obras morais sobre a amizade - plutarco

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  • Plutarco

    Obras MoraisComo Distinguir um Adulador de um Amigo

    Como Retirar Benefcio dos InimigosAcerca do Nmero Excessivo de Amigos

    Traduo do grego, introduo e notas dePaula Barata Dias

    Universidade de Coimbra

  • Autor: PlutarcoTtulo: Obras Morais - Como Distinguir um Adulador de um Amigo, Como

    Retirar Benefcio dos Inimigos, Acerca do Nmero Excessivo de AmigosTraduo do grego, introduo e notas: Paula Barata DiasEditor: Centro de Estudos Clssicos e Humansticos

    Edio: 1/2010Coordenador Cientfico do Plano de Edio: Maria do Cu FialhoConselho Editorial: Jos Ribeiro Ferreira, Maria de Ftima Silva, Francisco de Oliveira, Maria do Cu Fialho, Nair Castro Soares

    Director tcnico da coleco / Investigador responsvel pelo projecto Plutarco e os fundamentos da identidade euroPeia: Delfim F. Leo

    Concepo grfica e paginao: Rodolfo Lopes

    Obra realizada no mbito das actividades da UI&DCentro de Estudos Clssicos e Humansticos

    Universidade de CoimbraFaculdade de Letras

    Tel.: 239 859 981 | Fax: 239 836 7333000447 Coimbra

    ISBN: 9789898281289ISBN digital: 9789898281296

    Depsito Legal: 309396/10

    Obra Publicada com o Apoio de:

    Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis

    Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de Coimbra

    Reservados todos os direitos. Nos termos legais fica expressamente proibida a reproduo total ou parcial por qualquer meio, em papel ou em edio electrnica, sem autorizao expressa dos titulares dos direitos. desde j excepcionada a utilizao em circuitos acadmicos fechados para apoio a leccionao ou extenso cultural por via de e-learning.

    Volume integrado no projecto Plutarco e os fundamentos da identidade europeia e financiado pela Fundao para a Cincia e a Tecnologia.

    Todos os volumes desta srie so sujeitos a arbitragem cientfica independente.

  • ndice

    I. Introduo Geral 7

    1. Os Tratados de Plutarco sobre a Amizade 72. Contextualizao ScioCultural da Produo

    Plutarqueana sobre a Amizade 393. A Orientao Filosfica de Plutarco 444. Porqu a Amizade? A Importncia do Tema no

    Mundo Antigo e em Plutarco 515. Sobre a Traduo 576. Bibliografia 58

    I. Como Distinguir um ADulADor De um Amigo 63

    Palavras Introdutrias 65Como Distinguir um ADulADor De um Amigo Traduo 73

    II. Como retirAr BenefCio Dos inimigos 165

    Palavras Introdutrias 167Como retirAr BenefCio Dos inimigos Traduo 173

    III. ACerCA Do nmero exCessivo De Amigos 201

    Palavras Introdutrias 203ACerCA Do nmero exCessivo De Amigos Traduo 207

    IV. ndices 225

    ndice Onomstico 227ndice de PalavrasChave 231

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    introduo Geral

    1. Os tratados de Plutarco sobre a amizade1

    A reunio num s volume da verso portuguesa dos tratados de Plutarco que abordam o tema da amizade resulta, de certa forma, de um abuso nosso, posto que no h elementos que permitam supor qualquer intencionalidade, da parte do Polgrafo Queronense, em apresentar o Como Distinguir um Adulador de um Amigo, o Como Retirar Benefcio dos Inimigos e Acerca do Nmero Excessivo de Amigos como opsculos sujeitos a uma qualquer disposio que os agrupasse.

    Variam no estilo, na dimenso, na poca de composio, nos destinatrios, e, sem dvida, como os ttulos permitem denunciar, no prprio ponto de vista de partida a que se sujeita, nas trs obras, o vasto tema da amizade. So, cada um, uma obra completa,

    1 Adoptaremos as seguintes abreviaturas: AD Como Distinguir um Adulador de um Amigo, de 48 F a 74D; IC Como Retirar Benefcio dos Inimigos 86, de B a 92 F; AM Acerca do Nmero Excessivo de Amigos, de 93 A a 97 A

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    estruturalmente construda como tal, sem que se estabelea nenhuma dependncia entre elas, do ponto de vista da construo literria. Sentimonos, contudo, legitimados a proceder a esta reunio.

    Em primeiro lugar, porque, apesar de estarem sujeitos a uma unidade de tema, os assuntos neles explanados, diversificados, no se repetem, nem se contradizem. Plutarco, embora no tenha deixado nenhuma reflexo terica sobre o tema da amizade como fizeram muitos autores antigos, sentiuse vontade em discutir, dar a sua opinio, argumentar, aconselhar, ou seja, em produzir um discurso de ndole pragmtica para os seus contemporneos embora se explicitem destinatrios directos sobre os problemas que a amizade acarreta.

    Acresce o facto de as trs obras partilharem uma estrutura retrica semelhante, particularmente no que toca introduo, e ao modo de o A. focalizar os tpicos propostos para discusso. Plutarco inicia os tratados apoiado na figura do estranhamento, tomando para si o papel de defesa de um ponto de vista que no maioritrio e que, primeira vista, se revela mesmo contrrio razo. Assume, diante do destinatrio e do receptor, um grau fraco de credibilidade na exposio da tese inicial, que assume contrariar o senso comum, ainda que sempre evocando autoridades filosficas como coadjuvantes, que vai crescendo nas premissas secundrias, todas sustentadas por um discurso demonstrativo2.

    2 Heinrich Laubsberg, Elementos de uma Retrica Literria, (Bona, 1967; trad. port. FCG, 3 ed., 1982), p. 90; p. 112.

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    Assim, em Como Distinguir um Adulador de um Amigo, (48 F) Plato que afirma que todos (hapantas) aprovam o homem que diz ter um elevado amor prprio. Este um grande mal, pois leva a que se perca a objectividade que permitiria a algum ser um juiz imparcial de si prprio. O excesso de amor prprio compromete o autoconhecimento, e ele mesmo chamariz para os aduladores. Nestas circunstncias, as vtimas dos aduladores so vtimas da sua irreflexo e da sua inpcia. Em Como Retirar Benefcio dos Inimigos, (86 DE), se para os outros (hoi alloi), tal como para os homens primitivos, no ser prejudicado pelos inimigos j era uma vitria, j Xenofonte afirmara que saber extrair vantagens dos adversrios uma qualidade dos homens inteligentes. Assim, que se tome esta premissa e que se apresente o mtodo de lucrar com as inimizades. Em Acerca do Nmero Excessivo de Amigos (93 B C), Scrates a autoridade evocada para torcer o argumento do senso comum, desmascarado, no passo em causa, a partir da ironia socrtica, que deixa a nu a ignorncia do seu interlocutor. Como pode ser negativo ter muitos amigos? No seremos alvo de riso os que, no estando seguros de ter um s amigo, receamos cair no meio de uma multido deles? Est, assim conquistada a ateno do destinatrio, e est tambm assumido um tom medianamente polmico e crtico quanto aos dominantes sociais em termos de opinio comum.

    A amizade tratada quer enquanto conceito potencial, isto , como orientar aquele que procura navegar nas guas estabilizadoras de uma relao

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    verdadeira, quer enquanto realidade concreta do quotidiano: ou seja, orientando o modo de agir daquele que vive num ambiente social intenso, no qual relaes interpessoais marcadas pela diversidade dos intervenientes se encadeiam, e tornam mais complexo o acto de discernir e avaliar o outro enquanto fonte de bemestar e de felicidade para o indivduo.

    Plutarco integrou nestes escritos uma reflexo coerente sobre a complexa gesto da amizade, resultando do conjunto uma abordagem integrada do que poderemos considerar ser o ponto de vista de Plutarco sobre este tipo de relao humana. Acresce, evidentemente, como sustentculo do seu domnio prtico sobre a questo, a experincia pessoal enquanto homem de intensa vida social, que soube cultivar a amizade e que dela colheu doces frutos, durante a sua longa vida. Parece, pois, natural, que um homem como Plutarco se sentisse autorizado a partilhar as suas reflexes, amadurecidas pela experincia de vida e pelo seu poder de observao.

    Surpreendentemente, ao contrrio das reflexes literrias e filosficas sobre o tema, que Plutarco conheceu e por que se deixou influenciar, no entrevemos no A. a preocupao de definir teoricamente ou filosoficamente o conceito de amizade. A focalizao incide sobre os aspectos concretos do que pode correr mal, ou do que compromete o gozo de uma amizade.

    Plutarco recorre sua erudio literria para se ancorar neste domnio, dela se servindo como um catalizador para apresentar uma tipologia de exemplos

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    e de questes que se situam nas fronteiras da amizade enquanto estado ideal de concrdia entre dois espritos, mas que com ela no se confundem. A naturalidade com que procede anlise de temas socialmente delicados, e mesmo inconvenientes, resultam, quanto a ns, do conhecimento erudito que o autor reuniu e que lhe permitiu compor as Vidas Paralelas biografias de homens famosos de diferentes momentos da histria antiga grega e romana, todos fazendo parte, por razes diversas, das elites polticas e culturais. feito, por isso mesmo, um extenso uso de exempla comuns aos que encontramos nas suas Biografias episdios, anedotas, ditos famosos para corroborar os seus pontos de vista e as suas tomadas de posio, facto que deixamos assinalado nas notas que acompanham a traduo. A tradio literria ficcional da Antiguidade est tambm presente, atravs da colao de excertos dos poetas, picos, trgicos e cmicos, que compuseram nas suas obras retratos modelares de heris e de mitos nos quais o enleio da amizade e a armadilha da sua aparncia condicionaram a existncia de personalidades como Hracles, Aquiles e Ptroclo, Agammnon, Heitor, Menelau, Pramo, Ulisses. Dos historiadores, filsofos, oradores, e de toda a tradio literria anterior a si, retirou no s exemplos de caracteres, mas tambm um manancial considervel de ditos sentenciosos, mximas, provrbios, ou simples expresses que no poucas vezes se encadeiam no discurso, completandoo ou precisandoo, facto que se aplica ao estilo plutarqueano em geral.

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    Neste mbito, destacamse os casos em que Plutarco assume discordncia com as autoridades mencionadas, o que no s introduz uma nota de variao e de surpresa no discurso, mas tambm nos permite entrever um Plutarco de rosto mais crtico e modelado, tanto pelos seus gostos literrios, como pelas suas concepes ticomorais.

    No deixa, contudo, de ser um pouco desconcertante que a focalizao a que Plutarco sujeita a amizade seja precisamente a da sua negao: os casos em que esta se apresenta deformada por realidades que com ela se confundem, que o da adulao (he kolakeia) e o do excesso de amigos (he polyphilia). Temos tambm o desconcertante caso em que a amizade no existe de todo, sendo substituda pela inimizade (o segundo dos opsculos), por sinal a nica das situaes a que Plutarco reconhece vantagens inerentes.

    A noo plutarqueana de amizade baseiase no conceito de semelhana homoiotes) entre as partes, como se afirma em Como Distinguir um Adulador de um Amigo (51 B)o princpio (arche) da amizade reside na semelhana (homoiotes) de objectivos (epitedeuma) e de costumes (ethos), e que alegrar-se com as mesmas coisas (olos to kairein), e rejeitar as mesmas coisas (to tauta pheugein), , de um modo geral, o que em primeiro lugar aproxima (sunagei) as pessoas, e as une (sunistesi) por meio da concrdia de sentimentos (omoiopatheia)

    As duas tipologias plutarqueanas de paraamizade, relaes que, de algum modo, imitam na superfcie as qualidades da amizade; e

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    de noamizade, relao que nega, por anttese, a essncia da amizade, resultam todas elas da corrupo deste princpio da semelhana entre as partes, criandose, portanto, um desequilbrio estrutural: a dissemelhana de qualidade entre os indivduos, no necessariamente uma desigualdade de condio social, poltica e econmica, mas de carcter, de propsitos, de interesses, atrair relaes perversas, que se sustentam apenas enquanto forem motivadas externamente.

    Em Como Distinguir um Adulador de um Amigo, um dos envolvidos neste par de atraco mtua deformada, o adulador, aquele que reproduz, exagerando at, as vantagens, o prazer, e as virtudes dos amigos, mas tal modo de agir motivado pela satisfao dos seus interesses particulares, e no pela promoo do benefcio mtuo. Mas o outro membro deste par, a vtima do adulador, no menos inocente: a sua dificuldade em identificar os sinais da adulao so tanto maiores quanto mais o seu carcter for escravo das paixes, quanto menos virtuoso se apresentar. O adulador est sempre pronto a reforar as fragilidades de carcter daquele que pretensamente serve, no o contrariando, no o advertindo dos perigos, descuidos, negligncias ou ms aces em que se envolve. Assim, sob a capa de uma servil obedincia e lealdade, escondese o falso amigo, todo ele doura e prestabilidade, incapaz de um olhar crtico e frontal para aquele que admira, em teoria. Assim, fica anulada a maior das vantagens da amizade, nascida da alteridade e de liberdade de

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    conscincia: o indivduo no pode esperar desta relao colher o estmulo para pr prova, treinar e educar o seu carcter, pelo que se afunda em progressivas vicissitudes, frutos de um comportamento errtico e de decises precipitadas. O adulador apresenta ainda o perigo de, sendo ele cioso do espao que ocupa nos afectos do seu alvo, afastar os verdadeiros amigos que poderiam exercer essa funo protectora. No servindo como amigo, cria sua volta um deserto afectivo, que, embora prazenteiro e agradvel no imediato, compromete a felicidade e o sucesso a longo prazo.

    O adulador distinguese do parasita pela perseverana, calculismo, danos provocados e subtileza de mtodos. Chega, inclusivamente, a servirse da franqueza a parresia apangio dos espritos livres que conscientemente se revelam aos seus pares como modo de se valorizar diante do seu alvo, cumprindo at ao fim a sua estratgia de imitao da amizade.

    Esta capacidade de se esconder entre os traos da verdadeira amizade conduz Plutarco ao desenrolar de um casusmo de comportamentos adulatrios, como forma de ilustrao e de mtodo para favorecer o reconhecimento deste mestre do disfarce. neste passo que o texto de Plutarco ganha uma particular animao, pelo realismo e ironia dos casos documentados.

    Neste domnio, estamos convencidos de que Plutarco foi bastante auxiliado, no s pela sua experincia e observao da natureza humana universal (diramos que a leitura de certos excertos produziro em qualquer um de ns um sorriso de reconhecimento prtico das

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    situaes descritas), mas tambm pela tradio literria da Comdia, concretamente de upolis e de Menandro, cada um deles autor de uma comdia sob o ttulo preciso de Ho Kolax, O Adulador. As comediografias grega e a romana compuseram com mestria retratos do parasita aquele que come das sobras da mesa, e conhecemse, dentro do gnero literrio dramtico cmico, estas manifestaes explcitas de um quadro individualizado para o adulador.

    Plutarco distanciase, no entanto, do modelo da comdia. No caso de upolis do retrato produzido, considerando que ele se aplica mais ao parasita, e, no caso de Menandro, colocando o exemplo de adulao apresentado por este autor num nvel pouco subtil, pouco elaborado. O adulador, embora, por um lado, reproduza alguns modos de agir do parasita, pertence a um outro nvel de perigosidade e de subtileza de estratgia e, por outro lado, o carcter plstico do adulador apresenta modulaes que ultrapassam o testemunho de Menandro.

    Esta necessidade em demarcar o mbito do seu objecto face a uma composio de carcter resultante de uma anlise anterior fornecenos indcios seguros da presena destes intertextos sobre a adulao e o adulador, pelo que ser plausvel pensar que Plutarco se tenha inspirado na obra de upolis e de Menandro, explicitamente referenciados pelo autor em 59 C e 54 B.

    Indicanos tambm que Plutarco assimilou criticamente o legado recebido. Ou seja, os quadros vivos

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    da actuao sinuosa deste perfil humano (AD 48 e 59), desmontados com uma complexidade casustica, ironia, anlise psicolgica e detalhe invulgares, particularmente os que resultam em quadros ilustrativos potenciais, especulativos, que envolvem annimos, podem ter sido inspirados em episdios da comdia, mas ntida, em Plutarco, a insatisfao em relao ao perfil anteriormente produzido que, segundo ele, precisa de ser afinado: no s deve ser claramente destrinado do perfil do parasita, como ser desmascarado pela aparncia do bem que produz.

    Plutarco sente necessidade em identificar o adulador de difcil percepo, aquele que se confunde com o amigo mais fiel e prestvel, ou seja, propese criar um mtodo para identificar esta deformao da amizade. A que devida esta insatisfao?

    Em primeiro lugar, h em Plutarco uma sustentao filosfica tica, que no texto antecipa ou conclui as ilustraes produzidas, na qual possvel identificar outras fontes de inspirao, como veremos. Ou seja, Plutarco conduz a reflexo sobre as agruras que envolvem a amizade a um nvel mais elaborado do que o que transparece das composies cmicas. Mas est tambm presente aquilo a que chamaremos o ar do tempo, ou seja, o juzo de Plutarco quanto ao perodo histrico, poltico e social em que vive.

    precisamente no segundo tratado apresentado que encontramos uma frase que, desvelando um tom de crtica sua poca, nos autoriza a pensar que Plutarco incorporou nestes opsculos, conjugando fontes

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    literrias, filosficas, experincia e observao pessoal, um juzo lcido e algo cptico sobre o seu presente:

    E visto que a amizade tem, nos dias de hoje, a voz dbil para a franqueza no falar enquanto a adulao que dela vem bem sonora e a sua admoestao permanece muda, da boca dos inimigos que se deve escutar a verdade (IC, 89 C)

    Outros autores antigos estabeleceram perfis para o adulador:

    Teofrasto, em Caracteres, apresentouo logo no segundo quadro. Os exemplos do comportamento tpico apresentados pelo Filsofo sucessor de Aristteles no Liceu ateniense so, no por expresses exactas, mas por equivalncia dos seus efeitos, em muitos aspectos similares aos que Plutarco assinalar, como damos conta nas notas. Em suma, no h uma intertextualidade directa, mas claramente uma base comum de reflexo sobre esta tipologia humana. Ccero, (tambm explicitamente referenciado por Plutarco, em IC, 91 A) no seu dilogo De Amicitia (9199), disserta sobre o prejuzo da simulao e da lisonja, armas predilectas dos aduladores, apresentando os exemplos histricos da sua perigosidade para a vida pblica e para a Repblica. Sobressai, da longa interveno de Llio, o mesmo argumento que iremos encontrar em Plutarco (97): a vtima da adulao o que j est predisposto para a lisonja fcil, o que simula ser virtuoso mas que, na verdade no o , em suma, o que tem uma imagem adulterada de si prprio, e que

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    assim se deixa, progressivamente, deformar ao aceitar interagir com os aduladores.

    No primeiro dos tratados sobressai ainda a franqueza a parresia como tema associado amizade: se o adulador imita, exagerando, as caractersticas da amizade, a ponto de imitar a franqueza tpica dos amigos, o que pode fazer o verdadeiro amigo para se distinguir? Ainda que parea prestar os mesmos servios, agradar da mesma forma, advertir e usar da franqueza (tudo isso o adulador faz com desmesura), distinguirse pelo sentido da oportunidade nas suas intervenes o kairos e pela constncia da sua presena, particularmente nos momentos de infortnio. Disposto a aconselhar, sem dvida, mas tambm a consolar, afagando uma alma sofrida, mesmo quando para tal forem necessrias omisses, silncios de convenincia, ou aquilo a que classificaramos hoje como mentiras piedosas. Estas proporcionaro, como um lenitivo, o conforto provisrio que permitir a um esprito desesperado reerguerse.

    nestas circunstncias que o adulador revela a sua verdadeira natureza, predadora por essncia: por oposio, usa da mais desbragada franqueza, acusando e humilhando quem acabou de tombar, denunciando a posteriori a verdade crua dos maus passos de que foi cmplice, por aco ou omisso, mas deles se distanciando quando uma advertncia teria sido to bemvinda no momento apropriado! em nada confortando, contribuindo apenas para o adensar do desespero. O adulador e o amigo distinguemse tambm por esta inverso de funes: na ventura, o amigo estar

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    l para advertir dos perigos e da necessidade de sensatez; o adulador, para inflar as velas do excesso de confiana. Na desventura, a troca de comportamentos revela dramaticamente e sem remdio, a verdadeira natureza dos que rodeiam o indivduo.

    Estas duas reflexes, a predisposio de certos caracteres para se tornarem alvo preferencial da adulao, e, a fcil confuso entre as manifestaes exteriores da amizade e da adulao quando se exclui o contexto que as suscitam o kairos conduzem o leitor a uma concluso fundamental: a chave para distinguir os dois perfis reside no conhecimento de si prprio, e no assumir de que a alma humana contraditria em si mesmo, complexamente incorporando uma pulso para o bem e o racional, e uma pulso para as paixes e o irracional (AD 20). Assim o amigo e o adulador se aproximam, estimulando um a nossa tendncia para o bem, o outro reforando as nossas cedncias ao irracional.

    Estamos, pela formulao de Plutarco, muito perto da concepo do daimon que influencia as decises conforme bom ou mau quanto sua natureza, e a um passo muito prximo de determinados elementos da angelogia e da demonologia crists das primeiras eras do cristianismo, fortemente influenciada pela misticismo filosfico caracterstico do helenismo do perodo romano. Tambm se torna fundamental uma reviso interior do carcter, um treino moral que torne incuos, ou neutralize, os aspectos menos nobres do carcter de cada indivduo: o orgulho, a clera, a vaidade, a superficialidade de linguagem. Essa autopurificao

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    tornar a pessoa mais capaz de, lucidamente, resistir aos ataques do adulador (2527).

    Um tema em grande destaque neste tratado o da franqueza no falar a parresia conceito aqui muito distante do valor que apresentara na Atenas democrtica, e tambm muito distante do que vir a ter na moral asctica crist. Entre estes dois mundos to afastados o sc. V a.C. e o cristianismo primitivo do sc. IIIIV Plutarco impese como testemunho de uma ponte evolutiva no conceito: a parresia , inicialmente, um conceito poltico associado ao uso da liberdade no falar entre cidados de igual estatuto, prpria do polites eleutheros, o cidado livre, na posse plena da isegoria como direito associado ao regime poltico da democracia. Neste contexto, a parresia um valor globalmente positivo, aplicvel esfera de actuao pblica do homem. No cristianismo, no entanto, particularmente no discurso asctico cristo, corresponde verborreia tagarelice vcio de carcter que perturba a paz interior3. Tratase de um termo da esfera privada e espiritual do indivduo.

    Plutarco apresentanos a parresia como um conceito ambivalente: o uso livre da palavra j no um direito poltico associado liberdade e igualdade proporcionadas por uma determinada forma de regime poltico. uma caracterstica neutra, que pode ser usada pelo indivduo nos seus relacionamentos sociais, quer pelo adulador quer pelo amigo. Falar abertamente, sem medo, pode ser um instrumento de insinuao

    3 Ver D. Pierre Miquel, Lexique du dsert, S. O. 44 Bellefontaine, 1986, pp. 219132 s. v. Parresia.

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    para o adulador (59 C, 60 C), utilizada para reforar o amorprprio ou para intensificar os vcios do adulado. O amigo tem uma responsabilidade acrescida no emprego da parresia: para esta ser positiva, deve ser ponderada com o kairos o momento oportuno . A sua utilidade resulta dos condicionamentos da sua motivao, objectivo e oportunidade do seu emprego. Tornase, portanto, um conceito relativo, empregue pelos aduladores em benefcio prprio, e pelos amigos, em diversas circunstncias, umas ajustadas e teis, outras despropositadas e inteis. Para ser benfica e til ao amigo, a parresia deve ser purificada (67 E), modelada convenincia e ao propsito, sob pena de, inclusivamente, prejudicar o que a emprega com boa inteno, se o indivduo alvo da parresia tiver o poder do seu lado. Estamos, portanto, longe da liberdade de expresso empregue entre indivduos que se reconheciam como iguais. A parresia, reduzida a qualidade social de dimenso privada, pode servir propsitos vis, se for deliberadamente empregue pelos aduladores, com o prejuzo claro do alvo da adulao, e ser inconvenientemente e de modo desastrado usada pelos amigos, atraindo sobre os que a empregam sem atenderem uma srie de dissabores inteis. Assistimos, portanto, singular evoluo de um conceito na mesma lngua, em que Plutarco surge a testemunhar um momento de transio.

    Como agir diante de um quadro socialmente to fludo? Plutarco no cessa de alertar para a necessidade de o indivduo estar atento, de observar os outros e os

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    contextos envolventes, mas sobretudo de se vigiar a si prprio (to fulattesthai), para no se ser levado por atitudes e acontecimentos imprevisveis. Sanciona, deste modo, a aprendizagem de um mtodo programado de interaco humana, estudado ao pormenor, optimizado pelo autoconhecimento e pelo autocontrolo, consciente do valor objectivo dos indivduos interagentes, e da importncia do que posto em causa, neste jogo social em que a mscara dos afectos o rosto que alcana ganhos concretos de prestgio, poder, influncia, proximidade com as elites, enfim, os modos de projectar do sucesso pessoal sobre os outros.

    O terceiro dos tratados, aqui apresentado Acerca do Nmero Excessivo de Amigos, mantm este tom de cepticismo na abordagem das relaes humanas, procurando desvendar os caminhos para a fruio benfica de uma amizade. Plutarco mantmse apostado em desmistificar as formas aparentes de amizade: tivemos a ilustrao do adulterar da sua qualidade no primeiro tratado. nos agora apresentada a distoro da amizade pelo factor da quantidade. A convenincia em ter um grande nmero de amigos tinha sido j posta em causa por Aristteles, na sua tica a Nicmaco4.

    O grande nmero de amigos conceito a que chamaremos segundo o neologismo polifilia no autoriza ningum a dizerse bem servido pela amizade. A desproporo numrica dos envolvidos, ou seja, uma multido de amigos em redor de um indivduo convertido

    4 Aristteles EN 9.10, 1171 a 1419.

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    em alvo, ter como resultado apenas uma aparncia de amizade. Para agravar o tom negativo e crtico de Plutarco, tal situao nem sequer poder ser classificada de neutra quanto s vantagens para o sujeito nela envolvido. que a multido de amigos rene o pior de dois mundos: no comporta os benefcios da amizade, e contm todos os malefcios especficos da sua corrupo.

    Na introduo do tpico a discutir, Plutarco previne o destinatrio para a estranheza do ponto em discusso. Este , quanto a ns, um argumento suplementar unidade de tema em relao ao tratado anterior: do ponto de vista retrico e estilstico, Plutarco parte de um tpico que coloca a sua argumentao em registo de desvantagem e de contradio quanto a um ponto de vista maioritrio. Permitenos tambm infirmar a tendncia para classificar este curto opsculo, de apenas nove captulos, como superficial e algo cho pela argumentao presente, legitimada por se tratar de uma composio seguramente produzida para uma leitura pblica, como se de uma conferncia se tratasse. De facto, o texto apresentasenos um Plutarco reflexivo, disposto a sustentar solidamente o seu ponto de vista, sem brechas nem excursos, retoricamente elaborado.

    Assim, mantmse o subtil jogo, com antecedentes na filosofia socrtica, o que neste tratado surge explicitamente assumido logo no incio (93 A), entre a verdade e as suas frgeis e enganadoras aparncias. Tal como Scrates desmontara as concepes errneas de Mnon o Tesslio, algum que confundira a virtude enquanto conceito com as suas mltiplas manifestaes

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    concretas, isoladas e at contraditrias, e que esta multiplicidade s expunha a ignorncia do visado quanto ao objecto da questo, Plutarco levanta o dilema: no correremos o grande risco de, no estando seguros quanto natureza de um amigo (em confronto com a virtude, referida por Scrates), cairmos involuntariamente nos enleios de uma multido de amigos? (em contraponto com as manifestaes casusticas da virtude, expostas na rplica de Scrates). Mas, se porventura no estivermos seguros de ter um amigo que seja, no ser esta uma questo intil, tal como o homem cego e maneta, que teme o infortnio de se transformar em monstros de mltiplos braos e olhos?

    Apoiado na autoridade argumentativa de Scrates, Plutarco no s nega esta premissa, que se mostra intacta na sua aparncia de verdade, como expe os argumentos que a permitiriam reforar, tomando para si a funo do contraditrio. Termina o primeiro captulo encerrando a chave por que vai pautar todo o seu discurso, todo ele sustentado na exposio da amizade eticamente fundamentada: maravilhoso poder afirmarse, como Menandro o faz, que se tem a sombra de um s amigo, e que considerar o nmero de amigos que se diz ter uma vantagem em si mesmo um erro que merece ser desmontado, no pela falsidade e engano neste radicados, mas sobretudo pela perigosidade que os efeitos prticos desta crena podem aportar vida de um homem pblico.

    Muitos amigos tornam o indivduo desatento e superficial: a capacidade de julgar novas amizades fica

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    comprometida e o desassossego permanente (93 C). Tal como, na natureza, o rio que corre para a foz, se divide em braos cada vez menos caudalosos e menos fluentes; tal como o animal que gera uma ninhada menos generoso nos seus cuidados parentais do que o animal que tem uma cria de cada vez, assim a amizade, dividida por muitos, enfraquece na sua intensidade (93 F). Plutarco no reconhece ao enxame de amigos vantagem alguma, na medida em que ocupam o espao que deveria estar reservado potencialmente aos genuinamente amigos, pelo que contribuem, pelo menos, para um saldo nulo na qualidade das relaes que o homem virtuoso pode desenvolver. Em suma, tratase de relaes que, reduzidas ao seu impacto mnimo, se tornam irrelevantes (a polifilia no seu grau mais tnue) e, ampliado o seu potencial destrutivo, podem revelarse catastrficas (o exemplo o dos aduladores que desertam, ao menor sinal de desventura (cf. 94 A).

    Postulada novamente a teoria aristotlica de EN 1156a1156b) acerca dos trs requisitos para a amizade verdadeira, a saber, a virtude (arete), a intimidade (sunetheia) e a utilidade (chreia) Plutarco recomenda o discernimento (he krisis), o avaliar justo e com tempo (dokimasai), prvio ao acto de aceitar um amigo (94 BC), pois s este procedimento permitir que os bens da amizade floresam, cada um na sua escala especfica, respectivamente, na elevao do carcter (to kalon); no deleite colhido ao longo da proximidade (to hedu); na satisfao prtica de aspectos necessrios (to anankaion). Uma multido de amigos priva o indivduo deste

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    escrutnio, restandolhe uma massa informe e inorgnica de conhecidos, sem vantagem evidente.

    Neste ponto, Plutarco aflora a teoria acerca da natureza dos grupos humanos, que, na sua perspectiva, est dependente de uma certa harmonizao das diferentes qualidades exibidas pelos indivduos que constituem um grupo (94 C D). Num curto espao de tempo, e rodeado de tanta gente, ningum pode avaliar com clareza quem tem talento para integrar um coro, quem pode ser acrobata, quem tem qualidades para ser um bom mordomo, ou um bom pedagogo, nem sequer as consegue seleccionar um grupo de amigos capazes de serem aliados para os combates proporcionados pela fortuna. Assim, a massa de indivduos pode reunir, no seu conjunto, as qualidades individualmente requeridas a uma corte harmoniosa de amigos, mas pode ter falhado a avaliao individual dos mesmos que asseguraria uma coeso funcional ao colectivo que, por falncia de um exerccio de discernimento do interessado, se revela uma soma disfuncional de partes, e no um organismo coerente harmonizado de acordo com os interesses a serem assegurados pelo senhor. Na hora devida, no se realizar a conjugao de personalidades e a fuso de benevolncias que tornar a amizade virtuosa, agradvel e til (95 B). Estamos, como evidente, dentro da fria linguagem, acessvel mentalidade contempornea, da optimizao dos benefcios colhidos nas relaes sociais, tendo em vista o seu contributo para o bem estar individual5.

    5 O mesmo tipo de argumentao quanto complexidade

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    Os exemplos referidos parecemnos no s deliberados como visarem um determinado perfil de indivduo destinatrio para este tipo de aconselhamentos: algum que exerce responsabilidades cvicas e polticas nas pleis provinciais do imprio romano, de administrao, em larga medida, descentralizada, conservando portanto intactas os mecanismos de gerao das elites urbanas prprias do mundo helenstico: por isso, algum que tem, por sua conta, a organizao de festivais religiosos e artsticos, que gere um squito de indivduos profissionalizados num saber especfico, (mordomo, pedagogo) e que, de algum modo, projecta o seu sucesso pessoal e a sua influncia atravs do grupo de amigos que o rodeiam.

    Tambm em 95 C, Plutarco circunstancializa o perfil do destinatrio do seu discurso, a propsito da incapacidade que este tem em ser prestvel aos amigos se estes forem numerosos: um que quer viajar pede companhia, outro solicitao como testemunha num processo judicial, vem fulano que demanda que com ele julguemos uma causa, e mais um que o auxiliemos em negcios de compra e venda, ou que com ele celebremos os rituais propiciatrios do seu casamento, que o acompanhemos num funeral. Os interesses assumidos por este perfil so de ndole privada, mas claramente urbanos, e prprios de um indivduo activo, politicamente, economicamente e socialmente, no seu

    dos grupos humanos e sua ordem interna que no se esgota na justaposio das partes e na soma das suas qualidades internas pode ser encontrado em Coniugalia Praecepta, III, 34 (pp. 322324), neste caso aplicado ao grupo humano constitudo pelo casal.

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    meio6. No havendo o dom da ubiquidade, tornase antiptico o amigo que hierarquiza as solicitaes dos amigos. Claro, podem sempre utilizarse as mentiras piedosas dos descuidos ou esquecimentos. Mas cultivar o ressentimento e o cime aquele que confessar no ter visitado o amigo com febre porque assistia um outro num banquete. Afinal, o que hierarquizar? As solicitaes dos amigos, ou a profundidade dos afectos? Plutarco no traa, portanto, os seus aconselhamentos visando um ideal humano abstracto, mas sim um destinatrio concreto, sociologicamente e historicamente plausvel.

    Plutarco retoma neste opsculo a importncia do factor tempo como elemento escrutinador e modelador das amizades (94 F95 C). A irrequietude e o imediatismo que rodeiam quem tem multides de amigos so adversas ao aprofundamento das relaes, e assim se perde o prazer da convivncia prxima e prolongada que gera a intimidade. No momento das adversidades, esses superficiais contactos, ainda que numerosos, com naturalidade se dispersaro em mltiplos e no coincidentes interesses, deixando s quem se julgara escudado em slidas amizades.

    Alm de uma amizade trada pela desateno ou negligncia se transformar na mais amarga e perigosa das inimizades (pois que o agora inimigo sabe de ns aquilo que a um inimigo declarado muito custaria a obter (94

    6 Estes conselhos no visam, portanto, o intelectual, o filsofo, o sbio, e sim o homem ocupado pelas mltiplas solicitaes do dia a dia, e que agradece uma orientao benfica para nelas no tropear.

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    D), acresce o perigoso efeito de contgio, quando so perturbadas as relaes entre amigos. O nmero potencia o risco, pois tornase impossvel escapar inclume aos juzos a que outrem sujeitou os nossos amigos. O exemplo trazido por Plutarco inatacvel. Alexandre condenou tortura e morte os amigos e familiares de Parmnio e Filotas (membros do seu crculo chegado de relaes), Dionsio, Nero, Tibrio, contamse entre os dspotas que estenderam com crueldade o castigo aos amigos dos alvos dos seus rancores. Ou seja, esta multido de amigos, sem nada beneficiar da proximidade com o poder, pereceu quando a roda da fortuna girou contra o objecto dos seus afectos (96 C D). Isto passase com mais frequncia, precisamente, com os homens de elevado carcter, que coerentemente no se afastam dos amigos em dificuldades e perecem dos males avassaladores que se tornam comuns. Assim, a peste da Atenas, segundo Tucdides, vitimou os mais solcitos e generosos, que, ao acudirem os seus amigos, ficavam contagiados pela doena (96 D).

    Plutarco adopta um ponto de vista pragmtico: qual foi o factor de perturbao nos exemplos referidos? A amizade fundamentase na reciprocidade, ou seja, devem ser acolhidos como amigos os que esto altura de retribuir em afecto, em companhia, em prestabilidade; na semelhana (homoiotes) e harmonia de personalidades, de sentimentos, de modos de vida, o que no obriga homogeneidade, mas sim complementaridade. Assim a amizade, tal como a msica polifnica, desenvolvese dentro da harmonizao das partes,

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    individualmente consistentes, virtuosas, sabedoras da sua funo especfica para fazer funcionar a estrutura grupal em que cada um se insere, que assim deixa de ser uma massa amorfa que soma indivduos, ou sons, para ser uma s alma, dividida em mltiplos corpos (96 D). Ora, esses elementos encontramse perturbados partida: a relao de poder desigual entre os prncipes evocados e as suas cortes no permitia classificarse, luz da teoria aristotlica da amizade, como geradora do circuito recproco de benefcios prprios qualidade do afecto em causa. Em ltima instncia, entre os vitimados pela peste de Atenas, terseia estabelecido a desigualdade entre os saudveis e os contaminados. Usado como exemplo, Plutarco procurou ilustrar, com a apresentao de uma situao de contornos anlogos, os efeitos perniciosos do contgio, logo, da perigosidade de uma amizade ferida pela desconfiana, pelo rancor, ou to simplesmente pela desigualdade de estatutos entre os que se tomam por amigos.

    A concluso deste opsculo converge com a mensagem deixada no final do primeiro tratado apresentado, Como Distinguir um Adulador de um Amigo. Acima de tudo, o indivduo deve adquirir, para si, um carcter constante e slido. E se o fizer, no dispor, naturalmente, da apetncia pela diversidade confusa do acomodar multides de amigos. Esses mesmos traos de carcter deve escrutinar naqueles que pretende tomar por amigos, e s esses, ainda que poucos, valero a pena.

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    Como Retirar Benefcio dos Inimigos, o segundo dos tratados aqui apresentado, um caso distinto dos anteriormente comentados.

    Do ponto de vista formal, um texto que apresenta um destinatrio explcito, Cornlio Pulcro, governador romano na Acaia, poltico que assumira para leitura de bolso os Preceitos de Governao do Queronense. A relao entre eles seria, portanto, suficientemente prxima para Plutarco lhe dirigir uma espcie de acrescento ao texto primeiramente citado, passado escrita depois de ter sido tema de uma conferncia. uma obra manipulada para responder s necessidades de escrutnio de um homem de Estado como Cornlio Pulcro, e por isso assume o compositor o compromisso de omitir as consideraes j feitas nos Preceitos de Governao.

    Este singular tratado parte de um pressuposto sustido at ao fim e que , de algum modo, estranho aos discursos morais contemporneos. O ponto de vista de Plutarco o de que um inimigo ser sempre inimigo, no est em causa a sua neutralizao, ou reabilitao noutra categoria porventura menos nociva. Aceitese, portanto a hostilidade de outrem como uma realidade adquirida, e procurese beneficiar com ela.

    A introduo da obra est construda com a mesma tcnica retrica da anlise do contraditrio dos anteriores tratados. Com esta, ressaltase obviamente o interesse do leitor pela argumentao do tratadista, que lana sobre si prprio o desafio de provar uma tese que contraria o senso comum e os juzos maioritrios: como pode um inimigo ser til? Como pode a negao

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    da amizade trazer benefcios quele que, em princpio, s pode ser por ela vitimado (86 DE)?

    Mas este modo de pensar deve ser questionado, por uma srie de razes: em primeiro lugar (argumento de autoridade), Xenofonte j defendera que os homens sensatos devem saber beneficiar dos inimigos. Depois (argumento da necessidade), j que impossvel a um homem pblico no atrair inimizades, h que encontrar a melhor forma de contornar este incmodo. Finalmente, saber lidar com os inimigos e da tirar proveito resulta de um treino, da aplicao de um mtodo que s enriquece quem o pratica. Novamente os argumentos de reforo ao desafio das posies assumidas passam, alm da evocao das autoridades (Plato, Scrates, Xenofonte), tambm pela evocao de situaes paralelas no mundo natural. A natureza, animal e vegetal, selvagem e indmita, serve os homens de mltiplos modos, graas ao conhecimento e habilidade acumuladas ao longo da evoluo da espcie no caminho da civilizao. As feras hostis ao homem fornecemlhe a sua pele, a sua carne, delas se extrai substncias medicamentosas; s rvores que no produzem fruto comestvel, o agricultor concede outros fins. A prpria gua do mar, impossvel de beber, habitat dos peixes e recurso imprescindvel ao movimento de cargas e de passageiros. A natureza vem mostrar que a realidade complexamente composta de aspectos positivos e negativos, e cabe ao homem, para seu proveito, distinguir e usar os primeiros, neutralizando os segundos.

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    Em primeiro lugar, a adversidade pode, por si s, constituir um perodo de retempero para o sujeito: aproveitase a ocasio da doena para dar descanso ao corpo (87 A); a perda dos bens e o exlio trazem com eles o convite mudana radical do modo de vida, um convite meditao e filosofia7.

    Mas a existncia e a aco do inimigo podem ser benficas para a edificao de um indivduo. Em que medida? (87 B 89 A). O echtros vigia atentamente todos os passos do alvo do seu dio, procurando fragilidades, negligncias, descuidos ou mesmo projectos que possa condicionar ou comprometer. Desta forma, a existncia de inimigos impem uma disciplina de carcter rigorosa, uma conduta irrepreensvel; um controlo sobre as emoes, um propsito de vida equilibrado e inatacvel. O treino do esprito na autoconteno, na sobriedade e na reflexo atempada formam, pelo hbito, um carcter robusto e capaz de uma conduta pblica irrepreensvel. A conscincia de que se est sob o olhar vigilante de um inimigo deve ser, portanto, um estmulo para o

    7 Os exemplos de renncia, motivados por circunstncias externas evocados por Plutarco, Crates, Digenes e Zeno, tiveram eco na literatura latina: Ccero comps as Tusculanas num assumido momento de retirada, no inteiramente voluntria, da vida pblica. Tambm Sneca, no De Tranquilitate Animi III, defende para o sbio o afastamento das tribulaes que a proximidade com o poder sempre atraem. Tambm no cristianismo encontramos a renncia aos bens e ao conforto do espao conhecido, voluntrio ou involuntrio (xenitheia, patridos steresis) como uma oportunidade para alcanar a tranquilidade asctica (e.g. S. Jernimo, em Ep. 23 A Marcela, 54 A Fria; 108, Elogio fnebre a Santa Paula, cartas em que defende e descreve a radical entrega vida asctica aps a provao da viuvez, da perda de um filho, ou da perda das riquezas).

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    cultivo de uma imagem pblica irrepreensvel. Faz parte da natureza humana o empenharse mais aturadamente quando sabe que est a ser avaliada, ou que atravessa uma competio. A ausncia de obstculos pode, portanto, ser ela prpria causadora do desleixo, da acomodao, da falta de brio.

    Comentese que, nesta etapa do discurso, todos os termos apontam para a ausncia de transformao do carcter ntimo, da verdadeira personalidade, nessa espcie de coreografia social an kai mikron ho logos sunepilambanetai por pouco que o esprito esteja envolvido (87 C). Parece estar apenas em causa a proteco daquilo a que chamaramos a imagem pblica, a conduta e o bom nome (87 f antagonisten biou kai doxes ton echtron onta o inimigo um obstculo vida e ao bom nome. A vergonha diante dos erros um fardo mais pesado de suportar diante dos inimigos do que diante dos amigos.

    Neste conceito, Plutarco recupera muito da cultura da vergonha e do mrito prpria da tica homrica, ou seja, o valor de um agathos lhe conferido pelo reconhecimento devolvido pelos seus pares. Desta forma, se a pessoa der mostras de respeitabilidade, sensatez, justia e disciplina, no s calar no inimigo a censura e a crtica ostensiva, como o deixar perturbado, pela impossibilidade de desferir um ataque.

    Mas os argumentos tornamse progressivamente mais profundos.

    No delicado momento de censurar um inimigo, necessrio estarse seguro de que no se sofre dos

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    males que se expem no inimigo (88 D). Isso obriga a um exerccio de autoconhecimento, de reflexo e, sobretudo, de esforo para eliminar as falhas de carcter encontradas. Exemplos histricos desse agir irreflectido, em rpidas tiradas eivadas da ironia prpria do anedotrio, que critica nos outros aquilo que mancha o carcter do prprio acusador, so por Plutarco includos no seu discurso como elementos de ilustrao. Mas pode cairse no oposto, que o de criticar no outro um defeito distinto, mas no menos grave, do que aquele que em ns est patente (88 F89 A). E um novo ciclo de exemplos, risveis de facto, ilustra a falta de sensatez do que pensa que ataca um inimigo ao esgrimir contra ele, em pblico, falhas de carcter facilmente arremessveis, e intensificadas, a si prprio. Plutarco est, portanto, contra qualquer confronto em pblico. A voz sonante no derrota um inimigo. O que o deita por terra a nobreza de carcter (89 B).

    Neste crescendo de etapas sobre como enfrentar o inimigo, chega finalmente a fase do confronto verbal: criticar um inimigo exige, da parte de quem critica, a segurana que resulta do autoconhecimento. Ouvir crticas dos inimigos torna o indivduo mais alerta para os erros que escaparam autoanlise, pelo que os adversrios so to teis para a edificao de um carcter slido como os amigos. Ouvida uma crtica, mesmo que parea infundada, no deve o indivduo ceder paixo de dar o troco com as acusaes que se tiver mo (88 D). O resultado comparvel a uma luta na poeira e na lama, da qual no h vencedores, apenas lutadores

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    enlameados e o gudio da multido. Pelo contrrio, uma acusao falsa deve despertar no seu alvo o propsito de vigilncia e de pesquisa sobre as causas da informao errada.

    Novamente Plutarco cede exemplos de personalidades histricas a quem uma falsa imputao de carcter prejudicou: Lcides, Rei dos Argivos, Pompeu, Crasso, Postmia e Temstocles, todos inocentes dos boatos e acusaes que lhes foram levantados, mas que erraram ao no modificar o comportamento que esteve na origem da credibilidade que foi concedida a tais acusaes. Desta forma, h que protegerse dos defeitos de carcter, mas tambm daqueles traos que, no sendo defeitos, podem projectar nos outros uma iluso deformada da nossa conduta. Por isso no se deve desvalorizar o que parecer incoerente ou excessivo da boca dos inimigos, pois so estes que melhor pressentem e expem as nossas fragilidades, ao passo que os amigos e familiares, at pela convivncia que tm connosco, apresentam, em comparao, uma viso subjectiva (90 B).

    O destinatrio deste opsculo deve valorizar, sobretudo, o silncio (glottan enkrateia, he sige 90 BC), pois, nestas circunstncias, o confronto verbal veculo das piores paixes, entre elas a ira. A impassibilidade (hesychia) diante dos insultos e das acusaes, mesmo quando partem dos que so prximos (amigo, irmo, esposa, pai, me), constitui um bom exerccio para o fortalecimento de um carcter imperturbvel (athumon). Mas melhor que esta experincia de dessensibilizao e

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    do alcanar da tranquilidade (hesychia) ocorra junto de inimigos e de estranhos (90 E).

    Tambm no prprio de uma alma elevada procurar vingarse de um inimigo. Ser generoso com um amigo confere algum mrito, mas este indubitavelmente ampliado quando este amigo atravessa dificuldades, altura em que sumamente vergonhoso no o apoiar. Agora a um inimigo, a suprema grandeza de alma est em, vendoo cado, no contribuir para as circunstncias da queda e, vendoo em bonana, no se eximir de elogilo. Deste modo, toda a censura que for feita posteriormente ao inimigo credvel, porque no motivada pelo dio ao homem, nem tendenciosa, mas porque se lhe reprovam os actos (91 A). O hbito de louvar os inimigos tambm promove uma alma livre de cime e de inveja, paixes negativas que roubam a impassibilidade (91 B).

    O fulcro da questo no deve ser posto no nosso adversrio e no seu destino, que nos devem ser alheios. O que est em causa o modelo ticomoral adoptado pelo indivduo, e de que modo este pode ser afectado por uma prtica social defeituosa. que deixar que se desenvolvam paixes nocivas (ira, inveja, dio, cime, malcia, engano, intriga) na alma, uma vez instaladas, tornase difcil no fazer do seu uso um hbito, mesmo contra os amigos. O inimigo, por fornecer condies passionais extremas, fornece uma boa ocasio de treinar e de acostumar os sentimentos e os comportamentos correctos que devem ser tido em relao aos amigos. Se formos bondosos e justos com os inimigos, alm

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    de os deixarmos sem resposta, com mais facilidade manifestaremos uma boa ndole para com familiares e amigos.

    Na impossibilidade de os eliminar por completo, a existncia de inimigos permite que sobre eles sejam concentrados os sentimentos negativos, libertando a alma e a boa disposio para os verdadeiramente amigos (92 B). Observar o sucesso dos inimigos, analisar objectivamente o modo como alcanaram os seus objectivos, so tambm boas frmulas para aprender com as suas virtudes e empenho, ao invs de se deixar consumir pelo rancor e por um (92 C D) juzo deformado sobre a verdade dos acontecimentos.

    Pelo contrrio, se o inimigo colheu o sucesso custa de desonestidades (92 D) tal deve manter o indivduo imperturbvel, e mesmo deixlo alegre, pela liberdade, pela reputao e conduta inatacveis de que goza.

    Termina Plutarco por salvaguardar, no confronto com os inimigos, a importncia da virtude e da honestidade de carcter, que so mais valiosas do que todo o sucesso fugaz junto dos poderosos, a riqueza granjeada por meios duvidosos, a aclamao pblica e a notoriedade nascidas de um comportamento excessivo. Assim, sempre que os inimigos giram na roda da fortuna das inconstantes relaes sociais, que cada um seja capaz de, objectivamente, colher o melhor ensinamento: protegendose dos fracassos, ser melhor do que os adversrios, e tomandoos como exemplos para os sucessos, se possa ultrapasslos (92 EF).

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    2. Contextualizao scio-cultural da produo plutarqueana sobre a amizade

    Questo interessante a de percebermos se estes discursos sobre a amizade pretendem deliberadamente reflectir a sociedade contempornea de Plutarco, ou se correspondem da sua parte a um exerccio mais formalizado de expresso de pontos de vista pessoais, tendo como ponto de partida a sua vasta erudio literria.

    Plutarco um observador atento da realidade social do seu tempo, e portanto atribumos a estes tratados uma capacidade de ler o ambiente que envolve os participantes na comunicao literria destes discursos.

    A presena explcita de dois destinatrios directos Antoco Filopapo, patrono das artes, feito cnsul sufecto em 109 pelo Imperador Trajano, descendente sem trono dos reis de Comagena a residir em Atenas (AD) e Cornlio Pulcro, Procurador da provncia romana da Acaia (IC) a quem Plutarco se dirige com aconselhamentos prticos sobre a gesto das suas amizades, indicia uma ligao preliminar realidade social que circunda estas personalidades.

    J denuncimos, na anlise prvia que fizemos das trs obras, um certo cepticismo na focalizao plutarqueana. No se trata, para o autor, de definir amizade, mas sim de pr de guarda um determinado perfil humano quanto perigosidade das suas falsificaes (AD, AM) e de o ajudar a preparar uma alternativa proveitosa quando a amizade no est de todo presente (IC). Haver, portanto, um certo realismo na abordagem

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    desta matria to delicada como a da qualidade das relaes interpessoais.

    Acresce o facto de Plutarco lidar com as fontes literrias que cita de um modo amplamente crtico e selectivo: no lhe serve o retrato que a comdia emprestou ao perfil do adulador, que mal se distingue do parasita8. Amiudamente discorda de Eurpides (AD, 109 E; 71 A; AM, 95 E), e, pelo menos uma vez, critica Grgias (AD 64 C) e do que lhe parecem ser os pontos de vista ingnuos e superficiais proporcionados pela sofstica. Na verdade, Plutarco colocase em contracorrente em relao ao relativismo tico, sustentado pelo domnio da retrica como receita para o sucesso individual.

    Enquanto cultor do Platonismo Mdio, nenhum filsofo lhe merece tanto apreo como Plato e a sua personagem maior que Scrates, e Xenofonte. Aristteles, e a sua teorizao acerca da amizade feita na tica a Nicmaco (1156 A 1156 B) esto sempre presentes enquanto frmula bsica a partir da qual se definem as tipologias de noamizade (e. g. AD 51 B; AM 94 B), mas, curiosamente, o Estagirita s surge explicitamente referenciado uma vez (AD 53 D), e num contexto que no o liga fenomenologia da amizade.

    Plutarco parece tambm admirar os sbios e filsofos que adoptaram, na conduo da sua vida, atitudes correctas, quer quanto a si prprios, quer no seu relacionamento com os outros, e citaos como exemplos, quer pelos seus actos quer pelas suas palavras: Antstenes, Digenes, Bon de Boristena, Crates, Cleantes, Fcion,

    8 Ver Infra, p. 6.

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    Demtrio de Falron (ou de Alexandria) Zeno, Carnades9.

    H, contudo, que reconhecer, na realidade explicitamente comentada e contextualizada, um desfasamento de tempo e de espao entre as referncias literrias, filosficas e polticas usadas por Plutarco, e o imprio romano do sc. II que lhe contemporneo. Estas escolhas remetemnos para o mundo grego de h cinco sculos, distncia que aumenta quando pensamos no caso especfico das referncias literrias, (Homero autor mais citado, seguido, a curta distncia, pelos tragedigrafos) tal como pertencem tambm ao mundo helenstico psAlexandrino a maioria dos exemplos de teor poltico: para alm da figura nuclear de Alexandre, a gerao dos didocos e dos strapas que fornecem o ambiente das suas cortes e dos seus palcios como matria para os exemplos referidos por Plutarco, prncipes, tiranos e reis das cidades helensticas psalexandrinas. Secundariamente mencionamse os romanos do perodo do final da Repblica: Cato, Csar, Pompeu, Ccero, Antnio. O mais tardio dos romanos a ser mencionado Nero, em circunstncias pouco nobilitantes.

    Como entender este desfasamento, num contexto em que Plutarco, ignorando o presente, procurava fundar valores morais para o quotidiano numa histria remota? No nosso entender, o distanciamento temporal

    9 Cynicism, New Paulys Encyclopaedia of the Ancient World, (Brills, 10521060), p. 1053, a lista dos representantes do movimento cnico, Segundo Digenes Larcio. The legacy of Socrates in W. K. C. Guthrie, A History of Greek philosophy, III (Cambridge, 1969, pp. 485499).

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    cumpre um objectivo, isto , exerce uma funo, na economia do discurso plutarqueano.

    Em primeiro lugar, Plutarco manipula as informaes que foram j alvo de sedimentao, e que pertencem a um patrimnio comum do mundo antigo grecoromano, de matriz cultural essencialmente helenstica, para, de algum modo, se concentrar no conhecimento e na interpretao que podem ser decantados dessa informao. Faz, deste modo, justia ao profundo sentimento de unidade cultural realizado pela sntese grecoromana da fase mais luminosa do imprio. Acrescentemos a ndole de Plutarco, que prima pela discrio, no evitar de menes directas a situaes concretas do seu tempo. Essa ligao, a ser feita, teria de ser estabelecida pelo leitor.

    Mas parecenos evidente que nestes tratados perpassa, nas escolhas feitas, uma interpretao da histria poltica do povo a que pertence, como afirmou Ricardo Martnez Lacy10. A quase totalidade dos exemplos polticos integrados nestes tratados pertence ao munus presente tambm nas Vidas, havendo, portanto, uma orientao ideolgica: os reinos helensticos constituram uma degenerao

    10 R. Martnez lacy, La poca Helenstica en Plutarco, Italo Gallo e Barbara Scardigli eds. (Npoles, 1996), pp. 221225, p. 223 cit:Plutarco contribuy decivamente a la conformacin de una visin armniosa de la historia de la antigedad clsica segn la qual Roma no conquist y anex Grecia, sino que, mediante su virtud, cre un marco propicio para el desarrollo de la civilizacin, considerata griega por antonomasia. En esta visin, los reinos helensticos aparecen como degeneraciones de los reinados gloriosos de Filipo y Alexandro, opresores de los griegos

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    orientalizada (Martnez Lacy, op. cit., p. 224) no plano moral, cultural e poltico.

    Os tratados sobre a amizade apresentam explicitamente um destinatrio: o homem com responsabilidades de Estado (Cornlio Pulcro, IC) ou aquele que, no as tendo, tido como uma figura de referncia na cidade que o acolhe (Antoco Filopapo, AM). So estes os alvos preferenciais dos efeitos perniciosos das deformaes a que a amizade est sujeita e Plutarco no cessa de apresentar exemplos de como o exerccio poltico, o discernimento, a justia e a liberdade de aco foram, no passado, afectados por esses males.

    A mensagem contm, no nosso entender, bvios contornos polticos: entre as elites urbanas das cidades provinciais do Imprio Romano no Oriente, com uma administrao e um governo de modelos descentralizados, prprios de territrios pacificados, eram em grande parte mantidos os rituais, os comportamentos, os modos de vida da poca Helenstica, o que valida, para o presente, os juzos feitos sobre um passado em muito semelhante ao presente.

    possvel, por outro lado, rastrear pontos do discurso em que nos parece ser claro o juzo subtil de Plutarco sobre um presente que lhe no merece admirao, como fomos assinalando na anlise introdutria aos tratados e nas notas traduo (e. g. AD, 56 C, quanto falsificao do sentido das palavras, citando Tucdides; IC 92 E, quando refere o valor relativo das aclamaes no teatro, dos banquetes, de acompanhar os eunucos, concubinas ou strapas que servem os reis).

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    Plutarco est consciente que escreve para uma elite que exerce o poder, real ou simblico. Por isso, informa que o adulador no afecta o pobre, ou o annimo, mas pode tornarse um risco para as grandes casas e grandes negcios, alm de subverter reinos e principados (AD 48 C); e concede que um grande nmero de conhecidos no implica que se beneficie de uma amizade de qualidade: tratamse, portanto, de orientaes dadas a quem ocupa o centro de uma moldura humana complexa, marcada por relaes de desigualdade e de hierarquia. Pode sobrevir a adversidade de um inimigo, sempre uma provao para um homem que tem uma imagem pblica a defender. Como orientarse entre sinais enganadores e contraditrios, num ambiente instvel em que se jogava no s a reputao, mas tambm os afectos e a prpria vida? Plutarco prope que a soluo para distinguir os amigos passa por um exerccio prvio de reflexo, autoconhecimento, e perfeita conscincia dos propsitos assumidos, na vida pblica e na vida privada.

    3. A orientao filosfica de Plutarco

    Plutarco lidou, enquanto autor, com as fontes filosficas mais diversas, e podemos classificlo como um autor ecltico no domnio das suas leituras filosficas, facto a que no ser alheia a multiplicidade de temas por si abordados, desde aos estritamente fsicos, aos metafsicos, sociolgicos, pedaggicos e artsticos.

    Nestes opsculos, bem como em outros agrupados nos Moralia, Plutarco d conta do interesse em

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    acompanhar o homem na sua integrao social. Embora o ponto de vista do autor parta dos escolhos que podem atrapalhar ou comprometer a amizade, tomemos em considerao que esta no aparece como um fim em si mesmo, mas como um veculo para tornar o indivduo melhor e mais feliz, expurgado a perturbao e agitao motivadas pelas falsificaes da amizade11. Plutarco faz, assim, um convite ao homem pblico a que adopte para si uma disciplina e um mtodo de avaliao, de si prprio e dos outros, que o torne mais sbio, e mais capaz de conduzir uma vida sem tribulaes.

    O conhecimento da verdade quanto realidade envolvente e quanto ao carcter dos que nos rodeiam, isto , o juzo sobre a verdade e suas iluses, uma questo filosfica que perpassa os textos aqui trazidos, e parecenos claro, neste ponto, reconhecer a influncia da filosofia tica de matriz socrtica, a que se associam, em Plutarco, as fortes crticas ao relativismo, ao desvio e s iluses quanto essncia da amizade12, que um conceito absoluto. H, como claro na expressa admirao pela filosofia desenvolvida pelos discpulos de Scrates (Plato, Xenofonte, Aristteles), uma forte aproximao origem socrtica, concretamente pelo recurso aos fundamentos conceptuais nela sustentados pela tica

    11 E. L. Shields Plutarch and the Tranquillity of Mind CW, 42, 15 (1949), pp. 229234, p. 232.

    12 Susan Prince Socrates, Antisthenes, and the Cynics, S. AhbelRappe and R. Kamtekar eds. A Companion to Socrates (Blackwell, 2006) pp. 75. No h, portanto, em Plutarco, nenhuma simpatia pelo relativismo sofsta.

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    aristotlica, verdadeiros esteios em torno do qual Plutarco constri a sua argumentao.

    No entanto, a finalidade da sua escrita eminentemente pragmtica e dirigida ao indivduo. Visa agir sobre a conduta (he diaita) dos indivduos enquanto parte de um todo social, com a finalidade de lhe proporcionar a felicidade que decorre de um carcter treinado na virtude, consciente da sua natureza, em qualidades e defeitos, e capaz de exercer um discernimento claro quanto a situaes ou indivduos terceiros. Embora Plutarco refira o bem comum e a interveno benfica do homem virtuoso na sociedade que o rodeia13, e particularmente nos amigos e nas relaes sociais que o envolvem, pensamos que estes bens, objectivamente considerados, so externalidades que resultam de um prvio aperfeioamento do indivduo. Este tornase til para o grupo porque reuniu as caractersticas que o tornam um sbio, capaz de examinar (exetazein) a sua vida, de discernir e de avaliar o que o envolve e quem o envolve, de garantir a felicidade que resulta de um processo de conhecimento14.

    13 W. K. Guthrie, op. cit., vol. III, p. 487. Diz o autor que o legado de Scrates, exposto na variedade de correntes filosficas nele inspirados, pretendem responder a uma questo que o Filsofo deixou sem resposta: o bem (to agathon), para qu? cit. in one way, then, the aim of Socrates immediate followers and their scools was to give content to te good which he had set them to seek, but himself left undetermined

    14 Richard Kraut, The Examined Life, (ibid. ) 228241. Plato, Apologia de Scrates, 38a56, vide o significado do termo exetazein testar, experimentar para a tica socrtica. Destaquemos a importncia que os termos que tm a ver com a semntica do examinar apresentam no discurso plutarqueano (ver ndice de

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    neste aspecto que nos parece detectar a presena de uma outra linha filosfica descendente de Scrates. De facto, a tica aristotlica anuncia que, ainda que o bem seja o mesmo para o indivduo e para a cidade, o bem colectivo sempre maior, mais completo, mais perfeito, mais abenoado15. Em Plutarco, este binmio aparece, tal como o descrevemos, mas com a ordem de factores invertidos.

    O Cinismo no pode, no dizer dos entendidos, classificarse como uma escola filosfica, na medida em que os seus cultores foram avessos formao de um corpo doutrinrio sistemtico, pelo que a maior parte da informao sobre os Cnicos vem de testemunhos terceiros. Mas os seus protagonistas foram figuras to controversas como populares, em particular em duas alturas distintas da histria do mundo antigo: os dois sculos iniciais da poca Helenstica (IVIII a. C., o Cinismo Antigo); e o perodo imperial romano (IV d.C., o Cinismo Imperial)16.

    Algumas das personalidades do Cinismo Antigo esto referidas nestes tratados de Plutarco, em regra elogiados pelo bom exemplo de conduta. Para os Cnicos, a virtude e o bem estavam para alm da conceptualizao, pelo que s a sua prtica podia tornarse pedaggica. Teramos aquilo a que se pode chamar uma filosofia

    palavraschave). 15 Rhet. 1356a2627 W. K. Guthrie, op. cit. vol VI, p. 331;

    p. 336 cit ethical training is the indispensable foundation for political life, or rather perhaps for citizenship..

    16 Cynicism, New Paulys Encyclopaedia of the Ancient World, (Brills,) p. 1054.

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    de situao17. O bem realizase concretamente, a virtude manifestase por actos em contexto. Tal como nos Cnicos, Plutarco tambm descura uma teorizao prpria, preferindo um discurso exemplstico, que mostra e ilustra o seu entendimento dos conceitos discutidos, atravs de uma evoluo casustica.

    Temos, depois, a resposta questo socrtica, que, segundo Guthrie, ficou por responder pela filosofia dos scs. V e IV. Para que serve o bem? Plutarco adopta, em resposta, uma focalizao profundamente individualista e concreta: o indivduo bom e feliz pode derramar sobre a comunidade os benefcios que resultam do seu aperfeioamento individual, mas este que deve ser o objectivo de qualquer treino de carcter.

    Outros traos nos apontam o Cinismo como influncia filosfica implcita dominante nestes tratados: no se fala de deuses, de religio, ou de qualquer conexo entre a divindade e uma moralidade18. O cepticismo pontilhado de ironia, e mesmo de humor, adoptado como ponto de partida para a argumentao, assim como a frmula retrica que preside enunciao das premissas em cada tratado, fundada na explorao da surpresa pelo estranhamento e pela adopo da posio

    17 Louis Ucciani, Ironie et Drision, De lIronie Socratique a la Drision Cynique, (Besanon, 1993), p. 144; p. 175

    18 P. B. Branham, M.O. Goulet Caz, The Cynics, the Cynic movement in Antiquity and Its legacy, (California, 1996) p. 73 cit. we discover that the gods are insignificant in Cynicism and that in Diogenes philosophy there is no place for religious preoccupations. In the eyes of Diogenes, religion serves no purpose, and is even un obstacle to the cynic aim of detachment.

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    minoritria; uma certa tendncia para, em determinadas fases do discurso, optar por uma linguagem sentenciosa e proverbial, de elocuo breve, surgem, no nosso entender, como um forte indcio da inspirao Cnica sobre Plutarco, mesmo do ponto de vista formal19. Acresce a constante comparao entre a realidade humana e paralelos recolhidos do mundo natural, estas trazidas colao como forma de impor a natureza como senhora da fortuna, humana e csmica, as duas condicionadas por leis e regras universais impossveis de ser modificadas pela vontade ou pela razo humana, quer sejam ou no conhecidas pelos homens. O cepticismo de Plutarco aparecenos como fundado na conscincia dos limites da interveno do sujeito na modificao das circunstncias e da realidade que o envolve. H uma atitude fatalista, por exemplo, no aceitar dos inimigos como uma realidade absoluta e no reconhecimento da inevitabilidade das falsificaes da amizade.

    Finalmente, encontramos presente em Plutarco algumas ideiasfora comuns moral cnica, que teriam integrado, no Cinismo Imperial, uma espcie de smula de filosofia popular, sobretudo a partir dos Discursos de Digenes Larcio20: a conscincia da fragilidade humana, s ultrapassvel por uma rigorosa disciplina; o propsito de felicidade, fundado no expurgar das

    19 Louis Ucciani, op. cit. Rire, ironie, drision. lments pour une critique par les formes exclues, pp. 257270.

    20 M.O. GouletCaz, Lascse Cynique, Un Commentaire de Diogne Larce VI 70-71, (Paris, 1986) (Cynicism, New Paulys Encyclopaedia of the Ancient World, (Brills), p. 1059.

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    emoes dolorosas e inteis, como so a ira, a inveja e o cime, o orgulho, a tristeza, o ressentimento; o alcanar da tranquilidade e do silncio face ao rudo imposto pelas obrigaes sociais; a exigncia de um treino, de um mtodo para, primeiramente, ser capaz de se examinar a si mesmo, e, secundariamente, discernir sobre a qualidade dos relacionamentos a que se prope.

    No ser, pois, diante das ideiaschave mencionadas, difcil de prever o destino destes opsculos de filosofia prtica dedicados amizade. Na mesma altura em que Plutarco compunha a sua obra, uma nova religio fazia a sua entrada no meio intelectual e urbano do Helenismo, adoptando uma linguagem favorecedora do proselitismo, deixandose, nesta caminhada, interpretar e enriquecer luz das correntes filosficas dominantes.

    Determinados aspectos da filosofia Cnica, como uma atitude crtica face sociedade, o desprendimento em relao aos valores materiais, a renncia s convenes impostas pela sociedade dominante, a busca da impassibilidade pela aniquilao das emoes (na nova religio consideradas vcios) atravs de uma ascese, iro encontrarse com uma corrente especfica do cristianismo, com propsitos renovadores, como foi o monaquismo. Vamos encontrar, particularmente nos Padres Gregos, um amplo acolhimento ao pensamento de Plutarco, mas ser dentro do movimento monstico que alguns Moralia recebero um acolhimento verdadeiramente honorvel, sendo traduzidos para Siraco, ao servio de uma comunidade de monges.

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    Um manuscrito procedente do Monte Sinai, do sc. VI, contm, juntamente com a Apologia de Aristides, trs tratados morais atribudos a Plutarco: O De Capienda Ex Inimicis Utilitate, o De Cohibenda Ira (Peri aorgesias), e o falsamente atribudo a Plutarco De Exercitatione (Peri Askeseos). Para estes monges, os conselhos de Plutarco iam ao encontro do treino necessrio para o alcanar das metas espirituais a que se propunham21.

    4. Porqu a Amizade? A importncia do tema no Mundo Antigo e em Plutarco

    Parecer surpreendente o relevo que o mundo antigo concedeu anlise desta forma especfica de relacionamento humano, sem paralelo no mundo contemporneo. De facto, na philia ou na amicitia, traduzidas nas lnguas contemporneas pelo equivalente amizade facilmente se verifica o desvio de conceitos e de aplicao referencial entre o mundo antigo e a mentalidade do homem contemporneo. Hoje, a amizade ocupa a esfera restrita da vida privada, e concorre com outras formas de relacionamento humano que se lhe sobrepem, pelo menos nas sociedades ocidentais, com pontuais momentos geracionais em que o grupo de amigos se reveste de singular importncia: a conjugalidade, a filiao, a famlia nuclear e alargada, as relaes de trabalho constituem formas de relacionamento que definem, pelo menos em teoria,

    21 Eberhard Nestle, A Tract of Plutarch on the Advantadge to be derived from ones enemies (De capienda ex inimicis utilitate) The Syriac Version, (Cambridge, 1894).

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    campos semnticos e funcionalidades distintos da amizade (embora haja, obviamente, pontos de contacto, que no entanto no comprometem as diferenas).

    No mundo grecoromano, nenhuma das formas de relacionamento atrs mencionadas tinha a importncia, ou podia preencher a complexidade funcional contida dentro do relacionamento da philia, o da amicitia. Os conceitos estavam particularmente ligados vida pblica do homem antigo, cobrindo um leque de relaes externamente assumidas, marcadas pelo compromisso de assistncia e de reconhecimento do valor do outro. A amizade assim um valor que deliberadamente se concede, marcado pela constncia, pela afinidade de interesses, pela partilha de actividades e de objectivos. Tratandose essencialmente de um acto de escolha, de vontade portanto, no h lugar para a espontaneidade ou para o relevo concedido adeso afectiva, que ns hoje tanto valorizamos22:

    22 Jonathan Powel, Fiendship and its problems in Greek and Roman Though, (D. Innes, Ch. Pelling eds, Ethics and Rhetoric, Classical Essays, Oxford, 1995, p. 33, reflecte sobre a importncia do tema da amizade na produo filosfica e tica antiga, em contraponto com a escassez do tratamento do tema no mundo contemporneo. The importance of amicitia in ancient public life it thus held to be reflected in the prominence given to it in the ethical writings of the philosophers; and since our own public life is supposed not to be based on amicitia; and in any case what we mean by friendship is something different, the relative unimportance of this topic in modern ethical writing becomes apparently less surprising. Tambm Simon Goldhill, 1986, p. 82, apud David Konstan p. 2) The appellation or categorization philos is used to mark not just affection but a series of complex obligations, duties and claims.

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    Amicitia is not, at root, a subjective bond of affection and emotional warmth, but the entirely objective bond of reciprocal obligation; ones philos is the man one is obliged to help, and on whom on can (or ough to be able to) rely for help wen oneself is in need23 (Malcom Heath, 1987: 7374, in David Konstan, p. 2)

    Nos nossos dias, no erraremos se pensarmos que, para a maioria, a amizade motivada pelo afecto, pelo lado emocional das pessoas, um sentimento sem dvida cultivado, mas mais abrangente nas suas manifestaes, menos codificado, e integrado na esfera privada das relaes interpessoais, do mesmo modo que ser acertado dizermos que no fundamos a nossa vida pblica ou profissional em relaes de amizade.

    Por outras palavras, admitimos que esta vida pblica pode e deve desenvolverse dentro dos princpios da cordialidade, da lealdade e da confiana recprocas, mas reservamos o termo amizade para as esferas mais ntimas das relaes humanas, remetidas para o conforto do homem enquanto entidade privada. No mundo antigo, no havia lugar para a realidade muito comum nos nossos dias, sobretudo em determinadas geraes, que a do amigo secreto. A amizade existia na medida em que podia ser vista, comprovada por gestos recprocos de ddiva, de entreajuda, de socorro, e detinha uma importncia que superava, mas no exclua, o conforto e estabilidade psicolgica individual. Ainda que os termos fossem empregues em contexto em

    23 Malcom Heath, 1987: 7374, apud David Konstan, Friendship in the Classical World, (Cambridge, 1997) p. 2

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    que sobressai a afectividade, pensamos que no ser esse o ponto de vista que teria motivado a teorizao antiga sobre a philia24. Alis, o prprio Aristteles que, ao definir os fundamentos da amizade, menciona o prazer na mtua companhia como algo agradvel trazido pela amizade25.

    A importncia da amizade para o homem antigo pode ser aferida pela abundante produo terica alusiva ao tema, sem comparao com o que ocorre no mundo contemporneo: alm de ser alvo de amplo destaque como tema na literatura grega de fico, Plato, com o dilogo Lysis; Aristteles, com a tica a Nicmaco e com a tica a Eutidemo; Ccero, com o seu tratado A Amizade. Depois, h a informao de uma srie de tratados desaparecidos, atribudos a Smias de Tebas, Espeusipo, Xencrates, Teofrasto, Clearco, Cleantes e Crsipo. Tambm Epicteto escreveu um discurso subordinado ao tema. Epicuro deixou fragmentos que se revelam pertinentes para o estudo do conceito de amizade para a filosofia epicurista26. Encontraremos ainda cartas de Sneca dedicadas amizade. Tambm contriburam para a discusso deste tema Valrio Mximo, Luciano.

    24 David Konstan Greek Friendship, AJPH 117, 1, 1996, pp. 7194 fez um estudo comparado dos contextos de utilizao dos termos philos e philia, atestando o seu emprego no contexto das relaes familiares, com valor afectivo. Tratase, portanto de termos polissmicos.

    25 John M. Cooper, Aristoteles on friendship, Essays on Aristoteles Ethics, A. Oksenberg Rorty ed. (UCP, Berkeley, 1980), p. 306.

    26 J. Hilton Turner, Epicurus and Friendship CJ, 42, 6, 1947, pp. 351355.

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    Na Antiguidade Tardia pag, juntemos os trabalhos de Mximo de Tiro, Temstio e Libnio. Entre os autores cristos, distinguiramse Gregrio Nissa e Baslio de Nazianzo; Ambrsio de Milo e Paulino de Nola, da parte dos autores latinos27.

    No nos cabe fazer uma anlise da evoluo do conceito de amizade, ou sequer apresentar uma panormica que descreva o tratamento do tema pelos autores supracitados. Concentremonos, no entanto, nos aspectos que esto implicados em Plutarco.

    Plutarco fundamentase em categorias tericas sobre a amizade que foram traadas por Plato, Aristteles, Xenofonte, no ocaso da cidade clssica.

    Nessa medida, a reciprocidade e a identificao de propsitos, de afectos e de interesses faziam parte do cnone do relacionamento entre philoi, ou, latina, entre socii, indivduos inseridos numa cidadeestado, irmanados pela partilha semelhante de papis sociais e de actividade poltica. Neste contexto, a liberdade de expresso, ou a parresia, emerge, no contexto da cidade clssica, democrtica, como um direito e uma qualidade prpria do homem livre, juridicamente regulamentada, mas no condicionada ao lao da amizade28.

    No entanto, o mundo de referncia de Plutarco a poca Helenstica, perodo em que as condies para a expresso poltica dos cidados se restringiram.

    27 Jonathan Powell, op. cit. p. 32, o elenco de autores dedicados ao tema. Tambm a publicao de David Konstan, Friendship in the classical world, faz uma apresentao exaustiva dos autores e das obras que focaram a amizade e suas deformaes.

    28 David Konstan, op. cit. p. 92.

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    O poder centralizado, nas mos de reis e de tiranos, subvertem, no mbito da vida pblica, as condies para a manifestao da amizade como relacionamento entre iguais. No perodo romano, foram em grande parte mantidas as caractersticas de governao nas cidades pacificadas do Oriente helenstico, sendo o poder exercido por procuradores delegados de Roma, ou por reis aliados ou vassalos do imprio.

    No cepticismo de Plutarco quanto possibilidade de haver boas amizades, no seu cuidado em escrutinar a casustica das suas manifestaes, no modo como ele acentua os aspectos disformes ou geradores de instabilidade nas relaes interpessoais, parecenos possvel entrever a conscincia da necessidade em adequar uma teoria, previamente formulada para a cidade clssica, a um novo mundo, em que as relaes de desigualdade e de hierarquizao dominam, e em que a maioria destas no ocorre entre pares, e sim entre um grupo e um indivduo privilegiado, portador do poder, real ou simblico. Neste sentido, impese uma disciplina parresia, que passa a ser uma virtude privada, que para salvaguarda do que dela faz uso, se transforma num exerccio estudado, adequado s circunstncias, de advertncia ao outro, que se tem por misso servir e agradar. A prpria adulao (kolakeia), ou a multido de amigos (polyphilia) na corte de um poderoso, se tornam caractersticas esta moldura humana, pautada pela desigualdade e por uma progressiva instabilidade no seu estatuto29.

    29 Id., pp. 93105. p. 101, cit. While adulation was not

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    Plutarco, membro das elites, colocase ao lado dos que, num ambiente confuso e ruidoso, tm de escolher bem os seus relacionamentos, sem tropear em enganos. Estes, alm de no contriburem para a virtude individual, podem destruir a obra pblica dos que se enleiam em relacionamentos defeituosos, levando, por arrasto, a perdio a cidades e a Estados. Um homem com responsabilidades pblicas tem a obrigao de lutar contra os defeitos de carcter, ou vcios privados, pois afectam o seu discernimento para o exerccio da vida pblica.

    Plutarco tornase assim um autor em que podemos com mais facilidade colher argumentos para a definio do conceito de amizade no mundo antigo como uma interaco humana racionalizada, socialmente codificada e politicamente motivada.

    5. Sobre a traduo

    Foi utilizada para a traduo o texto grego da edio teubneriana de 1974, da responsabilidade de W. R. Paton e I. Wegehaut. Cada um dos opsculos est precedido por uma introduo que o apresenta, o contextualiza na vasta produo plutarqueana, e o analisa sumariamente enquanto texto literrio. Quanto s anotaes traduo, elas procuram restringirse identificao de passos comuns na restante obra plutarqueana, ao assinalar das fontes

    unknown in democratic Athens, it was not normally articulated as an imitation of friendship. Flattery implicitly acknowledges the superior station of another, and () the egalitarian ideology of the democracy discouraged the representation of relations of dependency among free citizens.

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    literrias utilizadas por Plutarco, ou a esclarecimentos e comentrios que entendemos como enriquecedores para o acesso obra. Sempre que nos referimos s obras de Plutarco, optmos por utilizar o ttulo latino por que estas se fazem conhecer internacionalmente, excepto nos casos em que j est disponvel a traduo em portugus, sendo esta a obra indicada.

    6 Bibliografia:

    Edies de Plutarco

    W. R. Paton , I Wegehaupt, M. Pohlenz eds., Plutarchus Moralia I (Teubner, Leipzig, 1974), s. v. De Adulatore et Amico, p. 97; De Capienda ex Inimicis Vtilitate, p. 172, De Amicorum Multitudine, p. 197.

    R. Klaerr, A. Philipon, J. Sirinelli (ed. e trad.), Plutarque, Oeuvres Morales, t. I, 2 (Paris, Les Belles Lettres, 1989).

    F. C. Babbitt (ed. e trad.), Plutarchs Moralia, t. I Quomodo Adulator ab Amico Internoscatur, pp. 264395, (Loeb, Harvard, 1969), t. II, De Capienda ex inimicis Vtilitate pp. 441; De Amicorum Multitudine pp. 4669.

    Outros autores e bibliografia geral

    Ccero, A Amizade, Sebastio Tavares de Pinho trad., (Centro de Estudos Clssicos e Humansticos, 1993).

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    Ccero, De Amicitia, M. SeyffertC. F. Mller ed. E trad., Hildesheim, 1965.

    Kock, Th., Comicorum Atticorum Fragmenta. 3 vols (Leipzig, 1870, repr. 1976).

    Nauck, A., Tragicorum Graecorum Fragmenta (Leipzig, 1924).

    Th. Bergk, Poetae Lyrici Graeci, 3 vols (Leipzig, Teubner, 19141923).

    Teofrasto, Caracteres, J. Rusten, I. C. Cunningham, A. D. Knox ed. E trad. (Harvard University Press, 2 ed. 1993).

    Teofrasto, Os Carateres, Maria de Ftima Silva trad., (Relgio dgua, 1999).

    Homero, Ilada, F. Loureno trad., (Cotovia, 2005).

    Homero, Odisseia, F. Loureno trad., Cotovia, 2003).

    Aristteles, tica a Nicmaco, A. C. Caeiro trad. (Quetzal, 2007).

    David Konstan, Friendship in the Classical World, (Cambridge, 1997).

    D. Babut, Plutarque et le Stocisme (Lyon, P.U.F., 1969).

    E. L. Shields Plutarch and Tranquillity of Mind The Classical Weekly, 42, 15 (1949), pp. 229234.

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    Eberhard Nestle, A Tract of Plutarch on the Advantadge to be derived from ones enemies (De capienda ex inimicis utilitate) The Syriac Version, (Studia Sinaitica III, Cambridge, 1894).

    J. T. Fitzgerald Ed. Friendship, Flattery and Frankness of Speech. Studies on Friendship in the New Testament World. (Supplements to Novum Testamentum, 82). Leiden, Brill, 1996.

    John M. Cooper, Aristoteles on friendship, Essays on Aristoteles Ethics, A. Oksenberg Rorty ed. (UCP, Berkeley, 1980) pp. 301340.

    Jonathan Powel, Fiendship and its problems in Greek and Roman Though, D. Innes, Ch. Pelling eds, Ethics and Rhetoric, Classical Essays for Donald Russel on his Seventy fifth Birthday, (Oxford, 1995), pp. 2945.

    New Paulys Encyclopaedia of the Ancient World, (Brills, 10521060), s.v. Cynicism.

    P. B. Branham, M.O. Goulet Caz, The Cynics, the Cynic movement in Antiquity and Its legacy, (California, 1996).

    P. Barata Dias, Plutarco e os autores cristos da Antiguidade tardoMedieval limites e possibilidades de uma recepo, Os Fragmentos de Plutarco e a Recepo da sua Obra, (Coimbra, 2003) pp. 157177

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    R. Martnez Lacy, La poca Helenstica en Plutarco, Teoria e prassi Politica Nelle Opere di Plutarco, Atti del V Convegno Plutarcheo, 79 Jiugno 1993, Italo Gallo e Barbara Scardigli eds. (Npoles, 1996), pp. 221225.

    Richard Kraut, The Examined Life, S. AhbelRappe and R. Kamtekar eds. A Companion to Socrates (Blackwell, 2006) pp. 228241.

    Richard Sorabji, Emotion and Peace of Mind, From Stoic Agitation to Christian Temptation, (Oxford, 2000).

    Susan Prince Socrates, Antisthenes, and the Cynics, S. AhbelRappe and R. Kamtekar eds. A Companion to Socrates (Blackwell, 2006) pp. 7591.

    W. K. C. Guthrie, A History of Greek philosophy, vol. III (Cambridge, 1969), pp. 485499), s.v. The legacy of Socrates.

    W. K. C. Guthrie, A History of Greek philosophy, vol. VI (Cambridge, 1969), pp. 331391 s. v. Aristotle, an encounter, The Philosophy of Human Life.

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    Como Distinguir um ADulADorDe um Amigo

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    PAlAvrAs introDutriAs

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    Palavras introdutrias

    O tratado Como Distinguir um Adulador de um Amigo, integrado no corpus de Planudes com o nmero sete, e no Catlogo de Lmprias com o nmero oitenta e nove, foi por Plutarco dedicado a Jlio Antoco Filopapo, o descendente dos reis de Comagena, que se estabelecera em Atenas depois que Vespasiano destituiu a sua famlia do poder, em 72 d. C. Tal como Plutarco o apresenta em Quaestiones Conuiuales I, 10 (Obras Morais, No Banquete, I, 10, 628 A), ele era rico, popular (tinha desempenhado nesse ano o cargo de corego de todas as tribos), e fazia parte da elite cultivada que privava socialmente com Plutarco.

    A partir da biografia do destinatrio, pode concluirse que o tratado ter sido composto entre 90 e 116 d. C.. Tratase, pois, de uma obra de maturidade dentro da extensa produo de Plutarco. Tambm as referncias frequentes s personalidades histricas retratadas nas suas Vidas (Alexandre, Alcibades,

  • Paula Barata Dias

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    Antnio, Fcion) podem indiciar que esta obra, como se verifica para a generalidade dos Moralia, foi composta aps as biografias respectivas.

    Este tratado formalmente uma diatribe, pertencendo ao grupo das obras filosficas de cariz ticodidctico. Ao contrrio dos outros tratados dedicados amizade, este foi composto primordialmente para ser lido, isto , no resultou de uma resenha posterior feita a uma conferncia, como o caso do tratado Acerca do Nmero Excessivo de Amigos. Isso mesmo podemos depreender pelas frequentes notas metatextuais, indicadoras do pulsar do discurso, pelas chamadas e remisses internas a outras partes do tratado, o que constitui, no nosso entender, a prova de um deliberado planificar da exposio deste que o mais longo e o mais complexo dos textos que Plutarco dedicou ao tema da amizade em geral (como podemos ver no incio do cap. 6; final do cap. 8, incio do cap. 10; incio do cap. 17; fim do cap. 20 e incio do 21; incio do cap. 25; final de cap. 25, final de 27; incio do cap. 30).

    A obra dividese em quatro partes lgicas, compostas pelos dois assuntos dominantes que a figuram e que se interrelacionam atravs de um corpo central mediador:

    Do cap. 1 ao cap. 25, o autor dedicase a analisar as semelhanas e as diferenas entre o amigo e um adulador. Nesta parte, surgem bem destacados os caps. 14, a introduo em que se procura justificar a pertinncia do tema, ou seja, da necessidade em distinguir estas duas categorias, a de amigo e a de

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    PAlAvrAs introDutriAs

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    adulador, de superfcie to similar. O cap. 5 programa as motivaes da obra: visto que o adulador reproduz e mimetiza os ganhos da amizade, isto , o prazer, o bem e a utilidade, (cf. Acerca do Nmero Excessivo de Amigos 93 B) chegando ao ponto de utilizar, como estratgia, a prpria