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O VALE DAS MIRAGENS: GRANDES PROJETOS HÍDRICOS E A 'REDENÇÃO' DO BAIXO AÇU (1910-1983). FRANCISCO LEANDRO DUARTE PINHEIRO

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  • O VALE DAS MIRAGENS: GRANDES PROJETOS HÍDRICOS E A 'REDENÇÃO' DO BAIXO AÇU (1910-1983).

    FRANCISCO LEANDRO DUARTE PINHEIRO

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO

    CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

    ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS LINHA DE PESQUISA: NATUREZA, RELAÇÕES ECONÔMICO-SOCIAIS E

    PRODUÇÃO DOS ESPAÇOS.

    O VALE DAS MIRAGENS: GRANDES PROJETOS HÍDRICOS E A 'REDENÇÃO' DO BAIXO AÇU (1910-1983).

    FRANCISCO LEANDRO DUARTE PINHEIRO

    NATAL, 31 DE JULHO DE 2018

  • FRANCISCO LEANDRO DUARTE PINHEIRO

    O VALE DAS MIRAGENS: GRANDES PROJETOS HÍDRICOS E A 'REDENÇÃO' DO BAIXO AÇU (1910-1983).

    Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em História no Programa de Pós-Graduação em História, Área de Concentração em História e Espaços. Linha de Pesquisa: Natureza, Relações Econômico-Sociais e Produção dos Espaços. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do Prof. Dr. Raimundo Pereira Alencar Arrais.

    NATAL, 31 DE JULHO DE 2018

  • FRANCISCO LEANDRO DUARTE PINHEIRO

    O VALE DAS MIRAGENS: GRANDES PROJETOS HÍDRICOS E A “REDENÇÃO” DO

    BAIXO AÇU (1911-1983).

    Dissertação considerada ___________ para obtenção do grau de Mestre em História no

    Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

    Comissão formada pelos professores:

    _____________________________________

    Prof. Dr. Raimundo Pereira Alencar Arrais – UFRN

    (Orientador)

    _____________________________________

    Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior – UFRN

    (Avaliador interno)

    _____________________________________

    Prof. Dra. Kênia Souza Rios – UFC

    (Avaliador externo)

    _____________________________________

    Prof. Dr. Raimundo Nonato Araújo da Rocha – UFRN

    (Avaliador interno/Suplente)

    Natal, ___ de ___________ de 2018.

  • AGRADECIMENTOS

    À Trindade.

    À minha comunidade de fé, a Primeira Igreja Presbiteriana Independente do Natal, pelo

    cuidado e pelas orações.

    A Rachel, minha nêga, o abraço onde me refugio. É por ela que luto as minhas lutas

    (inclusive as interiores, quando, como diz o poeta, não me sinto concorde comigo mesmo).

    À minha família, sobretudo os meus pais, que, em sua simplicidade, ofereceram e

    continuam a oferecer, incansavelmente, a vida aos filhos.

    Ao professor Wicliffe Costa, cujo apoio foi fundamental para o meu retorno à vida

    acadêmica, depois de oito anos caminhando por outros caminhos.

    Ao professor Rubenilson Teixeira, o meu primeiro orientador na graduação – e o

    primeiro de quem ouvi que eu tinha potencial para seguir carreira acadêmica.

    Ao professor e amigo Júlio César. Quando cheguei, como aluno especial, naquela turma

    de mestrandos no segundo semestre de 2015, ele me acolheu com muito carinho.

    Compartilhando comigo a sua trajetória, em quase tudo parecida com a minha, senti muito mais

    confiança para me desinstalar da zona de conforto, a sala de aula, e me arriscar na senda da

    pesquisa.

    A todos os colegas de turma, especialmente aqueles com quem pude conviver mais de

    perto na rotina da escrita, e que compartilharam comigo de dramas parecidos: Marina, Gustavo,

    Elenize, Cid e Gabriel. Cada conversa de corredor era quase uma terapia, e assim como

    compartilhamos as lutas, compartilho agora com vocês essa vitória.

    Aos amigos da base de pesquisa, que leram e criticaram alguns dos meus textos, que

    partilharam comigo de uma disciplina profícua de Leitura Dirigida, que viajaram comigo para

    eventos e que me ouviram pacientemente quando eu estava inseguro: Gabriel, Tainá e Karine,

    três excelentes historiadores em formação.

    À 812, especialmente os amigos do café: Leozinho, Luanna e Jéssica. E a todos os outros

    que partilhavam desse momento de comunhão sempre que podiam. E a Érica, pelo café.

    A Giovanni, que é da turma do mestrado, do grupo de pesquisa e da sala 812, mas que

    merece um parágrafo só seu. Porquê? Porque era ele, porque era eu. Há pelo menos uma coisa

    que, ao final desse mestrado, terá valido mais que o título de mestre: a sua amizade.

    Ao professor Raimundo Arrais, que aceitou, com coragem e generosidade, orientar um

    neófito desajeitado. Com sua orientação rigorosa, tirou leite de pedra, como se diz. Se há

  • alguma qualidade no texto que segue, eu a devo em grande medida à mão que me conduziu por

    esse caminho novo para mim.

    A Íris e a todos do LABIM (inclusive os agregados, porque é uma sala acolhedora que

    recebe muita gente). Foi aí onde fiz uma parte de minhas pesquisas e onde gastei bons minutos

    de conversa jogada fora. Foi bom resolver com vocês todos problemas do Brasil.

    Aos servidores e bolsistas do NUTSECA, onde fiz outra parte significativa da pesquisa.

    Vocês foram tão generosos e solícitos que não poderia deixar de mencioná-los.

    A Jarbas, de São Rafael, que me acompanhou nas entrevistas e me recebeu com tanta

    deferência em sua casa. Com sua feição familiar me abriu muitas portas naquela cidade onde

    eu era um desconhecido. Agradeço ainda a toda sua família, que, juntamente com ele, me

    atendeu com toda solicitude. Não poderia deixar de mencionar Eliza, sua filha, uma aluna

    empenhada e cheia de boa vontade com essa pesquisa. Ela foi a primeira porta aberta através

    da qual entrei em São Rafael. Da mesma maneira agradeço a cada colaborador que aceitou

    conversar comigo sobre o drama da barragem.

    Ao professor Robson, do IFRN de Ipanguaçu, que me convidou para trabalhar com ele

    em um projeto de pesquisa sobre as memórias sociais no Vale do Açu. Juntos aprovamos dois

    projetos de pesquisa que foram fundamentais para essa dissertação. A todas as meninas que

    compuseram o grupo de pesquisa, especialmente minhas orientandas, Heloísa e Alessandra, que

    me acompanharam em algumas viagens a São Rafael para a realização das entrevistas, além de

    terem colaborado nas transcrições. E Ester, uma aluna linda, vibrante, brilhante, alegre,

    performática, carinhosa. Para mim foi um privilégio tê-la conhecido. Com lágrimas nos olhos

    e o coração pesado, eu lamento sua partida. É muito duro para um professor perder um aluno.

    Depois de sua morte, o grupo demorou muito a se aprumar...

    Ao Instituto Federal do Rio Grande do Norte, por ter me concedido um bom período de

    afastamento que me permitiu desenvolver essa pesquisa.

    Aos professores Dr. Raimundo Nonato e Dr. Durval Muniz, membros titulares da banca

    de qualificação, pela leitura criteriosa do texto e pelas observações relevantes que fizeram. Da

    mesma maneira agradeço ao professor Durval e à professora Dra. Kênia Rios, por terem

    aceitado prontamente participar como titulares da banca de defesa.

    Um trabalho é sempre feito a muitas mãos. Agradeço, portanto, a todos que,

    participando de minha trajetória, contribuíram para a realização desse trabalho.

  • RESUMO O presente trabalho se debruça sobre o Vale do Açu (RN), tomando esse recorte espacial sob uma temática particular: os grandes projetos públicos de gestão das águas. Ao longo do século XX, o Vale foi considerado por diversos agentes sociais (entre eles os técnicos e políticos) como uma área fértil, de enorme potencial agrícola, mas com baixa capacidade produtiva. Essa baixa produtividade se devia, segundo o discurso dos técnicos e engenheiros, à susceptibilidade dessa geografia às ambivalências do clima local (às secas e enchentes); ou à falta de modernidade nas relações de trabalho e na própria produção agrícola (como a irrigação sistemática, por exemplo). Assim, por meio da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), e, depois, o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), o Estado implementou dois grandes projetos hídricos que visavam atacar aqueles problemas, instalando uma modernidade capaz de superar os dramas impostos pela natureza e de dinamizar a capacidade produtiva, cuja pretensa precariedade os técnicos explicavam pelo atraso técnico. Na década de 1940 e 1950, o Projeto Oiticica foi apresentado pela IFOCS como a solução para o Vale do Açu, como a obra que regularizaria o regime das águas, trazendo tranquilidade às comunidades locais vitimadas pelas enchentes periódicas – o projeto, entretanto, foi abandonado depois de um tempo; na década de 1970, tomando como base uma série de novos estudos, o DNOCS decidiu investir em um novo projeto, o chamado Projeto Baixo Açu, do qual resultou a construção da barragem Armando Ribeiro Gonçalves, obra inaugurada em 1983, limite final do nosso recorte temporal. Portanto, essa pesquisa se propõe a estudar os grandes projetos hídricos planejados para Vale do Açu entre os anos de 1910, quando a IFOCS publicou o primeiro relatório técnico que incluía em suas considerações a geografia do Vale (a partir de uma preocupação particular, as secas), e o ano de 1983, quando a primeira grande obra de engenharia foi inaugurada. Palavras-chave: grandes projetos hídricos; Vale do Açu; Projeto Oiticica; Projeto Baixo Açu; barragem Armando Ribeiro Gonçalves.

  • ABSTRACT

    The present work focuses on the Açu Valley (Rio Grande do Norte, Brazil), taking this spatial clipping under a particular theme: large public water management projects. Throughout the twentieth century, the Valley was considered by many social agents (among them, technicians and politicians) as a fertile area of enormous agricultural potential, but with low productive capacity. This low productivity was due, according to technicians and engineers, to the susceptibility of this geography to the ambivalences of the local climate (droughts and floods); and the lack of modern work relations and agricultural techniques (such as systematic irrigation, for example). Thus, through the Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS, “Inspection Office of Public Contracts Against Drought” in Portuguese), and later the Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS, “National Department of Public Contracts Against Drought”), the State implemented two major water projects aimed at tackling those problems, installing a modernity capable of overcoming the dramas imposed by nature and to dynamize the productive capacity, whose precariousness the technicians explained by the technical delay. In the 1940s and 1950s, the Oiticica Project was presented by the IFOCS as the solution to the Açu Valley, as the work that would regularize the water regime, bringing peace of mind to the local communities victimized by the periodic floods - the project, however, was abandoned after a while; in the 1970s, based on a series of new studies, DNOCS decided to invest in a new project called Baixo Açu Project, which resulted in the construction of the Armando Ribeiro Gonçalves Dam, inaugurated in 1983, the final limit of our temporal cut. Therefore, this research proposes to study the great water projects planned for the Açu Valley between the years of 1911, when the first systematic studies on local geography (from a particular concern, droughts) and the year 1983, when the first major engineering work was inaugurated.

    Keywords: large water projects; Vale do Açu; Oiticica Project; Low Açu Project; Armando Ribeiro Gonçalves Dam.

  • Índice de figuras

    Figura 1 mapa das ecorregiões da caatinga ........................................................................... 25

    Figura 2 mapa da bacia hidrográfica do Piranhas-Açu, com as divisões entre as sub-bacias .. 29

    Figura 3 mapa da bacia do Rio Piranhas-Açu no Rio Grane do Norte ................................... 30

    Figura 4 mapa da divisão municipal do Vale do Açu - RN ................................................... 34

    Figura 5 corte da carnaúba [s.d.] .......................................................................................... 39

    Figura 6 esquema ideal da morfologia agrária de uma propriedade rural no Vale do Açu em

    1960 ..................................................................................................................................... 40

    Figura 7 árvore de oiticica .................................................................................................... 43

    Figura 8 Calendário das principais atividades do Baixo Açu ................................................ 45

    Figura 9 Macau, vista para o rio Açu, década de 1950 .......................................................... 57

    Figura 10 Cata-vento usado para bombear água do mar para a formação do sal, Macau-RN,

    década de 1940. ................................................................................................................... 59

    Figura 11 Cruzeta usada para bombear água no Baixo Açu .................................................. 63

    Figura 12 Mapa do Brasil. Climatologia de precipitação acumulada no ano (mm). Série

    histórica de 1961 a 1990. ..................................................................................................... 68

    Figura 13 Trabalho nas salinas, s.d. ...................................................................................... 78

    Figura 14 Manchete do jornal O Poti (RN) chama atenção para as cheias no interior do estado

    (09 de abril de 1967) ............................................................................................................ 86

    Figura 15 Mapa rodoviário do Brasil, com foco no Nordeste, 1926 .................................... 107

    Figura 16 mapa de Geraldo A. Warring com as bacias hidrográficas e locais para construção

    de açudes ........................................................................................................................... 111

    Figura 17 gastos da IOCS em açudagem no Rio Grande do Norte, 1918, publicado no

    Relatório do Ministério de Viação e Obras Públicas. .......................................................... 118

    Figura 18 Canteiro de obras do açude Gargalheira, no Seridó, 1922. .................................. 122

    Figura 19 Estrada de Ferro central do Rio Grande do Norte, 1927 ...................................... 127

    Figura 20 área de influência da barragem Oiticica, iniciada em 2013.................................. 132

    Figura 21 panfleto de divulgação do MINTER/DNOCS, 1979 ........................................... 213

    Figura 22 protesto em Açu, maio de 1980 .......................................................................... 227

    Figura 23 protesto em Açu, maio de 1980 .......................................................................... 227

  • Lista de tabelas

    Tabela 1: principais produtos agrícolas do município de São Rafael (1955).......................... 52

    Tabela 2: principais produtos agrícolas do município de Açu (1955) .................................... 52

    Tabela 3: principais produtos agrícolas do município de Ipanguaçu (1955) .......................... 53

    Tabela 4: Principais recursos minerais do Vale do Açu, 2006 ............................................... 55

  • Sumário Introdução ............................................................................................................................ 13

    Capítulo 1 - Nas dobras do Baixo-Açu ................................................................................. 24

    1.1 O caminho das águas .................................................................................................. 27

    1.1.1. “Estas árvores são úteis por muitos lados” ........................................................... 34

    1.1.2. Outras “plantas úteis” .......................................................................................... 43

    1.1.3. “Pelo comum, toda vida há o trabalho da vazante” ............................................... 46

    1.1.4. A extração mineral ............................................................................................... 54

    1.2. Conclusão .................................................................................................................. 60

    Capítulo 2 - Ambivalências da Várzea: entre as secas e as enchentes ................................... 65

    2.1. As secas ..................................................................................................................... 66

    2.2. As cheias ................................................................................................................... 79

    Capítulo 3 - Da natureza atroz à natureza domesticada: as obras contra as secas ................... 89

    3. 1. O combate às secas sob a lógica da modernidade ...................................................... 95

    3.2. O combate às secas no Vale do Açu ......................................................................... 102

    3.2.1. A Barragem de Oiticica ...................................................................................... 123

    3.3. Conclusão ................................................................................................................ 135

    Capítulo 04 – a “redenção” do vale e o mito do progresso .................................................. 136

    4.1. O desenvolvimentismo e a criação da SUDENE ...................................................... 138

    4.2. A SUDENE no vale do açu (1962-1975) .................................................................. 144

    4.3. Grandes obras, tecnocracia e o Projeto Baixo Açu ................................................... 153

    4.4. O Rio Grande do Norte e a lógica do desenvolvimento ............................................ 165

    4.5. A “redenção” do Vale .............................................................................................. 171

    Capítulo 5 - Da redenção à danação ................................................................................... 185

    5.1. O confronto entre sistemas de saber ......................................................................... 185

    5.1.1. O camponês atrasado ......................................................................................... 187

    5.1.2. O beiradeiro malcomportado .............................................................................. 202

    5.1.3. O beiradeiro ingênuo.......................................................................................... 211

    Conclusão .......................................................................................................................... 231

    REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 235

  • 13

    Introdução Duvidavam. Como não duvidar? Nem lembravam desde quando os comentários sobre

    aquela construção circulavam por aqueles lados. Até ali, eram apenas burburinhos: palavras

    sem substância, promessas sem compromisso. Os moradores do Vale do Açu, microrregião do

    estado do Rio Grande do Norte, não sabiam com exatidão a época em que haviam recebido as

    primeiras visitas dos técnicos, esses tipos que arrogam para si o mais legítimo saber e que

    carregam debaixo do braço a solução para os problemas dos outros. As visitas cumpriam um

    propósito: identificar o melhor lugar para a construção de uma represa. Pretensamente, a medida

    atacaria de frente alguns dos principais problemas locais: a seca, as enchentes e a pobreza.

    Mas a memória dos ribeirinhos do baixo vale do rio Piranhas não estava preocupada

    com a precisão da cronologia. As pesquisas nos remetem à década de 1930, quando a Inspetoria

    Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS) realizou os primeiros estudos com vistas à

    construção de uma barragem, dando início a um longo debate sobre as potencialidades do Vale

    do Açu para a irrigação. Para os moradores locais, no entanto, tratava-se apenas de uma

    conversa que vinha de muito longe e não daria em nada, que não se consubstanciaria em fato.

    Mas as conversas, que já circulavam há tantos anos, ganharam mais força nesse período para o

    qual está agora dirigida a nossa atenção, a década de 1970; e se revestiram de um caráter oficial

    com a publicação do decreto nº. 76.046, de 29 de julho de 1975, que declarava de utilidade

    pública uma área de 158.476,84 hectares para a implementação do Projeto Baixo Açu, cujas

    etapas se constituíam na construção da Barragem Engenheiro Armando Ribeiro Gonçalves, na

    implantação de um perímetro de irrigação e no desenvolvimento de um polo pesqueiro.

    A despeito desse decreto, os moradores do Vale ainda duvidavam: “começou a vir

    aqueles rumores, aquelas história e coisa e tudo, mas nós nem acreditava. Nós num pensava

    nunca que aquilo era verdade”, declarou dona Socorro, sentenciando em seguida: “ninguém

    sabia que era um suicídio daquele tamanho”.1 É a declaração de quem olha retrospectivamente:

    de quem interpreta o final enquanto narra o começo. Mas não avancemos já tão cedo para o

    final. Por ora, basta observarmos que, na segunda metade da década de 1970, um sentimento

    generalizado de descrença envolveu os moradores locais, levando-os a suspeitar que a barragem

    não seria construída.

    Os olhares dos céticos, no entanto, foram contrariados pelo movimento de homens e

    máquinas que começaram a chegar em 1979 no Vale do Açu, juntando esforços para verter em

    1 Entrevista concedida por: LOPES, Maria do Socorro. Entrevistador: Francisco Leandro Duarte Pinheiro. São Rafael, 27 jul. 2016.

  • 14

    paredes o plano dos engenheiros e, enfim, erguer a Barragem Armando Ribeiro Gonçalves. A

    microrregião, caracterizada pela rotina e pelo ritmo das atividades predominantemente rurais,

    assistiu à instalação, pela empreiteira Andrade Gutierrez Engenharia, de um canteiro de obras

    que se transformou num verdadeiro formigueiro a fervilhar num movimento que contrastava

    com a rotina de seu entorno. Assim, se para os moradores do Vale do Açu a construção da

    represa era, desde o início, apenas uma ideia que não tinha fundamento consistente para além

    dos comentários que circulavam, com o tempo o processo foi tomando forma e se

    materializando diante dos seus olhos: “Saía um comentário, depois vinha outro, até que foi,

    como aquela história, de onde vem a fumaça tem o fogo, né?”.2

    É, dona Socorro. E é desse fogo que trataremos: de que material foi preparado e como

    foi aceso. E por que não falarmos também de suas cinzas? Porque todo fogo apaga, mas as suas

    marcas perduram: vestígios de que em algum momento tremeluziram as chamas de um incêndio

    sobre o chão riscado.

    O que os moradores sabiam sobre as circunstâncias que envolviam esse acontecimento,

    exatamente? Quase nada: há tempos, técnicos andavam por ali, realizando estudos de todo tipo

    em nome do governo; conversas circulavam, ditos e não ditos desencadeadores de mil

    preocupações; e havia aquele decreto, publicado em 1975 no Diário Oficial da União, que

    declarava de utilidade pública parte de suas terras. Sabiam, portanto, que o governo tinha algum

    interesse pelas suas terras, e que o pretexto para tanto era o de promover o desenvolvimento

    local, com a construção da barragem e a implementação de um projeto de irrigação. Os detalhes

    do processo, entretanto, ignoravam completamente. Não duvidavam que suas terras andavam

    ameaçadas, mas que a barragem viesse efetivamente a ser construída e um projeto de irrigação

    fosse desenvolvido, disso duvidavam. Dito de outro modo: acreditavam plenamente nos

    prejuízos que aquele interesse traria, e temiam; ressabiados, duvidavam que disso tudo lhes

    restaria algum benefício. Em 1983, no entanto, e para a surpresa de muitos, a barragem foi

    inaugurada. Seria realmente uma conquista para o Vale? Veremos. E quanto ao projeto de

    irrigação? O tempo revelou que a desconfiança da população tinha mesmo fundamento...

    O que nos ocupa nesse trabalho é esse processo no qual o Executivo Federal, em parceria

    com órgãos privados e com o governo estadual, procurou implantar no Rio Grande do Norte

    um grande projeto de irrigação, intensão que resultou na construção de uma represa. É a história

    de um espaço, de um recorte espacial: o Vale do Açu, hoje uma das dezenove microrregiões do

    estado do Rio Grande do Norte, pertencente à mesorregião do Oeste Potiguar. Microrregião

    2 Id.

  • 15

    composta pelos seguintes municípios: Açu, Alto do Rodrigues, Carnaubais, Ipanguaçu, Itajá

    (jurisdicionado, à época da construção da barragem, ao município de Ipanguaçu), Jucurutu,

    Pendências e São Rafael. Trata-se, no entanto, de um recorte espacial historicamente produzido,

    como é produzido todo o espaço pelo qual os homens passam, atuando para produzir as

    condições materiais de sua vida social e estabelecendo relações de produção que estão

    imbricadas com a dimensão espacial;3 sobre o qual projetam os seus sonhos, para o qual dirigem

    o seu olhar, compondo paisagens onde ficam sedimentados os materiais da memória.4 E parte

    do processo de produção do Vale do Açu passa pela relação que as comunidades ribeirinhas

    mantinham com o rio e com o clima, precisamente os aspectos para os quais o Estado prometia

    dar respostas, no sentido de fazê-los cooperarem com os homens. Daí as intervenções públicas

    que os órgãos do Executivo Federal desenvolveram no combate às secas e às enchentes – e, a

    partir da segunda metade do século XX, na modernização da agricultura.

    A Várzea do Açu foi, desse o início do século XX, objeto do interesse de engenheiros

    que percorreram o chão do semiárido brasileiro investigando as condições naturais em que se

    davam as secas e propondo soluções hídricas para esse que se tornou um dos grandes problemas

    nacionais. Foi em 1910 que a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS) publicou o primeiro

    relatório técnico que incluía discussões a respeito da várzea do Açu. A ideia, entretanto, só viria

    a tomar corpo na década de 1940, com o projeto de construção da barragem de Oiticica. Mais

    tarde, esse projeto cedeu lugar a outro, de dimensões ainda maiores, e que era apresentado por

    seus idealizadores como um projeto de “redenção” para o Vale: o Projeto Baixo Açu, que previa

    a construção da barragem Armando Ribeiro Gonçalves, “maior que o Orós”, como gostavam

    de dizer os jornalistas que noticiavam a obra.

    O impacto socioespacial da implantação do Projeto Baixo Açu foi significativo, e um

    dos propósitos que nos movem aqui é o de interpretar esse processo: analisar as circunstâncias

    em que o projeto foi gestado, a lógica que lhe serviu de suporte, os interesses que lhe motivaram

    a execução; depois, refletir sobre as suas incoerências, sobre os conflitos que o envolveram,

    sobre o impacto que produziu nas comunidades diretamente atingidas – sobre suas cinzas, por

    assim dizer.

    Enquanto enfrentamos esse desafio, alguns perigos ficam persistentemente à espreita,

    sem nos dar trégua. Um deles é especialmente insidioso: o perigo do maniqueísmo. Podemos

    3 Ver, por exemplo: HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005. (Coleção Geografia e Adjacências). 4 Sobre como os homens e mulheres produzem a paisagem natural através do olhar, ver: SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

  • 16

    ficar inclinados a pensar o processo de implantação do Projeto Baixo Açu como a expressão de

    uma dinâmica perversa que modificou dramaticamente o universo cristalizado de harmonia

    social da Várzea do Açu, inaugurando um tempo absolutamente novo, em contraste com um

    mundo de imagens estáveis que remontam ao seu passado colonial. Em suma: o mal, que toma

    sua forma concreta na modernização, ameaçando o bem, representado pelo mundo tradicional.

    Na verdade, somos quase seduzidos a pensar assim – o que se deve, em grande medida, às

    memórias produzidas sobre a vida antes da barragem, especialmente por aqueles sujeitos que,

    por viverem na faixa de inundação, amargaram o processo de remoção espacial que lhes foi

    imposto pouco antes da inauguração da represa.

    Mas há, também, o outro lado do dualismo maniqueísta: é o que compra o discurso

    dos técnicos responsáveis pelo projeto, como se um tempo muito longo de atraso tivesse sido

    abruptamente superado pela chegada da modernidade e do progresso. Também é uma

    inclinação sedutora, e muitos jornalistas da época cederam à sua tentação, celebrando com os

    técnicos a chegada do progresso. Hoje, sobretudo para os pesquisadores que procuram assumir

    o ponto de vista dos mais vulneráveis, o primeiro perigo parece exercer maior poder de atração.

    Com efeito, a narrativa maniqueísta está presente em alguns trabalhos acadêmicos recentes que,

    embora os seus autores o neguem formalmente, reproduzem o discurso da memória e, por isso,

    apresentam uma narrativa subordinada à lógica do “antes x depois” – o antes representando o

    melhor momento dessa dualidade temporal.

    Mas, afinal, quanto a esse perigo, alguém está inteiramente indene? Dificilmente. Por

    outro lado, podemos ao menos nos prevenir quando respeitamos, por exemplo, as considerações

    de autores que, como Milton Santos, produzem uma reflexão crítica sobre os espaços. Esse

    autor nos lembra que o espaço é constituído não apenas de elementos fixos, mas também de

    fluxos, e que mesmo os fixos não podem ser entendidos como fragmentos estanques da

    configuração espacial, uma vez que estão submetidos o tempo todo às ações dos fluxos que os

    modificam.5 Desse modo, o espaço está em permanente processo de redefinição, em constante

    movimento. Assim era também o Vale do Açu antes da barragem: tanto produzido quanto

    transformado pelo movimento da história, e, desde o início do século passado, pelo capitalismo

    que operava em escala global. Assim, espero que fique claro, ao longo dessa dissertação, que

    mudanças importantes antecederam a construção da barragem Armando Ribeiro, e que o Vale

    do Açu já era objeto de políticas do Estado (que se materializaram ou não) e de interesses do

    5 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. 4 ed. São Paulo: EDUSP, 2009.

  • 17

    capital que objetivaram modernizar o espaço, mesmo quando relações tradicionais de produção

    permaneceram (como ainda hoje permanecem).

    Ora, o movimento provocado pela ação externa, a do Estado, produziu efetivamente

    transformações dramáticas na vida social do Vale, mas não podemos, em função disso, insistir

    na projeção que a memória local frequentemente, e por motivos que somos capazes de

    compreender, elabora da vida anterior à construção da barragem, inflacionando as imagens

    positivas de um mundo imemorialmente edificado. Por outro lado, não podemos desconsiderar

    a violência do processo, porque, embora o movimento seja a marca da vida social, as mudanças

    tendem a se dar num dado ritmo que obedece à dinâmica própria de cada sociedade, e não

    precisam acontecer de maneira abrupta e brutal, como frequentemente se dá no contexto de

    governos autoritários, especialmente quando submetidos à lógica do grande capital – aspecto

    que também abordaremos na dissertação.

    Um evento me inclinou em direção a essa pesquisa: o deslocamento do núcleo urbano

    de São Rafael provocado pela construção da represa. Um evento cuja densidade histórica como

    que convida à reflexão espacial. No quadro geral do processo, a transferência dos moradores de

    São Rafael para um novo aparelhamento urbano, especialmente edificado para esse fim, e a

    submersão da antiga cidade sob as águas da represa, se destacam pelo tom traumático do

    acontecimento e pela riqueza da experiência e dos sentimentos que dele emergiram. A

    submersão de uma cidade, a construção de uma nova cidade e o deslocamento de uma

    comunidade urbana é um processo excepcional e, do ponto de vista espacial, extremamente

    instigante. Foi ele que me despertou o interesse pelo Vale do Açu. Mas dele me afastei ao longo

    da pesquisa. Se o episódio me estimulou a curiosidade e mobilizou os meus esforços de aprendiz

    de historiador, de pesquisador neófito, logo identifiquei um processo muito maior, em termos

    de limites temporais, temáticos e espaciais, que o episódio em si.

    Para compreender a mudança de São Rafael era necessário reconstruir uma dinâmica

    muito mais ampla, um processo que passa por muitos aspectos. Fui então forçado a ampliar a

    escala de observação: a contemplar os problemas do semiárido (especialmente as secas e as

    enchentes) e a emergência de uma “Questão Nordeste”; a acompanhar a modernização do

    campo e as políticas desenvolvimentistas direcionadas a esse recorte espacial tratado por muito

    tempo como o polo atrasado de uma economia em expansão, o Nordeste. E assim essa pesquisa

    se tornou algo diferente do que eu havia planejado – mas que bem pode ser a preparação para

    uma futura investida sobre São Rafael...

    Assim, acompanharemos nos capítulos que seguem as expressões de modernidade que

    justificaram a intervenção do Estado sobre o Vale do Açu: num primeiro momento para

  • 18

    combater a seca; depois, para combater o atraso econômico. É a intervenção pública vista sob

    o olhar do progresso. Na verdade, o Projeto Baixo Açu era apenas o fragmento de um amplo

    investimento que o regime civil-militar empreendeu com o objetivo de promover a

    modernização da produção agrícola, numa tendência que alguns autores chamaram de

    “modernização conservadora”. Para Guimarães, primeiro analista brasileiro a aplicar este

    termo, a “estratégia de modernização conservadora” é assim chamada porque “diferentemente

    da reforma agrária, tem por objetivo o crescimento da produção agropecuária mediante a

    renovação tecnológica, sem que seja tocada ou grandemente alterada a estrutura agrária”.6

    O processo de implantação da barragem é fruto de um dinâmica composta de diversas

    camadas que se interpenetram e que passam pela maneira como o governo federal atuou, por

    meio de políticas públicas, sobre o recorte espacial a que hoje denominamos “a região

    Nordeste” ao longo do século XX. Vamos procurar, no entanto, evitar a afirmação de que tenha

    havido uma sucessão linear de interesses, de ideias e de medidas – como etapas que emergem

    substituindo e obliterando as anteriores, num suposto movimento contínuo e progressivo.

    Devemos fugir, também, do outro extremo interpretativo que propõe uma superposição

    acumulativa de fatores, numa espécie de soma simples de camadas. Antes, a nossa interpretação

    é a de que o Projeto Baixo Açu expressou o cruzamento entre diversas maneiras de se olhar

    para os problemas da região, amalgamando compreensões diversas sobre a chamada “Questão

    Nordeste” e sobre as políticas públicas destinadas a enfrentá-la.

    Num primeiro momento, a ideia que prevaleceu foi a da seca como catalizadora dos

    demais problemas sociais, como o elemento motivador da precariedade socioeconômica da

    região. Resolver o problema da pobreza exigiria, de acordo com tal lógica, superar os obstáculos

    impostos pelo clima. Em um segundo momento, na passagem da década de 1950 para 1960,

    ocorreu uma inflexão a partir da qual os problemas regionais passaram a ser entendidos como

    um conjunto complexo de fatores relacionados à organização da produção e às condições do

    desenvolvimento regional. Nesse período, o governo federal criou a Superintendência para o

    Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) a fim de desenvolver ações planejadas para o

    tratamento do que se convencionou chamar de “Questão Nordeste”. Por fim, durante o regime

    militar, notadamente na década de 1970, as novas propostas para a região foram implementadas

    sob a lógica do “Brasil Grande”, das grandes obras, dos “projetos-impacto”, dinâmica que

    guardava elementos da compreensão anterior, baseada no planejamento, de modo que é difícil,

    do ponto de vista do processo que estamos analisando, estabelecer um recorte temporal rigoroso

    6 GUIMARÃES, A. P. O complexo agroindustrial. Revista Reforma Agrária, ano 7, n. 6, nov./dez. 1977.

  • 19

    entre as duas lógicas, a da SUDENE e a da ditadura civil/militar (exceto pelo aspecto social

    evidente na primeira e praticamente ausente na última, o que, como já afirmamos, resultou

    numa modernização conservadora).

    É preciso destacar também que o Projeto Baixo Açu está articulado não apenas a uma

    dimensão estritamente política, a uma lógica governamental que se traduziu nas medidas de

    intervenção do Estado em resposta à “Questão Nordeste”, mas também a um processo global

    de expansão do capitalismo. Nesse sentido, se é necessário ajustar o foco da pesquisa sobre a

    realidade específica, sobre a dimensão local, sobre a ribeira do Açu, a fim de que seja possível

    capturar alguma coisa da realidade social concreta, é também necessário estabelecermos as teias

    às quais os fatos locais estão relacionados. Significa que não se pode prescindir de uma

    articulação dos fatos com a lógica do Estado, o agente das transformações analisadas, mas,

    também, com a dinâmica do capital internacional, cuja força se impôs inclusive sobre o Estado

    e que estendeu o seu alcance sobre uma microrregião precária de um estado economicamente

    periférico.

    José de Souza Martins tem demonstrado, em sua vasta produção, que a reprodução do

    capital não se dá apenas nos grandes centros urbanos, mas que se projeta até os limites dos

    espaços, nas fronteiras – onde, no caso particular do Brasil, ocorre o deslocamento das frentes

    de expansão da sociedade nacional sobre territórios dos povos indígenas.7 Essas frentes de

    expansão, para José de Souza Martins, “tem sido, na verdade, um dos modos pelos quais se dá

    o processo de reprodução ampliada do capital, o da sua expansão territorial”.8 O grande desafio

    para nós é demonstrar como acontece essa reprodução do capital na particularidade de

    ambientes que uma certa interpretação supõe fora da lógica capitalista, ou mesmo contraditória

    a ela.

    Mas é necessário considerar também as contradições intrínsecas às modernidades e,

    especialmente, os problemas que o processo de implantação do Projeto Baixo Açu gerou, os

    medos que provocou, a violência que representou e as promessas que deixou de cumprir. Desde

    quando o Executivo Federal anunciou o projeto, diversos atores sociais se engajaram num

    movimento de resistência. Políticos, intelectuais, líderes comunitários e imprensa se articularam

    na denúncia de pontos que consideraram controversos no projeto. Suas vozes nos dão pistas

    para a leitura do processo a partir de uma lente diferente da lente do progresso. Ou, pelo menos,

    nos possibilitará uma leitura diferente da que fizeram os agentes da intervenção – os técnicos e

    os dirigentes políticos –, já que o ideal do progresso não estava inteiramente ausente nem

    7 Ver, por exemplo: MARTINS, José de Souza. Fronteiras. São Paulo: Contexto, 2016. 2 ed. 8 Id. p. 24.

  • 20

    mesmo do movimento de resistência à construção da barragem, conforme as fontes nos têm

    demonstrado. Sr. João do Sindicato (a quem entrevistamos), por exemplo, que à época de

    implantação da barragem já militava no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Rafael,

    afirmou que a resistência da qual havia participado não era propriamente contra a construção

    da barragem, mas à maneira como o processo estava sendo conduzido. Ele temia, sobretudo,

    que aquelas medidas viessem a beneficiar as multinacionais, e não os trabalhadores rurais.

    Os jornais Tribuna do Norte (RN) e Diário de Natal (RN) foram os que, de maneira

    mais sistemática, expuseram os argumentos de resistência ao projeto. Do Tribuna do Norte

    encontramos matérias como as seguintes: “Insatisfeitos com as indenizações, agricultores do

    Açu acionam a União”;9 “Baixo-Açu: os prós e os contras de um projeto que ameaça cidades e

    homens”;10 “Homem será afastado de sua terra, diz relatório sobre o Baixo-Açu”.11 Do Diário

    de Natal: “Desapropriações no Açu sem definição”;12 “Denúncias da barragem apuradas”;13

    “Ministro manda reestudar projeto para o Baixo Açu”.14 Analisaremos algumas dessas

    matérias ao longo da dissertação, mas esses títulos já nos mostram que havia uma série de

    problemas envolvendo o projeto, problemas que eram materializados em denúncias inscritas

    nas páginas da imprensa local na época da construção da represa.

    Em síntese, irei analisar o Vale do Açu, um recorte espacial ambíguo, liminar entre a

    água e a terra: a ribeira, a beira do rio. E o beiradeiro, esse sujeito também liminar, que vive na

    beira e da beira, que vai e vem sobre a várzea conforme as águas do rio avançam ou recuam; e

    que vai e vem sobre geografias mais alargadas, obedecendo o regime das chuvas: nas secas ele

    sai em demanda do sustento nos tabuleiros, nas salinas de Macau, nos centros urbanos próximos

    ou distantes, nas obras de engenharia de combate às secas, na Amazônia; chovendo, se pode,

    ele retorna ao chão que ele identifica como seu.

    Preferi usar o termo beiradeiro – empregado pela antropóloga Nazira Abib Vargas nas

    obras que produziu a respeito da Várzea do Açu – para me referir aos sujeitos da várzea, ao

    invés de varzeano – termo utilizado por Manoel Rodrigues de Melo no livro Várzea do Açu –

    ou mesmo de sertanejos, esse conceito genérico que não traduz bem a condição particular dos

    sujeitos sobre os quais eu escrevo. Beiradeiros é uma expressão que traduz bem a condição

    ambígua em que vive esse sertanejo particular que convive com o rio. Assim, o sujeito que vive

    9 INSATISFEITOS com as indenizações, agricultores do Açu acionam União. Tribuna do Norte (RN). 06, 07 jan. 1979. 10 BAIXO-AÇU. Tribuna do Norte (RN). 10 jan. 1979. 11 HOMEM será afastado de sua terra, diz relatório sobre o Baixo-Açu. Tribuna do Norte (RN). 21 fev. 1979. 12 DESAPROPRIAÇÕES no Açu sem definição. Diário do Natal (RN). 13 fev. 1974. 13 DENÚNCIAS da barragem apuradas. Diário do Natal (RN). 28 jan. 1983. 14 MINISTRO manda reestudar projeto para Baixo-Açu. Diário do Natal (RN). 03 fev. 1978.

  • 21

    na beira é um beiradeiro, e sua própria existência é limítrofe, espremida entre condições

    extremas relacionadas com o rio, conforme iremos atestar.

    Fiquei durante muito tempo às voltas com esse objeto, tentando definir para mim

    mesmo o que ele era e que abordagem eu estava fazendo. Essa dissertação é um trabalho de

    história ambiental, social, política, econômica? Difícil responder de maneira definitiva, já que

    todos esses elementos, e muitos outros, atravessam a narrativa que flui nos capítulos seguintes.

    De qualquer maneira, não posso me furtar de um aspecto que me parece central: trata-se de uma

    história do espaço.

    De todo modo, é preciso reforçar que há muita coisa imbricada nas políticas públicas

    de gestão das águas: há uma bacia hidrográfica e há o clima, fatores que talvez nos

    aproximassem de uma história ambiental; há a região Nordeste e todos os esquemas de

    mandonismo e clientelismo que se mobilizavam para capturar recursos do Executivo Federal

    para obras públicas em propriedades privadas – uma dimensão, portanto, do poder, em vários

    níveis; há o capital nacional, também o internacional, e as dinâmicas da economia local do Vale

    do Açu; há o território, a paisagem, a memória e o imaginário traduzidos em obras como a de

    Manoel Rodrigues de Melo, a respeito de quem trataremos adiante. Como eu poderia pensar

    tantas coisas ao mesmo tempo, articulando, como os fios de uma trama, cada um desses

    aspectos? Não poderia fazer isso sem correr o risco de ser superficial em tudo e, ao cabo,

    contribuir muito pouco para a reflexão histórica sobre o meu objeto de pesquisa. Decidi arriscar,

    por convicção de que de outra maneira não alcançaria os objetivos a que me propus.

    Quanto às fontes, elas também foram variadas e fragmentárias: matérias de jornal,

    relatórios técnicos, literatura local, panfletos de divulgação do DNOCS, discursos políticos,

    entrevistas orais. Testemunhos espaçados que eu espero ter reunido de tal maneira na presente

    narrativa que dela resulte uma imagem coerente do processo: uma imagem de cinema, não de

    fotografia, como me disse certa vez meu professor de Teoria. Encontrei esses testemunhos em

    documentos arquivados no DNOCS (tanto em Açu quanto em Fortaleza), no Núcleo Temático

    da Seca (UFRN), no Laboratório de Imagens do Departamento de História (UFRN), na

    Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Além, é claro, da própria comunidade de São

    Rafael, que visitei diversas vezes para uma série de entrevistas.

    O recorte temporal desse trabalho está fixado entre 1910, quando foi realizado o

    primeiro relatório técnico relativo ao Vale do Açu, a pedido da Inspetoria de Obras Contra as

    Secas (IOCS), por Roderic Crandall, e 1983, quando foi inaugurada a barragem Armando

    Ribeiro Gonçalves. Nesse recorte temporal, o trabalho analisa os grandes projetos hídricos para

    o Vale do Açu: o Projeto Oiticica e o Oiticica II (o chamado Projeto Baixo Açu).

  • 22

    Uma dificuldade com o recorte temporal, em seu limite final, se dá porque, quando

    mobilizamos a memória oral, percebemos que essa não conhece a linearidade cronológica dos

    historiadores, não caminha sempre para frente como os ponteiros do relógio. Avança, recua,

    retorna e torna a recuar, como Eclea Bosi demonstra no seu Memória e sociedade: “às vezes há

    deslizes na localização temporal de um acontecimento (…). Falhas de cronologia se dão

    também com acontecimentos extraordinários da infância e da juventude”. A mesma autora

    lembra que “uns e outros sofrem um processo de desfiguração, pois a memória grupal é feita

    de memórias individuais”.15 Uma moradora de São Rafael, por exemplo, nos compartilhou o

    sonho que cultiva, de que um dia as águas da barragem recuarão a tal ponto que será possível

    voltar a viver na velha São Rafael. Esse sonho nos revela a história de um tempo subjetivo, a

    história de um futuro na velha cidade. Revela que a mudança ainda afeta subjetivamente a

    parcela mais velha da população – e é possível que, pela memória, alcance também as gerações

    que nasceram na nova cidade. Desse modo, ao definirmos o ano da inauguração da barragem e

    da mudança da velha para a Nova São Rafael como limite temporal suficiente para as reflexões

    que pretendemos realizar, não negamos que o processo ainda não desenredou em definitivo.

    Além disso, o jogo com o tempo emerge o tempo todo na dissertação, porque é em nome

    do progresso, e, portanto, do futuro, que as medidas governamentais são justificadas pelos

    engenheiros. Da mesma maneira, é sob a invocação das imagens do atraso, e, portanto, do

    passado, que essas mesmas medidas ganham cores ainda mais vivas. O futuro se torna mais

    desejável, segundo a lógica do progresso, quando posto ao lado das imagens do atraso. Assim,

    a nossa dissertação terá como foco, além do aspecto espacial, essa dialética temporal, uma

    tensão dinâmica entre passado e futuro.

    A dissertação está estruturada em cinco capítulos. Nos primeiro e segundo, abordarei os

    aspectos naturais e econômicos, oferecendo um panorama da Várzea do Açu, tentando definir

    o quanto possível objeto de pesquisa, com os seus imprecisos limites. Com isso, pretendo

    explicar os problemas que justificaram as medidas de intervenção pública por meio de grandes

    projetos hídricos. No terceiro, analisarei as primeiras medidas propostas para o combate às

    secas e enchentes, com destaque para o projeto de Oiticica. No quarto capítulo, apresentarei o

    Projeto Baixo Açu, a partir de uma lógica desenvolvimentista que deu ocasião à criação da

    Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e a toda uma política de

    modernização agrícola com vistas ao desenvolvimento regional. Por fim, no quinto e último

    capítulo, demonstrarei algumas das contradições presentes no projeto, alguns aspectos que

    15 BOSI, E. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 3. ed. p. 419.

  • 23

    foram objeto de debate e a violência que estava implicada na construção da barragem Armando

    Ribeiro Gonçalves. Ao final, veremos como a irrigação no Vale do Açu constituiu uma miragem

    que justificou medidas autoritárias e beneficiou os interesses de determinados grupos, e não ao

    conjunto das comunidades instaladas na extensão do Baixo Vale.

  • 24

    Capítulo 1 - Nas dobras do Baixo-Açu Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso.

    Adágio português.

    No interior do Rio Grande do Norte se estende uma vasta área semiárida (entre 80% e

    90% do território estadual) que sofre de tempos em tempos com estiagens prolongadas. Nela,

    predominam solos rasos e pedregosos que exibem uma vegetação aberta de árvores e arbustos

    com raízes profundas, cujas folhas secam e caem nos períodos secos – da maior parte das

    espécies vegetais restam apenas galhos ressequidos e nus. Com efeito, quando o revés da seca

    o alcança, o que ocorre ciclicamente, tem-se em muitos pontos do semiárido norte-rio-

    grandense a lúgubre imagem de uma terra escaldante e inóspita, que um observador julgaria

    sem vida não fossem os mandacarus, as palmatórias-de-espinho, os cardeiros, os xiquexiques,

    as coroas de frade ou outras xerófilas que se multiplicam com alguma regularidade, suportando

    longos períodos de estiagem e pontilhando a paisagem de um verde que informa que a

    esterilidade não tiraniza por inteiro aquela terra.

    Diante dos primeiros sinais de precipitação, entretanto, a vegetação crestada reage e

    torna a verdejar. Adensa-se e ganha volume. Ressuscita, por assim dizer: formam-se prados,

    crescem as espécies de pequeno porte que despontam e arrelvam o chão, ladeando as plantas

    maiores que até então pareciam esgotadas, esqueletos de árvores espetados numa paisagem

    morna e triste – mas que sob as águas da chuva frondejam, se adornam de folhas e flores,

    alterando de maneira significativa a impressão anterior de predominante aspereza.16

    Duas das oito ecorrerigões do Domínio Morfoclimático das Caatingas atravessam o

    território do que hoje é o Rio Grande do Norte: a Depressão Sertaneja Setentrional e o Planalto

    da Borborema (ver mapa 1).17 O solo é seco e estéril na maior parte da extensão que compreende

    as duas ecorregiões. Mas nelas, como de resto em todo o Domínio das Caatingas, não se

    16 Sobre a caracterização do território e do ambiente físico do Rio Grande do Norte, consultamos: BARROS, Domingos. Aspectos norte-rio-grandenses. Natal: Sebo Vermelho, 2013. INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E MEIO AMBIENTE-IDEMA. Anuário estatístico do Rio Grande do Norte. Natal: Secretaria de Planejamento e Finança, 2010, v.37. ELIAS, Nunes. Geografia física do Rio Grande do Norte. Natal: Imagem gráfica, 2006. PFALTZGRAFF, Pedro Augusto dos Santos; TORRES, Fernanda Soares de Miranda (org.). Geodiversidade do estado do Rio Grande do Norte. Recife: CPRM, 2010. Sobre os Domínios Morfoclimáticos das Caatingas, ver: BERNARDES, Nilo. As caatingas. Estud. av. [online]. 1999, vol.13, n.36, p.69-78. GIULIETTI, A. M. et al. Diagnóstico da vegetação nativa do bioma Caatinga. In: SILVA, J. M. C.; TABARELLI, M.; FONSECA, M. T.; LINS, L. V. (Org.). Biodiversidade da caatinga: áreas e ações prioritárias para a conservação. Brasília, DF: Ministério do Meio Ambiente, Universidade Federal de Pernambuco, 2003. 17 Ver: VELLOSO, Agnes L.; SAMPAIO, Everardo V. S. B.; PAREYN, Frans G. C. (eds.). Ecorregiões propostas para o bioma caatinga. Recife: Associação Plantas do Nordeste; Instituto de Conservação Ambiental The Nature Conservancy do Brasil, 2002. Disponível em: http://www.mma.gov.br/estruturas/203/_arquivos/ecorregioes_site_203.pdf.

  • 25

    verificam apenas quadros de aridez. Há também, por exemplo, vales que sulcam o chão dessa

    geografia que, ao longo do século XX, uma dada literatura consagrou como sendo o espaço da

    miséria. Brejos de Vales úmidos18 onde grupos humanos fixaram morada, de início à beira dos

    rios, para dali se espalharem por toda área a que, posteriormente, os colonizadores portugueses

    denominaram de “sertão”. Assim, ao contrário do que sugere a imagem consagrada de um sertão

    absolutamente hostil à presença humana, o semiárido brasileiro acabou por se tornar a área

    semiárida mais povoada do mundo.19 Contribuíram para isso os vales húmidos e benfazejos que

    cortam o semiárido.

    Figura 1 mapa das ecorregiões da caatinga Fonte: seminário de planejamento ecorregional da caatinga

    18 Segundo classificação proposta por Aziz N. Ab’Sáber. Ver: AB'SABER, Aziz Nacib. Sertões e sertanejos: uma geografia humana sofrida. Estudos Avançados [online]. 1999, vol.13, n.36, pp.7-59. 19 Cf.: NORDESTE sertanejo: a região semi-árida mais povoada do mundo. Estudos Avançados, São Paulo, v. 13, n. 35 p.60-68, mai-ago 1999.

  • 26

    Centenas de pequenos veios intermitentes de água confluem para alimentar os grandes

    rios do Rio Grande do Norte, tecendo a extensa imagem reticular de regatos que se comunicam

    entre si e formam as principais bacias hidrográficas do estado. Depois da Borborema, até

    alcançar os limites com o estado do Ceará, o território praticamente se divide entre os dois vales

    mais importantes dos altos sertões potiguares, o Vale do Apodi e o Vale do Açu.20 São planícies

    de inundação, manchas férteis que quebram a aridez predominante das caatingas.

    Os principais rios desses vales, o Piranhas-Açu e o Apodi, “atravessam, em alguns

    pontos, várzeas planas e férteis e, em outros, extensos carnaubais, indo desaguar no mar junto

    às riquíssimas salinas de Macau e Mossoró”, afirmou Tavares de Lyra no início do século XX.21

    Nessa sentença, verificamos os três principais aspectos que, para o intelectual norte-rio-

    grandense, distinguiam os referidos vales: a boa qualidade de suas terras, o carnaubal abundante

    e as salinas, que, instaladas naqueles trechos onde os rios Piranhas-Açu e Apodi se encontram

    com o mar, viabilizaram uma atividade econômica que se destacara no cenário local desde

    quando o que hoje é o Rio Grande do Norte ainda era capitania.

    Na presente pesquisa, dedicaremos atenção ao Vale do Açu, que já foi qualificado

    como o celeiro do estado. Apesar de todos os municípios desse vale estarem inscritos numa

    zona semiárida, trata-se de uma área com “condições climáticas e de solos extremamente

    favoráveis ao aproveitamento agropecuário”.22

    Nos dois primeiros capítulos, analisaremos a tensão dinâmica entre uma área ao

    mesmo tempo fértil, com grande potencial para a produção agrícola, mas também sujeita às

    vicissitudes do clima – às secas e enchentes. Daremos destaque à dinâmica das forças naturais

    no Baixo Açu, direcionando o olhar ao período anterior à construção da Barragem Armando

    Ribeiro, porque consideramos tal procedimento fundamental para a compreensão do processo

    sobre o qual nos debruçaremos aqui. Afinal, foi em função das características do ambiente físico

    que os diversos agentes do Estado justificaram a aplicação de políticas de gestão das águas para

    essa área ao longo de todo o século XX. Ao mesmo tempo, tais políticas, consubstanciadas na

    construção da Barragem Armando Ribeiro, alteraram sensivelmente um dado padrão de

    organização social que se desenvolveu na relação dos grupos sociais do Baixo Açu com o meio

    ambiente local. Por outro lado, assumiremos que o Vale do Açu constitui uma espacialidade

    cujos traços geográficos não determinaram de modo inexorável a trajetória histórica das

    20 Cf. BARROS, Domingos. Aspectos norte-rio-grandenses. Natal: Sebo Vermelho, 2013. 21 LYRA, Tavares. O Rio Grande do Norte: 1911. Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do Commercio, 1912. p. 22. 22 GOMES DA SILVA, Aldenor. A parceria na agricultura irrigada no Baixo Açu. Natal: CCHLA, 1992. p. 14.

  • 27

    comunidades humanas que aí se estabeleceram, mas que uma série de fatores de ordem

    econômica, política e social se imbricaram, na particularidade da configuração desse recorte

    espacial, para explicar a trama histórica que vamos agora acompanhar.

    No presente capítulo, contemplaremos o panorama do Baixo Açu.

    1.1 O caminho das águas

    O Piranhas-Açu, principal rio da bacia hidrográfica que leva o mesmo nome, desce da

    Serra do Bongá, uma extensão da chapada do Araripe no estado da Paraíba, na fronteira com

    Pernambuco. Constitui-se o Piranhas-Açu a partir do encontro das águas dos rios do Peixe,

    Espinhara e Piancó. Segue o seu curso, ora por leitos apertados, ora por boqueirões amplos, até

    penetrar no Rio Grande do Norte pelo município de Jardim de Piranhas, quando recolhe as

    águas que convergem de todos os rios da bacia do Seridó. Suas águas alcançam a Serra de

    Santana, e, daí em diante, recebe a denominação de Rio Açu – até então, é conhecido apenas

    como rio Piranhas. Depois de perfazer aproximadamente 450 km desde sua origem, na Paraíba,

    e riscar de sul a norte o território norte-rio-grandense em demanda do oceano, fertilizando a

    várzea que alimenta numerosas comunidades ao longo de sua trajetória; de correr sinuoso

    margeando as bordas dos tabuleiros e serpentear pelo capinzal do baixo vale; de se ramificar

    em três afluentes (os rios Amargoso, Cavalos e Conchas), estendendo na altura de Macau o seu

    estuário – expira finalmente o rio Açu no Oceano Atlântico, a 5º de latitude sul. Ao todo, a

    Bacia Piranhas-Açu possui uma área de cerca de 44.000 km², sendo que 60% dela se encontra

    no estado da Paraíba e 40% no do Rio Grande do Norte. Esses 40% norte-rio-grandenses

    correspondem a algo em torno de 17.500 km², ou seja, aproximadamente um terço do território

    estadual!23

    Sob condições naturais, o Rio Piranhas-Açu é intermitente. “A declividade do terreno

    não lhes permittem que sejam correntes continuas”, afirmou Tavares de Lyra no início do século

    XX, referindo-se aos rios Açu e Apodi.24 Nesse mesmo período, o representante do Rio Grande

    do Norte na Exposição Nacional de 1908, Domingos Barros, declarou serem os “nossos rios

    sertanejos”, no curso superior, “leitos descarnados e seccos, espectros de rios onde só as areias

    brancas, despidas de argilla, os seixos rolados e a corrosão das margens attestam a passagem

    23 Sobre a bacia Piranhas-Açu, consultamos: SECRETARIA DE ESTADO DOS RECURSOS HÍDRICOS DO RIO GRANDE DO NORTE - SERHID. Plano Estadual de Recursos Hídricos: relatório de caracterização do regime hidrometeorológico das bacias. Natal, 1997. RIO, G. P. et. al. Nenhuma bacia é apenas uma bacia! Confins. n. 27, 2016. ELIAS, Nunes. Bacias Hidrográficas. In.: Geografia física do Rio Grande do Norte. Natal: Imagem gráfica, 2006. p. 74-86. MELO, Manoel Rodrigues de. Várzea do Açu: paisagens, tipos e costumes do vale do açu. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979. 3 ed. 24 LYRA, Tavares. Op. cit. p. 22.

  • 28

    das aguas” – apesar de serem “rios soberbos e torrenciais no inverno”.25 O Rio Açu, portanto,

    assim como outros do interior norte-rio-grandense, vivia sob o signo da irregularidade, de

    acordo com a descrição geográfica do início do século XX. Ao longo do século, entretanto, os

    executivos estadual e federal, algumas vezes em parceria com a iniciativa privada, praticaram

    uma série de intervenções cujo objetivo era, pretensamente, o de resolver essa condição, indo

    ao encontro da dinâmica de instabilidade que caracterizava o Rio Açu e que impunha uma série

    de dramas às comunidades ribeirinhas.

    Em 1961, os geógrafos Orlando Valverde e Myriam Mesquita publicaram um estudo

    sobre o Vale do Açu no qual afirmaram: “o regime do rio [Piranhas-Açu] era periódico, mas,

    graças à construção de numerosos grandes açudes no seu alto curso, bem como no seu afluente

    principal, o Seridó, o Baixo Açu mantém, hoje em dia, pelo menos um filete d’água, mesmo no

    auge da estiagem”.26 Assim, na segunda metade do século, depois do conjunto de intervenções

    públicas que se consubstanciaram na construção de pequenas, médias e grandes barragens, tanto

    no próprio rio Piranhas quanto em seus afluentes, a descrição física do Baixo Açu passa a

    apresentar um rio relativamente perenizado. Relativamente, porque, de acordo com a citação, o

    que restava do rio nos períodos de estiagem mais intensa não era mais do que um pequeno filete

    d’água. O que não era pouca coisa para as comunidades ribeirinhas que dependiam

    fundamentalmente do rio e das terras férteis de vazante para sobreviver – mas não significa uma

    regularização definitiva do regime das águas.

    A principal medida que possibilitou essa relativa regularização do Piranhas-Açu foi a

    construção do sistema combinado de barragens Coremas-Mãe D’água, na Paraíba, no alto curso

    do rio – obra que foi concluída em 1942. A efetiva perenização do baixo curso só seria

    alcançada após a construção da barragem Armando Ribeiro Gonçalves, em 1983. Assim, no

    período de que tratam os primeiros capítulos dessa pesquisa, a saber, os primeiros três quartos

    do século XX, o rio era intermitente – ou, depois de 1942, apenas relativamente regularizado.

    25 BARROS, Domingos. Aspectos norte-rio-grandenses: dados e informações. Natal, RN: Sebo Vermelho, 2013. p. 11, 13. Esse livreto de 31 páginas e mais umas tantas tabelas corresponde à conferência que Domingos Barros leu em dezembro de 1908 no salão do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, por ocasião da Exposição Nacional das Riquezas Econômicas do Brasil. Domingos Barros foi o delegado do Rio Grande do Norte na Exposição. 26 VALVERDE, Orlando; MESQUITA, Myriam G. C. Geografia Agrária do Baixo Açu. Revista brasileira de geografia. Rio de Janeiro: IBGE. Ano XXIII, nº 3, jul/set, 1961. p. 03.

  • 29

    Figura 2 mapa da bacia hidrográfica do Piranhas-Açu, com as divisões entre as sub-bacias

    Fonte: http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/10840/img-1.jpg

  • 30

    Figura 3 mapa da bacia do Rio Piranhas-Açu no Rio Grane do Norte

    Fonte: Projeto Marca D’água

    A partir do município de Jucurutu, o rio Piranhas-Açu contribui para definir um recorte

    territorial no interior do Rio Grande do Norte denominado Microrregião do Vale do Açu,

    pertencente à Mesorregião do Oeste Potiguar. As mesorregiões e microrregiões geográficas

    foram definidas pelo IBGE entre os anos de 1989 e 1990, quando ocorreu a última grande

    mudança na regionalização do território brasileiro. As microrregiões “foram definidas como

    partes das mesorregiões que apresentam especificidades quanto à organização do espaço”,

    segundo o documento publicado pelo próprio IBGE, que esclarece no mesmo texto o sentido

    dessas especificidades: “referem-se à estrutura de produção agropecuária, industrial,

    extrativismo mineral ou pesca. Essas estruturas de produção diferenciadas podem resultar da

  • 31

    presença de elementos do quadro natural ou de relações sociais e econômicas particulares”.27

    Trata-se, portanto, de uma classificação técnica, de caráter oficial, que enfeixa de acordo com

    determinados critérios – notadamente de ordem econômica –, um conjunto de municípios numa

    espacialidade maior, a microrregião, com o objetivo de orientar as políticas públicas para o

    planejamento e desenvolvimento regional.

    Mas o Vale do Açu não emerge unicamente, enquanto unidade espacial, por força de

    um ato oficial. É possível verificar uma identidade do Baixo Açu já consolidada desde pelo

    menos a primeira metade do século XX, quando o escritor Manoel Rodrigues de Melo publicou

    o livro Várzea do Açu. Essa obra, cuja primeira edição veio a lume em 1940, apresenta uma

    identidade varzeana amadurecida, que engloba o vale desde o município de Açu até Macau – o

    que, grosso modo, chamamos de Baixo Açu. Já havia, no período, uma imagem consagrada do

    Nordeste e do sertão nordestino. A literatura regionalista já definira uma maneira de narrar e

    descrever o Nordeste.28 O próprio Manoel Rodrigues de Melo foi o principal animador de uma

    revista intitulada Nordeste, periódico publicado em Natal que contou com a participação de

    intelectuais como Luiz da Câmara Cascudo, Felipe Guerra e Vingt-Um Rosado. Anos antes, a

    obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, firmara-se como um paradigma da descrição do sertão

    e do sertanejo. Não havia mais como os escritores fugirem dessa referência se pretendessem

    narrar o sertão. Mas Manoel Rodrigues de Melo, embora claramente identificado com esse

    paradigma literário instituído por Euclides da Cunha, narra um Nordeste e um sertão particular:

    a Várzea do Açu, fundando ele próprio um paradigma para os futuros escritores que desejassem

    versar sobre aquele vale.

    Assim, Manoel Rodrigues de Melo tece uma narrativa sobre o Vale que realça dados

    elementos da paisagem, dados símbolos, costumes e tipos sociais que, assim agenciados no

    discurso do intelectual, produzem uma imagem espacial mais ou menos homogenia – embora

    com fronteiras fluidas – que pretende dizer aos leitores o que é a Várzea do Açu, quais os seus

    traços distintivos, as suas características singulares, as suas idiossincrasias, tanto em termos

    geográficos quanto antropológicos. “Assim é o rio Açu, como assim também é o varziano, sem

    desfiguramento e sem retoque”, concluiu Manoel Rodrigues de Melo, depois de haver

    preenchido com alguns parágrafos um tópico que dedicara ao Rio Açu – expressão que resume

    27 IBGE. Divisão do Brasil em Mesorregiões e Microrregiões Geográficas. Vol I. Rio de Janeiro: Fundação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (FIBGE). Diretoria de Geociências (DGC) e Departamento de Geografia (DEGEO). Rio de Janeiro. 1990. p. 08. 28 Sobre a literatura regionalista e a construção da ideia de região Nordeste, Ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2011, 5. ed.

  • 32

    a ambição que animava o escritor, a de definir com clareza, “sem desfiguramento e sem

    retoque”, o seu objeto.

    Ora, essa identidade que o autor de Várzea do Açu produz é tributária não apenas dos

    aspectos físicos da geografia local, mas também de uma construção lenta da memória, pois em

    cada elemento da paisagem estão depositados fragmentos de memória que remontam a

    experiências culturais muito antigas.29 É tributária dos saberes populares, dos mitos e das

    experiências sociais que reverberaram na produção intelectual do escritor. É tributária,

    inclusive, daquela imagem do Nordeste que vinha sendo construída na literatura regionalista

    dos anos de 1930. O Vale do Açu de Manoel Rodrigues de Melo é claramente um fragmento

    dessa unidade regional mais abrangente, a qual o autor menciona algumas vezes nesse livro de

    1940: o Nordeste. Com isso, queremos sugerir que a identidade do Baixo Açu que aparece na

    obra de Manoel Rodrigues de Melo remonta a referências que são anteriores à publicação de

    Várzea do Açu.

    Não nos interessa aqui investigar as origens ou analisar o processo de construção dessa

    identidade espacial, senão apenas demonstrar que desde a primeira metade do século XX ela já

    estava firmada no imaginário local. Que já havia, portanto, uma ideia do Baixo Açu como uma

    unidade que, apesar das divisões internas entre municípios, apresentava características naturais

    e culturais comuns. Uma unidade que encontrava no Rio Piranhas-Açu, bem como na várzea a

    ele correspondente, o grande elemento de agregação. Era o rio, como veremos, que atravessava

    as experiências de todas as comunidades ribeirinhas e contribuía para definir um modo de vida

    comum a essas comunidades – pois ao rio e à Várzea correspondia também o varzeano, um tipo

    que, embora espalhado por diversos pontos do Baixo Açu, apresentava costumes em comum e

    se irmanava na convivência diária com o rio e na luta com a natureza, conforme a descrição de

    Manoel Rodrigues de Melo.

    Esse esclarecimento é importante, do ponto de vista metodológico, porque aqui

    trataremos do Vale do Açu como uma unidade que existia muito antes de sua constituição

    enquanto microrregião geográfica pelo IBGE, em 1990. A definição oficial, inclusive, não

    corresponde inteiramente à classificação não-oficial, que é difícil de capturar de maneira

    definitiva, devido à fluidez que lhe é própria. Apenas como exemplo, podemos lembrar que o

    município de Jucurutu, inscrito oficialmente na microrregião geográfica do Vale do Açu,

    apresenta uma identificação marcante com o universo simbólico do Seridó. Identificação que

    pode ser explicada em função tanto da proximidade geográfica quanto da construção, em

    29 Sobre isso, ver: SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

  • 33

    meados do século XX, da rodovia que liga Jucurutu a Currais Novos, permitindo uma

    comunicação importante entre aquele município e o recorte definido como o Seridó. Por isso,

    na antiga classificação do IBGE, de 1970, o município de Jucurutu havia sido inscrito na

    Microrregião Homogênea (que difere da atual divisão em microrregiões geográficas) do Seridó

    Potiguar, e no mapa das regiões do Plano Plurianual da Secretaria de Planejamento e Finanças

    do Rio Grande do Norte de 2008 a 2011, o mesmo município pertence à Região de

    Desenvolvimento do Seridó. Podemos lembrar também, seguindo essa mesma linha de

    raciocínio, que o município de Macau, embora não esteja incluído oficialmente no Vale do Açu,

    pertence claramente, como o texto de Manoel Rodrigues de Melo nos indica, ao universo

    simbólico do Vale, ao mesmo tempo em que apresenta uma identidade que se dobra em direção

    ao mar – mas a classificação oficial não é capaz de dar conta dessas múltiplas identidades que

    atravessam os espaços.

    Feitas essas considerações, voltemos a acompanhar o Rio Piranhas-Açu em seu curso

    desde a Serra do Bongá. Como vimos, ele vem descendo do alto sertão paraibano em demanda

    do mar, penetra no território do Rio Grande do Norte e chega a Jucurutu. Avança pelo município

    de São Rafael, passando em seguida por Itajá, Açu, Ipanguaçu, Carnaubais, Alto do Rodrigues,

    Pendências, Porto do Mangue. São esses os municípios que compõem hoje a Microrregião do

    Vale do Açu – de acordo com a classificação oficial (ver mapa 2). Ao longo dessa viagem, o

    rio se alarga em determinados trechos, recebendo aqui e ali as águas que descem de outros veios

    menores ou de lagoas que transbordam nas cheias, especialmente as lagoas do Piató, Ponta

    Grande e Queimado; mas também ele mesmo se espraia em diversos regatos que escapam do

    curso principal, cortando o Vale em muitas direções, alimentando numerosas lagoas periódicas

    de menor dimensão e fertilizando os solos da várzea com os nutrientes que transporta.30

    Acompanhando o rio pelo interior do Baixo Açu, contemplaremos a paisagem da várzea.

    30 Ver: ELIAS, Nunes. Bacias Hidrográficas. In.: Geografia física do Rio Grande do Norte. Natal: Imagem gráfica, 2006. p. 74-86.

  • 34

    Figura 4 mapa da divisão municipal do Vale do Açu - RN

    Fonte: elaboração pessoal a partir do programa QGIS e da base de dados do IBGE

    1.1.1. “Estas árvores são úteis por muitos lados”

    Seguindo o traçado que o rio descreve em seu curso, é possível contemplar a

    predominância, no interior do baixo vale, da mata de galeria, particularmente a carnaubeira,

    que participa do complexo ambiental local como recicladora de nutrientes e controladora da

    erosão eólica.31 As florestas de carnaubal se estendem por todo o Baixo Açu em solos agrícolas

    de alta fertilidade. É uma “floresta sem galhos, sem troncos tortuosos, sem o emmaranhado das

    lianas e dos cipós e sem a sombra religiosa e espessa das mattas virgens. É o império da linha

    reta”, descreveu Domingos Barros em 1908, referindo-se a essa espécie de palmeira que

    participava tão intensamente da paisagem do Vale que chegava a dar a impressão de uma

    floresta.32

    A abundância de carnaubeiras no Vale do Açu concorreu para o estabelecimento de

    uma atividade econômica que, sendo praticada desde pelo menos o século XIX, assumiu uma

    importância significativa ao longo do XX, notadamente na década de 1940: a produção da cera

    31 Ver: OLIVEIRA, Maurício. Os solos e o ambiente agrícola no Sistema Piranhas-Açu, RN. Mossoró: ESAM/FGD, 1988. (Col. Mossoroense, 380). 32 BARROS, Domingos. Op. cit. p. 27.

  • 35

    de carnaúba. Em 1809, o padre e botânico Manuel de Arruda Câmara, escrevendo uma carta ao

    governador geral de Pernambuco, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, afirmou:

    o produto da cêra se extrai das fôlhas novas; cortadas estas e sêcas desapega-se da sua superfície em abundância um pó alvo, que, pôsto ao lume, se derrete em cêra branca, com o mesmo cheiro e tôdas as outras propriedades da cêra, com a diferença, porém, de ser mais dura e quebradiça; mas êste defeito corrige-se, misturando-a com duas partes de cêra branca do comércio; nesta proporção se formam velas perfeitas e que dão boa luz; mas deve o cerieiro alisá-las com mais presteza do que as de cêra ordinária.33

    Nesse trecho, Manoel de Arruda Câmara aborda o principal uso que, do ponto de vista

    comercial, os ribeirinhos davam então à carnaúba: a extração do pó cerífero para a fabricação

    da vela. E explica os detalhes do processo artesanal através do qual se retirava da palmeira uma

    cera de boa qualidade, o que exigia certa presteza do artesão. Assim, um saber se desenvolveu

    entre os beiradeiros do Baixo Açu, a partir de uma atividade industrial inicialmente rústica, mas

    que viria a se tornar objeto do interesse do capital internacional no século XX e chegaria a

    viabilizar um comércio da maior importância para o Vale do Açu.

    No Rio Grande do Norte, a produção da cera assumira certo destaque econômico já no

    decorrer do século XIX. No relatório de 1849, o Presidente da então Província do Rio Grande

    do Norte afirmou que a carnaúba e sua cera “constituem um dos principaes ramos da produção

    da Província”. E identificou no município de Açu o principal centro de produção, onde

    “arrendão-se extensos carnaubaes para o corte dos palmitos, que, seccando, ou passados em

    agoa quente, dão a cera empregada nas velas compostas”.34 Ou seja, desde a segunda metade

    do século XIX a cera já cumpria um papel relevante na economia local e até provincial. No

    início do XX, o Mapa Agrícola do Estado do Rio Grande do Norte, organizado pela Sociedade

    Nacional de Agricultura (Sessão Geografia Agrícola) para a Exposição Nacional de 1908,

    registra a carnaúba como um dos destaques da produção econômica que se dava às margens do

    Rio Açu.35

    A relevância da carnaúba na economia estadual se tornaria ainda mais significativa

    depois da Primeira Grande Guerra, com o desenvolvimento das indústrias química e elétrica,

    quando a cera passa receber usos mais variados, sendo empregada na fabricação de tintas,

    33 Citado por: CASCUDO, Luís da Câmara. A carnaúba. Revista brasileira de geografia. Rio de Janeiro: IBGE. v. 26, nº 2, abr/jun, 1964. p. 19. 34 TAQUES, Benevenuto Augusto Magalhães. Falla dirigida á Assembléa Legislativa da provincia do Rio Grande do Norte. Pernambuco, Typ. de M.F. de Faria, 1849. p. 17. 35 BRANCO, José Moreira Brandão Castelo. O Rio Grande do Norte na cartografia dos séculos XVIII a XX. José Moreira Brandão Castelo Branco. Revista trimestral do Instituto histórico e geográfico brasileiro, n. 226, jan-mar 1955. p. 169-230. A citação é da p. 219.

  • 36

    vernizes, graxas, lubrificantes, isolantes, cosméticos, material fotográfico e fonográfico.36 A

    partir de então, o Vale do Açu passou a se destacar como grande produtor e exportador da cera,

    contribuindo sistematicamente para que o Rio Grande do Norte figurasse na maior parte do

    século entre os maiores exportadores brasileiros desse produto, ao lado do Ceará e do Piauí.37

    O auge dessa atividade se deu na década de 1940, com as demandas que surgiram no contexto

    da Segunda Guerra Mundial.

    Mas além da destinação estritamente comercial, a carnaúba se prestava a uma série de

    outras atividades de menor valor financeiro, mas de profundo significado cultural para as

    comunidades ribeirinhas. Em A terra e o homem no Nordeste (1 ed. de 1963), Manuel Correia

    de Andrade chegou a afirmar que nos estados do Rio Grande do Norte e Ceará havia um

    complexo cultural relacionado à carnaúba tão significativo que era possível falar numa

    verdadeira “civilização da carnaúba” (semelhante ao que se convencionou chamar de

    civilização do açúcar ou civilização do algodão).38 Com efeito, em torno dessa palmeira se

    formou todo um universo de saberes, de influências econômicas, antropológicas e históricas na

    Várzea do Açu.

    Fernand Braudel, autor de um livro para jovens secundaristas na França intitulado

    Gramática das civilizações, demonstra que a palavra civilização, em uma acepção de

    excelência, de superioridade cultural, própria do século XVIII, deixou de fazer sentido para a

    língua moderna, de modo que, no século XX, quando Manoel Correia de Andrade escreveu o

    referido livro, o mais comum era que se usasse a expressão no plural: civilizações, ou seja, um

    “conjunto de características que a vida coletiva de um grupo ou de uma época apresenta”.39 Um

    pouco adiante, no mesmo texto, Braudel desenvolve a ideia de que as civilizações são espaços

    – terras, relevos, climas, vegetações – aos quais os homens, em sociedade, dão respostas,

    desenvolvendo culturas que apresentam dados traços característicos. É nesse sentido que o autor

    de A terra e o homem do Nordeste fala em “civilização da carnaúba”, referindo-se aos vales

    úmidos do Rio Grande do Norte e Ceará. Não cabe aqui contestar ou endossar essa

    interpretação, antes somente demonstrar que a carnaúba contribuiu para definir não apenas uma

    economia, mas também um conjunto de práticas culturais – a tal ponto que um pesquisador

    respeitado chegou a identificar ali uma civilização.

    36 VARGAS, Nazira Abib. Histórias que o povo conta. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1987. p. 126. 37 Ver: ALBANO, Gleydson Pinheiro. Novas modalidades de produção no semiárido nordestino: a passagem do extrativismo da carnaúba par a monocultura de banana. 12º encuentro de geógrafos de América Latina, 2009, Montevideo. 38 ANDRADE, Manoel Correia de. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. São Paulo: Atlas, 1986. 5 ed. 39 BRAUDEL, Fernand. Gramática das civilizações. São Paulo: Marins Fontes, 2004, 3 ed. p. 28.

  • 37

    O padre Manoel de Arruda Câmara, em outro trecho daquela carta de 1809, afirmara

    que “estas árvores são úteis por muitos lados”. De acordo com ele, as carnaúbas eram úteis

    porque alimentavam homens e animais, uma vez que delas se extraía uma farinha que servia

    “aos povos do sertão em tempos famintos”. Além disso, de quase tudo na árvore os ribeirinhos

    aproveitavam para a arquitetura local: “as mesmas fôlhas servem para teto das casas rusticas,

    onde resistem às injúrias do tempo por espaço de 15 a 20 anos, sem necessitarem de reparação”

    e “a madeira, que é muito direta e comprida, (…) serve de traves para as casas, para currais e

    cercados”.40 Em 1908, Domingos de Barros também afirmou sobre a carnaúba que “não há

    planta mais útil e mais prestimosa”, e que “só a carnaúba faz toda a casa do sertanejo”.41 Opinião

    que coincide, portanto, com a do padre Manoel de Arruda, exposta cem anos antes.

    Temos nessas declarações os indícios de que a adaptação das comunidades ribeirinhas

    ao ambiente físico onde estavam fixadas passava fundamentalmente pela carnaúba. Da

    palmeira, os beiradeiros aprenderam a extrair alimento para si e para os animais, sobretudo em

    tempos de adversidade climática; a produzir a cera que convertiam em vela para o uso cotidiano

    e para a geração de renda, por meio do comércio tanto da matéria-prima quanto do produto; a

    produzir um artesanato com a palha – esteiras, urupemas, vassouras, sacos, bolsas e chapéus –

    que também se prestava ao uso cotidiano e ao comércio nas feiras locais, atividade que

    empregava especialmente as mulheres e crianças pobres; a construir suas casas de taipa, o que

    faziam juntando barro ao talo da folha da palmeira, cuja madeira delgada e resistente servia

    ainda de esteio para sustentação da estrutura; a fabricar os móveis e utensílios domésticos, como

    prateleiras, mesas, bancos e armários;42 a usar a palha – quando esta não era empregada no

    artesanato – para cobrir o solo, prática que evitava a perda de umidade por evaporação, fornecia

    matéria orgânica, garantia proteção contra a erosão e inibia o crescimento da vegetação natural,

    nociva aos roçados.43

    Temos, naquelas citações de Manoel de A. Câmara e Domingos Barros, distantes um

    século uma da outra, os indicativos de uma certa continuidade nos usos que os beiradeiros

    davam à palmeira. Usos que emergiram, sobretudo, como resposta às condições do meio

    ambiente, como forma de integração dos grupos sociais ao seu entorno, como mecanismos de

    adaptação àquela geografia específica: a várzea. Usos que, ademais, persistiram como prática

    40 Citado por: CASCUDO, Luís da Câmara. A carnaúba. Revista brasileira de geografia. Rio de Janeiro: IBGE. v. 26, nº 2, abr/jun, 1964. p. 19. 41 BARROS, Domingos. Op. cit. p. 28. 42 Id. Ibid. 43 ANDRADE, Manoel Correia de. Op. cit. p. 175.

  • 38

    cultural ao longo do século XX, a despeito dos interesses capitalistas que se voltaram para a

    cera.

    No Baixo Açu, o cultivo e usos da carnaúba sofreram uma fissura significativa após a

    Primeira Guerra Mundial. Os imperativos do mercado internacional condicionaram uma série

    de alterações a