ilimitada abertura”no mundo das possibilidades uma vezque o ato precede a potência sendo portanto o possível inteiramentedeterminado pelas potencialidadescontidas no real.

1. Meu caro consultor: Você leu o que acabade escrever? É purononsense. Se o atoprecedea potência, como poderia estar de antemãodeterminado por ela? Ah, já sei: foi mais um erroda datilógrafa.

2. Mesmo corrigido para uma formalogicamente coerente, seu raciocínio continuariafalso, já que a potência da causa primeira é,segundo Aristóteles, infinita84. Essa infinitude“positiva” da causa primeira não poderia porémrepetir-se como tal no efeito produzido, e oresultado é que na escala cósmica a infinitude,que no divino era perfeição suprema, se tornadefeito, incompletude, privação, acidentalidade, porque “a natureza foge do infinito e buscasempre um termo final”85. É nada mais que óbvio, por outro lado, que as potências contidas num ser

singular só predeterminam as possibilidades doseu desenvolvimentonormal, porém não osacidentes que possa vir a sofrer. Os acidentes são,84 De cælo, I, 7, 275b.85 De gener. anim., I, I, 715b.

162

162

Page 163: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 163/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

em princípio, ilimitados e ilimitáveis: comoreflexos invertidos da infinitude divina, eles nãoderivam da potência do ser que os sofre, mas da potência divina mesma. Sua raiz não está naconstituição “positiva” do ser finito, mas naincomensurabilidade deste com o infinito. Por isto mesmo, cada ser, tendo uma potênciadefinida e limitada, está, ao mesmo tempo, sujeitoa ilimitados acidentes. A incomensurabilidademesma entre o divino e o cósmico faz com que,na escala cósmica,exista necessariamente oacidental, e é desta conexão surpreendente equase paradoxal entre necessidade e acidente quenasce a inspiração fundamental de um dos principais gêneros literários, o gênero trágico. Nele os acidentes — e não os desenvolvimentosnormais — se encadeiam segundo umanecessidade férrea, numa espécie de lógica doabsurdo, que somente a Graça (esta, sim, umanoção ausente na filosofia grega) poderá romper.Se o possível estivesse predeterminado pelas potências do ente finito, como o pretende oconsultor, a tragédia seria absolutamenteimpossível, pois tudo se desenrolaria segundo anormalidade constitutiva de cada ente e nãohaveria acidentes, muito menos o acidente

metafisicamente necessário que constitui onúcleo mesmo do conflito trágico. A tragédiaabre, sim, para a ilimitação do possível, porque senão o fizesse não seria tragédia.

163

Page 164: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 164/196

O LAVO DE C ARVALHO

É, meu amigo: é muito gostoso usar palavrascomo catharsis, mimesis, apofântico, ato e potência, etc., para impressionar leigos e posar desábio. Mas essas palavras se vingam, ocultandoseu sentido a quem quer que as desrespeiteusando-as para fins de exibição circense.

XIV. Evolução histórica

Não há como falar em evoluçãohistórica em Aristóteles. Como grego, aconcepção aristotélica do tempo é circular e não linear; o tempo retornaeternamente sobre si mesmo e não há

como falar propriamente em Históriana matriz do pensamento aristotélico.

1. Que bobagem é esta? O fundador mesmodo historicismo, Giambattista Vico, tinha umaconcepção circular do tempo, os famososcorsi ericorsi. Será que por isto “não há como falar propriamente em História na matriz do pen-samento viquiano”?

2. Aristóteles, como ninguém o ignora excetoo nosso consultor, foi o primeiro a introduzir o prisma histórico na abordagem das questõesfilosóficas, bem como o princípio da explicaçãogenética nas ciências naturais e na gnoseologiamesma. Isto basta para fazer dele, entre os

164

164

Page 165: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 165/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

gregos, no mínimo um precursor do historicismoe do evolucionismo modernos. É óbvio que setrata de um historicismo apenasin nuce, masquem foi que disse algo mais do que isso?

3. Aristóteles não afirma em parte alguma acircularidade do tempo, mas sim a do movimentoda causa primeira86. E se ele mesmo define otempo como “medida do movimento” (medidaoperada pela alma)87 e diz que o ato da causa primeira é infinito, está claro que a“circularidade” do movimento da causa primeiraestá subtraída à medida temporal e nada tem a ver com circularidade do tempo. A crença de queAristóteles, “como grego”, tinha de pensar exatamente como outros gregos é tola: o pensamento de um filósofo não se deduz dascrenças gerais da comunidade a que pertence,mas se descobre pelo estudo direto de seustextos.88 Dar por pressupostoa priori que osmembros individuais de tal ou qual comunidade86 Met ., L, 7,1072a.87 Fís., IV, 219a-223a.88 Aprisionar os gregos todos na gaiola do eterno retorno foi umademencial generalização operada por Nietzsche para aureolar do prestígio da antigüidade clássica uma idéia que ele mesmo tinhainventado. O grande filósofo-poeta era, em matéria de filologia

clássica, nada mais que um amador muito metido a besta, cujasinterpretações, sem fundamento suficiente nos textos, foramcompletamente desmoralizadas pelas análises de Ulrich vonWillamowitz-Möllendorf. Não sei quais foram os professores doconsultor na faculdade, mas é bem possível que, neste país, aindahaja acadêmicos que levem integralmente a sério Nietzsche comofilólogo.

165

Page 166: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 166/196

O LAVO DE C ARVALHO

histórica tenham de estar limitados mentalmente pelas crenças comuns é condenar-se a nãocompreender jamais um só filósofo. É, naverdade, dispensar-se de tentar compreendê-lo,dando sua filosofia por resolvida de antemãoatravés de generalizações sociológicas de um primarismo atroz. Infelizmente, no Brasil estevício parece não ter cura.

XV. Continuo não acertando uma

O consultor, não compreendendo o que digo, prefere atribuir-me o que não digo — de

preferência algum absurdo patente que ele possacontestar com facilidade, de modo a poder fingir que derrubou meus argumentos quando derrubouapenas alguma asneira de sua própria invenção.Ele reincide nesse abuso várias vezes. Mas aquiele transpõe todos os limites da ousadia e do des-caramento:

Localizar a Dialética na eraPatrística é ignorar a realidade...etc.etc.

Sim, é claro que é. Seria um absurdo se eutivesse feito isso. Mas o fato é que fiz exatamenteo contrário. O que está dito no meu trabalho é: “Odiscurso dialético... não se torna socialmente

166

166

Page 167: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 167/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

dominante antes do fim da Era Patrística .”89 Por que é que sempre que está de acordo comigo oconsultor tem de fingir que penso o contrário doque penso, para não reconhecer que acerteialguma coisa?

XVI. Os Quatro Discursos no tempo

Em seguida o infeliz enuncia sua própria leigeral do desenvolvimento das culturas, com aqual pretende contestar a minha:

... nas diversas culturas oschamados quatro discursos convivem e

se aplicam a diferentes esferas darealidade humana e da vida política.Tentar estabelecer uma “dominância”de um determinado discurso parece-nosuma ressurreição anacrônica dodiscurso positivista com a sua Lei dosTrês Estados.

1. Eis aí uma novidade revolucionária: cadacultura desenvolve simultaneamente as quatroformas de discurso, não havendo jamais uma que predomine. Fantástico! Isto quer dizer que aciência da retóricanão se desenvolveu na Gréciaantes da dialética socrática; que a apologética

89 Uma Filosofia Aristotélica da Cultura, p. 30.

167

Page 168: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 168/196

O LAVO DE C ARVALHO

retórica de Tertuliano e Orígenesnão é anterior àelaboração dialética da doutrina cristã pelosescolásticos; que a retórica islâmicanão alcançaseu ponto culminante com o imâm ‘Ali séculosantes do sucesso da dialética com Al-Ghazzali,Avicena e Ibn ‘Arabi; e que em todas as culturaso discurso lógico-científico surge e alcança sua plena expressãoao mesmo tempoque o discursomitopoético, como se vê aliás pelo fatocientificamente reconhecido de que todas asculturas primitivas — os esquimós, os pigmeus,os bantus, os índios do Alto Xingu, entre outros — nos legaram, junto com sua mitologia e suaarte simbólica, também seus tratados de lógica,de física matemática etc. etc. etc.

Que o ser humano possua de modo permanente e simultâneo a aptidão — a potência — para os quatro discursos, é algo que não se pode negar (é, aliás, raciocinandoaristotelicamente, uma precondição indispensável para que possa haver no tempo uma sucessão dosdiscursos). Mas pretender que de fato ehistoricamente os quatro se manifestem aomesmo tempo como expressões da cultura éinsensatez.

De outro lado, é claro que conhecimentos de

valor científico podem estar embutidos até nodiscurso mitopoético, como de fato acontece. Masisto não torna lógico-analítico,quanto à forma, odiscurso mitopoético; e é da sucessão das formas

168

168

Page 169: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 169/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

de discurso — e não dos seus conteúdos — quetrata o meu artigo, ao menos para quem sabe ler.

2. Quanto à menção da Lei dos Três Estados,é uma simples associação de idéias, e aliásremota demais para não ser impertinente. Mais plausível seria a associação com a teoria marxistada sucessãocomunidade primitiva / feudalismo / capitalismo / socialismo, que pelo menoscoincide com a minha teoria quanto ao número deetapas. Mas se o consultor costuma julgar teoriascientíficas pelas associações de idéias que elasfortuitamente lhe sugerem, sua verdadeira voca-ção é para o ocultismo, e não para a ciência.

XVII. Conclusão

Tanto o autor da longa “Avaliação crítica”quanto o do breve “Parecer técnico” que oantecede embirraram sobretudo com a idéia dasucessão histórica dos discursos, que a este pareceu “extremamente ingênua” e àquele“fundada em bases muito frágeis”.

É claro que essa idéia é apresentada no fim domeu trabalho sem nenhuma pretensão de provaexaustiva e apenas como exemplo das potenciali-dades vivas, da atualidade do pensamento deAristóteles, da sua aptidão de colocar para nós,ainda hoje, desafios intelectuais relevantes. O

169

Page 170: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 170/196

O LAVO DE C ARVALHO

modelo da sucessão dos discursos, que os textosde Aristóteles insinuam e que os fatos sugeremser bastante plausível, é um desses desafios, ecomo tal foi que o apresentei. Os consultores, emvez de tomá-lo como oportunidade para umadiscussão séria, preferiram sentir-se ofendidos emseus brios e rejeitá-lo sob alegações fúteis. Oavaliador crítico não fez nem avaliação nemcrítica, limitando-se a produzir uma figura delinguagem. O responsável pelo “Parecer técnico” julga ter liquidado a idéia mediante um simplesadjetivo: “ingênua”. Além de ter um conceitodemasiado elevado da sua própria autoridade,esse indivíduo deve imaginar que, na expressão“parecer técnico”, a palavra “parecer” é verbo,consistindo a missão do parecerista, portanto, emdar uma aparência técnica a opiniõesimprovisadas.

Quanto ao avaliador crítico, sua avaliação sóo fez meter-se, como se viu, numa situaçãocrítica. Mentalidades tacanhas, acostumadas aidentificar o rigor científico com o indispensávelmas nem por isto suficiente cômputo demiudezas, tendem a enxergar a priori como pretensão descabida qualquer explicação teóricamais abrangente que não venha com a chancela

tranqüilizante de alguma celebridade do dia.Dispensam-se portanto de examiná-la e reverteminvoluntariamente aoprincipium auctoritatis,destruindo o espírito científico que imaginavamdefender.

170

170

Page 171: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 171/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

Pessoas que assim procedem deveriam olhar-se no espelho antes de chamar alguém deingênuo. Ingênuo é dar por pressuposto, semsólidas e bem fundadas razões, que as coisas se passaram, na História de alguma cultura, segundouma outra ordem de sucessão que não aapresentada no meu modelo aristotélico — poisessa inversão seria no mínimo altamenteimprovável, como é evidente para quem quer que façaas seguintes perguntas:

l. Pode uma cultura desenvolver uma arte dadiscussão política antes de possuir um universomitopoético que funde a comunidade desentimentos e valores em que há de arraigar-se acredibilidade pública dos argumentos?

2. É possível que se desenvolva uma dialética — uma arte da triagem racional dos discursos — antes de haver sequer facções em disputa?

3. Pode desenvolver-se uma técnica dademonstração apodíctica antes que existamsequer uma prática e uma arte da discussão?

Ademais, é só na aparência mais superficialdo seu esquema que a idéia da sucessão dosdiscursos pode lembrar as velhas e peremptasgeneralizações de Comte, Marx, Brunschvicg,Sorokin e tutti quanti. Ela não é , em primeiro

lugar, uma hipótese causal, mas o simplesesquema descritivo de um fato que a cronologiaatesta: o discurso mitopoético surge primeiro, oretórico em seguida, depois o dialético e por fimo analítico. O próprio Aristóteles, ao formular a

171

Page 172: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 172/196

O LAVO DE C ARVALHO

dialética e lançar as bases da analítica, estavaconsciente de que nisto culminava toda aevolução anterior do pensamento grego; e, se elenão aplicou o mesmo modelo à descrição deoutras culturas, isto não é motivo para que nãotentemos fazê-lo em seu nome, ainda que comdois milênios e tanto de atraso. Aliás,tentar fazê-lo é absolutamente obrigatório, já que um preceito elementar do método científico mandatestar primeiro as primeiras hipóteses antes de passar às seguintes.

Em segundo lugar, ela não subentendenenhum “progresso” no sentido qualitativo, emuito menos uma teleologia global da História,como o fazem por exemplo as teorias de Marx eComte. Desqualificá-la às pressas como ge-neralização ingênua, tentar lançar sobre ela omanto da desmoralização que pesa sobre caducasmetafísicas da História, é um expediente retóricoindigno de verdadeiros homens de ciência. Não se julga uma teoria por suas vagas e fortuitassemelhanças com outras teorias.

O autor do “Parecer” — mais comedido esensato, reconheço, que o da “Avaliação crítica” — obviamente não se fez as perguntas acimareferidas e muito menos é capaz de citar um

único exemplode cultura onde a sucessão cro-nológica dos eventos divirja do modeloapresentado. Ele rejeita a hipótese, então, por mera antipatia irracional, crendo, ingênua oumaliciosamente, que um adjetivo vale por uma

172

172

Page 173: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 173/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

refutação. O mais surpreendente é a sua ausênciade curiosidade, a soberana preguiça que entre bocejos rejeita uma questão para não ter de pensar nela, e volta a dormir sem avaliar o que perde. É esse falso senso de superioridade quetransforma o intelectual do Terceiro Mundo numtipo bem característico; essa sublime indiferençaque, como a “Castilla miserable” do poema deAntonio Machado, “envuelta en sus andrajosdesprecia cuanto ignora”.

Louvo, no entanto, sua prudência de transferir o julgamento para outra instância.

Quanto ao autor da “Avaliação crítica”, jádemonstrei, nas páginas anteriores, que se trata deum desconhecedor da matéria, de um artista do blefe, quase de um “homem que sabia javanês”,cuja presença no Comitê de Editores de umarevista séria comoCiência Hojeé, no mínimo,uma extravagância tropical. Queira Deus que setrate de um jovem, capaz de ainda renunciar àsfalsas poses e encetar uma vida intelectualautêntica, para a qual sem dúvida possui talento,faltando-lhe apenas a escrupulosidade em cujaausência todo talento se torna ocasião de erros ede danos. Se ele se sentir humilhado ao ler minhas palavras, sorte dele: a vergonha, dizia

Nietzsche, é a mãe do aprendizado. Não é precisodizer que me coloco à inteira disposição dele paraquaisquer explicações suplementares, e que terei prazer em atendê-lo sem mágoa pessoal deespécie alguma e seguro de que, se der ouvidos

173

Page 174: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 174/196

O LAVO DE C ARVALHO

ao mandamento bíblico de não desprezar areprimenda, ele ainda poderá se tornar alguém.

Note-se que em momento algum questionei odireito da revista de aprovar ou vetar a publicaçãodo meu artigo. Tanto eu não fazia questão dessa publicação, que, em outubro, não tendo recebidoresposta da SBPC, simplesmente mandei publicar o texto em formato de livro — o queautomaticamente tornava descabida suareprodução emCiência Hoje.

Ao enviar à revista minha carta de 24 deoutubro, não tive o menor intuito de protestar contra a não-publicação — o que além deextemporâneo seria uma insolência pueril —, massimplesmente o de expressar minha estranhezaquanto aos motivos alegados, cuja comicidadeninguém há de negar.

Ao receber porém a resposta de D. Yonne eler os dois anexos, fiquei realmente estupefato,escandalizado e, para dizer a verdade, até mesmoum tanto irritado. Não por me sentir pessoalmentevítima de injustiça — o que considero umsentimento inferior do qual hoje se abusa comdemasiada freqüência —, mas simplesmente por constatar, mais uma vez, uma atividade

intelectual das mais nobres ser usurpada pelatendência à pseudo-intelectulidade que é, juntocom a insensibilidade ética dos políticos, um dosflagelos maiores da nossa pátria. A ética da vidaintelectual é uma condição prévia para a

174

174

Page 175: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 175/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

regeneração moral de uma nação, e neste paístemos visto muitos intelectuais colocarem-secomo juizes da moralidade pública antes deexigirem de si mesmos o cumprimento de seusdeveres de estado. Para mim, ohomem que sabia javanês infiltrado nas universidades e nasinstituições culturais em geral é tão escandaloso,tão daninho para o país quanto um João Alves ouum P. C. Farias. Mais do que estes, na verdade: pois eles dilapidam apenas um patrimôniomaterial, enquanto ele corrompe a alma e ainteligência, os bens supremos em que se assentaa dignidade da espécie humana.

Rio, 9 de novembro de 1994.

175

Page 176: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 176/196

II. DESAFIO AOS USURPADORESCORPORATIVISTAS 90

TRÊFEGA disposição de opinar sobre umtexto que não leram evidencia bem a

mentalidade de Carlos Henrique Escobar eGilberto Velho. O primeiro, por não ter gostadode minhas opiniões sobre seus companheiros deideologia91, expressas em um artigo que não temnada a ver com o caso, se permite emitir juízostemerários sobre um assunto que não conhecenem de longe, o que não é próprio de um homem

A

90 Publicado emO Globo, 7 jan. 1995.91 Refiro-me à série de artigos “Bandidos & Letrados” — Jornaldo Brasil, dezembro de 1994 — que, investigando a cumplicidade psicológica dos intelectuais brasileiros com o banditismo carioca,suscitou reações um tanto hidrófobas de alguns membros dacomunidade letrada, entre os quais o escritor Antônio Callado. A

polêmica em torno de “Bandidos & Letrados” foi simultânea e paralela à encrenca com a SBPC, mas não vou reproduzi-la aqui por não ser pertinente ao tema deste livro; alguns detalhes sãodados em apêndice à série de artigos, que é reproduzida no meulivro O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras(Rio, Faculdade da Cidade Editora e Academia Brasileira deFilosofia, 1996).

Page 177: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 177/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

de ciência, mas de um ideólogo, de um propagandista barato, incapaz de enxergar asquestões senão pelo prisma de suas preferências políticas. Quanto a Gilberto Velho, recorre aofácil expediente de me atribuir o que eu nãodisse: em nenhum instante me queixei de“discriminação”. Como um parecerista quedesconheço poderia discriminar um autor que eleignora? Queixei-me, isto sim, de ser julgado por um incompetente. O prof. Ênio Candotti tambémapela ao artifício de fugir do mérito da questão, perguntando “o que aconteceria” se todoarticulista insatisfeito com um parecer o pusesseem discussão. O que aconteceria é que a SBPC jánão teria no seu quadro de consultores nem oinepto que julgou meu texto nem estrelas — ouestrelos — que presunçosamente opinam sobre oque não leram. O establishment acadêmico brasileiro quer fiscalizar e julgar o país inteiro,mas não suporta ser sequer examinado. Sobregente assim dizia Karl Kraus: “Julgam para nãoserem julgados.” O prof. Candotti diz que nãohavia razão para escândalo.Mas ele foi, por suaomissão, o único culpado pelo escândalo.Tendorecebido semanas atrás uma cópia do meufolheto, não se mexeu para dar-lhe uma resposta,

o tempo passou e a questão acabou indo parar nos jornais, quando poderia ter sido resolvidadiscretamente se o prof. Candotti fizesse aquiloque era do seu dever: buscar o esclarecimento daquestão. Como bem enfatizou o Dr. Cláudio

177

Page 178: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 178/196

O LAVO DE C ARVALHO

Ribeiro, “cabe ao editor diagnosticar a falha”. O prof. Candotti está lá para isso, e não para rejeitar a priori qualquer reclamação, quer sob a presunção de infalibilidade da corporaçãoacadêmica, quer sob a da insignificância de seus possíveis erros. Ademais, o Prof. Candotti seesquece de que a SBPC recebe dinheiro público:se denunciada uma irregularidade no seutrabalho, elatem a obrigação de investigá-la, emvez de reagir como donzela ofendida e recusar falar do assunto. Na minha carta, aliás, fui muitorespeitoso para com a SBPC, afirmando que ainépcia de um de seus membros em nada depunhacontra a honra da entidade. Vejo, no entanto, queo prof. Candotti, por orgulho e teimosia, preferearriscar a imagem da SBPC como um todo, paranão ter de reconhecer os erros de um só dentreseus membros. Quanta solidariedade! Ou esse parecerista é alguém muito importante, ou o Prof.Candotti acha normal que as sociedadescientíficas sejam como sociedades secretas, que protegem seus membros sob um pacto delealdade até a morte.

Quanto a Callado, sua pergunta imbecil — “Como é que ele consegue chegar aos principais jornais?” — tem uma resposta em duas partes:

1ª, estou lá há trinta anos, como jornalista profissional; 2ª, os jornais não selecionam seuscolaboradores segundo os critérios de AntônioCallado. Graças a Deus, Callado não é consultor nem chefe de pessoal em nenhum jornal. Se

178

178

Page 179: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 179/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

fosse, usaria do peso de seu prestígio para vetar acontratação de seus desafetos. Sua hipocrisiarevela-se claramente no instante em que, negandofazer censura, ao mesmo temporeincide natentativa de me fechar as portas das redações.Que coisa deprimente! Mas não pára aí: ao mechamar “desconhecido”, Callado mente ou estágagá, pois me conhece pessoalmente há tempos — foi por caridade para com um homem idosoque eu não quis lembrar este detalhe até agora — e não tem sentido, aliás, rotular de desconhecidoum autor cujos livros têm recebido, conformeCallado sabe perfeitamente bem, os qualificativosde“estupendo” (Herberto Sales), “importantíssimo”(Bruno Tolentino), de “excelente” (JosuéMontello), de “magnífico” (Jacob Klintowitz) etc.

Enfim, os argumentos usados contra mimnessa polêmica resumem-se a uma carnavalescaexibição de prestígio, aoargumentum auctoritatise ao argumentum baculinum. Pergunto eu: detodos esses senhores, quem conhece Aristóteles o bastante para julgar o caso, mesmo supondo-seque tivessem lido meu trabalho? Tem razão oBruno Tolentino quando os chama de usurpado-res. São tão usurpadores quanto um Collor ou um

João Alves: não roubam dinheiro público, masusam de seus cargos e de seu círculo de amizades para atribuir-se uma autoridade intelectual quenão têm. Desafio publicamente todos essessenhores a discutir, com base nos textos e

179

Page 180: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 180/196

O LAVO DE C ARVALHO

documentos, as objeções que fiz ao meu parecerista. Todos fugirão, ocultando-secovardemente atrás da proteção corporativa, sema qual cada um deles é, nesta questão, apenas ummenino indefeso perdido no deserto da suaignorância. Dos entrevistados, somente a profª.Rosângela Nunes e o Dr. Cláudio Ribeirodeclararam, com humildade exemplar, não poderem julgar o que não leram. Mas ambosadmitiram, em princípio, ao menosa possibilidadede erros graves no parecer. Para osdemais, esta hipótese é impensável por definição.SBPC locuta, causa finita, não é mesmo?Incapazes para o debate científico, jogaram comas cartas marcadas do oficialismo e do espírito decorriola.

180

180

Page 181: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 181/196

III. CARTAS A Ê NIO CANDOTTI

Primeira

Rio, 16 de novembro de 1994

Prezado senhor,Atendendo a uma sugestão de nosso amigo

comum, Dr. Ivan da Costa Marques, estou

enviando a V. Sa. a cópia de um documento queremeti à revista da SBPC a propósito de fatosrecentes92.

Tanto eu como o Dr. Ivan julgamos que seriaútil e justo informar V. Sa. desse episódio, se bemque um tanto indigesto.

Esperando que V. Sa. me desculpe por lhe pedir que conceda ao exame desse documento umtempo que talvez seria melhor dedicado a outrascoisas, agradeço-lhe de antemão. Com os meusmelhores votos,

Atenciosamente,OLAVO DE CARVALHO

92 Refiro-me a De re aristotelica opiniones abominandæ.

Page 182: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 182/196

O LAVO DE C ARVALHO

Segunda

Rio, 2 de janeiro de 1995.

Prezado senhor,Confrontada com suas declarações ao jornal

O Globodo dia 28 de dezembro, a carta que osenhor fez publicar pelo mesmo jornal no diaseguinte é um primor denonsense. Alegando quea complexidade do assunto poderá confundir o

leitor leigo, o senhor ali pede que o debate arespeito de meu trabalho sobre Aristóteles saia daimprensa diária para as páginas discretas de “umarevista especializada”. A SBPC então recomenda para discussão numa revista especializada umtrabalho que ela mesma considerou indigno de ser publicado num periódico de divulgação cientí-fica? Deverão as revistas especializadas emfilosofia ser menos exigentes na seleção dosartigos do queCiência Hoje? Note bem: não foi por excesso de especialismo que meu trabalho foirecusado. D. Yonne Leite foi taxativa: meu texto,disse ela, “não atendia às condições mínimas deum trabalho científico”. Ciência Hoje seconsidera superior às revistas especializadas ao

182

182

Page 183: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 183/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

ponto de lhes enviar as sobras de sua lata-de-lixo?

Quando uma pessoa sensata diz coisasinsensatas, devemos supor que se distraiu ou quetem alguma segunda intenção. Não sendo cabívelem lance tão decisivo a hipótese de distração,resta supor que o senhor quis apenas abafar oescândalo, e que para este fim se serviu, às pressas, de um pretexto improvisado. A falsidadeda sua posição ressuma até mesmo da imagem pseudoliterária — de um mau-gosto infame — que dá fecho à sua carta: o que o senhor quisesconder não foram as cáries de Aristóteles — sobre o estado de cuja dentadura a História nãonos deixou a menor indicação —, mas sim ocâncer da pseudo-intelectualidade, que rói oorganismo da SBPC e dele se alimenta. O único problema dentário sério que encontro emAristóteles é a sua célebre contagem dos dentesdas mulheres, que segundo ele são em maior número que os dos homens ( Aristotelis insignisnegligentia). De cáries ele não se queixa em partealguma, porém se as tivesse poderia consultar afamosa especialista em odontologia peripatética — Dra. Yonne Leite —, a qual teria decerto maisfacilidade em obturá-las do que em tampar os

rombos nos conhecimentos aristotélicos do parecerista que examinou o meu trabalho.Sua declaração ao mesmo jornal reflete a

empáfia de uma sociedade de elite que, habituadaa cobrar sem ser cobrada, já crê que todo mundo

183

Page 184: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 184/196

O LAVO DE C ARVALHO

tem a obrigação de considerá-laa priori excluídade qualquer suspeita. Sempre acusando,denunciando, pontificando, a SBPC acabou por seamoldar ao púlpito, tomando-o como uma se-gunda natureza, e perdeu de vista que tambémtem satisfações a prestar, já que vive do dinheiro público. Sua pergunta — o que aconteceria setodo autor que discordasse de um parecer decidisse reclamar — é tola, para dizer o mínimo.O que aconteceria — será que o senhor não sabemesmo? — é que:

1º A revista da SBPC já não empregaria mal odinheiro do povo pagando os serviços de pareceristas ineptos (talvez não sejam muitos,mas como sabê-lo se a averiguação é proibida?).

2º Ela teria aprendido a ser humilde, arespeitar o público, a ser exigente consigo mesmaem vez de acomodar-se na presunção da própriainfalibilidade, como uma nova casta sacerdotal — atualmente sob o pontificado de Ennius I.

Por outro lado, se desejava que a questãofosse resolvida discretamente entre estudiosos, S.Santidade teve tempo bastante para tomar providências nesse sentido, de vez que recebeuuma cópia das minhas observações sobre a“avaliação crítica” de meu trabalho93 semanas

antes de que o caso fosse publicado na imprensa. Não tem portanto razão para reclamar do

93 Recebeu até mesmo duas cópias: uma na SBPC, outra adomicílio, que lhe enviei pessoalmente.

184

184

Page 185: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 185/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

escândalo, que foi gerado no ventre da suaomissão.

Quanto a seu paternal cuidado para com aalma do público leigo — como se também osenhor e D. Yonne não fossem leigos emAristóteles! —, é pura manobra obscurantista.Quem tem a temer com esta discussão não é o público: é a SBPC. Entre os milhões de leitoresde O Globo há decerto um número maior de pessoas cultas e capacitadas do que no comitêeditorial deCiência Hoje94. Por notáveis que seimaginem os membros desse comitê, eles não têma autoridade de um novo Santo Ofício paradecidir o que o público está ou não está maduro para saber. Fingindo proteger o público, a SBPCse protege a si mesma, ocultando a inépcia do seucomitê editorial sob um manto de opacidadetecido com o discurso da transparência.

Nunca tive em alta conta a intelectualidade brasileira, muito menos a comunidade acadêmicaem especial, mas, pela recomendação de nossoamigo comum Dr. Ivan da Costa Marques, euesperava do senhor uma atitude mais elegante.

Atenciosamente,

94

Como jornalista profissional, há trinta anos espero que osdebates científicos invadam as páginas da imprensa diária. Agoraque eles começam a chegar lá, não vejo qual o benefício demandá-los de volta ao gueto especializado. Fui também editor derevistas científicas ( Atualidades Médicase Clínica Geral), e jánessa época lamentava que tantos assuntos importantes ali fossemdiscutidos longe dos olhos do público geral.

185

Page 186: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 186/196

O LAVO DE C ARVALHO

OLAVO DE CARVALHO

186

186

Page 187: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 187/196

LEITURASSUGERIDAS

a) Traduções mais recomendáveis dostextos de Aristóteles que interessam ao

tema do presente estudo

Das Categorias, trad., notas e comentários deMário Ferreira dos Santos, São Paulo, Matese,2a. ed., 196595.

La Métaphysique, trad., introd, notes par J.Tricot, 2 vols, Paris, Vrin, 1993. Metafísica, ed. trilingüe por Valentín GarcíaYebra, 2a. ed., Madrid, Gredos, 1990.Organon, 5 vols., trad. J. Pinharanda Gomes,Lisboa, Guimarães, s/d.Organon, 5 vols., trad. J. Tricot, Paris, Vrin,1950-1966.Poética, trad. e introd. por Eudoro de Souza,

Lisboa, Guimarães, s/d.Poétique, texte établi et traduit par J. Hardy,Paris, Les Belles Lettres, 1932 (várias

95 Trabalho notabilíssimo, prejudicado pelos erros de revisão.

Page 188: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 188/196

O LAVO DE C ARVALHO

reedições). Retórica, Introd., trad. e notas por QuintínRacionero, Madrid, Gredos, 1990.The Complete Works of Aristotle.The RevisedOxford Edition, ed. by Jonathan Barnes, 2vols., Princeton Univ. Press, 1991.

b) Comentários e Estudos

AUBENQUE, Pierre, La Prudence chez Aristote,

Paris, P.U.F., 1963 (réed. 1993).AUBENQUE, Pierre,Le Problème de l’Être chez Aristote. Éssai sur la Problématique Aristotélicienne, Paris, P.U.F., 1962 (réed.1991).BARNES, Jonathan, Aristóteles, trad. MarthaSansigre Vidal, Madrid, Cátedra, 1993.BOUTROUX, Émile, Études d’Histoire de laPhilosophie, 4e éd., Paris, Alcan, 1925.

BOUTROUX, Émile,Leçons sur Aristote, ed. par Jêrome de Grammont, Paris, Éditions Universi-taires, 1990.BRENTANO, Franz, De la Diversité des Accep-tions de l’Être d’après Aristote, trad. Pascal

188

188

Page 189: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 189/196

Page 190: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 190/196

O LAVO DE C ARVALHO

P.U.F., 1962 (réed. 1985).PORFÍRIO, Isagoge. Introdução às “Categorias”de Aristóteles, trad., notas e comentários deMário Ferreira dos Santos, São Paulo, Matese,

1965.R EALE, Giovanni, Introducción a Aristóteles,trad. Victor Bazterrica, Barcelona, Herder,1985.R OBIN, Léon, La Pensée Grecque et lesOrigines de l’Esprit Scientifique, Paris, AlbinMichel, 1923 (réed. 1973).R OSS, Sir David,Aristóteles, trad. Luís FilipeBragança S. S. Teixeira, Lisboa, Dom Quixote,1987SPINA, Segismundo, Introdução à PoéticaClássica, São Paulo, FTD, 1967.TOMÁS DE AQUINO, Sto., Comentários a Aristóteles, trad. Antonio Donato Paulo Rosa, 6vols., manuscrito inédito99.WEIL, Éric, Éssais et Conférences, 2 tomes,Paris, Vrin, 1991100.

99 O tradutor vem há anos procurando em vão editar o seu trabalhomonumental.100 Indispensável. Diz mais em trinta páginas do que muitasgerações de filólogos.

190

190

Page 191: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 191/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

c) Outras obras de interesse para oestudo dos Quatro Discursos

CURTIUS, Ernst-Robert,Literatura Européia e Idade Média Latina, trad. Teodoro Cabral, Rio,INL, 1957.FEYERABEND, Paul, Contra o Método, trad.Octanny S. da Motta e Leônidas Hegenberg,Rio, Francisco Alves, 1977.FRIEDRICH, Hugo,Estrutura da Lírica Moderna,trad. brasileira, 2a. ed., São Paulo, DuasCidades, 1991.FRYE, Northrop,Le Grand Code. La Bible et la

Littérature, trad. Cathérine Malamoud, Paris,Le Seuil, 1984.HIGHET, Gilbert,The Classical Tradition. Greek and Roman Influences on Western Literature, New York, Oxford University Press, 1957.LAUSBERG, Heinrich, Elementos de Retórica Literária, trad. R. M. Rosado Fernandes,Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed.,1972.LE GOFF, Jacques, Os Intelectuais na Idade Média, trad. Luísa Quintela, Lisboa, EstudiosCor, 1973.PANOFSKY, Erwin, Architecture Gothique et Pensée Scolastique, trad. Pierre Bourdieu,

191

Page 192: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 192/196

O LAVO DE C ARVALHO

Paris, Éditions de Minuit, 1967.PERELMAN, Chaim, Traité de l’Argumentation. La Nouvelle Rhétorique, Bruxelles, UniversitéLibre, 1978.

PRATT, Mary Louise,Toward a Speech Act The-ory of Literary Discourse, Bloomington, Indi-ana University Press, 1977.

S NELL, Bruno,A Descoberta do Espírito, trad.Arthur Morão, Lisboa, Edições 70, 1992.VAN TIEGHEM, Philippe, Petite Histoire desGrandes Doctrines Littéraires en France. Dela Pléiade au Surréalisme, Paris, P.U.F., 1946.

192

192

Page 193: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 193/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

Í NDICEO NOMÁSTICO

AAfonso 58Afonso de Ligório 53Agostinho 151Al-Ghazzali 58, 169Al-Kindi 58Alberto 151Alberto Magno 114, 151Alcebíades 160, 162Alighieri 80Alves, João 176Andrade, Evandro Carlos de

18Andrônico de Rodes 32, 33,

37, 38, 47, 75

Aristóteles 13, 14, 18, 22,23, 26, 28, 30, 31, 32, 33,34, 35, 36, 37, 40, 42, 43,45, 46, 48, 50, 55, 58, 59,60, 61, 62, 63, 64, 68, 69,70, 71, 72, 73, 74, 75, 76,77, 78, 79, 80, 81, 82, 84,95, 114, 115, 116, 117,118, 119, 120, 122, 123,136, 137, 139, 142, 143,144, 145, 146, 147, 148,149, 150, 151, 153, 154,155, 156, 157, 158, 159,160, 161, 162, 163, 164,

165, 166, 171, 173, 181,184, 185, 187, 192Arnóbio de Sicca 152Aubenque 48, 116, 117Avicena 26, 58, 82, 169B

Bachelard, Gaston 29

Bacon, Francis 37, 78Bandeira, Manuel 35Barnes 127, 153Basílio Magno, S. 152Bekker 115Berti 116Boaventura, S. 79Boécio 114, 152Brentano 115, 128, 153Brito, Daniel Brilhante de

18Brunschvicg, Léon 173Bukhari 58CCallado 17, 178, 180Callado, Antonio 180Candotti 12, 179, 183Capra, Fritjof 30, 59Carvalho, Olavo de 6, 183,

188Chomsky, Noam 70Cícero 55Clemente de Alexandria

151, 157Coleridge, Samuel Taylor43Collor 181Comte, Auguste 173Croce, Benedetto 68

Curtius, Ernst-Robert 33, 52DDante 17, 79De Bruyne, Edgar 79Descartes 53Descartes, René 31, 37, 78

193

Page 194: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 194/196

O LAVO DE C ARVALHO

Dionísios 51Dumont 117, 118, 119, 121,

128, 149, 153Durand, Gilbert 80Düring 116, 153Duval 18EEco, Umberto 33, 79Einstein 54Engels 70Escobar, Carlos Henrique

17, 178Eunômio de Cícico 152FFarias, Paulo César 176Fenollosa, Ernest 30Ferguson, Marilyn 30Feyerabend 31, 193Fírmico Materno 152Friedrich, Hugo 57, 193Frye, Northrop 51GGaleffi 17Galeffi, Romano 18Galilei, Galileo 37, 78Gödel, Kurt 42Gomez-Pin 117Gomide 17Gregório Magno 150Gusdorf 29HHamelin 32, 115, 141, 153Hazard 115Hécuba 160Hegel 56Homero 51Horácio 77Hugo de S. Vitor 68Husserl 133IIbn ‘Arabi 169

Irineu de Leão 152Isidoro de Sevilha, Sto. 152JJaeger 35, 116, 117, 141,

153Jaeger, Werner 35James 15Joyce 56K Kenny 117Klintowitz, Jacob 181Kraus, Karl 179Kuhn, Thomas S. 42LLausberg, Heinrich 43, 193Le Blond, J. M. 153Leibniz 53Leibniz, Gottlieb Wilhelm

von 78Leite, Yonne 184, 185Levy, Jerre 30Locke, John 62Luís XIV 29MMachado, Antonio 174MacLaine, Shirley 30Malebranche 53Mallarmé 56Mansion 116, 153Marcelo de Ancira 152Mário Vitorino 152Marques, Ivan da Costa136,

183, 187Marx 56Marx, Karl 73, 173Metzger 117Millet 153Montello, Josué 181Morin 122, 123 N Napoleão 55

194

194

Page 195: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 195/196

A RISTÓTELES EM NOVA P ERSPECTIVA

Nemésio de Emesa 152 Newton, Sir Isaac 37, 78 Nietzsche, Friedrich 167,

175 Nunes, Rosângela 182 Nussbaum 117OOrígenes 169Orsini 18Ortega y Gasset, José 53PPanofsky, Erwin 42, 76, 193Perelman, Chaim 42Piaget, Jean 70Planck 54Platão 52, 61Porfírio 152Pound, Ezra 30Pradines, Maurice69, 70, 73Pratt, Mary Louise 42, 194QQuintiliano 55R Ravaisson 115, 153Reale 17Ribeiro, Cláudio 180, 182Robin 32, 115Robortelli 37, 78, 115Rorty 117Ross, Sir David 37, 141,

153, 192Royce, Josiah 53SSaid Qutub 58

Sales, Herberto 181Shakespeare 160Sinaceur 117Snow, Charles Percy 29Sócrates 52Solmsen, F. 154Sólon 52

Sorokin, Pitirim N. 173Spina, Segismundo 77, 78Spinoza 53Spinoza, Baruch ou

Benedictus de 62, 85TTelêmaco 146Teodureto de Ciro 152Tertuliano 169Tolentino 18, 181Tomás de Aquino 26, 79,

114, 141, 150VVan Tieghem 115, 194Velho 17, 178Vico, Giambattista 166WWeil 36, 37, 45, 116, 117,

118, 119, 121, 141, 149,154, 157, 158

Weil, Éric 36, 154Wellek 115Wellek, René 38Willamowitz-Möllendorf,

Ulrich von 167ZZeller, Eduard 51, 141

195

Page 196: Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

7/27/2019 Olavo de Carvalho - Aristóteles em Nova Perspectiva

http://slidepdf.com/reader/full/olavo-de-carvalho-aristoteles-em-nova-perspectiva 196/196

O LAVO DE C ARVALHO196