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1 Olá, eu sou um cão. Um cão como os outros. Nasci no Inverno e esta é a minha história. Separado da minha mamã ainda um bebé, fui enviado para uma loja de animais pelo meu primeiro dono, um bicho-homem não muito simpático, que me separou dos meus irmãos. Apesar de fechado numa montra, sonhava que alguém me haveria de vir buscar e que me trataria muito bem. Gente a entrar, gente a sair, mas ninguém me queria levar para casa. Ouvia-os dizer: - Vai ficar muito grande e barulhento! - É muito caro, tenho muita pena, mas é muito caro! Perguntei-me, muitas vezes, se alguma vez iria sair daquela caixa de vidro e tinha medo que isso nunca acontecesse.

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Perguntei-me, muitas vezes, se alguma vez iria sair daquela caixa de vidro e tinha medo que isso nunca acontecesse. Um cão como os outros. - É muito caro, tenho muita pena, mas é muito caro! - Vai ficar muito grande e barulhento! Nasci no Inverno e esta é a minha história. Olá, eu sou um cão. 1

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Olá, eu sou um cão.

Um cão como os outros.

Nasci no Inverno e esta é a minha história.

Separado da minha mamã ainda um bebé, fui enviado para uma loja de animais

pelo meu primeiro dono, um bicho-homem não muito simpático, que me separou dos

meus irmãos.

Apesar de fechado numa montra, sonhava que alguém me haveria de vir buscar

e que me trataria muito bem.

Gente a entrar, gente a sair, mas ninguém me queria levar para casa. Ouvia-os

dizer:

- Vai ficar muito grande e barulhento!

- É muito caro, tenho muita pena, mas é muito caro!

Perguntei-me, muitas vezes, se alguma vez iria sair daquela caixa de vidro e

tinha medo que isso nunca acontecesse.

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A loja chamava-se “Shallon” e era em Coimbra. Estava sempre muito barulho:

os carros a apitar, o burburinho das pessoas, a campainha que avisa os bichos-homens

que entram e saem (quase sempre) de mãos a abanar. Mas todos os dias pensava:

- “Hoje vai ser diferente, hoje é o meu dia!”

Lembro-me perfeitamente do dia em que ela entrou na loja. Para mim, era o dia

mais frio do ano. Era pequenina, mas muito rabugenta. Tinha longos caracóis castanhos

e vestia um bonito vestido azul-turquesa. Contudo, chorava e chorava, mas ninguém

sabia porquê! Comecei a ladrar, a ladrar e ela parou de choramingar. O meu desejo era

que ela viesse ter comigo, brincasse comigo. A menina viu-me de longe e desatou a

correr na minha direcção. Colou-se ao vidro que eu lambia. Estava entusiasmado por

ela estar feliz.

De repente, chegam o papá e a mamã da menina, abraçam-na e dizem:

- Matilde, não queria uma casa de bonecas? A loja é já aqui ao lado!

A menina Matilde pergunta:

- Papá, não pode levá-lo?

- Levar o quê?

- O cão, papá! Eu quero o cão!

- Mas filha, porquê um cão? Não prefere um peixinho exótico? São mais giros e

não dão tanto trabalho.

- Oh papá, mais um peixinho?! Não brinque comigo! Eu quero um cão! Eu quero

ESTE cão! Ele é tão pequenino e tão fofinho! Eu tomo conta dele: dou-lhe comida, dou-

lhe banho, dou-lhe carinho e faço-lhe uma caminha! Eu juro, eu juro! COMPREM-MO!

Com as lágrimas prestes a saltar dos olhos da Matilde, o papá sentiu-se entre a

espada e a parede. A mamã facilitou as coisas:

- Francisco, compre-lhe lá o animal! A varanda é grande e a Clotilde trata do que

for preciso.

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- Não sei, Clara…

- Se não lho dermos, já sabe que vai ser uma crise até chegar a casa!

- Pronto, vamos levá-lo então. Não fico satisfeito. Mas, Matilde, não se esqueça

que é a sua prenda de Natal!

- Sim, papá! Obrigada, mamã!

Eu não podia acreditar! Ia finalmente sair dali e viver para uma casa onde me

iriam tratar bem e dar-me muitos miminhos. Prometi a mim mesmo que iria fazer um

esforço para ser um cãozinho bem-comportado e não fazer asneiras para que os meus

donos ficassem orgulhosos de mim.

Vivíamos num grande apartamento onde podia correr sem parar. A minha dona,

apesar de ser pequenina, dava-me muito amor e carinho: ela pegava-me ao colo,

dormia comigo e dava-me festas na cabeça – sou um sortudo!

Contudo, às vezes, não sei o que me dava na cabeça, começava a derrubar os

vasos e a cavar, a sujar toda a casa. Roía brinquedos, sapatos, tudo o que encontrasse.

Para mim, tudo aquilo era uma grande diversão, mas a Matilde e os papás não

acharam. Castigaram-me inúmeras vezes e eu continuava sempre a repetir as minhas

brincadeiras. O sentimento era semelhante a cócegas que me fazia disparar como um

foguete e fazer aquilo que me apetecia.

Naquele dia, fazia quatro meses e estava de castigo – ninguém se lembrou de

mim. Quanto mais tempo lá estava fechado, mais vontade me dava de roer o tapete,

de fazer chichi no chão, de roer os tubos da máquina, de lavar e fazer da marquise uma

piscina para poder chapinhar e ficar com o meu pêlo todo molhadinho. Meu dito, meu

feito.

Habilidosamente comecei a roer os tubos da máquina, um a um, até que -

“splash!” – água por todo o lado! Chapinhei por todo o lado, sujei a marquise,

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enquanto me sacudia, e nadei desajeitadamente naquela nova piscina.

De repente, chegou o papá. Levantei-me rapidamente, a abanar a cauda na sua

direcção, a abanar a cauda, com a língua de fora e a pular de felicidade! Já não estava

sozinho! Mas o papá não parecia feliz. Fez a sua cara de mau e gritou:

- O QUE FOI QUE TU FIZESTE?!

Fiquei imóvel. Não sabia como reagir, não entendia o que se passava. Agarrou-

me pelo cachaço e correu, muito nervoso, em direcção à varanda. Lá, prendeu-me a

uma corrente e eu continuava sem conseguir compreender que mal tinha feito.

As coisas acalmaram assim que me comecei a portar melhor e a Matilde insistia

que me levassem a passear. A minha única vontade, naqueles dias, era estar livre e

poder correr, nada mais.

Um dia, depois de tanto tentar, consegui rebentar a corrente – estava cada vez

maior e mais forte – e soltei-me. Comecei a correr sem parar em direcção à porta que

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havia ficado entreaberta e entrei espalhafatosamente. A Clotilde tinha preparado o

bolo para o lanche e já se sentia o cheirinho ao qual era impossível resistir. Com a

rebeldia que tinha dentro de mim, normal num cachorro, pus as patas em cima da

banca da cozinha e, sem querer, empurrei o bolo, acabadinho de fazer, para o chão.

Nesse momento, chega a Clotilde que escorrega sobre o bolo desfeito. Estava tão feliz

por vê-la que saltei para cima dela e lambi-lhe a cara toda. Contudo, ela não estava

satisfeita, mas furiosa! Gritava, ralhava e voltava a gritar e eu ladrava em resposta para

lhe explicar que apenas estava contente por estar de novo dentro de casa.

O que eu não me apercebi foi da presença da mamã e do papá. Para eles, o

cenário era desastroso: a cozinha virada do avesso, bolo pelo chão e nas paredes, e eu,

um cachorro jovem, a ladrar intensamente à governanta de tantos anos. Nas caras

deles, um misto de desilusão, descontentamento e exaustão. Apercebi-me que eu era a

causa de tanta negatividade e fiquei imóvel, sem saber o que fazer. Aquelas expressões

diziam:

- “Portaste-te mal! Vais ficar de castigo por muito, muito tempo!”

Assim foi. O termo “vida de cão”. A comida era pouca, tal como a água e a única

vez em que os vi, nesses dias, foi quando me levaram. No fim do sexto dia, soltaram-

me. Fui agarrado pelo cachaço, com força. Prenderam-me a coleira e arrastaram-me

até um “ninho” de cobertores no porta-bagagens.

A viagem foi feita em silêncio. Eu remexia-me na parte de trás do carro. Toda

aquela vibração do chassis deixava-me louco. Fizemos uma pausa de cerca de vinte

minutos, mas não me soltaram. Fiquei sozinho. Mais quinze minutos e a minha família

entrava no carro. Sentia uma mescla de cheiros inconfundíveis: o frango de churrasco

entrava pelo meu focinho acima; sentia o aroma das batatas fritas e quase podia

adivinhar que o embrulho gelado era semifrio de chocolate.

Se calhar tinha-me enganado! Aquela viagem podia não ser assim tão má como

havia imaginado! Obtive um rápido vislumbre do exterior quando, com as patas, puxei

a protecção do porta-bagagens. Estávamos a chegar a um sítio muito verde. Imaginei o

quanto podia brincar depois de me refastelar com os ossinhos e os restos da comida da

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minha família. Ia ser uma tarde perfeita! Quando me tiraram do carro, ouvi alguém, de

outra família feliz que passava, dizer que, com as obras, o Choupal estava muito mais

bonito. Supus, então, que aquele local tão verdejante só podia ser o famoso Choupal.

Pensei para mim mesmo o quão bonito e natural era. Passámos uma ponte com uma

espécie de riacho por baixo. Queria mergulhar nele e, enquanto corria, ouvi o papá

chamar-me e voltei para trás no momento para não o desiludir mais. Continuamos o

caminho, Choupal adentro. Estava um dia de Verão magnífico, quente que baste, para

convidar à diversão.

Notei que o papá conhecia muitos outros «papás», que o abraçavam e davam

palmadinhas nas costas. Toda a gente gostava dele: era mesmo um bom homem e eu

reflectia sobre a minha sorte em tê-lo e àquela maravilhosa família. Jurei a mim mesmo

que iria ser um cachorro exemplar, iria fazer tudo o que ser bom «cão» pressupõe! Iria

ser o único nas suas vidas!

Eles comiam, por entre sorrisos, e de vez em quando, davam-me um bocadinho.

Estava mesmo bom! Mas o melhor, a cereja no topo do bolo, vinha a seguir. O papá

tirou uma pequena e brilhante bola vermelha. Era tão linda e percebi logo que era para

brincarmos quando ele me acenou com ela. Todos os meus sentidos despertaram: era

mesmo aquilo que eu queria!

Ahh! Eu podia ouvi-la a cortar o vento e, instintivamente, atirei-me, como

comandado, a correr atrás dela para ganhar a corrida. Ela caiu numa espécie de vale

formado entre duas árvores. Apanhei-a e corri de volta.

A mamã já estava a arrumar o cestinho. Pensei para mim próprio que tinha de

me despachar. Estava quase tudo arrumado e eu tinha ouvido, durante a sobremesa, o

pai a falar sobre um hotel no Algarve, onde íamos passar duas semanas de férias.

Eu não sabia bem o que era o Algarve, apenas tinha ouvido a televisão falar

sobre isso, mostrar muita areia e água. Não fazia ideia do que era, mas, pelas caras

deles, devia ser muito bom.

O papá acariciou-me e meteu-me a mão na barriga. Ele nunca tinha sido muito

afectuoso comigo e achei estranho, mas não me queixei. Fiz uma espécie de latido feliz,

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queria mais! Ele pegou na bola, mostrou-ma e acenou com ela, sugerindo-me um

desafio. Correu um bocado, até perto do riacho, junto a um velho campo de

basquetebol. Puxou o braço atrás e arremessou-a com força, para a outra borda do rio.

Fiquei mesmo contente! Finalmente, ele deixava-me ir à água! Chapinhei alegremente.

Ai! Que dia perfeito! Não vi a bola, mas conseguia cheirá-la.

Estava perto, sentia o cheiro das mãos do papá.

Encontrei-a no meio de cogumelos selvagens (com uma cor bastante apetitosa) e uma

velha bicicleta enferrujada que há muito devia ter sido despejada, muito antes de eu

nascer.

Corri até ao riacho e bebi a água sofregamente. Estava tão cansado. Olhei à

volta e não vi o meu dono. Era mesmo engraçado, a querer brincar às escondidas

comigo! Onde estaria ele escondido? Imaginei-o a aparecer a qualquer momento para

me encher de mimos. Que bom! Comecei a caminhar em direcção ao sítio do

piquenique. Havia de encontrá-lo pelo caminho. Observei imensas famílias. Umas mais

contentes, outras menos, mas mostravam sempre um clima de união, afecto.

Fogo! O papá sabia-se esconder mesmo bem. Não havia sinal dele em lado

nenhum e eu tinha procurado por entre todas as árvores, pedras, ervas e cantos (mais

ou menos) obscuros. Onde é que ele estaria? Era impossível ter desparecido! Comecei

a correr até ao local onde tínhamos almoçado.

NÃO ESTAVAM LÁ!

Comecei a recear pela segurança deles. Tinha ouvido tantas coisas, enquanto a

minha família ouvia o noticiário: assaltos, raptos, homicídios! E agora?

Procurei-os mais um pouco e cheguei ao local onde tinham estacionado o carro

há umas horas e o meu mundo tombou!

Foram os piores trinta segundos da minha vida: o papá estava a fechar o porta-

bagagens. Eu ladrei e ladrei alegremente! Tinha-os encontrado! Ele olhou para mim de

relance e apressou-se a entrar no carro. A Matilde olhou para mim pela janela e tapou

a cara coberta de vergonha. Não entendia nada do que se estava a passar! Comecei a

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segui-los, corri como o vento, em vão - o carro era mais rápido que eu.

Não podia acreditar. Tinham desaparecido de vez.

Lati e lati mais do que em qualquer ocasião na minha pequena vida, mas

nenhum som conseguia chegar sequer perto do quão eu estava triste. Já tinha visto o

“Porquinho Babe” na festa de aniversário da Matilde, ”Os Aristogatos” e tantos outros,

onde os animais tinham sido abandonados, mas nunca pensei que o fosse experienciar.

Não era possível a descrição do que sentia. Era mau demais, triste de mais, desilusão a

mais.

Na primeira hora, não me consegui mover daquele ponto. Estava sem reacção

possível.

Depois comecei a andar - devagar e sem convicção.

Ao meu lado, uma família que trocava, entre si, gelados e sentimentos.

Olharam-me e sorriram. Um rapaz, provavelmente o filho mais novo, começou a

procurar um pedaço de entrecosto e atirou-mo. Noutra altura tinha-o devorado até ao

tutano. Mas, naquele dia, mal olhei para ele. Sentido, o menino nem tentou mais

interagir comigo.

O crepúsculo começava a descer sobre a cidade de Coimbra. Continuava quente

e húmido – avizinhava-se uma trovoada. Ainda bem que me tinham tosquiado, fazia

pouco tempo. Fui em direcção ao barulho. Provavelmente, seria aquele o centro da

cidade.

Não sabia ao certo o que ia lá fazer, mas não conseguia estar parado.

Estava perto de uma velha e degradada estação de comboios. Dois cães vieram

em direcção a mim. Bem maiores, mais robustos e musculados aparentavam os

jogadores de futebol americano dos humanos. Tinham um cheiro a «sujo»

característico e os seus focinhos não eram nada amigáveis.

- Que fazes aqui a uma hora destas, cachorrinho? – Perguntou o primeiro, rindo-

se, entre os dentes que lhe faltavam.

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- Não queríamos que nada acontecesse a uma cria tão bonitinha quanto tu, não

é?

A forma como ele disse aquilo, enquanto circulava à minha volta, fez-me

perceber que não estavam minimamente preocupados e o meu medo começou a

aumentar. Falei com eles honestamente, contei-lhes toda a minha história. A princípio,

eles estavam a ouvir com rostos cínicos, mas depois os rostos alteraram: senti-os mais

tocados com a minha história, quase como se se estivessem a rever. Convidaram-me a

passar a noite em casa deles. Disseram que iam cuidar de mim. À falta de melhor acedi

e fui com eles… Bastante desconfiado, mas fui. Acordei e demorei dez minutos a

mentalizar-me que o dia anterior não tinha sido um horrível pesadelo. Eles acordaram

pouco depois de mim. Deram-me meio pão seco e uma tigela de água de onde todos

bebemos. A seguir, disseram que iam fazer de mim cão de verdade. Demorei pouco a

entender o que eles queriam dizer com isso. Começaram-me a bater e a empurrar, a

provocar.

- És um cão ou és um rato?!

- Defende-te, fraco!!

Foi dos piores dias da minha vida. Ao fim de duas horas estava cheio de hematomas,

inchaços e sangue pisado. Eles apenas me disseram que ia acabar por ficar mais duro.

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Os dias passavam com o mesmo ritmo que meus medos. Rápido! Já lhes dava resposta

e não era o único a sair de lá dorido. A pouco e pouco, começaram a respeitar-me e a

apresentar-me outros cães de rua. Aquela vida começava a ser boa. Respeito, comida,

diversão e cadelas bonitas. Comecei a reparar nelas e elas em mim. Além de ter

crescido muito nos três meses desde que tinha sido abandonado, as duas horas de

treino diário faziam com que o meu corpo fosse bem desenvolvido. Adorava a atenção

que elas me davam. Havia uma que me despertava os sentimentos de uma forma que

as outras não conseguiam. Era a Laika, tinha um ar confiante, de certa forma arrogante,

grandes olhos cor de mel e um pêlo de fazer inveja a cadelas de filmes da Disney. Ela

sorria-me quando os outros não estavam a olhar. Às vezes mordia-me devagar e fugia,

como que provocando. Adorava esses momentos com ela. Mas não era o único a

adorar. Havia um cão, o Átila, um grande e robusto pastor alemão, que em tempos

tinha trabalhado para a PSP. Hoje estava louco e paranóico. Não era amigo de ninguém

e era temido por todos. Só dava atenção à Laika, vibrava com todo o pequeno gesto ou

latido dela e oferecia-lhe grandes ossos, coleiras e até uma pequena água-de-colónia.

No dia em que ele descobriu que eu e ela trocávamos tantos sorrisos e mordidelas,

quase que carinhoso, veio ter comigo. Atirou-me um osso de galinha ao chão. Olhou

para mim durante uns segundos e, depois, disse simplesmente:

- Amanhã. Duas da tarde. Descampado do fórum.

Ele não precisava de dizer aquilo, eu sabia mais que bem o que significava. Quando um

cão de rua lançava um osso de galinha a outro significava luta. Vi bastantes lutas

daquelas e nunca tinham corrido bem. Na única que vi com o Átila, o adversário cão

tinha fugido a meio, tal era a brutalidade de Átila. Falar com ele não valia de nada.

Sabia que ele era de ideias fixas e que a minha tentativa de diálogo só o ia irritar ou,

com muita sorte minha, diverti-lo. Fugir também não era opção. Gostava demais

daquela vida, do respeito. Tinha de ser um cão grande e enfrentá- -lo.

Não contei a ninguém. Cheguei ao “palácio”, assim chamávamos ao nosso

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armazém e fiz algum exercício com uma bola vermelha tristemente parecida com outra

com que em tempos me enganaram. Comi um bocado de leitão do dia anterior.

Tínhamo-lo roubado da cozinha de um restaurante caro e pomposo na Solum. Soube-

me mal, tais eram os nervos. Não fazia ideia de como me ia desenvencilhar. Estava

entre a espada e a parede. Cada ideia que tinha parecia rocambolesca e o tempo

continuava a passar, voava como as folhas no Outono e eu, impotente, via-o passar.

Tinha a noção que numa luta de igual para igual era no mínimo barbaramente

espancado. E estava absorto nos meus pensamentos, divagava por entre inúmeras

ideias todas elas sem “pés para andar “, quando ouvi um barulho. Nenhum humano e

quase nenhum cão o teria ouvido, mas o meu treino tinha-me apurado os sentidos,

fiquei logo alerta. Mudei todo o armazém e esperei não ser traído pelo jogo de luzes

que as janelas do velho vidro semi-fumado com o contributo do crepúsculo produziam.

Ouvi outro ruído, desta vez, mais espampanante. Quem quer que tivesse entrado no ”

palácio” não tinha experiência na arte de saber andar. Ficou tudo silencioso e

pressentiu antes de sentir. Cheirava melhor do que qualquer outro cheiro : um cheiro

doce e calmo mas, ao mesmo tempo, agressivo e convidativo. Cheirava a todas as

coisas boas do mundo. Não lhe resisti. Depois de olhar para ela, não dava para resistir.

Deu-me um beijo no canto do focinho e mimou-me durante uns segundos. Desviei a

cara, mas acabei por ceder e olhámo-nos durante longos minutos.

- Estou preocupado contigo! – Disse-me ela.

- Não te preocupes – ladrei altivamente.

- Não quero que te aconteça nada. Tenho medo, entendes? Se eu amanhã te

perco, que será da minha vida? Uma cadela pode viver sem casa, sem comida, mas

nunca sem o cão que adora…

- Isso não vai acontecer Laika! Eu safo-me, safo-me sempre.

- Espero bem que sim …

Deu-me um beijo fugido e desapareceu tão depressa como apareceu. Fui para o

canto onde dormia, pouco depois de ela sair. Adormeci contente. A luta de amanhã

não me preocupava. Não depois daquele encontro fugaz.

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Acordei perplexo comigo mesmo. Estou a aproximar-me a longos passos de uma

grande e dolorosa dor física, senão mais do que isso, mas eu já nem sentia o meu

coração a bater.

Treinei uns movimentos que o Park-Ji me ensinou. Era uma personagem bem caricata.

Apesar de ter dono, uma vivida e provecta massagista coreana, adorava passar tempo

connosco. Dava-se sem problemas com todos nós, sendo nós vadios e mais novos. Era,

segundo ele, de uma nobre raça: Akita Inu. E se era ou não, sou dos cães com menos

conhecimento de pedigree para avaliar. Mas que tinha um aspecto imponente, tinha.

Os seus quase 50kg e o seu longo tronco davam-lhe essa imponência e o seu peito

tigrado com pêlos brancos, como que aqui e ali semeados no vento, conferia-lhe um

aspecto sábio. Ele tinha aprendido um pouco de artes marciais aplicadas a cães e

começou a ensinar-me. Eu agradecia com esforço para o acompanhar. Lembrei-me dele

e dos bons conselhos que me dava, mas rapidamente tive de o esquecer. Havia muito a

fazer, sem margem para distracções.

Quando saí do palácio, tinha 1h30 até ao combate e muito para fazer. Apressei o

passo, mas mesmo assim demorei quase meia hora a lá chegar. Que cheiro horrível!

Que pocilga! Estas coisas não dignificavam o meu estatuto de cão de rua. Enfim, não

havia tempo para isto. Ladrei para a avisar que tinha chegado. Mas a rapidez não era o

seu forte. Demorou quase 5 minutos para aparecer e quando o fez a visão foi

assombrosa.

- Estás horrível Penélope! – Disse eu sinceramente.

- Obrigada, meu querido! A simpatia não é o teu forte mas… Essa carinha de cachorro

de família confesso que...

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Eu ri-me para mim mesmo. Penélope era muito estranha. Bebia muito álcool, coisa

estranha em nós e gostava de estar em ambientes fumadores, para inspirar nicotina.

Nunca ninguém soube de onde veio ela ou porque estava em Coimbra e ela também

nunca quis responder.

- Entra fofinho, tenho muito para te contar!

Demorou pouco mais de dez minutos a explicar-me tudo e depois quase me expulsou

de lá, enquanto os seus olhos raiados de vermelho se riam para uma velha garrafa de

brandy.

E que fazer agora? O que Penélope me tinha contado era óptimo, um raio de luz na

escuridão, mas… Havia sempre o mas! Meter em marcha o meu plano, plano que

magiquei em pouco mais de 5 minutos, mas que me parecia infalível, ia ser bastante

complicado. Mais complicado e menos exequível dado que tinha 45 minutos. Desci até

à baixa em pouco tempo. Fui o caminho quase todo a correr, o que não dava grande

jeito. Era hora de almoço e a cidade estava repleta de estudantes, trabalhadores,

turistas e reformados, todos eles preocupados com os seus problemas, que, naquele

momento, a mim, me pareciam banais. Percorri a baixa durante algum tempo à

procura de um amigo. Não era bem um amigo. Era um companheiro de algumas

loucuras que tinha feito.

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Dava-se por Rufus e era um animal psicopata arraçado de pitbull. Era filho de Bilbau,

um cão mercenário das tropas de elite, mas, ao contrário do revolucionário pai, tinha-

se tornado mercenário e negociador de todo o tipo de produtos. Os cumprimentos

foram um misto de respeito e receio mútuo. Negociámos preços e condições durante

bastante tempo. Acabei por acertar tudo com ele. Paguei-lhe 3 camas grandes de cão

adulto, 20 ossos conservados com aroma de marca cara, 2 garrafas de Whisky e uns

brinquedos que ele distribuiu pelos seus filhos. Era uma pequena fortuna mas eu tinha

de me sujeitar. Ele é que tinha as coisas, os meios, a envergadura. No entanto,

assustava-me o seu encanto, o brilho nos seus olhos na hora em que me sugeriu matá-

lo. Era no mínimo assustador.

Com todos aqueles percalços eram duas menos cinco e eu estava a uns 15 minutos de

distância, a andar rápido do fórum. Comecei a correr desalmadamente. Chegar

atrasado era demonstrar medo ou desrespeito e, sinceramente, não me parecia boa

ideia mostrar nenhuma das duas.

Cheguei ao descampado. Já lá estavam os meus amigos, os mais próximos e, do outro

lado, com um ar sanguinário e destrutivo, olhos raiados, postura alerta, em modo de

ataque lembrando uma máquina de guerra, Átila. Não me disse nada, nem fez sequer

qualquer sinal de reconhecimento. Fez apenas um gesto para começarmos. Atacou-me

logo e eu esquivei- -me. Começou a atacar-me freneticamente, golpe atrás de golpe, e

se não fossem os reflexos, que me permitiam defender, estaria estendido no chão.

- Calma cachorrinho. Não fujas! Se estiveres com medo podes chamar os teus donos.

AHAH, espera...eles trocaram-te. Nem para cão mandado deves servir e atreves-te a

tocar na Laika com essas patas imundas? Ela fala-te por pena, só pode!!

O meu coração disparou e cometi, talvez, o acto mais estúpido e irreflectido da minha

vida. Desferi-lhe patadas sucessivas no abdómen e, mal ele cedeu guarda um instante,

desferi uma forte dentada um pouco abaixo do pescoço. Qualquer outro cão tinha

caído no momento. Eu senti o sabor vivo e quente do sangue dele na minha boca mas

a sensação de derrota, de desespero, de combate perdido que eu tanto queria que

emanasse dele, não surgiu. Parece que criou o efeito contrário. Os olhos dele

arregalaram-se e as veias das suas patas da frente fizeram-se notar. Aquilo intimidava e

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de que maneira. Ele veio na minha direcção. Desviei a sua forte dentição com um

movimento da minha cauda e tentei contra-atacar, mas ele foi mais astuto e quando eu

tentava acertar-lhe com a pata direita, chegou-se para trás, desequilibrou- -me com as

duas patas da frente ao mesmo tempo. Foi instantâneo. A gravidade não perdoava e

caí no chão. Ele não me deu hipótese e meteu-se em cima de mim com uma rapidez

quase sobrenatural. Bloqueou-me as patas de maneira a que não fosse possível soltar-

me e aí mordeu-me uma, duas, três, quatro vezes, uma em cada perna. Senti o sangue

sair e jorrar enquanto o desespero e o desapontamento me invadia. Bateu-me no

lombo até me rasgar a pele. O sangue escorria rápido demais. Sentia-me derrotado em

todos os aspectos: espancado abruptamente em frente aos meus melhores amigos,

sem nenhuma esperança de ficar com Laika, traído da forma mais desonesta possível

pelo Rufus, sem mais metade das minhas posses, das quais me tinha servido para

pagar o serviço que ele me devia ter prestado. Tinha perdido tudo! Ele continuava a

bater-me com força e afinco. Mas sinceramente, doía-me mais por dentro do que por

fora.

- Achas mesmo que me ganhavas numa luta? – o tom dele era um misto de gozo e

desprezo.

- Isto nem sequer devia ter acontecido! Esta luta deu-se porque tu és completamente

louco. Chegas ao ponto de lutar por uma cadela que não te quer…

- Ahah, é? Então quer a quem? A ti? És louco cachorrito! – agora não falava, rosnava as

palavras. Enquanto me ia gozando, batia-me, quase no mesmo compasso com que me

escarnecia. A agressividade do espancamento aumentou, tal como o seu ódio. Eu

sentia-o como que a emanar de dentro dele. A dor era de mais. Não estava a aguentar.

Fechei os olhos em desespero.

Estava tudo tão branco. Agora preto. Vermelho. Do nada passaram-me à frente uma

mescla de cores, semelhante a um grande arco-íris em movimento. Senti o cheiro a

bem temperadas costeletas de porco e, no mesmo instante, um prato cheio delas se

materializou à minha frente. Aqueles condimentos… Que bem cheiravam. Captavam o

meu olfacto autoritariamente e eu não fazia por lhes resistir. Laika estava encostada a

uma cama feita de velhas camisolas novas. Sorriu-me e chamou-me com uma leve

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aceno. Será que estava mesmo morto? Se assim fosse o céu ainda era melhor do que

eu pensava. Tinha tudo o que eu precisava! Perguntei a Laika se podia ficar naquele

sitío com ela para o resto da minha vida. Mas ela foi bem peremptória. Explicou-me

que não estava morto, pelo contrário. Apenas estava numa dimensão que nem

humanos nem cães conseguiram até hoje explicar. Era mais real que sonhos, mas

menos real que a dimensão a que estávamos habituados. Explicou-me como os

grandes cães nunca tinham desistido, que eu teria que acordar e virar a situação a meu

favor. Poucas coisas me poderiam ter feito sair dali naquele momento. E uma delas era

o discurso inspirado e eloquente de Laika. Eu compreendi que tinha de fazer o que

fosse preciso para ficar com ela. E quando me dei conta disso, o pequeno e perfeito

paraíso começou-se a desvanecer como água aprisionada nas vossas mãos. Ladrei em

vão para que aquela “coisa”, não sabia o que lhe chamar, não desaparecesse.

Acordei, levantei-me a custo. Olhei à volta. As cores estavam desfocadas. Supus que tal

se devesse ao meu crítico estado. Vi o Átila a ladrar, agitando-se loucamente, de uma

forma louca de mais, até mesmo para um louco como ele. Um sorriso formou-se

instantaneamente no meu focinho. Se tudo corresse bem ainda podia sair daquele

descampado com um mínimo de dignidade.

- Eu nunca iria deixar que este canalha deste Rufus ganhasse! – Reconheci aquela voz

amorosa e arrastada, efeito de muitos anos de abuso de álcool. Comecei a ver o

espectáculo no céu e poucos instantes depois os correspondentes estrondos, tal e qual

trovões de miniatura. Olhei para Átila e percebi no momento que estava a resultar: ele

tinha trabalhado anos e anos na PJ. Era dos melhores, um supra-sumo no que fazia.

Mas tinha, segundo o mito, enlouquecido e, portanto, sido expulso porque esteve

envolvido numa missão com explosivos onde acabou por perder o seu parceiro. Ele

simplesmente desapareceu. Desde então Átila ficou com pavor a todo o tipo de

detonações, incluindo fogo-de-artifício e pequenos explosivos de carnaval. Rufus tinha

demorado mas tinha vindo, e em força. Trazia um pequeno arsenal de “bombinhas de

Carnaval”. Barulhentas e sujas, eram o ideal para o amedrontar. E como resultava,

estava na minha hora de agir. Cheguei perto dele. Apesar de tudo o que ele me tinha

feito, senti compaixão. Poucos minutos antes era um imponente e autoritário pastor

alemão. Agora tinha-se transformado num cachorro grande, assustado e delirante,

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patético. Ele ainda tentou resistir, mas obriguei-o a deitar-se. Expliquei-lhe claramente

que nunca mais o queria ver e que se tal acontecesse era recebido com o dobro dos

explosivos. Ele ainda tentou regatear, como que ressuscitando uma centelha do cão

autoritário de antes, mas rapidamente o demovi. Átila acabou por concordar. Os cães

que antes o respeitavam como a um general troçavam agora com ele. Era um esboço

do terrível animal d’antes. Começou a afastar-se por entre vaias e insultos. Um sobre a

sua virilidade afectou-o de uma forma mais acentuada que as outras, o que o fez

começar a correr. Perguntei-me a mim mesmo se alguma vez o voltaria a ver…

Os dias seguintes foram uma loucura: recebi presentes de imensos cães a quem ele

tinha feito mal. Quase que dobrei a minha pequena fortuna de cão de rua. Os olhares

indiscretos acumulavam-se. Mas não eram olhares maus. Eram de respeito e alguns de

desejo. Eu e Laika começamos a estar juntos mais vezes, sem qualquer problema, pois

já não existia Átila. O namoro acabou por surgir com naturalidade. Parecia que tinha

sido tudo tirado de um sonho. Todos nos viam como o casal sensação, os mais bonitos,

os mais poderosos. Com tanta adulação que chovia de todos os lados comecei a

desenvolver outro sentido meu: porque ficar confinado àquela vida de cão de rua

anónimo? Só ser conhecido naquela pequena cidade? Porque não pensar mais alto?

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Conquistar o meu próprio império como tinham feito outros cães. Pensei nisso, muitas

vezes, e assustava-me o brilho nos meus olhos quando o imaginava.

Nesse dia, acordei cedo. Laika ainda estava a dormir e não a quis acordar. Arranjei-me

sem fazer barulho e saí confiante em direcção ao centro. Durante o caminho pensei em

mil coisas, cada uma com menos sentido que a outra. Não estava nos meus dias mais

claros e parecia que me faltava alguma coisa. Tentei ignorar. Tinha grandes planos para

esse dia e não eram patéticas ideias que me iam impedir de os realizar. Cheguei ao

local. Rufus, como sempre, estava atrasado. Esperei algum tempo até que tive um

vislumbre dele ao longe. Aproximei-me.

- Sempre atrasado, caro amigo… Impressionante!

- E tu sempre crítico, amigo Spark!

Tivemos uma pequena conversa de circunstância. Tínhamos desenvolvido uma grande

amizade desde aquela vitória sobre Átila. Já tinham passado três meses e meio mas a

cada dia que passava parece que a grandeza dos nossos feitos aumentava. Naquele dia

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fomos buscar um carregamento de ossos aromáticos a um velho armazém. Aquilo

tinha bom valor de rua, se tinha! Mal os tivemos connosco, escolhemos os melhores

para consumo. O resto ficava com Rufus que no dia seguinte já os teria a todos

vendidos. Dividiríamos os lucros. Cheguei a casa e ofereci um dos ossos, o melhor, à

Laika. Ela agradeceu-me com uma espécie de lambidela no pescoço. Mas eu conhecia-

a. Aquele gesto estava completamente desprovido de sentimento.

- Que fizeste hoje, Laika?

- Humm… Nada de mais. – respondeu-me ela, na defensiva.

- Tens a certeza? Pareces estranha hoje. Demasiado estranha…

A meia hora seguinte foi preenchida com pranto e choro no meio de muitos latidos. Eu

próprio tive de me conter para não chorar, tal era a minha revolta, o meu ódio, o meu

desapontamento… Basicamente, tal era a minha tristeza. Ela tinha feito o que eu

nunca esperava dela. Tinha-me traído. Não um devaneio, algo que acontece no meio

de uma louca conjuntura, mas sim, e isso era o pior, uma traição premeditada. Com

Dimitrov, um cão de ascendência búlgara, bem maior e mais velho que eu. Não tinha

metade do meu poder nem do meu império, era verdade, mas tinha aquele aspecto

imponente que ela devia adorar. Tentei na minha mente arranjar alguma desculpa

possível para aquilo, de forma a poder perdoá-la. Eu chegava a esse ponto. Gostava

mesmo dela… Mas a minha inteligência, modéstia à parte, não é de desdenhar, e

portanto, saí do palácio, sozinho e sem rumo.

O meu sabor na boca era estranho. Era o típico amargo que perdura na boca quando

vocês humanos têm aquilo a que chamam “ressaca”. Eu não tinha bebido álcool, não.

O problema é que me tinha isolado completamente, tinha desaparecido. Estava numa

pequena gruta no cimo de um pequeno monte na zona de Penacova. Nesse gruta,

pequena como um quarto de um prédio de bairro social, a única água que eu tinha era

gelo que derretia todas as alvoradas. Essa água vinha misturada com uma data de

impurezas, pó e minerais que deixavam esse efeito na boca. Noutra altura tinha me ido

embora, mas depois da traição de Laika nem me fazia diferença. Se passava bem ou

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passava mal, já não fazia grande diferença. Desde que tinha saído de Coimbra que não

comia e não pensava muito quando seria a próxima vez que o faria.

Naquela altura só queria que a distância entre nós se tornasse literal. Saí da gruta e

comecei a andar por um pequeno carreiro coberto de ervas daninhas e pequenas silvas

que faziam o acto de caminhar uma sucessão de dores. Mais uma vez, não importava.

Andei nesse ritmo penoso durante cerca de vinte minutos. O carreiro estava quase a

acabar. Comecei a notar luzes no horizonte, fortes luzes. Luzes não fortes o suficiente

para serem de cidade, mas luzes o suficiente fortes para serem de uma pequena vila

como Penacova. Não sei o que me deu mas apeteceu-me explorar. Pensando bem, que

podia piorar? Avancei à deriva, não tinha nenhum destino nem nenhum tipo de coisa

que me fizesse parar ou continuar. Passei pela margem do rio, por uma velha igreja e,

sem dar por isso, já estava no centro da cidade. Resolvi descansar um bocado debaixo

de um pequeno banco.

- Acorda, estúpido! ACORDA!!

Acordei e senti algo puxar-me. Virei-me e vi que era um homem idoso, a cara com mais

pregas que um vestido de casamento caro. Tentei soltar-me mas ele tinha bastante

força para um humano, sobretudo um tão velho. Conseguiu colocar-me um pequeno

saco de pano na cara. Agora tudo estava a piorar. Já nem sequer ver conseguia.

- Quando eu começar, segue o meu cheiro e corre em direcção a ele, ok?

Não fazia ideia de quem fosse, mas à falta de melhor, concordei com aquela voz.

Esperei durante uns segundos. Nada. Já estava a ficar nervoso… Senti um berro do

hercúleo velho, um esgar de dor e, no mesmo instante, a pressão dos seus braços

desenvolvidos a soltar-se.

- Correeeeee!

Nem era preciso aquela voz de fêmea mo dizer segunda vez. Corri, corri como um

desalmado. Segui-lhe o cheiro selvagem. Corremos durante cerca de 3, 4 minutos. Ela

conhecia bem aquilo: sabia onde estava cada obstáculo no nosso percurso e a forma

mais rápida de chegar a um sítio seguro o que me fez depreender que ela era de lá e

que se metia muitas vezes em sarilhos. Quando me mandou parar já cheirava a

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floresta. Rasgou-me o pequeno saco com um movimento rápido das patas. Demorei

alguns momentos para que os meus olhos se adaptassem à luz trémula que a lua

emanava.

- Estás bem, cachorro?

Nem acreditei quando olhei! Uma gata, era uma gata. Uma gata tinha me salvo a vida,

ou pelo menos salvo de uma grande “encrenca”. Graças a Deus os meus amigos não

estavam lá para ver aquilo. Ia ser bastante embaraçoso e iria ouvir muitos comentários,

no mínimo, desagradáveis. Olhei bem para ela: tinha o corpo coberto de listas pretas

sobre um pêlo castanho-alaranjado. Fazia-me lembrar um Garfield feminino numa

versão mais magra. Tinha uns olhos pequenos e interessados que faziam com que

olhar para ela nos olhos durante muito tempo fosse constrangedor. Além do mais tinha

a lata de me chamar cachorro. Que tipo de gata era aquela?

- Sim, estou. Quem és tu?

- Chamo-me Mi e sou a gata que te acabou de salvar de um fim de vida miserável! – o

tom desafiador dela tinha piada.

- Achas-te muito superior para uma gatinha, não achas?

- Então? – Perguntou ela enquanto arqueava as sobrancelhas de uma forma cínica.

- Estás cheia de moral porque me salvaste de um velho louco qualquer. E chamas-me

cachorro? – aquela gata de falas provocadoras estava-me a irritar profundamente.

- Claro que chamo, não me disseste o teu nome. – A forma como ela se riu quando

disse aquilo ainda me irritava mais.

O resto da noite com ela ainda foi mais estranho: era intercalado entre

penetrantes olhares que ela me lançava e expressões de saudoso desprezo. Era

diferente de tudo o que tinha encontrado. Por um lado aquela personalidade cativava-

me. Cativava de uma forma estranha. Não como Laika de quem não conseguia tirar os

olhos. Não era esse o tipo de interesse. Não me apetecia agarrá-la e tê-la só para mim.

Mas apetecia-me estar com ela, conversar com ela, brincar com ela. Era de facto, uma

boa companhia. Acabámos por escolher uma pequena laranjeira perto da intersecção

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entre a nacional e a via local para Coimbra. Pensei para comigo mesmo que tinha de ir

para casa. Não queria, mas tinha. Ia ter que ser bastante forte, ia testar os meus

limites mentais. Amava Laika e amava o respeito que as pessoas tinham por mim. Eram

os sólidos alicerces da minha rotina. Mas esses alicerces tinham sido arrebatados como

se de palha ao vento se tratassem. Com tanta retórica que ia na minha cabeça, o sono

chegou. Adormeci envolvido numa confusa indefinição.

Acordei com uma nova vontade. Eu sempre fui um “self-made dog”, logo, não ia

desistir agora. Ia ser melhor, mais forte, ia ser mais que antes. Mi estava a dormir com

um meio sorriso na boca. Reparei com calma na sua beleza que a meus olhos era cada

vez maior. Acordei-a com leves sussurros, quase inaudíveis. Ela despertou com um

grande sorriso na cara. Olhou para mim um par de vezes e perguntou-me para onde

estava a olhar com cara de parvo. Pela primeira vez em algum tempo ri-me com

vontade. Demorámos cerca de dez minutos a preparar tudo para ir embora. Andámos

até ao sol estar no seu expoente. Conversámos sobre abandono, amor, amizade, ódio…

basicamente sobre tudo o que havia para conversar. Contou-me com algumas

reticências que vivia com uma família que adorava. Que essa família lhe dava tudo.

Mas que tudo mudou com a chegada de uma tia afastada de nariz empinado e manias

ridículas. Odiava animais, fossem eles quais fossem. Com o pretexto de ter companhia,

levou Mi numa viagem às termas de São Gemil, perto de Viseu. Lá, não demorou mais

de duas horas para a abandonar num ermo, enquanto voltava acelerada no seu jipe

snob. Aquela história mexeu comigo, identifiquei-me bastante com ela. Aquele

desapego dos seres humanos por nós, a maneira como nos tratavam como bonecos

fora-de-moda era irracional para seres que se diziam os únicos racionais. Quando

parámos, estávamos exaustos. Ela ainda teve força para caçar um par de ratos, arte na

qual percebi que era exímia. Quando a questionei sobre o motivo de tanto à vontade

na caça, respondeu-me com um piscar de olho rápido que adorava fazer “segurança”

em caves.

- Se não tens juízo nessa cabeça de cachorro que pensa que é cão, caço-te a ti!

- Ahah, nem me chegas ao focinho, quanto mais caçar-me..

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- Odeio que duvidem de mim! Vê só isto.

No instante a seguir “caçou-me”. “Caçou” da forma que mais cedo ou mais

tarde, iria inevitavelmente caçar. Rodeou o meu pescoço com as suas patas e deu-me

um beijo. E que beijo! Não imaginava que uma gata beijasse daquela forma. Não

conseguia pensar em mais nada. Naquele momento só interessávamos nós os dois.

- Vês que te chego ao pescoço?

Que ela tinha atitude, não se podia negar…

Andámos até ao pôr-do-sol a um bom ritmo. A conversa não era muita, nem

sequer era precisa. Os olhares chegavam. Estava a ficar de noite e ainda faltavam quase

7 km para alcançarmos a entrada de Coimbra. Resolvemos pernoitar ali. Era um bom

sítio, na parte de cima de uma colina. Fiz um pequeno abrigo com folhas e paus e

aninhámo-nos protegidos do vento. Estive duas horas entre o sono e o estado alerta,

entre o sonho e a realidade, a ter pesadelos com a realidade e sonhos com as soluções.

Acordei por completo com o som de passos. Fiquei alerta no momento. Há coisas que

não se esquecem. Tentei acordar Mi, mas em vão. O som começou-se a aproximar.

Contei 5 cães, pelo barulho que faziam. Se fosse uma cilada, não ia correr bem para o

nosso lado. Mi acordou finalmente, em pânico, mal viu a minha pose hirta.

- Que se passa?

Mandei-a calar com um gesto e ordenei-lhe para vir para trás de mim com

outro.

Apareceram no cimo da colina, de todos os lados, menos o que eu estava a

vigiar. Eram espertos, isso não havia dúvida.

- Quem és tu? – era o chefe daquele grupo que falava. Altivo e orgulhoso, mais

desenvolvido fisicamente que eu, mas quase de certeza, mais lento.

- Isso não interessa… que querem vocês?

- O que é que nós queremos? Humm… desfazer-te esse focinho lindo todo

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Spark! Não te lembras das nossas caras?

Como um flash, tudo se desencadeou na minha cabeça: aquele grupo, aquela

escumalha… Não havia outro nome para eles. Tinha-os conhecido à coisa de 6 meses.

Faziam todo o tipo de trabalho. Espancavam, matavam, roubavam, violavam. Não lhes

interessava outra coisa que receber o pagamento. Não tinham nome, muito menos

residência. Eram os “Pata Negra”. Segundo as histórias, pelos dedos se contavam as

pessoas que os viram e sobreviveram para contar.

- Cachorrinho, podes mandar essa gata reles embora… não fazemos questão de

sujar as nossas patas nessa coisa imunda. Ahah! Mas acredita.. Os nossos padrões

acerca de ti eram fracos. Mas deitares-te com uma gata? Não mereces sequer que te

chamem de cão!

Mi avançou, mal ele acabou de falar. Cuspiu-lhe na cara e arranhou-o com

aquela destreza que eu já conhecia dela. Eu avancei para lhe dar também. Queria

acertar-lhe com toda a minha força! Fomos os dois agarrados no momento.

- Má atitude para uma coisa desprezível que só sabe cuspir bolas de pêlo! Íamos

deixar- te ir livremente. Agora mudei de ideias: vou-te deixar assistir à morte do teu

namorado. Depois decido o que fazer contigo. Talvez ainda nos possamos divertir um

bocado... Ajudar-te a esquecer a morte do teu namoradinho…

O sangue ferveu dentro de mim. Virei-me com uma rapidez sobrenatural e

mordi um dos cães que me agarrava, enquanto mandei uma patada no abdómen do

outro. Senti o pior sabor de sempre, que infelizmente me era tão familiar. Tinha a boca

cheia de sangue. Quando olhei em volta vi um pedaço da orelha do cão que tinha

mordido. Aquilo deu-me náuseas. Mas não era tempo de enjoos. Era tempo de lutar.

Lutar como nunca antes. Durante quase uma hora distribuí patadas, cabeçadas e

mordidelas por tudo o que me aparecia à frente. Tinha a zona do pescoço com uma

ferida “aberta”, mas pouco me preocupava com isso agora, escoriações por todo o

lado, a visão enevoada, o corpo dormente. Mas tinha que continuar. Não havia outra

possibilidade. Três já tinham desmaiado ou pior. Não me podia dar ao luxo de

preocupar. Lutava agora contra mim um robusto Rottweiler, enquanto o cabecilha

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agarrava com firmeza em Mi. Ele tentava-me morder. Eu desviava-me com esforço.

Notei que ele também já estava bem cansado. O primeiro de nós a levar um golpe,

provavelmente, não voltaria a ver a luz do Sol. Ele empurrou-me e eu desequilibrei-me,

fiquei de pernas viradas para o céu. Se não era o fim, estava lá perto. Ele atirou-se para

cima de mim e mordeu-me a pata traseira direita. Senti no corpo todo a dor. Aqueles

dentes assassinos na minha carne, nos meus tendões, nos meus ossos, no meu pêlo.

Ele parecia divertido com aquilo: em vez de me atacar noutro sítio, tal era a minha

impotência, limitava-se a remoer com as suas presas dentro da minha perna. Ele queria

testar os meus limites. Tinha de jogar com isso. Encontrar os limites dele. Deixá-lo

cravar o mais possível e depois aproveitar-me da posição dele. O cabecilha ria-se e

obrigava Mi a ver. Ela miava tristemente, tentando em vão soltar-se. Comecei a sentir

os dentes dele cada vez mais fundos. Agora era um teste à minha fibra. Se eu

aguentasse sem desmaiar até ao ponto em que ele estivesse com as presas

completamente lá dentro, podia-me virar facilmente e atacá-lo no abdómen médio. Ele

continuou, continuou, continuou.. tentava lembrar-me de boas recordações para

resistir. Os bons tempos com a minha primeira família, o meu império, tudo com Laika

até à traição, ter conhecido Mi, o cão que me tinha tornado. Estava na hora de atacar.

Ele ainda não tinha perfurado o necessário. Eu é que não aguentava mais… Ou era

agora, ou nunca! Virei-me rapidamente, dei um salto e fiquei em cima dele, ataquei a

parte de cima do lombo vorazmente, rasgando tudo o que os meus dentes apanhavam.

Apanhei a parte dos ligamentos entre o lombo e a perna o que lhe toldou os

movimentos e o fez sair de dentro da minha perna. Estávamos em pé de igualdade:

ambos coxeávamos de uma perna e ambos estávamos de rastos, cheios de cortes e

escoriações.

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Ataquei-o com cautela. Uma, duas, três, quatro vezes. Sempre desviadas.

Comecei a encostá-lo à parte descendente da colina, o que me dava uma boa

vantagem. Era empurrá-lo e jogar com o cansaço. O tempo passava. Faltavam pouco

mais de duas horas para o amanhecer. O meu corpo gritava ao meu cérebro uma

ordem: descanso! O meu cérebro transmitia-me essa ideia mas eu recusava obedecer-

lhe. Continuei a empurrá-lo vigorosamente. Já lhe sentia menos resistência, o que era

óptimo. Olhei para ele e vi nos seus olhos que tinha percebido que era o fim. Murmurei

um “desculpa” que no fundo era sentido e dei-lhe o empurrão final. Viu-o rebolar

colina abaixo e parar ruidosamente sobre um grande rocha, cerca de vinte metros mais

abaixo. Nenhum cão conseguia sobreviver àquilo, tinha a certeza. O chefe dos “Pata

Negra”, o único que restava, olhou para mim. Via ódio nos seus olhos, também via

admiração.

- Dás-lhe mais “có queu” pensava.

- Vamo-nos deixar de jogos e elogio que não levam a lado nenhum. Quero

acabar isto já! – o meu tom era firme e confiante, por fora.

- Eu digo-te como é que isto vai acabar miúdo: se me tocas, mato a tua miúda,

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aqui, à tua frente. Se te portares bem, ela vem comigo sã e salva. Até a deixo em

Coimbra se quiseres!

- E isso implicava o quê para o meu lado?

- Pouca coisa… Que me deixasses magoar-te a meu bel-prazer. Incapacitar-te.

Tenho um acordo a cumprir para com o meu amigo Dimitri. Sou um homem de

negócios.

- Então o teu problema é o pagamento e a honra? Não há problema.

Resolvemos isso facilmente e ainda ficas a lucrar.

- Surpreende-me cachorro… Que tens para me oferecer?

- Muito simples! Eu pago-te mais do que esse Dimitri alguma vez te pode pagar.

Nós os dois desaparecemos. Ou pelo menos eu desapareço, que é o mais importante.

Dizes-lhe que eu estou morto e recebes o pagamento dele, além de que não ficas

desonrado. Que te parece?

- Achas que eu sou burro? Tu vais aparecer em Coimbra e eu é que fico mal.

Não nasci ontem, Spark…

- Que ganhava eu em aparecer em Coimbra? Devo ter muitos amigos que,

enquanto estive fora, tomaram o que era meu. Tenho uma cadela que me traiu e deve

estar neste momento a rir-se de mim numa cama com Dimitri ou com outro qualquer.

Que achas tu que são os meus motivos para voltar a Coimbra?

- Realmente, vendo as coisas assim… Mas põe-se outra questão: como sei que

não vais agir à má fé durante a viagem?

- Viagem? Que viagem?!

- Só deves estar louco Spark! Tu e a tua amiga vão-me escoltar até à entrada de

Coimbra. Por estas terras não sou o único cão que faz este tipo de trabalhos. Granjeei

muitos ódios durante a vida. Atravessar estes kilómetros sozinho era suicídio.

- Bem, estou a ver que não há nada a fazer… De acordo!

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Este momento ficou para sempre gravado na minha cabeça. Ainda hoje me

arrependo de ter concordado com aquela viagem. Mudou a minha forma de ver as

coisas, inclusive, de me ver a mim mesmo.

- Vamo-nos cumprimentar para selar o acordo! Já agora, o meu nome é

“Brutus”.

Afagámos as patas o mais cordialmente possível.

- Acordo selado! Porque te chamam de “Brutus”?

Deu-me uma patada no peito com a maior força, o que me fez cair.

- Por ser amistoso não há-de ser, senhor inteligência! Levanta-te, isto não é uma

visita de estudo. Vamos sair daqui, acampar quinhentos metros à frente, num sítio que

eu conheço. Vamos dormir um par de horas e partir. Venham.

Odiava ter de obedecer àquele mercenário, mas não me parecia haver outra

opção. Tinha de ser mais engenhoso que ele. Andámos cerca de vinte cinco minutos

até chegar ao local onde ele queria descansar. Ficámos na parte média, nem a mais

alta, nem a mais baixa, dentro de um espaço entre rochas. Era bom porque víamos

tudo, mas ninguém nos via, além de que protegia daquele vento incómodo. Estava

alerta, mas adormeci quase na hora com Mi encostada a mim. Brutus acordou-me com

uma patada seca na cabeça.

- Acorda Bela adormecida! Está quase na hora do teu spa.

Irritava-me profundamente aquela prepotência. Cerrei os dentes e levantei-me.

Ajudei Mi e partimos. Era estranho viajar com ele. Era notório que a sua saúde mental

não era a melhor. Oscilava entre comentários quase cordiais sobre o ambiente à nossa

volta e ataques à minha personalidade e físico. Apesar de coxear e da sua perna

atacada por mim quase não se mexer, nunca se queixou ou quis parar. Andámos

bastante em cerca de duas horas e meia. Sobretudo vendo que dois vértices do trio

estavam coxos e o terceiro é uma gata que apesar de não ser indefesa, não passa disso,

uma gata. A certa altura Mi pediu para parar.

- Dez minutos, docinho! Para não ficares muito cansadinha. – ele era

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completamente psicopata, ou bipolar, ou esquizofrénico. Algo desse género. Fui beber

água com ela. Estávamos demasiado cansados para falar ou qualquer outra coisa.

Limitámo-nos a beber água e a encostarmo-nos um ao outro. Passaram cerca de vinte

minutos e não havia sinal de Brutus. Fiquei mais algum tempo a pensar que fazer: se

seguir sem ele ou se devia procurá-lo. Decidi-me pela segunda. Preferia ir com ele a ter

que contar em ser perseguido por ele. Entrei pelo carreiro que ele seguiu e andei cerca

de dois minutos. Encontrei um riacho. Ouvi barulho. Segui a margem e, por fim,

encontrei-o. Preso num ramo, metade do corpo e toda a cabeça submersa em água. A

outra metade do corpo suspensa por entre ramos que o prendiam. De quando em

quando, ele tinha força para emergir a cabeça e gritar socorro e misericórdia.

- Sabes nadar?

- Sei, solta-me mas é seu inútil!

Com rapidez e eficácia cirúrgica, apesar das pontadas de dor na perna, soltei os

primeiros ramos.

- Vou soltar o ramo que te vai fazer cair na água. Quando disser três. Põe-te

pronto para nadar! Um… Dois… Três!

Soltei o ramo e instantaneamente ele caiu. Bateu na água com estrondo e

demorou a vir à tona. Quando o fez, percebi logo que algo estava mal.

- Cai num remoinho! Não tenho forças para nadar. Ajuda-me! – disse-me ele por

entre goladas de água.

Pensei nas minhas hipóteses: saltar e tentar ajudá-lo ou ficar a assistir à sua

morte? Era complicado demais para a minha cabeça. Se saltasse o mais certo era

também morrer. Mas se não saltasse teria uma culpa dentro de mim que me ia

acompanhar e vergar para o resto da vida, por mais que ele fosse um canalha!

- Ajuda-me! Não aguento mais! Não me deixes morrer!

- Desculpa, não me posso arriscar a morrer também. Tenho pena que acabes

assim. Mas se saltar o mais certo é morrermos os dois!

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- Maldito sejas! Que dês sentido à expressão “vida de cão”! Que morras cedo,

doente, cheio de dores, sem as pessoas que amas do teu lado. Seu covarde, seu filho..

– não acabou o insulto porque a água puxou-o pela última vez. Vi o seu corpo descer e

descer e, por fim, ficar inanimado, preso no lodo. Demorei-me lá durante mais algum

tempo, como que prestando uma homenagem àquele mercenário. Acabei por voltar. O

“buraco” dentro de mim era enorme. Sentia-me culpado daquela morte e apesar de

todos os argumentos racionais com os quais era advogado de mim mesmo, sentia-me

um cobarde. Podia ter tentado salvá-lo e não vê-lo morrer. Por muito mau cão que

fosse, merecia. Encontrei Mi, enquanto estava perdido nos meus pensamentos.

Rapidamente a pus ao corrente do que tinha acontecido. Não poupei pormenores. Ela

abraçou-me e disse que a minha escolha tinha sido a mais correcta mas os olhos não

mentem e os dela mostravam decepção. Fiquei ainda pior, se tal coisa era possível.

- E agora, que fazer?

- Os teus donos são de Coimbra, certo?

- Sim, Spark.

- Vou-te deixar a casa.

- E tu cachorro? Que vai ser da tua vida?

- Tenho de recuperar o que é meu: os meus bens, os meus amigos, a…

- Não precisas de dizer mais nada! Vamos!

Quanto mais perto chegava da casa de Mi, mais queria mudar de ideias. Ficar

com ela, dizer-lhe para deixarmos tudo e fugir. Ir contra o que nós achávamos que

queríamos e até contra a própria natureza, que achava eu, não iria aprovar a nossa

união. Quando chegámos a casa dela, uma boa vivenda com um amplo jardim, decidi:

não ia ser egoísta ao ponto de lhe sugerir que ficasse comigo. Despedi-me dela com um

aceno de fingida indiferença e observei-a a subir a pequena escadaria que dava até à

entrada da casa, vi a sua dona agarrá-la, enchê-la de festas e de beijos. Aquele não era

o meu mundo. Não era possível, equacionável sequer, que a minha dona (se assim lhe

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podia chamar) me encontrasse e me enchesse de festas. Iria ignorar por completo a

minha presença, fazer de contas que não tinha reparado num cão assustadoramente

parecido com o que ela tinha abandonado dois anos e meio antes e teria continuado a

andar. Resolvi que nem valia a pena remexer mais no assunto. Já tinha pesos

suficientes dentro de mim, fruto dos meus próprios actos. Pensei em Brutus e em toda

a “Pata Negra”, que, de uma maneira ou de outra, justa ou injustamente, tinham sido

mortos por mim. Pensei até que ponto aquilo tinha sido necessário. Lembrei-me de

muitas lutas de rua. De como humilhei cães sem a mínima necessidade, como os

espanquei por riqueza ou respeito e, raras vezes, por uma questão de auto-defesa.

Naquele momento tomei uma decisão. Ia deixar aquela vida em definitivo, encontrar

um sítio onde pudesse viver pacatamente o resto dos meus dias. Mas não era fácil: por

um lado não queria ficar na rua, por outro não admitia voltar a ter um dono. Não havia

grande solução. As ideias passavam-me no cérebro sem um mínimo de nexo. Caminhei

durante um bom pedaço: o sol estava alto quando comecei, estava quase posto

quando acabei e a minha cabeça se “iluminou” ao ponto de até as minhas orelhas se

terem eriçado. Aquilo era ridiculamente simples. A solução estava no meio-ponto: iria

para um canil e lá me iria arrastar o resto da vida, de uma forma similar ao que fazem

os monges humanos. Não queria confusões, nem festas, nem ser adoptado. Queria

apenas a minha paz.

Acordei. Mais um dia. Levantei-me e bebi alguma água. Fui até a um canto e fiz

as minhas necessidades. Lavei-me suavemente na mesma tigela da qual tinha bebido

água e olhei para um azulejo turquesa no qual conseguia ver o meu reflexo. Estava

magro, bastante mais magro que antes. Os músculos já não abundavam como antes,

apesar disso, ainda impunha algum respeito. Mas não era um respeito igual ao de

antes, temeroso. Estava há quase três anos naquele canil. Sempre me recusei a ser

adoptado. Quando alguém demonstrava interesse em mim, que modéstia à parte foi

muita gente, eu agia de forma estranha. Umas vezes, apenas não agia, estando o

tempo todo da visita de forma passiva, sem me mexer sequer. Outras vezes, simulava

ser louco, andando às voltas por todo o compartimento onde vivia ou, então, fazendo-

me incapaz de andar firme, fazendo que não era saudável. Os monitores achavam

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estranha aquela atitude, mas não me castigavam por tal comportamento. Com o

tempo foram prestáveis ao ponto de não me sujeitar a visitas com o intuito de adoptar.

Agradeci-lhes isso com uns roçares de perna tímidos durante algum tempo e acho que

eles compreenderam a mensagem porque não paravam de me fazer festas. Os cães

novos achavam estranho, a forma como actuava, mas raramente me perguntavam.

Supus que se devesse ao facto de os cães mais antigos os avisarem para não me

questionarem. Um número restrito de cães, os que se confundiam com a mobília, sabia

parte da verdade. Um deles era o Três. Era um nome jocoso mas ele não se importava.

Assim lhe chamavam porque só tinha três pernas. Tinha sido atropelado mal era ainda

um cachorro. Era o meu colega de quarto e provavelmente o meu único amigo, o único

em quem confiava a 100%. Ele enchia-me de pena. O seu desejo era o oposto do meu.

Ser adoptado, ser acarinhado, ter algo a que pudesse chamar uma família. Perguntava-

me vezes sem conta se tinha algum “problema de orelhas”, era a expressão que ele

utilizava porque, segundo ele, os cães pensavam com as orelhas. Ao fim de uns tempos

deixei de o contradizer. Muitas vezes lhe expliquei que ter uma família não era assim

tão bom, que por vezes eles te “chutam”, magoam e abandonam. Que o sabia por

experiência própria. Ele respondia-me com a maior calma que nem todas as pessoas

são iguais.

Os meus dias no canil eram bastante preenchidos. Uma das coisas que fazia,

muitas vezes e com bastante mestria, era conversar. Conversar e acalmar cães que

eram quase fotocópias de mim há cerca de três anos e meio atrás. Muitos deles tinham

ouvido histórias sobre mim nas ruas, umas reais, outras exageradas. Eu dialogava com

eles, explicava-lhes que aquela vida não levava a lado nenhum, que iam perder mais do

que ganhar. Eles ripostavam, disparavam comentários disparatados em todas as

direcções mas, no fim, acabavam por ficar e me dar razão, prometendo melhorar a

conduta e tentar ser adoptados. Outra coisa que fazia era tentar controlar os conflitos

de modo a que não se chegasse à violência. Apesar de não ser como antes em termos

físicos, o ar provecto que alguns pêlos brancos me davam e o respeito que me tinham

fazia com que aquele canil fosse bastante calmo.

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Era mais um dia de rotina. Tinha acabado de comer. Estava faminto do jogo da

bola que tínhamos jogado antes! Estava no meu compartimento a tentar dormitar.

Fazia um nevoeiro espalhado no ar que me deixava deprimido. Além do mais, estava

frio e húmido. Aquela tarde era perfeita para descansar. Deixei-me envolver no

cobertor e dormir. Não me lembro de ter adormecido. Tive uma imensidão de sonhos,

como flashbacks. O dia em que fui abandonado, o dia em que fui aceite pelos meus

amigos de rua, o dia em que conquistei Laika, o dia em que conheci Mi, a noite em que

derramei mais sangue que algum cão deve derramar. Com tudo isso eu sonhava, com

uma precisão assustadora. Parecia que as coisas estavam de novo a acontecer, à minha

frente. Tentei acordar, mas foi em vão. Agora as recordações eram outras, coisas das

quais me lembrava vagamente. Um bolo de iogurte que a mãe da Matilde fez. Lembrei-

me do sabor a penetrar astutamente o meu focinho. De como me deliciei com os

pedaços que Matilde me dava por debaixo da mesa. Outra. Agora era de um dia de

Inverno, há quase quatro anos atrás. Tinha uma ideia dessa e sentia-me envergonhado

por ter de o recordar. Envolvia um cão, Hércules. Esse cão tinha-me dado um encontrão

numa espécie de jantar para o qual ambos fomos combinados. Ele disse que foi sem

intenção, mas eu vi. Vi nos olhos dele a provocação. “Faz-me pagar, faz-me pagar por

este abuso!”. Eu lia-o na expressão dele e não podia ser deixado impune. No dia

seguinte, eu próprio fui a casa dele, entrei sem pedir sequer. A imagem estava ali bem

clara: eu a destruir tudo o que ele tinha de valioso, a cadela com quem ele vivia a

pedir-me para parar, que tinham percebido a mensagem. Queria que aquele sonho que

se estava a tornar num pesadelo acabasse. Não bastava já viver com a culpa de ter

cometido tantas atrocidades? Era preciso revivê-las daquela forma? Estava-me a

consumir por dentro! Até que do nada tudo mudou. A recordação, era, embora não o

quisesse admitir, a melhor da minha vida. A que me enchia com mais alento. Tinha

estado com cadelas bastante bonitas, com muitas delas de forma bastante íntima. No

entanto, nenhuma tinha tanto poder sobre os meus sentimentos como Mi e o beijo

fugido que trocamos. Era essa a recordação. Aquele beijo fugido, fugaz, contranatura,

proibido pela natureza, proibido pelos deuses. Agora não queria acordar. Queria ficar

naquele transe o resto do dia a reviver aquele momento. Mas parece que a minha

mente me ouviu. Lentamente comecei a sair daquele estado e a voltar à realidade.

Entre o sonho e o real, cada vez mais no real, cada vez mais rápido.

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- Tu assustas quando dormes, Spark! Fartas-te de falar. Palavras soltas sem

nexo…

Ia falar mas calei-me. Tive medo de perguntar e que a resposta fosse a que eu

esperava. Avisei-o que ia sair. Que tinha de ficar sozinho por um bocado e que, com

certeza, voltaria para jantar. Ele não disse nada, não achou estranho sequer. Tinha

ficado com uma personalidade estranha que, por vezes, me surpreendia a mim mesmo

e Três já estava habituado. Fui até ao jardim. O frio acalmava-me de uma forma

impressionante. Fazia os pensamentos voltar ao normal com aparente facilidade. Estive

ao pé das flores algum tempo. Não sei quanto, ao certo. O suficiente para o frio se

tornar desconfortável. E bastante! Resolvi voltar para dentro. Quando comecei a andar

apercebi-me que estava cheio de fome. O cheiro que emanava de dentro da cantina

não ajudava nada. Cheirava-me a carne acabada de cozer. Não nos davam carne todos

os dias, por razões nutritivas, portanto, tinha que chegar ao compartimento cedo para

que pudesse escolher uns dos melhores nacos. Fui por um atalho pelo lado de trás.

Eram as vantagens de estar ali alojado há tanto tempo. Por esse atalho ia sair do canil,

atravessar a entrada do canil onde os humanos estacionavam os seus carros,

aproximar-me do muro com rede, entrar por um buraco na mesma, passar a sala da

veterinária e ficar em frente ao meu compartimento em metade do tempo do que pelo

caminho normal. Estava quase a passar pela sala da nossa médica, quando senti um

aroma familiar. Um aroma doce, convidativo. Segui-o até a porta entreaberta do

pequeno posto médico. Numa fracção de segundo, vi-a e associei o cheiro

automaticamente. Mi estava ali. Só havia uma coisa a fazer: esconder-me para não lhe

estragar a vida. Saí sorrateiramente de ao pé da porta e pus-me a caminho. No

entanto, esqueci-me que os gatos também têm um olfacto apuradíssimo. Não ao nosso

nível, mas bastante bom. Ela veio atrás de mim. Estava em forma, muito boa forma

porque me alcançou facilmente e prendeu-me ao pescoço, numa tentativa de me

imobilizar. Tive de parar para não a arrastar por aquele chão de brita.

- Não sei que vieste aqui fazer, Mi. Procuras a desgraça…

- Deixa de ser assim. Procurei-te durante tanto tempo e é assim que sou

recebida? Fazes ideia do tempo que passei a tentar explicar por sinais e mios que

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precisava de te encontrar? A minha dona pensou que tinha voltado doida. – o tom dela

era firme e decidido.

No entanto, não dava para esconder a mágoa. Reparei que tanto a veterinária

como a dona dela presenciavam aquilo e dei graças por os humanos não nos

entenderem.

- Se calhar voltaste mesmo. Andas este tempo toda à procura de um assassino,

de um proscrito, de um ladrão…! É preciso alguma loucura para procurar alguém assim.

– Tinha que ser assim para ela, insultá-la se fosse preciso. Ela tinha de se ir embora.

- Carregas esse fardo há demasiado tempo. Ainda por cima de uma forma

parva. Todas as coisas que fizeste enquanto estavas comigo foram necessárias. Se não

tivesses morto os tipos da “Pata Negra” éramos nós que tínhamos morrido. Sabes tão

bem quanto eu. E em relação a Brutus, só te peço para pensares. Arriscar a tua vida

por um mercenário que tinha sido pago para te matar? Não te culpes por isso, Spark.

Em relação ao resto, antes de te conhecer, não posso ajuizar. Mas considera que eras

novo, abandonado, com más companhias. Acho que isso ajuda a desculpar um pouco.

Não por inteiro, porque magoaste muita gente mas torna-se desculpável. Além do

mais, já não te penitenciaste tu o suficiente aqui? Longe de quem gostas, da liberdade

que amas, dos pequenos prazeres que antes não dispensavas? Vem comigo. Há lugar

em minha casa para ti. A minha dona não te abandona. É uma senhora amorosa e

adora atenção. Nunca te vai deixar. Tens um grande pátio com relva para correr e não

ficares totalmente órfão de liberdade. Vem por favor…

- É notável a tua capacidade de fazer com que os meus terríveis erros pareçam

pequenas falhas! Mas sabes? As coisas não mudam. Eles são o que são. Fantasmas que

me vão acompanhar a vida toda, que me vão roubar o melhor sono, o prazer que eu

tiro de comer um grande bife, todos os prazeres. Vou ser feliz, mas nunca totalmente.

As minhas acções vão-me sempre perseguir. Um cão assim não pode viver numa

grande casa com uma simpática senhora que lhe dá água fresca e boa comida em

abundância a horas certas. Não está certo. Não me ia sentir bem sequer. Além do mais,

fiz um amigo aqui e não o quero deixar.

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- Um amigo? Progressos, muito bem! Pensei que te ias dedicar à meditação o

resto da vida. Em relação ao teu amigo não há problema. Com certeza que a minha

dona não se importa de levar dois, em vez de um. Animal é o que não falta naquela

casa. – Ela falava confiante. Estava a convencer-me, a fazer-me ver as coisas de outra

forma. Uma forma positiva. Agora vinha a pior parte.

- O meu amigo tem um problema. Nunca ninguém mostrou interesse em levá-

lo.

- Sem problema. Mostra-me o teu amigo!

A dona e a veterinária seguiram-nos perplexas até ao meu compartimento.

- Este é uma pena. Até choca a ver. Perdeu uma patinha em pequeno, ‘tá a ver?'

– a velha veterinária mostrava uma verdadeira tristeza pela história de Três enquanto

falava.

- Coitadinho… Eu vejo na mesma. – a voz da dona de Mi era pausada e

doce, de confiar.

A velha Alice, assim se chamava a nossa médica abriu o nosso compartimento

e pouco depois Três saiu a coxear. A dona de Mi aproximou-se dele. Notei o rubor nos

olhos do meu amigo. Há muitos anos que os monitores eram os únicos humanos que

se aproximavam dele. Ela chegou ao pé dele calmamente e afagou-o. Nunca tinha visto

um cão sorrir com tantos dentes à mostra. Ela continuou a fazer-lhe festas

delicadamente, tirando-lhe as réstias de receio. Pela primeira vez, desde que tinha ali

chegado, vi-o verdadeiramente feliz. Eu próprio estava bastante contente de o ver

assim.

- Agora só faltas tu decidir. Em relação ao teu amigo, já deu para perceber que

vai acabar em minha casa.

- Eu fico. A tua casa não é o lugar certo para mim.

- Deixa de ser casmurro, Spark! Anda comigo por favor. Deixa-nos tratar de ti…

A dona de Mi chegou perto de mim. Incrivelmente não me afastei. Era o que fazia

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normalmente. Mas aquela mulher tinha qualquer coisa. Um ar adorável, sincero. Deixei

que ela me afagasse, brinquei com ela a uma espécie de apanhada, deixei-a dar-me um

biscoito. Não havia nada a fazer. Aquela conjuntura toda desde a simpática mulher, a

Mi, à sua descrição de como era a casa, à quantidade de animais que Mi dizia que ela

tinha. Tudo aquilo tinha-me convencido. Eu ia!

- Bem, acho que levo estes dois. São mesmo queridos!

- A senhora deve ter coração de ouro. No sem a patinha ninguém queria pegar.

No outro, era o contrário. Muita a gente o queria levar mas ele ignorava toda a gente.

Não dava bola a ninguém.

- Acho que fiz uma boa escolha! – Agora era eu que sorria, de orelha a orelha.

- Acorda, Spark, acorda! Está tanto sol e tu a dormir! Anda! Vamos ao lago tomar

banho.

- Impressionante Mi, o Carrots já está acordado e não me deixa dormir.

Relembra-me porque é que a tua dona comprou um coelho.

- Sabes… Não te tínhamos a ti nem ao Três e tem que haver presença masculina

em todas as casas. Para dar equilíbrio. – O tom de brincadeira irónico que ela usou

acordou-me. Saltei-lhe para cima e mordisquei-lhe a cauda.

- Calma grandalhão! Sempre o mesmo tu. Fazes ronha para acordar, mas quando

acordas só queres brincadeira. Nunca vi uma coisa assim. Pareces um miúdo! – Ela

tentava parecer séria, mas os risos que deixava escapar entre palavras denunciavam-

na.

Levantei-me e comi uma boa porção de ração. Era mesmo boa. Tinha ervilhas, frango,

bacon e perú. Adelaide, assim se chamava a nossa dona, era bastante abastada. Como

tal, adorava mimar os seus animais de estimação. Mal fomos viver com ela,

encomendou uma peça amovível com uma pequena roda para Três. Essa peça permitia

que a diferença, na liberdade de movimentos entre eu e ele, fosse quase nula. Ele

saltava, pulava, corria, mergulhava. Era a vida que aquele cão de tão nobre coração

merecia. Eu também brincava muito. Impedia que os “fantasmas” me perseguissem.

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Vivia uma vida óptima e estimava-a. Todos nós sabíamos isso e agradecíamos a

Adelaide com todo o carinho que lhe conseguíssemos dar. Ela retribuía sempre.

Para espanto de nós próprios eu e Mi não nos voltámos a envolver. A princípio, o calor

do reencontro apontava para isso, mas, depois, pensámos e decidimos. Pensámos no

futuro. Nos monstros, não havia outra palavra, que os nossos filhos iam ser. Na mistura

profana que íamos realizar. E mais que tudo isso, a maneira como eles iam ser julgados,

atormentados e provavelmente mortos, ou pela nossa sociedade, ou pela humana.

Assim decidimos guardar o nosso amor, mas não consumá-lo. Trocávamos carícias, sim,

mas da mesma forma que dois amigos trocam. Nunca mais que isso. Tínhamos uma

ligação especial, talvez única no mundo animal, doméstico ou não. Mas não a

podíamos perpetuar. A princípio, isso deixou-nos tristes, mas acabámos por aceitar

bem e valorizar ainda mais o facto de estarmos sempre juntos. Apesar da aceitação por

parte de ambos, nenhum de nós voltou a envolver-se com alguém. Nem eu com outra

cadela, nem ela com outro gato. Não éramos capazes. O resto dos animais da casa

achava aquilo estranho, mas respeitava. Eu não me importava com o que achavam

acerca da nossa “castidade”. Importava-me sim com a saúde de todos eles, com a

felicidade de todos eles, com a segurança de todos eles. Finalmente estava num sítio

onde me sentia seguro, estava ao lado de quem eu gostava e que gostava de mim de

verdade. Isso fazia com que os maus pensamentos não me atormentassem por mais

que uns momentos. Não sentia saudades das riquezas que tinha conquistado na rua,

das bonitas cadelas que se insinuavam a mim. Não sentia necessidade de

absolutamente mais nada. Era isto. Era isto a felicidade!

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