o valor de educar

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O valor de educar 1 Fernando Savater 1. Para uma Humanidade sem humanidades? No campo da educação, um fantasma é o hipotético desaparecimento das humanidades dos planos de estudo, substituídas por especialidades técnicas que mutilarão as gerações futuras da visão histórica, literária e filosófica, imprescindível para o cabal desenvolvimento da plena humanidade (…). A questão merece ser considerada com alguma detenção, porque a própria reflexão sobre o ensino que queremos ou que recusamos nos obriga também a meditar sobre a qualidade da própria cultura em que hoje nos inserimos. Em certo sentido, o temor parece bem justificado. Os planos de ensino em geral tendem a reforçar os conhecimentos científicos ou técnicos que, supostamente, terão uma utilidade prática imediata, isto é, uma aplicação laboral directa. A inovação permanente, aquilo que é uma descoberta recente ou tudo quanto abre passagem para a tecnologia do futuro gozam do maior prestígio, enquanto a rememoração do passado ou as grandes teorias especulativas 1 Savater, F. (1997). O valor de Educar Lisboa. Edições Presença. (A obra foi republicada pelas Edições Dom Quixote em 2006) soam a pura perda de tempo. Há algum cepticismo sobre tudo o que se apresenta aspirando a uma concepção global do mundo. Essas pretensões totalizantes já, muitas vezes, derivaram para o totalitarismo e em qualquer caso estão sempre sujeitas a controvérsias intermináveis que o afã politicamente correcto do dia-a-dia prefere deixar abertas para que cada qual escolha a seu gosto. Em sociedades multiétnicas — e cada vez serão mais — resultam perigosas ou pelo menos delicadas as excursões até às origens. Quanto aos fins, sejam estes políticos ou estéticos, tão-pouco parecem fáceis de executar. É mais seguro deter-se sobre os meios, zona temperada da instrução, e no sólido território do pragmatismo, em que a grande maioria costuma coincidir. Além disso, nalguns países como a Espanha, onde um clero propenso ao dogmatismo monopolizou até há pouco tempo a oferta pedagógica, a pletora de letrados versados em logomaquias contrasta tristemente com a escassez de investigadores científicos capazes, parece lógico que as autoridades educativas, que se consideram progressistas, decidam que chegou o momento de inverter esta proporção (…). Mas, o que são as humanidades? Suponho que ninguém sustente a sério que estudar matemáticas ou física sejam tarefas menos humanistas, não digamos menos «humanas», que dedicar-se ao grego ou à filosofia. Nicolau de Siracusa, Descartes, Voltaire ou Goethe teriam ficado pasmados ao ouvir hoje tamanho disparate na boca de um literato pedante, daqueles que repetem vacuidades sobre a técnica «desumanizadora» (…). A separação entre cultura científica e cultura literária é um fenómeno que só se inicia nos finais do século passado, para de imediato se consolidar no nosso, dada a impossibilidade de abarcar saberes cada vez mais técnicos e complexos, que desafiam as capacidades de qualquer indivíduo,

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Filosofia

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  • O valor de educar 1

    Fernando Savater

    1. Para uma Humanidade sem humanidades?

    No campo da educao, um fantasma o

    hipottico desaparecimento das humanidades

    dos planos de estudo, substitudas por

    especialidades tcnicas que mutilaro as

    geraes futuras da viso histrica, literria e

    filosfica, imprescindvel para o cabal

    desenvolvimento da plena humanidade ().

    A questo merece ser considerada com

    alguma deteno, porque a prpria reflexo

    sobre o ensino que queremos ou que recusamos

    nos obriga tambm a meditar sobre a qualidade

    da prpria cultura em que hoje nos inserimos.

    Em certo sentido, o temor parece bem justificado.

    Os planos de ensino em geral tendem a reforar

    os conhecimentos cientficos ou tcnicos que,

    supostamente, tero uma utilidade prtica

    imediata, isto , uma aplicao laboral directa.

    A inovao permanente, aquilo que uma

    descoberta recente ou tudo quanto abre

    passagem para a tecnologia do futuro gozam do

    maior prestgio, enquanto a rememorao do

    passado ou as grandes teorias especulativas

    1 Savater, F. (1997). O valor de Educar Lisboa. Edies Presena. (A obra foi republicada pelas Edies Dom Quixote em 2006)

    soam a pura perda de tempo. H algum

    cepticismo sobre tudo o que se apresenta

    aspirando a uma concepo global do mundo.

    Essas pretenses totalizantes j, muitas

    vezes, derivaram para o totalitarismo e em

    qualquer caso esto sempre sujeitas a

    controvrsias interminveis que o af

    politicamente correcto do dia-a-dia prefere

    deixar abertas para que cada qual escolha a seu

    gosto.

    Em sociedades multitnicas e cada vez

    sero mais resultam perigosas ou pelo menos

    delicadas as excurses at s origens. Quanto aos

    fins, sejam estes polticos ou estticos, to-pouco

    parecem fceis de executar. mais seguro

    deter-se sobre os meios, zona temperada da

    instruo, e no slido territrio do pragmatismo,

    em que a grande maioria costuma coincidir.

    Alm disso, nalguns pases como a Espanha,

    onde um clero propenso ao dogmatismo

    monopolizou at h pouco tempo a oferta

    pedaggica, a pletora de letrados versados em

    logomaquias contrasta tristemente com a

    escassez de investigadores cientficos capazes,

    parece lgico que as autoridades educativas, que

    se consideram progressistas, decidam que

    chegou o momento de inverter esta proporo

    ().

    Mas, o que so as humanidades?

    Suponho que ningum sustente a srio que

    estudar matemticas ou fsica sejam tarefas

    menos humanistas, no digamos menos

    humanas, que dedicar-se ao grego ou

    filosofia. Nicolau de Siracusa, Descartes, Voltaire

    ou Goethe teriam ficado pasmados ao ouvir hoje

    tamanho disparate na boca de um literato

    pedante, daqueles que repetem vacuidades sobre

    a tcnica desumanizadora (). A separao

    entre cultura cientfica e cultura literria um

    fenmeno que s se inicia nos finais do sculo

    passado, para de imediato se consolidar no

    nosso, dada a impossibilidade de abarcar saberes

    cada vez mais tcnicos e complexos, que

    desafiam as capacidades de qualquer indivduo,

  • 2 Cadernos de Pedagogia _________________________________________________________________________

    impondo a especializao, que no mais do que

    uma forma de renncia. A seguir assiste-se

    necessidade de encontrar a virtude, clamando os

    literatos contra a quadrcula desumana da

    cincia, enquanto os cientistas zombam da

    ineficcia palavrosa dos seus adversrios. O

    certo que esta hemiplegia cultural uma

    novidade contempornea, no uma constante

    necessria e que encontraria poucos adeptos

    se acaso encontrasse algum entre as figuras

    mais ilustres da nossa tradio intelectual.

    Diz-se que as faculdades que o

    humanismo pretende desenvolver so a

    capacidade crtica de anlise, a curiosidade que

    no respeita dogmas nem ministrios, o sentido

    de raciocnio lgico, a sensibilidade para apreciar

    as mais altas realizaes do esprito humano, a

    viso de conjunto, face ao panorama do saber,

    etc. Francamente, no conheo nenhum

    argumento srio para provar que o estudo do

    latim e do grego favoream mais estas desejveis

    qualidades que o estudo da matemtica ou da

    qumica. Apresento estes exemplos, para poder

    falar com total imparcialidade, porque sempre

    fui igualmente incompetente no estudo dessas

    quatro disciplinas. Sem duvidar do interesse

    intrnseco de nenhum desses saberes, como

    estabelecer que mais humanamente

    enriquecedora a filologia das palavras que a

    cincia experimental das coisas?

    Considero de grande valia estar prevenido

    de que as doenas venreas, por exemplo,

    nada tm que ver etimologicamente com as

    veias, assim como conhecer a lenda mitolgica

    da amvel deusa a que devem o seu nome, mas

    to-pouco me parece ser de desdenhar informar-

    me sobre a desordem fisiolgica que tais doenas

    provocam, assim como a composio activa das

    substncias capazes de remedi-las. Duvido que

    do ponto de vista do interesse estritamente

    cultural (a fora espiritualmente emancipadora)

    a primeira aprendizagem seja superior

    segunda e, de imediato indignar-me-ia ver

    menosprezar esta sua condio mais prtica

    ou tcnica.

    Quanto filosofia, cujo contedo me

    mais familiar, desconfio tambm de que tenha

    per se virtudes especiais para configurar perso-

    nalidades crticas ou insubmissas face aos

    poderes deste Mundo. Quando oio os

    estudantes ou os professores da minha

    corporao denunciar como atentados

    governamentais contra o pensamento livre

    qualquer reduo do horrio das disciplinas

    filosficas no bacharelato, no posso deixar de

    sentir uma certa incomodidade (). Na verdade,

    algumas das pessoas mais conformistas,

    supersticiosas e desprezveis que conheo so

    catedrticos de filosofia. Se eu tivesse que

    julg-la por tais representantes, restar-me-ia uma

    nica soluo: solicitar a abolio do seu estudo

    no bacharelato e at na Universidade.

    A questo das humanidades no se baseia

    primordialmente, quanto a mim, no ttulo das

    matrias que vo ser ensinadas, nem no seu

    carcter cientfico ou literrio. Todas so teis,

    muitas so oportunas e h-as imprescindveis

    sobretudo na opinio dos professores cujo futuro

    laboral depende delas. Todos os anos se

    incorporam novas disciplinas na oferta

    acadmica, que cresce e se diversifica at

    exausto, pelo menos nos planos ministeriais.

    obrigatrio incluir msica, pintura, escultura,

    cinema, teatro, informtica, segurana

    rodoviria, noes de primeiros socorros,

    rudimentos de economia poltica, expresso

    corporal, dana, redaco e crtica jornalstica,

    etc. (). possvel argumentar a favor de todas

    estas aprendizagens e de muitas outras, que

    podem completar excelentemente a formao

    dos alunos. Tanta oferta educativa tropea

    apenas em dois obstculos fundamentais: por

    um lado os limites da capacidade assimiladora

    dos alunos e o nmero de horas lectivas dirias

    que conseguem suportar sem sofrer transtornos

    mentais srios, por outro lado, a disponibilidade

    docente dos professores, a maioria deles

    formados numa poca em que nem sequer

  • _______________________________________________________________ Documentos anexos. O valor de educar 3

    existiam as matrias em que, anos mais tarde, se

    viro a converter em mestres ().

    Franois Closet () caracterizou este

    problema muito bem: Pouco importa afinal o

    que se ensine, desde que se despertem a

    curiosidade e o gosto de aprender () o

    importante no o que se aprende, mas sim o

    modo como se aprende ().

    Goethe, absolutamente insuspeito de anti-

    humanista, confessa que a forma memorstica de

    ensinar o grego converteu essa aprendizagem na

    mais estril e aborrecida da sua formao. O

    mesmo ocorre tambm com as matemticas

    talvez a disciplina bsica que mais

    experincias pedaggicas desastrosas

    suportou nos ltimos lustres que na mos de

    lgubres mestres conseguem tornar-se,

    frequentemente, de uma aridez repelente para

    muitos, enquanto nas mos de Lewis Carrol ou

    de Martin Gardner estimulam a imaginao e o

    humor.

    E que dizer da filosofia, cujos manuais de

    bacharelato oferecem sries de nomes agrupados

    em equipas opostas (esticos contra epicuristas,

    idealistas contra materialistas, etc.) que parecem,

    muitas vezes, a lista telefnica dos grandes

    filsofos, com a diferena de que no figura

    nenhum nmero para onde lhes falar, para

    resgatar os jovens do fastio e da confuso?

    Para no mencionar o deleite acadmico

    com uma gria, o mais obscura e artificiosa

    possvel, porventura prpria para iniciados, mas

    de maneira nenhuma para os que tentam

    iniciar-se. Tive conhecimento de um livro

    introdutrio, to simptico que j no segundo

    tema enchia as pginas de frmulas algbricas

    triunfalmente impostas, primeira vista, para

    desanimar os indolentes. Nada de concesses

    demaggicas curiosidade adolescente cujas

    perguntas, na sua maioria, so espontaneamente

    metafsicas. Mais vale que fujam se no esto

    dispostos a submeter-se ao ascetismo do

    enigmtico ou do rduo Examinando esses

    guisados insuportveis vem-nos memria a

    resplandecente lio de Montaigne, exposta,

    precisamente, no ensaio dedicado instruo

    das crianas: Constitui um erro enorme pintar a

    filosofia como algo de inacessvel s crianas,

    dotada com um rosto taciturno, exigente e

    terrvel. Quem a mascara com esse falso rosto,

    plido e repulsivo? No h nada mais alegre,

    festivo, regozijante e, atrevo-me mesmo a dizer,

    mais travesso. No predica mais que festa e bons

    momentos. Uma cara triste e crispada demonstra

    que no tem cabimento a.

    Aqueles que tentam romper a mscara

    triste e seduzir, em vez de intimidar, sofrem o

    menosprezo dos colegas, ainda que a ampla

    aceitao popular de humildes esforos

    divulgadores como O Mundo de Sofia de Jostein

    Gaarder ou a minha tica para um jovem provem

    que h formas de abordar os temas filosficos

    que despertam cumplicidade e no enfado nos

    nefitos, nico meio de os estimular para que

    depois prossigam, por si mesmos, o estudo

    comeado. Os sisudos professores de latim

    consideram trivial tudo quanto dito com

    simplicidade () trivialidade o que fica na

    cabea de um imbecil quando ouve algo dito

    com simplicidade.

    Porque que as matrias docentes, sejam

    elas quais forem, so amiudadas vezes ensinadas

    de um modo para falar de maneira suave

    ineficaz, que angustia sem ilustrar e que expulsa

    do conhecimento em vez de atrair para ele?

    Deixemos de lado a incompetncia

    eventual de um ou outro professor ou a no

    menos episdica dificuldade de entendimento de

    alguns alunos, afastemos ou pnhamos entre

    parntesis as ms influncias sociais que tanto se

    injuriam, como so a seduo hipntica da

    televiso que afasta dos livros, a pressa em obter

    resultados rentveis a curto prazo que impede a

    necessria paz escolar, os grandes exames de

    estado, tipo selectividade, cujo carcter crucial

    destri fatalmente toda a aprendizagem ().

    Sem rejeitar o apoio de todas as outras, eu creio

    que a principal causa da ineficcia docente a

    pedantaria pedaggica.

  • 4 Cadernos de Pedagogia _________________________________________________________________________

    No se trata de um transtorno psicolgico

    de uns tantos, mas sim da doena laboral da

    maioria. Finalmente, a palavra pedante uma

    palavra italiana que quer dizer mestre, em

    princpio, sem nenhuma conotao pejorativa, tal

    como a define Covarrubias no seu Tesoro de la

    lengua ou tal como Montaigne a utiliza no ensaio

    Du pdantisme. De modo que a pedantaria Oh!

    um vcio que nasce da vocao de ensinar, que a

    acompanha como uma tentao ou um eco

    maligno e que em casos mais graves pode acabar

    por esteriliz-la por completo.

    Tentarei esboar os sinais da pedantaria,

    porventura, incorrendo, ocasionalmente, nela

    (todos ns professores somos pedantes pelo

    menos em alguns momentos) ()

    A pedantaria exalta o conhecimento

    prprio acima da necessidade docente de

    comunic-lo, prefere os ademanes intimidatrios

    da sabedoria humildade paciente e gradual

    que a transmite, centra-se de uma maneira

    exigente nas formalidades acadmicas que, no

    melhor dos casos, so apenas rotinas teis para

    quem j sabe enquanto menospreza a

    estimulao cordial das tentativas, por vezes

    desordenadas, do nefito. pedantaria

    confundir, deslumbrar ou inspirar reverente

    docilidade com a funo de ilustrar, de informar

    ou, inclusive, de animar a aprendizagem. O

    pedante no abre os olhos a quase ningum, mas

    deslumbra uns tantos. Tudo isso, porque no,

    com boa inteno e sempre com

    autocomplacente suficincia.

    Franois de Closet aponta para uma das

    possveis genealogias da pedantaria e assinala

    tambm o erro mais frequente que provoca

    enquanto mtodo pedaggico. Uma origem

    comum do pedantismo que grande parte dos

    professores foram alunos excelentes na disciplina

    que agora esto a ensinar. Por isso no

    compreendem que haja estudantes que no

    partilhem espontaneamente o amor que eles

    sentem como uma obrigao intelectual evidente

    por si mesma, consideram que todas as pessoas

    deveriam prestar sua disciplina a mesma

    primazia que eles prprios lhe conferem e os

    apticos acabam por lhes aparecer como

    adversrios pessoais.

    O professor que quer ensinar uma

    disciplina tem de comear por suscitar o desejo

    de a aprender. Como os pedantes consideram tal

    desejo obrigatrio, s conseguem ensinar algo

    queles que efectivamente sentem de antemo

    esse interesse, que nunca to comum como

    costumam acreditar. Para despertar a

    curiosidade dos alunos devemos estimul-los

    com algum alimento bem suculento, talvez

    anedtico ou aparentemente trivial, devemos ser

    capazes de nos colocar no lugar dos que esto

    apaixonados por tudo, menos pela matria cujo

    estudo vo iniciar.

    E isto leva-nos ao equvoco metodolgico

    da pedantaria que comea a explicar a cincia

    pelos seus fundamentos tericos, em vez de

    esboar primeiro as inquietaes e tentativas que

    levaram a estabelec-los.

    Cada cincia tem a sua prpria lgica

    epistemolgica que favorece o avano da

    investigao nesse campo, mas essa lgica quase

    nunca coincide e, em muitos casos, difere

    radicalmente da lgica pedaggica que deve ser

    seguida para iniciar os nefitos na sua

    aprendizagem. No se pode comear pelo estado

    actual da questo, tal como parece estar hoje

    estabelecido pelos sbios especialistas, sem

    indicar os sucessos e as necessidades prticas

    que levaram pouco a pouco aos argumentos

    tericos actuais.

    s vezes pedagogicamente mais

    aceitvel ensinar uma matria a partir de teorias

    que j no esto totalmente em vigor para as

    autoridades de vanguarda mas que so mais

    compreensveis ou mais estimulantes para

    aqueles que comeam. O primordial abrir o

    apetite cognoscitivo do aluno, no angusti-lo,

    nem impression-lo. Se a sua vocao o chamar

    para a, logo ter tempo de aprofundar essa

  • _______________________________________________________________ Documentos anexos. O valor de educar 5

    aprendizagem, inteirar-se das descobertas mais

    recentes e at descobrir por si mesmo.

    Adoptar desde o comeo os ares

    enfadados do tecnicismo (talvez vitais para o

    especialista, mas que tm muito pouco que ver

    com a vitalidade de quem o no ) no s no o

    convencer da importncia do estudo que lhe

    proposto mas dissuadi-lo- dele, persuadindo-o

    de que algo alheio aos seus interesses ou

    prazeres.

    O pedante dirige-se aos seus alunos

    como se estivesse apresentando uma

    comunicao perante um congresso em que

    estivessem presentes os seus mais distintos e

    exigentes colegas, todos eles dedicados h longos

    anos disciplina dos seus desvelos. Mas, como a

    maioria dos jovens no demonstra o devido

    entusiasmo nem a compreenso requerida,

    desespera e amaldioa-os. Conheci professores

    de bacharelato indignados com a ignorncia dos

    seus alunos, como se a obrigao de os tirar

    dessa ignorncia no fosse sua. No fundo, o

    problema do pedante que no quer ensinar os

    nefitos, mas sim ser admirado pelos sbios e

    provar a si mesmo que vale tanto ou mais do que

    eles.

    A humildade do mestre, pelo contrrio,

    consiste em renunciar a demonstrar que est

    acima dos outros e em esforar-se por ajudar a

    subir os outros. O seu dever estimular para que

    todos faam descobertas, no pavonear-se pelas

    que ele prprio realizou.

    Mas ser que uma criana pode fazer

    descobertas? Naturalmente que sim, quanto

    menos se sabe, mais se pode descobrir, se

    algum lhe ensinar com arte e pacincia. No

    sero provavelmente descobertas a partir da

    perspectiva prpria da cincia, mas sim do ponto

    de vista de quem se est iniciando nela. Mas so

    essas descobertas pessoais de coisas que j toda

    a gente sabe como comentam sarcasticamente

    os maus professores, que levam os adolescentes

    a procurar, a inquirir e a prosseguir o seu estudo.

    O professor de bacharelato no deve

    esquecer nunca que a sua obrigao consiste em

    mostrar, para cada disciplina, um panorama

    geral e um mtodo de trabalho a pessoas que, na

    sua maioria, no voltaro a interessar-se

    profissionalmente por esses temas. No deve

    limitar-se apenas a informar sobre os factos e

    teorias essenciais, mas deve tambm tentar

    apontar os caminhos metodolgicos como se

    chegou a eles e como podem ser prolongados

    frutuosamente (). Ambas as tarefas so

    imprescindveis, porque no pode haver

    criadores sem notcias do fundamental que os

    precede todo o conhecimento transmisso

    de uma tradio intelectual nem serve para

    nada memorizar frmulas ou nomes se se

    carecer de guia para indagao pessoal.

    A pedagogia contempornea justificando

    a sua recusa de um ensino decrpito constitudo

    por litanias memorsticas, tende, em excesso, a

    minimizar a importncia do treino da memria,

    chegando at a sataniz-la como um resduo

    obsoleto de pocas educativamente obscuras.

    Todavia, no existe inteligncia sem

    memria; no se pode desenvolver a primeira

    sem treinar e alimentar tambm a segunda. O

    exerccio de recordar ajuda a entender melhor,

    ainda que no possa substituir a compreenso

    quando esta est completamente ausente ().

    Mas sobretudo o professor tem de

    fomentar as paixes intelectuais, porque so o

    contrrio da apatia esterilizadora que se refugia

    na rotina e que o mais oposto que existe

    cultura. E essas paixes brotam de baixo, no

    caem do cu dos que crem j saber tudo. Por

    isso, no se deve desdenhar a linguagem

    acessvel, nem as referncias ao popular, nem o

    humor, sem o qual a inteligncia mais no do

    que um guisado de imbecilidades elevadas.

    No campo das letras isto particularmente

    importante (ou talvez me parea a mim, porque

    no estou familiarizado de igual modo com os

    estudos cientficos). No se pode passar do nada

    para o sublime sem paragens intermdias, no se

    deve exigir que quem nunca leu comece por

  • 6 Cadernos de Pedagogia _________________________________________________________________________

    Shakespeare, que Habermas sirva de introduo

    filosofia e que os que nunca puseram um p

    num museu se entusiasmem imediatamente por

    Mondrian (). Antes de aprender a ter prazer

    com as melhores conquistas intelectuais, h que

    aprender a ter prazer intelectualmente ().

    Os predicadores que consideram

    inevitvel a nossa desumanizao por culpa

    dos computadores, dos vdeos, da Internet e

    outras invenes do diabo () o mais certo que

    nenhum desses instrumentos tenha qualquer

    razo para perturbar de uma maneira ou de

    outra a nossa humanidade, nem sequer o nosso

    humanismo. So ferramentas, no demnios,

    surgem do af de melhorar o nosso

    conhecimento do remoto e do mltiplo, no com

    o propsito de vigiar, torturar ou exterminar o

    prximo e se, finalmente, so utilizados para

    essas aces reprovveis, a culpa no

    certamente das mquinas.

    No sculo XIX, doutores serissimos

    diagnosticaram que ver passar vacas e rvores a

    partir de um comboio louca velocidade de

    vinte quilmetros hora ou menos poderia

    causar transtornos psquicos irreversveis aos

    viajantes. J outros haviam feito no menos

    lgubres profecias a respeito da imprensa, para

    no mencionar os receios arrepiantes que

    rodearam a divulgao do telefone.

    Regra geral, esses instrumentos no

    desumanizam ningum, desde que sejam postos

    ao servio do mais humano. Na Internet, pr

    exemplo, o entusiasmo j patente na pornografia

    e no "engate" pode tranquilizar os mais

    desconfiados (), na sua poca o invento que

    Gutenberg queria por ao servio da Bblia e

    outras obras piedosas serviu seguidamente para

    converter em best-seller o Gargntua de Rabelais

    ().

    Talvez seja conveniente perguntar de

    onde vem esse qualificativo de humanidades

    que recebem hoje em dia, determinadas

    matrias. A denominao de origem

    renascentista e no contrape alguns estudos

    muito humanos a outros desumanos ou

    desumanizados pelo seu rumo tcnico-cientfico

    (que no existiam na poca) mas denominava-os

    assim para os distinguir dos estudos teolgicos

    ou dos comentrios das escrituras.

    Os humanistas estudavam humanidades

    isto , centravam-se sobre textos cujas origem era

    declaradamente humana (inclusive, pago) e no

    supostamente divino. E como tais obras estavam

    escritas em grego ou latim clssico, essas lnguas

    ficaram como paradigma de humanidades, no

    s pela sua elegncia literria ou pelas suas

    virtudes filolgicas para analisar os idiomas

    delas derivados, mas tambm pelos contedos

    de cincia e conhecimento no revelados pela f

    capazes de serem alcanados atravs da sua

    utilizao.

    Deste modo, os Elementos de Geometria de

    Euclides faziam parte das humanidades, tal

    como o Banquete de Plato. Assim, para Erasmo,

    por exemplo (), o que conta principalmente

    conseguir adquirir uma capacidade de expresso

    oral e escrita, fluida, cultivada, rica tanto em

    ideias como em palavras (). Mas Rabelais, pelo

    contrrio, ressalta a abundncia de

    conhecimentos, enquanto Montaigne com a

    sua mistura habitual de cepticismo e sentido

    prtico observa que o grego e o latim so,

    sem dvida, uma boa aquisio, mas que se paga

    demasiado cara e chega a confessar que

    gostaria mais de saber bem a minha lngua e a

    de meus vizinhos com quem tenho

    habitualmente mais trato. O modelo de

    formao propugnado por Erasmo s convm a

    uma elite enriquecida que quer tambm refinar

    as suas maneiras e suavizar os seus costumes,

    mas dificilmente poderia estender-se a toda a

    populao.

    Como lembra Durkheim, que na sua

    Histria da Educao o trata com pouco carinho,

    a maioria necessita antes de tudo viver e o que

    necessita para viver no saber falar com arte,

  • _______________________________________________________________ Documentos anexos. O valor de educar 7

    saber pensar correctamente, de forma a saber

    actuar. Para lutar eficazmente contra as coisas e

    contra os homens, so necessrias armas slidas

    e no esses brilhantes ornamentos com que

    pedagogos humanistas esto to ocupados a

    enfeitar a mente.

    Os estudos humansticos (), parece-me

    importante recordar, que nasceram de uma

    disposio laica e profana (no sentido que se

    ope a sagrado) recuperando e apreciando o

    magistrio intelectual de nossos semelhantes

    mais ilustres, em lugar de o esperar apenas da

    divindade atravs dos seus porta-vozes

    oficialmente autorizados. certo que tambm os

    ancestrais gregos e romanos acreditavam em

    deuses, mas em deuses que no pretendiam

    saber escrever: s os homens escreviam, pelo que

    os seus textos at os mais teolgicos foram

    sempre marcadamente humanos (). O

    analfabetismo dos deuses greco-latinos deu

    origem a um magnfico caldo de cultura para as

    letras humanistas, que romperam assim com a

    angstia esterilizadora de escrituras com

    dogmtico o copright celestial. Mas, se os antigos

    deuses no escreviam nem tinham promulgado

    ortodoxia alguma que devesse ser respeitada,

    onde iam buscar aqueles filsofos e sbios de

    tempos pretritos a sua autoridade intelectual?

    Pois, sem dvida, o respeito racional que

    inspiravam aqueles que lhes dedicavam as suas

    horas de estudo.

    Este respeito racional, que respeito pela

    razo margem da f e s vezes

    sub-repticiamente contra ela, configura o

    verdadeiro ponto de partida das humanidades e

    do humanismo.

    Estou-me a referir aqui a uma batalha

    defendida e ganha pelo racionalismo j l vai

    tanto tempo que j no tem sentido voltar a ela

    nos nossos dias? No estou to seguro, porque

    hoje abundam no s a superstio e os contos

    milagrosos (nem sempre de cunho religioso) mas

    tambm o menosprezo pela razo, convertida

    numa simples perspectiva entre outras, sem

    direito a um reconhecimento educativo especial

    e suspeita de dogmatismo quando reclama esse

    reconhecimento.

    Aqui sim d-se uma quebra das

    humanidades, porque no h humanidades sem

    respeito sem preferncia pelo racional, sem

    fundamentao racional atravs da controvrsia

    do que deve ser respeitado e preferido.

    frequente ouvir reprovar este racionalismo por

    ter uma f cega na omnipotncia da razo, como

    se semelhante credulidade fosse compartilhada

    com o uso crtico dessa capacidade ou pudesse

    desmentir-se sem recorrer a ela. A razo s

    resulta beatificada pelos que a utilizam pouco,

    no pelos que a empregam com assiduidade

    exigente. No menos comum a recusa do

    racional em nome da condenao do

    etnocentrismo, censurando-o derrogatoriamente

    de razo ocidental, como se os conhecimentos

    empricos e as reflexes tericas no as

    supersties, que tambm abundam no Ocidente

    que acontecem noutras latitudes no

    correspondessem a parmetros racionais ()

    No h educao se no h verdade a

    transmitir, se tudo mais ou menos verdade, se

    cada um tem a sua verdade, igualmente

    respeitvel, e se no se pode decidir

    racionalmente entre tanta diversidade. Nada

    pode ser ensinado se nem sequer o professor

    acredita na verdade que ensina e no quanto

    importante saber verdadeiramente. O

    pensamento moderno, com Nietzsche cabea,

    sublinhou com razo a parte de construo social

    que h nas verdades que assumimos e a sua

    vinculao perspectiva ditada pelos diversos

    interesses sociais em conflito.

    A metodologia cientfica e, inclusive, a

    simples prudncia indicam que as verdades no

    so absolutas ainda que assim nos paream. So

    frgeis, passveis de serem revistas, sujeitas a

    controvrsia e por fim perecveis, mas nem por

  • 8 Cadernos de Pedagogia _________________________________________________________________________

    isso deixam de ser verdades, isto , mais slidas,

    mais justificadas e mais teis que outras crenas

    que se lhes opem. So tambm mais dignas de

    serem estudadas, ainda que o mestre que as

    explica no deva ocultar a possvel dvida crtica

    que as acompanha (qualquer mestre recorda as

    verdades que aprendeu e que no o sero mais

    para os seus alunos).

    A verdade esvoaa por entre as dvidas

    como a pomba de Kant voa no ar que lhe oferece

    resistncia mas que, ao mesmo tempo, a

    sustenta. Falando de voar, Richard Dawkins d o

    exemplo da aviao como prova intuitiva de que

    nem todas as verdades so aceites como simples

    convenes culturais do momento; se no

    concedssemos aos seus princpios mais

    veracidade que a que costumamos atribuir aos

    discursos dos polticos ou s prdicas dos curas,

    nenhum de ns subiria jamais a um avio.

    A busca racional da verdade, melhor

    dizendo, das verdades sempre fragmentrias

    (), tropea na prtica pedaggica com dois

    grandes obstculos inter-relacionados, a

    sacralizao das opinies e a capacidade de

    abstraco.

    Em vez de serem consideradas propostas

    imprecisas, limitadas pela insuficincia de

    conhecimentos ou pela acelerao, as opinies

    convertem-se em expresso irrebatvel da

    personalidade do sujeito (esta a minha

    opinio, essa a sua opinio) como se o

    relevante delas fosse a quem pertencem, e no o

    que as fundamenta. A velha e deselegante frase

    que os tipos duros de algumas pelculas

    americana, costumam dizer as opinies so

    como os cus, cada um tem o seu ganha fora,

    porque nem sobre as opinies nem sobre os

    traseiros, pelos vistos, possvel existir qualquer

    discusso e ningum pode desprender-se de

    umas ou do outro, ainda que o queira.

    A isso, junta-se uma obrigao beatfica de

    respeitar as opinies alheias, que, se na

    verdade se pusesse em prtica, paralisaria todo e

    qualquer desenvolvimento intelectual ou social

    da humanidade.

    Para no falar do direito a ter a sua

    prpria opinio que no o direito de pensar

    por si mesmo e submeter a uma confrontao

    racional o pensado, mas sim o de manter a

    prpria crena, sem que ningum interfira com

    incmodas objeces.

    Este subjectivismo irracional convence

    mais rapidamente as crianas e os adolescentes,

    que se habituam a supor que todas as opinies

    isto , no s a do mestre que sabe do que est

    a falar como tambm a deles que parte da

    ignorncia valem o mesmo e que no dar o

    brao a torcer sinal de personalidade autnoma

    e que tentar convencer o outro do seu erro, com

    argumentos e informao adequada, exemplo

    de tirania.

    A tendncia para converter as opinies em

    parte simblica do nosso organismo e para

    considerar tudo quanto as desmente como uma

    agresso fsica (feriu as minhas convices)

    no constitui uma dificuldade apenas para a

    educao humanista como tambm para a

    convivncia democrtica. Viver numa sociedade

    plural impe assumir que o que

    verdadeiramente importante so as pessoas, no

    as suas opinies, e que estas devem ser escutadas

    e discutidas e que no nos devemos limitar a

    v-las passar, sem as tocar, como se fossem vacas

    sagradas.

    O que o mestre deve fomentar nos seus

    alunos a disposio para conseguirem

    estabelecer a no irrevogabilidade do que

    escolheram para pensar (a voz da sua

    espontaneidade, a sua auto-expresso, etc.) e

    sim, a capacidade de participar frutuosamente

    numa controvrsia razovel, ainda que isso

    fira os dogmas pessoais ou familiares de

    alguns dos seus alunos.

    aqui que reside a alarmante falta de

    hbito de abstraco dos nefitos, cuja ausncia

    tambm os professores de matrias

  • _______________________________________________________________ Documentos anexos. O valor de educar 9

    essencialmente tericas lamentam com

    amargura, mais tarde, nos estudantes

    universitrios. Consiste numa dificuldade quase

    incurvel para deduzir a partir de premissas,

    para conseguirem desligar-se do imediato ou do

    anedtico, para no procurar, por detrs de cada

    argumento, a m vontade ou o interesse

    mesquinho do argumentador mas sim verem a

    debilidade do argumentado ().

    Aprender a discutir, a refutar e a justificar

    o que se pensa o que constitui a parte

    irrenuncivel de qualquer educao que aspire

    ao ttulo de humanista. Para isso, no

    suficiente saber expressar-se com clareza e

    preciso (ainda que seja primordial, tanto na

    escrita como oralmente) e submeter-se s

    mesmas exigncias de inteligibilidade que se

    pedem aos outros, mas deve tambm ser

    desenvolvida a faculdade de escutar o que se

    prope na construo discursiva. No se trata de

    patentear uma comunidade de autistas,

    zelosamente enclausurados nas suas

    respeitveis opinies prprias, mas sim de

    propiciar a disposio para participar lealmente

    em colquios razoveis e em procurar, em

    comum, uma verdade que no tenha senhor e

    que procure no fazer escravos.

    indubitvel que tal disposio deve

    encontrar o seu primeiro exemplo na atitude do

    prprio mestre, seguro do que sabe, mas

    disposto a debat-lo e, inclusive, a modific-lo no

    decurso de cada aula com a ajuda dos seus

    alunos.

    Deve ser uma das principais tarefas

    fomentar o esprito crtico sem fazer concesses

    ao simples af de levar a melhor (to

    caracterstico e estimulantemente ldico na

    idade adolescente). Tambm saudvel que o

    professor no se antecipe aos adolescentes no

    zelo subversivo, ensinando-os a refutar coisas

    que ainda no mostrou sob o seu aspecto

    positivo, por exemplo () expor as doutrinas

    filosficas a partir dos seus erros.

    H professores to inconformistas que no

    se conformam com ser apenas professores e

    querem tambm ocupar o papel de jovens

    rebeldes, em vez de deixar aos seus alunos essa

    iniciativa (). Deve ser potenciado naqueles que

    aprendem a capacidade de perguntar e

    perguntar-se: essa inquietao, sem a qual nunca

    se consegue saber verdadeiramente alguma

    coisa, mesmo que se consiga repetir tudo.

    Uma das constataes mais alarmantes

    do ensino, na actualidade, que os mestres das

    crianas pequenas sentem-se angustiados com as

    suas perguntas constantes, enquanto na

    universidade nos queixamos porque nunca

    perguntam nada. Que ocorreu nesses anos que

    separam a escola da faculdade para que lhes

    tenha passado a alegre vontade de inquirir? E

    no devemos temer que esse esprito crtico leve

    ao puro niilismo indisciplinado, porque se for

    autntico, consegue ser o seu melhor preventivo

    ().

    H () outro aspecto da educao

    humanista que convm assinalar e que a

    dimenso narrativa (). Os homens no so

    problemas ou equaes mas sim histrias somos

    menos parecidos com contas do que com contos.

    imprescindvel portanto que o ensino saiba

    narrar cada uma das disciplinas vinculando-a ao

    seu passado, s mudanas sociais que

    acompanharam o seu desenvolvimento, etc.

    As verdadeiras humanidades so as

    matrias de estudo que conservam vivo o latejo

    biogrfico daqueles que as exploraram assim

    como a sua dvida face s nossas necessidades

    vitais e aos nossos sonhos. A memria dos

    homens pretritos e a urgncia da vida no

    presente o que unifica significativamente a

    disperso de temas acadmicos que conformam

    o curriculum ().

    A sensibilidade narrativa antes de tudo

    sensibilidade literria. Basicamente aprende-se

    lendo, ainda que haja outras importantes formas

    de narrao que a educao to-pouco deve

    descuidar, como a cinematogrfica. Mas ler

  • 10 Cadernos de Pedagogia _________________________________________________________________________

    sempre uma actividade, em si mesma,

    intelectual, um esboo de pensamento, algo mais

    activamente mental que ver imagens. Depois da

    palavra falada, a palavra escrita o remdio

    mais potente que se inventou para o crescimento

    intelectual ().

    2. Educar universalizar

    Sob o mesmo rtulo de educao,

    acolhem-se frmulas muito distintas no tempo e

    no espao. Os primeiros grupos humanos de

    caadores-recolectores educaram os seus filhos,

    tal como os gregos da poca clssica, os aztecas,

    as sociedades medievais, o sculo das luzes ou as

    naes ultratecnificadas contemporneas. E esse

    processo de ensino nunca uma pura

    transmisso de conhecimentos objectivos ou de

    destrezas prticas, mas sempre acompanhado

    de um ideal de vida e de um projecto de

    sociedade ().

    Semelhante factor de subjectividade no ,

    primordialmente, uma caracterstica psicolgica

    do mestre nem do discpulo (), mas vem

    determinado pela tradio da sociedade em que

    ambos estabelecem o seu contacto. A educao

    tem como objectivo completar a humanidade do

    nefito, mas essa humanidade no pode realizar-

    se em abstracto nem genericamente, nem sequer

    consiste no cultivo de um grmen idiossincrtico

    lactente em cada indivduo, mas tem como

    funo imprimir melhor uma orientao social

    precisa, isto , a que cada comunidade considera

    prefervel.

    Durkheim, em Pedagogia e Sociologia.

    insistiu de maneira muito ntida neste ponto: O

    homem que a educao deve plasmar dentro de

    ns no o homem tal como a Natureza o criou,

    mas sim tal como a sociedade quer que ele seja: e

    quere-o tal como o exige a sua economia interna

    (). Portanto, dado que a escala de valores

    muda forosamente com as sociedades, a

    hierarquia no permaneceu sempre igual em

    dois momentos diferentes da histria. Ontem era

    a valentia que tinha a primazia com todas as

    faculdades que implicam as virtudes militares,

    hoje em dia (Durkheim escreve em finais do

    sculo passado 2) o pensamento e a reflexo,

    porventura amanh ser o refinamento do gosto

    e a sensibilidade, at mesmo as coisas da arte.

    Assim, o nosso ideal pedaggico , at nos seus

    mais pequenos detalhes, obra da sociedade.

    E se a sociedade instituda, a partir das

    suas estratgias dominantes e dos preconceitos

    que equilibram a sua perspectiva, que estabelece

    os ideais que orientam a tarefa educativa..., como

    possvel esperar que a passagem pela escola

    propicie a formao de pessoas capazes de

    transformar positivamente as velhas estruturas

    sociais? Como assinalou John Dewey os que

    receberam educao so os que a do; os hbitos

    j produzidos tm uma profunda influncia no

    seu procedimento. como se ningum pudesse

    ser educado, no verdadeiro sentido, at que

    todos se tivessem desenvolvido fora do alcance

    do preconceito, da estupidez e da apatia. Ideal

    por definio inalcanvel. Ento o ensino

    dever ser obrigatoriamente conservador, instruir

    para o conservadorismo, de tal modo que o

    fulgor revolucionrio dos educarmos s ser

    estimulado por reaco contra o que lhes

    proposto e nunca como uma das formas

    possveis de o compreender adequadamente? A

    resposta para esta complexa questo no pode

    ser um simples sim ou no ().

    Em primeiro lugar, convm afirmar, sem

    falsos escrpulos, a dimenso conservadora da

    tarefa educativa. A sociedade prepara os seus

    novos membros do modo que lhe parece mais

    conveniente para a sua conservao, no para a

    sua destruio, isto , quer formar bons scios,

    no inimigos nem individualidades anti-sociais

    (). No s busca conformar indivduos

    socialmente aceitveis e teis, mas tambm

    precaver-se do surgimento de possveis desvios

    2 Trata-se do sculo XIX.

  • _______________________________________________________________ Documentos anexos. O valor de educar 11

    prejudiciais (). Com a sua habitual coragem

    intelectual, Hannah Arendt formulou-o sem

    rodeios: Parece-me que o conservadorismo,

    tomado no sentido de conservao, a prpria

    essncia da educao, que tem sempre como

    tarefa envolver e proteger alguma coisa, seja a

    criana contra o mundo, o mundo contra a

    criana, o novo contra o velho ou o velho contra

    o novo.

    Em resumo, a educao , antes de tudo,

    transmisso de alguma coisa, e s se transmite

    aquilo que quem vai transmitir considera digno

    de ser conservado (). Educamos para satisfazer

    um pedido que corresponde a um esteretipo

    social, pessoal mas nesse processo de

    formao criamos uma insatisfao que nunca

    conforma completamente... Constatao

    estimulante, ainda que, do ponto de vista

    conservador, isso constitua um certo escndalo.

    Ora acontece que, em segundo lugar, a

    sociedade nunca um todo fixo, acabado em

    equilbrio mortal. Em caso algum deixa de

    incluir tendncias diversas que tambm fazem

    parte da tradio que as aprendizagens

    comunicam. Por mais oficialista que seja a

    pretenso pedaggica, acaba sempre por

    acontecer o que Huhert Hannoun aponta em

    Comprendre l'education: a escola no transmite

    exclusivamente a cultura dominante, mas sim o

    conjunto de culturas em conflito no grupo em

    que nasce.

    A mensagem da educao abarca sem-

    pre, ainda que seja como antema, o seu reverso

    ou, pelo menos, algumas das suas alternativas.

    Isto particularmente evidente na modernidade,

    quando a complexidade de saberes e quereres

    sociais tende a converter os centros de estudo em

    mbitos de contestao social ao vigente, se bem

    que isso sempre tenha ocorrido. Pedagogos como

    Rousseau, Max Stirner, Marx, Bakunine ou John

    Dewey marcaram linhas de dissidncia colectiva

    por vezes to espectaculares como as que

    confluram em 1968, mas a histria da educao

    conheceu anteriormente numerosos

    revolucionrios, comeando por Scrates ou

    Plato e seguindo por Abelardo, Erasmo, Lus

    Vives, Toms Moro, Rabelais, etc. ()

    Quem pretende educar converte-se, de

    certo modo, em responsvel pelo mundo face ao

    nefito, como muito bem assinalou Hannah

    Arendt, se lhe repugna esta responsabilidade,

    mais vale que se dedique a outra coisa e que no

    estorve. Tornar-se responsvel do mundo no

    aprov-lo tal como ele , mas sim, assumi-lo

    conscientemente porque e porque, s a partir

    do que , pode ser emendado. Para que haja

    futuro, algum deve aceitar a tarefa de

    reconhecer o passado como prprio e oferec-lo

    queles que vm depois de ns.

    Logo partida, essa transmisso no deve

    excluir a dvida crtica sobre determinados

    contedos de conhecimentos e a informao

    sobre opinies herticas que se opem com

    argumentos racionais forma de pensar

    maioritria. Acredito que o professor no pode

    curto-circuitar o nimo rebelde do jovem com a

    exibio desavergonhada de si prprio. No h

    pior desgraa para os alunos que o educador

    empenhado em compensar com os seus comcios

    as frustraes polticas que no sabe ou no pode

    expor frente a outro pblico melhor preparado.

    Em vez de explicar o passado a que

    pertence, desliga-se dele como se fosse um

    recm-chegado e bloqueia a perspectiva crtica

    que os nefitos deveriam exercer, ensinando-lhes

    a recusar o que ainda no tiveram oportunidade

    de entender. Fomenta-se assim o pior

    conservadorismo docente, o da seita que segue

    com dcil sublevao, o guru iconoclasta. ()

    Precisamente para preservar o que novo e

    revolucionrio, em cada criana, a educao

    deve ser conservadora sustenta Hannah

    Arendt ().

    O que se segue dirige-se queles que,

    como eu, esto convencidos da expectativa social

    de formar indivduos autnomos, capazes de

    participar em comunidades, que saibam

    transformar-se, sem se renegarem a si prprias,

  • 12 Cadernos de Pedagogia _________________________________________________________________________

    que se abram e ampliem sem perecer (). Gente,

    enfim, convencida de que o principal bem que

    temos que produzir e aumentar a humanidade

    compartilhada, semelhante no fundamental,

    apesar das tribos e privilgios com que tambm

    muito humanamente nos identificamos. De

    acordo com este argumento, parece-me que o

    ideal bsico que a educao actualmente deve

    conservar e promover a universalidade

    democrtica. ().

    Comecemos pela universalidade.

    Significa pr a aco humana lingustica,

    racional, artstica acima dos seus modismos,

    valoriz-la no seu conjunto, antes de comear a

    ressaltar as suas peculiaridades locais e

    sobretudo no excluir ningum priori do

    processo educativo que a potencia e desenvolve.

    Durante sculos, o ensino serviu para

    discriminar uns grupos humanos face a outros,

    os homens face s mulheres, os poderosos face

    aos indigentes, os citadinos face aos camponeses,

    os clrigos face aos guerreiros, os burgueses face

    aos operrios, os civilizados face aos

    selvagens, os sensatos face aos tontos, as

    castas superiores face e contra as inferiores.

    Universalizar a educao consiste em

    acabar com essas manipulaes discriminatrias,

    ainda que as etapas mais avanadas do ensino

    possam ser selectivas e favoream a

    especializao de cada um de acordo com a sua

    peculiar vocao; a aprendizagem bsica dos

    primeiros anos no deve ser regateada a

    ningum, nem dever dar, antecipadamente

    como certo que algum nasceu para muito,

    para pouco ou para nada. Esta questo da

    origem o principal obstculo que tenta demolir

    a educao universal e universalizadora. Cada

    qual o que demonstra que sabe ser com o seu

    empenhamento e habilidade, no o que seu

    bero esse bero biolgico racial, familiar

    cultural, nacional, de classe social, etc. o

    predestina para ser, segundo a hierarquia de

    oportunidades estabelecida por outros. Neste

    sentido, o esforo educativo sempre rebelio

    contra o destino, sublevao contra o fatum, a

    educao a antifatalidade no a adaptao

    programada ().

    No passado, o peso da origem baseava-se

    sobretudo na linhagem socioeconmica de cada

    um (e, certamente, na separao dos sexos, que

    a discriminao bsica em quase todas as

    culturas). Hoje continuam vigentes ambos os

    critrios antiuniversalistas em demasiados

    lugares do nosso mundo. Donde, um Estado sem

    preocupao social no corrige os efeitos das

    escandalosas diferenas de fortuna: uns nascem

    para ser educados e os outros devem contentar-

    se com uma domesticao sucinta que os

    capacite para as tarefas ancestrais que os

    superiores nunca concordariam em realizar.

    Deste modo o ensino converte-se numa

    perpetuao da fatal hierarquia socioeconmica

    em lugar de oferecer possibilidades de

    mobilidade social e de um equilbrio mais justo

    (). Mas, nas sociedades democrticas mais

    desenvolvidas socialmente, a educao bsica

    costuma estar garantida para todos e, em

    conformidade, as mulheres tm o mesmo direito

    que os homens ao estudo (obtendo,

    normalmente, melhores resultados que estes).

    Ento, a excluso pela origem tenta

    afirma-se de uma maneira diferente e

    supostamente mais cientfica. Trata-se das

    disposies genticas, a herana biolgica

    recebida por cada um, que condiciona os bons

    resultados escolares de uns, enquanto condena

    outros ao fracasso. Se existem pessoas ou grupos

    tnicos geneticamente condenados ineficincia

    escolar porqu dar-se ao incmodo de os

    escolarizar? Um teste de inteligncia aplicado

    atempadamente pouparia ao Estado muitos

    custos que poderiam ser utilizado mais

    frutiferamente noutras tarefas de interesse

    pblico (novos avies de combate, por exemplo).

    No por acaso que as deficincias do sistema

    educativo dos Estados Unidos o tornam

  • _______________________________________________________________ Documentos anexos. O valor de educar 13

    particularmente suspeito de dissipao e onde

    esto a surgir estudos vagamente neodarwinistas

    nesta linha. O que, recentemente, despertou mais

    escndalo foi provavelmente The Bell Curve, de

    Murray e Herrstein, cujas anlises estatsticas,

    baseadas em testes de inteligncia, pretendem

    demonstrar que o abismo gentico entre a elite

    cognitiva que dirige a sociedade americana e os

    estratos inferiores compostos por marginais e

    inadaptados aumenta cada vez mais. Em

    particular, consideram cientificamente

    provado que a mdia intelectual dos negros

    inferior de outras raas, pelo que as polticas de

    discriminao positiva que os auxiliam (por

    exemplo, facilitando o seu acesso

    universidade) so um dispndio intil de

    recursos pblicos. Diversas variaes sobre estes

    temas insinuam-se, cada vez mais e com maior

    frequncia (). Assim, nalguns locais, os

    geneticamente incapazes so os negros, noutros

    os ndios, os ciganos ou os esquims e, em quase

    todos, os filhos dos pobres.

    difcil imaginar uma doutrina mais

    desumana e repelente que esta. Para comear,

    no existe nenhum mecanismo fivel para medir

    inteligncia humana que, na realidade, no

    uma disposio nica mas sim um conjunto de

    capacidades relacionadas cuja complexidade no

    pode estabelecer-se como a estatura ou a cor dos

    olhos ().

    a educao, precisamente, a responsvel

    por potenciar as disposies prprias de cada

    um, aproveitando a seu favor e tambm a favor

    da sociedade, a diversidade dos dons herdados

    () inclusive, nos casos de alguma menos-valia

    psquica no deixam de existir mtodos

    pedaggicos especiais, capazes de compens-la

    ao mximo, permitindo um desenvolvimento

    formativo que no condene o que dela sofre ao

    ostracismo e esterilidade irreversvel.

    Mas, no fim de contas, na imensa maioria

    dos casos a circunstncia social a herana mais

    determinante que os nossos pais nos legam. E

    essa circunstncia comea pelos prprios pais,

    cuja presena ou ausncia, a sua preocupao ou

    despreocupao, o seu baixo ou alto nvel

    cultural e o seu melhor ou pior exemplo formam

    um legado educativamente falando muito mais

    relevante que os prprios genes. Portanto, a

    pretenso universalizadora da educao

    democrtica est na tentativa de auxiliar cada

    pessoa nas deficincias do meio familiar e social

    em que nasce, obrigatoriamente, por fora do

    acaso e no por referend-las como pretexto de

    excluso.

    Outra via universalizadora da educao

    consiste em ajudar cada pessoa a voltar s suas

    razes. um propsito muito publicitado na

    actualidade mas notoriamente mal-entendido ou

    empreendido no sentido inverso do que seria

    lgico. Sem dvida, falar de razes neste caso

    pura linguagem figurada porque os homens no

    tm razes que os cravem terra e que os

    alimentem com a substncia fermentada dos

    mortos, mas sim ps para andar, para viajar ou

    fugir, para procurar o alimento fsico ou

    intelectual onde melhor lhes conviver.

    Admitamos contudo, a metfora que tanto

    agrada aos nacionalistas (recuperemos as

    nossas razes), aos entusiastas da etnicidade

    (conservemos a pureza de nossas razes), aos

    integristas religiosos (a raiz da nossa cultura

    crist ou muulmana ou judaica) e aos

    integristas polticos (a raiz da democracia est

    na liberdade de mercado), etc.

    Na maioria destes casos, o apelo s razes

    significa que devem mondar do nosso jardim

    nativo quantas ervas nocivas e adventcias

    turvem a enraizada harmonia do que

    supostamente foi planeado em primeiro lugar e

    tambm que cada qual, dentro de si mesmo,

    deve procurar aquela raiz prpria e

    intransfervel que o identifica e que o torna

    semelhante aos irmos do mesmo torro natal.

    Segundo esta viso, a educao consistiria em

    dedicar-se a reforar as nossas razes, fazendo-

    nos mais nacionais, mais tnicos, mais

    ideologicamente puros mais idnticos a ns

  • 14 Cadernos de Pedagogia _________________________________________________________________________

    mesmos e portanto inconfundivelmente

    heterogneos relativamente aos outros. A nica

    universalidade que esta argumentao admite

    a universalidade das razes isto , que todos e

    cada um de ns temos as nossas, universalmente

    responsveis por nos ligar ao que prprio de

    ns mesmos e evitar que nos enredemos

    confusamente em frondosidades alheias.

    Mas esta utilizao metafrica das razes

    pode ser invertida e isso precisamente o que

    deve ser realizado pela educao universalista.

    Porque se, nos deixarmos levar pela intuio e

    no tanto pela erudio botnica, aquilo em que

    mais se parecem todas as plantas, entre si,

    precisamente nas suas razes, enquanto diferem,

    a olhos vistos, pela estrutura dos seus ramos,

    tipo de folhagem, flores e frutos. Com os homens

    passa-se algo muito semelhante, as nossas razes

    mais prprias que nos distinguem dos outros

    animais so o uso da linguagem e dos smbolos a

    disposio racional, a recordao do passado e a

    previso do futuro, a conscincia da morte, o

    sentido do humor etc... em resumo, aquilo que

    nos torna semelhantes e que nunca falta onde h

    homens O que nenhum grupo, cultura ou

    indivduo pode reclamar como nica e

    exclusivamente prprio, temo-lo em comum.

    Pelo contrrio tudo o resto as variadssimas

    frmulas e praxes culturais, os mitos e lendas os

    interesses cientficos ou artsticos, as conquistas

    polticas a diversidade das lnguas, das crenas e

    das leis. etc. so a folhagem variegada e a

    colorida multiplicidade de flores e frutos. o

    universalista que vai at s razes profundas que

    nos tornam comummente humanos, enquanto os

    diversos nacionalistas, etnicistas e particulares

    vo sempre de ramo em ramo, fazendo

    macaquices e buscando restries.

    Vamos levar a metfora at ao fim, antes

    de a pr de lado, como deve ser feito com todas

    as imagens literrias para que no se convertam

    em estorvo do pensamento. Sem razes as

    plantas morrem irremediavelmente, sem

    folhagem, flores e frutos a paisagem seria de

    uma intolervel e estril monotonia. A

    diversidade cultural o modo prprio de a

    comum raiz humana expressar a sua riqueza e

    generosidade. Cultivemos a floresta, gozemos as

    suas fragrncias e os seus mltiplos sabores, mas

    no olvidemos a semelhana essencial que une

    atravs da raiz o sentido comum de tanta

    pluralidade de formas e matizes.

    Isto dever ser sempre recordado, nos

    momentos mais cruciais, quando a convivncia

    entre grupos culturalmente distintos se torne

    impossvel e a hostilidade no possa ser

    resolvida com recurso s regras internas de

    qualquer dos ramos em conflito (). A nossa

    humanidade comum necessria para

    caracterizar o que verdadeiramente nico e

    irrepetvel da nossa condio, enquanto a nossa

    diversidade cultural acidental.

    Nenhuma cultura insolvel para as

    outras, nenhuma brota de uma essencial to

    idiossincrtica que no possa ou no deva

    misturar-se com outras, sofrer o contgio de

    outras. Esse contgio de umas culturas por

    outras precisamente o que pode chamar-se

    civilizao. E a civilizao e no meramente a

    cultura, que a educao deve aspirar a

    transmitir (). Aquilo a que nos referimos ao

    falar de civilizao e tambm de universalidade

    a essa potencialidade, que cada cultura possui,

    de transmutar-se nas outras todas, de no ser

    uma verdadeira cultura sem transfuses

    culturais das outras e sem tradues ou

    adaptaes culturais das outras. No se trata de

    homogeneizar universalmente (um dos pnicos

    retricos mais reiterados do nosso sculo, a

    americanizao mundial, etc.), mas sim de

    romper com a mitologia autista das culturas que

    exigem ser preservadas, idnticas a si mesmas,

    como se todas no estivessem a transformar-se

    continuamente, durante sculos, por influxo

    civilizador das outras.

    Etnocentrismo? S-lo-ia, se s considers-

    semos a universalidade como uma caracterstica

    factual da cultura ocidental, em vez de t-la

  • _______________________________________________________________ Documentos anexos. O valor de educar 15

    como um ideal valioso, promovido mas tambm

    espezinhado inmeras vezes pelo ocidente

    (signifique o que significar este confuso termo).

    No. A universalidade no patrimnio

    exclusivo de nenhuma cultura o que seria

    contraditrio mas sim uma tendncia que

    existe em todas mas que tambm em toda a parte

    obrigada a confrontar-se com o provincianismo

    cultural do idiossincrtico insolvel, igualmente

    presente nas latitudes aparentemente mais

    opostas. A tarefa educativa mais apropriada

    para o nosso mundo hipercomunicacional

    consiste precisamente em potenciar essa

    tendncia comum e ameaada para a variedade,

    mas no para o tribalismo ().

    Porventura, o af histrico de ser

    inconfundvel e impenetrvel para os outros seja

    apenas uma reaco face evidncia, cada vez

    mais bvia, de que os homens se parecem

    demasiado, evidncia que antes s era sentida

    por alguns espritos mais avisados e que hoje

    colocada ao alcance de todos atravs dos meios

    de comunicao social. Perderam-se assim

    muitos matizes? Espreita-nos a homogeneidade

    universal? No o creio (). A diversidade est

    assegurada, ainda que, provavelmente, seja, cada

    vez mais, desconcertantemente diversa e se v

    parecendo, cada vez menos, com as diversidades

    purificadas com que estamos familiarizados.

    Para esse processo inovador bom que a

    educao prepare tambm as geraes que vo

    viv-lo.

    Mas no nos enganemos, o sentido

    sociolgico da nossa actualidade no aponta

    para o inevitvel triunfo uniformizador do

    universalismo. Muito pelo contrrio, so

    angustiantes as demonstraes, aqui e ali, do

    xito crescente das atitudes antiuniversalistas,

    que alis costumam proclamar-se vtimas da

    suposta omnipotncia universalizante. O que

    realmente est hoje em perigosa alta , de novo,

    o recurso s origens como condicionamento

    inexorvel da forma de pensar, isto , dividir o

    mundo em duetos estanques de ndole

    intelectual. Quer dizer, s os nacionais de uma

    nao podem compreender as outras pessoas

    dessa mesma nao, que s os negros podem

    entender os negros, os amarelos os amarelos e os

    brancos os brancos, que s os cristos

    compreendem os cristos e os muulmanos os

    muulmanos, que s as mulheres entendem as

    mulheres, os homossexuais os homossexuais e os

    heterossexuais os heterossexuais. Cada tribo

    deve permanecer fechada em si mesma, idntica

    de acordo com a sua identidade, estabelecida

    pelos patriarcas ou caciques do grupo,

    ensimesmada na sua pureza de pacotilha.

    E que, portanto, deve haver uma educa-

    o diferente para cada um destes grupos que

    os respeite, isto , que confirme os seus

    preconceitos e no lhes permita abrir-se e ser

    contagiado pelos outros. Em resumo, as nossas

    circunstncias condicionam o nosso juzo, de tal

    modo que nunca um juzo intelectualmente

    livre, se verdade, como Nietzsche acreditava,

    que o homem livre aquele que pensa de modo

    diferente daquele que seria possvel esperar-se

    tendo em vista a sua origem, o seu meio, o seu

    estado e a sua funo ou as opinies vigentes no

    seu tempo.

    Todos aqueles que pensam desta maneira

    so considerados pelos colectivizadores do

    pensamento idntico no como livres mas sim

    como traidores ao seu grupo de pertena. Pois

    bem, aqui temos outra tarefa para a educao

    universalizadora, ensinar a atraioar,

    racionalmente, em nome da nossa nica

    verdadeira pertena essencial a humana ,

    tudo o que de exclusivo, fechado e manaco

    exista nas nossas filiaes acidentais, por muito

    acolhedoras que estas possam ser para os

    espritos comodistas que no querem mudar de

    rotinas ou procurar conflitos.

    compreensvel o temor face a um ensino

    sobrecarregado de contedos ideolgicos, face a

    uma escola mais preocupada em suscitar

    fervores e adeses inquebrantveis do que em

    favorecer o pensamento crtico autnomo. A

  • 16 Cadernos de Pedagogia _________________________________________________________________________

    formao em valores cvicos pode converter-se,

    muito facilmente, em doutrinamento para uma

    docilidade bem pensante, que levaria ao

    marasmo se chegasse a triunfar; a explicao

    necessria dos nossos principais valores polticos

    pode, tambm facilmente, resvalar para a

    propaganda, reforada pelas manias castradoras

    do politicamente correcto ().

    Daqui que alguma neutralidade escolar

    seja justificadamente desejvel, face s opes

    eleitorais concretas, oferecidas pelos partidos

    polticos, face s diversas confisses religiosas,

    face a propostas estticas ou existenciais que

    surjam na sociedade. Ter de ser uma

    neutralidade relativa, sem dvida, porque no

    pode recusar a considerao crtica dos temas do

    momento (que os prprios alunos,

    frequentemente, iro solicitar e que o mestre

    competente ter de fazer, sem pretender situar-

    se fora, mas declarando a sua tomada de

    posio, enquanto fomenta a exposio razovel

    das outras) ainda que deva evitar converter a

    sala de aulas numa fastidiosa e logomaquia

    sucursal do Parlamento. importante que na

    escola se ensine a discutir mas imprescindvel

    deixar bem claro que a escola no um foro de

    debates nem um plpito.

    No obstante, essa mesma neutralidade

    crtica corresponde, por sua vez, a uma

    determinada forma poltica, perante a qual no

    possvel ser neutral no ensino democrtico:

    refiro-me prpria democracia. Seria suicida

    que a escola renunciasse a formar cidados

    democratas, inconformistas mas em

    conformidade com o que o modelo democrtico

    estabelece, inquietos pelo seu destino pessoal

    mas no desconhecendo as exigncias

    harmonizadoras do pblico. Na desejvel

    complexidade ideolgica e tnica da sociedade

    moderna () fica a escola como o nico mbito

    geral que pode fomentar o apreo racional por

    aqueles valores que permitem a convivncia

    conjunta aos que so satisfatoriamente diversos.

    E essa oportunidade de inculcar o respeito pelo

    nosso mnimo denominador comum no deve,

    de modo algum, ser desperdiada.

    No pode nem deve haver neutralidade,

    por exemplo, no que corresponde recusa da

    tortura, do racismo, do terrorismo, da pena de

    morte, da prevaricao dos juzes ou da

    impunidade da corrupo em cargos pblicos,

    nem to-pouco na defesa das proteces sociais

    da sade ou da educao, da velhice ou da

    infncia, nem no ideal de uma sociedade que

    corrija o mais possvel o abismo entre opulncia

    e misria. Por qu? Porque no se trata de

    simples opes partidrias mas sim de benefcios

    da civilizao humanizadora que j no possvel

    renunciar sem se incorrer em concesso

    barbrie.

    O prprio sistema democrtico no algo

    natural e espontneo nos seres humanos, mas

    sim algo conquistado, atravs de muitos esforos

    revolucionrios no campo intelectual e poltico:

    portanto, no pode ser dado como certo, mas

    deve ser ensinado com a maior persuaso

    didctica compatvel com o esprito de

    autonomia crtica. A socializao poltica

    demteinerocrtica um esforo complicado e

    resvaladio, mas irrenuncivel ().

    A recomendao racional de tais valores

    no deve ser uma mera litania edificante que, no

    melhor dos casos, acabar por aborrec-los. Ser

    prefervel mostrar como conseguiram ser

    historicamente imprescindveis, e o que ocorre

    onde, por exemplo, no h eleies livres,

    tolerncia religiosa ou os juzes so venais. Seria

    absurdo mostrar s crianas as falhas do mundo

    em que vivemos () [sem lhes inspirar] uma

    prudente confiana nos mecanismos previstos

    para emend-las.