objeÇÃo de consciÊncia mÉdica e direito À prÓpria...

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CEDIS Working Papers | CRIMINALIA | ISSN 2184-0471 | Nº 4 | setembro 2017 1 CRIMINALIA SETEMBRO 2017 4 OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA MÉDICA E DIREITO À PRÓPRIA MORTE: AS DUAS FACES DE JANO? Conscientious objection in medicine and right to die: Janus two faces? JOÃO VARELA Doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e Investigador do CEDIS RESUMO Após se procurar uma possível caracterização dogmático-constitucional da objeção de consciência e do direito à própria morte - tendo, também, por referência a jurisprudência e legislação nacional e as decisões, nesta sede, do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) -, investiga-se a relação recíproca dessas figuras jurídicas no contexto de uma eventual lei disciplinadora da eutanásia ativa ou voluntária. PALAVRAS-CHAVE direito à objeção de consciência; direito à vida; direito à própria morte; ajuda médica ao suicídio; eutanásia ativa.

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OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA MÉDICA E DIREITO À PRÓPRIA MORTE: AS DUAS FACES DE JANO? Conscientious objection in medicine and right to die: Janus two faces? JOÃO VARELA Doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e Investigador do CEDIS RESUMO

Após se procurar uma possível caracterização dogmático-constitucional da objeção de

consciência e do direito à própria morte - tendo, também, por referência a jurisprudência e

legislação nacional e as decisões, nesta sede, do Tribunal Europeu dos Direitos do

Homem (TEDH) -, investiga-se a relação recíproca dessas figuras jurídicas no contexto de

uma eventual lei disciplinadora da eutanásia ativa ou voluntária.

PALAVRAS-CHAVE direito à objeção de consciência; direito à vida; direito à própria morte; ajuda médica ao

suicídio; eutanásia ativa.

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ABSTRACT After aiming for a dogmatic and constitucional characterization of the concepts

"conscientious objection" and "right one's own dead" - taking also in account how they are

treated, not only by the national jurisdiction and law, but also by the European Court of

Human Rights -, we inquire about the potential relation between this concepts in the

setting of a possible euthanasia law.

KEYWORDS conscientious objection; right one's own life; right one's own dead; aiding suicide;

euthanasia.

1. Introdução Parece inegável que as nossas sociedades democráticas ocidentais veem

no reconhecimento e promoção da autonomia pessoal uma das dimensões fundamentais

do respeito que é devido à dignidade da pessoa humana, encontrando esta, por sua vez,

no direito à vida (mas, também, à própria morte) a sua condição antropológica essencial.

Todavia, a autonomia pessoal, cuja vertente dinâmica reside no direito ao

livre desenvolvimento da personalidade, é, simultaneamente, uma possível manifestação

da liberdade de consciência, afirmando-se esta outra como o reduto último - inviolável e

mais íntimo - das nossas convicções individuais, também religiosas e de culto1, mas que

se alargam a outros domínios do pensamento: moral, ético, filosófico, etc. É, assim,

aquela liberdade de consciência a fonte axiológico-normativa originária da nossa

identidade ideológico-individual, um espaço próprio de radical liberdade que nos converte

a cada um de nós em algo único e irrepetível. Segundo Capodiferro Cubero, "la libertad

1 Diz TELES, M. Galvão. "Liberdade de consciência e liberdade contra legem", em Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, 90 anos. Almedina, Coimbra, 2007, p. 922: "Assinale-se que, literalmente, o texto constitucional concebe a liberdade que abrange consciência, religião e culto como liberdade única. Tal decorre da utilização do singular no n.º 1 do artigo 41.º - 'é inviolável'. Isto significa que a liberdade de religião representa uma especificação da liberdade de consciência, da mesma forma que a liberdade de culto constitui, de modo imediato, uma especificação da liberdade de religião e, de modo mediato, da liberdade de consciência. Em última análise, unidade ou pluralidade dependem da perspectiva".

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de conciencia (...) es lo que permite a la persona determinar verdaderamente y en libertad

su proyecto vital y, por tanto, condiciona la manera de ejercer el resto de sus derechos2".

Em todo caso, a expressão colectiva mais relevante desta liberdade de

consciência expressa-se no património cultural da comunidade em que nos integramos,

devendo, assim, o Estado garantir a todos e cada um dos seus cidadãos o direito de livre

acesso (designadamente, através da educação) a esse bem civilizacional. Neste sentido,

é, também, incumbência dos poderes públicos, em colaboração com os diversos agentes

culturais, promover, incentivar e assegurar todas as iniciativas que permitam uma fruição

e criação culturais mais efetivas, em ordem a uma plena democratização da cultura (cfr.,

respectivamente, arts. 73.º, n.º 3 e 78.º, CRP).

Pode, entretanto, suceder que o Estado intervenha limitando a liberdade de

consciência, particularmente mediante a edição de normas jurídicas cujo conteúdo

conflitue com as convicções íntimas dos respectivos destinatários. Em princípio, a

obrigatoriedade geral que caracteriza as normas jurídicas não é suscetível de ser

contrariada, sob pena da autoridade pública ver, seriamente, limitada a sua ação a favor

do bem comum, sem ignorar a violação do princípio jurídico-constitucional de igualdade

perante a lei, na sua vertente formal (cfr. art. 13.º, n.º 1, 2.ª parte, CRP). De qualquer

modo e favorecendo uma diferenciação material na interpretação deste último princípio,

invoca-se amiúde um direito à objeção de consciência, permitindo-se, assim, à pessoa

vinculada prima facie a uma determinada obrigação jurídica, incumpri-la sem mais, desde

que esta violação esteja, seriamente, fundada em razões de consciência.

Seguidamente, ocupar-nos-emos, não apenas da análise da natureza

jurídica à luz da Constituição portuguesa dos direitos à objeção de consciência e à própria

morte (como vertente negativa do direito à vida), mas, também, das ponderações

valorativas que o respectivo exercício implica, nomeadamente na área de prestação de

cuidados médicos em final de vida.

2 CAPODIFERRO CUBERO, Daniel. La objeción de conciencia: estructura y pautas de ponderación. Bosch Editor, Barcelona, 2013, pp. 22 e s.

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2. É a objeção de consciência um direito

fundamental? A questão coloca-se, evidentemente, apenas em relação aos direitos,

liberdades e garantias, em virtude da objeção de consciência não se traduzir num direito a

qualquer prestação pública (direitos fundamentais sociais). Por outro lado e tendo em

consideração a sua natureza, eminentemente, pessoal - que está, onto-axiologicamente,

radicada na consciência humana -, a respectiva caracterização dogmático-constitucional

situar-se-á no âmbito dos direitos, liberdades e garantias pessoais, especialmente

regulados nos arts. 24.º a 47.º, CRP.

À primeira vista, a resposta parece afirmativa, posta a consagração

expressa do direito à objeção de consciência no artigo 41.º, n.º 6, CRP: isto é, num

preceito constitucional que faz, sistematicamente, parte da disciplina dos direitos,

liberdades e garantias pessoais, estatuindo-se aí que "é garantido o direito à objeção de

consciência, nos termos da lei". Todavia e se atentarmos no conteúdo normativo deste

preceito, verificaremos que ele consagra um direito à objeção de consciência secundum

legem (por alguns designada "objeção de consciência imprópria"), não contra legem ou

mesmo praeter legem3.

Na sua versão originária, o art. 41.º, n.º 6 (à época, art. 41.º, n.º 5)

apresenta a redação seguinte: "É reconhecido o direito à objeção de consciência, ficando

os objetores obrigados à prestação do serviço não armado com duração idêntica à do

serviço militar obrigatório"4. Portanto, a objeção de consciência está adstrita ao serviço

militar obrigatório, sendo que o mesmo preceito constitucional institui um dever jurídico

alternativo que, correspondendo embora a uma prestação à comunidade com a mesma

duração do serviço militar objetado, não obriga ao uso de armas. Dito de outro modo: o

direito à objeção de consciência está sujeito ao cumprimento de uma obrigação

alternativa, de tal sorte que a inobservância desta implica a perda daquele direito.

3 Para certas correntes doutrinárias, somente o direito à objeção de consciência contra legem constituiria uma verdadeira objeção de consciência: "objeção de consciência própria" ou stricto sensu, traduzindo-se o exercício desse direito no incumprimento por razões de consciência de uma obrigação jurídica prevista numa lei que, não apenas não estabelece um comportamento alternativo ao imposto, como sanciona, juridicamente, aquele incumprimento. Diz, todavia, CAPODIFERRO CUBERO, Daniel. op. cit. p. 88, que "(...) cuando se ejerce una objeción contra legem se aspira a la exención de la responsabilidad que normalmente derivaría del incumplimiento del deber jurídico".

4 A Constituição da República Portuguesa estipula ainda, na sua versão primitiva, que "(...) os objectores de consciência prestarão serviço militar não armado ou serviço cívico adequado à sua situação" (cfr. art. 276.º, n.º 3, 2.ª parte, CRP).

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Após a revisão constitucional de 1982, a nossa Constituição passa a incluir

o já citado art. 41.º, n.º 6, cujo texto se mantém inalterado até hoje. Simultaneamente, é

introduzido o art. 276.º, n.º 4, em conformidade com o qual "os objetores de consciência

prestarão serviço cívico de duração e penosidade equivalentes à do serviço militar

armado". Neste contexto jusconstitucional, a Lei n.º 7/92, de 12 de maio, que regula a

objeção de consciência ao serviço militar obrigatório 5 , estatui que o processo

administrativo de aquisição do estatuto de objetor de consciência "inicia-se com a

apresentação pelo interessado de uma declaração de objeção de consciência", aí se

incluindo, obrigatoriamente e entre outras informações, "a declaração expressa da

disponibilidade do declarante para cumprir o serviço cívico alternativo" cfr. art. 18.º, ns.º 1

e 3, d). Determina-se ainda que as deficiências da declaração de objeção de consciência

implicam a ineficácia da mesma e a consequente mobilização militar do declarante (cfr.

art. 21.º, ns.º 2 e 3).

Tendo em vista uma compreensão mais clara da natureza jurídica do direito

à objeção de consciência secundum constitutionem, julgamos conveniente proceder a

uma análise sumária da nossa jurisprudência constitucional nesta matéria, assim como da

legislação portuguesa mais recente que consagra, expressamente, aquele mesmo direito.

2.1. Breve análise da jurisprudência constitucional

Em ocasiões diversas, o Tribunal Constitucional tem sido chamado a

pronunciar-se sobre a conformidade com a Constituição da obrigatoriedade legal de

apresentação da declaração de disponibilidade para o cumprimento do serviço cívico

alternativo, sob pena de ser recusado liminarmente ao interessado o estatuto de objetor

de consciência. Neste sentido e entre outros preceitos constitucionais, alega-se que o art.

18.º, n.º 3, al. d), Lei n.º 7/92, a que nos referimos acima, viola o art. 41.º, n.º 6, CRP.

Vejamos melhor:

- O Acórdão n.º 681/95, de 5 de dezembro de 1995, relatado pelo

Conselheiro Monteiro Diniz, conclui pela constitucionalidade da norma jurídico-legal

5 Após a extinção do serviço militar obrigatório em tempo de paz (Lei n.º 174/99, de 21 de setembro), a objeção de consciência ao serviço militar perde em larga medida a sua relevância prática.

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impugnada, argumentando que, competindo à lei ordinária delimitar o âmbito e concretizar

o modo de exercício da objeção de consciência, no caso do serviço militar obrigatório é a

própria Constituição que consagra esses parâmetros normativos (cfr. art. 276.º, n.º 4,

CRP). Destarte e em respeito à liberdade de consciência do objetor (cfr. art. 41, n.º 1,

CRP), dá-se a este a possibilidade de cumprir o dever fundamental de todos os

portugueses perante a Pátria6 mediante a prestação de serviço cívico, ainda que - em

obediência ao mandado constitucional de negação de qualquer privilégio pessoal,

designadamente em razão de religião, convicções políticas ou ideológicas (cfr. art. 13.º,

n.º 2, CRP) - a duração e penosidade desse serviço devam ser idênticas ao prestado pelo

que cumpre as obrigações militares normais. Em suma: não há qualquer restrição legal ao

direito à objeção de consciência, limitando-se a norma jurídica sindicada à confirmação

expressa de um ónus cujo preenchimento condiciona o exercício daquele direito, mas

que, estando já previsto na nossa Lei Fundamental, não necessitaria sequer dessa

confirmação: "a lei limita-se a exigir que se transforme em declaração expressa o que, de

outro modo, seria tão somente uma declaração implícita7".

Entretanto, a decisão adoptada não é acompanhada por diversos membros

do Plenário, nomeadamente pelo Conselheiro Sousa e Brito, apresentando este uma

declaração de voto cujos fundamentos assentam na constatação seguinte: existe à luz do

nosso ordenamento jurídico-constitucional um direito fundamental geral à objeção de

consciência, cabendo ao respectivo titular determinar "(...) ele próprio - nos limites da

ordem jurídica do Estado constitucional, que delimitam todo o exercício da liberdade - o

conteúdo, a dignidade e o valor da sua própria liberdade8". Efetivamente, sendo o direito

em causa um corolário do respeito que é devido à dignidade da pessoa humana, a sua

negação apenas será admissível quando ela não implique a violação da integridade moral

do objetor, que a Constituição considera inviolável (cfr. art. 25.º, n.º 1, CRP). Destarte,

excluir o "objetor total" (isto é, que se recusa por razões de consciência ao cumprimento

de ambas as obrigações, militar e cívica) do estatuto de objetor de consciência ao serviço

militar significa uma séria coação da consciência que viola a integridade moral da pessoa

em causa e, portanto, também o art. 41.º, n.º 6, CRP. Por outro lado e quanto à objeção

6 Em conformidade com o artigo 276.º, n.º 1, CRP, "a defesa da Pátria é direito e dever fundamental de todos os portugueses".

7 ACTC n.º 681/95, II, 4 (in fine).

8 BRITO, J. Sousa e. "Declaração de voto", C).

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de consciência ao serviço cívico, afirma-se que "o direito geral à objeção de consciência

não pode ser invocado para afastar o dever de prestar serviço cívico, mas pode

sistematicamente contribuir para a configuração constitucional desse dever9".

- Nos Acórdãos posteriores sobre a mesma matéria, o Tribunal

Constitucional reitera a jurisprudência anterior, confirmando a constitucionalidade material

do art. 18.º, n.º 3, al. d), Lei n.º 7/92. Assim, no Acórdão n.º 714/95, de 6 de dezembro de

1995, relatado pelo Conselheiro Bravo Serra, após se qualificar o direito à objeção de

consciência como um "direito sob reserva de lei": a Lei Fundamental remete "para a lei

ordinária o âmbito, concretização, formas e procedimentos como há de operar aquele

direito constitucionalmente garantido10", considera-se que a obrigação de prestação de

serviço cívico deriva da ponderação que o legislador constitucional faz entre o dever

fundamental de defesa da Pátria e o direito de objeção de consciência. Efetivamente,

correspondendo, por regra, o cumprimento daquele dever à prestação de serviço militar

obrigatório, a Constituição prevê uma obrigação sucedânea que respeite a liberdade de

consciência do objetor, mas se traduza numa prestação a favor da comunidade de

duração e penosidade idênticas à objetada. Portanto e em síntese, a exigência legal da

declaração de disponibilidade para o cumprimento do serviço cívico não constitui - como

se afirma na decisão judicial recorrida - "'um procedimento injusto', porventura

'aniquilador' do direito (de objeção) 'por falta de medidas expeditas'11", fundando-se antes

"num modo de asseguramento da seriedade da declaração unilateral de objeção de

consciência, com a inerente 'consciencialização' do declarante12".

- Não são, substancialmente, distintos dos fundamentos em que assenta o

Acórdão anterior aqueles outros que informam o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º

715/95, de 6 de dezembro de 1995, relatado pelo Conselheiro Messias Bento.

Acrescente-se apenas que a decisão faz apelo, em particular, a critérios de justiça na

repartição pessoal dos sacrifícios impostos a todos os portugueses no cumprimento dos

respectivos deveres para com a Pátria (princípio da igualdade de sacrifícios públicos), não

admitindo, assim, a nossa Constituição "objetores totais": ao conceder provimento ao

9 BRITO, J. Sousa e. "Declaração de voto", E) (in fine).

10 ACTC n.º 714/95, II, 1.

11 ACTC n.º 714/95, II, 2.

12 ACTC n.º 714/95, II, 2 (in fine).

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recurso da decisão judicial que desaplicara, por inconstitucionalidade material, o art. 18.º,

n.º 3, al. d), Lei n.º 7/92, esclarece-se que a exigência prevista nesta norma jurídica

"pretende obstar a que o estatuto de objetor de consciência seja reconhecido a quem é

objetor total, pois, tal sucedendo, violar-se-iam as exigências de justiça feitas pelo

princípio da igualdade de sacrifícios públicos13".14

2.2. Breve análise da legislação mais recente

Em sede de direito penal, a Lei n.º 16/2007, de 17 de abril, que altera a

redação do art. 142.º, CP, "Interrupção da gravidez não punível", através da introdução de

uma causa de exclusão de punibilidade fundada na decisão ad nutum da mulher grávida

art. 142.º, n.º 1, al. e)15 , prevê, também, o direito à objeção de consciência, nos termos

seguintes: "É assegurado aos médicos e demais profissionais de saúde o direito à

objeção de consciência relativamente a quaisquer atos respeitantes à interrupção

voluntária da gravidez" (art. 6.º, n.º 1). É dizer que a objeção de consciência não se

circunscreve à nova fattispecie excludente, abrangendo ainda as outras hipóteses legais

assentes em perigo de morte ou de grave lesão para a mulher grávida ou grave doença

ou malformação congénita para o feto ou ainda gravidez resultante da prática de um

crime contra a liberdade ou autodeterminação sexual da mulher grávida. Por outo lado,

prescinde-se da fundamentação da decisão de objeção, exigindo-se apenas um

documento assinado pelo objetor que produzirá "necessariamente efeitos

independentemente da natureza dos estabelecimentos de saúde em que o objetor preste

serviço" (art. 6.º, ns.º 3 e 4). Todavia, proíbe-se a participação do objetor, tanto na

consulta obrigatória destinada a facultar à mulher grávida informação relevante na

hipótese de esta se decidir sem mais pela interrupção da gravidez, como no

13 ACTC n.º 715/95, II, 6 (in fine).

14 A mesma questão jusconstitucional é, por último, retomada no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 5/96, de 16 de janeiro de 1996, cuja ratio decidendi se apresenta idêntica à do Acórdão n.º 714/95 analisado já no texto principal, até porque o Relator é, em ambas os arestos, a mesma pessoa: Conselheiro Bravo Serra.

15 Estatui o art. 142.º, n.º 1, al. e), CP: "Não é punível a interrupção da gravidez efetuada por médico, ou sob a sua direção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando for realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez".

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acompanhamento facultativo daquela no decurso do período legal mínimo de 3 dias de

reflexão (art. 6.º, n.º 216).

Por sua vez, a Lei n.º 25/2012, de 16 de julho, que estabelece, inter alia, o

regime das diretivas antecipadas de vontade (DAV's)17, assegura o direito à objeção de

consciência "aos profissionais de saúde que prestam cuidados de saúde ao outorgante",

sendo suficiente que o objetor indique a disposição ou disposições do respectivo

documento cujo cumprimento lhe merece aquela objeção (cfr. art. 9.º, ns.º 1 e 2). Tudo

isto apesar da mesma lei prever, no seu artigo 6.º, n.º 2, a ineficácia das DAV's nas

hipótese seguintes: "a) Se comprove que o outorgante não desejaria mantê-las; b) Se

verifique evidente desatualização da vontade do outorgante face ao progresso dos meios

terapêuticos, entretanto verificado; c) Não correspondam às circunstâncias de facto que o

outorgante previu no momento da sua assinatura". Acrescendo ainda que as diretivas

antecipadas de vontade são consideradas, juridicamente, inexistentes caso se revelem

"contrárias à lei, à ordem pública ou determinem uma atuação contrária às boas práticas"

ou a respectiva observância se traduza numa "morte não natural e evitável, tal como

prevista nos artigos 134.º18 e 135.º19 do Código Penal" cfr. art. 5.º, als. a) e b). Deve,

portanto, concluir-se a contrario sensu que, não obstante as DAV's serem conformes às

boas práticas, podem os médicos e demais profissionais de saúde envolvidos opor-se ao

respectivo cumprimento alegando a sua qualidade de objetor!

16 Repristinado pelo art. 3.º, al. b), Lei nº 3/2016, de 29 de fevereiro, após ter sido revogado pelo art. 5.º, Lei n.º 136/2015, de 7 de setembro. No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 75/2010, de 23 de fevereiro de 2010, relatado pelo Conselheiro Sousa Ribeiro, tendo sido suscitada pelos requerentes a inconstitucionalidade material do art. 6.º, n.º 2, Lei n.º 16/2007, veio o Plenário a pronunciar-se pela não inconstitucionalidade da norma jurídica sindicada, desde logo e entre outras razões porque, estando a garantia à objeção de consciência submetida a uma reserva de lei e sendo "a interrupção voluntária da gravidez um processo unitário, composto por um encadeamento de atos, preparatórios e executivos, não é arbitrário que, uma vez manifestado pelo médico um impedimento de consciência em participar nos últimos, a lei o estenda à consulta prévia" (ACTC n.º 75/2010, II, 11.9.2.).

17 As DAV's, designadamente sob a forma de testamento em vida, "são o documento unilateral e livremente revogável a qualquer momento pelo próprio, no qual uma pessoa maior de idade e capaz, que não se encontre interdita ou inabilitada por anomalia psíquica, manifesta antecipadamente a sua vontade, consciente, livre e esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde que deseja receber, ou não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente" (cfr. art. 2.º, n.º 1, Lei n.º 25/2012).

18 Sob a epígrafe "Homicídio a pedido da vítima" e no âmbito da prestação de cuidados de saúde, está, particularmente, em causa a criminalização da eutanásia ativa, verificando-se esta quando o médico a pedido do paciente, em estado terminal ou sofrendo lesão incurável causadora de sofrimento físico e/ou psicológico intenso, provoca mediante a administração de fármaco letal a morte deste último.

19 Trata-se da criminalização de o "incitamento ou ajuda ao suicídio", relevando em sede de DAV's o auxílio prestado ao paciente em fim de vida para ele próprio provocar a sua morte, ainda que sob orientação ou supervisão de um médico. Em todo o caso e estando o outorgante em conformidade com a própria lei incapacitado no momento de execução da respectiva DAV "(...) de expressar a sua

vontade pessoal e autonomamente" cfr. art. 2.º, n.º 1 (in fine), Lei n.º 25/2012, não se vislumbra como poderá ele dominar per se o momento que antecede, imediatamente, a sua morte, em termos de ser possível afirmar que é o autor (direto) dessa mesma morte.

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Também em sede de prestação de cuidados de saúde, admite-se que os

respectivos profissionais possam exercer o direito à objeção de consciência tratando-se

da utilização de técnicas de procriação medicamente assistida, especialmente previstas

na lei. Assim e nos termos do artigo 11.º, n.º 2, Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, "nenhum

profissional de saúde pode ser obrigado a superintender ou a colaborar na realização de

qualquer das técnicas de PMA se, por razões médicas ou éticas, entender não o dever

fazer". Neste sentido, será suficiente que alegue a objeção de consciência, constituindo

esta per se uma das especificações possíveis das razões de índole não clínica que

permitem a recusa de colaboração20.

Por último, convém referir que o artigo 12.º, n.º 3, Lei n.º 16/2001, de 22 de

junho - "Lei da Liberdade Religiosa" - veio consagrar a posição jurisdicional sustentada

pelo Conselheiro Sousa e Brito21 aquando da discussão pelo Tribunal Constitucional da

(in)constitucionalidade material do artigo 18.º, n.º 3, al. d), Lei n.º 7/9222. Efetivamente,

estatui-se nesse preceito legal que "os objetores de consciência ao serviço militar, sem

exceptuar os que invocam também objeção de consciência ao serviço cívico, têm direito a

um regime do serviço cívico que respeite, na medida em que isso for compatível com o

princípio da igualdade, os ditames da sua consciência". No mesmo artigo 12.º, cuja

epígrafe é "Objeção de consciência", estabelece-se, no n.º 1: "A liberdade de consciência

compreende o direito de objetar ao cumprimento de leis que contrariem os ditames

impreteríveis da própria consciência, dentro dos limites dos direitos e deveres impostos

pela Constituição e nos termos da lei que eventualmente regular o exercício da objeção

de consciência", acrescentando-se ainda serem "impreteríveis aqueles ditames da

consciência cuja violação implica uma ofensa grave à integridade moral que torne

inexigível outro comportamento" (art. 12.º, n.º 2). Finalmente, o artigo 6.º, que respeita à

20 Estatui o art. 11.º, n.º 3, Lei n.º 32/2006: "A recusa do profissional deve especificar as razões de ordem clínica ou de outra índole que a motivam, designadamente a objeção de consciência". O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 101/2009, de 3 de março de 2009, relatado pelo Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha, pronuncia-se, i. a., sobre a constitucionalidade material de várias das normas jurídicas que integram a Lei n.º 32/2006, vindo a decidir-se pela conformidade constitucional das mesmas. Na respectiva fundamentação, releva a interpretação sistemática dos preceitos legais impugnados, tendo, designadamente, em consideração que as técnicas de procriação, legalmente, estabelecidas são configuradas como "um método subsidiário, e não alternativo, de procriação", devendo ainda "respeitar a dignidade humana de todas as pessoas envolvidas" (respectivamente, arts. 4.º, n.º 1 e 3.º, n.º 1), sem ignorar, também, a harmonização que a lei em causa promove em benefício de certos valores e direitos constitucionais: v.g., direito à saúde (cfr. art. 64.º, n.º 1, CRP).

21 A "Lei da Liberdade Religiosa" tem na sua origem um anteprojeto da responsabilidade de uma comissão presidida pelo Conselheiro Sousa e Brito, apresentado ao público em 1997 e reformulado em 1998.

22 Vide ponto 2.1. deste estudo.

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"força jurídica" da liberdade de consciência, de religião e de culto, dispõe, no seu n.º 3,

que "os limites do direito à objeção de consciência demarcam para o objetor o

comportamento permitido".

2.3. A nossa posição

O direito à objeção de consciência constitui uma manifestação particular e

limitada da liberdade de consciência, cabendo ao Estado legislador estabelecer as

situações da vida em que é admissível o exercício daquele direito e o modo concreto

deste exercício. Não há, assim, um direito fundamental geral à objeção de consciência,

diferentemente da liberdade donde emana - esta, sim, tendencialmente absoluta23.

Destarte, não havendo lei que a permita não existe objeção de consciência,

podendo esta lacuna - caso se verifique - ser apenas colmatada recorrendo à fiscalização

(da inconstitucionalidade) por omissão, nos termos e com os efeitos prático-jurídicos

limitados previstos no artigo 283.º, CRP. Exemplificando: se uma lei proibir o uso do véu

islâmico nas instituições de ensino públicas, esta lei não poderá ser sindicada por violar o

direito à objeção de consciência, mas somente à luz da liberdade de religião ex vi art.

41.º, n.º 1, CRP.

Esta compreensão restritiva do direito à objeção de consciência é, também,

a sufragada pelo Tribunal Constitucional, designadamente quando nega ao objetor ao

serviço militar a titularidade do mesmo direito no que respeita ao serviço cívico. Por outro

lado e parecendo-nos inquestionável que a objeção de consciência se consubstancia num

direito sob reserva de lei ("nos termos da lei", art. 41.º, n.º 6, in fine, CRP), haveria apenas

23 Num sentido próximo ao defendido por nós, CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada (Artigos 1º a 107º). 4.ª edição (revista). Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 616: "O direito à objeção de consciência está sob reserva de lei ('nos termos da lei'), competindo-lhe delimitar o seu âmbito e concretizar o modo do seu exercício, sem poder desconhecer os seus aspetos mais relevantes". Também CAPODIFERRO CUBERO, Daniel. op. cit. pp. 15 e s., referindo-se à objeção de consciência num Estado de direito democrático, sustenta: "Esto debe hacerse a partir de las reglas generales que sirven para delimitar y articular el ejercicio de los derechos constitucionalmente reconocidos, teniendo presente además que la opción de admitir el incumplimiento de una norma jurídica debe ser algo excepcional, sujeto a condiciones especialmente estrictas en cuanto a su motivación y reforzado con medidas destinadas a garantizar que no supondrá un menoscabo de derechos o intereses legítimos ajenos en ningún caso". Por sua vez, PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. "Desobediencia civil y objeción de conciencia", em Anuario de Derechos Humanos, n.º 5. Universidad Complutense, Madrid, 1988/89, pp. 172 e ss., partindo da perspectiva da Filosofia do Direito e após anotar que "la justificación del derecho a la objeción de conciencia depende de que existan dudas, matices o quiebras en la legitimidad de la obligación general frente a la que reacciona, aunque en términos generales se puede mantener", conclui: "De todo lo dicho hasta ahora se sigue que no estamos ante un derecho fundamental con características de objetiva estabilidad y permanencia, sino ante un derecho dependiente de una obligación, y como excepción a la misma".

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um direito geral à objeção de consciência na hipótese da própria lei o prever. Ora, resulta

da análise ainda que sumária da nossa legislação vigente que tal não se verifica 24 ,

incluindo-se aí a regra jurídica que, em sede de liberdade religiosa, delimita o conteúdo

normativo do direito a objetar: efetivamente e de acordo com o artigo 12.º, n.º 1, Lei n.º

16/2001, não obstante a liberdade de consciência compreender "o direito a objetar ao

cumprimento de leis que contrariem os ditames impreteríveis da própria consciência", o

respectivo reconhecimento deve verificar-se, não apenas "dentro dos limites dos direitos e

deveres impostos pela Constituição", mas, também, "nos termos da lei que eventualmente

regular o exercício da objeção de consciência"25.

Há, todavia , quem sustente a admissibilidade constitucional de um direito

geral ou contra legem à objeção de consciência, atribuindo, destarte, aos destinatários de

uma determinada disposição legislativa a possibilidade de se autoexcluírem por razões de

consciência ao cumprimento de uma ou mais das obrigações nela previstas, ainda que

esse facto possa traduzir-se na cominação de uma qualquer sanção jurídica. Assim, v.g.,

o Conselheiro Sousa e Brito, na declaração de voto a que fizemos já referência, após

considerar a objeção de consciência como "a verdadeira pedra de toque da interpretação

constitucional da liberdade de consciência", afirma que o direito correspondente se traduz

no "direito de recusar uma obrigação legal, em nome da consciência individual,

resolvendo o conflito pela prevalência do princípio da inviolabilidade de consciência sobre

o princípio da generalidade da lei26". Acrescentando ainda mais adiante: "(...) Segundo a

intenção histórica da legislação constituinte, o n.º 6 do artigo 41.º não consagra uma

verdadeira reserva de lei, não só no sentido, comum aos restantes direitos fundamentais,

de a sua aplicabilidade imediata não depender da existência de lei regulamentadora (n.º 1

do artigo 18.º), mas no sentido de que a Constituição não permite o estabelecimento de

exceções ou restrições à própria existência desse direito, que não resultem da própria

definição constitucional do seu conteúdo27, mas admite apenas a regularização do seu

24 Vide ponto 2.2. deste estudo.

25 Parece-nos, todavia, que a redação do art. 12.º, n.º 1, Lei n.º 16/2001, não é a mais feliz, considerando que a expressão "eventualmente" poderá suscitar dúvidas quanto ao cumprimento do mandado constitucional consignado no art. 41.º, n.º 6, in fine, CRP: "nos termos da lei". Pelo contrário, caso se pretenda, afinal, consagrar por via legislativa um direito geral à objeção de consciência, a referência a uma eventual limitação ex vi legis não se justificaria, sendo, por outro lado, fonte de insegurança jurídica.

26 BRITO, J. Sousa e. "Declaração de voto", B).

27 A este respeito e fazendo apelo a uma "norma estruturante da integridade moral da pessoa, que se considera ditada pela consciência individual", BRITO, J. Sousa e. "Declaração de voto", C), sustenta: "A constituição reconhece o direito de objeção de

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exercício, isto é, permite apenas leis de garantia de exercício, nomeadamente leis

processuais relativas ao modo de exercício, sem prejuízo do disposto nos n.º 2 e 3 do

artigo 18.º28".

Com o devido respeito que é muito pela opinião deste prestigiado filósofo do

direito e penalista, não podemos concordar com ela, desde logo pela razão fundamental

que o mesmo enuncia na citada declaração de voto: "(...) a consciência individual é o

principal suporte ético do Estado de direito democrático, que baseia a força das suas

normas na convicção íntima das pessoas que defendem os seus valores e lhe dão razão,

mais do que no receio das suas sanções. A consciência individual é também a última e

decisiva barreira contra as ditaduras29"30. Assim, se alguma norma jurídica se desvia dos

princípios e regras constitucionais que dão forma e conteúdo àquele Estado as únicas

instâncias legitimadas para aferir dessa desconformidade são os tribunais, maxime o

Tribunal Constitucional (cfr., respectivamente, arts. 204.º e 221.º, CRP), não a

consciência individual como expressão privilegiada de uma ordem ético-normativa supra-

positiva.

Portanto e secundum constitutionem, o direito à objeção de consciência

significa tão somente o poder jurídico que é reconhecido por lei ordinária ao indivíduo de

se excluir ao cumprimento de uma ou mais obrigações jurídicas nela previstas, invocando

para esse efeito e no modo, legalmente, estabelecido razões de consciência (religiosas

ou não) e sem que tal comportamento excludente lhe possa ser, juridicamente,

sancionado. Há, pois, servindo-nos da expressão de Galvão Teles, uma "dupla

permissão, a de agir de acordo com a lei geral ou com a objeção 31" sem que isso

signifique, porém, a existência de uma simples opção ou alternativa: o objetor só poderá

incumprir caso demonstre verificar-se uma contradição insanável entre as suas

consciência ao 'fundamentalista', religioso ou outro, não por causa da compatibilidade constitucional das normas que ele invoca, mas por considerar estas estruturantes da sua integridade moral".

28 BRITO, J. Sousa e. "Declaração de voto", D).

30 Neste sentido, também TELES, M. Galvão. op. cit. p. 934: "Não tenho hesitação em reclamar a imposição das normas de um Estado de direito democrático".

31 TELES, M. Galvão. op. cit. p. 932.

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convicções mais íntimas e os valores que sustentam o estatuído na norma legal

objetada32.

Tratando-se, em suma, de um direito que está na disponibilidade do

legislador ordinário, não é possível reconhecer à objeção de consciência a particular força

jurídica de que se beneficiam os direitos, liberdades e garantias e se encontra consagrada

no art. 18.º, n.º 1, CRP33. É dizer que, não obstante a sua inserção sistemática, falta-lhe a

aplicabilidade e vinculação especiais que são próprias dos direitos, liberdades e garantias

pessoais e se materializam na circunstância destes direitos constituírem per se limites

negativos à intervenção do Estado na esfera jurídica privada dos cidadãos (status

negativus)34. Em todo o caso e uma vez admitida a objeção de consciência, não pode a

lei que a prevê estabelecer, simultaneamente, regras de procedimento que se traduzam

em restrições contrárias ao estatuído nos ns.º 2 e 3 do art. 18.º, CRP.

Tudo visto diríamos que a objeção de consciência se traduz em tantos

direitos pessoais quantas as leis que a contemplam e disciplinam. É, assim, uma

liberdade constitucional legislativamente limitável: não há um direito fundamental geral à

objeção de consciência - tal seria intolerável num Estado de direito democrático35 -, mas,

sim, direitos parcelares ou concretos à objeção de consciência ao serviço militar

obrigatório, à interrupção voluntária da gravidez, ao cumprimento total ou parcial das

32 A este respeito, observa CAPODIFERRO CUBERO, Daniel. op. cit. p. 82: "Además, reconocer la objeción de conciencia impropia como un derecho de opción absoluto lleva a concluir que, o bien el deber ante el que surge no era tal (y por tanto no cabía la objeción de conciencia como tal), o se está reconociendo el derecho a desobedecer una norma jurídica, dado que se estaría dejando en manos de los destinatarios de la norma la decisión de realizar la conducta debida".

33 Em sentido não coincidente com o nosso e considerando o artigo 41.º, n.º 6, CRP, uma norma preceptiva não exequível, mas dotada, em certo sentido, de aplicabilidade direta, MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, Tomo IV. 4.ª edição. Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 288 e s.

34 Assim e na perspectiva da vinculação do legislador, CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 6.ª edição. Almedina, Coimbra, 2002, p. 440, afirma que "as normas consagradoras de direitos, liberdades e garantias constituem (...) normas negativas de competência porque estabelecem limites ao exercício de competências das entidades públicas legiferantes" (o "itálico" é do autor).

35 Referindo-se, em particular, às sociedades políticas democráticas, PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. op. cit. p. 162, afirma: "Un sistema jurídico en una sociedad democrática está basado en el consenso, es decir, en un hecho fundante básico, un poder aceptado mayoritariamente y cuyos valores superiores (...) se forman con la contribución posible de todos los ciudadanos, de manera directa o indirecta. Las normas jurídicas de ese sistema no son heterónomas, sino en cierto sentido, autónomas, y la obediencia a las mismas es de alguna manera una obediencia presupuesta y consentida al participar en las grandes líneas de formación del sistema. En un Ordenamiento formado de esa manera (...) parece plausible que la actuación de los destinatarios de las normas sea de obediencia a las mismas, tanto más cuanto en ese sistema, también los gobernantes actúan sometidos a la Ley".

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DAV's, à utilização de técnicas de procriação medicamente assistida... e - de lege ferenda

- à prática da eutanásia voluntária ou a pedido36.

3. É o direito à própria morte um direito fundamental? Há muito que pensamos e sustentamos que os direitos, liberdades e

garantias pessoais estão, ontologicamente, fundados no "ser-em-si-mesmo"37, cabendo

ao Estado de direito consagrar e reconhecer os poderes jurídicos que mais importam à

preservação e pleno desenvolvimento individual desse ser. Neste sentido e tendo em

vista a proscrição de toda e qualquer intromissão, pública38 ou privada, na esfera jurídica

que lhes é inerente, afigura-se-nos natural que os sobreditos poderes pressuponham e

postulem uma ideia de liberdade, nos termos da qual será no direito ao seu contrário que

os direitos em referência hão de encontrar, definitivamente, o respectivo fundamento

axiológico-normativo: v.g., o direito à integridade física pressupõe e postula o direito à não

integridade física e vice-versa.

Assim sucede, também, com o direito à vida (cfr. art. 24.º, n.º 1, CRP).

Efetivamente, se privado da sua dimensão negativa: isto é, o direito à própria morte,

aquele primeiro direito corresponderá, em verdadeiro rigor, ao dever de viver, em

manifesto prejuízo da liberdade de viver que lhe dá sentido, assim como, mediatamente,

36 Subscrevendo um entendimento que se aproxima do nosso, LAMEGO, José. "Sociedade aberta" e liberdade de consciência. AAFDL, Lisboa, 1985, p. 107: "A invocação da objeção de consciência só será admissível naqueles casos em que a lei isente cidadãos ou determinadas categorias de cidadãos do cumprimento de determinados deveres jurídicos. Só mediante normas expressas poderá ser garantida a objeção de consciência. Não poderá aceitar-se um direito fundamental à objeção de consciência, de aplicabilidade direta e imediata". Também CAPODIFERRO CUBERO, Daniel. op. cit. p. 29, tendo embora por referência a Constituição espanhola, que consagra apenas, expressamente, a objeção de consciência militar, afirma comparativamente à liberdade de consciência que "se trata de un derecho distinto, no fundamental, con elementos delimitadores diferentes y que seguirá en su ejercicio una lógica propia". Acrescentando mais adiante: "La fórmula que parece más acertada (...) sería la que ya emplea la Constitución portuguesa en su Art. 41.6: el simple reconocimiento del derecho acompañado de la remisión a la Ley como instrumento necesario para la configuración efectiva de su contenido y alcance (...)" (ibidem. p. 157).

37 Por "ser-em-si-mesmo" entende-se a parcela da nossa individualidade afecta, única e exclusivamente, à construção da própria identidade através da eleição livre de um determinado projeto de vida. Trata-se, portanto, de uma "liberdade motivada", não de uma "liberdade-arbítrio" de sentido meramente negativo (cfr. KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. 4.ª edição. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010, pp. 357 e ss.).

38 Tratando-se do Estado, as intromissões a que aludimos em texto remetem-nos, as mais das vezes, para o chamado "paternalismo jurídico". Assim, GARZÓN VALDÉS, Ernesto. "Es éticamente justificable el paternalismo jurídico?", em DOXA: Cuadernos de Filosofía del Derecho, n.º 5. Universidad de Alicante, Alicante, 1988, p. 156, afirma: "El paternalismo jurídico sostiene que siempre hay una buena razón en favor de una prohibición o de un mandato jurídico, impuesto también en contra de la voluntad del destinatario de esta prohibición o mandato, cuando ello es necesario para evitar un daño (físico, psíquico o económico) de la persona a quien se impone esta medida".

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da autonomia pessoal que enforma o pleno desenvolvimento da personalidade (cfr. art.

26.º, n.º 1, CRP).

A afloração mais relevante - ainda que tímida - deste direito à própria morte

encontramo-la na Lei n.º 25/2012, de 16 de julho, referida acima. É verdade que se

consideram aí "juridicamente inexistentes" as DAV's "cujo cumprimento possa provocar

deliberadamente a morte não natural e evitável, tal como prevista nos artigos 134.º e

135.º do Código Penal" cfr. art. 5.º, al. b), Lei n.º 25/2012. Todavia, será que a morte

antecipada, designadamente verificando-se uma doença terminal irreversível ou estando

o paciente em estado neurodegenerativo avançado (v.g., esclerose lateral amiotrófica) ou

ainda em situação vegetativa permanente39, poderá, em bom rigor, ser tida como uma

morte não natural e evitável? Parece-nos, salvo melhor opinião, que não, desde logo

porque os avanços tecnológicos da medicina se, por um lado, não permitem, nos casos

referidos, salvar da morte o doente - que permanece, assim, numa agonia contínua e,

eventualmente, em sofrimento indizível -, por outro lado, emprestam à situação de vida

em causa uma inegável artificialidade40.

Por outro lado, se admitirmos que o direito à vida compreende,

implicitamente, um direito fundamental à própria morte, tal permitir-nos-á extrair as ilações

seguintes:

- o auxílio ao suicídio - atualmente, p. e p. no artigo 135.º, n.º 1, CP - deve

considerar-se um comportamento atípico ou jurídico-penalmente irrelevante, tendo em

conta que se trata de um comportamento coadjuvante ao levado a cabo por quem

exercita um direito próprio;

- o tipo legal de homicídio a pedido (cfr. art. 134.º, CP) deve ser objeto de

uma interpretação restritiva, em ordem à não punição da respectiva conduta tratando-se

da prática de eutanásia: isto é, sendo o pedido qualificado expresso, pessoalmente ou

através de "testamento em vida", por uma pessoa que padeça de doença terminal

39 Estas três situações clínicas são as identificadas por RUIZ MIGUEL, Alfonso. "Autonomía individual y derecho a la propia muerte", em Revista Española de Derecho Constitucional. N.º 89, maio-agosto, 2010, p. 13, acrescentando, todavia, o autor uma quarta: as incapacitantes (v.g., tetraplegia).

40 Assim, também JAKOBS, Günther. Suicidio, eutanasia y derecho penal. Tradução de F. Muñoz Conde e Pastora García Álvarez. Tirant lo Blanch, Valencia, 1999, pp. 63 e s.

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irreversível ou se encontre num estado neurodegenerativo avançado ou ainda esteja em

situação vegetativa permanente e seja um médico a dar cumprimento àquela solicitação.

Todavia e para certas correntes doutrinárias e jurisdicionais, o direito à vida

encerra um conteúdo de proteção positiva que impossibilita considerá-lo como um direito

de liberdade 41 . Neste sentido e tendo por base uma interpretação literal estrita do

respectivo preceito constitucional, argumenta-se que a nossa Lei Fundamental consagra,

expressamente, a inviolabilidade da vida humana (cfr. art. 24.º, n.º 1, CRP). É dizer que

prevalece a dimensão objetiva "vida humana", cuja tutela obriga o Estado a intervir, não

apenas contra terceiros, mas - se necessário - em prejuízo da vontade do próprio titular42.

3.1. Breve análise da jurisprudência do Tribunal Europeu

dos Direitos do Homem

Tendo por objeto as questões ético-jurídicas, dramáticas e complexas, que

se colocam amiúde no final da vida e a atuação dos Estados signatários da Convenção

Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) 43 nessa matéria, o Tribunal Europeu dos

Direitos do Homem (TEDH) tem vindo a consagrar a orientação jurisdicional seguinte:

41 Também ATIENZA, Manuel. Tras la justicia. Editorial Ariel, Barcelona, 2003, pp. 133 e s., não obstante afirmar que "el derecho a la vida (...) es un derecho de libre disposición en el sentido de que se tiene derecho a vivir o a morir", afirma: "El Tribunal Constitucional tiene razón al pensar que el derecho a la vida tiene un contenido de protección positiva y que, en ese sentido, no puede asimilarse a un derecho de libertad en el sentido clásico de una libertad negativa. En relación con el derecho a la vida, el Estado (...) tiene deberes positivos, es decir, debe poner los medios para garantizarnos la vida (hospitales, asistencia médica adecuada, etc.); os "negritos" são do autor. Todavia e a nosso ver, os deveres positivos a que este autor se refere não integram o conteúdo normativo do direito à vida, resultando antes da tutela de outros bens jurídico-constitucionais fundamentais, designadamente a saúde (cfr. art. 64.º, CRP).

42 Privilegiamos, assim, o valor que a vida tem para quem a vive, contrariamente àqueles que lhe atribuem uma relevância axiológica, exclusiva ou sobretudo, objetiva, que legitima a intervenção paternalista do Estado na preservação deste bem, inclusivamente contra a vontade do respectivo titular. Dando como exemplo, entre outros, o do piloto de Fórmula I que, sabendo dos riscos de vida elevados que a sua atividade desportiva comporta prefere corrê-los a privar-se do prazer que ela lhe proporciona, GARZÓN VALDÉS, Ernesto. op. cit. afirma: "Sólo si se acepta una concepción metafísico-religiosa del valor de la vida, como la que sostenía, por ejemplo Locke, o William Blackstone cuando afirmaba que 'el mero acto del suicidio es prueba evidente de loucura' (...) es posible justificar la prohibición del suicidio o de las actividades que ponen en grave peligro la vida".

43 Entre nós, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem está em vigor desde 9 de novembro de 1978, após ter sido aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13 de outubro.

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- O artigo 2.º, n.º 1, primeira parte, CEDH, sob a epígrafe "Direito à vida"44,

impõe aos Estados a obrigação, não apenas de se abster de causar, intencionalmente, a

morte de outrem (obrigação negativa), mas, também, de adoptar as medidas necessárias,

em ordem à proteção da vida das pessoas sob sua jurisdição (obrigação positiva)45. De

qualquer modo, não é possível deduzir deste artigo "um direito a morrer, seja às mãos de

um terceiro ou mediante o auxílio de uma autoridade pública46";

- Em sede de saúde pública, a obrigação positiva que impende sobre os

Estados implica a implementação de um quadro regulamentar impondo aos hospitais,

sejam eles públicos ou privados, a adopção de medidas tendentes a assegurar a proteção

da vida dos pacientes47;

- A CEDH deve ser interpretada como um todo. Assim e mais

concretamente, o supracitado art. 2.º, CEDH, deve ser analisado em conjugação com o

art. 8.º, CEDH e vice-versa48 49. Neste sentido e conforme declarado no caso Pretty c.

Reino-Unido, 29 de abril de 2002, par. 67, estima-se que não é possível "excluir que o

facto de obstar por lei a que a peticionante possa exercitar o seu direito de escolha

evitando aquilo que, a seus olhos, constituirá um fim de vida indigno e doloroso

representa uma violação ao direito da interessada quanto ao respeito da sua vida privada,

nos termos do artigo 8, par. 1, da Convenção";

- Acresce ainda que "a dignidade e a liberdade constituem a verdadeira

essência da Convenção. Sem negar de todo o princípio do carácter sagrado da vida

tutelado pela Convenção, o Tribunal considera que é sob o âmbito do artigo 8 que a

noção de qualidade de vida adquire plena justificação. Numa época em que se assiste a

44 Segundo o art. 2.º, n.º 1, primeira parte, CEDH, "o direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei. Ninguém poderá ser intencionalmente privado da vida (...)".

45 Cfr. L.C.B. c. Reino-Unido, 9 de junho de 1998, par. 36, tendo a requerente - vítima de leucemia - alegado que apresenta esta doença em virtude do pai, à época ao serviço da Royal Air Force, ter sido, deliberadamente, exposto, na ilha Natal (Oceano Pacífico), às radiações provocadas por seis engenhos nucleares, no decurso de ensaios militares.

46 Cfr. Pretty c. Reino-Unido, 29 de abril de 2002, par. 40 apreciando-se, neste caso, a recusa das autoridades britânicas em permitir que o marido da requerente, que sofre de uma doença neurodegenerativa incurável em estado terminal, a possa ajudar a morrer.

47 Cfr. Vo c. França, 8 de julho de 2004, par. 89, estando em causa neste processo a eventual prática pelo médico responsável de um crime de homicídio por negligência contra um feto de 20 a 24 semanas de gestação.

48 O art. 8.º, n.º 1, CEDH, estatui: "Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência".

49 Cfr. Lambert e outros c. França, 5 de junho de 2015, par. 142, peticionando os requerentes contra a decisão das autoridades franceses, na medida em que autorizara a interrupção dos procedimentos de alimentação e hidratação artificiais prestados a um familiar em estado vegetativo permanente.

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uma crescente sofisticação dos cuidados de saúde e a um aumento da esperança de

vida, inúmeras pessoas receiam a que as forcem a manter-se vivas até uma idade muito

avançada ou num estado de grave fragilidade física ou mental nos antípodas da

percepção profunda que elas têm de si mesmas e da sua identidade pessoal50";

- Tratando-se do suicídio assistido e após se chegar à conclusão que "(...)

se está longe de um consenso, no seio dos Estados-membros do Conselho da Europa, no

que respeita ao direito de decisão por parte de um indivíduo quanto ao modo e momento

em que a sua vida deve terminar", considera-se que "a margem de apreciação dos

Estados se revela, portanto, considerável neste domínio51". De qualquer modo, o direito

em causa, "na condição do respectivo titular se encontrar apto a formar livremente a sua

vontade a tal respeito e a agir em conformidade, constitui uma das vertentes do direito ao

respeito da vida privada no sentido do artigo 8 da Convenção52". Nestes termos, "o direito

à vida garantido pelo artigo 2 da Convenção obriga os Estados a instituir um

procedimento idóneo para assegurar que uma decisão de pôr fim à vida corresponda,

inteiramente, à vontade livre do interessado53".

3.2. A nossa posição

É manifesta a relutância que a doutrina e a jurisprudência sentem em

afirmar a existência de um direito à própria morte como irrenunciável dimensão negativa,

inscrita no próprio âmago do direito à vida. Assim, pretende-se, na melhor das hipóteses,

defini-lo como uma manifestação possível do direito à autonomia pessoal, sendo certo

que, mesmo sob esta óptica, o Estado não estará, totalmente, isento da obrigação jurídica

de intervir, designadamente no cumprimento dos deveres de proteção da vida que sobre

ele impendem54.

50 Pretty c. Reino Unido, par. 65.

51 Cfr. Haas c. Suiça, 20 de janeiro de 2011, par. 55, sendo o TEDH chamado a pronunciar-se sobre o pedido do requerente, que padece de uma doença psíquica grave, no sentido de que seja autorizado o fornecimento de uma certa substância que lhe permitiria pôr fim aos seus dias.

52 Ibidem, par. 51.

53 Ibidem, par. 58.

54 Assim, v.g., se um recluso, tendo iniciado uma greve de fome, estiver num estado de saúde que coloca em risco sério a sua vida, deve a direção do respectivo estabelecimento prisional ordenar o seu tratamento médico compulsivo (cfr. art. 59.º, por remissão do art. 66.º, n.º 4, ambos do DL n.º 51/2011, de 11 de abril, assim como art. 35.º, ns.º 1 e 3 a 6, Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro). Não falta, porém, quem justifique esta restrição legal ao direito à própria morte em virtude dos presos estarem sujeitos a uma "relação especial de poder" que cria deveres especiais de proteção para a administração penitenciária. Assim, v.g., já será lícito a um doente recusar um determinado tratamento médico, ainda que dessa recusa possa resultar a morte do mesmo. Porém e como afirma ATIENZA, Manuel.

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Todavia e na nossa opinião, encontrando - como dissemos já - os direitos

fundamentais individuais na particular liberdade de ação pessoal que lhes está subjacente

o seu fundamento axiológico-normativo último, a liberdade de viver legitima e postula os

direitos à vida e à própria morte55. Destarte e constituindo o suicídio a afirmação concreta

deste último direito, as entidades públicas e privadas estão vinculadas a um dever geral

de abstenção estando-lhes vedado opor-se à realização daquele direito (obrigação

negativa)56. Tese esta que reflete, também, uma certa compreensão do Estado, assente

numa aquisição liberal-individualista da realidade histórica que lhe é própria. Diz a

respeito do suicídio Günther Jakobs: "Esto no es assunto del Estado57", acrescentando

mais adiante

"La eticidad en sí misma ya no es un fin del Estado y per

definitionem no puede serlo en un Estado que garantiza a través de derechos

fundamentales el pluralismo y el individualismo; una sociedad con un Estado de

esta índole necesariamente tiene que privatizar la eticidad58" (o "itálico" é do

autor).

Que sucede, porém, na hipótese de um terceiro prestar a sua colaboração

lato sensu ao exercício pelo respectivo titular do direito à própria morte? A este respeito e

num plano estritamente dogmático-jurídico (isto é, sem considerar o direito legislado),

importa distinguir diversas situações possíveis, a saber:

op. cit. p. 135, dando razão aos presos da GRAPO na sua greve de fome, "el internado en centro penitenciario goza - o ha de gozar - de los mismos derechos fundamentales que el ciudadano libre, en la medida en que éstos sean compatibles con el cumplimiento de la pena".

55 Numa perspectiva diversa que convoca, especialmente, os direitos fundamentais à dignidade e autonomia pessoal, MORENO ANTÓN, María. "Elección de la propia muerte y derecho: hacia el reconocimiento jurídico del derecho a morir", em DS: Derecho y salud, vol. 12, n.º 1. Associación Juristas de la Salud, Valencia, 2004, p. 73, sustenta, de lege ferenda e em certas circunstâncias (ser doente terminal ou incurável), a existência de um direito subjetivo a morrer que vincularia a Administração Pública a uma conduta positiva: "(...) aunque el reconocimiento del derecho a morir como derecho subjetivo no es una obligación impuesta constitucionalmente a los poderes públicos, la plena efectividad de los valores y principios constitucionales determinan la conveniencia de su reglamentación" (ibidem. p. 73).

56 Nesta como em todas as outras situações analisadas a seguir, está apenas em causa a conduta de pessoas plenamente responsáveis: isto é, maiores de idade e não sofrendo de anomalia psíquica, não tendo ainda sido coagidas ou enganadas por um terceiro.

57 JAKOBS, Günther. Sobre el injusto del suicidio y del homicidio a petición. Universidad Externado de Colombia, Bogotá, 1996, p. 7.

58 Ibidem, p. 17.

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- suicídio assistido, limitando-se o terceiro a ajudar de qualquer modo o

suicida na prática do respectivo ato. Está em causa uma conduta subordinada e ancilar

ao exercício pelo próprio de um direito fundamental. Nestas circunstâncias e não obstante

este direito não compreender específicos deveres de colaboração por parte de outrem

(obrigação positiva), devemos concluir tratar-se, ao menos, de um comportamento que

não deve ser proibido pelo Direito. Precisamente neste sentido, fala-nos, entre outros,

Arthur Kaufmann de um "espaço livre de direito", descrevendo-o como aquele em que

"(...) estão em causa comportamentos juridicamente relevantes e juridicamente regulados,

mas que não podem ser adequadamente valorados nem como lícitos nem como ilícitos. A

não muito correta expressão 'não proibidos' impôs-se como forma de designação destes

'comportamentos ambivalentes'. Correto seria falar de um espaço livre de valoração

jurídica mas esta regra linguística não tem contudo conseguido impor-se59" (os "itálicos"

são do autor);

- incitamento ao suicídio, sendo que a nossa lei penal não considera o

incitamento ou instigação como uma forma de participação stricto sensu no facto de

outrem, vendo antes no respectivo agente ex vi art. 26.º, 4.ª alternativa, CP, um autor

ainda que em sentido causal60. Em todo o caso e porque a atuação incentivadora do

"homem de trás" não priva per definitionem o suicida de consciência e vontade próprias, a

auto-lesão que este último realiza é ainda (ou também) obra sua. É dizer que a valoração

jurídica dessa atuação prévia não deverá divergir, significativamente, da ajuda ao suicídio,

inscrevendo-se ainda o comportamento sindicado num "espaço livre de direito"61;

- homicídio a pedido, invertendo-se, agora, a posição recíproca dos

intervenientes no facto conjunto: a pessoa que determina, na situação anterior, à prática

do suicídio (incentivador) converte-se em executor da morte de outrem, passando o

executor da sua própria morte (suicida) a assumir a função de determinante da mesma

(incentivador). Assim, nesta fattispecie o interveniente último e decisivo não é o suicida,

mas uma terceira pessoa (heterolesão). Servindo-se de critérios de racionalidade

normativa muito particulares, critérios estes que se fundam na constatação seguinte:

59 KAUFMANN, Arthur. op. cit. p. 339.

60 Assim e contrariamente à generalidade da doutrina penal portuguesa, que considera o instigador um simples partícipe, VARELA, João Athayde. Os limites de punibilidade em sede de autoria. Coimbra Editora, Coimbra, 2015, pp. 136 e ss.

61 Confirmando de algum modo este entendimento, sublinha-se que a pena abstrata aplicável às duas situações - aliciamento e ajuda - ex vi art. 135.º, n.º 1, CP, é a mesma: pena de prisão até três anos.

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"cada persona administra ella misma su ámbito de organización, y si al hacerlo respeta a

los demás como personas, es decir, no los molesta dentro de sus ámbitos de

organización, se hace justicia a la juricidad de la relación62", Günther Jakobs sustenta

que, tratando-se do "homicídio a pedido", ambos os intervenientes - executor e

peticionante - organizam em comum o espaço que lhes é próprio, em conformidade com o

acordado entre eles. Destarte, não há prejuízo para ninguém: "la organización en común,

no es una arrogación de organización 63 ", derivando a respectiva criminalização da

preocupação paternalista face ao carácter irreversível e neste sentido absoluto da decisão

de morrer adoptada pelo solicitante 64 . Concluindo o ilustre penalista alemão que "el

homicidio a petición no es, como ya se dijo, un delito de lesión contra la persona, el

precepto establece más bien, en actitud paternalista, una norma contra el eventual

apresuramiento en el modo de tratar la vida propia65".

Em nosso entender e tratando-se in casu de uma heterolesão do bem

jurídico "vida humana", a tipicidade da respectiva conduta não deve ser afastada: caso

contrário e como diz Welzel, "no habría diferencia entre dar muerte a un hombre en

legítima defensa y dar muerte a un mosquito 66 ". Todavia, a compreensão que

subscrevemos quanto à natureza jurídica fundamental do direito à própria morte permite-

nos atribuir um sentido e alcance normativos especiais ao pedido sério, instante e

expresso de um dos intervenientes no sentido de que uma terceira pessoa lhe cause a

morte que solicita. Assim, este pedido deve valer como consentimento excludente da

ilicitude, desde que esteja, objetivamente, fundado em certas situações-limite tipificadas

na lei e seja possível assegurar, procedimentalmente, a seriedade do mesmo. É dizer que

respeitadas estas garantias legais - objetivas e subjetivas -, quem mata outra pessoa a

pedido desta não pratica um ato ilícito67.

62 JAKOBS, Günther. op. cit. pp. 8 e s.

63 Ibidem, p. 22.

64 Diz COSTA, José de Faria. "O fim da vida e o direito penal", em ANDRADE, M. da Costa et alteri (orgs.). Liber discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 780: "Uma das soluções do problema - a solução que admita a não punibilidade penal daquele que põe termo à vida de quem lhe pediu para o fazer de maneira séria, instante e expressa - aceita assumir o risco de que a decisão de quem solicita tal ato assume um carácter absoluto. Que é ela própria a última e a mais densa das escolhas. Que é um definitional stop".

65 JAKOBS, Günther. op. cit. p. 22.

66 WELZEL, Hans. Derecho penal aleman. 11.ª edição (4.ª edição em espanhol). Editora Juridica de Chile, Santiago, 2002, p. 98.

67 Próximo desta solução, mas servindo-se de uma argumentação dogmático-jurídica diferente, JAKOBS, Günther. op. cit. pp. 26 e s., sustenta: "La protección paternalista ante los apresuramientos, de la que únicamente puede tratarse en la norma contra el homicidio a petición, pierde su justificación, a más tardar, cuando de la situación objetiva se deriva que la voluntad de morir tiene fundamentos que

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4. Eutanásia e objeção de consciência Em conformidade com o Estatuto da Ordem dos Médicos (EOM), aprovado

pelo DL n.º 282/77, de 5 de julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 117/2015,

de 31 de agosto, mais concretamente nos termos do seu artigo 138.º, n.º 1, cuja epígrafe

é Objeção de consciência, "o médico tem o direito de recusar a prática de ato da sua

profissão quando tal prática entre em conflito com a sua consciência e ofenda os seus

princípios éticos, morais, religiosos, filosóficos, ideológicos ou humanitários"68.

Destarte, os sobreditos estatutos estabelecem prima facie um direito médico

à objeção de consciência fundado em convicções de natureza diversa69, parecendo-nos

que algumas destas motivações dificilmente poderão incluir-se no respectivo conceito jus-

constitucional: dentro do conteúdo mais amplo de liberdade de consciência, apenas

devem considerar-se fundamentos do direito de objeção as convicções, religiosas ou não,

que integram o núcleo essencial da nossa identidade individual. Em todo o caso e como

afirma José Lamego, referindo-se ao aspecto objetivo do chamado "paradoxo da

consciência", "não existem critérios objetivos e universais de uma consciência recta,

pensamento que é coenvolvido pela própria ideia de liberdade de consciência (...)70",

implicando ainda a inviolabilidade desta última a proscrição de todo e qualquer juízo de

valor por parte do Estado sobre o respectivo conteúdo.

Por outro lado e se imputarmos à liberdade de consciência uma dimensão

não exclusivamente negativa, vendo nela, também, a possibilidade - jurídico-

constitucionalmente consagrada - de agir consoante os ditames irreprimíveis da

consciência individual, cada um de nós converter-se-á num potencial transgressor do

direito legislado, em manifesto prejuízo da estabilidade social oferecida pelo ordenamento

jurídico vigente71.

son, cuando menos, aceptables, según aquellos principios que son los únicos sobre la base de los cuales aún cabe formular el juicio público".

68 A mesma norma jurídica consta do art. 12.º, n.º 1, Regulamento n.º 707/2016, de 21 de julho, respeitante ao Código Deontológico da Ordem dos Médicos.

69 O direito médico à objeção de consciência é introduzido pela lei parlamentar - Lei n.º 117/2015 - que promove a segunda alteração ao EOM, revogando, simultaneamente, a anterior, estabelecida pelo DL n.º 217/94, de 20 de agosto.

70 LAMEGO, José. op. cit. pp. 31 e s.

71 Assim, também LAMEGO, José. op. cit. p. 32: "E se se reconhecer a cada indivíduo o direito de agir segundo a sua consciência, o resultado natural será a desordem".

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Não ignorando, por fim, que, relevando a objeção de consciência em larga

medida de opções morais, na sociedade plural e diferenciada dos nossos dias importa

estabelecer uma clara separação entre as exigências de comportamento que derivam das

nossas convicções íntimas e imunes à coação do Estado - dando uma razão de

consciência à nossa presença neste mundo e responsabilizando-nos, fundamentalmente,

perante nós próprios - e aquelas outras que nos são, externa e coercivamente, impostas à

luz de determinados padrões de conduta mínimos de convivência social e nos

responsabilizam perante os poderes públicos. Diz a este respeito Ferrajoli:

"La confusión entre derecho y moral, si no ayuda al primero - del que

solicita la invasión totalitaria, la prevaricación inquisitiva y la arbitrariedad

decisionista -, tampoco favorece la segunda, que es tanto más auténtica (...)

cuanto menos se confía a medidas coercitivas y más se constituye en exprésion

de opciones autónomas e incondicionadas72".

Assim e também por esta última razão, a objeção de consciência, que é o

resultado de uma contradição insanável entre os valores morais por que se pauta a

conduta do objetor e os critérios axiológico-normativos positivados na ordem jurídica73, só

deve ser admitida em situações excepcionais.

Tendo presente, em particular, a prestação de cuidados de saúde, há -

como resulta da norma legal acima transcrita (art. 138.º, n.º 1, EOM) - um direito geral à

objeção de consciência por parte do médico, constituindo, portanto, as diversas objeções

de consciência vertidas em leis especiais (aborto, DAV´s e procriação medicamente

assistida) simples concretizações desse direito geral, também legalmente previsto. É dizer

que se atribui, juridicamente, ao médico a possibilidade de se negar, por razões de

consciência e no exercício da sua profissão, à prática de um ato que o legislador prevê e

autoriza, sem que esta omissão o faça incorrer em qualquer sanção jurídica. Mais: sejam

quais forem as circunstâncias concretas e tendo o paciente consentido na intervenção, o

72 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. 10.ª edição. Editorial Trotta, Madrid, 2011, p. 465.

73 Vendo no comando jurídico per se, também o objeto possível da objeção de consciência, CAPODIFERRO CUBERO, Daniel. op. cit. p. 96: "Las convicciones del objetor pueden chocar, de forma independiente, tanto con el mandato concreto como con la motivación que sustenta el enunciado normativo, porque tanto el mandato de realizar o no una conducta como la razón de ser en la que se basa pueden contravenir la conciencia individual".

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médico poderá, licitamente, recusar-se a realizá-la, desde que invoque a seu favor a

adesão íntima a determinados princípios até de natureza filosófica ou ideológica que julga

postos em causa por essa mesma intervenção. Trata-se, pois, de uma situação de

privilégio incomum que permite ao médico, não apenas furtar-se à implementação de

políticas de saúde pública decididas por um Estado de direito democrático (convém não

esquecer que o vínculo de emprego público, diferentemente da relação laboral privada,

tem uma vertente externa, que respeita à prossecução dos direitos e interesses dos

cidadãos em geral74), como impor a sua decisão de consciência ao interesse de todos os

pacientes que consentiram, livre e esclarecidamente, na prática do ato objetado.

Do que se diz imediatamente acima, julgamos defensável concluir que, não

obstante o juízo de ponderação de interesses, que a objeção de consciência coenvolve,

estar, entre nós, confiado - para cada situação em abstracto - ao legislador ordinário, a

norma jurídica que a admite, permitindo, assim, ao indivíduo sobrepor ao comando legal

as suas convicções personalíssimas, deverá ser considerada não conforme à

constituição, na hipótese dessa admissibilidade legal se traduzir numa restrição potencial

de direitos fundamentais de terceiros, designadamente os direito social realizados através

do serviço nacional de saúde. Por exemplo: se vier a ser aprovada a lei de

despenalização e regulamentação da eutanásia ativa ou voluntária e estiver aí previsto o

direito à objeção de consciência por parte dos profissionais de saúde, o número de

médicos objetores a nível nacional acabar por se revelar incompatível com a prática

regular da "morte assistida", entendemos que a objeção de consciência deverá ceder

(ainda que seja por inconstitucionalidade material da respectiva norma) a favor da

pretensão dos pacientes à prestação pública, legalmente, disciplinada75.

74 Cfr. art. 73.º, Lei n.º 35/2014, de 20 de junho (Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas). Sobre as restrições, em sede de função pública, à objeção de consciência, CAPODIFERRO CUBERO, Daniel. op. cit. p. 115, observa: "Si se sumam el especial sometimiento a la legalidad, la posición del empleado público como un instrumento del Estado para realizar sus políticas, las nefastas consecuencias que puede acarrear el abuso de derecho, los derechos de terceros y el principio de confianza legítima y la buena fe (...) que todo ciudadano tiene en que la Administración, a través de su personal, le prestará los servicios a los que se ha comprometido de forma objetiva, eficaz y con pleno sometimiento a las normas, el espacio para que el personal de la Administración pueda ejercer la objeción de conciencia ante alguna de las obligaciones derivadas de su trabajo parece poco menos que inexistente".

75 Num sentido que nos parece idêntico ao nosso, também CAPODIFERRO CUBERO, Daniel. op. cit. p. 146: "Si la conducta del objetor afecta negativamente a determinados derechos y principios constitucionales sobre los que no tiene ninguna legitimidad para disponer parece razonable que el Ordenamiento no permita la plena expansión de su derecho, al no garantizarse la protección del resto de elementos relevantes de su entorno". Obviamente, não se justificará já a declaração de inconstitucionalidade a que aludimos em texto, se a própria lei, prevendo a possibilidade de um número excessivo de objetores, estabelecer medidas normativas que permitam assegurar a satisfação do direito dos pacientes, sem prejuízo do direito à objeção de consciência por parte dos clínicos.

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Circunscrevendo-nos à União Europeia, verificamos que os três países que

legalizaram a eutanásia ativa - Holanda, Bélgica e Luxemburgo - são ainda sensíveis ao

tradicional modelo hipocrático76, admitindo, assim, a objeção de consciência por parte do

pessoal médico e paramédico. Assim,

- na Holanda e segundo as orientações divulgadas pelo respectivo Governo

A guide to the Dutch Termination of Life on Request and Assisted Suicide (Review

Procedures) Act77, em resposta à questão 5: "Are doctors obliged to comply with request

for euthanasia?" esclarece-se: "No. Doctors can refuse to perform procedures to terminate

life and nurses can refuse to be involved in preparations for euthanasia. (...) The ability to

refuse a request for euthanasia or assisted suicide guarantees doctors' freedom of

conscience. The basic principle underlying the legislation is that patients have no absolute

right to euthanasia and doctors no absolute duty to perform it";

- na Bélgica e em conformidade com o artigo 14, Lei de 28 de maio 200278,

"aucun médecin n'est tenu de pratiquer une euthanasie. Aucune autre personne n'est

tenue de participer à une euthanasie";

- no Luxemburgo, o artigo 15, Lei de 16 de março de 200979, prescreve que

"aucun médecin n'est tenu de pratiquer une euthanasie ou une assistance au suicide.

Aucune autre personne ne peut être tenue de participer à une euthanasie ou une

assistance au suicide".

Por outro lado e no que respeita aos últimos dois países, a única obrigação

do objetor consiste em informar o paciente e/ou a pessoa da sua confiança das razões da

recusa e na entrega do respectivo dossier clínico ao médico designado por aqueles.

Entretanto e tendo, também, por referência o caso holandês, Navarro-Valls e Martínez-

76 É tradição comum a diversos países que os médicos, normalmente por ocasião da respectiva formatura, profiram o chamado "Juramento de Hipócrates", obrigando-se, solenemente e entre outras matérias, a guardar respeito absoluto pela vida humana. Assim é que, em Portugal, o próprio Código Deontológico da Ordem dos Médicos proscreve, no seu artigo 65.º, n.º 2, a ajuda ao suicídio e a eutanásia.

77 Disponível em http://www.bioeticanet.info/eutanasia/LleiHol.pdf.

78 Tendo sido publicada no Moniteur Belge em 22 de junho de 2002, a Lei de 28 de maio de 2002 entra em vigor a 22 de setembro de 2002.

79 Após a sua publicação no Journal Officiel du Grand-Duché Luxembourg, de 16 de março de 2009, a lei luxemburguesa sobre eutanásia e ajuda ao suicídio entra em vigor a 17 de março de 2009.

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Torrón afirmam que "(...) más que de una verdadera objeción de conciencia se trata,

jurídicamente hablando, de una objeción de legalidad. Es decir, la propia ley no exige

recurso a la conciencia, deontológica o médica, para exonerarse de la realización de

prácticas eutanásicas: basta con la simple negativa, sean cuales fueren sus razones, que

en todo caso es amparada por la propia ley80".

4.1. Situação em Portugal

Na sequência da entrega na Assembleia da República da petição coletiva

"Pela despenalização da morte assistida" e no decurso da respectiva apreciação em

Plenário, três partidos políticos aí representados - Bloco de Esquerda (BE), Pessoas-

Animais Natureza (PAN) e Partido Ecologista "Os Verdes" - anunciam a intenção de

apresentar iniciativas legislativas sobre a despenalização e regulamentação da eutanásia

e ajuda ao suicídio (sinteticamente, "morte assistida"). Assim e a 15 de fevereiro de 2017,

o BE apresenta, no parlamento português, um Anteprojeto de Lei81 que tem por objeto

definir e regular "as condições em que a antecipação da morte por decisão da própria

pessoa com lesão definitiva ou doença incurável e fatal e em sofrimento duradouro e

insuportável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde, não é punível" (cfr.

art. 1.º, Anteprojeto), dando, também, início naquela data à discussão pública do mesmo.

Neste documento legislativo e para além de se estabelecer um detalhado e exaustivo

procedimento clínico de avaliação do pedido do doente (arts. 3.º a 13.º, Anteprojeto),

prevê-se a objeção de consciência dos profissionais de saúde (médico e demais pessoal

especializado) por motivos éticos, mas, também, clínicos ou de qualquer outra natureza,

"ao ato de antecipação da morte de um doente", devendo a recusa ser fundamentada e

comunicada ao paciente num prazo não superior a 24 horas, assim como manifestada em

documento assinado pelo objetor e dirigido ao responsável do estabelecimento de saúde

em que o doente está a ser assistido (cfr. art. 17.º, Anteprojeto).

80 NAVARRO-VALLS, Rafael; MARTÍNEZ-TORRÓN, Javier. Conflictos entre conciencia y ley. 2.ª edição (revista e ampliada). Iustel, Madrid, 2012, p. 181

81 Disponível em:

http://www.esquerda.net/sites/default/files/projeto_de_lei_despenalizacao_morte_assistida.pdf.

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Por sua vez, o PAN - através de Projeto de Lei82 - disciplina "o acesso à

morte medicamente assistida, na vertente de eutanásia e suicídio medicamente assistido"

(cfr. art. 1.º, Projeto de Lei). Também aí se consagra, no artigo 31.º, o direito à objeção de

consciência dos médicos e demais profissionais de saúde, "em cumprimento do previsto

nos respectivos códigos deontológicos". Especifica-se, todavia, que essa objeção é válida

"relativamente a quaisquer atos respeitantes à morte medicamente assistida", devendo

ainda o objetor dar conhecimento, no prazo de 24 horas, ao doente da sua recusa em

assisti-lo e dos respectivos motivos. Finalmente, a objeção é expressa em documento

assinado e entregue ao responsável pelo estabelecimento de saúde onde o objetor preste

serviço.

Como referido, o procedimento de avaliação do pedido do doente, pedido

este que se supõe ser a expressão de "uma vontade livre, séria e esclarecida" e só

poderá ser feito "por pessoa maior, capaz de entender o sentido e alcance do pedido e

consciente no momento da sua formulação"83, compreende diversas fases, todas elas

descritas nos documentos legislativos apresentados, a saber:

- formulação do pedido de morte assistida junto do "médico responsável",

também designado por "médico assistente", em documento escrito, assinado pelo próprio

ou por pessoa da sua confiança84;

- emissão de parecer pelo "médico responsável" após discussão com o

doente da respectiva situação clínica e das alternativas ainda disponíveis,

designadamente na área dos cuidados paliativos85;

- emissão de parecer pelo médico especialista na patologia que afeta o

doente86;

- emissão de parecer por médico psiquiatra, sendo este parecer obrigatório

no Projeto de Lei do PAN, sujeito à verificação de uma das situações abaixo descritas

82 Projeto de Lei n.º 418/XIII/2ª, publicado no Diário da Assembleia da República (DAR) II série A N.º 71/XIII/2, de 21 de fevereiro de 2017, pp. 5-20. Link para esta iniciativa legislativa:

http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=41038.

83 Cfr., respectivamente, arts. 2.º, Anteprojeto, e 3.º e 4.º, Projeto de Lei.

84 Cfr., respectivamente, arts. 3.º, Anteprojeto, e 5.º, Projeto de Lei.

85 Cfr., respectivamente, arts. 4.º, Anteprojeto, e 6.º, ns.º 1 a 5 e 7, Projeto de Lei.

86 Cfr., respectivamente, art. 5.º, Anteprojeto, assim como arts. 6.º, ns.º 2, al. d) e 6 e 7.º, Projeto de Lei.

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tratando-se do Anteprojeto do BE: a) o médico responsável e/ou o médico especialista

terem dúvidas sobre a capacidade do doente para solicitar a antecipação da morte; b) o

médico responsável e/ou o médico especialista admitirem ser o paciente portador de

perturbação psíquica que afecta a sua capacidade decisória87.

Tendo por referência as sobreditas iniciativas legislativas sobre a "morte

assistida" e em jeito de observações finais, oferece-se dizer o seguinte:

- sendo três os médicos envolvidos no processo de avaliação do pedido do

doente e determinando o parecer negativo de qualquer deles o indeferimento daquele

pedido, julgamos que o respeito devido à autonomia pessoal do avaliado, expresso no

exercício concreto do seu direito à própria morte, impõe que o médico objetor seja

excluído desse mesmo processo de avaliação;

- o referido procedimento de avaliação não deve ser de tal modo complexo e

demorado que se traduza, na prática, na negação do direito que se pretende reconhecer;

- ressalvado o cumprimento dos sobreditos requisitos de avaliação, o

exercício do direito à objeção de consciência não poderá, em hipótese alguma, prejudicar

a efetiva prestação pública de assistência à morte solicitada pelo paciente terminal ou que

sofra de lesão definitiva, devendo, assim, a lei em causa prever, expressamente, os

limites normativos a que esse exercício está sujeito;

- deve, também, a mesma incluir um qualquer critério normativo que permita

ajuizar, sem invasão do foro íntimo, se estamos perante uma verdadeira manifestação do

direito à objeção de consciência;

- sem excluir a admissibilidade, em princípio, da objeção de consciência

superveniente: isto é, invocada por quem realizou já o comportamento imposto pelo dever

jurídico, legalmente, objetável 88 , julgamos que, neste caso concreto e tendo em

consideração a particular gravidade dos motivos nele implicados a exigir uma reflexão

prévia, séria e aprofundada tanto do paciente como do médico, o legislador deverá negar

essa possibilidade.

87 Cfr., respectivamente, arts. 6.º, Anteprojeto, e 8.º, Projeto de Lei.

88 Diz, com alguma razão, CAPODIFERRO CUBERO, Daniel. op. cit. p. 126: "Siendo muy atrevidos, se podría decir que la objeción de conciencia sobrevenida tiene más razón de ser que la planteada antes de afrontar el deber conflictivo, ya que se basa en convicciones derivads del juicio de la experiencia y fortalecidas por éste".

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