o valor da amizade

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O valor da amizade Era uma vez uma bela menina moura chamada Almira, que morava no Castelo de Alcácer do Sal. Os seus cabelos negros ondulando ao vento e os seus olhinhos verdes meigos não deixavam ninguém indiferente; até o califa gostava de brincar com Almira. O melhor amigo de Almira chamava-se Altis. Juntos, passavam o tempo todo a correr de um lado para o outro e não havia canto no castelo que lhes escapasse! A brincadeira preferida de Altis era a dos cavaleiros: dizia que, um dia, iria ser um cavaleiro tão grandioso quanto o seu pai e seria tão bom, que se lembrariam dele para sempre. Já Almira tocava alaúde e declamava poemas, fingindo ser a dama do salão. Um dia, quando estavam a jogar na rua, ouviram um grande alarido. - O que se passa? – perguntou Almira a uma vizinha. - Chegou ao castelo um grupo de cavaleiros – respondeu a mulher. Curiosos, Almira e Altis apressaram-se a procurar os cavaleiros. Quando os encontraram no pátio do castelo, repararam que com eles vinha um menino que devia ter a mesma idade que eles. Ao vê-los, o menino correu até eles e, sorridente, disse: - Olá, sou o Gonçalo. Posso brincar com vocês? - E ao que queres brincar? – perguntou Almira de imediato. Altis deu um pulo de susto ao reparar que Gonçalo se vestia de maneira diferente deles. Puxou o braço de Almira e sussurrou-lhe ao ouvido: - Não podemos falar com ele. Ele não é mouro como nós; tem outra religião, vem de um sítio diferente e tem hábitos diferentes dos nossos. Almira ficou pensativa e sem saber o que fazer, pois queria mesmo ser amiga de Gonçalo. - Mesmo que certas coisas sejam diferentes, sou como vocês e só quero brincar – chateou-se Gonçalo, dando um encontrão a Altis em reprovação ao que dissera. O rosto de Altis ficou rosado de irritação. Como se atrevia Gonçalo a empurrá- lo? Ele ia ver como elas lhe mordiam! Irritado, correu para o celeiro e voltou pouco depois com duas vassouras. Passou uma bruscamente a Gonçalo e, com as mãos fincadas nas ancas, desafiou: - Vamos resolver isto com um duelo de vassouras. Se ganhares, ficamos amigos; se perderes, deixas-nos em paz. Altis não precisou dizer mais nada. Gonçalo fletiu os joelhos, assumiu uma pose de ataque e atirou-se ao adversário. Quando Altis deu por si, estava estatelado no chão e a vassoura jazia a seu lado, inerte como que envergonhada da sua derrota. - É isso! – gritou Almira. – Já volto. Almira correu até ao celeiro, agarrou numa vassoura para si e em duas pequenas caixas de madeira e arrastou tudo até junto dos rapazes. - Vamos fazer uma batalha a sério, com armaduras e tudo – anunciou, contente. A brincadeira durou horas e horas, as diferenças entre eles esquecidas e a diversão a reinar. Quando ficaram cansados, largaram as caixas e as vassouras e correram para a cozinha do castelo para petiscarem.

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O valor da amizade

Era uma vez uma bela menina moura chamada Almira, que morava no Castelo

de Alcácer do Sal. Os seus cabelos negros ondulando ao vento e os seus olhinhos

verdes meigos não deixavam ninguém indiferente; até o califa gostava de brincar

com Almira.

O melhor amigo de Almira chamava-se Altis. Juntos, passavam o tempo todo a

correr de um lado para o outro e não havia canto no castelo que lhes escapasse!

A brincadeira preferida de Altis era a dos cavaleiros: dizia que, um dia, iria ser

um cavaleiro tão grandioso quanto o seu pai e seria tão bom, que se lembrariam

dele para sempre. Já Almira tocava alaúde e declamava poemas, fingindo ser a

dama do salão.

Um dia, quando estavam a jogar na rua, ouviram um grande alarido.

- O que se passa? – perguntou Almira a uma vizinha.

- Chegou ao castelo um grupo de cavaleiros – respondeu a mulher.

Curiosos, Almira e Altis apressaram-se a procurar os cavaleiros.

Quando os encontraram no pátio do castelo, repararam que com eles vinha um

menino que devia ter a mesma idade que eles.

Ao vê-los, o menino correu até eles e, sorridente, disse:

- Olá, sou o Gonçalo. Posso brincar com vocês?

- E ao que queres brincar? – perguntou Almira de imediato.

Altis deu um pulo de susto ao reparar que Gonçalo se vestia de maneira

diferente deles. Puxou o braço de Almira e sussurrou-lhe ao ouvido:

- Não podemos falar com ele. Ele não é mouro como nós; tem outra religião,

vem de um sítio diferente e tem hábitos diferentes dos nossos.

Almira ficou pensativa e sem saber o que fazer, pois queria mesmo ser amiga de

Gonçalo.

- Mesmo que certas coisas sejam diferentes, sou como vocês e só quero brincar –

chateou-se Gonçalo, dando um encontrão a Altis em reprovação ao que dissera.

O rosto de Altis ficou rosado de irritação. Como se atrevia Gonçalo a empurrá-

lo? Ele ia ver como elas lhe mordiam! Irritado, correu para o celeiro e voltou

pouco depois com duas vassouras. Passou uma bruscamente a Gonçalo e, com as

mãos fincadas nas ancas, desafiou:

- Vamos resolver isto com um duelo de vassouras. Se ganhares, ficamos amigos;

se perderes, deixas-nos em paz.

Altis não precisou dizer mais nada. Gonçalo fletiu os joelhos, assumiu uma pose

de ataque e atirou-se ao adversário.

Quando Altis deu por si, estava estatelado no chão e a vassoura jazia a seu lado,

inerte como que envergonhada da sua derrota.

- É isso! – gritou Almira. – Já volto.

Almira correu até ao celeiro, agarrou numa vassoura para si e em duas pequenas

caixas de madeira e arrastou tudo até junto dos rapazes.

- Vamos fazer uma batalha a sério, com armaduras e tudo – anunciou, contente.

A brincadeira durou horas e horas, as diferenças entre eles esquecidas e a

diversão a reinar.

Quando ficaram cansados, largaram as caixas e as vassouras e correram para a

cozinha do castelo para petiscarem.

Estavam a lanchar e a conversar quando o pai de Gonçalo chegou. Ao ver o

filho na companhia de dois mouros, zangou-se tanto que as pontas do seu

bigode enrolaram de fúria.

- O que estás a fazer? Vai já para o teu quarto. Não te quero ver perto destes

dois nunca mais! – berrou.

- Mas eles são meus amigos – defendeu Gonçalo.

O pai brandiu o indicador no ar de modo nervoso e acrescentou:

- Estás de castigo por seres tão teimoso. Já te disse mais do que uma vez que não

te podes dar com os mouros. E agora, quarto!

Gonçalo acenou aos amigos em despedida e, cabisbaixo, seguiu para o seu

quarto com o pai a repetir o sermão e a insistir que tinha de fazer o que lhe dizia

e portar-se bem.

Nessa noite, Gonçalo pensou muito no que fazer. Devia desistir dos seus amigos

e fazer o que o pai queria ou devia continuar a ver Almira e Altis?

O sol chegou cedo e encontrou Gonçalo já a pé. A sua decisão estava tomada.

Dirigiu-se ao estábulo e ficou a saber que Almira tinha ido com Altis ao bosque

colher bagas para as cozinheiras fazerem uma sobremesa para o califa. Sem

pensar duas vezes, Gonçalo aparelhou o seu pónei e partiu a galope para o

bosque.

- Aqui estão vocês – disse ao encontrá-los.

Altis franziu o sobrolho, ligeiramente inquieto, e procurou o pai de Gonçalo.

Como não o avistou em lugar algum, perguntou:

- Tens a certeza de que podes estar aqui? Não tens medo que te apanhem?

Gonçalo desceu do pónei, encolheu os ombros e sorriu.

Almira deu-lhe a mão e declarou:

- Ele será sempre bem-vindo junto de nós. A amizade é mais importante que

povos, cores, religiões ou quaisquer outras diferenças.