o valor de educar
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O valor de educar 1
Fernando Savater
1. Para uma Humanidade sem humanidades?
No campo da educao, um fantasma o
hipottico desaparecimento das humanidades
dos planos de estudo, substitudas por
especialidades tcnicas que mutilaro as
geraes futuras da viso histrica, literria e
filosfica, imprescindvel para o cabal
desenvolvimento da plena humanidade ().
A questo merece ser considerada com
alguma deteno, porque a prpria reflexo
sobre o ensino que queremos ou que recusamos
nos obriga tambm a meditar sobre a qualidade
da prpria cultura em que hoje nos inserimos.
Em certo sentido, o temor parece bem justificado.
Os planos de ensino em geral tendem a reforar
os conhecimentos cientficos ou tcnicos que,
supostamente, tero uma utilidade prtica
imediata, isto , uma aplicao laboral directa.
A inovao permanente, aquilo que uma
descoberta recente ou tudo quanto abre
passagem para a tecnologia do futuro gozam do
maior prestgio, enquanto a rememorao do
passado ou as grandes teorias especulativas
1 Savater, F. (1997). O valor de Educar Lisboa. Edies Presena. (A obra foi republicada pelas Edies Dom Quixote em 2006)
soam a pura perda de tempo. H algum
cepticismo sobre tudo o que se apresenta
aspirando a uma concepo global do mundo.
Essas pretenses totalizantes j, muitas
vezes, derivaram para o totalitarismo e em
qualquer caso esto sempre sujeitas a
controvrsias interminveis que o af
politicamente correcto do dia-a-dia prefere
deixar abertas para que cada qual escolha a seu
gosto.
Em sociedades multitnicas e cada vez
sero mais resultam perigosas ou pelo menos
delicadas as excurses at s origens. Quanto aos
fins, sejam estes polticos ou estticos, to-pouco
parecem fceis de executar. mais seguro
deter-se sobre os meios, zona temperada da
instruo, e no slido territrio do pragmatismo,
em que a grande maioria costuma coincidir.
Alm disso, nalguns pases como a Espanha,
onde um clero propenso ao dogmatismo
monopolizou at h pouco tempo a oferta
pedaggica, a pletora de letrados versados em
logomaquias contrasta tristemente com a
escassez de investigadores cientficos capazes,
parece lgico que as autoridades educativas, que
se consideram progressistas, decidam que
chegou o momento de inverter esta proporo
().
Mas, o que so as humanidades?
Suponho que ningum sustente a srio que
estudar matemticas ou fsica sejam tarefas
menos humanistas, no digamos menos
humanas, que dedicar-se ao grego ou
filosofia. Nicolau de Siracusa, Descartes, Voltaire
ou Goethe teriam ficado pasmados ao ouvir hoje
tamanho disparate na boca de um literato
pedante, daqueles que repetem vacuidades sobre
a tcnica desumanizadora (). A separao
entre cultura cientfica e cultura literria um
fenmeno que s se inicia nos finais do sculo
passado, para de imediato se consolidar no
nosso, dada a impossibilidade de abarcar saberes
cada vez mais tcnicos e complexos, que
desafiam as capacidades de qualquer indivduo,
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2 Cadernos de Pedagogia _________________________________________________________________________
impondo a especializao, que no mais do que
uma forma de renncia. A seguir assiste-se
necessidade de encontrar a virtude, clamando os
literatos contra a quadrcula desumana da
cincia, enquanto os cientistas zombam da
ineficcia palavrosa dos seus adversrios. O
certo que esta hemiplegia cultural uma
novidade contempornea, no uma constante
necessria e que encontraria poucos adeptos
se acaso encontrasse algum entre as figuras
mais ilustres da nossa tradio intelectual.
Diz-se que as faculdades que o
humanismo pretende desenvolver so a
capacidade crtica de anlise, a curiosidade que
no respeita dogmas nem ministrios, o sentido
de raciocnio lgico, a sensibilidade para apreciar
as mais altas realizaes do esprito humano, a
viso de conjunto, face ao panorama do saber,
etc. Francamente, no conheo nenhum
argumento srio para provar que o estudo do
latim e do grego favoream mais estas desejveis
qualidades que o estudo da matemtica ou da
qumica. Apresento estes exemplos, para poder
falar com total imparcialidade, porque sempre
fui igualmente incompetente no estudo dessas
quatro disciplinas. Sem duvidar do interesse
intrnseco de nenhum desses saberes, como
estabelecer que mais humanamente
enriquecedora a filologia das palavras que a
cincia experimental das coisas?
Considero de grande valia estar prevenido
de que as doenas venreas, por exemplo,
nada tm que ver etimologicamente com as
veias, assim como conhecer a lenda mitolgica
da amvel deusa a que devem o seu nome, mas
to-pouco me parece ser de desdenhar informar-
me sobre a desordem fisiolgica que tais doenas
provocam, assim como a composio activa das
substncias capazes de remedi-las. Duvido que
do ponto de vista do interesse estritamente
cultural (a fora espiritualmente emancipadora)
a primeira aprendizagem seja superior
segunda e, de imediato indignar-me-ia ver
menosprezar esta sua condio mais prtica
ou tcnica.
Quanto filosofia, cujo contedo me
mais familiar, desconfio tambm de que tenha
per se virtudes especiais para configurar perso-
nalidades crticas ou insubmissas face aos
poderes deste Mundo. Quando oio os
estudantes ou os professores da minha
corporao denunciar como atentados
governamentais contra o pensamento livre
qualquer reduo do horrio das disciplinas
filosficas no bacharelato, no posso deixar de
sentir uma certa incomodidade (). Na verdade,
algumas das pessoas mais conformistas,
supersticiosas e desprezveis que conheo so
catedrticos de filosofia. Se eu tivesse que
julg-la por tais representantes, restar-me-ia uma
nica soluo: solicitar a abolio do seu estudo
no bacharelato e at na Universidade.
A questo das humanidades no se baseia
primordialmente, quanto a mim, no ttulo das
matrias que vo ser ensinadas, nem no seu
carcter cientfico ou literrio. Todas so teis,
muitas so oportunas e h-as imprescindveis
sobretudo na opinio dos professores cujo futuro
laboral depende delas. Todos os anos se
incorporam novas disciplinas na oferta
acadmica, que cresce e se diversifica at
exausto, pelo menos nos planos ministeriais.
obrigatrio incluir msica, pintura, escultura,
cinema, teatro, informtica, segurana
rodoviria, noes de primeiros socorros,
rudimentos de economia poltica, expresso
corporal, dana, redaco e crtica jornalstica,
etc. (). possvel argumentar a favor de todas
estas aprendizagens e de muitas outras, que
podem completar excelentemente a formao
dos alunos. Tanta oferta educativa tropea
apenas em dois obstculos fundamentais: por
um lado os limites da capacidade assimiladora
dos alunos e o nmero de horas lectivas dirias
que conseguem suportar sem sofrer transtornos
mentais srios, por outro lado, a disponibilidade
docente dos professores, a maioria deles
formados numa poca em que nem sequer
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_______________________________________________________________ Documentos anexos. O valor de educar 3
existiam as matrias em que, anos mais tarde, se
viro a converter em mestres ().
Franois Closet () caracterizou este
problema muito bem: Pouco importa afinal o
que se ensine, desde que se despertem a
curiosidade e o gosto de aprender () o
importante no o que se aprende, mas sim o
modo como se aprende ().
Goethe, absolutamente insuspeito de anti-
humanista, confessa que a forma memorstica de
ensinar o grego converteu essa aprendizagem na
mais estril e aborrecida da sua formao. O
mesmo ocorre tambm com as matemticas
talvez a disciplina bsica que mais
experincias pedaggicas desastrosas
suportou nos ltimos lustres que na mos de
lgubres mestres conseguem tornar-se,
frequentemente, de uma aridez repelente para
muitos, enquanto nas mos de Lewis Carrol ou
de Martin Gardner estimulam a imaginao e o
humor.
E que dizer da filosofia, cujos manuais de
bacharelato oferecem sries de nomes agrupados
em equipas opostas (esticos contra epicuristas,
idealistas contra materialistas, etc.) que parecem,
muitas vezes, a lista telefnica dos grandes
filsofos, com a diferena de que no figura
nenhum nmero para onde lhes falar, para
resgatar os jovens do fastio e da confuso?
Para no mencionar o deleite acadmico
com uma gria, o mais obscura e artificiosa
possvel, porventura prpria para iniciados, mas
de maneira nenhuma para os que tentam
iniciar-se. Tive conhecimento de um livro
introdutrio, to simptico que j no segundo
tema enchia as pginas de frmulas algbricas
triunfalmente impostas, primeira vista, para
desanimar os indolentes. Nada de concesses
demaggicas curiosidade adolescente cujas
perguntas, na sua maioria, so espontaneamente
metafsicas. Mais vale que fujam se no esto
dispostos a submeter-se ao ascetismo do
enigmtico ou do rduo Examinando esses
guisados insuportveis vem-nos memria a
resplandecente lio de Montaigne, exposta,
precisamente, no ensaio dedicado instruo
das crianas: Constitui um erro enorme pintar a
filosofia como algo de inacessvel s crianas,
dotada com um rosto taciturno, exigente e
terrvel. Quem a mascara com esse falso rosto,
plido e repulsivo? No h nada mais alegre,
festivo, regozijante e, atrevo-me mesmo a dizer,
mais travesso. No predica mais que festa e bons
momentos. Uma cara triste e crispada demonstra
que no tem cabimento a.
Aqueles que tentam romper a mscara
triste e seduzir, em vez de intimidar, sofrem o
menosprezo dos colegas, ainda que a ampla
aceitao popular de humildes esforos
divulgadores como O Mundo de Sofia de Jostein
Gaarder ou a minha tica para um jovem provem
que h formas de abordar os temas filosficos
que despertam cumplicidade e no enfado nos
nefitos, nico meio de os estimular para que
depois prossigam, por si mesmos, o estudo
comeado. Os sisudos professores de latim
consideram trivial tudo quanto dito com
simplicidade () trivialidade o que fica na
cabea de um imbecil quando ouve algo dito
com simplicidade.
Porque que as matrias docentes, sejam
elas quais forem, so amiudadas vezes ensinadas
de um modo para falar de maneira suave
ineficaz, que angustia sem ilustrar e que expulsa
do conhecimento em vez de atrair para ele?
Deixemos de lado a incompetncia
eventual de um ou outro professor ou a no
menos episdica dificuldade de entendimento de
alguns alunos, afastemos ou pnhamos entre
parntesis as ms influncias sociais que tanto se
injuriam, como so a seduo hipntica da
televiso que afasta dos livros, a pressa em obter
resultados rentveis a curto prazo que impede a
necessria paz escolar, os grandes exames de
estado, tipo selectividade, cujo carcter crucial
destri fatalmente toda a aprendizagem ().
Sem rejeitar o apoio de todas as outras, eu creio
que a principal causa da ineficcia docente a
pedantaria pedaggica.
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4 Cadernos de Pedagogia _________________________________________________________________________
No se trata de um transtorno psicolgico
de uns tantos, mas sim da doena laboral da
maioria. Finalmente, a palavra pedante uma
palavra italiana que quer dizer mestre, em
princpio, sem nenhuma conotao pejorativa, tal
como a define Covarrubias no seu Tesoro de la
lengua ou tal como Montaigne a utiliza no ensaio
Du pdantisme. De modo que a pedantaria Oh!
um vcio que nasce da vocao de ensinar, que a
acompanha como uma tentao ou um eco
maligno e que em casos mais graves pode acabar
por esteriliz-la por completo.
Tentarei esboar os sinais da pedantaria,
porventura, incorrendo, ocasionalmente, nela
(todos ns professores somos pedantes pelo
menos em alguns momentos) ()
A pedantaria exalta o conhecimento
prprio acima da necessidade docente de
comunic-lo, prefere os ademanes intimidatrios
da sabedoria humildade paciente e gradual
que a transmite, centra-se de uma maneira
exigente nas formalidades acadmicas que, no
melhor dos casos, so apenas rotinas teis para
quem j sabe enquanto menospreza a
estimulao cordial das tentativas, por vezes
desordenadas, do nefito. pedantaria
confundir, deslumbrar ou inspirar reverente
docilidade com a funo de ilustrar, de informar
ou, inclusive, de animar a aprendizagem. O
pedante no abre os olhos a quase ningum, mas
deslumbra uns tantos. Tudo isso, porque no,
com boa inteno e sempre com
autocomplacente suficincia.
Franois de Closet aponta para uma das
possveis genealogias da pedantaria e assinala
tambm o erro mais frequente que provoca
enquanto mtodo pedaggico. Uma origem
comum do pedantismo que grande parte dos
professores foram alunos excelentes na disciplina
que agora esto a ensinar. Por isso no
compreendem que haja estudantes que no
partilhem espontaneamente o amor que eles
sentem como uma obrigao intelectual evidente
por si mesma, consideram que todas as pessoas
deveriam prestar sua disciplina a mesma
primazia que eles prprios lhe conferem e os
apticos acabam por lhes aparecer como
adversrios pessoais.
O professor que quer ensinar uma
disciplina tem de comear por suscitar o desejo
de a aprender. Como os pedantes consideram tal
desejo obrigatrio, s conseguem ensinar algo
queles que efectivamente sentem de antemo
esse interesse, que nunca to comum como
costumam acreditar. Para despertar a
curiosidade dos alunos devemos estimul-los
com algum alimento bem suculento, talvez
anedtico ou aparentemente trivial, devemos ser
capazes de nos colocar no lugar dos que esto
apaixonados por tudo, menos pela matria cujo
estudo vo iniciar.
E isto leva-nos ao equvoco metodolgico
da pedantaria que comea a explicar a cincia
pelos seus fundamentos tericos, em vez de
esboar primeiro as inquietaes e tentativas que
levaram a estabelec-los.
Cada cincia tem a sua prpria lgica
epistemolgica que favorece o avano da
investigao nesse campo, mas essa lgica quase
nunca coincide e, em muitos casos, difere
radicalmente da lgica pedaggica que deve ser
seguida para iniciar os nefitos na sua
aprendizagem. No se pode comear pelo estado
actual da questo, tal como parece estar hoje
estabelecido pelos sbios especialistas, sem
indicar os sucessos e as necessidades prticas
que levaram pouco a pouco aos argumentos
tericos actuais.
s vezes pedagogicamente mais
aceitvel ensinar uma matria a partir de teorias
que j no esto totalmente em vigor para as
autoridades de vanguarda mas que so mais
compreensveis ou mais estimulantes para
aqueles que comeam. O primordial abrir o
apetite cognoscitivo do aluno, no angusti-lo,
nem impression-lo. Se a sua vocao o chamar
para a, logo ter tempo de aprofundar essa
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_______________________________________________________________ Documentos anexos. O valor de educar 5
aprendizagem, inteirar-se das descobertas mais
recentes e at descobrir por si mesmo.
Adoptar desde o comeo os ares
enfadados do tecnicismo (talvez vitais para o
especialista, mas que tm muito pouco que ver
com a vitalidade de quem o no ) no s no o
convencer da importncia do estudo que lhe
proposto mas dissuadi-lo- dele, persuadindo-o
de que algo alheio aos seus interesses ou
prazeres.
O pedante dirige-se aos seus alunos
como se estivesse apresentando uma
comunicao perante um congresso em que
estivessem presentes os seus mais distintos e
exigentes colegas, todos eles dedicados h longos
anos disciplina dos seus desvelos. Mas, como a
maioria dos jovens no demonstra o devido
entusiasmo nem a compreenso requerida,
desespera e amaldioa-os. Conheci professores
de bacharelato indignados com a ignorncia dos
seus alunos, como se a obrigao de os tirar
dessa ignorncia no fosse sua. No fundo, o
problema do pedante que no quer ensinar os
nefitos, mas sim ser admirado pelos sbios e
provar a si mesmo que vale tanto ou mais do que
eles.
A humildade do mestre, pelo contrrio,
consiste em renunciar a demonstrar que est
acima dos outros e em esforar-se por ajudar a
subir os outros. O seu dever estimular para que
todos faam descobertas, no pavonear-se pelas
que ele prprio realizou.
Mas ser que uma criana pode fazer
descobertas? Naturalmente que sim, quanto
menos se sabe, mais se pode descobrir, se
algum lhe ensinar com arte e pacincia. No
sero provavelmente descobertas a partir da
perspectiva prpria da cincia, mas sim do ponto
de vista de quem se est iniciando nela. Mas so
essas descobertas pessoais de coisas que j toda
a gente sabe como comentam sarcasticamente
os maus professores, que levam os adolescentes
a procurar, a inquirir e a prosseguir o seu estudo.
O professor de bacharelato no deve
esquecer nunca que a sua obrigao consiste em
mostrar, para cada disciplina, um panorama
geral e um mtodo de trabalho a pessoas que, na
sua maioria, no voltaro a interessar-se
profissionalmente por esses temas. No deve
limitar-se apenas a informar sobre os factos e
teorias essenciais, mas deve tambm tentar
apontar os caminhos metodolgicos como se
chegou a eles e como podem ser prolongados
frutuosamente (). Ambas as tarefas so
imprescindveis, porque no pode haver
criadores sem notcias do fundamental que os
precede todo o conhecimento transmisso
de uma tradio intelectual nem serve para
nada memorizar frmulas ou nomes se se
carecer de guia para indagao pessoal.
A pedagogia contempornea justificando
a sua recusa de um ensino decrpito constitudo
por litanias memorsticas, tende, em excesso, a
minimizar a importncia do treino da memria,
chegando at a sataniz-la como um resduo
obsoleto de pocas educativamente obscuras.
Todavia, no existe inteligncia sem
memria; no se pode desenvolver a primeira
sem treinar e alimentar tambm a segunda. O
exerccio de recordar ajuda a entender melhor,
ainda que no possa substituir a compreenso
quando esta est completamente ausente ().
Mas sobretudo o professor tem de
fomentar as paixes intelectuais, porque so o
contrrio da apatia esterilizadora que se refugia
na rotina e que o mais oposto que existe
cultura. E essas paixes brotam de baixo, no
caem do cu dos que crem j saber tudo. Por
isso, no se deve desdenhar a linguagem
acessvel, nem as referncias ao popular, nem o
humor, sem o qual a inteligncia mais no do
que um guisado de imbecilidades elevadas.
No campo das letras isto particularmente
importante (ou talvez me parea a mim, porque
no estou familiarizado de igual modo com os
estudos cientficos). No se pode passar do nada
para o sublime sem paragens intermdias, no se
deve exigir que quem nunca leu comece por
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6 Cadernos de Pedagogia _________________________________________________________________________
Shakespeare, que Habermas sirva de introduo
filosofia e que os que nunca puseram um p
num museu se entusiasmem imediatamente por
Mondrian (). Antes de aprender a ter prazer
com as melhores conquistas intelectuais, h que
aprender a ter prazer intelectualmente ().
Os predicadores que consideram
inevitvel a nossa desumanizao por culpa
dos computadores, dos vdeos, da Internet e
outras invenes do diabo () o mais certo que
nenhum desses instrumentos tenha qualquer
razo para perturbar de uma maneira ou de
outra a nossa humanidade, nem sequer o nosso
humanismo. So ferramentas, no demnios,
surgem do af de melhorar o nosso
conhecimento do remoto e do mltiplo, no com
o propsito de vigiar, torturar ou exterminar o
prximo e se, finalmente, so utilizados para
essas aces reprovveis, a culpa no
certamente das mquinas.
No sculo XIX, doutores serissimos
diagnosticaram que ver passar vacas e rvores a
partir de um comboio louca velocidade de
vinte quilmetros hora ou menos poderia
causar transtornos psquicos irreversveis aos
viajantes. J outros haviam feito no menos
lgubres profecias a respeito da imprensa, para
no mencionar os receios arrepiantes que
rodearam a divulgao do telefone.
Regra geral, esses instrumentos no
desumanizam ningum, desde que sejam postos
ao servio do mais humano. Na Internet, pr
exemplo, o entusiasmo j patente na pornografia
e no "engate" pode tranquilizar os mais
desconfiados (), na sua poca o invento que
Gutenberg queria por ao servio da Bblia e
outras obras piedosas serviu seguidamente para
converter em best-seller o Gargntua de Rabelais
().
Talvez seja conveniente perguntar de
onde vem esse qualificativo de humanidades
que recebem hoje em dia, determinadas
matrias. A denominao de origem
renascentista e no contrape alguns estudos
muito humanos a outros desumanos ou
desumanizados pelo seu rumo tcnico-cientfico
(que no existiam na poca) mas denominava-os
assim para os distinguir dos estudos teolgicos
ou dos comentrios das escrituras.
Os humanistas estudavam humanidades
isto , centravam-se sobre textos cujas origem era
declaradamente humana (inclusive, pago) e no
supostamente divino. E como tais obras estavam
escritas em grego ou latim clssico, essas lnguas
ficaram como paradigma de humanidades, no
s pela sua elegncia literria ou pelas suas
virtudes filolgicas para analisar os idiomas
delas derivados, mas tambm pelos contedos
de cincia e conhecimento no revelados pela f
capazes de serem alcanados atravs da sua
utilizao.
Deste modo, os Elementos de Geometria de
Euclides faziam parte das humanidades, tal
como o Banquete de Plato. Assim, para Erasmo,
por exemplo (), o que conta principalmente
conseguir adquirir uma capacidade de expresso
oral e escrita, fluida, cultivada, rica tanto em
ideias como em palavras (). Mas Rabelais, pelo
contrrio, ressalta a abundncia de
conhecimentos, enquanto Montaigne com a
sua mistura habitual de cepticismo e sentido
prtico observa que o grego e o latim so,
sem dvida, uma boa aquisio, mas que se paga
demasiado cara e chega a confessar que
gostaria mais de saber bem a minha lngua e a
de meus vizinhos com quem tenho
habitualmente mais trato. O modelo de
formao propugnado por Erasmo s convm a
uma elite enriquecida que quer tambm refinar
as suas maneiras e suavizar os seus costumes,
mas dificilmente poderia estender-se a toda a
populao.
Como lembra Durkheim, que na sua
Histria da Educao o trata com pouco carinho,
a maioria necessita antes de tudo viver e o que
necessita para viver no saber falar com arte,
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_______________________________________________________________ Documentos anexos. O valor de educar 7
saber pensar correctamente, de forma a saber
actuar. Para lutar eficazmente contra as coisas e
contra os homens, so necessrias armas slidas
e no esses brilhantes ornamentos com que
pedagogos humanistas esto to ocupados a
enfeitar a mente.
Os estudos humansticos (), parece-me
importante recordar, que nasceram de uma
disposio laica e profana (no sentido que se
ope a sagrado) recuperando e apreciando o
magistrio intelectual de nossos semelhantes
mais ilustres, em lugar de o esperar apenas da
divindade atravs dos seus porta-vozes
oficialmente autorizados. certo que tambm os
ancestrais gregos e romanos acreditavam em
deuses, mas em deuses que no pretendiam
saber escrever: s os homens escreviam, pelo que
os seus textos at os mais teolgicos foram
sempre marcadamente humanos (). O
analfabetismo dos deuses greco-latinos deu
origem a um magnfico caldo de cultura para as
letras humanistas, que romperam assim com a
angstia esterilizadora de escrituras com
dogmtico o copright celestial. Mas, se os antigos
deuses no escreviam nem tinham promulgado
ortodoxia alguma que devesse ser respeitada,
onde iam buscar aqueles filsofos e sbios de
tempos pretritos a sua autoridade intelectual?
Pois, sem dvida, o respeito racional que
inspiravam aqueles que lhes dedicavam as suas
horas de estudo.
Este respeito racional, que respeito pela
razo margem da f e s vezes
sub-repticiamente contra ela, configura o
verdadeiro ponto de partida das humanidades e
do humanismo.
Estou-me a referir aqui a uma batalha
defendida e ganha pelo racionalismo j l vai
tanto tempo que j no tem sentido voltar a ela
nos nossos dias? No estou to seguro, porque
hoje abundam no s a superstio e os contos
milagrosos (nem sempre de cunho religioso) mas
tambm o menosprezo pela razo, convertida
numa simples perspectiva entre outras, sem
direito a um reconhecimento educativo especial
e suspeita de dogmatismo quando reclama esse
reconhecimento.
Aqui sim d-se uma quebra das
humanidades, porque no h humanidades sem
respeito sem preferncia pelo racional, sem
fundamentao racional atravs da controvrsia
do que deve ser respeitado e preferido.
frequente ouvir reprovar este racionalismo por
ter uma f cega na omnipotncia da razo, como
se semelhante credulidade fosse compartilhada
com o uso crtico dessa capacidade ou pudesse
desmentir-se sem recorrer a ela. A razo s
resulta beatificada pelos que a utilizam pouco,
no pelos que a empregam com assiduidade
exigente. No menos comum a recusa do
racional em nome da condenao do
etnocentrismo, censurando-o derrogatoriamente
de razo ocidental, como se os conhecimentos
empricos e as reflexes tericas no as
supersties, que tambm abundam no Ocidente
que acontecem noutras latitudes no
correspondessem a parmetros racionais ()
No h educao se no h verdade a
transmitir, se tudo mais ou menos verdade, se
cada um tem a sua verdade, igualmente
respeitvel, e se no se pode decidir
racionalmente entre tanta diversidade. Nada
pode ser ensinado se nem sequer o professor
acredita na verdade que ensina e no quanto
importante saber verdadeiramente. O
pensamento moderno, com Nietzsche cabea,
sublinhou com razo a parte de construo social
que h nas verdades que assumimos e a sua
vinculao perspectiva ditada pelos diversos
interesses sociais em conflito.
A metodologia cientfica e, inclusive, a
simples prudncia indicam que as verdades no
so absolutas ainda que assim nos paream. So
frgeis, passveis de serem revistas, sujeitas a
controvrsia e por fim perecveis, mas nem por
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8 Cadernos de Pedagogia _________________________________________________________________________
isso deixam de ser verdades, isto , mais slidas,
mais justificadas e mais teis que outras crenas
que se lhes opem. So tambm mais dignas de
serem estudadas, ainda que o mestre que as
explica no deva ocultar a possvel dvida crtica
que as acompanha (qualquer mestre recorda as
verdades que aprendeu e que no o sero mais
para os seus alunos).
A verdade esvoaa por entre as dvidas
como a pomba de Kant voa no ar que lhe oferece
resistncia mas que, ao mesmo tempo, a
sustenta. Falando de voar, Richard Dawkins d o
exemplo da aviao como prova intuitiva de que
nem todas as verdades so aceites como simples
convenes culturais do momento; se no
concedssemos aos seus princpios mais
veracidade que a que costumamos atribuir aos
discursos dos polticos ou s prdicas dos curas,
nenhum de ns subiria jamais a um avio.
A busca racional da verdade, melhor
dizendo, das verdades sempre fragmentrias
(), tropea na prtica pedaggica com dois
grandes obstculos inter-relacionados, a
sacralizao das opinies e a capacidade de
abstraco.
Em vez de serem consideradas propostas
imprecisas, limitadas pela insuficincia de
conhecimentos ou pela acelerao, as opinies
convertem-se em expresso irrebatvel da
personalidade do sujeito (esta a minha
opinio, essa a sua opinio) como se o
relevante delas fosse a quem pertencem, e no o
que as fundamenta. A velha e deselegante frase
que os tipos duros de algumas pelculas
americana, costumam dizer as opinies so
como os cus, cada um tem o seu ganha fora,
porque nem sobre as opinies nem sobre os
traseiros, pelos vistos, possvel existir qualquer
discusso e ningum pode desprender-se de
umas ou do outro, ainda que o queira.
A isso, junta-se uma obrigao beatfica de
respeitar as opinies alheias, que, se na
verdade se pusesse em prtica, paralisaria todo e
qualquer desenvolvimento intelectual ou social
da humanidade.
Para no falar do direito a ter a sua
prpria opinio que no o direito de pensar
por si mesmo e submeter a uma confrontao
racional o pensado, mas sim o de manter a
prpria crena, sem que ningum interfira com
incmodas objeces.
Este subjectivismo irracional convence
mais rapidamente as crianas e os adolescentes,
que se habituam a supor que todas as opinies
isto , no s a do mestre que sabe do que est
a falar como tambm a deles que parte da
ignorncia valem o mesmo e que no dar o
brao a torcer sinal de personalidade autnoma
e que tentar convencer o outro do seu erro, com
argumentos e informao adequada, exemplo
de tirania.
A tendncia para converter as opinies em
parte simblica do nosso organismo e para
considerar tudo quanto as desmente como uma
agresso fsica (feriu as minhas convices)
no constitui uma dificuldade apenas para a
educao humanista como tambm para a
convivncia democrtica. Viver numa sociedade
plural impe assumir que o que
verdadeiramente importante so as pessoas, no
as suas opinies, e que estas devem ser escutadas
e discutidas e que no nos devemos limitar a
v-las passar, sem as tocar, como se fossem vacas
sagradas.
O que o mestre deve fomentar nos seus
alunos a disposio para conseguirem
estabelecer a no irrevogabilidade do que
escolheram para pensar (a voz da sua
espontaneidade, a sua auto-expresso, etc.) e
sim, a capacidade de participar frutuosamente
numa controvrsia razovel, ainda que isso
fira os dogmas pessoais ou familiares de
alguns dos seus alunos.
aqui que reside a alarmante falta de
hbito de abstraco dos nefitos, cuja ausncia
tambm os professores de matrias
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_______________________________________________________________ Documentos anexos. O valor de educar 9
essencialmente tericas lamentam com
amargura, mais tarde, nos estudantes
universitrios. Consiste numa dificuldade quase
incurvel para deduzir a partir de premissas,
para conseguirem desligar-se do imediato ou do
anedtico, para no procurar, por detrs de cada
argumento, a m vontade ou o interesse
mesquinho do argumentador mas sim verem a
debilidade do argumentado ().
Aprender a discutir, a refutar e a justificar
o que se pensa o que constitui a parte
irrenuncivel de qualquer educao que aspire
ao ttulo de humanista. Para isso, no
suficiente saber expressar-se com clareza e
preciso (ainda que seja primordial, tanto na
escrita como oralmente) e submeter-se s
mesmas exigncias de inteligibilidade que se
pedem aos outros, mas deve tambm ser
desenvolvida a faculdade de escutar o que se
prope na construo discursiva. No se trata de
patentear uma comunidade de autistas,
zelosamente enclausurados nas suas
respeitveis opinies prprias, mas sim de
propiciar a disposio para participar lealmente
em colquios razoveis e em procurar, em
comum, uma verdade que no tenha senhor e
que procure no fazer escravos.
indubitvel que tal disposio deve
encontrar o seu primeiro exemplo na atitude do
prprio mestre, seguro do que sabe, mas
disposto a debat-lo e, inclusive, a modific-lo no
decurso de cada aula com a ajuda dos seus
alunos.
Deve ser uma das principais tarefas
fomentar o esprito crtico sem fazer concesses
ao simples af de levar a melhor (to
caracterstico e estimulantemente ldico na
idade adolescente). Tambm saudvel que o
professor no se antecipe aos adolescentes no
zelo subversivo, ensinando-os a refutar coisas
que ainda no mostrou sob o seu aspecto
positivo, por exemplo () expor as doutrinas
filosficas a partir dos seus erros.
H professores to inconformistas que no
se conformam com ser apenas professores e
querem tambm ocupar o papel de jovens
rebeldes, em vez de deixar aos seus alunos essa
iniciativa (). Deve ser potenciado naqueles que
aprendem a capacidade de perguntar e
perguntar-se: essa inquietao, sem a qual nunca
se consegue saber verdadeiramente alguma
coisa, mesmo que se consiga repetir tudo.
Uma das constataes mais alarmantes
do ensino, na actualidade, que os mestres das
crianas pequenas sentem-se angustiados com as
suas perguntas constantes, enquanto na
universidade nos queixamos porque nunca
perguntam nada. Que ocorreu nesses anos que
separam a escola da faculdade para que lhes
tenha passado a alegre vontade de inquirir? E
no devemos temer que esse esprito crtico leve
ao puro niilismo indisciplinado, porque se for
autntico, consegue ser o seu melhor preventivo
().
H () outro aspecto da educao
humanista que convm assinalar e que a
dimenso narrativa (). Os homens no so
problemas ou equaes mas sim histrias somos
menos parecidos com contas do que com contos.
imprescindvel portanto que o ensino saiba
narrar cada uma das disciplinas vinculando-a ao
seu passado, s mudanas sociais que
acompanharam o seu desenvolvimento, etc.
As verdadeiras humanidades so as
matrias de estudo que conservam vivo o latejo
biogrfico daqueles que as exploraram assim
como a sua dvida face s nossas necessidades
vitais e aos nossos sonhos. A memria dos
homens pretritos e a urgncia da vida no
presente o que unifica significativamente a
disperso de temas acadmicos que conformam
o curriculum ().
A sensibilidade narrativa antes de tudo
sensibilidade literria. Basicamente aprende-se
lendo, ainda que haja outras importantes formas
de narrao que a educao to-pouco deve
descuidar, como a cinematogrfica. Mas ler
-
10 Cadernos de Pedagogia _________________________________________________________________________
sempre uma actividade, em si mesma,
intelectual, um esboo de pensamento, algo mais
activamente mental que ver imagens. Depois da
palavra falada, a palavra escrita o remdio
mais potente que se inventou para o crescimento
intelectual ().
2. Educar universalizar
Sob o mesmo rtulo de educao,
acolhem-se frmulas muito distintas no tempo e
no espao. Os primeiros grupos humanos de
caadores-recolectores educaram os seus filhos,
tal como os gregos da poca clssica, os aztecas,
as sociedades medievais, o sculo das luzes ou as
naes ultratecnificadas contemporneas. E esse
processo de ensino nunca uma pura
transmisso de conhecimentos objectivos ou de
destrezas prticas, mas sempre acompanhado
de um ideal de vida e de um projecto de
sociedade ().
Semelhante factor de subjectividade no ,
primordialmente, uma caracterstica psicolgica
do mestre nem do discpulo (), mas vem
determinado pela tradio da sociedade em que
ambos estabelecem o seu contacto. A educao
tem como objectivo completar a humanidade do
nefito, mas essa humanidade no pode realizar-
se em abstracto nem genericamente, nem sequer
consiste no cultivo de um grmen idiossincrtico
lactente em cada indivduo, mas tem como
funo imprimir melhor uma orientao social
precisa, isto , a que cada comunidade considera
prefervel.
Durkheim, em Pedagogia e Sociologia.
insistiu de maneira muito ntida neste ponto: O
homem que a educao deve plasmar dentro de
ns no o homem tal como a Natureza o criou,
mas sim tal como a sociedade quer que ele seja: e
quere-o tal como o exige a sua economia interna
(). Portanto, dado que a escala de valores
muda forosamente com as sociedades, a
hierarquia no permaneceu sempre igual em
dois momentos diferentes da histria. Ontem era
a valentia que tinha a primazia com todas as
faculdades que implicam as virtudes militares,
hoje em dia (Durkheim escreve em finais do
sculo passado 2) o pensamento e a reflexo,
porventura amanh ser o refinamento do gosto
e a sensibilidade, at mesmo as coisas da arte.
Assim, o nosso ideal pedaggico , at nos seus
mais pequenos detalhes, obra da sociedade.
E se a sociedade instituda, a partir das
suas estratgias dominantes e dos preconceitos
que equilibram a sua perspectiva, que estabelece
os ideais que orientam a tarefa educativa..., como
possvel esperar que a passagem pela escola
propicie a formao de pessoas capazes de
transformar positivamente as velhas estruturas
sociais? Como assinalou John Dewey os que
receberam educao so os que a do; os hbitos
j produzidos tm uma profunda influncia no
seu procedimento. como se ningum pudesse
ser educado, no verdadeiro sentido, at que
todos se tivessem desenvolvido fora do alcance
do preconceito, da estupidez e da apatia. Ideal
por definio inalcanvel. Ento o ensino
dever ser obrigatoriamente conservador, instruir
para o conservadorismo, de tal modo que o
fulgor revolucionrio dos educarmos s ser
estimulado por reaco contra o que lhes
proposto e nunca como uma das formas
possveis de o compreender adequadamente? A
resposta para esta complexa questo no pode
ser um simples sim ou no ().
Em primeiro lugar, convm afirmar, sem
falsos escrpulos, a dimenso conservadora da
tarefa educativa. A sociedade prepara os seus
novos membros do modo que lhe parece mais
conveniente para a sua conservao, no para a
sua destruio, isto , quer formar bons scios,
no inimigos nem individualidades anti-sociais
(). No s busca conformar indivduos
socialmente aceitveis e teis, mas tambm
precaver-se do surgimento de possveis desvios
2 Trata-se do sculo XIX.
-
_______________________________________________________________ Documentos anexos. O valor de educar 11
prejudiciais (). Com a sua habitual coragem
intelectual, Hannah Arendt formulou-o sem
rodeios: Parece-me que o conservadorismo,
tomado no sentido de conservao, a prpria
essncia da educao, que tem sempre como
tarefa envolver e proteger alguma coisa, seja a
criana contra o mundo, o mundo contra a
criana, o novo contra o velho ou o velho contra
o novo.
Em resumo, a educao , antes de tudo,
transmisso de alguma coisa, e s se transmite
aquilo que quem vai transmitir considera digno
de ser conservado (). Educamos para satisfazer
um pedido que corresponde a um esteretipo
social, pessoal mas nesse processo de
formao criamos uma insatisfao que nunca
conforma completamente... Constatao
estimulante, ainda que, do ponto de vista
conservador, isso constitua um certo escndalo.
Ora acontece que, em segundo lugar, a
sociedade nunca um todo fixo, acabado em
equilbrio mortal. Em caso algum deixa de
incluir tendncias diversas que tambm fazem
parte da tradio que as aprendizagens
comunicam. Por mais oficialista que seja a
pretenso pedaggica, acaba sempre por
acontecer o que Huhert Hannoun aponta em
Comprendre l'education: a escola no transmite
exclusivamente a cultura dominante, mas sim o
conjunto de culturas em conflito no grupo em
que nasce.
A mensagem da educao abarca sem-
pre, ainda que seja como antema, o seu reverso
ou, pelo menos, algumas das suas alternativas.
Isto particularmente evidente na modernidade,
quando a complexidade de saberes e quereres
sociais tende a converter os centros de estudo em
mbitos de contestao social ao vigente, se bem
que isso sempre tenha ocorrido. Pedagogos como
Rousseau, Max Stirner, Marx, Bakunine ou John
Dewey marcaram linhas de dissidncia colectiva
por vezes to espectaculares como as que
confluram em 1968, mas a histria da educao
conheceu anteriormente numerosos
revolucionrios, comeando por Scrates ou
Plato e seguindo por Abelardo, Erasmo, Lus
Vives, Toms Moro, Rabelais, etc. ()
Quem pretende educar converte-se, de
certo modo, em responsvel pelo mundo face ao
nefito, como muito bem assinalou Hannah
Arendt, se lhe repugna esta responsabilidade,
mais vale que se dedique a outra coisa e que no
estorve. Tornar-se responsvel do mundo no
aprov-lo tal como ele , mas sim, assumi-lo
conscientemente porque e porque, s a partir
do que , pode ser emendado. Para que haja
futuro, algum deve aceitar a tarefa de
reconhecer o passado como prprio e oferec-lo
queles que vm depois de ns.
Logo partida, essa transmisso no deve
excluir a dvida crtica sobre determinados
contedos de conhecimentos e a informao
sobre opinies herticas que se opem com
argumentos racionais forma de pensar
maioritria. Acredito que o professor no pode
curto-circuitar o nimo rebelde do jovem com a
exibio desavergonhada de si prprio. No h
pior desgraa para os alunos que o educador
empenhado em compensar com os seus comcios
as frustraes polticas que no sabe ou no pode
expor frente a outro pblico melhor preparado.
Em vez de explicar o passado a que
pertence, desliga-se dele como se fosse um
recm-chegado e bloqueia a perspectiva crtica
que os nefitos deveriam exercer, ensinando-lhes
a recusar o que ainda no tiveram oportunidade
de entender. Fomenta-se assim o pior
conservadorismo docente, o da seita que segue
com dcil sublevao, o guru iconoclasta. ()
Precisamente para preservar o que novo e
revolucionrio, em cada criana, a educao
deve ser conservadora sustenta Hannah
Arendt ().
O que se segue dirige-se queles que,
como eu, esto convencidos da expectativa social
de formar indivduos autnomos, capazes de
participar em comunidades, que saibam
transformar-se, sem se renegarem a si prprias,
-
12 Cadernos de Pedagogia _________________________________________________________________________
que se abram e ampliem sem perecer (). Gente,
enfim, convencida de que o principal bem que
temos que produzir e aumentar a humanidade
compartilhada, semelhante no fundamental,
apesar das tribos e privilgios com que tambm
muito humanamente nos identificamos. De
acordo com este argumento, parece-me que o
ideal bsico que a educao actualmente deve
conservar e promover a universalidade
democrtica. ().
Comecemos pela universalidade.
Significa pr a aco humana lingustica,
racional, artstica acima dos seus modismos,
valoriz-la no seu conjunto, antes de comear a
ressaltar as suas peculiaridades locais e
sobretudo no excluir ningum priori do
processo educativo que a potencia e desenvolve.
Durante sculos, o ensino serviu para
discriminar uns grupos humanos face a outros,
os homens face s mulheres, os poderosos face
aos indigentes, os citadinos face aos camponeses,
os clrigos face aos guerreiros, os burgueses face
aos operrios, os civilizados face aos
selvagens, os sensatos face aos tontos, as
castas superiores face e contra as inferiores.
Universalizar a educao consiste em
acabar com essas manipulaes discriminatrias,
ainda que as etapas mais avanadas do ensino
possam ser selectivas e favoream a
especializao de cada um de acordo com a sua
peculiar vocao; a aprendizagem bsica dos
primeiros anos no deve ser regateada a
ningum, nem dever dar, antecipadamente
como certo que algum nasceu para muito,
para pouco ou para nada. Esta questo da
origem o principal obstculo que tenta demolir
a educao universal e universalizadora. Cada
qual o que demonstra que sabe ser com o seu
empenhamento e habilidade, no o que seu
bero esse bero biolgico racial, familiar
cultural, nacional, de classe social, etc. o
predestina para ser, segundo a hierarquia de
oportunidades estabelecida por outros. Neste
sentido, o esforo educativo sempre rebelio
contra o destino, sublevao contra o fatum, a
educao a antifatalidade no a adaptao
programada ().
No passado, o peso da origem baseava-se
sobretudo na linhagem socioeconmica de cada
um (e, certamente, na separao dos sexos, que
a discriminao bsica em quase todas as
culturas). Hoje continuam vigentes ambos os
critrios antiuniversalistas em demasiados
lugares do nosso mundo. Donde, um Estado sem
preocupao social no corrige os efeitos das
escandalosas diferenas de fortuna: uns nascem
para ser educados e os outros devem contentar-
se com uma domesticao sucinta que os
capacite para as tarefas ancestrais que os
superiores nunca concordariam em realizar.
Deste modo o ensino converte-se numa
perpetuao da fatal hierarquia socioeconmica
em lugar de oferecer possibilidades de
mobilidade social e de um equilbrio mais justo
(). Mas, nas sociedades democrticas mais
desenvolvidas socialmente, a educao bsica
costuma estar garantida para todos e, em
conformidade, as mulheres tm o mesmo direito
que os homens ao estudo (obtendo,
normalmente, melhores resultados que estes).
Ento, a excluso pela origem tenta
afirma-se de uma maneira diferente e
supostamente mais cientfica. Trata-se das
disposies genticas, a herana biolgica
recebida por cada um, que condiciona os bons
resultados escolares de uns, enquanto condena
outros ao fracasso. Se existem pessoas ou grupos
tnicos geneticamente condenados ineficincia
escolar porqu dar-se ao incmodo de os
escolarizar? Um teste de inteligncia aplicado
atempadamente pouparia ao Estado muitos
custos que poderiam ser utilizado mais
frutiferamente noutras tarefas de interesse
pblico (novos avies de combate, por exemplo).
No por acaso que as deficincias do sistema
educativo dos Estados Unidos o tornam
-
_______________________________________________________________ Documentos anexos. O valor de educar 13
particularmente suspeito de dissipao e onde
esto a surgir estudos vagamente neodarwinistas
nesta linha. O que, recentemente, despertou mais
escndalo foi provavelmente The Bell Curve, de
Murray e Herrstein, cujas anlises estatsticas,
baseadas em testes de inteligncia, pretendem
demonstrar que o abismo gentico entre a elite
cognitiva que dirige a sociedade americana e os
estratos inferiores compostos por marginais e
inadaptados aumenta cada vez mais. Em
particular, consideram cientificamente
provado que a mdia intelectual dos negros
inferior de outras raas, pelo que as polticas de
discriminao positiva que os auxiliam (por
exemplo, facilitando o seu acesso
universidade) so um dispndio intil de
recursos pblicos. Diversas variaes sobre estes
temas insinuam-se, cada vez mais e com maior
frequncia (). Assim, nalguns locais, os
geneticamente incapazes so os negros, noutros
os ndios, os ciganos ou os esquims e, em quase
todos, os filhos dos pobres.
difcil imaginar uma doutrina mais
desumana e repelente que esta. Para comear,
no existe nenhum mecanismo fivel para medir
inteligncia humana que, na realidade, no
uma disposio nica mas sim um conjunto de
capacidades relacionadas cuja complexidade no
pode estabelecer-se como a estatura ou a cor dos
olhos ().
a educao, precisamente, a responsvel
por potenciar as disposies prprias de cada
um, aproveitando a seu favor e tambm a favor
da sociedade, a diversidade dos dons herdados
() inclusive, nos casos de alguma menos-valia
psquica no deixam de existir mtodos
pedaggicos especiais, capazes de compens-la
ao mximo, permitindo um desenvolvimento
formativo que no condene o que dela sofre ao
ostracismo e esterilidade irreversvel.
Mas, no fim de contas, na imensa maioria
dos casos a circunstncia social a herana mais
determinante que os nossos pais nos legam. E
essa circunstncia comea pelos prprios pais,
cuja presena ou ausncia, a sua preocupao ou
despreocupao, o seu baixo ou alto nvel
cultural e o seu melhor ou pior exemplo formam
um legado educativamente falando muito mais
relevante que os prprios genes. Portanto, a
pretenso universalizadora da educao
democrtica est na tentativa de auxiliar cada
pessoa nas deficincias do meio familiar e social
em que nasce, obrigatoriamente, por fora do
acaso e no por referend-las como pretexto de
excluso.
Outra via universalizadora da educao
consiste em ajudar cada pessoa a voltar s suas
razes. um propsito muito publicitado na
actualidade mas notoriamente mal-entendido ou
empreendido no sentido inverso do que seria
lgico. Sem dvida, falar de razes neste caso
pura linguagem figurada porque os homens no
tm razes que os cravem terra e que os
alimentem com a substncia fermentada dos
mortos, mas sim ps para andar, para viajar ou
fugir, para procurar o alimento fsico ou
intelectual onde melhor lhes conviver.
Admitamos contudo, a metfora que tanto
agrada aos nacionalistas (recuperemos as
nossas razes), aos entusiastas da etnicidade
(conservemos a pureza de nossas razes), aos
integristas religiosos (a raiz da nossa cultura
crist ou muulmana ou judaica) e aos
integristas polticos (a raiz da democracia est
na liberdade de mercado), etc.
Na maioria destes casos, o apelo s razes
significa que devem mondar do nosso jardim
nativo quantas ervas nocivas e adventcias
turvem a enraizada harmonia do que
supostamente foi planeado em primeiro lugar e
tambm que cada qual, dentro de si mesmo,
deve procurar aquela raiz prpria e
intransfervel que o identifica e que o torna
semelhante aos irmos do mesmo torro natal.
Segundo esta viso, a educao consistiria em
dedicar-se a reforar as nossas razes, fazendo-
nos mais nacionais, mais tnicos, mais
ideologicamente puros mais idnticos a ns
-
14 Cadernos de Pedagogia _________________________________________________________________________
mesmos e portanto inconfundivelmente
heterogneos relativamente aos outros. A nica
universalidade que esta argumentao admite
a universalidade das razes isto , que todos e
cada um de ns temos as nossas, universalmente
responsveis por nos ligar ao que prprio de
ns mesmos e evitar que nos enredemos
confusamente em frondosidades alheias.
Mas esta utilizao metafrica das razes
pode ser invertida e isso precisamente o que
deve ser realizado pela educao universalista.
Porque se, nos deixarmos levar pela intuio e
no tanto pela erudio botnica, aquilo em que
mais se parecem todas as plantas, entre si,
precisamente nas suas razes, enquanto diferem,
a olhos vistos, pela estrutura dos seus ramos,
tipo de folhagem, flores e frutos. Com os homens
passa-se algo muito semelhante, as nossas razes
mais prprias que nos distinguem dos outros
animais so o uso da linguagem e dos smbolos a
disposio racional, a recordao do passado e a
previso do futuro, a conscincia da morte, o
sentido do humor etc... em resumo, aquilo que
nos torna semelhantes e que nunca falta onde h
homens O que nenhum grupo, cultura ou
indivduo pode reclamar como nica e
exclusivamente prprio, temo-lo em comum.
Pelo contrrio tudo o resto as variadssimas
frmulas e praxes culturais, os mitos e lendas os
interesses cientficos ou artsticos, as conquistas
polticas a diversidade das lnguas, das crenas e
das leis. etc. so a folhagem variegada e a
colorida multiplicidade de flores e frutos. o
universalista que vai at s razes profundas que
nos tornam comummente humanos, enquanto os
diversos nacionalistas, etnicistas e particulares
vo sempre de ramo em ramo, fazendo
macaquices e buscando restries.
Vamos levar a metfora at ao fim, antes
de a pr de lado, como deve ser feito com todas
as imagens literrias para que no se convertam
em estorvo do pensamento. Sem razes as
plantas morrem irremediavelmente, sem
folhagem, flores e frutos a paisagem seria de
uma intolervel e estril monotonia. A
diversidade cultural o modo prprio de a
comum raiz humana expressar a sua riqueza e
generosidade. Cultivemos a floresta, gozemos as
suas fragrncias e os seus mltiplos sabores, mas
no olvidemos a semelhana essencial que une
atravs da raiz o sentido comum de tanta
pluralidade de formas e matizes.
Isto dever ser sempre recordado, nos
momentos mais cruciais, quando a convivncia
entre grupos culturalmente distintos se torne
impossvel e a hostilidade no possa ser
resolvida com recurso s regras internas de
qualquer dos ramos em conflito (). A nossa
humanidade comum necessria para
caracterizar o que verdadeiramente nico e
irrepetvel da nossa condio, enquanto a nossa
diversidade cultural acidental.
Nenhuma cultura insolvel para as
outras, nenhuma brota de uma essencial to
idiossincrtica que no possa ou no deva
misturar-se com outras, sofrer o contgio de
outras. Esse contgio de umas culturas por
outras precisamente o que pode chamar-se
civilizao. E a civilizao e no meramente a
cultura, que a educao deve aspirar a
transmitir (). Aquilo a que nos referimos ao
falar de civilizao e tambm de universalidade
a essa potencialidade, que cada cultura possui,
de transmutar-se nas outras todas, de no ser
uma verdadeira cultura sem transfuses
culturais das outras e sem tradues ou
adaptaes culturais das outras. No se trata de
homogeneizar universalmente (um dos pnicos
retricos mais reiterados do nosso sculo, a
americanizao mundial, etc.), mas sim de
romper com a mitologia autista das culturas que
exigem ser preservadas, idnticas a si mesmas,
como se todas no estivessem a transformar-se
continuamente, durante sculos, por influxo
civilizador das outras.
Etnocentrismo? S-lo-ia, se s considers-
semos a universalidade como uma caracterstica
factual da cultura ocidental, em vez de t-la
-
_______________________________________________________________ Documentos anexos. O valor de educar 15
como um ideal valioso, promovido mas tambm
espezinhado inmeras vezes pelo ocidente
(signifique o que significar este confuso termo).
No. A universalidade no patrimnio
exclusivo de nenhuma cultura o que seria
contraditrio mas sim uma tendncia que
existe em todas mas que tambm em toda a parte
obrigada a confrontar-se com o provincianismo
cultural do idiossincrtico insolvel, igualmente
presente nas latitudes aparentemente mais
opostas. A tarefa educativa mais apropriada
para o nosso mundo hipercomunicacional
consiste precisamente em potenciar essa
tendncia comum e ameaada para a variedade,
mas no para o tribalismo ().
Porventura, o af histrico de ser
inconfundvel e impenetrvel para os outros seja
apenas uma reaco face evidncia, cada vez
mais bvia, de que os homens se parecem
demasiado, evidncia que antes s era sentida
por alguns espritos mais avisados e que hoje
colocada ao alcance de todos atravs dos meios
de comunicao social. Perderam-se assim
muitos matizes? Espreita-nos a homogeneidade
universal? No o creio (). A diversidade est
assegurada, ainda que, provavelmente, seja, cada
vez mais, desconcertantemente diversa e se v
parecendo, cada vez menos, com as diversidades
purificadas com que estamos familiarizados.
Para esse processo inovador bom que a
educao prepare tambm as geraes que vo
viv-lo.
Mas no nos enganemos, o sentido
sociolgico da nossa actualidade no aponta
para o inevitvel triunfo uniformizador do
universalismo. Muito pelo contrrio, so
angustiantes as demonstraes, aqui e ali, do
xito crescente das atitudes antiuniversalistas,
que alis costumam proclamar-se vtimas da
suposta omnipotncia universalizante. O que
realmente est hoje em perigosa alta , de novo,
o recurso s origens como condicionamento
inexorvel da forma de pensar, isto , dividir o
mundo em duetos estanques de ndole
intelectual. Quer dizer, s os nacionais de uma
nao podem compreender as outras pessoas
dessa mesma nao, que s os negros podem
entender os negros, os amarelos os amarelos e os
brancos os brancos, que s os cristos
compreendem os cristos e os muulmanos os
muulmanos, que s as mulheres entendem as
mulheres, os homossexuais os homossexuais e os
heterossexuais os heterossexuais. Cada tribo
deve permanecer fechada em si mesma, idntica
de acordo com a sua identidade, estabelecida
pelos patriarcas ou caciques do grupo,
ensimesmada na sua pureza de pacotilha.
E que, portanto, deve haver uma educa-
o diferente para cada um destes grupos que
os respeite, isto , que confirme os seus
preconceitos e no lhes permita abrir-se e ser
contagiado pelos outros. Em resumo, as nossas
circunstncias condicionam o nosso juzo, de tal
modo que nunca um juzo intelectualmente
livre, se verdade, como Nietzsche acreditava,
que o homem livre aquele que pensa de modo
diferente daquele que seria possvel esperar-se
tendo em vista a sua origem, o seu meio, o seu
estado e a sua funo ou as opinies vigentes no
seu tempo.
Todos aqueles que pensam desta maneira
so considerados pelos colectivizadores do
pensamento idntico no como livres mas sim
como traidores ao seu grupo de pertena. Pois
bem, aqui temos outra tarefa para a educao
universalizadora, ensinar a atraioar,
racionalmente, em nome da nossa nica
verdadeira pertena essencial a humana ,
tudo o que de exclusivo, fechado e manaco
exista nas nossas filiaes acidentais, por muito
acolhedoras que estas possam ser para os
espritos comodistas que no querem mudar de
rotinas ou procurar conflitos.
compreensvel o temor face a um ensino
sobrecarregado de contedos ideolgicos, face a
uma escola mais preocupada em suscitar
fervores e adeses inquebrantveis do que em
favorecer o pensamento crtico autnomo. A
-
16 Cadernos de Pedagogia _________________________________________________________________________
formao em valores cvicos pode converter-se,
muito facilmente, em doutrinamento para uma
docilidade bem pensante, que levaria ao
marasmo se chegasse a triunfar; a explicao
necessria dos nossos principais valores polticos
pode, tambm facilmente, resvalar para a
propaganda, reforada pelas manias castradoras
do politicamente correcto ().
Daqui que alguma neutralidade escolar
seja justificadamente desejvel, face s opes
eleitorais concretas, oferecidas pelos partidos
polticos, face s diversas confisses religiosas,
face a propostas estticas ou existenciais que
surjam na sociedade. Ter de ser uma
neutralidade relativa, sem dvida, porque no
pode recusar a considerao crtica dos temas do
momento (que os prprios alunos,
frequentemente, iro solicitar e que o mestre
competente ter de fazer, sem pretender situar-
se fora, mas declarando a sua tomada de
posio, enquanto fomenta a exposio razovel
das outras) ainda que deva evitar converter a
sala de aulas numa fastidiosa e logomaquia
sucursal do Parlamento. importante que na
escola se ensine a discutir mas imprescindvel
deixar bem claro que a escola no um foro de
debates nem um plpito.
No obstante, essa mesma neutralidade
crtica corresponde, por sua vez, a uma
determinada forma poltica, perante a qual no
possvel ser neutral no ensino democrtico:
refiro-me prpria democracia. Seria suicida
que a escola renunciasse a formar cidados
democratas, inconformistas mas em
conformidade com o que o modelo democrtico
estabelece, inquietos pelo seu destino pessoal
mas no desconhecendo as exigncias
harmonizadoras do pblico. Na desejvel
complexidade ideolgica e tnica da sociedade
moderna () fica a escola como o nico mbito
geral que pode fomentar o apreo racional por
aqueles valores que permitem a convivncia
conjunta aos que so satisfatoriamente diversos.
E essa oportunidade de inculcar o respeito pelo
nosso mnimo denominador comum no deve,
de modo algum, ser desperdiada.
No pode nem deve haver neutralidade,
por exemplo, no que corresponde recusa da
tortura, do racismo, do terrorismo, da pena de
morte, da prevaricao dos juzes ou da
impunidade da corrupo em cargos pblicos,
nem to-pouco na defesa das proteces sociais
da sade ou da educao, da velhice ou da
infncia, nem no ideal de uma sociedade que
corrija o mais possvel o abismo entre opulncia
e misria. Por qu? Porque no se trata de
simples opes partidrias mas sim de benefcios
da civilizao humanizadora que j no possvel
renunciar sem se incorrer em concesso
barbrie.
O prprio sistema democrtico no algo
natural e espontneo nos seres humanos, mas
sim algo conquistado, atravs de muitos esforos
revolucionrios no campo intelectual e poltico:
portanto, no pode ser dado como certo, mas
deve ser ensinado com a maior persuaso
didctica compatvel com o esprito de
autonomia crtica. A socializao poltica
demteinerocrtica um esforo complicado e
resvaladio, mas irrenuncivel ().
A recomendao racional de tais valores
no deve ser uma mera litania edificante que, no
melhor dos casos, acabar por aborrec-los. Ser
prefervel mostrar como conseguiram ser
historicamente imprescindveis, e o que ocorre
onde, por exemplo, no h eleies livres,
tolerncia religiosa ou os juzes so venais. Seria
absurdo mostrar s crianas as falhas do mundo
em que vivemos () [sem lhes inspirar] uma
prudente confiana nos mecanismos previstos
para emend-las.