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DADOSDECOPYRIGHT

Sobreaobra:

ApresenteobraédisponibilizadapelaequipeLeLivroseseusdiversosparceiros,comoobjetivodeoferecerconteúdoparausoparcialempesquisaseestudosacadêmicos,bemcomoosimplestestedaqualidadedaobra,comofimexclusivodecomprafutura.

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Éexpressamenteproibidaetotalmenterepudiávelavenda,aluguel,ouquaisquerusocomercialdopresenteconteúdo

Sobrenós:

OLeLivroseseusparceirosdisponibilizamconteúdodedominiopublicoepropriedadeintelectualdeformatotalmentegratuita,poracreditarqueoconhecimentoeaeducaçãodevemseracessíveiselivresatodaequalquerpessoa.Vocêpodeencontrarmaisobrasemnossosite:LeLivros.siteouemqualquerumdossitesparceirosapresentadosnestelink.

"Quandoomundoestiverunidonabuscadoconhecimento,enãomais

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lutandopordinheiroepoder,entãonossasociedadepoderáenfimevoluira

umnovonível."

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Paraminhamãe,comamor.

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SUMÁRIO

ParapularoSumário,cliqueaqui.

PARTEUM

Capítulo1-Gelo

Capítulo2-Anetadabruxa

Capítulo3-Omendigoeoestranho

Capítulo 4 - O grande príncipe deMuscovy

Capítulo 5 -O homem santo da colinaMakovets

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Capítulo6-Demônios

Capítulo7-Oencontronomercado

Capítulo 8 - A palavra de PyotrVladimirovich

Capítulo9-Aloucanaigreja

Capítulo10-AprincesadeSerpukhov

Capítulo11-Domovoi

PARTEDOIS

Capítulo 12 - O padre de cabelosdourados

Capítulo13-Lobos

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Capítulo14-Ocamundongoeadonzela

Capítulo 15 - Eles só vêm buscar adonzelaselvagem

Capítulo16-Odiaboàluzdevela

Capítulo17-Umcavalochamadofogo

Capítulo18-Umhóspedeparaofimdoano

Capítulo19-Pesadelos

Capítulo 20 - Um presente de umestranho

Capítulo21-Acriançacomcoraçãode

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pedra

Capítulo22-Campânulasbrancas

PARTETRÊS

Capítulo23-Acasaquenãoestavalá

Capítulo24-Viodesejodoseucoração

Capítulo 25 - O passarinho que amouumadonzela

Capítulo26-Nodegelo

Capítulo27-Oursodoinverno

Capítulo28-Nofimenocomeço

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NOTADAAUTORA

GLOSSÁRIO

AGRADECIMENTOS

CRÉDITOS

AAUTORA

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Nacostajuntoaomar,existeumcarvalhoverdejante,sobreele,acha-seumacorrentedourada;Diaenoite,umgatoeruditodávoltascomacorrente;quandovaiparaadireita,cantaumacanção,quandovaiparaaesquerda,contaumahistória.

–A.S.PUSHKIN

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PARTEUM

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1

GELO

O INVERNO SEGUIA AVANÇADO AO

NORTEDERUS’,OARESTAVAsoturno,comumaumidadequenãochegavaa serchuva,nemneve.Apaisagemexuberantede fevereiro tinha cedido para o cinzentosombrio de março, e toda a família dePyotr Vladimirovich fungava com aumidade, emagrecida pelo jejum de seissemanas de pão preto e repolho

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fermentado. Mas ninguém estavapreocupadocomfrieirasnemcomonarizescorrendo, nem mesmo ansiava pormingau e carne assada, porque Dunya iacontarumahistória.Naquela noite, a velha senhora sentou-

senomelhorlugarparafalar:nacozinha,no banco de madeira ao lado do forno,uma construção maciça, feita de barrocozido, mais alta do que um homem egrande o bastante para comportarfacilmente, em seu interior, os quatrofilhos de Pyotr Vladimirovich. A partesuperior, reta, funcionava como umaplataforma de dormir; seu interior, alémde cozinhar os alimentos, esquentava aágua e fazia banhos de vapor para quem

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estivessedoente.–Quehistóriavocêsqueremouviresta

noite?–perguntouDunya,satisfeitacomocalor às suas costas. Os filhos de Pyotrestavam à sua frente, empoleirados embanquinhos.Todoselesamavamhistórias,até o segundo filho, Sasha, uma criançaintencionalmente devota que teriainsistido, caso lhe tivessem perguntado,quepreferiapassaranoiterezando.Masaigreja estava gelada, o granizo não davatrégua. Sasha tinha posto a cabeça paraforadaporta,receberaumalufadadeáguanorostoe,vencido, se recolheraparaumbanquinho um tanto afastado dos outros,ostentando uma expressão de indiferençapiedosa.

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OsoutrossepuseramagritaraoouviraperguntadeDunya:–Finist,oFalcão!–IvãeoLoboCinza!–PássarodeFogo!PássarodeFogo!O pequeno Alyosha subiu em seu

banquinho e acenou os braços, tentandoser ouvido em meio aos irmãos maisvelhos;comabarulheira,omastifealemãodePyotrlevantouacabeçorramarcadaporcicatrizes.Antes que Dunya pudesse responder,

porém, a porta de entrada abriu-se comestardalhaço, trazendo o bramido datempestade lá de fora. Uma mulherapareceu na soleira, sacudindo o longocabelomolhado.Seurostoreluziadefrio,e

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ela estava ainda mais magra do que osfilhos. O fogo projetou sombras nasreentrâncias das suas faces, da garganta edas têmporas. Seus olhos encovadosrefletirama luzdo fogo.Ela se inclinouetomou Alyosha nos braços. A criançagritoudeprazer:–Mamãe!–exclamou.–Matyushka!Marina Ivanovna largou-se em seu

banquinho,levando-oparamaispertodaschamas.Alyosha, ainda agarradoem seusbraços, passou os punhos ao redor datrança dela. Ela tremia, embora isso nãoficasseevidentesobseustrajespesados.– Rezem para que a ovelha miserável

consiga parir esta noite. Caso contrário,receioquenuncamaisvoltaremosavero

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seupai.Estácontandohistórias,Dunya?– Se conseguirmos ficar em silêncio –

disseavelhasenhoraacidamente.Temposatrás,ela tambémtinhasidoamade leitedeMarina.–Euqueroumahistória–falouMarina

namesmahora.Seutomeraleve,masosolhosestavamsombrios.Dunyadirigiu-lheum olhar penetrante. Lá fora, o ventoarfava. – Conte-nos a história de Gelo,Dunyashka. Conte pra gente sobre odemônio-do-gelo, o rei do inverno,Karachun. Esta noite ele está ao largo,furiosocomodegelo.Dunyahesitou.Ascriançasmaisvelhas

entreolharam-se.Emrusso,Gelochamava-seMorozko, o demônio do inverno,mas

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houve época em que era chamado deKarachun, o deus-da-morte. Sob essenome, era rei do soturno solstício deinverno, vindo em busca de criançasmalcriadas e as congelando à noite. Erauma palavra demau agouro e dava azarpronunciá-la enquanto ele ainda tinha aterra em seu poder. Marina segurava ofilhobemapertado.Alyosharetorceu-seepuxouatrançadamãe.– Muito bem – disse Dunya, após um

momento de hesitação. – Contarei ahistóriadeMorozko,dasuabondadeedasua crueldade. – Ela colocou uma leveênfasenessenome,onomeseguroquenãopoderialhestrazermásorte.Marina sorriu com sarcasmo e se

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desvencilhou dasmãos do filho.Nenhumdosoutrosfezqualquerprotesto,emboraahistóriadeGelo fosseumcontoantigo, jáouvidoportodoseles inúmerasvezes.Navoz profunda e precisa de Dunya, nãodeixariadeencantar.– Em certo principado… – começou

Dunya. Fez uma pausa e fixou um olharseveroemAlyosha,queguinchavafeitoummorcego, balançando-se nos braços damãe.–Shhh–disseMarina,elhedevolveua

pontadatrançaparaqueelebrincasse.–Emcertoprincipado–repetiuavelha

senhora com dignidade –, morava umcamponêsquetinhaumalindafilha.– Como ela se chamava? – balbuciou

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Alyosha.Ele játinhaidadesuficienteparacomprovar a autenticidade dos contos defadas buscando detalhes precisos com osnarradores.– Seu nome era Marfa – disse a velha

senhora. – Pequena Marfa. E era lindacomoaauroraemjunho,alémdecorajosaedeterumbomcoração.MasMarfanãotinha mãe. Sua mãe morrera quando eladava os primeiros passos. Embora o paitivesse voltado a se casar, Marfacontinuavatãodesprovidademãequantoqualquerórfão,porqueapesarde,segundocontam,suamadrastasermuitobela,fazerbolos deliciosos, tecer lindos tecidos eprepararforteskvas,tinhaocoraçãofrioecruel. Odiava Marfa por causa da sua

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belezaebondade, favorecendoemtudoaprópria filha, feia e preguiçosa.Inicialmente,amulhertentouenfearMarfaaos poucos, incumbindo-a de todo otrabalho mais pesado da casa, de modoque suas mãos ficassem retorcidas, ascostas curvadas e o rosto vincado. MasMarfa era uma menina forte e talvezpossuísseumpoucodemagiaporquefaziatodootrabalhosemreclamar,tornando-secada vez mais formosa à medida que osanossepassavam.–Então,amadrasta…–vendoAlyosha

abrir a boca,Dunya acrescentou–que sechamava Darya Nikolaevna, percebendoque não conseguiria enfear Marfa, nemembrutecê-la,planejoulivrar-sedamenina

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deumavezportodas.“Assim, certo dia, em pleno inverno,

Darya virou-se para o marido e disse:‘Marido, acho que está na hora da nossaMarfa se casar.’ Marfa estava na izbafazendo panquecas. Olhou para suamadrasta com incrível alegria, uma vezqueamulherjamaisdemonstrarainteressepor ela, exceto para encontrar defeitos.Mas seu prazer logo se transformou emdesânimo.‘Eeutenhoomaridoexatoparaela. Coloque-a no trenó e a leve para afloresta.Deveremoscasá-lacomMorozko,osenhordoinverno.Existiriadonzelaquepudesseexigirumnoivomaiseleganteoumais rico? Ora, ele é o senhor da nevebranca, dos abetos negros e do gelo

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prateado!’“O marido, cujo nome era Boris

Borisovich, olhou com horror para amulher.Afinal, amava a filha, e o abraçogeladododeusdoinvernonãoserveparadonzelasmortais.MastalvezDaryativesseumtantodemagiaprópria,umavezqueomarido não conseguia lhe recusar nada.Aos prantos, colocou a filha no trenó,levou-aparaasprofundezasdaflorestaeadeixouali,aospésdeumabeto.“A menina ficou um bom tempo lá

sentada, sozinha, tiritando, tremendo,cada vezmais gelada. Por fim, ouviuumforte ruído e estalos.Levantouosolhos eencarou o próprio Gelo vindo em suadireção, saltando por entre as árvores e

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estalandoosdedos.”–Mascomoeleera?–Olgaquissaber.Dunyadeudeombros.–Cadaumdizumacoisa.Algunsdizem

que ele não passa de uma brisa gelada ecrepitante, sussurrando por entre osabetos.Outrosdizemqueéumvelhonumtrenó,deolhosbrilhantesemãosfrias.Háquem diga que ele é como um guerreiroem seu esplendor, mas todo vestido debrancocomarmasdegelo.Ninguémsabe.Mas alguma coisa chegou até Marfaenquanto ela estava ali sentada, umalufadacongelantefustigouaoredordoseurosto, e ela ficou ainda mais gelada. Eentão,Gelofaloucomelanavozdoventoinvernaledanevequecaía:

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“‘Você está bem quentinha, minhalinda?’“Marfa era uma menina bem-educada,

que enfrentava seus problemas semreclamar, então respondeu: ‘Estou,obrigada, caro lorde Gelo.’ Com isso, odemônio riu, e enquanto ria, o ventosoprou com mais força do que nunca.Todas as árvores gemeram sobre suascabeças. Gelo tornou a perguntar: ‘Eagora?Bemquentinha,meubem?’Emboramal pudesse falar de tanto frio, Marfavoltou a responder: ‘Quentinha, estouquentinha, obrigada.’ Então, umatempestade se precipitou sobre eles; oventouivavaerangiaosdentesatéqueapobreMarfatevecertezadequearrancaria

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apeledosseusossos.MasagoraGelonãoestava rindo, e quando perguntou pelaterceira vez: ‘Quentinha,minha querida?’Ela respondeu, forçando as palavras porentre os lábios congelados, enquanto umnegrumedançavaà frentedos seusolhos:‘Sim… quentinha. Estou quentinha, meulordeGelo.’“Comisso,eleseencheudeadmiração

pela sua coragem e se apiedou do seuinfortúnio. Envolveu-a em seu própriomanto de brocado azul e a estendeu emseu trenó. Ao sair da floresta e deixar amenina juntoàportadasuaprópriacasa,elaaindaestavaembrulhadanomagníficomanto,trazendo,alémdisso,umbaúcheiode adereços de ouro, prata e pedras

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preciosas.Aoverameninanovamente,opaideMarfachoroudealegria,masDaryae sua filha ficaram furiosas ao vê-la tãoricamente trajada e radiante, com umtesouroaoseulado.Então,Daryavirou-separa o marido e disse: ‘Marido, rápido!Leve minha filha Liza no seu trenó. Ospresentes que Gelo deu para Marfa sãoinsignificantescomparadosaoqueeledaráàminhafilha!’“Embora no íntimo Boris protestasse

contratodaessaloucura,levouLizaemseutrenó.Ameninaestavacomseutrajemaiselegante, envolta por pesados mantos depele.Opailevou-aparaofundodaflorestaeadeixoudebaixodomesmoabeto.Liza,por sua vez, ficou um longo tempo

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sentada. Apesar das peles, começava asentirmuitofrioquando,finalmente,Gelochegoupor entre as árvores, estalandoosdedoserindoconsigomesmo.DançouatéchegaraLizaerespirounoseurosto,eseuhálito era o vento vindo do norte quecongela a pele no osso. Ele sorriu eperguntou:‘Estáquentinha,querida?’Liza,tremendo,respondeu:‘Claroquenão,seuidiota! Não dá pra ver que estou quasemortadefrio?’“Oventosoproucommaisforçadoque

nunca,uivandoaoredordelesemgrandesedilaceranteslufadas.Porsobreoalarido,ele perguntou: ‘E agora?Bemquentinha?’A menina gritou em resposta: ‘Mas não,imbecil!Estoucongelada!Nuncanaminha

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vidasentitantofrio!EstouesperandomeunoivoGelo,masoestúpidonãoveio.’Aoouvirisso,osolhosdeGeloficaramdurose determinados. Colocou os dedos nagargantadamoça,inclinou-separaafrentee sussurrou em seu ouvido: ‘Quentinhaagora, minha pomba?’ Mas ela não pôderesponder porque morrera ao ser tocadaporele,ejaziacongeladananeve.“Emcasa,Daryaesperavaandandodelá

para cá. ‘Nomínimo dois baús de ouro’,dizia,esfregandoasmãos.‘Umvestidodenoivadeveludoacetinadoecobertoresdeenxovaldamelhorlã.’Omaridonãodizianada. As sombras começaram a seestender, e aindanãohavia sinalda filha.Porfim,Daryamandouomaridobuscara

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menina, advertindo-lhe que tomassecuidado comos baús do tesouro. Só que,quando Boris chegou à árvore em quetinhadeixadoa filhanaquelamanhã,nãohavia tesouro algum, apenas a própriagarotamortananeve.“Com o coração pesado, o homem

tomou-anosbraçosealevoudevoltaparacasa.Amãesaiucorrendopararecebê-los.‘Liza’, gritou. ‘Meu amor!’ Então, viu ocadáver da filha encolhido no fundo dotrenó.Naquelemomento,odedodeGelotambémtocounocoraçãodeDarya,eelacaiumortanamesmahora.”Houve um pequeno silêncio de

apreciação.Então,Olgadissecommelancolia:

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–MasoqueaconteceucomMarfa?Elasecasoucomele?ComoreiGelo?– Abraço gelado, pra cima de mim –

Kolya murmurou para ninguém emparticular,sorrindo.Dunyaolhou-acomdureza,masnãose

deuaotrabalhoderesponder.– Não, Olya – disse para a menina. –

Acho que não.O queGelo poderia fazercomumadonzelamortal?Émaisprovávelqueelatenhasecasadocomumcamponêse levadopara eleomaior dotede toda aRus’.Olga parecia prestes a reagir a essa

conclusão nada romântica,mas Dunya játinha se levantado com um estalar deossos,loucaparaseretirar.Oaltodoforno

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tinhaotamanhodeumacamaenorme,eosvelhos,osjovenseosdoentesdormiamsobre ele. Dunya arrumou sua cama ali,comAlyosha.Osoutrosbeijaramamãeesaíram.Por

fim,aprópriaMarinaselevantou.Apesardas roupas de inverno, Dunya mais umavezviuoquantoelaemagrecera,eissofoium golpe em seu coração.Logo chegará aprimavera,elaseconsolou.Asmatasficarãoverdes,eosanimaisdarãoumleitegordo.Fareiparaelaumatortacomovos,coalhadaefaisão,eosollhedevolveráasaúde.PorémaexpressãodosolhosdeMarina

encheuavelhaamadepressentimentos.

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2

ANETADABRUXA

FINALMENTE O CARNEIRINHO

NASCEU, SUJOEMAGRICELO,PRETOcomo uma árvore morta na chuva. Aovelhacomeçoua lamberaquelacoisinhademaneiradecidida,enãodemoroumuitopara que a minúscula criatura selevantasse,oscilandonoscascosdiminutos.–Molodets – disse Pyotr Vladimirovich

paraaovelha,eelepróprio sepôsdepé.

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Suascostasdoloridasprotestaramquandoele a endireitou. – Mas você poderia terescolhidoumanoitemelhor.O vento lá fora rangeu os dentes. A

ovelha abanou o rabo, despreocupada.Pyotr sorriu e os deixou. Um bomcarneiro, nascido nas garras de umatempestade num inverno avançado. Eraumbompresságio.Pyotr Vladimirovich era um senhor

abastado:umboiardocomterras férteisemuitos homens sob seu comando. Eraapenasporvontadeprópriaquepassavaasnoites com os animais que estavam paradar cria, mas estava sempre presentequando chegava uma nova criatura paraenriquecer seus rebanhos, e com

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frequência fazia com que viessem à luzcomsuasprópriasmãossangrentas.A chuva misturada com neve tinha

cessado, e a noite clareava. Algumaspoucas estrelas corajosas surgiam porentre as nuvens, quandoPyotr chegou aopátioem frentedacasa, fechandoaportado curral ao passar. Apesar da chuva, acasa estava enterrada quase até o beiral,em um inverno pleno de neve. Apenas otelhado inclinado e as chaminés tinhamescapado,alémdaáreaaoredordaporta,que os homens a serviço de Pyotrmantinhamdiligentementelimpa.Ametadedagrandecasa,voltadaparao

verão, tinha amplas janelas e uma lareiraaberta, mas essa ala era fechada na

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chegada do inverno, e agora tinha um ardesolado,enterradaemneveerevestidadegelo. A metade da casa voltada para oinvernoexibiafornosimensos,janelasaltasepequenas.Umafumaçaperenevertiadaschaminés, e no primeiro congelamentointenso,Pyotrguarneciasuasvidraçascomplacas de gelo para bloquear o frio, maspermitir a passagem de luz. Agora, a luzdas chamas no quarto da esposa lançavaumacintilantebarradeourosobreaneve.Pyotr pensou na mulher e apressou o

passo. Marina ficaria feliz ao saber docarneirinho.As passagens entre as construções

anexas eram cobertas e estavam forradascom toras, uma proteção contra chuva,

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neveelama,masachuvacomneveveioaoentardecer, e a água enviezada tinhaencharcadoamadeiraesesolidificado.Oequilíbrio ficava difícil e os acúmulosúmidos avultavam-se majestosos,salpicados de granizo. Mas as botas defeltro e a pele de Pyotr eram firmes nogelo. Ele parou na cozinha adormecidaparajogaráguasobresuasmãospegajosas.No alto do forno, Alyosha virou-se echoramingouduranteosono.O quarto de sua esposa era pequeno –

levando-se em conta o frio –, mas eraalegre e, segundo os padrões do norte,luxuoso. Tiras de tecido revestiam asparedesdemadeira.Omaravilhosotapete,parte do dote deMarina, tinha vindo da

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própria Tsargrad por estradas longas esinuosas.Osbanquinhosdemadeiraeramenfeitados com entalhes fantásticos, emantas de pele de lobo e coelho jaziamespalhadasempilhasmacias.A pequena estufa do canto despendia

um brilho ardente. Marina não tinha sedeitado; estava sentada próxima ao fogo,envolvida num manto de lã branca,penteando o cabelo. Mesmo depois dequatro filhos, seu cabelo continuavaespesso e escuro, chegando quase até osjoelhos. À luz clemente do fogo, ela separeciamuitocomanoivaquePyotrtinhatrazidoparacasahaviamuitotempo.– Acabou? – perguntou Marina,

deixandoo pente de lado e começando a

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trançar o cabelo. Seus olhos nãodesgrudavamdaestufa.–Acabou–dissePyotr,distraído.Estava

tirandoseucaftãnocaloragradável.–Umlindocarneiro.Eamãetambémestábem,umbompresságio.Marinasorriu.–Ficofeliz,porquevamosprecisardisso

–eladisse.–Estougrávida.Pyotr teve um sobressalto, enquanto

tirava a camisa. Abriu a boca e voltou afechá-la. Era possível, é óbvio, mas elaestavavelhapara issoe tinhaemagrecidotantonaqueleinverno…– Outro? – perguntou. Endireitou o

corpoecolocouacamisadelado.Marinapercebeuaperturbaçãoemsua

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voz,e suaboca foi tocadaporumsorrisotriste. Amarrou a extremidade do cabelocom um cordão de couro, antes deresponder:– É – disse, jogando a trança sobre o

ombro. – Uma menina. Vai nascer nooutono.–Marina…Suaesposaouviuaperguntasilenciosa.–Euaquis.Aindaquero.–Edepois,em

tommaisbaixo:–Querouma filhacomoeraaminhamãe.Pyotr franziu o cenho. Marina nunca

falava na mãe. Dunya, que estivera comMarinaemMoscou,raramentereferia-seaela.No reino de Ivã I, ou assim diziam as

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histórias, uma menina esfarrapadacavalgou para dentro dos portões doKremlinsozinha,anãoserporseugrandecavalocinza.Apesardeestarsuja,famintae exausta, rumores acompanharam seuspassos. Era extremamente graciosa,segundodiziam,etinhaosolhoscomoosdadonzela-cisnedeumcontodefadas.Porfim, os rumores chegaram até o grão-príncipe.– Tragam-na até mim – Ivã disse,

levemente bem-humorado. – Nunca viumadonzela-cisne.Devorado pela ambição, Ivã Kalita era

um príncipe duro, frio, inteligente eganancioso.Nãoteriasobrevividodeoutromodo; Moscou matava rapidamente seus

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príncipes. E, no entanto, os boiardoscontaramdepois,quequandoIvãviuessamenina pela primeira vez, permaneceuimóvelporexatosdezminutos.Algunsdosmais fantasiosos juraram que seus olhosestavammarejadosquandoelefoiatéelaepegousuamão.Àquela altura, Ivã estava viúvo pela

segundavez,sendoqueseuprimeirofilhoeramaisvelhodoquesuajovemamada,e,no entanto, um ano depois, ele se casoucomamisteriosamenina.Contudo,nemogrão-príncipe de Moscou conseguiusilenciarossussurros.Aprincesanãodiziade onde tinha vindo, nem então, nemjamais.Asserviçaismurmuravamqueelapodia domesticar animais, sonhar com o

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futuroeinvocarachuva.

Pyotr juntou suas roupas e as penduroupertodaestufa.Sendoumhomemprático,sempre tinha ignorado rumores, mas suaesposa estava muito quieta, olhando ofogo. Apenas as chamas mexiam-se,dourandosuamãoesuagarganta.Marinadeixou Pyotr inquieto, e ele se pôs acaminharpeloassoalhodemadeira.Rus’ passara a ser cristã desde que

Vladimir batizara todos de Kiev noDneiper,arrastandoosvelhosdeusespelasruas. Ainda assim, a terra era vasta emudara lentamente. Quinhentos anos

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depois de osmonges teremvindo aKiev,Rus’ continuava repleta de forçasdesconhecidas, algumas delas refletidasnos olhos sábios da estranha princesa. AIgrejanãogostoudisso.Porinsistênciadobispo,Marina,suaúnicafilha,foidadaemcasamento a um boiardo na vastidãopesarosa, a muitos dias de viagem deMoscou.Pyotr abençoava constantemente sua

boasorte.Suamulhereratãosábiaquantobela;eleaamavaeelaaele.MasMarinanunca falava na mãe. Pyotr nuncaperguntava. A filha deles, Olga, era umamenina comum, bonita e prestativa. Elesnão necessitavam de mais uma,certamente não uma que herdasse os

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poderesatribuídosaumaestranhaavó.– Você tem certeza de que tem força

paraisso?–Pyotrperguntou,finalmente.–AtéAlyoshafoiumasurpresa,eissofoihátrêsanos.–Tenho–disseMarina,virando-separa

olhar para ele. Sua mão fechou-selentamente em um punho, mas ele nãoviu.–Cuidareiparaqueelanasça.Fez-seumapausa.–Marina,oquesuamãefoi…A esposa pegou na mão dele e se

levantou. Ele a enlaçou pela cintura e asentiuseenrijecersoboseutoque.–Nãosei–disseMarina.–Tinhadons

que eu não tenho. Eu lembro como asnobres cochichavam em Moscou. Mas o

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poderéumdireitoadquiridodenascençapelas mulheres da sua linhagem. Olga émais sua filha do que minha, mas estaaqui… – amão livre deMarina deslizouparacima,tomandoaformadeumberçoparaacolherumbebê–estaserádiferente.Pyotrpuxousuaesposamaisparaperto.

Ela se agarrou a ele, repentinamenteintensa,ocoraçãobatendocontraopeito.Sentia-se aquecida em seus braços. Elecheirou o perfume dos seus cabelos,lavados na sala de banhos. É tarde, Pyotrpensou.Porquesepreocuparantesdahora?Afunção das mulheres era dar à luz. Suaesposa já lhe dera quatro filhos, comcertezasesairiabemcommaisuma.Seacriança revelasse algum tipo de

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estranhamento…Bem,issoseriaresolvidoquandonecessário.–Então,traga-acomboasaúde,Marina

Ivanovna–eledisse.Aesposasorriu.Tinhaascostasvoltadas

para o fogo, então ele não viu seus cíliosmolhados. Ergueu seu queixo e a beijou.Ela trazia a pulsação na garganta, masestavamuitomagrasobseumantopesado,tãofrágilquantoumpássaro.– Venha para a cama – ele disse. –

Amanhãhaveráleite.Aovelhapodedisporde um pouco. Dunya o cozinhará paravocê.Vocêprecisapensarnobebê.Marina pressionou o corpo contra o

dele.Eleapegoucomoemseusprimeirosdias e girou com ela. Ela riu e passou os

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braçosaoredordoseupescoço,masseusolhos fixaram-se por um instante alémdele, no fogo, como se ela pudesse ler ofuturonaschamas.

– Livre-se dele – disse Dunya no diaseguinte.–Poucomeimportasevocêtrazumamenina, um príncipe ou um profetado Antigo Testamento. – A chuvamisturada com neve retornara aoamanhecerevoltavaatrovejar láfora.Asduasmulheres aconchegavam-se junto aoforno,tantopelocalorquantopelaluzemseutrabalhodecerzido.Dunyaenfiavasuaagulha no tecido com particular

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veemência. – O quanto antes, melhor.Vocênãotempeso,nemforçaparagestaruma criança, e se conseguisse fazer essemilagre,morrerianahoradeparir.Vocêjádeu três filhosparaoseumaridoe temasua menina, qual a necessidade de maisuma?DunyatinhasidoamadeleitedeMarina

emMoscou,acompanhara-aatéacasadoseumaridoecuidaradeseusquatrofilhosemsequência.Falavaoquetinhavontade.Marina sorriu com um toque de

zombaria.–Quejeitodefalar,Dunyashka.Oqueo

padreSemyondiria?–O padre Semyon não tem chance de

morrer dando à luz, tem? Enquanto que

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você,Marushka…Marinabaixouoolharparaseutrabalho

enãodissenada.Masquandodeucomosolhosestreitosdaamaestavacomorostopálido como a neve, de tal maneira queDunya imaginou poder ver o sanguedeslizandoporsuagarganta.Dunyasentiuumarrepio.–Menina,oquevocêviu?–Nãoimporta–disseMarina.– Livre-se dele – disse Dunya, quase

implorando.– Dunya, tenho que ter este bebê; ela

serácomoaminhamãe.– Suamãe! A donzela esfarrapada que

saiu da floresta cavalgando sozinha? Quemurchouatéviraruma leve sombrade si

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mesmapornão suportar levar a vidapordetrás de biombos bizantinos? Você seesqueceu daquela velha cinzenta em queela se transformou? Indo aos tropeços eencobertaparaaigreja?Escondidaemseuscômodos, comendo até ficar gorda ecorpulenta, com os olhos completamenteinexpressivos?Suamãe.Vocêdesejariaissoparaqualquerumdosseusfilhos?AvozdeDunyarangeucomoogritode

umcorvo,porqueelaselembrou,paraseupesar, da menina que tinha chegado aossaguões de Ivã Kalita, perdida e frágil,dolorosamente bela, arrastando milagresatrás de si. Ivã ficou perdidamenteapaixonado.Aprincesa…Bem,talvezcomele,elatenhaencontradopaz,pelomenos

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por um tempinho. Mas eles a abrigaramnasdependênciasdasmulheres, vestiram-na com brocados pesados, deram-lheícones,servosecarnesgordurosas.Poucoapouco,aquelebrilhoardente,aluzdetirarofôlegodequalquerum,tinhaarrefecido.Dunyalamentousuamortemuitoantesdeaterempostodebaixodaterra.Marinasorriucomamarguraesacudiua

cabeça.– Não. Mas você se lembra de antes?

Vocêcostumavamecontarhistórias.–Elafezumaporçãodemagiasboas,ou

milagres–resmungouDunya.– Eu só tenho um pouquinho do seu

dom – Marina continuou, ignorando avelha ama. Dunya conhecia

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suficientemente bem sua patroa paraperceber seu lamento. –Masminha filhaterámais.–Eistoémotivoobastanteparadeixar

osoutrosquatrosemmãe?Marinaolhouparaseucolo.–Eu…Não.Sim.Seforpreciso.–Malse

escutava o que dizia. – Mas eu poderiaviver.–Ela levantouacabeça.–Vocêvaimedarasuapalavradequecuidarádeles,nãovai?– Marushka, estou velha. Posso

prometer,masquandoeumorrer…– Eles ficarão bem. Eles… terão que

ficar.Dunya,nãopossovero futuro,masvivereiparavê-lanascer.Dunya persignou-se e não disse mais

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nada.

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3

OMENDIGOEOESTRANHO

OSPRIMEIROSVENTOSUIVANTESDE

NOVEMBRO CHACOALHAVAM AsárvoresnuasnodiaemqueMarinasentiuas dores, e o primeiro choro da criançamesclou-se àquele alarido. Marina riu aoverafilhanascer..–OnomedelaéVasilisa–disseaPyotr.

–MinhaVasya.O vento cedeu ao amanhecer. No

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silêncio, Marina expirou uma vez,suavemente,emorreu.A neve precipitou-se feito lágrimas no

diaemquePyotr,orostopétreo,depositousua esposa na terra. Sua filha recém-nascidaberroudurantetodoofuneral,umlamento demoníaco, como o ventoausente.Aolongodaqueleinverno,acasaecoou

os gritos da criança. Mais de uma vez,Dunya e Olga se desesperaram com ela,porqueeraumbebêmagriceloepálido,sóolhos e membros agitados. Mais de umavez,Kolyaameaçou,meioasério,atirá-laparaforadecasa.O inverno passou, porém, e a criança

sobreviveu, deixou de berrar e se

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desenvolveucomoleitedascamponesas.Osanossucederam-secomofolhas.Num dia muito parecido com aquele

quea trouxeaomundo,noaugerigorosodoinverno,afilhinhadecabelospretosdeMarina esgueirou-se na cozinha deinverno, colocou as mãos na parede dofornoeesticouopescoçoparaolharsobrea borda. Seus olhos brilharam. Dunyaestava retirando bolos das cinzas. A casainteiracheiravaamel.–Osbolosestãoprontos,Dunyashka?–

elaperguntou,espiandodentrodoforno.–Quase–respondeuDunya,puxandoa

criança para trás, antes que ela acabasseincendiando o cabelo. – Se você ficarsentada quieta no seu banquinho,

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Vasochka,ecerzira suablusa,vaiganharuminteirinhosópravocê.Comopensamentonosbolos,Vasyafoi

docilmenteparaoseubanco.Jáhaviaumapilha deles esfriando sobre a mesa,tostados do lado de fora e salpicados decinzas.Umcantodeumbolodesmoronouenquanto a criança olhava. Seu interiortinhaodouradodosdiasquentesdeverãoedesprendeuumaleveespiraldefumaça.Vasya engoliu em seco. Parecia fazer umano desde que tinha ingerido seumingaumatinal.Dunya dirigiu-lhe um olhar de

advertência. Vasya travou os lábioscastamenteesepôsacosturar,masorasgonasuablusaeragrande,a fome imensae

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suapaciênciainsignificante,mesmosobasmelhores circunstâncias. Seus pontosforam ficando cada vez maiores, comoespaçosentreosdentesdeumvelho.Porfim, Vasya não aguentoumais; colocou ablusadeladoeseaproximoufurtivamentedaquelatravessafumegantesobreamesa,ligeiramenteforadoalcance.Dunyaestavadecostas,debruçadasobreoforno.A menina chegou ainda mais perto,

furtiva como um gatinho no encalço degafanhotos. Então, atacou. Três bolosdesapareceram dentro da sua manga delinho. Dunya virou-se e viu o rosto dameninaderelance.– Vasya… – começou, severa, mas

Vasya,temerosaerindoaomesmotempo,

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játinhaultrapassadoasoleiraesaídoparaodiasombrio.Aestaçãocomeçavaamudar,oscampos

pardacentosestavamcobertosde restolhoe polvilhados de neve.Vasya,mastigandoseu bolo de mel e contemplandoesconderijos,correupeloquintaldafrente,passandopelaschoupanasdoscamponesesedepoispelacercadepaliçada.Faziafrio,mas Vasya não se preocupou com isso.Tinhanascidoparaofrio.VasilisaPetrovnaeraumagarotinhafeia,

magrela como um caniço, com dedoslongos e pés enormes.Tinha a boca e osolhos grandes demais para todo o resto.Olgachamava-adesapo,enãopensavaarespeito.Masosolhosdameninatinhama

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cordaflorestaduranteumatempestadedeverão,esuabocalargaeradoce.Sabiaserajuizadaquandoqueria–eeraesperta–,atal ponto que osmembros da sua famíliaentreolhavam-se, atônitos, cada vez queelaperdiaojuízoepunhamaisumaideialoucanacabeça.Um monte de terra revolta revelou-se

incólume nos recortes de neve, bem nolimitedocampoceifadodecenteio.Aquilonão estava ali no dia anterior. Vasya foiinvestigar.Aspirouoventoenquantocorriae soube que nevaria à noite. As nuvensestendiam-se como lãmolhada acimadasárvores.Um garotinho, de nove anos, uma

miniaturadePyotrVladimirovich,achava-

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se no fundo de um buraco respeitável,cavando a terra congelada. Vasya chegouatéabordaeespiou.–Oqueéisto,Lyoshka?–perguntoude

bocacheia.Seu irmão recostou-senapá, franzindo

osolhosparaela.–O que você tem com isto? –Alyosha

gostava bastante de Vasya, que estavadispostaatudo,quasetãoboaquantoumirmãomaisnovo,maseraquasetrêsanosmais velho e tinha que mantê-la em seulugar.–Seilá–respondeuVasya,mastigando.

– Quer bolo? – Ela estendeu metade doúltimo deles comumpouco de dó; era omaiorecommenoscinza.

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–Medá–disseAlyosha,largandoapáeestendendo a mão imunda. Mas Vasyacolocou-seforadoalcance.–Meconteoqueestáfazendo–disse.Alyoshaencarou-acomraiva,masVasya

estreitouosolhose fingiuque iacomerobolo.Oirmãoafrouxou.–Éumforteparaviverdentro–disse.–

Pra quando os tártaros chegarem. Assim,eupossomeesconderaquiedispararummontedeflechasneles.Vasya nunca havia visto um tártaro e

nãotinhaumanoçãoclaradotamanhoqueumfortedeveriaterparaprotegeralguémcontra eles. Mesmo assim, olhou emdúvidaparaoburaco.–Nãoémuitogrande.

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Alyosharevirouosolhos.–Éporissoqueestoucavando,suasabe-

tudo– ele disse. –Pra ficarmaior.Agoravocêmedá?Vasya começou a estender o bolo de

mel,mashesitouemseguida.–Tambémquerocavaroburacoeatirar

nostártaros.–Bom,nãodá.Vocênãotemumarco,

nemumapá.Vasya fez uma careta. Alyosha tinha

ganhado a própria faca e um arco nosétimoanododiado seu santo,mas,pormaisquepassasseumanoimplorando,elanão chegara a lugar nenhum quanto àobtençãodearmasparasiprópria.– Não importa – disse. – Posso cavar

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comumgalho,emais tardeopaivaimedarumarco.–Não vai não. –Mas Alyosha não fez

qualquerobjeçãoquandoVasyaestendeu-lhe metade do bolo, e foi procurar umgraveto. Por alguns minutos, os doistrabalharamnumsilêncioamigável.Mascavarcomumgravetologoperdea

graça, mesmo que a pessoa fique emsobressaltos, esperando a chegada dosmaldosos tártaros. Vasya começava a seperguntar se Alyosha poderia serconvencido a abandonar a construção doforte e ir subir em árvores, quandosubitamente uma sombra assomou sobreos dois: sua irmã, Olga, sem fôlego efuriosa, levantara de um lugar junto ao

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fogoparadescobrirseusirmãosociosos.Olhouparaeles,furiosa.–Estãocomlamaatéassobrancelhas.O

queaDunyavaidizer?Eopai…Aestaaltura,Olgainterrompeu-separa

uma guinada fortuita, pegando Alyosha,queeraomaisdesajeitado,pelascostasdajaqueta, exatamente quando as criançassaíam em disparada como um par decodornasassustadas.Vasilisatinhamembroscompridospara

uma menina, era ligeira em seusmovimentos, e comer suas últimasmigalhas em paz bem valia umareprimenda. Assim, não olhou para trás,correndo como uma lebre pelo campovazio, esquivando-se de tocos com gritos

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dealegria,atéserengolidapelaflorestadatarde.Olga permaneceu ofegante, segurando

Alyoshapelagola.–Porquevocênuncapegaela?–Alyosha

perguntou com certo ressentimento,enquanto Olga arrastava-o de volta paracasa.–Elasótemseisanos!– Porque não souKaschei, o Imortal –

disseOlgaumtantoasperamente.–Enãotenhoumcavaloquevençaovento.Ambos entraram na cozinha. Olga

colocouAlyoshaaoladodoforno.– Não consegui pegar Vasya – disse a

Dunya.Avelhasenhora levantouosolhospara

o alto. Vasya era extremamente difícil de

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pegar, quando não queria ser apanhada.Apenas Sasha conseguia fazê-lo comalgumaregularidade.Dunyavoltousuairapara um encolhido Alyosha. Desnudou acriança ao lado do forno, esfregou-o comum pano que, pensou Alyosha, devia tersidofeitocomurtigaseovestiucomumacamisalimpa.– Que jeito de se comportar! –

resmungou Dunya enquanto esfregava. –Da próxima vez vou contar pro seu pai,entendeu?Elevaitefazerencheracarroça,cortarlenhaecarregarestrumeatéofinaldo inverno. Que absurdo! Imundo ecavandoburacos…Mas ela foi interrompida em sua

preleção.Osdois irmãosaltosdeAlyosha

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entraram pisando duro na cozinha deinverno, cheirando a fumaça e gado. Aocontrário de Vasya, não recorreram asubterfúgios; foram direto até os bolos,cadaumenfiandouminteirinhodentrodaboca.–Umventodosul–disseomaisvelho,

NikolaiPetrovich,conhecidocomoKolya,parasuairmã,avozpoucoclaraporestarmastigando. Olga tinha recuperado suacomposturahabitualetricotavaaoladodoforno.–Vaichoverànoite.Aindabemqueos animais estão guardados e o telhadoestá pronto. –Kolya largou suas botas deinverno encharcadas junto ao fogo e seprecipitou para um banquinho, pegandomaisumbolonapassagem.

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Olga e Dunya olharam as botas comidênticasexpressõesdecensura.Umalamacongelada respingou na fornalha limpa.Olgapersignou-se.– Se o tempo estiver mudando, então,

amanhã,metadedaaldeiaestarádoente–disse. – Espero que o pai volte antes daneve. – Ela franziu o cenho enquantocontavaospontos.O outro rapaz não falou nada, mas

depositou sua carga de lenha, engoliu obolo e foi ajoelhar-se sob os ícones nocantoopostoàporta.Então,persignou-se,levantou-seebeijouaimagemdaVirgem.– Rezando de novo, Sasha? – Kolya

perguntou com animada malícia. – Rezeparaqueanevecaiasuaveequeopainão

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seresfrie.Orapazalçouseusombrosesguios.Seus

olhos eram grandes, graves, de cíliosespessoscomoosdeumamenina.–Rezomesmo,Kolya–elerespondeu.–

Vocêtambémdeveriaexperimentar.Elesedirigiuatéofornoetirouasmeias

úmidas.Ocheiropungentedelãmolhadajuntou-seaoodorgeraldelama,repolhoeanimais. Sasha passara o dia com oscavalos.Olgafranziuonariz.Kolyanãocaiunaprovocaçãodoirmão.

Examinavaumadesuasencharcadasbotasdeinverno,nolocalapeletinhaabertonacostura. Resmungou de desgosto e adeixou cair junto da outra. Ambascomeçaram a fumegar. O forno

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agigantava-sesobreasquatro.Dunya já tinha servido o cozido do

jantar, e Alyosha observava a cumbucacomoumgatoàespreitaemumburacoderato.– O que houve, Dunya? – Sasha

perguntou. Tinha entrado na cozinha atempodeouvirarepreensão.– Vasya – disse Olga sucintamente, e

contou a história dos bolos de mel e aescapadadairmãparaafloresta.Tricotavaenquanto falava, omais leve dos sorrisoscondescendentes abria uma covinha emsuaboca.Ela ainda conservava a gorduradaopulênciadoverão,o rosto redondoeprimoroso.Sashariu.

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– Bem, Vasya voltará quando sentirfome – disse, e retomou assuntos maisimportantes. – Aquele peixe do cozido élúcio,Dunya?–É tenca–Dunya faloubrevemente. –

Oleg trouxe quatro ao amanhecer. Masaquela sua irmã esquisita é pequenademaisparavagarpelomato.SashaeOlgaentreolharam-se,deramde

ombro e não disseram nada. Vasyadesaparecia na floresta desde quecomeçara a andar. Voltaria a tempo dojantar, como sempre, trazendo umpunhado de pinhões como pedido dedesculpas,ruborizadaearrependida,felinaemseuspezinhosdentrodasbotas.Nessecaso,porém,estavamerrados.O

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soltênuedeslizoupelocéue,nassombrasdas árvores, esticou-se de maneiramonstruosamente longa. Por fim, opróprio Pyotr Vladimirovich entrou emcasa, carregandouma faisoapelopescoçodestroncado. Vasya ainda não tinhavoltado.

A floresta ficava tranquila no ápice doinverno, a nevemostrando-semais densaentre as árvores. Vasilisa Petrovna,semienvergonhada e semissatisfeita comsua liberdade, comeu sua última metadedobolo demel, esticada no galho geladode uma árvore, escutando os barulhinhos

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damatasonolenta.– Sei que você dorme quando a neve

chega–disseemvozalta.–Masnãodariapraacordar?Veja,eutrouxebolos.Elaesticouaprova,agorapoucomaisdo

que migalhas, e fez uma pausa como seesperasseumaresposta.Masnãoveionadaalémde umvento leve e farfalhante, queagitoutodasasárvoresaomesmotempo.Então, Vasya deu de ombros, ingeriu

comapontadalínguaasmigalhasdoseubolo e correupelamataporum tempoàprocura de pinhões. No entanto, osesquilos tinhamcomido todosea florestaestavageladaatéparaumameninanascidaparaofrio.Porfim,Vasyaespanouogeloea cortiça das suas roupas e tomou o

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caminho de casa, sentindo, afinal, dor naconsciência. A floresta estava fechada esombria; os dias curtos resvalavamrapidamente para a noite, e ela correu.Seria recebida com uma repreensãoenérgica,masDunyaestariacomojantarapostos.Seguiusempreemfrenteeentãoparou,

franzindoocenho.Àesquerdanoamieirocinza,contornandoodesagradávelevelhoolmo, veria as terras do seu pai. Tinhapercorridoaquelatrilhamilharesdevezes.Mas agora não havia amieiro nem olmo,apenas um grupo de abetos de agulhasnegras e um pequeno monte nevado.Vasyadeumeia-volta, tentandoumanovadireção. Não, aqui havia faias delgadas,

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posandobrancascomonoivas,nuascomoinverno e trêmulas. Subitamente, Vasyasentiu-sedesconfortável.Nãopoderiaestarperdida,nuncaseperdia.Paraela,perder-senaflorestaseriaomesmoqueseperderemsuaprópriacasa.Surgiuumventoquechacoalhoutodasasárvores,sóqueagoraeramárvoresqueelanãoconhecia.Perdida,Vasyapensou.Estavaperdidaao

entardecer, no auge do inverno, e irianevar.Virou-senovamente,tentandooutradireção,masnaquelamataondulantenãohaviaumaárvorequeelaconhecesse.Seusolhos encheram-se subitamente delágrimas. Perdida, estou perdida. QueriaOlya ou Dunya; queria seu pai e Sasha.Queria sua sopa, seu cobertor e até sua

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costura.Um carvalho agigantou-se em seu

caminho. Ela parou.Não era uma árvorecomoasoutras.Eramaior,mais escura eretorcida como uma velha malvada. Oventosacudiuosgrandesgalhosescuros.Começando a tremer, Vasya foi

lentamente em sua direção e tocou nacascacomamão.Eracomoqualqueroutraárvore, áspera e fria, mesmo através dapeledasua luva.Caminhouaoseuredor,esticando-se para olhar os galhos. Então,baixouosolhosequasetropeçou.Um homem estava enrodilhado como

um animal aos pés da árvore,profundamente adormecido. Não erapossível ver o rosto, escondido entre os

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braços. Pelos rasgos de suas roupas,vislumbrouumapelebrancaegelada.Elenãosemexeuàsuaaproximação.Bem,elenãopoderiaficardormindoali,

não com a neve que estava vindo do sul.Morreria.Etalvezelesoubesseondeficavaa casa do pai dela. Vasya esticou-se paraacordá-lo, mas pensou melhor. Em vezdisso,disse:–Avô,acorde!Vainevarantesdosurgir

dalua.Acorde!Porumlongomomento,ohomemnão

semoveu.Mas,justoquandoVasyacriavacoragemparatocaramãoemseuombro,ouviu-se um fungado rouco e o homemergueuorosto,piscandoumolhoparaela.Ameninarecuou.Umladodorostodele

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eragrosseiramenteatraente.Umolhoeracinzento.Masfaltavaooutroolho,aórbitaestava fechada, e esse lado do rosto eraumamassadecicatrizesazuladas.O olho bom piscou para ela commau

humor,eohomemficoudecócoras,comoque para enxergar melhor. Era magro,estavaesfarrapadoe imundo.Vasyapodiaver suas costelas pelos rasgos da camisa.Mas quando ele falou, a voz era forte egrave:– Bem – ele disse. – Fazmuito tempo

quenãovejoumameninarussa.Vasyanãoentendeu.–Vocêsabeondeestamos?–perguntou.

– Estou perdida. Meu pai é PyotrVladimirovich. Se puder me levar para

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casa,elevai tedarcomidaeumlugaraoladodoforno.Vainevar.Ocaolho sorriude repente.Tinhadois

dentescaninos,maiscompridosdoqueosrestantes,queseafundavamemseu lábioquando sorria. Levantou-se, e Vasya viuqueeraumhomemalto,deossosgrandesebrutos.–Seeuseiondeestamos?–perguntou.–

Bem, é claro, devochka, garotinha. Vou televar pra casa. Mas você precisa vir atéaquimeajudar.Vasya,mimadadesdesempre,nãotinha

ummotivoespecíficoparaserdesconfiada.Mesmoassim,nãosemexeu.Oolhocinzentoapertou-se.–Quetipodemeninavemaquisozinha?

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–E depois,mais suave: – Esses olhos. Euquase me lembro… Bem, venha aqui. –Sooudemaneiramais convincente. –Seupaivaificarpreocupado.Voltou seu olho cinzento sobre ela.

Vasya, de cara fechada, deu um passinhoemsuadireção.Depoisoutro.Eleestendeuamão.Desúbito,ouviu-seoesmagardecascos

na neve e o resfolegar de um cavalo. Ocaolho recuou. A criança tropeçou paratrás,afastando-sedasuamãoestendida,eo homem caiu por terra, encolhendo-se.Umcavaloirrompeucomsuamontarianaclareira. Era um cavalo branco e forte.Quandoseucavaleirodesceuparaochão,Vasya viu que era esguio e de ossos

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pronunciados,apele firmementeesticadasobre o rosto e a garganta. Portava ummantoluxuosodepelepesada,eseusolhosreluziamazuis.–Oqueéisso?–perguntou.Ohomemesfarrapadoencolheu-se.–Nãoédasuaconta–disse.–Elaveio

atémim,éminha.O recém-chegado voltou-se para ele

comumolharfirmeefrio.Suavozencheuaclareira.–Émesmo?Durma,Medved,porqueé

inverno.Emesmo sob protestos, o dorminhoco

enfiou-semaisumavezentreasraízesdocarvalho.Oolhocinzentovelou-se.O cavaleiro voltou-se para Vasya. A

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meninarecuou,prontaparafugir.– Como foi que você chegou aqui,

devochka? – perguntou o homem. Falavacomrápidaautoridade.Lágrimasdeconfusãoescorrerampelos

olhos de Vasya. O rosto ávido do caolhotinha assustado-a, e a urgência impetuosadestehomemtambémaatemorizava.Masalgoemseuolharsilenciouseuchoro.Elalevantouosolhosparaele.– Sou Vasilisa Petrovna. Meu pai é o

senhordeLesnayaZemlya.Porum instante,os dois se encararam.

E, então, a breve coragem de Vasyadesapareceu, ela se virou e escapuliu. Oestranhonãofezmençãodesegui-la.Massevoltouparasuaéguaquandoelaveioaté

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ele.Osdoistrocaramumlongoolhar.–Eleestáficandomaisforte–ohomem

disse.Aéguamexeuumaorelha.Seucavaleironãodissemaisnada,mas

olhou mais uma vez na direção que acriançatinhatomado.

Longedasombradocarvalho,Vasyaficouperplexacomarapidezdacaídadanoite.Sob a árvore, o anoitecer eraindeterminado,masagoraeranoite,umanoiteindistintanolimiardaneve,todooarsombrioporcausadisso.A mata estava cheia de tochas e dos

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gritosdesesperadosdehomens.Vasyanãodeu importância a isso; tornou areconhecerasárvores,etudooquequeriaeraosbraçosdeOlgaedeDunya.Um cavalo surgiu galopando, com um

cavaleiroquenãotraziatocha.Aéguaviua criançapoucoantesque seu cavaleiroavisse,efreoubruscamente,empinando-se.Vasya tombou de lado, esfolando a mão.Enfiou o punho na boca para abafar seugrito.Ocavaleiromurmurouimprecaçõesnuma voz que lhe era conhecida, e noinstanteseguinteelafoitomadanosbraçosdoirmão.– Sashka – soluçou Vasya, enfiando o

rosto em seu pescoço. – Eu me perdi.Tinha um homem na floresta. Dois

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homenseumcavalobranco,eumaárvorepreta,eeufiqueicommedo.– Que homens? – perguntou Sasha. –

Onde,menina?Vocêestámachucada?–Eleaafastoudesieaapalpou.–Não – respondeuVasya, tremendo. –

Não,sóestoucomfrio.Sashanãodissenada.Elapercebeuque

eleestavabravo,emborafossedelicadoaocolocá-lasobresuaégua.Puloulogoatrásea envolveu com a ponta do seu capote.Vasya, a salvo, como rosto encostadonocourobemcurtidodabainhadaespadadoirmão,aospoucosparoudechorar.Normalmente, Sasha tolerava sua

irmãzinha seguindo-o, tentando levantarsuaespadaoupuxara cordado seuarco.

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Mimava-a,até lhedandoumtocodevelaou um punhado de avelãs. Mas agora omedo o deixara furioso, e ele nãoconversoucomelaenquantocavalgavam.Gritou à esquerda e à direita, e aos

poucos a notícia do resgate de Vasyacirculou por entre os homens. Se ela nãotivesse sido encontrada antes da chegadadaneve,morreriaduranteanoiteesóseriadescoberta quando a primavera viesseafrouxar sua mortalha, se é que seriaachada.–Dura – rosnouSashapor fim,quando

paroudegritar–,bobinha,oquedeuemvocê?FugindodaOlga, escondendo-senafloresta? Pensou que você fosse algumespírito da floresta, ou se esqueceu da

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estação?Vasya sacudiu a cabeça. Agora, seus

tremores vinham em fortes espasmos,batendoosdentes.–Euqueriacomeromeubolo–eladisse

–,masmeperdi.Nãoconseguiencontrarotoco do olmo. Encontrei um homem nocarvalho.Dois homens e um cavalo. E aíficouescuro.Sasha franziuo cenhoacimada cabeça

damenina.–Me conte sobre esse carvalho –disse

ele.–Umcarvalhovelho–contouVasya.–

Com raízes na altura dos joelhos. E comumolhosó.Ohomem,nãoaárvore.–Elatremeucommaisforçadoquenunca.

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– Bem, agora pare de pensar nisto –disseSasha,eincitouseufatigadocavalo.Olga e Dunya encontraram-no na

soleira. A boa senhora tinha o rostocobertodelágrimas,eOlgaestavabrancacomoumadonzeladegelodeumcontodefadas. As duas haviam rastelado todos oscarvões para fora do forno e derramadoágua quente nas pedras fumegantes paraproduzirvapor.Vasyaviu-sedespidasemamenorcerimôniaeenfiadadentrodabocadofornoparaseaquecer.A repreensão começou assim que ela

saiu.– Roubando bolos – disse Dunya. –

Fugindo da sua irmã. Como é que vocêpôde nos assustar tanto, Vasochka? –

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Chorouenquantodizia.Vasya, com os olhos pesados e

arrependida,murmurou:–Sintomuito,Dunya.Medesculpe,me

desculpe.Esfregaram-nacomhorrorosassementes

de mostarda e fustigaram-na em gestosrápidos com ramos de bétula para avivarseusangue.Envolveram-naemlã,fizeramum curativo em sua mão esfolada edespejaramsopaemsuagarganta.–Foimuitamaldade,Vasya–Olgadisse.

Agradouocabelodairmãeaaninhouemseu colo. Vasya já estava adormecida. –Chega por esta noite, Dunya – Olgaacrescentou.–Amanhãlogoestaráaíparamaisconversa.

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Vasya foi posta na cama em cima doforno,eDunyadeitou-seaoseulado.Quando, finalmente, sua irmã dormiu,

Olga largouocorpoao ladodo fogo.Seupai e seus irmãos sentaram-se e seserviramdocozidoemumcanto,usandoexpressõesigualmentebombásticas.– Ela vai ficar bem – afirmou Olga. –

Nãoachoquevásegripar.–Masqualquerhomempoderia, tendo

sidotiradodopédofogoparaprocurarporela–retorquiuPyotr.– Ou eu poderia – disse Kolya. – Um

homemquerseujantar,depoisdeumdiaconsertandoo telhadodo pai, e nãoumacavalgadaànoiteàluzdetochas.Amanhãvoulhedarumascintadas.

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–Eaí?–replicouSashafriamente.–Elajá levou surras antes. Não é tarefa dehomenslidarcommeninas.Issoexigeumamulher. Dunya está velha. Olya logo secasará,eentãoavelhavaipassaracuidardacriançasozinha.Pyotr não disse nada. Havia seis anos

queentregaraaesposaaterraenãotinhapensadoemoutra,emborahouvesseváriasque teriam aceitado seu pedido.Mas suafilhaassustava-o.QuandoKolyabuscousuacama,eelee

Sasha ficaram sentados no escuro,observando a vela que se consumiaperanteoícone,Pyotrdisse:– Vocês gostariam que sua mãe fosse

esquecida?

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–Vasyajamaisaconheceu–respondeuSasha. – Mas uma mulher sensata, nãouma irmã ou uma ama bondosa e velha,lhe fariabem.Ela logoserá incontrolável,pai.Umalongapausa.–NãoéculpadeVasyaqueamãetenha

morrido–acrescentouSasha,emtommaisbaixo.Pyotrnãodissenada.Sashalevantou-se,

curvou-seperanteopaieassoprouavela.

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4

OGRANDEPRÍNCIPEDEMUSCOVY

PYOTR SURROU A FILHA NO DIA

SEGUINTE,EELACHOROU,EMBORAele não tivesse sido cruel. Ela ficouproibidadedeixar a aldeia,masporumavez aquilonão se revelouum sofrimento.Tinha pegado a temível gripe, compesadelosnosquais revisitavaumcaolho,umcavaloeumestranhonumaclareiranamata.

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Sasha, sem contar a ninguém, vagoupela floresta a oeste, à procura dessecaolhooudeumcarvalhocomraízesquesubiamatéosjoelhos,masnãoencontrounenhum dos dois. Depois a neve caiudurante três dias sem cessar e comintensidade,demodoqueninguémsaiudecasa.Suasvidasrecolheram-se,comosempre

acontecianoinverno,umciclodecomida,sono e pequenas tarefas entediantes. Aneve acumulou-se lá fora, e, numa noitegélida, Pyotr sentou-se em seu própriobanquinho, lixando um pedaço reto defreixo para o cabo de um machado. Seurosto parecia de pedra, por estarlembrandoalgoquegostariade esquecer.

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Cuidedela,Marinahaviaditomuitos anosatrás, enquanto o tom de uma doençamortalespalhava-seporseubelorosto.Euaescolhi,elaéimportante.Petya,prometa-me.Pyotr, sofrendo, havia prometido. Mas

depoissuaesposatinhasoltadoasuamão,caído para trás na cama, e seus olhosfitaramalémdele.Sorriuumavez,suaveefeliz,masPyotrnãoachouqueoolhareraparaele.Elanãovoltouafalaremorreunahoracinzentaantesdoamanhecer.E então, Pyotr pensou, eles prepararam

uma cova para recebê-la, e eu berrei com asmulheresquetentarammeimpedirdeentrarnacâmara da morte. Eu mesmo amortalhei suacarnefria,queaindacheiravaasangue,e,comminhasprópriasmãos,coloquei-anaterra.

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Sua filha bebê passou todo aqueleinverno aos berros, e ele não suportouolhar seu rosto, porque sua mãe tinhaescolhidoacriançaenãoele.Bem, agora ele precisava expiar sua

culpa.Pyotrobservouocabodoseumachado.– Vou para Moscou quando o rio

congelar–disse,emmeioaosilêncio.O cômodo encheu-se de exclamações.

Vasya,queestiveracochilando,pesadadefebre e hidromel aquecido, chiou eafundouacabeçaaoladodoforno.–PraMoscou,pai?–perguntouKolya.–

Denovo?OslábiosdePyotrestreitaram-se.Tinha

idoparaMoscounaqueleprimeiroinverno

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rigoroso após a morte de Marina. IvãIvanovich, meio-irmão dela, era grão-príncipe, e, para o bem da sua família,Pyotr salvara o possível da ligação entreeles. Mas não estivera com umamulher,nementão,nemmaistarde.–Vocêquerdizerparacasar,destavez–

disseSasha.Pyotraquiesceubrevemente,sentindoo

peso do olhar da sua família. Haviamulheres o suficiente nas províncias,masuma dama moscovita traria alianças edinheiro.AindulgênciadeIvãparacomomarido de sua falecida irmã não durariaparasempre.E,pelobemdasuafilhinha,eleprecisavadeumanovaesposa.Mas…Marina,comosoubobo,pensarquenãoconsigo

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suportaristo.– Sasha e Kolya, vocês virão comigo –

Pyotrafirmou.Oprazerquaseencobriua censuranos

rostosdosfilhos.–PraMoscou,pai?–perguntouKolya.–Se tudocorrerbem,serãodoisdiasa

cavalo–dissePyotr.–Precisareidevocêsna estrada. E vocês nunca estiveram nacorte.Ogrão-príncipeprecisaconhecerosseusrostos.Acozinhafoi,então,tomadapelocaos,

comosmeninostrocandoexclamaçõesdealegria. Vasya e Alyosha clamaram quequeriamir.Olgapediujoiasetecidosfinos.Os meninos mais velhos reagiram comuma exultação arrogante, e a noite

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transcorreuemmeioadiscussões,pedidoseespeculações.

Anevecaiu trêsvezes,profundae sólida,depoisdosolstíciodeinverno,epassadaaúltima nevada veio uma grande geadaazul, em que os homens sentiram arespiraçãopararemsuasnarinas,ecoisasfrágeisnasceramfadadasamorrerdurantea noite. Isso significa que as estradas detrenó estavam abertas, aquelas quecorriam por rios cobertos de neve, lisoscomovidroecintilantessobretrilhassujas,que no verão eram uma miséria deatoleiros e eixos quebrados. Os meninos

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observaram o céu, sentiram a geada e sepuseram a andar pela casa, untando suasbotasgordurosaselixandoosgumesfinoscomocabelodesuaslanças.Finalmente, chegou o dia. Pyotr e seus

filhos levantaram-se no escuro e saíramparaoquintaldafrenteassimqueclareou.Os homens já estavam reunidos. Oalvorecer penetrante avermelhava seusrostos; os animais batiam os cascos eresfolegavam nuvens de vapor. Umhomem tinha arreado Metel, o mal-humorado garanhão mongol de Pyotr, esegurava firme o bridão do animal, asjuntas dos dedos brancas. Pyotr deu umtapa na montaria que o aguardava,esquivou-sedosdentesprestesamordere

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pulou para a sela. Seu agradecido criadoretrocedeu,ofegante.Pyotrmantevepartedasuaatençãoem

seu garanhão imprevisível; o restante iaparaocaosaparenteàsuavolta.Aáreadoestábulofervilhavadecorpos,

animaisetrenós.Pelesamontoavam-seaoladodecaixasdeceradeabelhaevelas.Ospotes de hidromel e mel disputavamespaço com pacotes de provisões secas.Kolya organizava o carregamento doúltimo trenó, seu nariz vermelho no friomatinal.Tinhaosolhosnegrosdamãe.Ascriadas davam risadinhas quando elepassava.Umacestacaiucomumbaqueeumtufo

denevesecaquasedebaixodospésdeum

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cavalodetrenó.Oanimalassustou-se,indoparaafrenteeparaolado.Kolyadeixouoespaço livre num pulo e Pyotr deu umtrancoàfrente,masSashafoimaisrápido.Pulou da sua égua feito um gato e, nominuto seguinte, segurou o cavalo pelobridão, falando em seuouvido.O animalacalmou-se, parecendo envergonhado.PyotrobservouenquantoSashaapontava,dizia alguma coisa. Os homensapressaram-seapegararédeadocavaloeapanharam a cesta problemática. Sashadissemaisalgumacoisa,sorrindo,etodosriram.Omeninovoltouamontaremsuaégua.Suaposturaeramelhordoqueadoirmão; ele tinha afinidade com cavalos elevavasuaespadacomgraça.Umguerreiro

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nato,pensouPyotr,eumlíder;Marina,tenhosortecomosmeusfilhos.Olga saiu correndo cozinha afora, com

Vasyatrotandoemseuencalço.Ossarafansbordados das meninas destacavam-secontraaneve.Olgaseguravaoaventalnasmãos; dentro, estavam empilhados pãesescurosemacios,saídosdoforno.KolyaeSasha já vinham em sua direção. Vasyapuxou o capote do seu segundo irmãoenquantoelecomiaopão.–Masporqueeunãopossoir,Sashka?–

elaindagou.–Façojantarpravocê.Dunyame ensinou. Posso montar com você noseu cavalo. Sou pequena o bastante praisso.–Elaseagarrouaoseucapotecomasmãos.

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–Nesteanonão,sapinho–Sashadisse.–Vocêépequenademais.–Vendoosolhostristes,eleseajoelhounaneveaoladodelaepressionouorestantedoseupãoemsuamão.–Comaecresçaforte,irmãzinha,prapoderviajar.Deusteguarde.Ele pôs a mão em sua cabeça, depois

puloude volta no lomboda sua castanhaMysh.–Sashka!–gritouVasya,maseleestava

longe, dando instruções rápidas aoshomensqueabasteciamoúltimoveículo.Olgapegounamãodairmãeapuxou.–Vamoslá,Vasochka–eladissequando

a criança arrastou os pés. As meninascorreramatéPyotr.OúltimopãoesfriavanamãodeOlga.

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“Boaviagem,pai”,Olgadisse.ComoaminhaOlyaseparecepoucocoma

mãe, Pyotr pensou, no máximo tem o seurosto. Ainda bem. Marina parecia um falcãonuma gaiola. Olga é mais suave. Vou lhearrumarumbomcasamento.Elesorriuparaasfilhas.–Deus fiquecomvocêsduas–disse.–

Talvezeutetragaummarido,Olya.Vasya emitiu um ruído como um

rosnado silencioso. Olga corou e riu equasedeixoucairopão.Pyotrinclinou-seatempo de pegá-lo e ficou feliz por tê-lofeito: ela havia aberto a casca e colocadomel dentro, para que derretesse no calor.Elearrancouumgrandenaco–seusdentesainda eram bons – e fez uma pausa,

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mastigandofeliz.–Evocê,Vasya–acrescentou,severo.–

Obedeçaasuairmãefiquepertodecasa.– Sim, pai – disse Vasya, mas olhava

pensativaparaoscavalosdemontaria.Pyotr limpou a boca com as costas da

mão. O grupo tinha chegado a algo quepareciaorganizado.– Adeus, minhas filhas – ele disse. –

Estamosindo;cuidadocomostrenós.Olgaassentiucomumgestodecabeça,

um tanto melancólica. Vasya não fezqualquer gesto; parecia revoltada. Houveumcorodegritos,oestalardechicoteseentãoelesseforam.Atrás deles, Olga e Vasilisa ficaram

sozinhas no pátio da frente, ouvindo os

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sinosdos trenós até seremengolidospelamanhã.

Duas semanas após se porem a caminho,com muito atraso, mas sem desastres,Pyotreseusfilhospassarampeloscírculosexternos de Moscou, aquele postocomercial fervilhante e pretensioso àsmargensdorioMoskva.Sentiramocheiroda cidademuito antes de vê-la, enevoadacomo estava com a fumaça de dez milfogueiras; e então os domos brilhantes,verdes, escarlates e cobalto, apontaramvagamente através do vapor. Por fim,avistaram a própria cidade, vigorosa e

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esquálida,comoumabelamulhercomospés emplastrados de imundície. As torresaltasedouradasprojetavam-seorgulhosasacimadospobresdesesperados,eosíconescom o ouro desgastado observavam,inescrutáveis,enquantopríncipeseesposasde fazendeiros vinham beijar seus rostosrijoserezar.Asruasestavamtodascobertasdeneve

barrenta, revolta por inúmeros pés.Mendigos,comosnarizespretejadospeloinverno, agarravam os estribos dosmeninos. Kolya chutou-os para quesoltassem, mas Sasha apertou suas mãosencardidas.Asruasserpenteavam,nestaenaquela direção. Era um longo e lentopercurso, e o sol vermelho de inverno

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inclinava-se para oeste quando,finalmente, eles chegaram, exaustos ecobertos de lama, a um sólido portão demadeira, revestido de bronze e encimadoportorres.Uma dúzia de lanceiros vigiava a rua,

com arqueiros sobre o muro. Olharamfriamente para Pyotr, seus trenós e seusfilhos,masPyotrentregouaocapitãoumajarra de bom hidromel, einstantaneamente os rostos severossuavizaram-se. Pyotr fez uma mesura,primeiro para o capitão, depois para oshomens, eos guardas acenaramparaqueentrassem,numcorodecumprimentos.O kremlin era por si só uma cidade:

palácios, cavalariças, ferrarias e inúmeras

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igrejassemiconstruídas.Emboraosmurosoriginais tivessem sido construídos comumaespessuradupladecarvalho,osanoshaviam reduzido a madeira a lascas. Omeio-irmãodeMarina,ogrão-príncipeIvãIvanovich, tinha encomendado suasubstituição por muros ainda maismaciços.Oarrecendiaaobarroquetinhasidoincrustadonamadeira,parcaproteçãocontra o fogo. Por toda parte, oscarpinteirosgritavamdeumladoaoutro,sacudindo serragem das suas barbas.Criados, padres, boiardos, guardas emercadores agitavam-se por toda parte,discutindo. Tártaros, cavalgando beloscavalos,cruzavamcommercadoresrussosdirigindo trenós carregados. Ao menor

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pretexto, um deles irrompia em gritoscontraooutro.Kolya ficou embasbacado com a

confusão,disfarçandoonervosismocomacabeça erguida. Seu cavalo corcoveava aotoquedoseucavaleironasrédeas.Pyotr já havia estado em Moscou.

Algumaspalavrasdecididasfizeramsurgircocheirasparaseuscavaloseumlugarparaseustrenós.–Cuidedoscavalos–eledisseaOleg,o

maisequilibradodos seushomens. –Nãoosdeixesozinhos.Por toda parte havia criados ociosos,

mercadores desconfiados e boiardosluxuosamente paramentados em trajesbárbaros.Umcavalodesapareceriaemum

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instante e estaria perdido para sempre.Oleg concordou com a cabeça e a pontagrosseira de um dedo roçou o punho desualongafaca.Elestinhammandadoavisarqueviriam.

Seumensageiroencontrou-nosemfrenteàcocheira.– O senhor está sendo chamado, meu

lorde–disseaPyotr.–Ogrão-príncipeestáàmesaesaúdaseuirmãodonorte.A estrada vinda de Lesnaya Zemlya

tinha sido longa. Pyotr estava imundo,contundido,geladoeexausto.– Muito bem – disse secamente. –

Estamosindo.Deixeistopralá.–AúltimafrasefoidirigidaaSasha,queretiravabolasdegelodocascodoseucavalo.

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Eles jogaramágua frianosrostossujos,vestiram caftãs de lã pesada, puseramchapéusdezibelina lustrosaepuseramasespadasdelado.A cidade-fortaleza era um labirinto de

igrejas e palácios de madeira, a terrarevoltacomestrume,oarardendocomafumaça.Pyotr seguiu o mensageiro a passos

rápidos. Atrás dele, Sasha olhava deesguelha os domos dourados e as torrespintadas.Kolyaestavaligeiramentemenoscircunspecto,emboraolhassemaisparaosbelos cavalos e as armas dos seuscavaleiros.Chegaram a uma porta dupla de

carvalho que se abria para um saguão

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lotadodehomensecachorros.Asgrandesmesas rangiam de boas coisas. Naextremidade do saguão, em uma altacadeira entalhada, estava sentado umhomem de cabelos sedosos, comendofatiasdoassadoquegotejavaàsuafrente.Ivã II era chamado de Ivã Krasnii, ou

Ivã,oBelo.Jánãoerajovem,talveztivessetrintaanos.Seuirmãomaisvelho,Semyon,governaraantesdele,masjuntamentecomtodos os seus descendentes morrera depesteemumverãodesastroso.O grão-príncipe de Moscou era

realmentemuito belo. Seu cabelo reluziacomo o mel mais claro. As mulheresfervilhavam ao redor da beleza preciosadesse príncipe. Além disso, era um

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habilidoso caçador e especialista em cãesdecaçaecavalos.Suamesarangiasobumgrande javali assado com uma crosta deervas.Os filhos de Pyotr engoliram em seco.

Estavam todos famintos após duassemanasnaestradainvernosa.Pyotr atravessou o grande saguão a

passos largos, seguido pelos filhos. Opríncipe não tirou os olhos do seu jantar,embora eles fossem assaltados, por todosos lados, por olhares avaliadores ousimplesmente curiosos. Uma fornalha,grandeobastanteparaassarumboi,ardiaatrásdoestradodopríncipe, sombreandoo rosto de Ivã e dourando o de seusconvidados. Pyotr e seus filhos chegaram

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em frente ao estrado, pararam e securvaram.Ivã espetou um naco de porco com a

pontada faca. Suabarba loira estava sujadesangue.–PyotrVladimirovich,nãoémesmo?–

disse lentamente, mastigando. Seu olharsombreado percorreu-os do chapéu àsbotas. – Aquele que se casou comminhameia-irmã?–Tomouumgoledohidromeleacrescentou:–Quedescanseempaz.–Sim,IvãIvanovich–respondeuPyotr.– Seja bem-vindo, irmão – disse o

príncipe,jogandoumossoparaovira-latadebaixodasuacadeira.–Oqueotraztãolonge?–Queria lheapresentarosmeus filhos,

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gosudar – disse Pyotr. – Seus sobrinhos.Logoserãohomensemfasedesecasar.EseDeuspermitir,tambémqueroencontraruma mulher para mim, para que meusfilhos mais novos não precisem maiscontinuarsemmãe.– Um objetivomerecido – disse Ivã. –

Estessãoosseusfilhos?–SeuolharsaltouparaosmeninosatrásdePyotr.–São.NikolaiPetrovich,meufilhomais

velho,e,osegundo,Aleksandr.KolyaeSashaderamumpassoàfrente.Ogrão-príncipelhesdeuomesmoolhar

dealtoabaixoquederaaPyotr.Demorou-se em Sasha. O garoto tinha apenas ainsinuação de uma barba, e os ossosproeminentes de um menino em

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crescimento.Mas seu andar era leve e osolhoscinzanãovacilavam.– É um prazer conhecê-los, parentes –

disseIvã,semtirarosolhosdofilhomaisnovodePyotr.–Você,menino,éparecidocom sua mãe. – Sasha, tomado desurpresa,fezumamesuraenãodissenada.Fez-se um momento de silêncio. Depois,mais alto, Ivã acrescentou: – PyotrVladimirovich, você é bem-vindo emminha casa e àminhamesa, até resolverseuscompromissos.O príncipe inclinou a cabeça

abruptamenteesevoltouparaseuassado.Dispensados, os três foram levados aocupartrêslugaresrapidamenteabertosnamesa principal. Kolya não precisou ser

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encorajado; sumos quentes aindaescorriampelaslateraisdoporcoassado.Atortatranspiravaqueijoecogumelossecos.Opão redondodos convidados estava nomeiodamesa,aoladodobomsalcinzadopríncipe.Kolya serviu-se imediatamente, mas

Sashaesperou.–Queolharogrão-príncipemedeu,pai

– disse ele. – Como se conhecesse meuspensamentosmelhordoqueeu.– Todos eles são assim, os príncipes

existentes – falou Pyotr. Ele se serviu deumafumegantefatiadetorta.–Todoselestêm muitos irmãos e estão ávidos pelapróxima cidade, pela melhor conquista.Ouconseguemavaliarbemoshomens,ou

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estão mortos. Fique atento aos quesobrevivem,synok,porquesãoperigosos.–Depois, ele voltou toda a sua atenção àtorta.Sasha franziuo cenho,masdeixouque

enchessemseuprato.Aviagemdelesforauma sequência sem fim de cozidosestranhoseboloschatoseduros,quebradaumaouduasvezespelahospitalidadedosvizinhos. A mesa do grão-príncipe erafarta,etodoselessebanquetearamaténãoaguentaremmais.Depois, o grupo recebeu três cômodos

para seu uso: gelados e formigando deinsetos, mas estavam cansados demaispara se incomodarem. Pyotr cuidou doarmazenamentodostrenósedopousodos

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seushomensparaaquelanoite,emseguidadesmoronou na cama alta e se rendeu aumanoitesemsonhos.

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5

OHOMEMSANTODACOLINAMAKOVETS

_ PAI – DISSE SASHA, VIBRANDO DEEXCITAÇÃO.–OPADRECONTOUquetemumhomemsantoanortedeMoscou,na colina Makovets. Ele fundou ummonastério e já reuniu onze discípulos.Dizem que fala com os anjos. Todos osdias,muitagentevaibuscarasuabênção.Pyotr resmungou. Já faziauma semana

queestava emMoscou, adulandopessoas

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paraconseguirfavores.Seuúltimoesforço,recém-concluído, tinha sidoumavisitaaoemissário tártaro, o baskak. NenhumhomemdeSarai,acidadecaixinhadejoiasconstruídapelashordasdeconquistadores,sedignariaaseimpressionarcomasrelesoferendas de um senhor nortista, masPyotrhaviapressionado-otenazmentecompeles. Pilhas de raposas, arminhos,coelhos, e zibelinas passaram sobo olharavaliadordoemissário,atéquefinalmenteele se pôs a olhar com menoscondescendênciaeagradeceuaPyotrcomuma clara demonstração de boa vontade.TaispelesvaliammuitoouronacortedoKhan,emaisaosul,entreospríncipesdeBizâncio. Valeu a pena, pensou Pyotr.Um

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dia talvez eu me sinta satisfeito por ter umamigoentreosconquistadores.Pyotrestavaexaustoetranspirandoem

seustrajesentremeadosdeouro,masnãopodia relaxar, porque ali estava seusegundofilho,ardendodeansiedade,comumahistóriadehomenssantosemilagres.–Sempreexistemhomenssantos–disse

a Sasha. Sentiu um súbito desejo porsilêncio e uma comida frugal. Osmoscovitasgostavamdacozinhabizantina,eacolisãoresultantecomos ingredientesrussos não fazia bem a seu estômago.Naquela noite haveria mais banquetes emais intrigas. Ele ainda procurava umaesposaparasieummaridoparaOlga.–Pai–disseSasha–,eugostariadeira

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essemonastério,semepermitir.– Sashka, nesta cidade, é impossível

jogar uma pedra sem que se atinja umaigreja–respondeuPyotr.–Porquegastartrêsdiascavalgandoembuscadeoutra?OlábiodeSashacurvou-se.– Em Moscou, os padres estão

apaixonados por sua posição. Comemcarne gorda e pregam pobreza para osmiseráveis.Isso era verdade, mas, embora Pyotr

fosse um bom senhor para seu povo,faltava-lhe um abstrato senso de justiça.Deudeombros.–Podeserqueseuhomemsantosejaa

mesmacoisa.– Mesmo assim, eu gostaria de vê-lo.

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Porfavor,pai.Embora Sasha tivesse os olhos

cinzentos, suas sobrancelhas eram pretas,como as da mãe, e os cílios longos.Curvavam-separabaixo,deumamaneiraestranhamente delicada em seu rostomagro.Pyotr ponderou. As estradas eram

perigosas, mas a que se estendia deMoscou até o norte, bempercorrida, nãooferecia tantos riscos. Não desejava criarumfilhotímido.– Leve cinco homens e duas dúzias de

velas.Issodeverágarantirasuaacolhida.O rosto domenino se iluminou. Pyotr

enrijeceu a boca. Marina transformara-seemossosnaterrainexorável,maseletinha

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visto sua expressão exatamente daquelejeito, quando a alma iluminava seu rostocomoumachama.–Obrigado,pai–omeninodisse.Arremessou-sepelaportaemdisparada,

comoumadoninha.Pyotrouviu-onodvorem frente ao palácio, chamando oshomens,pedindoseucavalo.–Marina–dissePyotremvozbaixa.–

Agradeçoavocêpelosnossosfilhos.

O Mosteiro da Trindade tinha sidoconstruídoemlocalisolado.Emboraospésdos peregrinos que passavam tivessembatidouma trilhapela florestanevada, as

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árvores ainda se amontoavam de cadalado, apequenando a torre do sino daigrejasimplesdemadeira.Sashalembrou-se de sua própria aldeia em LesnayaZemlya. Uma sólida paliçada cercava omonastério, composto, sobretudo, porconstruções pequenas, de madeira. O archeiravaafumaçaepãoassado.Oleg viera com ele, o chefe dos seus

acompanhantes.– Não podemos entrar todos – disse

Sasha,freandoocavalo.Olegconcordoucomacabeça.Ogrupo

todo desmontou, tilintando partes dosarreios.–Vocêevocê–disseOleg.–Vigiema

estrada.

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Os homens escolhidos acomodaram-seao lado da trilha, afrouxaram asbarrigueiras dos cavalos e começaram aprocurar lenha para o fogo. Os outrospassaram entre as duas traves de umportão estreito, destrancando-o. Árvoresgrandes lançavam sombras fuliginosassobreamadeirabrutadaigrejinha.Um homem delgado abaixou-se para

sair por uma soleira, limpando as mãosenfarinhadas. Não era muito alto, nemmuito velho. Seu nariz largo estavaimplantadoentreolhoslíquidosegrandes,o marrom-esverdeado de uma lagoa defloresta. Usava omanto grosseiro de ummonge,salpicadodefarinha.Sasha o conhecia. Estivesse usando os

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trajesdeummendigo,ouosmantosdeumbispo, Sasha o reconheceria. O meninocaiudejoelhosnaneve.Omongeparousubitamente.–Oqueotrazaqui,meufilho?Sashamalconseguiaerguerosolhos.– Vim pedir sua bênção, Batyushka –

conseguiuresponder.Omongelevantouumasobrancelha.–Nãoprecisamechamarassim,nãosou

ordenado,somosfilhosdeDeus.–Trouxemosvelasparaoaltar–Sasha

gaguejou,aindadejoelhos.Uma magra mão, morena, curtida

enfiou-se sob o cotovelo de Sasha e ocolocou de pé. Os dois eram quase damesmaaltura,emboraomeninotivesseos

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ombros mais largos e ainda não fossetotalmente desenvolvido, desengonçadocomoumpotro.–Aqui,sóajoelhamosparaDeus–disse

omonge.AnalisouorostodeSashaporuminstante.–Estoufazendopãesbentosparaas missas desta noite – acrescentouabruptamente.–Venhameajudar.Sasha concordou com a cabeça, sem

conseguir falar, e acenou para que oshomensseafastassem.A cozinha eraprecária e estavaquente

por causado forno.A farinha, a águaeosal estavam prontos para seremmisturados, amassados e assados nascinzas. Os dois trabalharam em silênciodurante um tempo, mas era um silêncio

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confortável.Apazabundavanaquelelugar.As perguntas do monge eram tão suavesqueomeninomalnotouqueestavasendoquestionado, mas, um tanto desajeitadocoma tarefa inabitual, enrolouamassaecontou sua história: o status do pai, amortedamãe,aviagemfeitaaMoscou.–Evocêveioaqui–omongeterminou

paraele.–Oqueprocura,meufilho?Sashaabriuabocaetornouafechá-la.–Nã-nãosei–admitiu,envergonhado.–

Algumacoisa.Parasuasurpresa,omongeriu.–Querficaraqui,então?Sashasóconseguiaolharfixo.–Levamosumavidadifícilnestelugar–

omongecontinuoudeformamaisséria.–

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Vocêconstruiriasuaprópriacela,plantariaseu jardim, assaria seu pão, ajudaria seusirmãos, quando necessário. Mas aquiexistepaz,pazacimadetudo.Percebiquevocê sentiu isto. – Vendo Sasha aindaboquiaberto, completou: – Sim, sim,muitosperegrinosvêmatéaqui,emuitospedemparaficar.Masaceitamosapenasosque buscam aquilo que não sabem queestãoprocurando.–Sim–Sashadisse,finalmente,devagar.

–Sim,eugostariamuitodeficar.– Muito bem – disse Sergei

Radonezhsky,etornouaseconcentraremsuafornada.

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Incitaramoscavaloscomenergia,navoltapara Moscou. Oleg desconfiou daexpressãoexaltadanorostodoseu jovemsenhor. Cavalgou próximo ao estribo deSashaedecidiuconversarcomPyotr.Masorapazalcançouopaiprimeiro.Entraram na cidade quando o breve e

ardentepôrdosoljáiapelametade,comastorresdaigrejaedopaláciorecortadascontra o céu violeta. Sasha deixou seucavalo fumegando no dvor e,imediatamente, subiu a escada emdisparada até os aposentos do pai.Encontrou-o se vestindo, junto com seu

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irmão.– Bem-vindo, irmãozinho –

cumprimentou Kolya, quando Sashaentrou.–Aindanãosecansoudeigrejas?–Lançou a Sasha um olhar rápido etolerante,evoltouasuaatençãoparasuasroupas. Com a língua entre os lábios,colocou um chapéu de zibelina pretadissolutamente sobre seu cabelo preto. –Bem, chegou em boa hora. Livre-se dofedor. Esta noite temos um banquete e épossível que a família nos apresente amulher comquemo pai vai se casar. Elatemtodososdentes;soubedefontesegura,eumagradável…Oquê,Sasha?–SergeiRadonezhskymeconvidoupara

ingressar em seu monastério na colina

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Makovers–repetiuSashamaisalto.Kolyaolhousemexpressão.–Querosermonge–Sashadisse.Istoatraiuaatençãodeles.Pyotrenfiava

suas botas de saltos vermelhos. Virou-separaencararofilhoequasetropeçou.– Por quê?! – exclamou Kolya com

imensohorror.Sashatravouosdentes,refreandovárias

observações impiedosas; seu irmão játinha chamado bastante a atenção dascriadasdopalácio.– Para dedicar minha vida a Deus –

informou a Kolya, com um toque desuperioridade.– Estou vendo que seu homem santo

causou uma impressão e tanto – Pyotr

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disse, antes que o perplexo Kolya serecobrasse.Tinharecuperadooequilíbrioecalçavaasegundabota,talvezcomumaenergia um pouco maior do que onecessário.–Eu…Sim,causou,pai.– Tudo bem, está autorizado –

respondeuPyotr.Kolyaperdeuo fôlego.Pyotrabaixouo

pé e se levantou. Seu caftã era ocre eferrugem; os anéis de ouro da sua mãocaptaramaluzdavela;ocabeloeabarbahaviam sido penteados com óleoperfumado.Suaaparênciaera, aomesmotempo,imponenteedesconfortável.Sasha, que estivera esperando uma

batalhaprolongada,encarouopai.

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– Com duas condições – acrescentouPyotr.–Quaissão?– Primeira: você não deve visitar

novamente este homem santo até ir sejuntaràsuaordem.Istosedarádepoisdacolheitadopróximoano,quandoterátidoumanopararefletir.Segunda:vocêprecisase lembrar de que, como monge, suaherança irá para seus irmãos, e você nãoterá nada além das suas orações parasustentá-lo.Sashaengoliuemsecocomdificuldade.– Mas, pai, se eu puder vê-lo só mais

umavez…–Não.–Pyotrinterrompeu-onumtom

quenãotoleravadiscussão.–Podetornar-

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semonge,sequiser,masfaráissodeolhosabertos, não encantado pelas palavras deumeremita.Sashaaquiesceucomrelutância.–Muitobem,pai.Pyotr, com o rosto um pouco mais

soturno do que o habitual, virou-se semdizer mais nada e desceu as escadas atéonde os cavalos aguardavam, cochilandonaluzmortiçadoanoitecer.

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6

DEMÔNIOS

IVÃ KRASNII TINHA APENAS UMFILHO, O PEQUENO E LOIRO GATOselvagem,DmitriiIvanovich.Aleksei, metropolitano de Moscou, o

maisaltopreladoemRus’,ordenadopelopróprio Patriarca de Constantinopla,estava encarregado de ensinar letras epolíticaaomenino.Emalgunsdias,Alekseiachava que o trabalho estava além de

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qualquer um que não soubesse fazermilagres.Já fazia três horas que os meninos

trabalhavam sobre a cortiça de bétula:Dmitrii com seu primo mais velho,VladimirAndreevich,ojovempríncipedeSerpukhov.Osdoisbrigavam,derrubavamcoisas. É o mesmo que pedir aos gatos dopalácio que se sentem e prestem atenção,pensouAleksei,desesperando-se.–Pai!–gritouDmitrii.–Pai!Ivã Ivanovich entrou na sala. Os dois

meninospularamdeseusbanquinhosesecurvaram,empurrandoumaooutro.–Saiam,meus filhos–disse Ivã.–Vou

conversarcomosantopadre.Os meninos desapareceram em um

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instante.Alekseisoltou-seemumacadeiraao lado da estufa e serviu uma boaquantidadedehidromel.–Comoestámeufilho?–perguntouIvã,

puxandoacadeiraoposta.O príncipe e o metropolitano

conheciam-se haviamuito tempo.AlekseivinhasendolealmesmoantesqueamortedeSemyongarantisseotronoaIvã.– Ousado, belo, encantador, distraído

comoumaborboleta–respondeuAleksei.–Seráumbompríncipe,sevivertanto.Porqueveiomeprocurar,IvãIvanovich?–Anna–respondeuIvã,sucintamente.Ometropolitanofranziuocenho.–Elaestápiorando?– Não, mas nunca vai melhorar. Está

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crescidademaisparaespreitarpelopalácioedeixaraspessoasnervosas.Anna Ivanovna era a única filha do

primeiro casamento de Ivã. A mãe damenina morrera e sua madrasta nãosuportava nem vê-la. As pessoasmurmuravam quando ela passava e sepersignavam.– Existem vários conventos – replicou

Aleksei.–Éumassuntofácilderesolver.–NenhumconventoemMoscou–disse

Ivã.–Minhaesposanãoaceitará isto.Eladiz que a menina provocará falatório seficar por perto. A loucura é uma coisavergonhosa na linhagem de um príncipe.Elaprecisasermandadaparalonge.– Posso resolver, se o senhor quiser –

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disse Aleksei, cansado. Já tinha resolvidomuitascoisasparaopríncipe.–Elapodeirparaosul.Dêumaboaquantidadedeouropara uma abadessa, e em troca elareceberáAnnaeesconderásualinhagem.– Meus agradecimentos, padre – disse

Ivã,eseserviudemaisvinho.– No entanto, acho que o senhor tem

problemasmaiores–acrescentouAleksei.–Inúmeros–concordouogrão-príncipe,

engolindoseuvinho.Enxugouabocacomas costas da mão. – A quais está sereferindo?Ometropolitanoprojetouoqueixoem

direçãoàporta,porondeosdoispríncipeshaviamsaído.–OjovemVladimirAndreevich–disse.

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–OpríncipedeSerpukhov.Afamíliadelequerqueelesecase.Ivãnãoficouimpressionado.– Há muito tempo para isso; ele tem

apenastrezeanos.Alekseisacudiuacabeça.–Elesestãopensandoemumaprincesa

de Litva, a segunda filha do duque.Lembre-se,VladimirtambéménetodeIvãKalitaeémaisvelhodoqueoseuDmitrii.Com um bom casamento e adulto, teriaumamelhorpretensãoaMoscoudoqueoseu próprio filho, caso o senhor morraprecocemente.Ivãempalideceuderaiva.–Elesquenãoseatrevam.Souogrão-

príncipeeDmitriiémeufilho.

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– E daí? – perguntou Aleksei,imperturbável. – O khan considera aspretensões dos príncipes desde que elessirvam a suas necessidades. O príncipemaisforteconsegueotítulo.Éassimqueahordaasseguraapazemseusterritórios.Ivãrefletiu.–Oquefazer,então?– Faça com que Vladimir se case com

outra mulher – disse Alekseiimediatamente.–Nãoumaprincesa,masnãoalguémdeextraçãotãobaixaquesejauminsulto.Seforlinda,omeninoéjovemobastanteparaaceitá-lasemreclamar.Ivã refletiu, tomando seu vinho e

mordendoosdedos.–PyotrVladimirovichésenhordeterras

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férteis – disse, finalmente. – Sua filha éminhaprópria sobrinhae teráumgrandedote. Não é possível que não seja umabeleza.Minhairmãeralindíssima,eamãedelaencantoumeupaiapontodesecasarcomela,emborativessechegadoaMoscoucomomendiga.Os olhos de Aleksei reluziram. Puxou

suabarbacastanha.–É–concordou.– Soube que Pyotr Vladimirovich

também estava emMoscou à procura deumamulherparasipróprio.– Está – disse Ivã. – Surpreendeu a

todos. Minha irmã morreu há sete anos.Ninguém pensou que ele fosse se casarnovamente.

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– Bem, então, se ele está procurandoumaesposa,quetalvocêlheentregarasuafilha?Ivãpousouseucopocomcertasurpresa.–Annaficarábemescondidanafloresta

donorte–Alekseicontinuou.–EVladimirAndreevichousarárecusarafilhadePyotr,então?Umameninacomuma ligação tãopróxima ao trono? Seria um insulto aosenhor.Ivãfranziuocenho.–OdesejodeAnnaé,sobretudo,irpara

umconvento.Alekseideudeombros.–Edaí?PyotrVladimirovichnão éum

homem cruel. Ela ficará bem feliz. Pensenoseufilho,IvãIvanovich.

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Umdemôniocosturavanocanto,eelaeraaúnicaqueovia.AnnaIvanovnaagarrouacruz entre os seios. De olhos fechados,murmurou:–Vá embora, vá embora, por favor, vá

embora.Ela abriu os olhos. O demônio

continuava ali, mas agora duas das suasmulheres encaravam-na. Todas as outrasolhavam com estudado interesse para acostura que tinhamno colo.Anna tentounão deixar seus olhos dirigirem-senovamente para o canto, mas nãoconseguiu evitar. O demônio estava

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sentado em seu banquinho, distraído.Anna estremeceu. A camisa de linhopesadojaziaemseucolocomoumacoisamorta. Enfiou as mãos em suas dobrasmaciasparaesconderseutremor.Uma criada entrou na sala. Anna,

rapidamente, pegou sua agulha e sesurpreendeu quando os gastos sapatos deentrecascapararamàsuafrente.– Anna Ivanovna, está sendo chamada

porseupai.Anna olhou fixamente. Seu pai não a

tinhachamadonamaiorpartedoano.Porummomento,permaneceuatônita,depoisse levantoudeumpulo.Depressa, trocouseu sarafan simples por um carmesim eocre,vestindo-osobresuapeleencardida,

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tentando ignorar o mau cheiro da sualongatrançacastanha.Os Rus’ gostavam de estar limpos. No

inverno, raramente passava-se umasemana sem que suas meias-irmãsvisitassemascasasdebanho,masalihaviaumdiabinhobarrigudoquesorriaparaelasemmeioaovapor.Annatentoumostrá-lo,mas suas irmãs não viram nada. Aprincípio, atribuíram aquilo a suaimaginação,maistardeaumabobagem,e,porfim,apenasolhavam-nadeesguelhaenãodiziamnada.Então,Annaaprendeuanãomencionarosolhosnasaladebanhos,assim como nunca se referiu à criaturacareca que costurava no canto. Mas, àsvezes,olhava,nãoconseguiaevitar,enão

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ia à sala de banhos até sua madrastaarrastá-laoupersuadi-la.Anna desmanchou a trança do seu

cabelooleosoevoltouafazê-la,tocandoacruz sobre o peito. Era amais devota detodas as irmãs.Todosdiziam.Oquenãosabiaméquenumaigrejahaviaapenasosrostos sublimes dos ícones, não existiaqualquer demônio para assombrá-la. Sepudesse,elaviverianumaigreja,protegidaporincensoeolhospintados.A estufa estava quente na sala de

trabalho da sua madrasta, e o grão-príncipe se encontrava ao lado dela,suando nos trajes elegantes de inverno.Portava sua expressão azeda habitual,embora os olhos brilhassem. Sua esposa

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estava sentada ao lado do fogo, a trançafina escapando do seu toucado alto. Asagulhas estavam esquecidas em seu colo.Anna estacou a alguns passos e curvou acabeça. Marido e mulher analisaram-naem silêncio.Por fim, seupai disse para amadrasta:– A glória de Deus, mulher. – Parecia

irritado. – Não consegue levar a meninapara se banhar? Parece que ela andavivendocomosporcos.–Não importa–respondeuamadrasta

–,seelajáestivercomprometida.Anna estivera com os olhos voltados

para os pés, como uma donzela bem-educada,mas agora sua cabeça ergueu-seemsobressalto.

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– Comprometida? – murmurou,detestandoamaneiracomosuavozsubia,esganiçada.–Vocêvaisecasar–disseopai.–Com

Pyotr Vladimirovich, um daquelesboiardosdonorte.Éumhomemricoeserágentilcomvocê.–Casar?Mas eupensava…Esperava…

Pretendia irparaumconvento.Rezaria…rezaria pela sua alma, pai. Quero issoacima de tudo. – Anna retorcia as mãosjuntas.–Bobagem–disse Ivã, bruscamente. –

Você vai gostar de ter filhos, e PyotrVladimirovich é um homem bom. Umconventoéumlugarfrioparaumamenina.Frio? Não, um convento era seguro.

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Seguro, abençoado, uma pausa em sualoucura.Desdeque conseguia se lembrar,Anna quisera tomar os votos. Agora, suapeleempalideciade terror.Atirou-separaafrenteeagarrouospésdopai.–Não, pai! – gritou. –Não, por favor!

Nãoqueromecasar.Ivã levantou-a, sem brusquidão, e a

colocouempé.–Chegadisso–elemandou.–Decidieé

omelhor.Você receberáumbomdote, éclaro,emedaránetosfortes.Anna era pequena e magricela, e a

expressãodasuamadrastarevelavadúvidaquantoaisso.–Mas…porfavor–murmurouAnna.–

Comoeleé?

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– Pergunte às suas mulheres – Ivãrespondeu com indulgência. – Tenhocerteza de que elas terão boatos. Esposa,providencieparaqueascoisasdelaestejamemordeme,peloamordeDeus,façacomqueelasebanheantesdocasamento.Dispensada, Anna voltou pesadamente

para sua costura, segurando os soluços.Casar!Nãooretiro,masserasenhoradosdomíniosdeumhomem;nãoestarasalvoem um convento, mas viver como aparideira de algum senhor. E os boiardosnortistas eram homens vigorosos, diziamas criadas, que se vestiam com peles etinham centenas de filhos. Eram rudes ebelicosos, e algumas gostavam de dizerquerecusavamCristoeadoravamodiabo.

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Annatirouseubelosarafanpelacabeça,tremendo.Se sua imaginaçãopecaminosaconjuravademôniosnarelativasegurançade Moscou, como seria sozinha, naspropriedadesdeumsenhordesregrado?Asflorestas do norte eram assombradas, asmulheresdiziam,eo invernoduravaoitodos doze meses. Era insuportável pensarnisso. Quando a menina voltou para suacostura,suasmãostremiamtantoquenãoconseguiufazerospontosdireito,emesmocom todo o esforço, o linho ficoumanchadodelágrimassilenciosas.

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7

OENCONTRONOMERCADO

PYOTRVLADIMIROVICH, SEM SABERQUE SEU FUTURO TINHA SIDOacordado entre o grão-príncipe e ometropolitano de Moscou, levantou-secedo na manhã seguinte e foi até omercadonapraçaprincipaldeMoscou.Aboca tinhagostodecogumelosvelhoseacabeçalatejavadaconversaedabebida.E–velhoidiotadedeixaromeninoàsolta–seu

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filho queria tornar-semonge. Pyotr tinhagrandesesperançasemrelaçãoaSasha.Omenino era mais equilibrado e maisinteligente do que o irmão mais velho,melhor com os cavalos, mais habilidosocom as armas. Pyotr não conseguiaimaginar maior desperdício do que vê-losumir em um casebre, para cultivar umjardimparaaglóriadoSenhor.Bem, consolou-se. Quinze anos é muito

jovem.Sashamudariadeideia.Piedadeeraumacoisa,outrabemdiferenteeradesistirda família e da herança em troca daprivaçãoedeumacamafria.O burburinho do vozerio invadiu sua

divagação. Pyotr sacudiu-se. O ar friorecendia a cavalos e fogueiras, fuligem e

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hidromel.Homenscomcanecassacudindonos cintosproclamavamasvirtudesdesteúltimoaoladodeseusbarrisgrudentos.Osvendedoresdetortasestavamapostoscomseustabuleirosfumegantes,eosdetecidose pedras preciosas, cera e madeira rara,mel e cobre, bronze trabalhado ependuricalhosdeouroempurravam-seembusca de espaço. Suas vozes reboavamparaassustarosolmatinal.EMoscoutemapenasumpequenomercado,

Pyotrpensou.Saraieraasededokhan.Eraparaláque

iam os grandes mercadores vendermaravilhas para uma corte enfadada comtrezentos anos de pilhagem. Até osmercadosmais ao sul, emVladimir, ou a

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oeste,emNovgorod,erammaioresdoqueo de Moscou. Mas os mercadores aindagotejavamparaonorte,vindosdeBizânciooumaisaleste,tentadospelospreçosquesuas mercadorias alcançavam entre osbárbaros; e seduzidos, ainda mais, pelospreços que os príncipes pagavam emTsargradpelaspelesdonorte.Pyotr não poderia voltar para casa de

mãosvazias.OpresentedeOlgaeramuitofácil; comprou-lhe um toucado de sedacravejado de pérolas, para reluzir em seucabelo escuro. Para seus três filhos,comprouadagascurtas,maspesadas,como cabo incrustado. No entanto, por maisque tentasse, não conseguiu encontrarnadaparadaraVasilisa.Elanãoerauma

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meninaquegostassedeberloques,nemdecontasou toucados.Masele tambémnãopoderia lhe dar uma adaga. Franzindo ocenho,Pyotr insistiu,eavaliavaopesodebroches de ouro quando avistou umhomemestranho.Pyotr não conseguiria dizer,

exatamente, o que havia de estranhonaquele homem, exceto que tinha umaespécie de… tranquilidade chocante emmeio à confusão. Suas roupas erampróprias de um príncipe, as botas eramricamente bordadas. Uma faca pendia doseucinto,gemasbrancasbrilhandoemseucabo. Seus cachos negros estavamdescobertos, o que era estranho emqualquerhomem,maisaindaporserpleno

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inverno, céu brilhante e neve rangendodebaixo dos pés. Seu rosto estavabarbeado,algoquaseinéditoentreosRus’,e, de longe, Pyotr não conseguia dizer seeravelhooujovem.Pyotr deu-se conta de que estava

encarandoedesviouorosto.Porémficoucurioso.Omercadordejoiasdisseemtomconfidencial:– Está curioso em relação àquele

homem?Osenhornãoéoúnico.Àsvezesele vem ao mercado, mas ninguém sabequeméoseupovo.Pyotr ficou cético. O mercador sorriu

cinicamente.–Estoufalandosério,gospodin.Jamaisé

visto na igreja, e o bispo quer que seja

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apedrejado por idolatria. Mas é rico, esempre traz as coisas mais maravilhosaspra comercializar. Então, o príncipemantémaIgrejaquietaeohomemvemevai novamente. Talvez seja um diabo. –Istofoiditorapidamente,meiorindo,masentãoomercadorfezumacareta.–Nuncao vi na primavera. Sempre, sempre noinverno,naviradadoano.Pyotr resmungou. Ele próprio estava

bemabertoàpossibilidadedediabos,masnão estava convencido de que ficariampasseandoemmercados,verãoouinverno,vestindo trajes principescos. Sacudiu acabeça,indicouumapulseiraedisse:–Istoémercadoriapodre;apratajáestá

verdeao redordasbordas.–Omercador

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protestoueosdoispuseram-seabarganharseriamente, esquecendo tudo o que sereferiaaoestranhodecabelospretos.

Oestranhoemquestãoparouemfrenteauma barraca domercado, a nãomais dedezpassosdeondePyotrestava.Correuosdedos sobre uma pilha de brocadossedosos.Bastavamsuasmãosparasaberaqualidade da mercadoria. Dedicava umaatençãoapenassuperficialaotecidoàsuafrente.Seusolhosclarosiamdeláparacánomercadoapinhado.O vendedor de tecidos observou o

estranho com uma espécie de cautela

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obsequiosa.Osmercadoresconheciam-no;algunspensavamqueeleeraumdeles. JátinhatrazidomaravilhasaMoscou:armasdeBizâncio, porcelana leve comoo ar damanhã. Os mercadores lembravam-se.Mas dessa vez o estranho tinha outropropósito,ounãoteriajamaisvindoaosul.Não gostava de cidades, e era um riscoatravessaroVolga.Ascores faiscanteseopesovoluptuoso

do tecido pareceram, subitamente,entediantes, e, passado um momento, oestranho largou o tecido e atravessou apraçaapassos firmes.Suaéguaestavanolado sul, mastigando fiapos de feno. Umvelho remelento perfilava junto a suacabeça, pálido, magro e estranhamente

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etéreo, embora a égua branca fossemagníficacomoumaelevadamontanhaetivesse umarreio trabalhado e incrustadode prata. Os homens olharam-na comadmiração, quando eles passaram. Elaagitou as orelhas como uma coquete,extraindoumlevesorrisodoseucavaleiro.Repentinamente, contudo, um

homenzarrãocomunhasquebradiçassaiudamultidãoeagarrouarédeadocavalo.Orostodocavaleiroendureceu.Emboranãotivesse apertado o passo – não houvenecessidade–,umventogeladoperpassoupela praça. Os homens seguraram seuschapéus e vestes soltas.Opossível ladrãomontouna sela comumpuloe enfiouoscalcanhares, mas a égua não se mexeu.

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Nem seu cavalariço, pormais que pareçaestranho.Nãogritou,nemlevantouamão.Simplesmente observou, com um olharenigmáticoemseusolhosfundos.O ladrão chicoteou o ombro da égua.

Elanãomexeuumcasco,apenasabanouacauda.O ladrão hesitou por um aturdidoinstante e então foi tarde demais. Ocavaleirodeuumpuloeoarrancoudasela.O ladrão poderia ter gritado, mas suagarganta ficou congelada. Ofegante,procurouacruzdemadeiraquelevavaaopescoço.Ooutrosorriu,semhumor.– Você invadiu a minha propriedade.

Achaqueafévaisalvá-lo?–Gosudar–oladrãogaguejou–,eunão

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sabia…Eupensei…–Quepessoascomoeunãoandamem

lugares públicos? Bem, eu ando por ondequero.– Por favor – implorou o ladrão

sufocado.–Gosudar,imploro…–Não choramingue – disse o estranho

comumhumorcortante–,eeuodeixareipor um tempo, para que ande emliberdade debaixo do sol.No entanto – avoz baixa tornou-se aindamais baixa e arisadaescorreudalicomoáguadeumcopoquebrado –, você está marcado, mepertence, e um dia encostarei novamenteemvocê.Vocêmorrerá.Oladrãosufocouumsoluçoe,depois,se

viu subitamente só, o braço e a garganta

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numardordefogo.Já na sela, embora ninguém o tivesse

vistomontar,oestranhotocouocavaloemmeio à balbúrdia.O tratador da égua fezumamesuraeseperdeunamultidão.Aéguaeraleve,rápidaesegura.Airado

seu cavaleiro amainou-se enquanto elecavalgava.–Ospresságiosmetrouxeramatéaqui–

o homem falou para o cavalo. – Para cá,estacidadefedida,quandoeunãodeveriater deixado minhas próprias terras. – Jáfazia um mês que estava em Moscou,procurandoincansável,rostoapósrosto.–Bem,ospresságiosnãosãoinfalíveis–eledisse. –E afinal de contas, foi apenasumvislumbre.Ahorapodeterpassado;pode

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serquenuncachegue.A égua inclinou uma orelha para trás,

emdireçãoaseucavaleiro.Oslábiosdeleretesaram-se.–Não–elenegou.–Soutãofácilassim

deservencido?Aéguaprosseguiunumtroteregular.O

homemsacudiuacabeça.Aindanãoestavaderrotado;seguravaamagiatremendonagarganta, no oco da mão, pronto. Suaresposta estava em algum lugar destamiserável cidade de madeira, e ele aencontraria.Virou a égua a oeste, incitando-a num

galope de passadas largas. A friagem emmeioàsárvoresclareariasuacabeça.Nãoestavavencido.

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Aindanão.

Ofedordehidromelecachorros,poeiraehumanidaderecebeuoestranhoaochegaraobanquetedogrão-príncipe.Osboiardosde Ivã eram homenzarrões acostumadosao combate e a extrair vida da terra dogelo. O estranho não chegava nem aotamanho do menor deles. Muitosesticaram o pescoço para olhá-lo quandoentrou no saguão. Mas ninguém, nemmesmoomaisvalenteouomaisbêbado,conseguiaencará-lonosolhos,eninguémodesafiou.Oestranhoocupouum lugarnamesaprincipalebebeuseuhidromel sem

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ser incomodado.O bordado emprata doseu caftã brilhava à luz das tochas. Umadas amas da princesa sentou-se ao ladodele,olhandoporentreoslongoscílios.Ivã tinha aceitado os presentes do

estranho com olhos perscrutadores e lheofereceuahospitalidadedoseusaguão.Aquaresmaestavapróximaeobarulhoeraensurdecedor.Mas…Tudocontinuaomesmoaqui, pensou o estranho. Todos estes rostosestúpidos, agitados. Sentado em meio àbalbúrdiaeaofedor,pelaprimeiravezelesentiu, talvez não um desespero, mas ocomeçodeumaresignação.Foi então que um homem adentrou o

saguão com seus dois filhos crescidos.Ostrês tomaram seus lugares à mesa

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principal. O homemmais velho era bemcomum,suasroupasdeboaqualidade.Seufilhomais velho andava empertigado e omaisnovocaminhavamacio,oolharfrioegrave. Completamente comuns. E noentanto…Oolhardoestranhomoveu-se.Comos

trêsveioumsoproonduladodevento,umvento vindo do norte. No espaço entreumaaragemeapróxima,oventocontou-lheumahistória:devidaemortejuntas,deuma criança nascida no ano desastroso.Depois, e mais fraco, como um eco, oestranhoouviuumribombareumchoque,como de uma onda numa rocha. Numbrevíssimo momento no saguão fétido,sentiuosol,osaleapedramolhada.

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– O sangue aguarda, irmão – elesussurrou.–Elaviveenãomeenganei.–Seu rosto estava triunfante.Voltoupara amesa (embora,naverdade,não tivesse semexido)esorriucomsúbitoprazerparaosolhosdamulheraoseulado.

Pyotr tinha praticamente esquecido oestranhonomercado.Masquandochegounaquela noite àmesa do grão-príncipe, alembrançalheveiorapidamente,porqueomesmo estranho estava sentado entre osboiardos, ao lado de uma das damas daprincesa.Elaolhavaparaele,aspálpebraspintadastremendocomopássarosferidos.

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Pyotr,SashaeKolyaviram-sesentadosàesquerdadamoça.Emborafosseumaqueo próprio Kolya estivera cortejando, elamal chegou a olhar na direção dele.Furioso, o rapaz preteriu a comida emfavor do olhar (ignorado), dedilhando nafaca do seu cinto (a mesma coisa) edeclamandoaseuirmãoasbelezasdafilhadecertomercador(queadamaarrebatadanão escutou). Sasha permaneceu tãoinexpressivo quanto possível, como se aaparência de surdez pudesse pôr um fimàquelaconversaímpia.Alguém tossiu atrás deles. Pyotr

levantouosolhosdessacenainteressanteeencontrouumcriadojuntoaseucotovelo.–Ogrão-príncipegostariadefalarcom

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você.Pyotr franziu o cenho e assentiu. Mal

tinha visto seu antigo cunhado desdeaquela primeira noite. Conversara cominúmeros dvoryanye, fora pródigo nasgorjetas, e, em troca, tinham-lheasseguradoque,desdequepagassetributo,nãoseriaincomodadopeloscobradoresdeimpostos.Alémdisso,estavaemadiantadanegociação pela mão de uma mulhermodesta e decente, que cuidaria da suacasa e dos seus filhos. Tudo estava sedesenrolando de acordo. Então, o que opríncipepoderiaquerer?Pyotr seguiu ao longo da mesa,

captando,àluzdofogo,obrilhodosdentesdos cães aos pés de Ivã. O príncipe não

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demorouachegaraoponto.– Meu jovem sobrinho, Vladimir

AndreevichdeSerpukhov,quertomarsuafilhacomoesposa–disse.Seopríncipetivesselheinformadoque

osobrinhoqueriasetornarummenestrelevagarpelasruas tocandoguzla,Pyotrnãopoderia ficar mais espantado. Seus olhoscaptaram de esguelha o príncipe emquestão, que estava bebendo à mesa, aalgunslugaresdedistância.OsobrinhodeIvãtinhatrezesanos,ummeninonoinícioda masculinidade, elástico e com acne.TambémeraonetodeIvãKalita,oantigogrão-príncipe. Certamente poderiapretender um casamento mais nobre.Todas as famílias ambiciosas da corte

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empurravamasfilhasvirgensparaele,soba alegre pretensão de que uma acabariacravando.Porquedesperdiçaraposiçãonafilha de um homem, ainda que rico, delinhagem modesta, uma menina que omenino nunca tinha visto e que, alémdisso,moravaaumadistânciaconsideráveldeMoscou?Ah. Pyotr livrou-se da surpresa. Olga

vinhadelonge.Ivãestariadesconfiadodemeninas escoradas por tribos derelacionamentos. Uma aliança entrefamílias grandes tendia a dar aosdescendentesambições reais.ApretensãodojovemDmitriinãoeramuitomaisfortedo que a do primo, eVladimir tinha trêsanos a mais do que o herdeiro. Os

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príncipesherdavamsegundoavontadedokhan. A filha de Pyotr teria um grandedote, mas não passava disso. Ivã estavafazendo o possível para amordaçar osboiardos moscovitas, para benefício dePyotr.Pyotrficousatisfeito.–IvãIvanovich–começou.Masopríncipenãotinhaterminado.– Se você ceder sua filha para o meu

sobrinho,estouprontoparalhedarminhaprópria filha, Anna Ivanovna, emcasamento. É uma boamenina, submissacomoumapomba,ecomcertezapodelhedarmaisfilhoshomens.Pela segunda vez, Pyotr ficou perplexo

e,decertomodo,menossatisfeito.Játinha

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trêsfilhoshomens,entreosquaisteriaquedividirsuapropriedade,enãoprecisavademais. Por que o príncipe desperdiçariauma filha virginal com um homem semgrande importância, que apenas queriaumamulher sensata para administrar suacasa?O príncipe levantou uma sobrancelha.

Pyotrhesitou.Bem, ela era sobrinha deMarina, filha

de um grão-príncipe, prima de seusprópriosfilhos,eeletambémnãopoderiaperguntaroquehaviadeerradocomela.Mesmoque fossedoente, alcoólatra,umameretriz ou… Bem, mesmo assim obenefício de aceitar o casamento seriaconsiderável.

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–Comopoderiarecusar,IvãIvanovich?–perguntouPyotr.O príncipe acenou a cabeça com

gravidade.– Amanhã, um homem irá até você

negociar o contrato nupcial – respondeuIvã, voltando-se para sua taça e seuscachorros.Dispensado, Pyotr viu-se voltandopara

seulugarnalongamesa,paradaranotíciaaos filhos. Encontrou Kolya amuado emseu copo. O estranho de cabelos escurostinha ido embora, e a mulher olhava nadireçãoemqueelepartiracomtalterroredesejo sofrido que Pyotr, apesar do seuesforço, viu-se com a mão lançando-se,quasequeinvoluntariamente,embuscada

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espadaquenãotrazia.

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8

APALAVRADEPYOTRVLADIMIROVICH

PYOTR VLADIMIROVICH PEGOU NAMÃOGELADADASUANOIVA,OLHOUcismadoparaseurostopequenoecontritoeseperguntousepoderiaterseenganado.Foraprecisoumaprecipitadasemanaparanegociaremosdetalhesdoseucasamento,demodoquepudesse sercelebradoantesdo começo da quaresma. Kolya tinhapassadoessetempoflertandocommetade

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das criadas do Kremlin, em busca decomentáriossobreapossívelnoivadopai.Não conseguiu chegar a um consenso.Umas diziam que era bonita; outras, quetinha uma verruga no queixo e apenasmetadedosdentes;disseramqueopaidelaa mantinha trancada, ou que ela seescondia em seus aposentos enunca saía;queeradoenteou louca, tristeouapenastímida, e, por fim, Pyotr decidiu que,qualquerquefosseoproblema,erapiordoquetemia.Porém agora, olhando sua noiva por

inteiro, ficou na dúvida. Era muitopequena,maisoumenosdamesmaidadedeKolya,embora suaatitude fizessecomqueparecessemaisnova.Suavozerasuave

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eofegante,seucomportamento,submisso,oslábiosagradavelmentecheios.Nãotinhanada de Marina, embora tivessem omesmo avô, e Pyotr sentiu-se agradecidopor isso. Uma vigorosa trança castanhaemoldurava seu rosto redondo. Olhandodeperto, tambémhaviauma sugestãodetensão por volta dos olhos, como se seurosto fosse se enrugar como um punhofechado,quandoficassevelha.Usavaumacruz, na qual mexia constantemente, emanteve os olhos baixos,mesmo quandoPyotrprocurouolharoseurosto.Pormaisquetentasse,Pyotrnãoconseguiuvernadaclaramenteerradocomela,exceto,talvez,um mau humor incipiente. Ela, comcerteza,nãopareciabêbada,nem leprosa

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ou louca. Talvez fosse apenas tímida eintrovertida. Talvez o príncipe realmentetivesse proposto esse casamento comoumademonstraçãodefavor.Pyotrtocounocontornodocedoslábios

da sua noiva e desejou poder acreditarnisso.Os festejosapósocasamento foramno

saguão do pai dela. Amesa gemia sob opeso de peixes, pães, tortas e queijos.Oshomens de Pyotr gritaram, cantaram ebeberam à sua saúde. O grão-príncipe esuafamíliasorriramcomcertasinceridadee lhes desejaram muitos filhos. Kolya eSashapoucodisseram,olhandocomcertoressentimento para sua nova madrasta,umaprimapoucomaisvelhadoqueeles.

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Pyotr encheu a esposa de hidromel etentou deixá-la à vontade. Fez o possívelparanãopensaremMarina,comdezesseisanos ao se casar com ele, que o haviaolhadodiretamentenorostoaodizerseusvotos,rido,cantadoecomidocomvontadenobanquetedoseucasamento,dirigindo-lhe olhares de esguelha como se odesafiasseaamendrontá-la.Pyotr levara-apara a cama semilouco de desejo,beijando-a até que o desafio setransformouempaixão.Levantaram-senamanhã seguinte bêbados de langor eprazer mútuo. Mas esta criatura nãoparecia capaz de desafio, talvez nemmesmo de paixão. Ela se inclinou sob otoucado, respondendo às perguntas dele

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com monossílabos e esmigalhando umpedaço de pão entre os dedos. Por fim,Pyotr deu-lhe as costas, suspirando, edeixou seus pensamentos dispararem aolongo da trilha sinuosa que adentrava aflorestaescuradoinverno,atéasnevesdeLesnayaZemlyaeassimplicidadesdacaçae do cerzido, longe daquela cidade quecheiravaainimigosefavoresferinos.

Seis semanas depois, Pyotr e seu séquitoprepararam-se para ir embora. Os diasestavam encompridando-se e a neve nacapitaltinhacomeçadoaamolecer.Pyotreseusfilhosolharamaneveeapressaramos

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preparativos. Se o gelo afinasse antes decruzaremoVolga, teriamque trocar seustrenós por carroças e esperar umaeternidade até que o rio ficasseultrapassávelporbalsa.Pyotrestavapreocupadocomsuasterras

e ansioso para voltar a suas caçadas ecultivo.Tambémpensou,vagamente,queoarlimpodonortepoderiaacalmaroquequerqueestivesseassustandosuaesposa.Anna, embora quieta e cordata, nunca

deixava de olhar à sua volta, de olhosarregalados, mexendo na cruz entre osseios. Às vezes, murmurava de maneiraperturbadora em cantos vazios. Pyotrlevara-aparaacamatodasasnoitesdesdeo casamento, mais por obrigação do que

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porprazer,éverdade,maselaaindateriaque olhá-lo no rosto. Ouvia seu choro,quandoelapensavaqueeletinhadormido.A comitiva aumentara

consideravelmente em número, com oacréscimodospertenceseacompanhantesde Anna. Os trenós deles encheram opátio, e muitos dos criados puxavamcavalos de carga pelas rédeas. Os doisfilhosdePyotrestavammontados.AéguadeSashaerguiaumapata,depoisoutra,esacudiaacabeçaescura.OcavalodeKolyaestava quieto, e o próprio Kolya jazialargado na sela, os olhos injetadossemicerradoscontraosoldamanhã.KolyaobtiveragrandesucessoentreosfilhosdosboiardosemMoscou.Superaraatodosem

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luta e vários deles no arco e flecha; eramais resistente ao álcool do que quasetodosetinhaseentretidocomumgrandenúmero de palacianas. Em resumo,divertira-se,eaperspectivadeuma longaviagem,comnadaalémdeárduotrabalhoemseufinal,nãolheagradava.Doseulado,Pyotrestavasatisfeitocom

aexpedição.Olgaestavaprometidaaumhomem – bem, um menino – deconsequências muito maiores do que eleteria sonhado. Ele próprio voltara a secasar, e ainda que a moça fosse bemestranha, pelomenos não era promíscua,nem doente, e era outra filha do grão-príncipe.Assim,foicommuitobomhumorque viu tudo pronto para a partida.

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Procurouaoredorporseugaranhão,paraquepudessemmontarepartir.Um estranho estava parado próximo à

cabeça do seu cavalo, o homem domercado, que também tinha ceado nosaguão do grão-príncipe. Na pressa queenvolvera seu casamento, Pyotr tinha seesquecido do estranho, mas agora aliestavaele,agradandoofocinhodeMeteleavaliandoogaranhãocomoolhar.Pyotr esperou, não sem certa

expectativa,queamãodoestranholevasseumamordida,porqueMetelnãoeradadoafamiliaridades,masdepoisdeumtempopercebeu, atônito, que o cavalo estavaabsolutamente imóvel, orelhas abaixadas,comoumvelhoburrodeumcamponês.

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Desconcertadoeirritado,Pyotrdeuumlongopassoemdireçãoaeles,masKolyaadiantou-se.Orapaztinhaencontradoumalvo onde disparar sua ira, sua dor decabeçaesuainsatisfaçãogeral.Esporeandoseu cavalo, parou a pouca distância doestranho, perto o suficiente para que oscascos do animal respingassem neve sujaem todo o manto azul do homem. Ocavalo deu umas empinadas revirando osolhos,fazendobrotarsuoremseusflancosmarrons.– O que está fazendo aqui? – Kolya

perguntou, controlando o cavalo commãosfirmes.–Comoseatreveatocarnocavalodomeupai?O estranho enxugou um respingo em

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umadasfaces.– É um cavalo muito bonito –

respondeu, tranquilamente. – Pensei emcomprá-lo.–Bem,nãopode.–Kolyapulouparao

chão.O filhomaisvelhodePyotr tinhaacompleiçãotão largaepesadaquantoumboisiberiano.Ooutro,maisbaixoemaisdelgado,deveriaparecerfrágilaoseulado,masnãofoioqueaconteceu.Talvezfosseaexpressão em seus olhos. Com umasensaçãodedesconforto,Pyotracelerouopasso. Talvez Kolya ainda estivessebêbado, talvez fosse apenas imprudente,mas confundiu a brandura do estranhocom complacência. – E como é que vocêpensa em lidar com um cavalo destes,

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homenzinho?–acrescentoucomdesdém.–Volteparasuaamanteedeixequehomensvigorosos montem cavalos de batalha! –Avançou até os dois estarem frente afrente,tateandosuaadaga.O estranho sorriu com um esgar

excessivamentemodesto.Pyotrquisgritarumalerta,mas aspalavras congelaram-seem sua garganta. Por um momento, oestranhoficouperfeitamenteimóvel.Eentão,moveu-se.Pelo menos, Pyotr deduziu que se

movera.Nãoviuomovimento.Viuapenasuma centelha, como luz na asa de umpássaro.Kolyagritou,apertandoseupulso,e então o homem estava às suas costas,com um braço ao redor do seu pescoço,

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uma adaga encostada em sua garganta.Tudo acontecera tão rápido que até oscavalos não tiveram tempo parasobressaltos. Pyotr pulou para a frente,comamãonaespada,masparouquandoohomem levantou os olhos. O estranhotinha os olhos mais esquisitos que ele jáhavia visto, um azul muito, muito claro,como um céu límpido num dia frio. Suasmãoseramelásticasefirmes.– Seu filho insultou-me, Pyotr

Vladimirovich–eledisse.–Devoexigir-lhea vida? – A facamexeu-se. Um tênue fiovermelho abriu-se no pescoço de Kolya,ensopandosuabarbanova.Orapazlutavapara respirar.Pyotrnão sedignouaolhá-lo.

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–Estánoseudireito–respondeuPyotr.–Mas,eulhepeço,permitaquemeufilhopeçadesculpas.OhomemolhouKolyacomdesprezo.–Ummeninobêbado–disse,etornoua

apertaramãonafaca.– Não! – esganiçou Pyotr. – Talvez eu

possacompensaristo.Temosumpoucodeouro. Ou, caso queira, o meu cavalo. –Pyotrfezopossívelparanãoolharparaseubelo garanhão cinzento. Um leve, muitoleve, ar divertido apareceu nos olhosgeladosdoestranho.– Generoso – disse, secamente. – Mas

não.Eulhedareiavidadoseufilho,PyotrVladimirovich,emtrocadeumserviço.–Queserviço?

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–Osenhortemfilhas?Aquilofoiinesperado.–Tenho–Pyotrdissecomprecaução.–

Mas…A expressão divertida do estranho

aguçou-se.– Não, não tomarei uma delas como

concubina, nem a violentarei em umaencosta nevada. Está levando presentespara seus filhos, não está?Bem, eu tenhoum presente para sua filhamais nova.Osenhorteráquefazê-lajurarquesempreolevará com ela. Também terá que jurarque jamais contará para alma viva ascircunstâncias do nosso encontro. Apenassob essas condições, e apenas assim,poupareiavidadoseufilho.

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Pyotr considerou por um instante.Umpresente?Quepresenteseriadadocomameaçasaomeufilho?– Não colocarei minha filha em risco.

Nem mesmo pelo meu filho. Vasya éapenas umamenininha, a última filha daminhamulher.–Masengoliuemsecocomdificuldade. O sangue de Kolya escorrianumlentofioescarlate.O homem olhou para Pyotr com os

olhoscontraídos,eporum longo instantefez-sesilêncio.Então,disse:– Ela não sofrerá nenhum dano. Juro

sobre o gelo e a neve e mil vidas dehomens.– Então, qual é esse presente? –

perguntouPyotr.

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O estranho soltou Kolya, que ficoucomo um sonâmbulo, os olhoscuriosamente sem expressão. O estranhocaminhouatéPyotreretirouumobjetodeumacapangaquetraziaaocinto.Nemsuaimaginaçãomaisousada,Pyotr

sonharia com o penduricalho que ohomem lheestendia:umaúnicapedradeum azul-prateado brilhante, incrustadanum emaranhado de metal claro, comouma estrela ou um floco de neve,pendendodeumacorrentefinacomoumalinhadeseda.Pyotrlevantouosolhoscomindagações

nos lábios,maso estranhoantecipou-se aele.– Aqui está – disse o estranho. – Um

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penduricalho, nada mais do que isto.Agora,asuapromessa.Osenhordaráissoàsuafilhaenãocontaráaninguémsobreonosso encontro. Se faltar com a suapalavra,vireiematareiseufilho.Pyotrolhouparaseushomens.Estavam

comexpressõesvazias; atéSasha, emseucavalo,acenoupesadamente.OsanguedePyotr gelou.Não temia nenhum homem,mas este estranho misterioso tinhaenfeitiçado sua gente; até seus corajososfilhos estavam sem ação. O colar pendiagélidoepesadoemsuamão.–Prometo–Pyotrdisse,porsuavez.O

homem assentiu com a cabeça uma vez,virou-seeatravessouopátioenlameadoapassos firmes. Assim que ficou fora da

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vista, os homens de Pyotr agitaram-se àsua volta. Pyotr rapidamente enfiou oobjetobrilhantenasuacapangadecintura.– Pai? – disse Kolya. – Pai, qual é o

problema?Está tudopronto; só faltavocêdaraordemepartiremos.Pyotr, encarando seu filho com

incredulidade, não disse nada, porque asmanchasdesanguetinhamdesaparecidoeKolya piscava para ele com um olharinjetado e calmo, sem resquícios do seuencontrorecente.– Mas… – Pyotr começou, e depois

hesitou,lembrando-sedasuapromessa.–Pai,qualéoproblema?–Nada–dissePyotr.CaminhouatéMetel,montouetocouo

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cavalo, resolvendo tirar o estranhoencontro da cabeça. Mas duascircunstânciasconspiraramcontraele.Porum lado, quando acamparam naquelanoite, Kolya descobriu cinco marcasbrancas oblongas em sua garganta, comose tivesse sofrido um congelamento,embora sua barba estivesse densa, agarganta bem protegida. Por outro, pormais que procurasse ouvir, Pyotr nãoescutou nem uma palavra de conversaentre seus criados sobre os estranhosacontecimentos no pátio, e foi forçado,com relutância, a concluir que ele era oúnicoqueselembravadeles.

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9

ALOUCANAIGREJA

AESTRADAPARACASAPARECEUMAIS

COMPRIDA DO QUE QUANDOpartiram. Anna não estava acostumada aviajar,eelesforamumpoucomaisrápido,com frequentes paradas para descansar.Apesar da lentidão, a jornadanão foi tãotediosaquantopoderia ter sido;deixaramMoscou sobrecarregados de provisões etambém aceitaram a hospitalidade de

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aldeias e casas de boiardos ao sedefrontaremcomelas.Tendo saído da cidade, Pyotr foi até a

cama da esposa com renovadaimpetuosidade, lembrando-sede suabocamacia e do toque sedoso do seu corpojovem.Mas a cadavezelao recebia,nãocom raiva nem lamentos – o que elepoderia ter resolvido –, mas com umfrustrante choro silencioso, as lágrimasescorrendo por suas faces roliças. Umasemana dessa atitude afastou Pyotr, nummistodeirritaçãoedesconcerto.Começouavagarmaislongeduranteodia,caçandoapéouentrandonamatacomMetel,atéhomem e cavalo voltarem arranhados eesgotados,Pyotrcansadoosuficientepara

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pensar apenas em sua cama. Contudo,nem mesmo o sono era um descanso,porque em seus sonhos via um colar desafiraededosbrancoseangulososjuntoaopescoçodoseufilhomaisvelho.Acordavano escuro gritando para que Kolyacorresse.Ansiava por estar em casa, mas não

podiam correr. Por mais que Pyotr seesforçasse, Anna foi se tornando pálida efraca comaviagem, implorandoque elesparassem cada vez mais cedo durante odia, montassem tendas e braseiros, paraque as criadas pudessem lhe servir sopaquenteeaquecerasmãosentorpecidas.Mas, por fim, cruzaramo rio.Quando

Pyotr julgouqueo grupo estava amenos

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deumdiadeLesnayaZemlya,pôsospésdeMetelnatrilhanevadaesoltouarédea.Amaioriadogruposeguiriacomostrenós,mas ele e Kolya voaram para casa comofantasmas levados pelo vento. Foi comalívioinexprimívelquePyotrirrompeudaproteçãodasárvoreseavistousuaprópriacasa prateada e incólume sob a clara luzdiurnadoinverno.

Todos os dias, desde que Pyotr, Sasha eKolya haviam partido, Vasya escapava decasasemprequeconseguia,correndoparasubiremsuaárvorepreferida,aquelaquetinha um grande ramo esticado sobre a

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estrada que levava ao sul de LesnayaZemlya.Àsvezes,Alyoshaiacomela,masera mais pesado e mais desajeitado parasubir. Então, Vasya estava sozinha no diaem que viu o brilho dos cascos e dosarreios.Desceudaárvore feitoumgatoedisparou com suas pernas curtas. Aochegaràcercapaliçada,gritava:–Pai,pai,éopai!Àquelaaltura,nãoeragrandenovidade,

porqueosdoiscavaleiros,commuitomaisvelocidade do que uma garotinha, jácruzavam os campos em disparada, e osaldeões,desuapequenaelevação,podiamvê-los plenamente. As pessoasentreolhavam-se, especulando ondeestariam os outros, temendo pelos

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parentes. E, então, Pyotr e Kolya (Sashatinha ficado com os trenós) entraram naaldeia e frearam seus cavalos fogosos.Dunya tentou agarrar Vasya, que tinharoubadoasroupasdeAlyoshaprasubiremsua árvore e estava imunda, mas Vasyadesvencilhou-seecorreuparaoquintaldafrente.–Pai!–gritou.–Kolya!–Eriuquando

cadaumdelesergueu-anosbraços.–Pai,vocêvoltou!–Trouxeumamãepravocê,Vasochka–

Pyotr disse, avaliando-a com um alçar desobrancelha.Estavacobertadepedaçosdeárvore. – Mas não contei a ela quereceberiaumespíritodaflorestaenãoumamenininha.–Maselebeijouseurostosujo

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eelariu.–Ah…Então,cadêoSasha?!–exclamou

Vasya,olhandoaoredornummedosúbito.–Cadêoscavalosdostrenós?– Não tenha medo, estão na estrada,

vindo atrás de nós – explicou Pyotr, eacrescentou em tom mais alto, para quetodas as pessoas a sua volta pudessemouvir: – Estarão aqui antes do anoitecer.Temosquenosprepararpararecebê-los.Evocê–dissemaisbaixo–,entrenacozinhae peça para Dunya te vestir. Se der namesma,prefiroapresentaruma filhaparasua madrasta do que um espírito dafloresta.–Eleacolocounochãocomumalevepressão,eOlgaarrastouairmãparaacozinha.

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Os trenós chegaramcomo cair do sol.Fizeram seu percurso desgastante peloscamposesubiram,atravessandoosportõesdaaldeia.Aspessoasfestejaramesoltaramexclamações perante o elegante trenófechado que continha a nova esposa dePyotr Vladimirovich. Grande parte daaldeiareuniu-separavê-la.Anna Ivanovna saiu do trenó

cambaleando, rígida, pálida como gelo.VasyapensouqueelaparecialigeiramentemaisvelhadoqueOlya,enemumpoucopróxima à idade do seu pai. Bem, melhorassim, pensou. Talvez ela brinque comigo.Expôs seumelhor sorriso,mas Anna nãorespondeu, nem com palavras, nem comgestos. Encolheu-se perante todos os

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olhares, e Pyotr lembrou-se, com atraso,que, em Moscou, as mulheres viviamseparadasdoshomens.– Estou cansada – sussurrou Anna

Ivanovna, e entrou na casa agarrada aobraçodeOlga.Aspessoasentreolharam-seconfusas.– Bem, foi uma viagem longa –

disseram, por fim. – Com o tempo elaficará bem. É filha de um grão-príncipe,assimcomoMarinaIvanovna.–Eficaramorgulhososde talmulher tervindomorarentre eles. Voltaram para suas cabanaspara acender o fogo contra o escuro etomarsuasopaaguada.Mas, na casa de Pyotr Vladimirovich,

todos festejaram da melhor maneira

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possívelcomaaproximaçãodaquaresmaeo avançado do inverno. Deram umaatenção decente ao fato, com peixe emingau.Depois,Pyotreosfilhosrelatarama viagem, enquantoAlyosha saltitava porali, ameaçandoos dedos dos criados comsuaesplêndidaadaganova.O próprio Pyotr colocou o toucado

sobreocabelonegrodeOlgaedisse:– Espero que o use no dia do seu

casamento,Olya.Olga corou e empalideceu, enquanto

Vasya, emudecida, pousava os grandesolhosnopai.Pyotrlevantouavozparaquetodosnasalapudessemouvir:– Ela será a princesa de Serpukhov. O

próprio grão-príncipe pediu-a em

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casamento.–Ebeijoua filha.Olgasorriucomumprazermisturadocommedo.Notumultodoscumprimentos,ogritodébileaflitodeVasyanãofoiouvido.Mas os festejos arrefecerameAnna foi

para a cama cedo. Olga foi ajudá-la, eVasya foi atrás. Lentamente, a cozinhaesvaziou-se.O crepúsculo transformou-se emnoite.

O fogo fragmentou-se em um núcleoreluzente e o clima na cozinha esfriou emurchou. Por fim, a cozinha de invernoficou vazia, exceto por Pyotr eDunya. Avelhasenhorachoravaemseu lugar juntoaofogo.– Eu sabia que tinha que acontecer,

Pyotr Vladimirovich – ela disse. – E, se

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algumdiaexistiuumameninaquedeveriaserumaprincesa, é aminhaOlya.Mas édifícil. Ela vai viver em um palácio emMoscou, como sua avó, e eu nuncamaisvouvê-la.Estouvelhademaisparaviajar.Pyotr ficou em frente ao fogo,

manuseandoajoiaemseubolso.– Acontece com todas as mulheres –

disse.Dunyanãorespondeu.– Ouça, Dunyashka – disse Pyotr, com

uma voz tão estranha que a velha amavirou-serapidamenteparaolharparaele.–Tenho um presente para Vasya. – Ele jáhavia lhe dado um corte de um elegantetecidoverdeparafazerumbomsarafan.Dunyafranziuocenho.

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– Outro, Pyotr Vladimirovich? –perguntou.–Elavaificarmalacostumada.– Mesmo assim – disse Pyotr. Dunya

olhou-o com atenção, intrigada com aexpressãodoseurosto.Pyotratirouocolarpara Dunya, como se estivesse ansiosoparaselivrardele.–Dêvocêmesmaparaela. Cuide para que o traga sempre comela.Façacomqueprometaisto,Dunya.Dunya ficou mais intrigada do que

nunca, mas pegou o frio objeto azul e oanalisou.Pyotr contorceu o rosto de maneira

aindamaisterríveleesticouobraçocomosefossetomaracoisadevolta.Masfechouo punho e o movimento não foicompletado. Virou-se abruptamente e foi

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para a cama. Dunya, sozinha na cozinhaescura, ficou com os olhos fixos nopendente.Virou-odeumladoedooutro,murmurandoconsigomesma.–Ora,PyotrVladimirovich– sussurrou

–,eondeéqueumhomemconsegueumajoia destas em Moscou? – Sacudindo acabeça, Dunya enfiou-a no bolso,resolvendo mantê-la a salvo até que agarotinha tivesse idade suficiente parapoderlheconfiarapeçareluzente.Trêsnoitesdepois,aamasonhou.Em seu sonho, era novamente jovem,

caminhandosozinhanaflorestainvernosa.Osomnítidodossinosdetrenóressoounaestrada. Ela adorava andar de trenó e sevirouparaverumcavalobrancotrotando

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emsuadireção,conduzidoporumhomemde cabelos escuros. Ele não diminuiu avelocidade ao passar, mas agarrou seubraço e a puxou com brutalidade para otrenó.O olhar não se desviou da estradabranca. Um ar como as lufadas maisgeladas de janeiro girava à sua volta,apesardosoldeinverno.Dunyasentiuummedosúbito.– Você pegou uma coisa que não foi

dada a você – disse o homem. Dunyaestremeceu frente ao gemido de ventostempestuososemsuavoz.–Porquê?–Osdentesdelabatiamcomtantaforçaqueelamal conseguia articular palavras, e ohomem rodopiou ao seu redor numalabareda de uma tênue luz de inverno. –

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Aquelecolarnãofoidadoavocê–sibilou.–Porqueficoucomele?–OpaideVasilisacomprou-oparaela,

mas ela não passa de uma criança. Vi apeçaesabiaqueeraumtalismã–gaguejouDunya. – Não roubei, não fiz isso, masfiquei commedo pelamenina. Por favor,ela é jovem demais, jovem demais parafeitiçariasouofavordosdeusesantigos.O homem riu. Dunya ouviu uma

amargurarascantenosom.– Deuses? Agora só existe um Deus,

criança,eeunãopassodeumventoentregalhosnus.–Calou-seeDunya,tremendo,sentiugostodesanguenolugarondehaviamordidoolábio.Porfim,eleconcordou:–Tudo bem, guarde-o para ela, então, até

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queelacresça,massóatélá.Achoquenãoprecisodizeroqueacontecerásevocêmeenganar.Dunya viu-se concordando

vigorosamente com a cabeça,chacoalhando mais do que nunca. Ohomem estalou seu chicote. O cavalodisparou, correndo ainda mais sobre aneve.Dunyasentiuqueescorregavasobreoassento;tentou,freneticamente,agarrar-se a ele, mas estava caindo, caindo paratrás…Acordou com um arquejo em seu

própriocatrenacozinha.Ficoudeitadanoescuro,tremendo,elevoumuitotempoatéconseguirseaquecer.

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Annaacordou relutantemente, ainda comseus sonhos na memória. O último foraagradável, com pão quente e alguém devozmacia.Masquandotentoualcançá-loosonho escapou e ela foi deixada vazia,agarrando as cobertas à sua volta, paraafastarofriodoamanhecer.Ouviu um farfalhar e ergueu a cabeça,

olhando em volta. Um demônio estavasentado em seu próprio banquinho,cerzindoumadascamisasdePyotr.A luzcinzentadeumamanhãdeinvernolançoubarrasdesombrasobreacoisanodosa.Elaestremeceu. Seu marido roncava a seu

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lado, alheio, e Anna tentou ignorar oespectro, assim como tinha feito todos osdiasdesdequeacordoupelaprimeiraveznaquele lugar horroroso. Virou-se e seenfiounoedredom,masnãoconseguiuseaquecer. O marido tinha se livrado docobertor,mas ela estava sempre com frioali.Quandopediaparaacenderemofogo,as criadas apenas a encaravam,educadamente perplexas. Pensou emchegar mais perto, compartilhar aquentura do marido, mas ele poderiadecidir querê-la novamente. Emboraprocurasse ser gentil, era insistente, e namaiorpartedotempoelaqueriaficarsó.Arriscou olhar novamente para o

banquinho. A coisa olhava diretamente

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paraela.Anna não suportou mais. Levantou-se,

vestiu uns trajes a esmo e enrolou umlenço ao redor das tranças meioembaraçadas. Disparando pela cozinha esaindo porta afora, recebeu um olharatônito de Dunya, que sempre levantavacedo para assar o pão. A luz cinzenta damanhã tornava-se rosa; o chão faiscavacomoseestivessecravejadodegemas,masAnnanãonotouaneve.Tudooqueviufoia igrejinha demadeira amenos de vintepassos da casa. Correu para ela, afoita,abriu a porta com força e entrou. Quischorar,mastravouosdenteseospunhosesilenciou o choro. Em geral, choravademais.

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Sua loucura estava pior ali, no norte,muito, muito pior. A casa de Pyotrfervilhavadedemônios.Umacriaturacomolhos como brasas escondia-se no forno;umhomenzinhonasaladebanhospiscavaparaelaemmeioaovapor;umdemônio,como uma pilha de gravetos, andavalargadopeloquintaldafrente.Em Moscou, os demônios nunca

olhavam para ela, nem ao menos derelance,masaliestavamsempreencarando-a.Algunsatéchegavambemperto,comose fossem falar, e a cada vez Annaprecisava fugir, odiando os olharesintrigadosdomaridoedosenteados.Via-osotempotodo,portodaparte,excetoali,naigreja.Aabençoadaesilenciosaigreja.

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Comparada às de Moscou, aquela nãoeranada,realmente.Nãohaviaouro,nemdourações, e era operada apenas por umpadre.Suasimagenserampequenasemalpintadas,masalielanãovianadaalémdechão,paredes,imagensevelas.Nãohaviarostosnassombras.Ficou e ficou, alternando rezas com o

olharperdido.Quandovoltouparaacasa,o dia já havia amanhecido, a cozinhaestava cheia, o fogo rugindo. Assar,cozinhar, lavar e secar eram funçõesincessantes,doamanheceraoanoitecer.Asmulheres não reagiram quando Annaentrou,nenhumanemmesmoolhouparaela. Anna considerou aquilo, acima detudo,umcomentáriosobresuafraqueza.

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Olgafoiaprimeiraalevantarosolhos.– Aceita um pedaço de pão, Anna

Ivanovna? – perguntou. Olga nãoconseguia gostar da pobre criatura quetomarao lugarda suamãe,embora fossebondosaetivessepenadela.Anna estava faminta, mas havia uma

minúscula criatura grisalha, sentada logona abertura do forno. Sua barba brilhavacom o calor, enquanto ele mascava umacrostaenegrecida.AnnaIvanovnamexeuaboca,masnão

conseguiu responder. A criaturinhadesviou os olhos do pão e inclinou acabeça. Em seus olhos brilhantes haviacuriosidade.– Não – sussurrou Anna. – Não. Não

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queropão.Virou-se e correu para a segurança

duvidosadoseupróprioquarto,enquantoasmulheresnacozinhaentreolhavam-seesacudiamlentamenteacabeça.

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APRINCESADESERPUKHOV

NO OUTONO SEGUINTE, KOLYACASOU-SE COM A FILHA DE UMBOIARDO vizinho. Era uma meninagorda, robusta, loira, e Pyotr construiupara eles uma casinha própria, com umbomfornodebarro.Masoqueopovoesperavaeraogrande

casamento, quando Olga Petrovna setornaria princesa de Serpukhov. Forapreciso quase um ano de negociação. OspresentescomeçaramachegardeMoscou

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antesquealamafechasseasestradas,masos detalhes tomaram mais tempo. OpercursodeLesnayaZemlyaaMoscoueradifícil; mensageiros atrasavam-se oudesapareciam, quebravamo crânio, eramroubadosoudeixavamoscavalosmancos.Mas, finalmente, foi arranjado.OprópriopríncipedeSerpukhovdeveriavir,comsuacomitiva,parasecasarcomOlgaelevá-lacomeleparasuacasaemMoscou.– É melhor para ela se casar antes da

viagem – disse o mensageiro. – Ela nãoficará tão assustada. – E, o mensageiropoderia ter acrescentado, Aleksei,metropolitano de Moscou, queria que ocasamento fosse realizado e consumadoantesdeOlgairparaacidade.

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Opríncipechegoujustoquandoapálidaprimavera transformava-se numdeslumbranteverão,comumcéudelicado,caprichoso,easfloresmurchasenterradasemumaluviãodematorasteiro.Umanotinha feito com que desabrochasse. Asespinhashaviamdesaparecido,emboraeleainda não fosse bonito, e escondia suatimidezcomumbomhumorturbulento.Comopríncipede Serpukhovveio seu

primo,oloiroDmitriiIvanovich,trazendocumprimentos. Os príncipes vieram comfalcões,cãesdecaça,cavalos,mulheresemcarruagens de madeira esculpida etrouxerammuitos presentes. Osmeninostambém vieram com um guardião: ummonge de olhos claros, nãomuito velho,

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mais quieto do que falante. A cavalgadaprovocoumuitobarulho,poeiraeclamor.Toda a aldeia veio assistir, e muitosofereceram a hospitalidade das suascabanas para os homens e pastos para oscavaloscansados.O jovem príncipe Vladimir enfiou

timidamenteumreluzenteberiloverdenodedo de Olga, e a casa toda se rendeu àalegria,oquenãoaconteciadesdeoúltimosuspirodeMarina.

– Pelomenos omenino é gentil –Dunyadisse a Olga em um raro momento detranquilidade.Estavamsentadasaoladoda

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ampla janela na cozinha de verão. Vasyaestava aos pés de Olga, escutando ecutucandosuacostura.– É – concordou Olga. – E Sasha vai

comigoparaMoscou.Vaimeacompanharaté a casa do meu marido, antes deingressar no monastério. Ele meprometeu.Oaneldeberilobrilhavaemseudedo.

Seu noivo também havia pendurado emseupescoçoumâmbaremestadobrutoelhe dado um rolo de um tecidomaravilhoso, flamejante como papoulas.Dunya estava embainhando-o para umsarafan.Vasyaapenas fingiacosturar; suasmãozinhasestavamcerradasnocolo.– Você vai se sair muito bem – disse

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Dunya com firmeza, cortando o fim deuma linha com os dentes. – VladimirAndreevichéricoejovemobastanteparaaceitar conselhos de sua esposa. Foigenerosidade dele, vir se casar com vocêaqui,emsuaprópriacasa.– Ele veio porque o metropolitano o

obrigou–Olgainterveio.–Eogrão-príncipeotememaltaconta.

Ele é o melhor amigo do jovemDmitrii,isto está claro. Terá uma alta posiçãoquandoIvãKrasniimorrer.Vocêseráumagrandedama.Nãopoderiasesairmelhor,minhaOlya.– É… é – voltou a dizer Olga,

lentamente.Aseuspés,acabeçaescuradeVasya pendeu. Olga abaixou-se para

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acariciarocabelodairmã.–Achoqueeleégentil,maseu…Dunyasorriucomsarcasmo.–Vocêestavaesperandoqueviesseum

príncipe-corvo, como o pássaro no contodefadasqueveioparaa irmãdopríncipeIvã?Olga corou e riu, mas não respondeu.

Em vez disso, pegou a irmã no colo,embora ela já fosse grande para serseguradacomoumacriança,eaembaloupara lá e para cá. Vasya enrodilhou-serígidanosbraçosdairmã.–Calma,sapinho–disseOlga,comose

Vasyafosseumbebê.–Vaificartudobem.–OlgaPetrovna–disseDunya–,minha

Olya, contos de fadas são para crianças,

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mas você é umamulher e logo será umaesposa.Casar-secomumhomemdecenteeestarseguraemsuacasa,adoraraDeuseparir filhos fortes, istoé realecerto.Estána hora de deixar os sonhos de lado. Oscontos de fadas são ternos nas noites deinverno, nada além disso. – Subitamente,Dunya pensou nos olhos frios e claros enumamãoaindamaisgelada.Tudobem,atéque ela cresça, mas só até lá. Estremeceu eacrescentou, mais baixo, olhando paraVasya:–Atémesmoasdonzelasdoscontosde fadas nem sempre terminam felizes.Alenushka foi transformada em pato eassistiu à bruxa má trucidar seus filhos-patos. – E vendo Olga ainda cabisbaixa,alisando o cabelo de Vasya, acrescentou

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comumpoucomaisdedureza:–Filha,éodestinodasmulheres.Nãoachoquevocêqueiratornar-sefreira.Podeserqueacabeamando ele. Suamãenão conheciaPyotrVladimirovich antes do casamento, e eumelembrodomedodela,emborasuamãefosse corajosaobastantepara enfrentar aprópria Baba Yaga. Mas eles se amaramdesdeaprimeiranoite.–Amãeestámorta–Olgadissenuma

voz inexpressiva. –Outra pessoa está emseu lugar. E eu vou-me embora parasempre.Encostada em seuombro,Vasya soltou

umgemidoabafado.–Elanãovaimorrernunca–retorquiu

Dunya com firmeza –, porque você está

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viva e é tão linda quanto ela era, e serámãedepríncipes.Tenhacoragem.Moscoué uma bela cidade, e seus irmãos irãovisitá-la.

Naquela noite, Vasya veio para a camacomOlgaefalou,afobada:– Não vá, Olya. Nunca mais vou ser

ruim.Nem voumais subir em árvores. –Olhou para sua irmã comouma coruja etremendo.Olganãoconseguiuconterumarisada, embora ela falhasse um pouco nofim.–Tenhoqueir,sapinho–disseela.–Ele

é um príncipe, é rico e bondoso, como

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Dunyadiz.Tenhoquemecasarcomeleouir para um convento. E quero ter meusfilhos, dez sapinhos exatamente comovocê.–Masvocêmetem,Olya–Vasyadisse.Olyapuxou-amaisparaperto.–Masumdiavocêmesmavaicrescere

nãovaisermaisumacriança,eoquevaifazer,então,comsuavelhairmãtrôpega?– Você vai servir sempre! – Vasya

explodiu com fervor. – Sempre! Vamosfugirevivernafloresta.– Não tenho certeza de que você

gostariadevivernafloresta–disseOlga.–BabaYagapoderiacomeragente.– Não – Vasya retrucou com certeza

absoluta. – Só tem o caolho. Se a gente

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ficarlongedocarvalho,elenuncavaiacharagente.Olyanãosoubecomoreagiraisso.–Agentevaiterumaizbanomeiodas

árvores – continuou Vasya. – E eu trareinozesecogumelospravocê.–Tenhoumaideiamelhor–disseOlya.

–Vocêjáéumameninagrandeenãovaidemorarmuitoprasetornarumamulher.Quandovocêforgrande,mandotebuscarlá pra Moscou. Seremos duas princesasjuntas num palácio, e você terá umpríncipepravocê.Oqueacha?–Maseujáestougrandeagora,Olya!–

gritouVasya imediatamente,engolindoaslágrimasesesentando.–Veja!Estoumuitomaior.

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– Acho que ainda não, irmãzinha –respondeu Olga com delicadeza. – Mastenhapaciência,obedeçaaDunyaecomabastantemingau.Quandoopaidisserquevocêficougrande,mandotebuscar.– Vou perguntar pro pai – disse Vasya

comsegurança.–Podeserqueeledigaqueeujáestougrande.

Sasha reconheceu o monge no momentoemque ele entrouno pátio.Na confusãodasboas-vindasedospresentesdanoiva,comumbanquete sendopreparado entreasbétulasverdejantesdoverão,adiantou-se,pegounamãodomongeeabeijou.

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–Padre,osenhorveio–disse.– Como pode ver, meu filho – disse o

monge,sorrindo.–Masétãolonge!– Na verdade, não é. Quando eu era

maisjovem,vagavaportodaaextensãodeRus’, e a Palavra era omeu caminho e omeu escudo, meu pão e meu sal. Agoraestou velho e fico no mosteiro, mas omundo ainda me parece belo,especialmenteonortedomundoduranteoverão.Estoufelizemvervocê.O que ele não disse – pelomenos não

naquele momento – era que o grão-príncipe estava doente e o casamento deVladimir Andreevich era, porconsequência,aindamaisurgente.Dmitrii

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mal tinha feito onze anos, era sardento emimado. Sua mãe mantinha-o sob suasvistas e dormia ao lado da sua cama.Ospequenos herdeiros dos príncipescostumavamdesaparecerquandoseuspaismorriamprecocemente.Naquela primavera, Aleksei tinha

convocado o santo homem SergeiRadonezhsky em seu palácio noKremlin.SergeieAlekseiconheciam-sehaviamuitotempo.–EstoumandandoVladimirAndreevich

para o norte, para que se case – Alekseidissera. – Tão logo quanto possível. Eleprecisa se casar antes que Ivã morra. OjovemDmitriiirácomacomitivanupcial.Issoomanteráasalvo.Suamãetemepor

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suavida,casoelepermaneçaemMoscou.O eremita e o metropolitano estavam

bebendo hidromel bem aguado, sentadosnumbancodemadeiranahorta.–IvãIvanovichestátãodoenteassim?–

perguntouSergei.– Ele está, ao mesmo tempo, cinza e

amarelo. Está suando, cheira mal e seusolhos estão velados – respondeu ometropolitano. – Se Deus quiser, ele vaiviver,masestareipreparado,casoissonãoaconteça. Não posso deixar a cidade.Dmitrii é jovem demais. Eu pediria quevocêfossenacomitivanupcialparatomarconta dele e assegurar que Vladimir secase.–Vladimirdeverásecasarcomafilhade

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PyotrVladimirovich,nãoéisso?–indagouSergei.–ConheciofilhodePyotr,aquemchamam de Sasha. Ele veio até mim nomosteiro. Nunca vi olhos como os dele.Seráummonge,umsantoouumherói.Háum ano, ele quis tomar os votos. Esperoque ainda queira. O mosteiro poderiausufruirdeumirmãocomoele.–Bem,váeverifique–disseAleksei.–

Convençao filhodePyotravoltarparaomosteiro com você. Dmitrii deverá viverem seu monastério durante suaminoridade. Tanto melhor se tiverAleksandrPetrovichcomocompanhia,umhomem do seu sangue, dedicado aDeus.SeDmitrii for coroado, precisará de todaengenhosidadealiadaquepossalhevaler.

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–Omesmoacontecerácomvocê–disseSergei.Asabelhaszumbiamàsuavolta.Asflores do norte compensavam comperfumes inebriantes sua vida breve econdenada. Com hesitação, Sergeiacrescentou: – Você vai ser o regente,então? Os regentes também não vivemmuito, se seus príncipes-infantes foremassassinados.– Serei eu tão covarde para não me

colocar entre omenino e os assassinos? –perguntouAleksei.–Fareiisso,mesmoquecuste a minha vida. Deus está conosco.Mas você terá que ser metropolitanoquandoeumorrer.Sergeiriu.–VereiafacedeDeuseficareicegopela

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glória, antes de ir a Moscou tentarcontrolar os seus bispos, irmão.Mas vouparaonortecomopríncipedeSerpukhov.Faz tempo que não viajo e gostaria dereverasaltasflorestas.

Pyotrviuomongeentreoscavaleiroseseurosto se fechou, mas falou apenasamenidades até o fim do dia da suachegada.Todosfestejaramaocrepúsculo,equando as risadas e as tochas de pessoasbem alimentadas foram se afastando emdireçãoàaldeia,Pyotrveioaoanoitecerepegou Sergei pelo ombro. Os doisencararam-seaoladodoriacho.

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– E então você veio, homem deDeus,para roubar meu filho de mim? – PyotrperguntouaSergei.– Seu filho não é um cavalo para ser

roubado.– Não – replicou Pyotr. – É pior. Um

cavaloouviriaavozdarazão.–Eleéumguerreironatoeumhomem

de Deus – disse Sergei. Sua voz estavasuave como sempre, e a raiva de Pyotrintensificou-se de tal maneira que ele seengasgoucomaspalavrasenãodissenada.O monge franziu o cenho como se

tomasseumadecisão.Entãodisse:– Ouça, Pyotr Vladimirovich. Ivã

Ivanovich está morrendo. Talvez, a estaaltura,jáestejamorto.

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Pyotr não sabia disso. Assustou-se erecuou.–O filhodele,Dmitrii,estáhospedado

nasuacasa–Sergeicontinuou.–Quandoos meninos forem embora, ele irá diretopara o meu monastério, onde ficaráescondido. Existem candidatos ao trono,para quem a vida de um menino não énada.Umpríncipe precisa de homens doseu próprio sangue para lhe ensinar eprotegê-lo.SeufilhoéprimodeDmitrii.Surpreso, Pyotr ficou em silêncio. Os

morcegos estavam surgindo. Em suajuventude, asnoitesdePyotreramcheiasdosseusgritos,masagoraelesesvoaçavamemsilênciocomooavançardoanoitecer.– Nós não nos limitamos a fazer pão

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bento e cantar, eu e o meu pessoal –acrescentouSergei.–Vocêestásalvoaqui,nesta floresta que poderia engolir umexército, mas poucos poderiam dizer omesmo. Assamos nossos pães para osfamintos e empunhamos espadas em suadefesa.Éumchamadonobre.– Meu filho empunhará uma espada

pelasuafamília,serpente–replicouPyotr,automaticamente,mais irritadoagoraporestaremdúvida.– De fato – disse Sergei. – Por seu

próprioprimo;ummeninoqueumdiaterátodaaMuscovysobseucomando.Pyotr tornou a ficar calado, mas sua

raivaforaquebrada.Sergei percebeu o pesar de Pyotr e

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curvouacabeça.– Sinto muito – disse. – É uma coisa

difícil.Rezareiporvocê.–Eleseesgueirouporentreasárvores,osomdesuapartidasendoengolidopelacorredeira.Pyotrnãosemexeu.Aluaestavacheia;

abordadoseudiscoprateadosurgiuacimadasárvores.– Você teria sabido o que dizer –

sussurrou. – Daminha parte, eu não sei.Ajude-me,Marina.Eunãoperderiaomeufilho nemmesmo pelo herdeiro do grão-príncipe.

– Fiquei bravo quando soube que você

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tinhavendidominhairmãparatãolonge–Sasha disse ao pai. Falava um tanto aossobressaltos; estava treinando um potro.PyotrmontavaMetel,eogaranhãocinza,que não era um cavalo de arado, olhavacomcertacuriosidadeojovemanimalquecorcoveavaaoseu lado.–MasVladimiréum homem bem decente, embora sejamuitojovem.Écuidadosocomoscavalos.–Ficosatisfeito,pelobemdeOlya.Mas,

mesmoqueelefosseumlibertinobêbadoeum velho imprestável, eu não poderiafazernada–dissePyotr.–Ogrão-príncipenãopediu.Sasha pensou subitamente em sua

madrasta,umamulherqueseupaijamaisteria escolhido, com seu choro fácil, suas

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rezas,seussustoseterrores.–Vocêtambémnãopôdeescolher,pai–

eleconcluiu.Devo estar velho, Pyotr pensou, se meu

filhoestásendogentilcomigo.–Nãoimporta.A luz dourada infiltrou-se por entre as

bétulasesguias,etodasasfolhasprateadasagitaram-seaomesmotempo.OcavalodeSasha não gostou do bruxuleio e seempinou.Sashafreou-oameiocaminhoeo fez descer. Metel surgiu ao lado deles,comoqueparamostraraopotrocomoumcavalodeverdadesecomportava.– Você ouviu o que o monge tinha a

dizer–dissePyotr, lentamente.–Ogrão-príncipe e seu filho são nossos parentes,

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mas, Sasha, pediria a você que pensassemelhor. A vida de um monge é difícil,sempre só, pobreza,orações euma camafria.Vocêénecessárioaqui.Sasha olhou para seu pai de esguelha.

Seu rosto bronzeado pareceu,subitamente,muitomaisjovem.– Tenho irmãos – disse. – Preciso ir e

experimentar por mim mesmo, contra omundo. Aqui, as árvores me confinam.Vouemfrente,lutarporDeus.Nasciparaisso, pai. Além disso, o príncipe, meuprimoDmitrii,precisademim.– É amargo ser um pai abandonado

pelos filhos – rosnou Pyotr. –Ou ser umhomem sem filhos que lamentem suamorte.

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–Terei irmãosemCristoquechorarãopormim–Sasha retorquiu.–Evocê temKolyaeAlyosha.–Sevocêfor,nãolevaránadaconsigo–

replicou Pyotr. – Apenas as roupas queestiverusando,suaespadaeaquelecavaloloucoquevocêpensaemmontar,masnãoserámeufilho.Sashapareciamaisjovemdoquenunca.

Seu rosto empalideceu por baixo dobronzeado.– Preciso ir, pai – disse ele. – Nãome

odeieporisso.Pyotrnãorespondeu.DirigiuMetelem

direçãoacasacomtalfúriaqueopotrodeSashaficoubemparatrás.

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Vasya entrou de mansinho no estábulonaquele fim de tarde, quando Sashaexaminava um cavalo castrado alto ejovem.–Mysh está triste – disse Vasya. – Ela

querircomvocê.Aéguacastanhaestavapondoacabeça

foradabaia.Sashasorriuparaairmã.– Ela está ficando velha pra viajar –

disse, esticando o braço para agradar seupescoço. –Alémdomais, umaéguaparareprodução tem pouca serventia nummonastério.Estedaquivaiservirpramim.

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–Deuumtapanocavalo,queempinouasorelhaspontudas.–Eupossoserummonge–disseVasya,

e Sasha viu que ela novamente tinharoubado as roupas do irmão e carregavaumpequenoodre.– Não duvido – disse Sasha. – Mas,

normalmente,osmongessãomaisvelhos.– Eu sempre sou pequena demais! –

exclamou Vasya com grande desgosto. –Vou crescer.Não vá ainda, Sashka. Fiquemaisumano.–VocêseesqueceudaOlya?–perguntou

Sasha.–Prometiqueiaacompanhá-laatéacasa do marido. E, depois, estou sendochamado para Deus, Vasochka, não temcomonegar.

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Vasyapensouporummomento.– Se eu prometesse acompanhar Olya

até a casa do marido dela, eu tambémpoderiair?Sashanãorespondeu.Elaolhouparaos

pés,raspandoumdedonaterra.– Anna Ivanovna me deixaria ir –

disparou. – Ela quer que eu vá. Ela meodeia.Soupequenademaisesujademais.–Dêumtempopraela–disseSasha.–

Foicriadanacidade;nãoestáacostumadacommato.Vasyafezumacareta.– Ela já está aqui há um tempão.

GostariaqueelavoltassepraMoscou.– Olhe, irmãzinha – disse Sasha,

olhandoseurostopálido.–Venhamontar.

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Quando Vasya era pequena, não havianadaquegostassemaisdoquecavalgarnafrentedaselado irmão,orostoaovento,segura na curva do seu braço. Seu rostoiluminou-se, eSashaamontounocavalo.Quandoentraramnodvor,eleseempinou.Vasya inclinou-se para a frente, arespiração acelerada, e então lá se forameles, galopando com um veloz troar decascos.Vasya inclinava-se com alegria para a

frente.– Mais, mais! – gritou, quando Sasha

freou o cavalo e o virou para voltar paracasa.–VamosparaSarai,Sashka!–Elasevirouparaolharparaele.–OuTsargrad,ouBuyan,ondeviveoreidomarcomsua

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filha, a donzela-cisne. Não fica muitolonge, a leste do sol, a oeste da lua. –Franziu os olhos, como que para tercertezadadireçãodeles.–Éumpoucolongeparaumagalopada

à noite – disse Sasha. – Você precisa sercorajosa, sapinho, e obedecer a Dunya.Umdiaeuvolto.–Vaiserlogo,Sasha?–sussurrouVasya.

–Logo?Sasha não respondeu, mas não

precisava. Tinham chegado em casa. Eleparou o cavalo e desceu a irmã noestábulo.

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DOMOVOI

APÓSAPARTIDADESASHAEOLGA,DUNYANOTOUUMAMUDANÇA emVasya. Um dos motivos é que eladesaparecia mais do que nunca. Outro éque falava muito menos. E, às vezes,quando falava, as pessoas ficavamespantadas. A menina estava grandedemaisparabalbuciarcomocriança,enoentanto…–Dunya–Vasyaperguntouumdia,não

muito depois do casamento de Olga,

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quandoocalorestendia-secomoumamãosobreaflorestaeoscampos–,oquevivenorio?–Estavatomandoseivadebétulaedeuumgrandegole,olhandoa amacomexpectativa.– Peixe, Vasochka, e se você se

comportar até amanhã, teremos algunsfresquinhoscomervasnovasecreme.Vasya adorava peixe, mas sacudiu a

cabeça.–Não,Dunya, oquemais viveno rio?

Alguma coisa com olhos como os de umsapo,cabelocomoalgaselamaescorrendodonariz.Dunya olhou a criança em alerta, mas

Vasya estava ocupada com os últimospedaços de repolho no fundo da sua

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vasilhaenãoviu.– Você andou escutando histórias de

camponeses,Vasya?–perguntouDunya.–Esse é o vodianoy, o rei do rio, que estásempre procurando pequenas donzelaspara levar para seu castelo, debaixo damargemdorio.Vasya estava raspando o fundo da

vasilhacomardistraído.– Não é um castelo – ela disse,

lambendo o caldo dos seus dedos. – É sóumburaconamargemdorio.Masnuncasoubequaleraonomedele.– Vasya… – começou Dunya, olhando

nosolhosbrilhantesdacriança.– Huuum? – disse Vasya, largando a

vasilhavaziaeselevantando.

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Dunya estava a ponto de preveni-la,explicitamente,contra…oquê?Falarsobrecontosdefadas?Dunyaengoliuaspalavrasde volta e entregou a Vasya uma cestacobertacompano.–Tome.LeveissoparaopadreSemyon.

Eletemandadodoente.Vasya acenou com a cabeça,

concordando. O quarto do padre faziapartedacasa,maserapossívelentrarnelepor uma porta separada, na parede sul.Vasyapegouumbolinhoeoenfiounabocaantes que Dunya pudesse reagir. Saiu dacozinha cantarolando alto e fora do tom,comoseupaicostumavafazercertaépoca.Devagar, como que contra a sua

vontade, amão de Dunya enfiou-se num

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bolso costurado dentro da sua saia. Aestrela ao redor da pedra azul reluziu,perfeitacomoumflocodeneve,eapedraestavageladaaotoque,emboraelativessetrabalhado junto ao fogão durante todaaquelamanhãsufocante.–Aindanão–murmurou.–Elaaindaé

umamenininha.Ah,porfavor,aindanão.A pedra ficou reluzindo em sua palma

ressecada. Dunya enfiou-a com raiva devoltanobolsoesevirouparamexerasopacomumafúriaquenãoeradoseufeitio.Ocaldo claro espirrou por cima da borda echiounaspedrasquentesdofogão.

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Algum tempo depois, Kolya viu a irmãespiandodeumamoitadecapim.Apertouos lábios.Ninguém em dez aldeias, dissoele tinha certeza, poderia estar sempremaquinando,comoVasyafazia.– Você não deveria estar na cozinha,

Vasya? – perguntounum tom cortante.Odia estava quente, sua esposa suada,irritadiça.Começavamanascerosdentesdo seu filho e ele gritava sem parar. Porfim, Kolya, rangendo os dentes, tinhaagarradolinhaecestoesedirigidoaorio.Mas,agora,aquiestavasua irmãparaviratrapalharasuapaz.Vasyaesticoumaisacabeçaparaforado

capim,masnãosaiudoseuesconderijo.–Nãopudeevitar, irmão–disseelade

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forma convincente. – Anna Ivanovna eDunya estavam berrando uma com aoutra, e Irina estava chorando de novo. –Irina era sua meia-irmã bebê, nascidapouco antes do próprio filho de Kolya. –Seja como for, não consigo costurarquando Anna Ivanovna está por perto.Esqueçocomosefaz.Kolyabufou.Vasyamexeu-senoseuesconderijo.–Possoteajudarapescar?–perguntou

ela,esperançosa.–Não.–Possoteverpescar?Kolya abriu a boca para recusar e

reconsiderou. Sentadanamargemdo rio,ela não estaria arrumando confusão em

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outrolugar.– Tudo bem. Se ficar sentada ali. Em

silêncio.Nãofaçasombranaágua.Vasya foi docilmente até o lugar

indicado.Kolyanãolhedeumaisatenção,concentrando-senaáguaenasensaçãodalinhanosdedos.Uma hora depois, Vasya continuava

sentada como lhe havia sidomandado, eKolya tinha seis bons peixes no cesto.Talvez sua esposa lhe perdoasse odesaparecimento,pensou,olhandoa irmãeseperguntandocomoelaconseguiaficarquieta tanto tempo. Olhava a água comuma expressão embevecida que o deixouinquieto.Oqueestariavendoquea faziaencarardaquelejeito?Aáguamurmurava

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sobreseuleito,comosempre,canteirosdeagrião balançando nas duas margens dacorrente.A linha deu um puxão firme, e ele

esqueceuVasya,enquantoapuxava.Mas,antes que o peixe saltasse na margem, oanzoldemadeirasoltou-se.Kolyaxingou.Recolheu a linha com impaciência esubstituiu o anzol. Preparando-se paralançar novamente, olhou em torno. Seucesto já não estava no lugar. Xingounovamente,maisalto,eolhouparaVasya.Mas ela estava sentada em uma pedra, adezpassosdedistância.–Oqueaconteceu?–perguntou.–Meuspeixessumiram!Algumdurakda

aldeiadevetervindoe…

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MasVasyanãoestavaescutando.Tinhacorridoparaabeirinhadorio.–Nãoéseu!–gritou.–Devolva!Kolya pensou ter ouvido um som

estranho no chapinhar da água, como seelaestivesserespondendo.Vasyabateuopé.–Agora!Pegueseuprópriopeixe!Um grande rangido subiu das

profundezas, como se fossem pedras seatritando, e então o cesto apareceuvoando, vindodonada, batendonopeitode Vasya e a jogando para trás.Instintivamente, ela o agarrou e sorriuparaoirmão.–Aquiestãoeles!–disse.–Acoisavelha

e gulosa só queria… –Mas ela parou de

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imediato ao ver o rosto do irmão. Semmaispalavras,estendeu-lheocesto.Kolya teriagostadode irpara a aldeia,

largando seu cesto e sua irmã esquisita,maseraumhomem,filhodeumboiardo,então adiantou-se cautelosamente, aspernas rígidas, para pegar o que haviapescado. Talvez tenha tido vontade defalar; comcerteza suabocaabriuumaouduas vezes – bem como um peixe, Vasyapensou–,masdepoisdeumeia-volta,semumapalavra,epartiuapassoslargos.

Finalmente chegou o outono, pousandoseusdedosfriosnarelvasecadoverão.A

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luz passou de dourada a cinzenta, e asnuvens tornaram-se úmidas e macias. SeVasya ainda chorava por seu irmão e suairmã,nãoofaziaondesuafamíliapudessevê-la,eparoudeperguntartodososdiasaopaisejáestavacrescidaobastanteparairaMoscou.Mascomiaseumingaucomumaintensidade de lobo e perguntavafrequentemente a Dunya se estava umpouco maior. Evitava a costura e amadrasta.Anna batia o pé e davaordensestridentes,masVasyaasdesafiava.Naquele verão, ela errou pela mata,

enquantohavialuz,enaentradadanoite.Agora não havia Sasha para agarrá-laquando fugia,eela fugiacomfrequência,apesardas repreensõesdeDunya.Masos

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diasficarammaiscurtos,otempopiorou,enas tardes curtas e ventosas, Vasya, àsvezes, sentava-se dentro de casa, no seubanquinho. Ali, comia pão e conversavacomodomovoi.O domovoi era pequeno, atarracado e

marrom. Tinha uma longa barba e olhosbrilhantes.Ànoite,esgueirava-separaforadofornoparalimparospratoseesfregarafuligem. Também costumava cerzirquando as pessoas deixavam a costura àmostra, mas Anna gritava se visse umacamisa largada, e poucas criadas searriscariamaincorreremsuaraiva.AntesdachegadadamadrastadeVasya,elaslhedeixavamoferendas: uma vasilha de leiteouumpedaçodepão.MasAnnatambém

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gritavaquandoviaisso.Dunyaeascriadastinham começado a esconder suasoferendasemcantosabsurdos,ondeAnnararamenteia.Vasya conversava entre mordidas,

chutando as pernas do seu banquinho.Odomovoi costurava – ela havia,furtivamente, lhe entregado sua costura.Seus dedosminúsculosmoviam-se rápidocomo mosquitos num dia de verão. Aconversa entre eles era, como sempre,quaseunilateral.–Deondevocêvem?–Vasyaperguntou-

lhe com a boca cheia. Já tinha feito estaperguntaantes,masàsvezeselemudavaaresposta.Odomovoi não levantou os olhos, nem

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interrompeuseutrabalho.–Daqui–respondeu.– Você quer dizer que existem mais

como você? – perguntou a menina,perscrutando.Aideiapareceudesconcertarodomovoi.–Não.–Mas, se você é único, então de onde

vocêvem?Conversas filosóficas não eram o forte

dodomovoi.Suatestavincadaenrugou-se,ehouve um toque de hesitação em suasmãos.–Estouaquiporqueacasaéaqui.Sea

casanãofosseaqui,eutambémnãoestariaaqui.Vasilisanãoconseguiuentendernada.

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–Então–tentounovamente–,seacasafor queimada pelos tártaros, você vaimorrer?Odomovoipareciaestarlutandocomum

conceitoimpenetrável.–Não.–Masvocêacaboudedizerque…A esta altura, o domovoi insinuou, com

certa brusquidão de gestos, que já nãoestava interessado em conversar. Dequalquermodo,Vasyatinhaterminadoseupão. Intimamente confusa, desceu dobanquinho espalhando migalhas. Odomovoi lhe lançou um olhar raivoso, oslábios trancados. Sentindo-se culpada, ameninaespanouasmigalhas, espalhando-as ainda mais. Por fim, desistiu e fugiu,

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tropeçando numa tábua solta e dando deencontro comAnna Ivanovna,que estavaparada na porta, olhando com a bocasemiaberta.Em sua defesa, Vasya não pretendia

mandar suamadrastaaos tropeçoscontraobatentedaporta,maseraforteparasuaidade,esópeleeosso,podendofugircommuita rapidez. Levantou os olhos numrápido pedido de desculpas, mas seconteve.Anna estava branca comopapel,comumpoucodecorqueimandoemcadaface.Seupeitoarfava.Vasyadeuumpassoparatrás.– Vasya – Anna começou, parecendo

sufocada. – Com quem você estavaconversando?

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Tomada de surpresa, Vasya nãorespondeu.– Responda-me criança! Com quem

vocêestavaconversando?Desconcertada, a menina escolheu a

respostamaissegura:–Comninguém.O olhar de Anna arremessou-se de

Vasya para o cômodo atrás.Abruptamente, estendeu o braço e aestapeou.Vasyalevouamãoaorosto,pálidacom

umafúriaperplexa.Ummomentodepois,as lágrimas lhevieramaosolhos. Seupaisurrava-a com bastante frequência, mascomumgravesensode justiça.Elanuncatinhasidoestapeadaporraiva.

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– Não vou perguntar de novo – disseAnna.– É só o domovoi – Vasya murmurou.

Seus olhos estavam enormes. – Só odomovoi.–Equetipodediaboéodomovoi?–quis

saberAnnacomestridência.Vasya, aturdida e tentando não chorar,

nãodissenada.Anna levantou amãopara estapear de

novo.– Ele ajuda a limpar a casa – Vasya

gaguejou rapidamente. – Não faz malnenhum.OsolhosdeAnnaarremessaram-se,em

chamas, para dentro do cômodo, e seurostocorounumvermelhoapagado.

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–Váembora,você!–gritou.O domovoi olhou numa confusão

ofendida.Annavoltou-separaVasilisa.–Domovoi? – sibilou, avançandopara a

enteada.–Domovoi?Nãoexisteessetaldedomovoi!Furiosa, confusa, Vasya abriu a boca

paracontradizê-la,masaoveraexpressãoda madrasta fechou-a de pronto. Nuncatinhavistoninguémcomtantomedo.–Caia fora daqui! – gritouAnna. –Vá

embora,fora!A última palavra foi um guincho, e

Vasyavirou-seefugiu.

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Ocalordoanimalvinhadebaixoeaqueciaopalheirodecheirodoce.Vasyaenfiou-senuma pilha de palha, gelada, ferida edesconcertada. O domovoi não existia?Claroqueexistia.Eravisto todososdias!Estiverabemali!Masseráqueaspessoasoviam mesmo? Vasya não conseguia selembrar de ninguém falando com ele,excetoelamesma.Mas…ÉclaroqueAnnaIvanovnaovira:“Váembora”,tinhadito.Não tinha? Talvez… Talvez não houvesseessa coisa de domovoi. Vai ver que elaestava louca.Talvez estivesse destinada aserumabobinhaabençoada,vagandopor

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entreosaldeões.Masnão,essesdoidinhoseramprotegidosporCristo;nãochegariamnempertodesertãomalvadosquantoela.AcabeçadeVasyadoíadetantopensar.

Se o domovoi não era real, então, e osoutros?Ovodianoynorio,ohomem-galhonasárvores?Arusalka,opolevik,odvornik?Teria ela imaginado todos eles? Estarialouca? Anna Ivanovna também? Desejoupoder perguntar a Olya ou Sasha. Elessaberiam, e nenhum deles jamais baterianela.Masestavamlonge.Vasyaafundouacabeçaentreosbraços.

Nãosoubeaocertoquantotempoficouali.Assombrasmoveram-sepeloestábuloempenumbra.Cochilouumpoucoàmaneiradascriançascansadas,equandoacordou,a

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luz no palheiro era cinza e ela estavaenlouquecidadefome.Rigidamente,Vasyaesticou-se,abriuos

olhos e se viu olhando diretamente nosolhos de uma criaturinha estranha. Vasyasoltouumgemidodedesânimoetornouaseenrodilhar,pressionandoospunhosnasórbitas oculares. Mas, quando olhounovamente, os olhos continuavam ali,ainda grandes, castanhos e tranquilos,ligadosaumrostolargo,narizvermelhoeuma barba branca que se mexia de umladoaoutro.A criatura era bem pequena, não

ultrapassava a própria Vasya, e estavasentada emumapilhade feno,olhando-acom uma expressão de curiosa simpatia.

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Diferentementedodomovoicomseumantoperfeito, esta criatura usava uma série derefugosesfarrapadosetinhaospésnus.Vasyaviutudoistoantesdeapertarbem

osolhosnovamente.Masnãopoderiaficarafundada na palha para sempre. Por fim,juntoucoragem,abriuosolhosmaisumavezedisse,trêmula:–Vocêéumdiabo?Houveumapequenapausa.–Nãosei.Podeser.Oqueéumdiabo?–

A criaturinha soava comoo ronco deumcavalobonzinho.Vasyarefletiu:–Umacriatura sombria, combarbade

fogoerabobifurcado,quequerseapossarda minha alma e me arrastar pra ser

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torturadanumburacodefogo.Voltouaolharohomenzinho.Fosse ele o que fosse, não parecia

corresponder a essa descrição. Sua barbaera garantidamente branca e sólida, e eleestava se virando para examinar osfundilhos da sua calça, como que paraconfirmarafaltaderabo.–Não – respondeu enfim. – Não acho

queeusejaumdiabo.– Você está mesmo aqui? – Vasya

perguntou.– Às vezes – o homenzinho respondeu

tranquilamente.Vasyanãoestavatotalmentesossegada,

mas depois de pensar por um momentodecidiu que “às vezes” era preferível a

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“nunca”.–Ah–disseela,tranquilizada.–Então,

oquevocêé?–Cuidodoscavalos.Vasyaassentiucomprudência.Sehavia

umacriaturinhaquetomavacontadacasa,bem, então deveria haver outra para osestábulos.Masaprenderaatercautela.–Qualquer umpode…pode ver você?

Elessabemquevocêestáaqui?–Os tratadores sabem que estou aqui.

Pelo menos, eles deixam oferendas nasnoites frias.Mas, não, ninguém podemever.Sóvocê.Eaquelaoutra,maselanuncavem.–Eleesboçouumapequenamesuraemsuadireção.Vasya olhou-o com crescente

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consternação.–Eodomovoi?Ninguém tambémpode

vê-lo,pode?– Não sei o que é um domovoi –

respondeua criaturinha, sem se alterar. –Pertenço aos estábulos e aos animais quevivem aqui. Não saio a não ser paraexercitaroscavalos.Vasyaabriuabocaparaperguntarcomo

elefaziaisso.Nãoeramaisaltodoqueela,e todososcavalostinhamascostasmuitoacima da sua cabeça. Mas, naquelemomento, deu-se conta da voz rouca deDunyachamando-a.Deuumpulo.–Tenhoqueir–elafalou.–Voutever

denovo?–Sequiser–respondeuooutro.–Nunca

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faleicomninguémantes.–MeunomeéVasilisaPetrovna.Qualé

oseu?Acriaturinhapensouporuminstante.–Nuncativequemedarumnomeantes

–disse.Voltouapensar.–Souovazila, oespíritodoscavalos–acrescentou,porfim.–Achoquevocêpodemechamarassim.Vasya assentiu uma vez,

respeitosamente.– Obrigada – disse. Depois rolou e

correu para a escada do palheiro, tirandofenodocabelo.

Osdiaseasestaçõesforamsesucedendo.

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Vasya foi crescendo e aprendeu a tercautela. Assegurou-se de nunca falar comninguémanãoseroutraspessoas,amenosque estivesse sozinha. Decidiu gritarmenos, correr menos, preocupar Dunyamenos e, acima de tudo, evitar AnnaIvanovna.Decertaforma,atétevesucesso,porque

se passaram quase sete anos em paz. SeVasyaouviavozesnovento,ouviarostosnasfolhas,ignorava-os.Amaioria.Ovazilatornou-seaexceção.Ele era uma criatura muito simples.

Comotodososespíritosdomésticos,disse,passouaexistirquandoosestábulosforamconstruídos e não se lembrava de nadaanterior a isso. Tinha a simplicidade

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generosadoscavalose,sobsuasdiabruras,Vasilisatinhaumaconstânciaque,emboranão soubesse disso, atraía o pequenoespíritodoestábulo.Semprequepodia,Vasyadesapareciano

celeiro.Poderia ficarhorascontemplandoo vazila. Seus movimentos eram de umalevezaehabilidadesinumanas,esubianascostas de todos os cavalos como umesquilo.AtéMetelficavacomoumapedraenquanto ele fazia isso. Depois de umtempo,pareceuperfeitamentenaturalqueVasyapegasseumafacaeumpenteefosseajudá-lo.Deinício,asaulasdovazilaeramapenas

sobrecoisastécnicas:cuidardopelo,tratar,sarar, mas Vasya era muito impaciente e

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logo ele estava lhe ensinando coisasestranhas.Ensinou-lhe a conversar com cavalos.

Eraumalinguagemdeolhosecorpo,somegestos.Vasyaerajovemosuficienteparaaprender rápido. Logo estava seesgueirandonoceleironãoapenasparaoconfortodofenoedoscorposquentes,masparaaconversadoscavalos.Sentava-senasbaiascontinuamente,escutando.Oscavalariçospoderiamtê-lamandado

embora,setivessemdadocomela,masasvezesemqueconseguiramvê-laforamdeuma raridade surpreendente. Às vezes,Vasya ficavapreocupadaporelesnuncaaencontrarem.Ela sóprecisava seencostarna lateral de uma baia, depois rodear o

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cavalodecabeçabaixaefugir,eotratadornemmesmolevantavaosolhos.

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PARTEDOIS

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12

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OPADREDECABELOSDOURADOS

NO ANO EM QUE VASILISAPETROVNAFEZQUATORZEANOS, ometropolitanoAlekseifezseusplanosparaa ascensãodopríncipeDmitrii Ivanovich.Durante sete anos, o metropolitanoassumira a regência de Moscou;esquematizava,discutia,faziaaliançaseasquebrava,chamavahomensparaguerreare os mandava novamente para casa.Porém, quando Dmitrii chegou à idadeadulta, Aleksei, vendo-o ousado, arguto e

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firmenojulgamento,disse:– Bem, um bom potro não deve ser

deixado no pasto. – E começou a fazerplanosparaacoroação.Foramcosturadosmantos, compradas joias e peles,mensageiros foram enviados a Sarai parapediraindulgênciadokhan.E Aleksei continuou, como sempre, a

procurarasuavoltaaquelesquepoderiamestaremposiçãodeseoporemàsucessãodo príncipe. Foi então que soube de umpadrechamadoKonstantinNikonovich.Konstantin era bem jovem, é verdade,

feliz (ou infelizmente), possuidor de umabeleza terrível: cabelo cor de ouro velho,olhos como água azul. Era conhecido emMuscovyporsuamisericórdiae,apesarda

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juventude,tinhaviajadoparalonge,aosulatéTsargradeaoesteatéHellas.Liagregoepodiaargumentarsobrepontosobscurosdeteologia.Alémdisso,cantavacomumavoz de anjo, a ponto de as pessoaschoraremaoouvi-lo e ergueremos olhosparaDeus.Mas, acima de tudo, Konstantin

Nikonovich era pintor de imagens.Imagenstais,diziam,comojamaishaviamsidovistasemMuscovy.DeviamtervindododedodeDeusparaabençoaromundoperverso. Suas imagens já eram copiadaspelosmonastérios do norte de Rus’, e osespiõesdeAleksei trouxeram-lhehistóriasde multidões arrebatadas em tumulto,mulheres chorando ao beijar os rostos

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pintados.Esses rumores perturbaram o

metropolitano.–Bem, livrareiMoscoudessepadrede

cabelosdourados–disseconsigomesmo.–Se ele é tão amado, se quiser, sua vozpoderiaviraropovocontraopríncipe.Passouaconsideraralgunsmeios.Enquanto refletia, chegou um

mensageiro da casa de PyotrVladimirovich.O metropolitano mandou buscar o

homem imediatamente. O mensageirochegou no momento oportuno, aindaempoeirado e cansado, surpreso com seureluzente entorno. Mas ficousuficientementefirmeedisse:

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–Abênção,padre–gaguejouapenasumpouco.– Deus esteja convosco – respondeu

Aleksei,esboçandoosinaldacruz.–Diga-meoqueotraztãolonge,meufilho.–OpárocodeLesnayaZemlyamorreu

– explicou o mensageiro, engolindo emseco. Esperava contar sua incumbênciaparaumpersonagemmenosreferenciado.– O bom e gordo padre Semyon foi aoencontro de Deus e estamos à deriva,segundoasenhora.Elaimploraparaqueosenhornosmandeoutro,paranosmanternaqueleermo.– Bem – disse o metropolitano

imediatamente. – Agradeça, porque suasalvaçãoestábemàmão.

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O metropolitano Aleksei dispensou omensageiroemandouchamarKonstantinNikonovich.O rapaz veio à presença do prelado,

alto, pálido e afogueado. Seu manto detecido escuro ressaltava a beleza do seucabeloedosseusolhos.– Padre Konstantin – disse Aleksei –,

está sendo chamado por Deus para umatarefa.Opadrenãodissenada.– Uma mulher – o metropolitano

continuou –, irmã do próprio grão-príncipe, enviou um mensageiro pedindonossaajuda.Orebanhodasuaaldeiaestásempastor.Orostodorapaznãosealterou.

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–Vocêéohomemcertoparairassistirasenhorae sua família–Aleksei terminou,sorrindo com um ar de estudadabenevolência.– Batyushka – começou o padre

Konstantin.Tinhaavoztãoprofundaqueera chocante.O criado, junto ao cotovelode Aleksei, guinchou. O metropolitanoestreitou os olhos. – Sinto-me honrado,masjátenhoomeutrabalhoentreopovodeMoscou.Eminhas imagens,quepinteiparaaglóriadeDeus,estãoaqui.–Temosmuitosentrenósparacuidardo

povo de Moscou – replicou ometropolitano.Avozdo jovempadreeracalmanteeenervanteaomesmotempo,eAleksei o observou com cautela. – E

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ninguém para aquelas pobres almasperdidas no ermo. Não, não, precisamesmo ser o senhor. Partirá em trêssemanas.Pyotr Vladimirovich é um homem sensato,

pensouAleksei.Trêsestaçõesnonortemataráeste pretensioso, ou pelo menos amainará esseencantotãoperigoso.Émelhordoquematá-loagoraecorreroriscodeopovopegarsuacarnecomorelíquia,transformando-onummártir.Padre Konstantin abriu a boca. Mas

deparou-secomoolhardometropolitano,duro como pedra. Os guardas estavamdispostos por toda parte, além daantessala, com longas lanças vermelhas.Konstantin engoliu em seco seja lá o quequisessedizer.

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– Estou certo – disse Aleksei comsuavidade–quetemmuitoafazerantesdapartida.Deusestejaconvosco,meufilho.Konstantin,lívidoemordendoseulábio

vermelho,inclinouacabeçarigidamenteedeumeia-volta.Seumantopesadoonduloue estalou atrás dele enquanto deixava asala.– Me livrei de uma boa – murmurou

Aleksei, embora continuasse inquieto.Despejoukvas emum copo e a entornougeladagoelaabaixo.

Noaltoverão,asestradasestavamsecasecomomatocrescido.Osolamenogostava

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da terra de cheiro doce, e chuvas levesespalhavam flores pela floresta. Noentanto,opadreKonstantinnãoviunadadisso;cavalgavaaoladodomensageirodeAnna comuma raiva de dentes travados.Seusdedosansiavamporseuspincéis,seuspigmentos, seus painéis demadeira, pelasuacelafriaesilenciosa.Maisdoquetudo,sentia falta das pessoas, do seu amor efome, do seu arrebatamento combinadocom certo medo, da maneira como suasmãos estendiam-se para as dele. Que osdiabos levassem o intrometidometropolitano.Eagoraeleestavaexilado,pornenhumarazãoanãoseradequeaspessoas preferiam-no. Bem. Treinariaalgum menino da aldeia, faria com que

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fosseordenadoe,depois,estarialivreparavoltaraMoscou.Ou,talvez,irmaisaosul,para Kiev, ou oeste, para Novgorod. Omundoeravasto,eKonstantinNikonovichnão seria deixado para apodrecer emalgumafazendanafloresta.Konstantinpassouumasemanairritado

e depois foi tomado por uma curiosidadenatural. As árvores cresciam com umaregularidade maior, à medida que seaprofundavam nas terras selvagens:carvalhos de circunferência gigantesca epinheirosaltoscomoosdomosdasigrejas.Oscamposluminososiamseescasseando,enquanto a floresta acercava-se dos doislados.A luz era verde, cinza e roxa, e assombras estendiam-se espessas como

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veludo.– Como são as terras de Pyotr

Vladimirovich? – Konstantin perguntoucertamanhãaseuacompanhante.Omensageirolevouumsusto;faziauma

semana que cavalgavam, e o belo padremaltinhaabertoaboca,excetoparacomersuasrefeições.– Lindíssimas, Batyushka – o homem

respondeu com respeito. –Árvores lindascomo catedrais e corredeiras claras portodos os lados. Flores no verão, frutas nooutono.Masnoinvernofazfrio.–Eseupatrãoesuapatroa?–perguntou

Konstantin,numacuriosidadeinvoluntária.– Pyotr Vladimirovich é um bom

homem–respondeuomensageirocomo

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entusiasmo transparecendo na voz. – Àsvezes é duro,mas justo, e sua gente nãopassanecessidade.–Eapatroa?–Ah,umaboamulher,umaboamulher.

Nãoé comoaantigapatroa,masmesmoassim uma boa mulher. Nunca ouvireclamaçãodela.Lançou a Konstantin um olhar furtivo

enquantofalava,eopadreseperguntouoqueomensageiroteriadeixadodedizer.

No dia em que o padre chegou, Vasyaestava sentadanuma árvore, conversandocom uma rusalka. Houve uma época em

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queacharataisconversasdesconcertantes,mas agora tinha se acostumado com anudez de pele verde da mulher e oconstante gotejar de água do seu cabeloclaro,cobertodeplantas.Oespíritoestavasentado em um galho grosso, com umrelaxamento felino, penteandoseguidamente suas longas madeixas. Opente era seu maior tesouro, porque, seseu cabelo secasse, ela morreria. Mas opentepoderiaproduziráguaemqualquerlugar.Olhandodeperto,Vasyapodiaveraáguafluindodosdentesdopente.Arusalkatinha um apetite por carne; abocanhavacervos que vinhambeber em seu lago aoamanhecer e, às vezes, os rapazes quenadavamalinoaltoverão.Masgostavade

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Vasilisa.Erafimdetarde,ealuzdoslongosdias

donortebrilhavanelasduas,destacandoobrilho do cabelo de Vasya e reduzindo arusalka a um fantasma esverdeado emforma demulher. O espírito da água eratãoantigoquantooprópriolago,eàsvezesela olhava pensativa para Vasya, a filhaaudaciosadeummundomaisnovo.Tinham se tornado amigas sob

estranhascircunstâncias.Arusalkaroubaraum menino da aldeia. Vasya, vendo ojovem desaparecer, gorgolejando, e orelance de dedos verdes, mergulhara nolagoatrásdele.Emborafosseumacriança,resplandecia com a força de sua própriamortalidade e poderia se equiparar a

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qualquer rusalka. Agarrou o menino e oarrastou de volta para a luz.Chegaramasalvonapraia,omeninoferidoecuspindoágua, olhando para Vasya num misto degratidão e terror. Livrou-se dela e correuparaaaldeiaassimquesentiua terrasobospés.Vasyatinhadadodeombroseidoatrás,

torcendoaáguadasuatrança.Queriasuasopa.Masaofindarolongocrepúsculodaprimavera,quandocadafolhaelâminadegrama projetavam-se escuras contra o artingido de azul, Vasya retornara ao lago.Sentou-senabeirada,comosdedosdospésnaágua.– Você queria comer ele? – perguntou

paraaágua,estabelecendoconversa.–Não

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dápraacharoutracarne?Houveumpequenosilênciopreenchido

pelasfolhas.Então…–Não–respondeuumavozondulada.Vasya ficou de pé num pulo, os olhos

faiscandoatravésda folhagem.Foi, acimadetudo,porsortequeseuolhardivisouosinuoso contorno de umamulher nua. Arusalkaestavaagachadaemumgalho,comumacoisabrancareluzentepresaemumadasmãos.–Nãoeraacarne–acriaturatinhadito

com um levantar de ombros, o cabelodeslizandocomoondinhassobresuapele.–Medo…edesejo…Nãoquevocêconheçaalguma coisa a respeito de qualquer um

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dos dois. Isso dá sabor à água e mealimenta.Aomorrer,elesmeveemcomosou. Caso contrário, eu não passaria delago,árvoreealga.–Masvocêmataeles!–exclamouVasya.–Tudomorre.– Não vou deixar vocêmatar aminha

gente.–Entãovoudesaparecer–respondeua

rusalka,seminflexão.Vasyapensouporumtempo.– Sei que você está aqui. Posso te ver.

Nãoestoumorrendo,nemcommedo,masposso te ver. Poderia ser sua amiga. Issobasta?A rusalka olhava para ela com

curiosidade.

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–Talvez.Ecumprindosuapalavra,Vasyavinhaà

procura do espírito das águas e, naprimavera,jogavafloresnolago,earusalkanãomorreu.Emtroca,ensinouVasyaanadardeum

jeito que poucas pessoas conseguiam e asubiremárvorescomoumgato,efoiassimque as duas viram-se juntas,modorrandoem um galho sobre a estrada, quando opadreKonstantinaproximou-sedeLesnayaZemlya.A rusalka foi a primeira a ver o padre.

Seusolhosbrilharam.–Aívemalguémqueseriabomcomer.Vasyaespiouaestradaeviuumhomem

de cabelo dourado coberto de poeira e o

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mantoescurodeumpadre.–Porquê?–Estácheiodedesejo.Desejoemedo.

Elenãosabeoquedesejaenãoadmiteseumedo.Massenteosdoiscomumaforçaapontodeestrangular.O homem aproximava-se. De fato, era

um rosto faminto. Maçãs do rosto altas,destacadas, lançavam sombras cinza emsuas faces encovadas; tinha olhos azuisfundos e suaves, lábios cheios, emboradispostos com severidade, comoqueparaesconderadoçura.Umdoshomensdopaide Vasya cavalgava a seu lado, e os doiscavalosestavamempoeiradosecansados.OrostodeVasyailuminou-se.–Voupra casa. Se ele estiver vindode

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Moscou,vaitrazernotíciasdomeuirmãoedaminhairmã.A rusalka não estava olhando para ela,

mas para a trilha que o homem tinhatomado,umaluzfamintanosolhos.– Você prometeu que não faria isto –

disseVasyasecamente.A rusalka sorriu, dentes afiados

reluzindoporentrelábiosverdes.–Talvezeledesejeamorte–disseela.–

Seforassim…possoajudá-lo.

O quintal da frente da casa fervilhavacomoumformigueiro,tingidodedouradopela luzdatarde.Umhomemdesarreava

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os cavalos exaustos, mas o padre nãoestavaàvista.Vasyacorreuparaaportadacozinha. Dunya, que a encontrou nasoleira, sibilou com os galhos em seucabelo e as manchas no seu vestidoherdado.–Vasya,onde…?–eladisse,eentão:–

Não importa. Entre rápido. – Levou amenina para pentear o cabelo e trocar asroupas sujas por uma blusa e um sarafanbordado.Corada e aflita, porémmais oumenos

apresentável, Vasya saiu do quarto quedividia com Irina. Alyosha estava a suaespera.Sorriucomasuaaparência.–Talvezelesconsigamtecasar,afinalde

contas,Vasochka.

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– Anna Ivanovna diz que não –respondeu Vasya pausadamente. – Altademais,magricelacomoumadoninha,péserostoparecidoscomumsapo.–Elabateupalmaserevirouosolhos.–Infelizmente,só príncipes de contos de fadas casam-secomesposas-sapo.Eelaspodemfazerumamágica e ficar lindas se quiserem. Achoquenãotereiumpríncipe,Lyoshka.Alyoshabufou.–Euteriadódopríncipe,masnãoleve

Anna Ivanovna a sério; ela não quer quevocêsejalinda.Vasya não disse nada, e em seu rosto

baixourapidamenteumasombra.– Bem, então temos um novo padre –

Alyosha acrescentou, apressado. – Está

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curiosa,irmãzinha?Osdoissaíramecontornaramacasa.O olhar que ela lhe deu era límpido

comoodeumacriança.–Vocênãoestá?–perguntou.–Elevem

deMoscou;vaiverquetraznotícias.

Pyotreopadreestavamsentadosjuntosnagramafrescadoverão,bebendokvas.Pyotrvirou-se quando ouviu seus filhosaproximando-se, e seus olhos seestreitaramaoversuasegundafilha.Elaéquaseumamulher,pensou.Fazmuito

tempodesdeaúltimavezqueolheiparaeladeverdade.Estámuitoparecidaemuitodiferente

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damãe.Na verdade, Vasya ainda era

desajeitada,mastinhacomeçadoadefinirseus traços. A ossatura continuavagrosseira e abrutalhada, a boca largademais,oslábiosmuitocheiosemrelaçãoao restante, mas ela era envolvente: oshumores passavam como nuvens sobre acristalina água verde do seu olhar, e algoemseusmovimentos,nalinhadopescoço,no cabelo trançado, atraía e retinha aatenção. Quando a luz batia no cabelopreto, ele não emitia um brilho bronze,como acontecia com Marina, mas simvermelho-escuro, como se houvessegranadaspresasnasmechassedosas.Padre Konstantin olhava Vasya com as

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sobrancelhas erguidas e uma leve careta.Nãoédeespantar,Pyotrpensou.Ameninatinha algo de indomável, mesmoconsiderando sua veste apropriada e ocabelo perfeitamente trançado. Pareciauma coisa selvagem recém-capturada emalcomeçandoaserdomesticada.–Meufilho–dissePyotr,rapidamente.–

Aleksei Petrovich. E esta é minha filha,VasilisaPetrovna.Alyosha fez umamesura, tanto para o

padre, quanto para seu pai. Vasya olhavapara Konstantin com evidente ansiedade.Alyosha cutucou-a com força com ocotovelo.–Ah!–disseVasya.–Osenhorébem-

vindo aqui, Batyushka. – E, então,

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acrescentou àspressas: –Temnotícias donosso irmãoedanossa irmã?Meu irmãofoi embora há sete anos para tomar seusvotos no mosteiro da Trindade e minhairmãéaprincesadeSerpukhov.Digaqueosenhorestevecomeles!Sua mãe deveria orientá-la, Konstantin

pensou, sombrio. Uma voz suave e umacabeça curvada seriam mais adequadasquandoumamulhersedirigiaaumpadre.Essa menina encarava-o sem pudor, comolhosverdesélficos.– Basta, Vasya – ordenou Pyotr com

severidade.–Aviagemdelefoilonga.Konstantin foi poupado de responder.

Houve um ruído de passos na relva doverão. Anna Ivanovna surgiu sem fôlego,

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vestidanoseumelhor.Sua filhinha, Irina,seguia-a, impecável como sempre, lindacomoumaboneca.Annacurvouacabeça.Irina chupavao dedo e encarouo recém-chegadodeolhosarregalados.–Batyushka–Annadisse.–Osenhoré

especialmentebem-vindo.O padre acenou de volta. Pelo menos

essas duas eram mulheres adequadas. Amãetinhaumlençoenvolvendoocabeloea garotinha estava apresentável, erapequena e respeitosa. Porém, contra avontade,oolhardeKonstantinresvaloudelado e deu com o olhar interessado daoutrafilha.

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– Cores? – perguntou Pyotr, franzindo ocenho.– Cores, Pyotr Vladimirovich – disse o

padre Konstantin, tentando não trair suaansiedade.Pyotr ficou emdúvida de ter ouvido o

padrecorretamente.O jantar na cozinha de verão era uma

atividade barulhenta. A floresta eradadivosa nos meses dourados, e a hortatransbordava. Dunya superava-se comcozidosdelicados.–E,então,corremoscomolebres–disse

Alyoshadooutroladodalareira.

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Ao seu lado, Vasya corou e cobriu orosto.Acozinhaencheu-sederisadas.– Você quer dizer corantes? – Pyotr

perguntou ao padre, seu rostodesanuviando. – Bem, não precisa temereste quesito; as mulheres tingirão o quevocêquiser.Sorriu, sentindo-se benevolente. Pyotr

estava satisfeito da vida. Suas plantaçõescresciam altas e verdejantes, sob um solclaro e adequado. Sua esposa chorava,gritava e se escondia menos, desde achegadadessepadredecabelosclaros.– Podemos – Anna interrompeu, sem

fôlego.Estavaesquecendoseucozido.–Oqueosenhorquiser.Aindaestácomfome,Batyushka?

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–Cores–disseKonstantin. –Nãoparacorantes.Querofazerpinturas.Pyotr sentiu-se ofendido. A casa estava

pintada sob os beirais, escarlate e azul.Mas a pintura estava viva e bemconservada, e se esse homem julgavaprecisarseintrometer…Konstantinapontouocantodeimagens

noladoopostoàporta.– Para pintar imagens – disse com

clareza.–ParaaglóriadeDeus.Seioqueeu preciso, mas não sei onde encontrar,aquinasuafloresta.Para pintar imagens. Pyotr olhou para

Konstantincomrespeitorenovado.– Como os nossos? – perguntou ele.

Firmou os olhos na Virgem do canto,

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escurecida pela fumaça, pintada comindiferença, o toco de vela à sua frente.Tinha trazido as imagens da família deMoscou, mas nunca havia conhecido umpintor de imagens. Os monges pintavamimagens.Konstantin abriu a boca, suavizou a

expressãoedisse:–Sim,umpoucocomoeles.Maspreciso

de tintas.Cores.Trouxe algumas comigo,mas…As imagens eram sagradas. Sua casa

seria glorificada, quando soubessem queelehospedavaumpintordeimagens.– Claro, Batyushka – disse Pyotr. –

Imagens, pintura de imagens, bem,traremos suas tintas. – Pyotr levantou a

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voz:–Vasya!Nooutro ladoda lareira,Alyoshadisse

alguma coisa e riu.Vasya também estavarindo.Aluzdosolbrilhavaporentreseuscabelos e iluminava as sardas queenfeitavamapontedoseunariz.Desajeitada, Konstantin pensou.

Estabanada, semiadulta.Masmetadeda casaobservaparaveroqueelafaráaseguir.–Vasya! – Pyotr voltou a chamar, com

maisrispidez.Elasaiusussurrandoeveioemdireçãoa

eles. Usava um vestido verde. O cabelohavia se soltadonas têmporas e cacheavaumpouco,pertodassobrancelhas,abaixodo lenço vermelho e amarelo. Ela é feia,pensouKonstantin, e então se perguntou:

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Que diferença fazia para ele, se umameninafossefeia?–Pai?–disseVasya.– O padre Konstantin quer entrar na

mata – disse Pyotr. – Está atrás de cores.Vocêvaicomele.Mostraráondeestãoasplantasdecorantes.O olhar que ela lançou ao padre não

continhaosorrisoafetado,nematimidezdeumadonzela;era transparentecomoaluzdosol,luminosoecurioso.–Sim,pai–disse.EparaKonstantin:–

Acho que amanhã, ao amanhecer,Batyushka. É melhor colher antes da luzplena.Anna Ivanovna aproveitou omomento

para servir mais cozido na tigela de

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Konstantin.–Comsualicença–disse.ElenãotirouosolhosdeVasya.Porque

algum homem da aldeia não poderiaajudá-lo a encontrar seus pigmentos? Porque a feiticeira de olhos verdes?Abruptamente, percebeu que a estavaencarando.Aanimaçãotinhaarrefecidonorostodamenina.Konstantinserecompôs.– Meus agradecimentos, devushka. –

Esboçou o sinal da cruz no espaço entreeles.Vasyasorriusubitamente.–Amanhã,então–disse.–Váembora,Vasya–disseAnna, com

certa estridência. – O santo padre já nãotemnecessidadedevocê.

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Namanhã seguinte,haviaumabrumanochão.Aluzdosolnascentetransformou-aem fogo e fumaça, entremeados com assombras das árvores. A meninacumprimentou Konstantin com um rostocauteloso e ardente. Ela era como umespíritononevoeiro.A floresta de Lesnaya Zemlya não era

como a floresta que circundava Moscou.Eramaisselvagem,maiscruelemaisbela.As árvores imensas sussurravam no alto,emconjunto,eportodaparte,Konstantinpareciaperceberolhos.Olhos…Bobagem.– Sei onde cresce a menta silvestre –

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contouVasya,enquantoseguiamporumaestreita trilha de terra. As árvoresformavamumarcodecatedralsobresuascabeças. Os pés nus da menina eramdelicados na poeira. Trazia um odrependuradoàscostas.–Esetivermossorte,haverá bagas do sabugueiro e amoras-pretas.Amieiroparao amarelo.Mas issonão basta para o rosto de um santo. Osenhor pintará imagens para nós,Batyushka?– Tenho a terra vermelha, as pedras

pulverizadas, o metal preto. Até tenho opó de lápis-lazúli para fazer o véu daVirgem. Mas não tenho verde, nemamarelo ou violeta – disse Konstantin.Percebeu com atraso a ansiedade em sua

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própriavoz.–Essas cores a gente pode encontrar –

disseVasya.Saltitavacomoumacriança.–Nunca vi uma imagem sendo pintada.Nemninguémaquiviu.Todosnósviremoslhe pedir orações, pra poder olharenquantoosenhortrabalha.Eletinhaconhecidopessoasquefaziam

exatamente isso. Em Moscou, elas seapinhavamaoredordassuasimagens…–Afinaldecontas,osenhoréhumano–

disse Vasya, observando os pensamentosatravessaremoseurosto.–Fiqueicismada.Osenhormesmoécomoumaimagem,àsvezes.Ele não sabia o que ela havia visto no

seurosto,eficouirritadoconsigomesmo.

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–Vocêpensademais,VasilisaPetrovna.Émelhor ficar tranquilaemcasacomsuairmãzinha.–Osenhornãoéoprimeiroamedizer

isso–observouVasya,semrancor.–Mas,se eu ficasse,quem iria como senhor, aoamanhecer, procurar pedaços de folhas?Aqui…Eles pararam para pegar bétula e

novamente para apanhar mostardasilvestre. A menina era hábil com suafaquinha. O sol subiu mais para o alto,acabandocomabruma.– Eu lhe fiz uma pergunta ontem,

quando não deveria – disseVasya, depoisque as rendadas folhas de mostardaestavamenfiadasemsuabolsa.–Mashoje

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vou perguntar de novo, e o senhor, porfavor, perdoará a ansiedade de umamenina, Batyushka. Amo meu irmão eminha irmã.Hámuito tempo não temosnotícias de nenhum deles. Meu irmão sechamairmãoAleksandr,agora.Abocadopadreestreitou-se.– Eu o conheço – disse ele, depois de

breve hesitação. – Houve um escândaloquandoele tomouosvotossobseunomedebatismo.Vasyasorriulevemente.–Nossamãeescolheuaquelenomepra

ele,emeuirmãosemprefoiteimoso.Rumoresda intransigênciablasfemado

irmãoAleksandremrelaçãoaesseassuntoespalharam-se por Moscou. Mas,

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Konstantin lembrou a si mesmo, votosmonásticos não eram assunto paradonzelas.Agarotaestavacomosgrandesolhos fixos em seu rosto. Konstantincomeçouasesentirdesconfortável.–OirmãoAleksandrfoiaMoscoupara

a coroação de Dmitrii Ivanovich. Dizemqueeleganhoucertanotoriedadepor seuofício nas aldeias – o padre acrescentourigidamente.–Eminhairmã?–perguntouVasya.– A princesa de Serpukhov é

reverenciada por suamisericórdia e pelosfilhos saudáveis – disse Konstantin,querendoencerraraconversa.Vasyadeuumagirada,comumgritinho

desatisfação.

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–Preocupo-mecomeles–disseela.–Opai também, embora finja que não.Obrigada,Batyushka.–Eela lhemostrouum rosto com uma luz que vinha dedentro, de tal maneira que Konstantinficou atônito e relutantemente fascinado.Sua expressão tornou-se mais fria. Fez-seumpequenosilêncio.Atrilhaalargou-seeelescaminharamladoalado.–Meupaidissequeosenhorestevenos

confins da terra – disse Vasya. – EmTsargradenopaláciodemilreis.NaigrejadaSantaSabedoria.–Sim–respondeuKonstantin.–Osenhormecontariaarespeito?–ela

indagou.–Opaidizqueosanjoscantamaoentardecerequeoczargoverna todos

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os homens deDeus, como se elemesmofosse Deus. Diz que ele tem cômodosentulhados de pedras preciosas e milcriados.Aperguntadelapegou-odesurpresa.–Anjosnão–respondeuelelentamente.

–Apenashomens,mashomenscomvozesquenãoenvergonhariamosanjos.Aocairdanoite,elesacendemcemmilvelas,eháouroemúsicaportodaparte…Eleparouabruptamente.– Deve ser como no paraíso – Vasya

disse.–É–respondeuKonstantin.Amemória

pegara-o pela garganta: ouro e prata,música, homens cultos e liberdade. Afloresta pareceu sufocá-lo. – Não é um

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assunto adequado para meninas –acrescentou.Vasya levantou uma sobrancelha.

Chegaramaumamoitadeamoras-pretas.Elacolheuumpunhado.–Osenhornãoqueriavirpracá,nãoé?

–disseela,àsvoltascomasamoras.–Nãotemosmúsica, nem luz, e poucas pessoassão refinadas. O senhor não pode iremboradenovo?– Vou aonde Deus me manda –

Konstantin respondeu de forma fria. – Semeutrabalhoforaqui,ficareiaqui.–Equaléoseutrabalho,Batyushka?–

perguntou Vasya. Ela havia parado decomeramoras-pretas.Poruminstante,seuolharlançou-separaoaltodasárvores.

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Konstantinacompanhouseusolhos,masnão havia nada para ver. Uma sensaçãoesquisitasubiu-lhepelaespinha.– Salvar almas – ele respondeu. Dava

paraelecontarassardasnonarizdela.Sehaviaalgumameninacomnecessidadedesalvação era esta. As amoras-pretashaviammanchadoseuslábiosemãos.Vasyadeuummeiosorriso.–Então,osenhorvainossalvar?–SeDeusmederforças,salvareivocê.–Nãopassodeumacamponesa–disse

Vasya.Elavoltouaestenderobraçoparaamoitadeamoras-pretas,cuidadosacomosespinhos.–NuncaviTsargrad,nemanjos,nemouviavozdeDeus,masachoqueosenhordeveria tomarcuidado,Batyushka,

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porqueDeusnãofalasegundoavozdoseudesejo. Nunca precisamos de salvaçãoantes.Konstantinencarou-a.Elaapenassorriu

paraele,maiscriançadoquemulher,alta,magra e suja com o sumo das amoras-pretas.–Rápido–elafalou.–Logovaiestarluz

plena.

Naquelanoite,opadreKonstantindeitou-seemseucatreestreito, tremendo,enãoconseguiudormir.Nonorte,oventotinhadentesquemordiamdepoisdopôrdosol,aténoverão.

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Havia colocado suas imagens damaneiracerta,nocantoopostoàporta.AMãedeDeusestavapenduradanocentro,comaTrindadelogoabaixo.Aoanoitecer,adonadacasa,tímidaeinoportuna,tinhalhe dado uma grossa vela de cera deabelha, para colocar perante as imagens.Konstantinacendeu-anocomeçodanoiteedesfrutoudaluzdourada.Mas,aoluar,avela projetava sombras sinistras sobre orosto da Virgem e dispunha figurasestranhas dançando loucamente entre astrêspartesdoTodo-Poderoso.Havia algodehostil na casa durante a noite. Pareciaquaserespirar…Que tolice, pensou Konstantin. Irritado

consigomesmo, levantou-se,pretendendo

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apagar a vela, mas, ao cruzar o quarto,ouviu o nítido clique de uma porta sefechando. Sem pensar, dirigiu-se para ajanela.Umamulher atravessava o espaçoem frente a casa, enrolada num xalepesado.Parecia roliça e sem forma soboenvoltório. Padre Konstantin nãoconseguiu discernir quem poderia ser. Afigura veio até a porta da igreja e parou.Pôsamãonoarodebronze,puxouaportaedesapareceuládentro.Konstantinolhouparao lugarondeela

havia sumido. Logicamente não havianada que impedisse alguém de rezar nacalada da noite, mas a casa tinha aspróprias imagens. A pessoa poderiafacilmenterezarperanteelas,semterque

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enfrentar a escuridão e o úmido arnoturno. E havia algo de furtivo, quaseculpado,nocomportamentodamulher.Ficandocadavezmaiscuriosoeirritado,

além de desperto, Konstantin virou-se dajanela e vestiu seu manto escuro. Seuquarto tinha sua própria porta externa.Saiusemfazerbarulho,semseincomodarem calçar sapatos, e atravessou a gramaatéaigreja.

Anna Ivanovna ajoelhou-se no escuroperanteobiombode ícones e tentounãopensaremnada.Ocheirodepoeiraetinta,ceradeabelhaemadeiravelhaenvolvia-a

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como um bálsamo, enquanto o suor demais um pesadelo secava na friagem.Dessa vez, ela estivera caminhando namata à meia-noite, sombras escuras portoda parte. Vozes estranhas tinham seerguidoàsuavolta.– Senhora – gritavam para ela. –

Senhora,por favor, veja-nos, conheça-nos,para que seu lar não fique desprotegido.Porfavor,senhora.Mas ela não olhava. Seguia sem parar,

enquanto as vozes afligiam-na. Por fim,desesperada, começou a correr,machucando os pés em pedras e raízes.Ergueu-seumgrandegritodelamentação.Desúbito,suatrilhaterminou.Continuoucorrendo para dentro do nada e caiu de

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costas,ofeganteepingandosuor.Um sonho, nada além disso. Mas seu

rosto e seus pés ardiam, e mesmoacordada, Anna conseguia ouvir aquelasvozes.Porfim,disparouparaaigrejaeseencolheu defronte ao biombo de ícones.Poderia ficar na igreja e voltarfurtivamente com os primeiros raios. Jáfizera isso antes. Seu marido era umhomem tolerante, embora sumiços denoiteinteirafossemestranhosdeexplicar.Oestalomaciodasdobradiçasresvalou

emseusouvidoscomosefosseumladrão.Anna ergueu-se de um pulo e girou ocorpo. A silhueta de uma figura commantoescuro,iluminadapelaluanascente,entrousuavementeeveioemsuadireção.

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Anna ficou apavorada demais para semexer.Continuouparalisadaatéasombraaproximar-se o suficiente para que elapudesse perceber o brilho dos cabelos deourovelho.– Anna Ivanovna – disse Konstantin. –

Estátudobemcomvocê?Elaolhouparaopadredebocaaberta.A

vida toda, as pessoas tinham lhe feitoperguntaszangadaseexasperadas.–Oqueestáfazendo?–diziamelas.–O

que há de errado com você? – Masninguém jamais lhe perguntara como elaestavanaquele tombrandode indagação.O luarbrincavanas reentrânciasdo rostodopadre.Annagaguejouparafalar:

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– Eu… É claro, Batyushka, estou bem,eu só…medesculpe, eu…–O soluçonagargantaasufocou.Tremendo,incapazdeolhá-lo nos olhos, deu-lhe as costas,persignou-seetornouaseajoelharperanteobiombodeíconessantos.Padre Konstantin ficou um momento

perto dela, sem palavras, depois se viroucommuitaprecisão,parasepersignareseajoelhar na outra extremidade doiconóstase,emfrenteaorostotranquilodaMãe deDeus. Sua voz, enquanto rezava,chegoubaixinhoaosouvidosdeAnna,ummurmúrio lento, ressonante, embora elanãoconseguisseentenderaspalavras.Porfim,alamúriadesuarespiraçãoaquietou-se. Beijou a imagem de Cristo e olhou o

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padre de esguelha. Contemplava asimagens na penumbra, as mãosentrelaçadas. Sua voz, quando se ouvia,eraprofunda,baixaeinesperada.–Conte-me–elepediu–,oqueafazvir

procurarconsolonumahoradestas?– Não lhe disseram que sou louca? –

Anna respondeu, amarga, surpreendendoasimesma.–Não–opadrerespondeu.–Vocêé?Seuqueixo afundounumamera alusão

deconcordância.–Porquê?Os olhos dela ergueram-se para

encontrarosdele.–Porqueeu sou louca?–Suavoz saiu

numsussurrorouco.

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– Não – Konstantin respondeu compaciência. – Por que você acredita que élouca?–Vejo…coisas.Demônios, diabos, por

todaparte,otempotodo.Sentiu-se como se estivesse além de si

mesma.Algohaviaassumidoocontroledasua língua e formatava suas respostas.Nunca tinha contado a ninguém.Metadedo tempo, recusava-se a admitir para simesma, até quando resmungava noscantoseasmulheressussurravamportrásdas mãos. Até o bondoso, beberrão eatrapalhado padre Semyon, que rezaracom elamais vezes do que ela conseguiacontar,nuncaextraíraessaconfissãodela.–Masporqueistodeveriasignificarque

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você é louca? A Igreja ensina que osdemôniosandamentrenós.VocênegaosensinamentosdaIgreja?–Não!Mas…Anna sentiu calor e frio ao mesmo

tempo. Quis olhar novamente no rostodele, mas não se atreveu. Em vez disso,olhouparaochãoeviuasombratênuedoseu pé, incongruentemente nu por baixodo manto pesado. Por fim, conseguiusussurrar:– Mas eles não são… não podem… ser

reais.Ninguémmaisosvê…Soulouca.Seique sou louca. – Ela se calou e depoisacrescentoulentamente:–Sóqueàsvezesachoque…minhaenteada,Vasilisa,maséapenas uma criança que ouve histórias

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demais.OolhardopadreKonstantinaguçou-se.–Elafalanisso?– Não… não recentemente. Mas,

quando ela era pequena, às vezes euachava…Osolhosdela…–Evocênãofeznada?A voz de Konstantin era elástica como

umacobra ebemafinada comoqualquercantora.Annadesanimoucomotomdeledeincrédulodesprezo.– Bati nela quando pude e a proibi de

tocar no assunto. Pensei que, talvez, se apegasse bem jovem, a loucura nãoassumiriaocontrole.–Vocêsópensounisso?Loucura?Nunca

temeupelaalmadela?

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Annaabriuaboca,fechou-anovamenteeencarouopadre,aturdida.Elerodeouatéocentrodo iconóstase,ondeumsegundoCristo estava no trono, ladeado porapóstolos. O luar tornou seu cabelodouradoemcinza-prateado,esuasombrarastejouescurapelochão.–Osdemôniospodemserexorcizados,

Anna Ivanovna –disseopadre, sem tirarosolhosdoícone.–Ex…Exorcizados?–elaguinchou.–Naturalmente.– Como? – Ela se sentiu como se

estivesse pensando através da lama.Durante toda a sua vida tinha suportadosua maldição. Que ela simplesmentepudesse desaparecer… Sua mente não

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conseguiacompreenderanoção.–RitosdaIgreja.Emuitaoração.Fez-seumbrevesilêncio.–Ah–Anna suspirou. –Ah, por favor,

faça isso ir embora. Faça com que vãoembora.Ele poderia ter sorrido, mas não dava

paratercertezaàluzdoluar.–Rezareiepensareia respeito.Voltee

torneadormir,AnnaIvanovna.Ela olhou para ele com grandes olhos

aturdidos,depoissevirouefoiàscegasatéa porta, os pés desajeitados na madeiranua.PadreKonstantinprostrou-seperanteo

iconóstase. Não conseguiu dormir orestantedanoite.

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O dia seguinte era domingo. Noamanhecer cinza-esverdeado, Konstantinvoltou para o próprio quarto. Com osolhos pesados, jogou água fria sobre acabeçaelavouasmãos.Logodeveriarezara missa. Estava exaurido, mas calmo.Durante as longas horas da sua vigília,Deuslhederaaresposta.Sabiaqueodiaboseestabeleceranesta terra.Eleestavanossímbolos solares no avental da ama, noterrordaquelamulherestúpida,nosolhosvisionárioseselvagensdafilhamaisvelhade Pyotr. O lugar estava infestado dedemônios: os chyerty da antiga religião.Aquelas pessoas idiotas e selvagensadoravamDeusduranteodiaeosvelhosdeusesemsegredo.Tentavamseguirpelas

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duas trilhasaomesmotempoese faziamdehumildesàvistadopadre.Nãoeradeestranhar que o diabo tivesse vindoarquitetarsuasartimanhas.Aexcitaçãopercorreusuasveias.Tinha

pensado que apodreceria ali, no fim domundo, mas de fato havia uma batalha,uma disputa pelo domínio das almas dehomensemulheres,odiabodeumladoeele,comomensageirodeDeus,dooutro.Aspessoasestavamchegando.Elequase

conseguia sentir a curiosidade ansiosadeles.NãoeraaindacomoMoscou,ondeas pessoas se agarravam famintas às suaspalavras e o amavam com seus olhosamedrontados.Aindanão.Masseria.

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Vasyacontraiuumombroedesejoupodertiraro toucado.Comoestavamna igreja,Dunya havia acrescentado um véu aopesadoartifíciofeitocomtecido,madeiraepedras preciosas. Aquilo coçava. Mas elanão era nada comparada a Anna, queestava vestida como que para umbanquete, uma joia em formato de cruzpenduradaaopescoçoeanéisemtodososdedos.Dunya tinhadadoumaolhada emsua patroa e murmurado baixinho sobremisericórdiaecabelosdourados.AtéPyotrlevantou uma sobrancelha perante suamulher, mas conservou a calma. Vasya

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entrounaigrejaatrásdosirmãos,coçandoocourocabeludo.As mulheres ficavam à esquerda da

nave, em frente à Virgem, enquanto oshomens ficavam à direita, em frente aoCristo.Vasya sempredesejarapoder ficarao lado de Alyosha, para que elespudessem cutucar e se mexer durante amissa. Irinaera tãopequenaemeigaquecutucar não tinha graça e, de qualquermodo, Anna sempre via. Vasya travou osdedosàscostas.As portas no centro do iconóstase

abriram-se e o padre apareceu. Osmurmúrios da aldeia reunida foramsilenciando, pontuados pela risadinha deumamenina.

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A igreja era pequena e o padreKonstantinpareciapreenchê-la.Seucabelodouradoatraíaaatençãodeumamaneiraque nem as joias de Anna conseguiam.Seus olhos azuis perfuraram a multidãocomofacas,umapessoadecadavez.Nãofalou de imediato. Um silêncio ofeganteespalhou-secomosomentreaspessoas,detalmaneiraqueVasyaviu-senoesforçodeescutaraquelarespiraçãosuaveeansiosa.– Abençoado seja o reino do Pai, do

FilhoedoEspíritoSantoagoraesempreepara todo o sempre – disse, finalmente,Konstantin,envolvendo-oscomavoz.Ele não soava como o padre Semyon,

pensou Vasya, embora as palavras daliturgia fossem as mesmas. Sua voz era

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comoumtrovão,noentanto,elecolocavacadasílabacomosefosseDunyaaodarospontos.Sobseutoque,aspalavrascriavamvida.Avozeraprofundacomoosriosnaprimavera. Falou para eles sobre vida emorte,Deusepecado.Faloudecoisasqueelesnãoconheciam,dediabos,tormentose tentação.Convocouaquiloperante seusolhos,paraqueelessevissemsubmetidosao julgamento de Deus, amaldiçoados edecaídos.Enquanto cantava, Konstantin atraiu a

multidãoparasiatéelaecoarsuaspalavrasnum torpor de pavor fascinado. Foiconduzindo-as sem trégua com o chicoteflexível da sua voz, até que as pessoasdeixaram de responder e ouviram como

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crianças aterrorizadas durante umatempestade. Exatamente quando estavamà beira do pânico, ou do êxtase, sua vozamainou.– Tenha piedade de nós e nos salve,

porqueEleébomeamaahumanidade.Um silêncio pesado instalou-se. Na

quietude,Konstantinergueuamãodireitaeabençoouamultidão.Todos foram deixando a igreja como

sonâmbulos, agarrando-se uns aos outros.Anna tinha uma expressão de terrorexaltado que Vasya não conseguiaentender. Os outros pareciamentorpecidos,atéexaustos,comresquíciosdeumarrebatamentotemerosonosolhos.– Lyoshka! – chamou Vasya, correndo

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para o irmão. Mas quando ele se voltoupara ela estava pálido como os outros, eseuolharpareciaencontrarodeladeumalongadistância.Ela o estapeou, assustada ao vê-lo de

olhos parados. Abruptamente, Alyoshavoltou a si e lhe deu um empurrão quepoderiatê-lajogadoporterra,maselaerarápida como um esquilo e usava umvestidonovo.Então,retorceu-separatrásemanteveoequilíbrio,eosdoispassaramase encarar, os peitos ofegantes, punhosfechados.Amboscaíramemsiaomesmotempo.

Riram,eAlyoshadisse:– Então é verdade, Vasya? Demônios

entre nós e tormentas por vir se não os

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expulsarmos? Mas os chyerty… Ele estáfalando sobre os chyerty? As mulheressempredeixarampãoparaodomovoi. PorqueDeusprecisaseimportarcomisso?– Sejam ou não histórias, por que

deveríamos expulsar os espíritosdomésticosporcausadaordemdealgumvelhopadredeMoscou?–retorquiuVasya.–Sempredeixamospão,saleáguapraeleseDeusnuncaseenfureceu.– Não passamos fome – disse Alyosha

hesitante. – E não houve incêndios, nemdoenças.MastalvezDeusestejaesperandoque morramos para que nosso castigojamaistermine.– Pelo amor deDeus, Lyoshka –Vasya

começou, mas foi interrompida pelo

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chamadodeDunya.Annatinhaordenadouma refeição especialmente magnífica, eVasyaprecisavaenrolarbolinhosemexerasopa.Comeram ao ar livre, ovos, kasha,

vegetais de verão, pão, queijo e mel. Acostumeira e alegre algazarra foicontrolada.Asjovenscamponesasficaramnervosaseaossussurros.Konstantin, mastigando absorto,

irradiava satisfação. Pyotr, de cenhofranzido,balançavaacabeçaparaláeparacá como o touro que pressente o perigo,masaindanãoviuoslobosnarelva.Opaiconhece animais ferozes e bandidos, pensouVasya,mas pecado e danação não podem sercombatidos.

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Os outros olhavam para o padre comterror e uma admiração faminta. AnnaIvanovna reluzia com uma espécie dealegria hesitante. O fervor das pessoaspareceu levantar e carregar Konstantin,comoumcavaloagalope.Vasyanãosabia,masnosilênciodanave,depoisquetodoshaviam se retirado, o padre tinha jogadoesse sentimento em seu exorcismo, todoele,atéquemesmoumcegopoderiajurarouvir diabos gritando e tentando escaparcomvidaparalongedosmurosdePyotr.

Naqueleverão,Konstantinandouemmeioaopovoeescutousuaslamúrias.Abençoou

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os moribundos e os recém-nascidos.Escutou quando lhe falavam, e quando avozgravedeleressoava,aspessoasfaziamsilêncioparaouvi-lo.–Arrependam-se–elelhesdizia–para

que não ardam. O fogo está muitopróximo,àesperadevocêsedeseusfilhosa cada vez que vocês se deitam paradormir. Deem seus frutos para Deus, esomenteparaDeus.Ésuaúnicasalvação.Aspessoasmurmuravam juntas, e seus

murmúrios foram se tornando cada vezmaistemerosos.KonstantincomiaàmesadePyotrtodas

asnoites.Suavozfaziaondularohidromeldacasaechacoalharsuascolheresdepau.Irinapassouacolocarsuacolherencostada

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no copo, dando risadinhas ao ouvir oretinido dos dois juntos. Vasya ajudava-anisso;aalegriadacriançaeraumalívio.A conversa sobre maldição não

assustava Irina; ela era muito pequena.Mas Vasya sentia medo. Não do padre,nem dos diabos ou dos buracos de fogo.Tinha visto seus diabos, via-os todos osdias.Alguns erammaldosos, outros erambons, e havia os travessos. Todos tinhammaniastãohumanasquantoaspessoasqueprotegiam.Não, Vasya sentia medo era de sua

própria gente. Eles já não brincavam acaminho da igreja; escutavam o padreKonstantinnumsilênciopesadoefaminto.Emesmo quando não estavam na igreja,

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inventavamdesculpasparavisitá-loemseuquarto.Konstantintinhapedidoceradeabelhaa

Pyotr para derreter e misturar com seuspigmentos. Quando a luz do dia entravaem sua cela, pegava os pincéis e abriafrascosdepó.E,então,pintava.SãoPedroganhou forma sob seupincel.Abarbadosantoeraencaracolada,omantoamareloeocre, suamão estranha, de dedos longos,erguidaemsinaldebênção.Lesnaya Zemlya não conseguia

conversarsobremaisnada.Num domingo, desesperada, Vasya

infiltrou umpunhado de grilos dentro daigreja eos soltouemmeioaos fiéis. Seustrilos fizeramumcontrapontodivertidoà

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voz grave do padre Konstantin. Masninguém riu; as pessoas encolheram-se esussurraram sobre presságios diabólicos.AnnaIvanovnanãovira,massuspeitoudequem estaria por trás daquilo. Depois damissa,chamouVasya.Vasyaveiodemávontadeaoquartoda

madrasta. Anna tinha um ramo desalgueironamão.Opadreestava juntoàjanelaaberta,pulverizandoumpedaçodepedra azul. Não parecia ouvir enquantoAnna interrogava a enteada, mas Vasyasabiaqueasperguntaseramembenefíciodo padre, para mostrar a retidão e ocomandodamadrastaemsuaprópriacasa.Oquestionamentonãotinhafim.–Eufariaissodenovo–retorquiuVasya,

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finalmente, perdendo a paciência e acautela.–Deusnãofeztodasascriaturas?Por que só nós teríamos permissão paraergueravozemlouvor?Osgriloslouvamcomcançõestantoquantonós.OolharazuldeKonstantincintilouem

sua direção, embora ela não conseguisselersuaexpressão.– Insolência! – esganiçou Anna. –

Sacrilégio!Vasya, de queixo erguido, manteve-se

em silêncio mesmo quando o ramo desalgueiro da madrasta desceu com umsilvo. Konstantin assistiu, grave einescrutável. Vasya encarou-o, recusando-seadesviarosolhos.Annaviuameninaeopadre,omútuoe

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firme olhar dos dois, e seu rosto furiosoficou mais vermelho do que nunca. Pôstodaaforçadobraçonosalgueirocortante.Vasyarecebeuavaradaimóvel,mordendoo lábio até tirar sangue. Mas, apesar detodo seu esforço, as lágrimas afloraram eescorrerampelorosto.Atrás de Anna, Konstantin assistia,

mudo.Vasya gritou uma vez perto do fim,

tantoporhumilhação,quantopordor.Masentãoterminou;Alyosha,oslábioslívidos,tinhaidobuscaropai.Pyotrviuosangueeo rostobrancoda filhae segurouobraçodeAnna.Vasyanãodisseumapalavraparaopai,

nem para ninguém. Saiu aos tropeços

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imediatamente, embora o irmão tentassechamá-ladevolta,e seescondeunamatacomo um bichinho ferido. Se chorou,apenasarusalkaouviu.– Isso vai ensinar a ela o preço do

pecado–disseAnnacomorgulho,quandoPyotr reprovou-apor suabrutalidade. –Émelhorelaaprenderagoradoquequeimarmaistarde,PyotrVladimirovich.Konstantinnãodissenada.Não falouo

quepensava.Depois que seus cortes sararam, Vasya

passouaandarcommaiscuidadoesegurara línguacommaispresteza.Passavamaistempocomoscavalosefaziaplanosloucosde sevestir comomeninoe ir se juntar aSasha em seumonastério, ou demandar

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ummensageirosecretoparaOlga.Alyosha, embora não contasse a ela,

começouaanotarsuasidasevindas,paraque ela nunca ficasse sozinha com amadrasta.Todoessetempo,Konstantincondenava

asoferendasdaspessoas–pãoouhidromel–aseusespíritosdomésticos.–DeemparaDeus–dizia.–Esqueçam

seus demônios, para não arderem. – Aspessoasescutavam.AtéDunyaestavameioconvencida; murmurava consigo mesma,sacudia sua velha cabeça e tirou ossímbolosdosoldoslençoseaventais.Vasyanãoviuisso;escondia-senamata

ounoestábulo,masodomovoi lamentavasua ausência mais do que qualquer um,

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porqueparaeleagoranãohavianadaalémdemigalhas.

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LOBOS

O OUTONO CHEGOU NUMA

EXPLOSÃO DE GLÓRIA QUERAPIDAMENTE desbotou para cinza. Osilêncio do ano que findava estendia-secomoumabrumasobreasterrasdePyotrVladimirovich, enquanto as imagensmultiplicavam-se sob as mãos do padreKonstantin. Os homens da aldeiatrabalhavam em um novo biombo deícones para lhes servir de suporte: SãoPedroeSãoPaulo,aVirgemeoCristo.As

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pessoas demoravam-se no quarto deKonstantin e olhavam com assombro osícones terminados, suas formas e rostosluminosos. Konstantin estava fazendo umiconóstase completo, uma imagem porvez.– Vocês devem sua salvação a Deus –

diziaKonstantin.–OlhemnorostoDeleesesalvem.Eelesnuncatinhamvistonadacomoos

olhos grandes, a carne pálida e as mãoslongas emagras doCristo que ele fizera.Olhavam, ajoelhavam-se e, às vezes,choravam.Oque éumdomovoi,diziam, senão uma

históriaparaascriançasmalcriadas?Sentimosmuito,Batyushka,estamosarrependidos.

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Quase ninguém fez oferendas, nemmesmonoequinóciodooutono.Odomovoifoi ficando fraco e apático. O vazilaemagreceu e ficou abatido, com o olharalucinado; sua barba embaraçada ficoucoberta de palha. Roubava centeio ecevada guardados para os cavalos. Ospróprios cavalos começaram a pisar duroemsuasbaiaseseespantarcomasbrisas.Osânimosnaaldeiaficaramtensos.

–Bem, não fui eu, garoto, nemo cavalo,umgato,umfantasma–disserispidamentePyotr para o menino do estábulo, numamanhã difícil. Tinha sumidomais cevada

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durante a noite, e Pyotr, já tenso, ficoufurioso.– Eu não vi! – exclamou o menino

fungando.–Eununcafaria…O ar estava cortante naquelas manhãs

de novembro, e a terra parecia tilintardebaixo dos pés, quebradiça de geada.Pyotrestavacaraacaracomomolequeereagiu a suas negativas com o punhofechado.Houve um baque e um grito dedor.– Nunca mais roube de mim – Pyotr

ordenou.Vasya,queacabavadepassarpelaporta

doestábulo,franziuocenho.Seupainuncaperdia a paciência; nunca nem mesmobatia em Anna Ivanovna. O que está

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acontecendo com a gente? Vasya saiu demansinho e subiu no depósito de feno.Levouumtempinhoparalocalizarovazila,queestavaenrodilhado,meioenterradonapalha.Estremeceuaoveraexpressãodosseusolhos.–Porquevocêestácomendoacevada?–

perguntouela,juntandocoragem.–Porquenão têm tidooferendas. –Os

olhos do vazila brilharam num negrumedesconcertante.–Vocêestáassustandooscavalos?–Ohumordeleséomeueomeuéo

deles.– Então, você está muito bravo? – a

menina sussurrou. – Mas as pessoas nãoestão fazendo isso de propósito. Só estão

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commedo.Umdiaopadrevaiembora.Ascoisasnãovãoficarassimprasempre.Os olhos do vazila tinham um brilho

ameaçador, mas Vasya pensou ter vistotristezanelesalémderaiva.–Estoucomfome–eledisse.Vasya sentiu uma onda de simpatia.

Sentiafomecomfrequência.– Posso te trazer pão – disse,

valentemente.–Eunãotenhomedo.Osolhosdovazilafaiscaram.–Precisodepoucacoisa.Pão.Maçãs.Vasya tentou não pensar demais em

abrirmãodepartedassuasrefeições.Nãohavia uma abundância de comida depoisdosolstíciode inverno; logoelaestariaseressentindodecadamigalha.Mas…

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–Eutragopravocê.Prometo–disseela,olhando ansiosa nos olhos castanhos eredondosdodemônio.–Meus agradecimentos – respondeu o

vazila. – Mantenha a sua promessa e eudeixoosgrãosempaz.Vasyamanteve a promessa. Nunca era

muito. Uma maçã murcha. Uma côdearoída,umaporçãodehidromellevadanosdedos ou na boca. Mas o vazila recebiatudo com avidez e, quando comia, oscavalos aquietavam-se. Os diasescurecerameficarammaiscurtos;anevecaíacomoqueparavedá-loscombrancura.Masovazilatornou-serosadoecontente;oestábulo no inverno tornou-se sonolentocomo no passado. Ainda bem. A estação

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foi comprida e, em janeiro, o frioaumentouapontodenemmesmoDunyaconseguirselembrardenadaparecido.Oanoitecerdoinvernoimplacávellevou

as pessoas a ficar em casa. Pyotr teveexcessodetempoparasofrercomavisãodosrostoschupadosdasuafamília.Elesseamontoavam junto ao fogo, mastigandopão e tiras de carne seca, revezando-separa jogar lenhano fogo.Mesmoànoite,não ousavam deixá-lo diminuir. Os maisvelhos murmuravam que sua lenhaqueimava rápido demais, que eramnecessárias três achas para manter aschamasaltas,quandoantesprecisavamdeuma. Pyotr e Kolya menosprezavam issocomobobagem,mas suaspilhasde lenha

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diminuíam.O solstício de inverno veio e se foi; os

diasencompridaram-semaisumavez,maso frio só piorou, matando carneiros ecoelhos e escurecendo os dedos dosdesavisados. Era preciso ter lenha comaquele frio, houvesse o que houvesse, e,assim, conforme seus estoques foramdiminuindo, as pessoas enfrentavam afloresta silenciosa sob o fulgor do sol deinverno.VasyaeAlyosha, saindocomumpônei,umtrenóemachadosdecabocurto,foramosqueviramasmarcasdepatasnaneve.– Devemos ir atrás deles, pai? – Kolya

perguntou naquela noite. –Matar alguns,tirar suas peles e afastar o restante? –

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Estavaconsertandoumafoice,firmandoavista à luz do forno. Seu filho, Seryozha,rígidoecalado,encolhia-sejuntoàmãe.Vasya tinha lançado um olhar

desanimado para sua enorme cesta decostura, pegando seu machado e umapedrade amolar.Alyoshaolhou-a comardivertido,porcimadocabodeseuprópriomachado.– Viu? – disse o padre Konstantin para

Anna.–Olheàsuavolta.NagraçadeDeusestáasuasalvação.OsolhosdeAnnaestavamfixosnorosto

dele,acosturaesquecidanocolo.Pyotr espantou-se com a esposa. Ela

nunca parecera tão à vontade, emboraaquele fosse o inverno mais rigoroso de

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quepudesseselembrar.– Acho que não – disse Pyotr,

respondendo à pergunta do filho.Examinava suas botas; no inverno, osburacos poderiam custar um pé a umhomem.Colocouumadelasnochão,juntoao fogo, e pegou a outra. – Os lobos doextremonortesãomaioresdoqueodoguealemão. Faz vinte anos que eles nãochegam tão perto. – Pyotr abaixou-se eagradou a cabeça abatida dePyos.O cãolhedeuumalambidadesanimada.–Ofatodeestaremfazendoistoagoramostraqueestão desesperados, que se pudessemcaçariam crianças ou abateriam carneirossob as nossas vistas. Juntos, os homenspoderiam enfrentar um bando, mas está

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geladodemaispara lidar comarcos, teriaquesercomlança,enemtodosvoltariam.Não,temosquecuidardasnossascriançasedanossacriação,esósairparaaflorestaàluzdodia.– Poderíamos instalar armadilhas –

propôs Vasya, raspando sua pedra deamolar.Annadirigiu-lheumolharsombrio.–Não – negou Pyotr. – Lobos não são

coelhos; eles sentiriam seu cheiro naarmadilha, e ninguém vai se arriscar naflorestacomumamargemtãopequenadesucesso.– Sim, pai – respondeu Vasya,

docilmente.Aquela noite foi de um frio mortal.

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Todos eles se amontoaram em cima doforno, espremidos como sardinhas,envoltos em todos os cobertores quetinham.Vasyadormiumal;seupaironcava,eos

joelhinhos pontudos de Irina cutucavamsuas costas. Ela se sacudiu e se revirou,tentandonãochutarAlyosha,atéque,porfim,pertodameia-noite,adormeceunumsonoleve.Sonhoucomlobosuivando,comestrelas de inverno sendo engolidas pornuvensmacias, comum starik esqueléticodeolhosvermelhose,finalmente,comumhomem pálido, de queixo forte, olharfaminto e malicioso, que olhava demaneira lasciva e piscava seu único olho.Acordouofegantenahoraseveraantesdo

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amanhecer e viu uma figura cruzar ocômodo, contornada pela luz do fogo dofornoamontoado.Nãoénada,elapensou,umsonho,ogato

dacozinha.Masentãoafiguraparou,comose percebesse seu olhar. Virou-se umsegundo.Vasyamal se atreveu a respirar,porque viu o rosto, um rabisco pálido napenumbra.Osolhostinhamacordogelodo inverno. Tomou alento para falar ougritar, mas a figura se foi. A luz do diainfiltrava-se pela porta da cozinha, e umgritodelamentoveiodaaldeia.–ÉTimofei–dissePyotr,referindo-sea

um menino da aldeia. Pyotr tinha selevantadoantesdoamanhecerparaverseurebanho. Agora, entrava abruptamente

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pelaporta,batendoanevedassuasbotaseespanandoo gelo que se formara em suabarba. Seus olhos estavam fundos porcausadofrioedafaltadesono.–Morreuduranteanoite.A cozinha encheu-se de exclamações.

Vasya, semiacordada sobre o forno,lembrou-sedafiguraquetinhapassadonaescuridão. Dunya não disse nada, mascontinuou a fazer suas massas, lábiostravados. Seuolhar preocupadomoveu-serápidodeVasyaparaIrina.Oinvernoeracruelcomospequenos.No meio da manhã, as mulheres

reuniram-se na casa de banhos paraenvolverocorpoinútildomenino.Vasya,entrandonacabanaatrásdasuamadrasta,

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olhouderelanceorostodeTimofei: seusolhos estavam vidrados, as lágrimascongeladas em suas facesmagras. Amãeagarrava o corpo enrijecido do meninojunto a ela, cochichando para ele,ignorando seus vizinhos. Nem compaciência, nem com argumentos,conseguiramtirar-lheacriança,e,quandoas mulheres recorreram à força paraarrancá-lados seusbraços,elacomeçouagritar.O lugar dissolveu-se no caos. A mãe

voou para suas vizinhas, gritando pelofilho. A maioria das mulheres tinha seuspróprios filhos; confrontadas com aexpressãodosseusolhos,recuaram.Amãearranhouàscegas,tateando.Oespaçoera

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pequeno demais. Vasya colocou Irina asalvoesegurouosbraçosesticados.Elaeraforte, mas delgada, e a mãe estavaenlouquecida de dor. Vasya agarrou-a etentoufalar.–Me solte,bruxa!–gritouamulher.–

Mesolte!Desconcertada,Vasyaafrouxouoaperto

e um cotovelo atingiu-a no rosto. Ela viuestrelaseseusbraçossoltaram-na.Naquele momento, padre Konstantin

surgiuàsoleira.Tinhaonarizvermelho,orosto áspero como todos os outros, masabsorveu a cena em um instante.Atravessou a cabana minúscula com doispassoslargosepegouosdedostateantesdamãe.Amulherdeuumpuxãodesesperado

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edepoisparou,tremendo.– Ele se foi, Yasna – disse Konstantin,

severo.–Não – ela grasnou. – Segurei ele nos

braços,anoitetodaquepassou,eusegureiele, enquanto o fogo ardia baixinho. Elenão pode, se eu segurar ele, ele não vaiembora.Devolvapramim!–ElepertenceaDeus–disseKonstantin.

–Comotodosnós.– Ele é meu filho! Meu único filho.

Meu…– Fique calma – ele pediu. – Sente-se.

Isto não é digno. Venha, as mulheres oestenderão junto ao fogo e esquentarão aáguapara a lavagem.–Falava comavozgrave num tom baixo e uniforme. Yasna

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permitiu que ele a levasse até o forno edespencoualiaolado.Durante toda aquela manhã, na

verdade, durante todo aquele dia breve ecarregado de inverno, Konstantin falou, eYasna olhou para ele como um nadadorpegonarebentação,enquantoasmulheresdespiamocorpodeTimofei,lavavam-noeoenvolviamemroupabrancafria.Opadreainda estava lá quando Vasya voltou demaisumdiadifícil,procurandolenha.Elaoviuparadoemfrenteàportadacasadebanhos, tragando o ar frio como se fosseágua.– Quer um pouco de hidromel,

Batyushka?–perguntou.Konstantin estremeceu de surpresa.

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Vasyacaminhavasemfazerbarulho,esuaspeles cinza mesclavam-se com o cair danoite.Mas,depoisdeumapausa,eledisse:–Aceito,Vasilisa Petrovna. – Sua linda

voz mal passava de um fiapo, semqualquerressonância.Gravemente,elalheestendeu seu odre de hidromel. Ele obebeu com avidez desesperada.Enxugandoabocacomascostasdamão,estendeuoodredevoltapara ela e aviuanalisando-o, uma depressão entre assobrancelhas.–Osenhorvaiparticipardovelórioesta

noite?–Éaminhafunção–elerespondeucom

um laivo de altivez. A pergunta eraimpertinente.

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Ela percebeu sua irritação e sorriu.Elefranziuocenho.–Euorespeitoporisto,Batyushka–ela

disse.Virou-se em direção à casa grande,

confundindo-se com as sombras.Konstantin viu-a ir embora comos lábioscontraídos,ogostodehidromelacentuadonaboca.Naquela noite, o padre velou o corpo.

Seu rostomagro estava firme e os lábiosmoviam-se em oração. Vasya, que tinhavoltado de madrugada para fazer suavigília, não pôde deixar de admirar opropósitoinabaláveldopadre,emboraoarjamais tivesse ecoado tantos soluços eoraçõescomodesdeasuachegada.

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Ofrioerademasiadoparapermitirumapermanênciamaiorjuntoàminúsculacovadomenino, aberta commuito esforço naterra dura como ferro. Assim que adecênciapermitiu,aspessoasdispersaram-se,voltandoparasuascabanas,deixandoopobrezinhosóemseuberçodegelo,padreKonstantinporúltimo,quasearrastandoamãeenlutada.As pessoas começaram a se aglomerar

cada vez em menos izby, com famíliasinteiras compartilhando um forno paraeconomizar lenha. Mas a madeiradesaparecia commuita rapidez, como sealgumamaldiçãoafizessequeimar.Então,eles entravam na mata, apesar daspegadas, asmulheres incitadas pela visão

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do rosto marmóreo de Timofei e pelaexpressãoterrívelnorostodasuamãe.Erainevitávelquealguémnãovoltasse.OfilhodeOleg,Danil,eraapenasossos

quando foi encontrado, fartamenteespalhados sobre uma extensão de nevepisada e sanguinolenta. Seu pai trouxe osossos de pontas roídas para Pyotr e oscolocouàsuafrentesemumapalavra.Pyotr olhou para aquilo e não disse

nada.–PyotrVladimirovich–Olegcomeçou,

rouco,masPyotrsacudiuacabeça.–Enterreseufilho–dissePyotr,como

olhar demorando-se em seus própriosfilhos.–Convocareioshomensamanhã.Alyoshapassoualonganoiteverificando

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o cabo da sua lança de caçar javalis eafiandosuafacadecaça.Seurostoimberbeexibia certo colorido. Vasya observou-otrabalhando. Em parte, sentia comichõespara também pegar uma lança, sair eenfrentarosperigosnamatainvernal.Poroutro lado, tinha vontade de partir acabeça do irmão por causa da suaexcitaçãodespreocupada.–Voutetrazerumapeledelobo,Vasya

– Alyosha disse, deixando sua arma delado.–Fiquecomasuapele–retorquiuVasya

–,sepelomenospudermeprometertrazersuaprópriapeledevolta,semperderseusdedosdopécongelados.Oirmãosorriu,osolhosbrilhando.

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–Estápreocupada,irmãzinha?Os dois estavam sentados perto do

forno,longedosoutros,masmesmoassimVasyaabaixouavoz:– Não gosto disso. Pensa que eu quero

precisar cortar seus dedos do pécongelados?Oudamão?–Masnãotemcomoevitar,Vasochka–

disseAlyosha,colocandosuabotanochão.– Temos que ter lenha. É melhor sair elutardoquemorrercongeladodentrodasnossascasas.Vasya travou os lábios, mas não

respondeu.Pensou,subitamente,novazila,os olhos escuros de raiva. Pensou nascôdeas que levava para ele, para acalmarseuódio.Temmaisalguémzangado?Essesó

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poderia estarnamata,onde sopravamosventosgeladoseoslobosuivavam.Nemousepensarnisso,Vasya, disse a voz

sensata dentro da sua cabeça.Mas Vasyaolhou para a sua família. Viu o rostosoturnodopai,aexcitaçãoreprimidadosirmãos.Bem, só posso tentar. Se Alyosha se ferir

amanhã, vou me odiar para sempre se nãotentar. Semperdermais tempopensando,Vasya foi buscar suas botas e sua capadeinverno.Ninguém se deu ao trabalho de

perguntar aonde ela estava indo. Averdadenãoocorreriaaninguém.Vasyaescalouapaliçada,dificultadapor

suasluvasdeumdedosó.Asestrelaseram

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poucasefracas.Aluaresplandeciasobreanevedura.Vasyapassouabeiradadamata,indodoluarparaaescuridão.Caminhavacom energia. O frio era terrível. A neverangia sob seus pés.Emalgum lugar, umlobo uivou. Vasya tentou não pensar nosolhos amarelos. Seus dentes com certezacairiamdetantochacoalhardemedo.Subitamente, Vasya parou com um

sobressalto. Pensou ter ouvido uma voz.Respirandomais devagar, escutou.Não…apenasovento.Masoquehaviaali?Pareciaumagrande

árvore; uma da qual tinha uma vagalembrança,estranhamentefurtiva,queiaevinha na sua mente. Não… Era apenasumasombraprojetadapelalua.

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Umvento de arrepiar os ossos brincounosgalhosdoalto.Em meio aos silvos e ruídos, Vasya

subitamente pensou ter ouvido palavras.Estáquentinha,menina?,disseovento,meiorindo.Naverdade,Vasyasentiaqueseusossos

seestilhaçariamcomogalhosmortospelagelada,masrespondeusempestanejar:– Quem é você? É você quem está

mandandoessegelo?Fez-se um silêncio muito longo. Vasya

perguntou-se se teria imaginado a voz.Então,pareceu-lheterouvido,emtomdezombaria.E por que não? Eu também estoufurioso.Avozparecialançarecos,demodoqueamatatodaabsorviaaexclamação.

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– Isto não é resposta – retorquiu amenina. Seu lado sensato observou quetalvez fosse de bom-tom um pouco demeiguice ao lidar comvozesmalouvidasna calada da noite. Mas o frio estavadeixando-a sonolenta; ela lutava contraissocomtudoquelherestavadevontadeenãohaviasobradonadademeiguice.Eutragoogelo,disseavoz.Subitamente

eram dedos amorosos de gelo espiraladono rosto e na garganta dela. Um toquegelado como de ponta de dedos entroudebaixo das suas roupas e envolveu seucoração.– Então você poderia parar? – Vasya

sussurrou, lutando contra o medo. Seucoração batia como se fosse contra outra

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mão.–Estou falandoemnomedaminhagente. Eles estão com medo, estãoarrependidos.Logoserácomosemprefoi:nossas igrejasenossoschyerty juntos, semque se sinta mais medo nem se fale emdemônios.Será tarde demais, disse o vento, e a

floresta ressoou: demais, demais. Então:Alémdisso,nãoédomeugeloquevocêdeveriatermedo,devushka.Édasfogueiras.Diga-me,suasfogueirasqueimamrápidodemais?– É só por causa do frio que elas

queimamassim.Não, é por causa da tempestade que vem

vindo. O primeiro sinal é medo, o segundo ésempreofogo.Suagenteestácommedoeagoraasfogueirasqueimam.

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– Então, desvie a tempestade, eu teimploro.Veja,eutetrouxeumpresente.–Vasyacolocouamãodentrodamanga.Não eramuita coisa, só umpedaço de

pãosecoeumapitadadesal,masquandoelaosestendeuoventoparou.Nosilêncio,Vasyavoltouaouvirouivo

do lobo, agoramuitoperto, e respondidoem coro. Mas no mesmo instante umaéguabrancasurgiuporentreduasárvoreseVasyaesqueceuoslobos.Alongacrinadaégua caía como pingentes de gelo, e seuresfolegarformouumaplumananoite.Vasyaprendeuarespiração.–Ah,vocêélinda–eladisse,eatépodia

ouviranostalgiaemsuavoz.–Vocêéqueestátrazendoogelo?

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A égua teria um cavaleiro? Vasya nãoconseguiu saber. Num momento pareciaquesim,eentãoaéguacontraiuapeleeaforma nas suas costas não passou de umtruquedaluz.Aéguabrancapôsasorelhinhasparaa

frente, emdireção aopão e ao sal.Vasyaestendeu amão. Sentiu o bafo quente docavalo no rosto e olhou dentro dos seusolhos escuros. Repentinamente, sentiu-semais aquecida.Até o vento pareceumaisquente ao se retorcer ao redor do seurosto.Eu trago o gelo, disse a voz. Vasya não

achouquefossedaégua.Éaminha ira e omeuaviso.Masvocêécorajosa,devushka,eeucedo, em nome de uma oferenda. Uma

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pequenapausa.Masomedonãoémeu,nemas fogueiras.A tempestade estávindo, eogelonão será comparável a nada. A coragem asalvará. Se o seu povo está com medo, entãoestáperdido.–Quetempestade?–sussurrouVasya.Fique atenta às mudanças de estações, ela

pensou ter ouvido no suspiro do vento.Fiqueatenta…Eavoz se foi.Masoventopermaneceu. Soprou cada vez com maisforça,sempalavras,arremessandonuvensatravésdalua,eovento,abençoadamente,tinhacheirodeneve.Ogeloprofundonãopoderiaperdurarsenevasse.QuandoVasya entrou aos tropeços em

suaprópriacasa,osflocosquecobriamseucapuz e estavam presos em seus cílios

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silenciaram eficazmente o clamor de suafamília. Alyosha agarrou-a numa alegriamuda, e Irina saiu rindo para pegar umpunhadodabranquidãoquecaía.Naquela noite, o frio de fato amainou.

Nevou durante uma semana. Quando aneve finalmente parou, foram necessáriosmais três dias para desenterrá-los. Masentãooslobostinhamtiradovantagemdorelativo calor para se banquetear comcoelhos fibrosos e avançar mais paradentro da floresta. Ninguém nunca maisvoltou a vê-los. Apenas Alyosha pareceudecepcionado.

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Dunyadormiumalnaquelasnoitesdefimde inverno,enãofoiapenasporcausadofrioedosseusossosdoloridos,nemaindaporcausadasuapreocupaçãocomatossedeIrinaouorostopálidodeVasya.– Está na hora – disse o demônio do

gelo.Destavez,nãohaviatrenónosonhode

Dunya, nem luz do sol nem o arrevigorantedoinverno.Elaestavaemumaflorestasombriaesussurrante.Pareciaqueumagrande sombraespreitavaemalgumlugar no escuro. À espera. As feiçõespálidas do demônio do inverno estavambem desenhadas como uma gravura, osolhosdesprovidosdecor.–Temqueseragora–eledisse.–Elaé

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uma mulher e mais forte do que até elamesma pensa. Talvez eu possa manter omallongedevocês,masprecisoteraquelamenina.–Elaéumacriança–protestouDunya.

Demônio, ela pensou. Sedutor.Mentiroso. –Uma criança ainda. Elame provoca paraganharbolosdemel,mesmoquandosabeque não tem. E ficou tão pálida nesteinverno,sóolhoseossos.Comoéqueeupossoabrirmãodelaagora?Orostododemônioestavagelado.–Meu irmãoestáacordando.Todosos

dias a sua prisão enfraquece. Aquelacriança,mesmo sem saber, fez o possívelparaprotegervocês,comcôdea,coragemea visão. Mas meu irmão ri com essas

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coisas;elaprecisaterajoia.O escuro pareceu pressionar mais de

perto,sibilando.Odemôniodogelofalavarispidamente, com palavras que Dunyanão conhecia. Um vento vivo infiltrou-seao redor da clareira, e as sombrasrecuaram.Aluasurgiuefezanevereluzir.– Por favor, rei do inverno – Dunya

pediucomhumildade,apertandoasmãosjuntas.–Maisumano.Maisumaestaçãocomsol.Elasetornaráfortecomachuvaea luz do sol. Não vou, não posso, darminhameninaparaoInvernoagora.Uma risada ribombou de súbito vinda

da vegetação rasteira: uma risada velha,lenta. Repentinamente, pareceu a Dunyaqueoluarbrilhavaatravésdodemôniodo

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gelo,queeleeraapenasumtruquedeluzesombra.Mas logo ele voltou a ser um homem

real,compeso,formatoeforma.Seurostoestavaviradoparaoutrolado,analisandoavegetação rasteira. Quando se voltounovamente para Dunya, tinha o rostosombrio.–Você a conhecemelhor – disse ele. –

Nãopossotomá-lasemqueestejapronta;elamorreria.Maisumano,então.Contraaminhavontade.

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OCAMUNDONGOEADONZELA

NAQUELE INVERNO, ANNAIVANOVNA SOFREU COM OSOUTROS. Suas mãos incharam e seenrijeceram, os dentes doeram. Sonhoucom queijo, ovos e agriões, enquanto otempo todo comia repolho, pão preto epeixe defumado. Irina, que nunca foraforte,declinouaumasombraapáticadesimesma, e Anna, aterrorizada pela filha,descobriu uma estranha afinidade comDunya, ao persuadir a criança a engolir

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caldosemelemantê-laaquecida.Mas pelo menos não viu demônios. A

criaturinha barbada não se arrastou pelacasa,omendigomarromdegravetonãosemoveu pelo dvor. Anna só viu homens emulheresesuportouapenasosproblemascomuns de uma casa apinhada numinverno rigoroso. E padre Konstantinestavaali,comoumanjo,deumjeitoqueelanuncatinhaimaginadoqueumhomempudesseser,comsuavozclara,abocadocee os abençoados ícones que tomavamformasobsuasmãosfortes.Viu-otodososdias naquele inverno, quando todos elesestavamengaioladosdentrodecasa.Paraela era um prazer desfrutar da suapresença; não desejava nada além. A

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mente estava tranquila; ela até conseguiasorrir para seus enteados e suportarVasilisa.Porém, quando a neve veio e o gelo

quebrou-se,apazdeAnnafoiestilhaçada.Um meio dia cinzento, com pequenas

precipitações de neve vindas de um céuplúmbeo, encontrou Anna correndo paraencontrarKonstantinemseucubículo.– Os demônios ainda estão aqui,

Batyushka!–gritouela.–Elesvoltaram.Sóestavam escondidos. São dissimulados,mentirosos.Comofoiquepequei?Padre,oque tenho que fazer? – Ela chorava etremia. Bem naquela manhã, o domovoitinha se esgueirado para fora do forno,birrentoefumegante,epegadoacestade

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costuradeDunya.Konstantin não respondeu de pronto.

Seus dedos estavam azuis e brancos, nopontoonde agarravamo pincel; ele tinhase retirado para seu quarto para pintar.Annatrouxera-lhesopa.Elarespingavaemsuas mãos trêmulas. Repolho, Konstantinnotou com desgosto. Estavamortalmentefartoderepolho.Annapousouavasilhaaoladodele,masnãosaiu.– Paciência, Anna Ivanovna – o padre

respondeu, quando ficou claro que elaesperavaqueelefalasse.Konstantinnãosevirou, nem retardou suas pinceladasrápidas.Faziasemanasquenãopintava.–É uma infestação de longa data,alimentada pelo desvio de muitos. Basta

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esperareeuoslevareidevoltaparaDeus.– Sim, Batyushka – Anna disse. – Mas

hojeeuvi…Elefalouporentreosdentes:–AnnaIvanovna,vocênuncaselivrará

dos diabos se ficar andando por aí àprocura deles.Qual é a boa cristã que secomporta desse jeito? Seria melhor vocêtemer a Deus e passar o tempo emorações.Muitasorações.Ele olhou enfaticamente em direção à

porta.MasAnnanãosaiu.– O senhor já fez maravilhas. Estou…

Não pense que sou ingrata, Batyushka. –Ela oscilou em direção a ele, tremendo.Pousouamãonoseuombro.

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Konstantin desferiu-lhe um olhar deimpaciência. Ela deu um pulo para trás,como se tivesse se queimado, e seu rostofoitomadoporumleverubor.– Agradeça a Deus, Anna Ivanovna –

Konstantindisse.–Deixe-metrabalhar.Elaficouparadaporummomento,sem

fala,edepoisfugiu.Konstantinpegouasopaeaengoliude

umgole.Limpouabocaetentoumaisumavezencontrarapaznecessáriaparapintar.Mas as palavras da senhora arranhavam-no:Demônios.Diabos.Comofoiquepequei?Amente de Konstantin divagou. Tinhaenchido aquelas pessoas com o temor aDeus, e elas estavam no caminho dasalvação.Precisavamdele,amavam-noeo

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temiam na mesma medida. O que eracerto, por ser ele mensageiro de Deus.Adoravamsuas imagens.Tinha feito tudooqueerapossívelconcebercompalavraseolhares ameaçadores, na obediência davontadedeDeuseespíritodehumildade.Percebiaoresultado.Enoentanto…Involuntariamente, Konstantin pensou

na segunda filha de Pyotr. Observara-anaquele inverno, sua graça infantil, arisada, a petulância descuidada, a tristezasecreta que às vezes cruzava o rosto.Lembrou-se de como uma vez ela haviabrotadodoanoitecer,àvontadecomofrioeanoitequecaía.Elemesmotinhatiradoohidromeldasuamão,nãopensandoemnadaalémdagratidãoporpodersaciarsua

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sede.Ela não tem medo, Konstantin pensou,

taciturno.Não temeaDeus,não teme nada.Viu nos silêncios dela, em seu olharincomum,as longashorasquepassavanafloresta.Dequalquermodo,nenhumaboamoçacristãtinhaolhoscomoaqueles,nemandavacomtalgraçanoescuro.Pela sua alma, e pelas almas de todos

naquele lugar desolado, pensouKonstantin, ele necessitava ter a suahumildade. Ela precisava ver o que era etemer isso. Salvando-a, ele salvaria atodos. Falhando nisso… Konstantin nãoprestava atenção nos seus dedos; pintavapor impulso, enquanto sua mente seocupava persistentemente do problema.

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Por fim, ele voltou à consciência e seusolhosanalisaramoquehaviapintado.Olhos verdes selvagens encaravam-no,

quando ele pretendera pintar apenas umleveazul.Olongovéudamulherpoderiacomamesmafacilidadeserumacortinadecabelosnegrosacobreados.Elapareciarirpara ele, presa na madeira e livre parasempre.Konstantingritoueatirouatábualonge. Ela caiu no chão com um baque,espalhandotinta.

Aquelaprimaverafoimuitoúmidaemuitofria. Irina, que amava flores, chorouporque as campânulas brancas não

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floresceram. Os campos foram aradosdebaixo de torrentes de chuvasextemporâneas, e durante semanas nadasecou, dentro ou fora de casa.Desesperada, Vasya tentou colocar asmeiasdelesnoforno,comofogoafastadode lado. Retirou-as consideravelmentemaisquentes,masnãomaissecas.Metadedaaldeiatossia,eelaexaminouseuirmãocomocenhofranzido,quandoeleveiosevestir.–Deacordocomosseusexperimentos,

esta aqui poderia ter ficado pior – disseAlyosha, olhando as meias ligeiramentechamuscadas. Seus olhos estavamvermelhos,avoz,rouca.Fezumacaretaaoenfiaralãquenteeúmidanopé.

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–É – disseVasya, enfiando as própriasmeias.–Eupoderiatercozinhadoolote.–Elavoltouaolharparaele.–Estanoitevaiterumacoisaquentenojantar.Nãomorraantesqueachuvapare,irmãozinho.–Nãoprometo,irmãzinha–respondeu

Alyosha, sombriamente, tossindo.Arrumouochapéuesaiu.Com a chuva e a umidade, padre

Konstantinpassoua fazer seuspincéiseapulverizar sua pedra na cozinha deinverno. Ela era consideravelmente maisquenteeumtantomaissecadoqueoseuquarto, embora muito mais barulhentacomos cachorros, as crianças e as cabrasmaisdebilitadassobospés.Vasya lamentouamudança.Ele jamais

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conversava com ela, embora elogiasseIrina e instruísse Anna Ivanovna combastante frequência.Mas,mesmonaquelabalbúrdia,Vasyapodiasentirosolhosdelesobreela.EnquantobrincavacomDunya,amassava seu pobre pão magro e fiavacomasuaroca,Vasyaestavasemprecientedoolharfixodopadre.É melhor me dizer diretamente onde errei,

Batyushka.Elaseescondianoestábulosempreque

podia. Suas incursões na casa lotadasignificavam sequências de tarefasincansáveis, enquanto Anna alternavagritoseorações.Esemprehaviaosilênciodopadreeseuolhargrave.Vasya nunca contou a ninguém onde

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tinha ido naquela noite gélida de janeiro.Depoisdeumtempo,elaàsvezespensavatersonhadocomaquilo:avoznoventoeocavalo branco. Com Konstantinobservando, tomava cuidado para nãodirigir comentários ao domovoi. Mas opadre observava-a mesmo assim. Elapensava, quase com desespero, que seriaapenasumaquestãodetempoparaacabarsemetendoemconfusãoeeledarobote.Mas os dias foram se passando e o padremanteve-seemsilêncio.AbrilchegoueVasyaviu-senopastodos

cavalos suturandoMysh, a velha égua deSasha, que agora era um cavalo dereprodução e tinha parido sete potros.Embora já não fosse jovem, a égua ainda

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estavaforteesaudável,eseusvelhosolhossábiosnãoperdiamnada.Oscavalosmaisvaliosos –Mysh entre eles – passavam oinverno no estábulo e saíam para pastarcom os outros assim que a gramadespontavana neve.Como consequência,sempresurgiamalgunsdesacertos,eMyshtinhaumtalhonoformatodeumcascoemseu flanco. Vasya tinha mais habilidadeparamanejar suaagulhanacarnedoqueem tecido. O talho escarlate foi ficandoprogressivamente menor. O cavalomanteve-se quieto, apenas com unstremoresdevezemquando.–Verão,verão,verão–cantavaVasya.O

solvoltouaaquecer,eachuvaparouportemposuficienteparaqueacevadativesse

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chance.Medindo-sedeencontroaocavalo,Vasya descobriu que havia crescido aindamaisduranteoinverno.Bem,pensoucomtristeza, não dá para sermos todos pequenoscomoIrina.Apequena Irina já era aclamada como

uma beldade. Vasya tentava não pensarnisso.Mysh interrompeu os devaneios da

menina. Gostaríamos de lhe oferecer umpresente, disse. Abaixou a cabeça paramordiscaragramanova.AsmãosdeVasyavacilaram.–Umpresente?Você nos trouxe pão neste inverno. Estamos

emdívidacomvocê.–Nós?Masovazila…

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É todos nós juntos, respondeu a égua. Umpoucomais também,masele éprincipalmentenós.– Ah – disse Vasya, perplexa. – Bem,

obrigada.Émelhornãoagradecerpelagramaantesde

comê-la, a égua disse com um bufodesdenhoso. Nosso presente é o seguinte:queremosensinarvocêacavalgar.Dessa vez, Vasya realmente ficou

paralisada, embora o sangue tivessedesabaladoparadentrodoseucoração.Elasabia cavalgar, num pônei cinza e gordoquedividiacomIrina,mas…–Éverdade?–sussurrouela.É, respondeu a égua, embora isso possa

acabar sendo uma faca de dois gumes. Esse

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presentepoderáafastarvocêdasuagente.– Minha gente – repetiu Vasya, muito

lentamente. Eles choraram em frente àsimagens,enquantoodomovoimorriadefome.Não conheço a minha gente. Eles mudarammuito e eu não. Em voz alta, disse: –Nãotenhomedo.Ótimo, disse a égua. Vamos começar

quandoalamaestiverseca.

Vasyameio que esqueceu a promessa daégua nas semanas que se seguiram. Aprimavera significava semanas de tarefasentorpecedoras, e ao fim de cada dia,Vasyacomiaopãomiseráveldacevadado

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ano anterior, com queijo brancomacio eervasnovastenras.Depois,lançava-separacimadofornoedormiafeitocriança.Masrepentinamenteeramaio,ealama

desapareceu debaixo da grama nova.Dentes-de-leão brilhavam como estrelasem meio ao verde escuro. Os cavalosprojetavam longas sombras, e a meia-luaestavasozinhanocéunodiaemqueVasya,suando, arranhada e exausta, parou nopasto dos cavalos, de volta do campo decevada.Venha cá, disse Mysh. Suba nas minhas

costas.Vasyaestavaquasecansadademaispara

responder.Olhoucomoumaidiotaparaocavaloedisse:

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–Nãotenhosela.Mysh resfolegou. Nem terá. Precisa

aprenderasevirarsem.Voucarregarvocê,masnãosousuacriada.Vasyaolhouaéguanosolhos.Davapara

perceber um lampejo de humor nasprofundezascastanhas.– Sua perna não está doendo? –

perguntou debilmente, indicando com acabeçao talho em recuperaçãono lombodaégua.Não,Myshrespondeu.Monte.Vasya pensou no seu jantar quente, no

seu banquinho ao lado do forno.Depois,criou coragem, afastou-se, correu e searremessou de barriga para baixo nascostasdaégua.Depoisdesecontorcerum

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pouco, instalou-se com desconforto logoatrásdacernelhadura.As orelhas da égua foram para trás

perante o esforço. Você vai precisar deprática.Vasya jamais conseguiu se lembrar de

onde elas foram naquele dia. Andaram,por necessidade, dentro da mata. Mas acavalgadafoidolorosa,dissoVasyasemprese lembrava. Foram num leve galope atéque as costas e as pernas de Vasyatremeram.Fique quieta, disse a égua. É como se

houvessetrêsdevocêemvezdeuma.Vasyatentou,pendendoparaumladoe

para o outro. Por fim, exasperada, Myshparoubruscamente.Vasyarolouporcima

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doombrodoanimaleaterrissou,piscando,nochãoargiloso.Levante-se, disse a égua. Tome mais

cuidado.Quando voltaram para o pasto, Vasya

estava suja, contundida e certa de nãoconseguirandar.Tambémtinhaperdidoojantar e levou uma reprimenda. Mas nofimdatardedodiaseguinterepetiuofeito.E mais uma vez. Nem sempre era comMysh;oscavalosrevezaram-se,ensinando-a a cavalgar. Nem todos os dias elaconseguiair.Naprimavera,trabalhavasemcessar–todoselestambém–nosemeiodaterra. Mas Vasya ia com bastantefrequência, e, lentamente, suas coxas, ascostas e a barriga começaram a doer

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menos.Finalmente, chegouodia emquejánãodoíamnada,enessemeio-tempoelaaprendeu a manter o equilíbrio, a saltarnascostasdeumcavalo,agirar,arrancar,parar e saltar, até não saber mais ondeterminavaocavaloecomeçavaela.Océupareceumaiornaquelealtoverão,

com nuvens deslizando por ele comocisnes. A cevada ondulou verde noscampos, embora estivesse raquítica efizessePyotrbalançaracabeça.Vasya,comocestonobraço,desapareciatodososdiasna floresta. Às vezes, Dunya olhava comdesconfiança as ofertas da menina:geralmente casca de bétula, ou baga deespinheiroparafazertintura,eraramenteem quantidade suficiente. No entanto,

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Vasyaresplandeciafelicidade,entãoDunyasólimpavaagargantaenãodizianada.O tempo todo o calor aumentava,

contudo,atéquesepodiacortarcomumafaca: quente demais. Por mais que aspessoas rezassem, houve incêndios nafloresta estalando de seca, e a cevadacresceu,maslentamente.Umdia abrasadorde agosto encontrou

Vasya indo até o lago, procurando nãomancar. Metel tinha-na levado paracavalgar.Ogaranhãocinza,agorabranco,aindaeraomaiordoscavalosdemontariaetinhaumsensodehumormaldoso.Vasyatraziahematomasparacomprová-lo.O lago cegava à luz do sol. Conforme

Vasyaaproximou-se,pensouterouvidoum

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farfalhar nas árvores que bordejavam aágua.Mas, quando olhou para cima, nãoviu reflexo de pele verde. Após algunsinstantes de uma busca inútil, Vasyadesistiu, despiu-se e deslizou para dentrodo lago. A água era pura neve derretida,geladaaténoaugedoverão.Vasyaperdeuofôlegoeconteveumuivo.Mergulhoudeumavez;aáguageladadespertouoânimonos seus membros cansados. Fezacrobaciasdebaixod’água,espiandoaquieali. Mas nada de rusalka. Com umainquietaçãovaga,Vasyafoipatinhandoatéamargem,puxousuasroupasparadentroda água e bateu-as nas pedras para queficassem limpas. Por fim, pendurou-as,pingando,emumramopróximoesubiuna

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mesmaárvore,esticando-secomoumgatoemumgalhoparasesecaraosol.Talvez uma hora depois, Vasya

despertoudeumexaustoestuporeolhousuasroupasúmidas.Osoltinhapassadooseu pico e começava a se inclinar paraoeste,oquesignificava,noslongosdiasdoaltoverão,queatardejáiabemavançada.A esta altura,Anna estaria espumando, eaté Dunya lhe daria uma olhada com oslábioscontraídosquandoelaseesgueirassepela porta. Irina estaria, sem dúvida,debruçada sobre o forno sufocante, ouusando seus dedos para consertar roupas.Sentindo-seculpada,Vasyadesceuparaumgalho mais baixo e congelou. PadreKonstantinestavasentadonagrama.

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Ele poderia ter sido um fazendeirobonito,de jeitonenhumumpadre.Tinhatrocado seu manto por uma camisa delinho e uma calça folgada, salpicada compedacinhosdetalosdecevada,eseucabelodescobertoreluziaaosoldatarde.Olhavaparaolago.Oque está fazendoaqui?Vasyaainda estava protegida pela folhagem daárvore.Enganchouos joelhosaoredordogalho,soltou-seeagarrousuasroupascomarapidezdeumesquilo.Malempoleiradaemumgalhomaisalto,tentandonãocairequebrar um braço, enfiou a camisa e aperneira–roubadadeAlyosha–epassouosdedosnocabelo,tentandoforçá-loaummínimo de ordem. Por fim, atirou paratrás a ponta de uma trança cheia de

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calombos, agarrou o galho e se balançoupara o chão. Talvez, se eu escapar bemrápido…Então,Vasyaviuarusalka.Estavaempé

naágua.Seucabeloflutuavaaoseuredor,encobrindo parte dos seios nus. Sorria,bem de leve, para o padreKonstantin.Opadre, encantado, levantou-se e foioscilando em sua direção. Sem pensar,Vasyaarremessou-separaeleepegousuamão. Mas ele a afastou, quasecasualmente, com mais força do quepareciater.Vasyavirou-separaarusalka.–Deixeeleempaz!– Ele vai matar todos nós – a rusalka

respondeu,comavozmacia,osolhosnão

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desgrudando da presa. – Já começou. Seelecontinuarassim,todososguardiõesdasprofundezas da floresta desaparecerão. Atempestade virá e a terra ficará indefesa.Você não percebeu? Primeiro o medo,depoiso fogo,depois a fome.Ele tornaasua gente medrosa. E então as fogueirasqueimaram e agora o sol torra. Vocêssentirãofomequandovierofrio.Oreidoinvernoestáfraco,eseuirmãoestámuitopróximo.Seasdefesas falharem,elevirá.Qualquercoisaémelhordoqueisso.–Suavozvibravacompaixão.–Émelhorqueeuleveestedaquiagora.PadreKonstantindeumaisumpasso.A

águasubiuaoredordasbotasdele.Estavabemnabeiradolago.

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Vasya sacudiu a cabeça, tentandoentender.–Vocênãodeve.– Por que não? A vida dele vale a de

todos os outros?E eu te digo com toda acerteza que, se ele viver agora, muitosmorrerão.Vasya hesitou por um longomomento.

Lembrou-se, a contragosto, do padrerezando ao lado do corpo rígido deTimofei, articulando as palavras muitodepoisdesuavoztersumido.Lembrou-sedele segurando firme a mãe do menino,quando ela teria caído na neve, aosprantos. A menina trincou os dentes ebalançouacabeça.A rusalka atirou a cabeça para trás e

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soltou um grito agudo. E então já nãoestava lá; restavam apenas o sol sobre aágua,algasesombrasdasárvores.Vasya segurou na mão do padre e o

puxouparalongedaborda.Eleolhouparaelaeaconsciênciavoltou-lheaosolhos.

OspésdeKonstantinestavamgeladoseelesesentiaestranhamentedesolado.Geladosporque ele estava de pé em quinzecentímetros de água, bem na beirada dolago, mas cismou com a sensação desolidão. Nunca se sentia solitário. Umrostoestavaentrandoemfoco.Antesquepudessedar-lheumnome,apessoapegou

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a suamão e o puxou trôpego de volta àterra firme.Da trançanegra refletiuumaluz vermelha, e subitamente ele areconheceu:–VasilisaPetrovna.Ela soltou a suamão, virou-se e olhou

paraele.–Batyushka.Elesentiuseuspésmolhados, lembrou-

sedamulhernolagoesentiuoprincípiodeummedo.–Oquevocêestáfazendo?–perguntou

ele.–Salvandosuavida–elareplicou.–O

lagoéumperigoparaosenhor.–Demônios…Vasyadeudeombros.

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– Ou os guardiões do lago. Chame-acomoquiser.Elefezcomosefossevoltarparaaágua,

mexendoemsuacruzcomumadasmãos.Ela esticou o braço e a pegou,

quebrandoatiraqueaprendiaaoredordopescoço.–Deixeistoedeixeela–ameninadisse

num ímpeto, segurando a cruz longe doalcance. – O senhor já causou muitosdanos. Será que não pode deixá-los empaz?–Querosalvarvocê,VasilisaPetrovna–

eledisse.–Vousalvarvocêstodos.Existemforçassinistrasquevocêsnãoentendem.Parasurpresadele,etalvezdela,elariu.

Odivertimentosuavizouosângulosdoseu

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rosto. Surpreso, ele olhou para ela comumaadmiraçãoinvoluntária.– O que me parece, Batyushka, é que

quemnãoentendeéosenhor,umavezqueéasuavidaqueprecisadesalvação.Volteparaotrabalhonasplantaçõesdecevadaeesqueçaolago.Elasevirousemesperarparaverseele

aseguia,ospésinaudíveisnomusgoenasagulhas de pinheiro. Konstantin desabouao ladodela.Ela ainda segurava sua cruzdemadeiraentredoisdedos.– Vasilisa Petrovna – ele tentou

novamente, amaldiçoando seudesajeitamento.Sempresabiaoquedizer,mas essa menina dirigia-lhe o olharlímpidoetodasassuascertezastornavam-

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se vagas e ridículas. – Você precisaabandonarseuscostumesbárbaros.Precisavoltar-se para Deus com medo e umarrependimento verdadeiro. Você é filhade um bom senhor cristão. Sua mãeenlouquecerá se não exorcizarmos osdemônios do seu lar. Vasilisa Petrovna,volte-se.Arrependa-se.– Eu frequento a igreja, padre – ela

replicou. – Anna Ivanovna não é minhamãe,ealoucuradelanãoéproblemameu,assim comominha alma não pertence aosenhor.Emeparecequeagenteseviravamuitobemantesdasuachegada,porque,se rezávamos menos, tambémchorávamosmenos.Ela havia caminhado rapidamente. Por

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entreostroncosdasárvores,elepodiaverapaliçadadaaldeia.–Presteatenção,Batyushka–eladisse.–

Reze pelosmortos, conforte os doentes econforte minha madrasta, mas me deixeempaz,ounapróximavezqueumdelesvier atrás do senhor, não levantarei umdedoparaimpedir.Ela não esperou uma resposta, mas

jogou a cruz de volta na mão dele ecaminhouapassoslargosparaaaldeia.Acruzconservavaocalordasuamão,e

os dedos do padre curvaram-se comrelutânciaaoseuredor.

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ELESSÓVÊMBUSCARADONZELASELVAGEM

ALUZOFUSCANTEDOSOLDATARDE

CEDEU PARA UM MEL DOURADO e,por fim, para âmbar e ferrugem. Umameia-lua fraca surgiu logo acima de umalinhadecéuamarelo-claro.Ocalordodiafoi-secomaluz,eoshomensnaplantaçãode cevada estremeceram com oresfriamentodoseusuor.Konstantincolocousuafoicenoombro.

Na pele endurecida da palma das suasmãos haviam brotado bolhas sangrentas.

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Equilibrouafoicecomapontadosdedoseevitou Pyotr Vladimirovich. A nostalgiafechou sua garganta e a raiva roubou suavoz.Era um demônio. Era a sua imaginação.Vocênãoaexpulsou,rastejouemsuadireção.Deus,comoqueriavoltarparaMoscou,

ou Kiev, ou ainda mais longe. Comerfartamente pão quente, emvez de passarfomemetadedoano;deixaroaradoparaos fazendeiros, falar perante milhares enuncaficaracordado,imaginando.Não. Deus havia lhe dado uma tarefa.

Nãopoderiadeixá-ladelado,pelametade.Ah, se euaomenos conseguisse completara

missão.Seu queixo travou-se. Ele a acabaria.

Tinha que terminar. E antes de morrer,

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voltaria a viver em um mundo onde asmeninasnãoodesafiassemeosdemôniosnão caminhassem em plena luz cristã dodia.Konstantinpassoupelacevadacortadae

contornouopastodos cavalos.Abeiradada mata projetava sombras famintas.DesviouorostoparaosrebanhosdePyotrpastando no longo crepúsculo. Umlampejode luz surgiu entreos cinza eoscastanhos. Konstantin estreitou os olhos.Umcavalo,ogaranhãodeguerradePyotr,estava parado, a cabeça erguida. Umafigura esguia aparecia junto aoombrodoanimal, esboçada contra o pôr do sol.Konstantin reconheceu-a de imediato. Ogaranhãocurvouacabeçadiabólicaparao

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lado, paramordiscar sua trança, e ela riucomoumacriança.Konstantin nunca tinha visto Vasya

daquele jeito. Dentro de casa, ela era,alternadamente, séria e cautelosa,descuidadaesedutora,todaolhoseossos,pésinaudíveis.Massozinha,sobocéu,eralinda como uma potranca ou um falcãoaprendendoavoar.Konstantin forçou uma expressão de

frieza.Opovolheofereciaceradeabelhaemel,pedia-lheconselhoseorações,beijavasua mão. Seus rostos iluminavam-sequando o viam. Mas aquela meninaevitava seu olhar e suas pisadas. Noentanto, um cavalo, um animal idiota,conseguia fasciná-la a ponto de provocar

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aquela luz, quedeveria ser para ele, paraDeus,paraelecomomensageirodeDeus.Ela era como Anna Ivanovna a definira:não tinha compaixão, desobediente,comportava-sedemaneiraimprópriaparaumadonzela.Conversavacomdemônioseseatreviaasegabardetersalvadoavidadele.Mas os dedos dele ansiavam por

madeira, cera e pincéis, por capturar oamor e a solidão, o orgulho e odesabrochar da feminilidade inscritos noscontornosdocorpodamenina.Ela salvousuavida,KonstantinNikonovich.Com ferocidade, reprimiu tanto o

pensamento, quanto o impulso. Pintarservia para a glória de Deus, não para

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glorificar a fragilidade da carne emtransição.Elainvocouumdiabo;foiodedodeDeusque salvouaminhavida.Mas,quandoele se forçou a se afastar, a cena estavagravadanointeriordassuaspálpebras.

O anoitecer estava violeta, quandoVasyaentrou na cozinha ainda corada de sol.Pegou a vasilha e a colher, serviu-se deuma porção e a levou até a janela. Oentardecerverdejavaseusolhos.Atacouacomida, parando de tempos em tempospara contemplar o longo crepúsculo doverão.Com passos duros e decididos,

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Konstantin colocou-se ao seu lado. Ocabelodelacheiravaaterra,soleáguadolago.Elanãodesviouosolhosdajanela.Aaldeia estava estrelada de fogueiras bemalimentadas.Umameia-luafracaelevou-senum céu agitado de nuvens. O silêncioentre eles alongou-se, em meio aoburburinhodacozinhalotada.Foiopadrequemoquebrou:– Sou umhomemdeDeus – disse ele,

baixinho.–Masterialamentadomorrer.Vasya dirigiu-lhe um olhar rápido e

perplexo.Umesboçodesorrisosurgiunocantodasuaboca.– Não acredito nisso, Batyushka. Não

roubei do senhor sua rápida ascensão aocéu?

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– Agradeço-lhe pela minha vida –continuouKonstantin,contido.–MasnãosezombadeDeus.–Subitamente,suamãoestava morna sobre a dela. O sorrisodeixouo rosto damenina. –Lembre-se –eledisse,enfiandoumobjetoentreosseusdedos.Suamão,ásperacomousodafoice,deslizou sobre os nós dos dedos. Ele nãofalou,masolhouclaramenteparaela.Desúbito,Vasyaentendeuporquetodas

as mulheres lhe pediam orações;compreendeu, também, que sua mãoquente, osossos fortes do seu rosto eramumaarmaparaserusadaquandoasdafalafalhavam. Assim, ele conseguiria que elalheobedecesse,comsuamãogrosseira,osolhoslindos.

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Sou tão idiota quanto Anna Ivanovna?Vasyajogouacabeçaparatráseseafastou.Elepermitiuquesefosse.Elanãoviuqueamãodele tremia.Sua sombraondulounaparedequandoelesaiu.Annaestavacosturando lençóisemseu

banquinho junto ao fogo. A roupaescorregouparaseusjoelhose,quandoelaselevantou,caiudespercebidanochão.–O que foi que ele te deu? – disse ela

comfúriacontida.–Oque foi? –Todosostraçosdoseurostorealçaram-se.Vasya não fazia ideia, mas levantou o

objetoparaqueamadrastavisse.Erasuacruz de madeira, com os dois braçosesticados, escavada num pinho sedoso.Vasyaolhouparaelacomcertoassombro.

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Oque é isto,padre?Umaviso?Umpedidodedesculpas?Umdesafio?–Umacruz–respondeu.MasAnnaahaviaagarrado.–Éminha–disse ela. –Elequeriadar

pramim.Caiafora!ErammuitasascoisasqueVasyapoderia

terdito,maselaoptoupelamaissegura:–Tenhocertezaquesim.Mas não saiu. Levou sua vasilha até o

fogo para se servir de mais cozido comDunyaeroubarumapontadepãodesuairmã desprevenida. Em poucos minutos,Vasyalimpavaavasilhacomacôdeaeriacomaexpressãoaturdidadairmã.Anna não voltou a falar, mas também

não retomou a costura. Vasya, por mais

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querisse,podiasentiroolharabrasadordamadrasta.

Naquela noite, Anna não dormiu. Foi dasua cama para a igreja. Quando umamanhecerlímpidoeprofundosubstituiuoazul da meia-noite do verão, foi até omaridoeosacudiuparaqueacordasse.Nem uma vez, em nove anos, Anna

tinha ido até Pyotr por sua própriavontade. Pyotr agarrou a mulher e asufocou de maneira muito eficiente, atéperceber quem era. O cabelo de Annaespalhou-se, castanho grisalho, sobre seurosto, e seu lençopendeu torto.Osolhos

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pareciamduaspedras.– Meu amor – ela disse, ofegante,

massageandoopescoço.–Qualéoproblema?–Pyotrperguntou,

saindo da cama quente e se vestindo àspressas.–ÉIrina?Annaalisouocabelo,ajeitouolenço.–Não…Não.Pyotrenfiouumacamisapela cabeçae

amarrouafaixa.– Então, o quê? – ele perguntou num

tom não muito agradável. Ela o haviaassustadodemais.Annatremeu,aspálpebrasabaixadas.–Você reparou que a sua filhaVasilisa

cresceumuitodesdeoverãopassado?Osmovimentos de Pyotr vacilaram.O

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nascer do dia projetou linhas de umdourado pálido pelo chão. Anna nuncativerainteresseporVasya.–Émesmo?–eledisse,agoraconfuso.– E que ela ficou de uma beleza bem

razoável?Pyotrpiscouefezumacareta.–Elaéumacriança.–Umamulher– retorquiuAnna.Pyotr

levouumsusto.Elanuncaocontradissera.–Moleca,todabraços,pernaseolhos.Masterá um bom dote. É melhor que ela secase agora, marido. Se ela perder essesatrativos,podeserquejamaissecase.– Ela não vai perder seus atrativos em

umano–dissePyotr,secamente.–E,comcerteza,nãonapróximahora.Porqueme

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acordar,mulher? – Ele saiu do quarto.Ocheirodenozesdopãoqueassavaalegrouacasaeeleestavacomfome.–SuafilhaOlgacasou-secomquatorze

anos.–Annaseguiu-o,ofegante.Olgatinhaprosperado com o casamento, tornara-seuma grande dama, uma gorda matronacom três filhos. Seu marido dispunha degrandeprestígiojuntoaogrão-príncipe.Pyotrpegouumpãofrescoeoabriu.–Voupensarnoassunto–disseele,para

fazê-lasecalar.Pegou uma grande bola no interior

fumeganteeencheuaboca.Àsvezes,seusdentesdoíam.Amacieznãoeramalvinda.Você está velho, Pyotr pensou. Fechou osolhosetentouabafaravozdamulhercom

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osomdasuamastigação.

Aonascerdosol,oshomensforamparaasplantações de cevada. Durante toda amanhã, ceifaram a vegetação ondulantecom grandes golpes e gritos. Depois,espalharam os talos para secar. Seusrastelosiamparaláeparacánumchiadomonótono. O sol era uma coisa viva,lançando os braços quentes sobre ospescoçosdoshomens.Suassombrasfrágeisescondiam-se debaixo dos pés, os rostosreluzindo de suor e queimados do sol.Pyotreosfilhostrabalharamjuntocomoscamponeses;todoslabutavamnaépocada

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colheita. Pyotr era cuidadoso com cadasemente. A cevada não crescera tantoquantodeveria,ascabeçasficarammagrasepobres.Alyoshaendireitouascostasdoloridase

protegeu os olhos com a mão suja. Seurosto animou-se. Um cavaleiro vinha daaldeia,galopandoemumcavalomarrom.–Finalmente.Colocoudoisdedosnaboca.Umlongo

assobioatravessouaquietudedomeio-dia.Portodaaplantação,oshomenspuseramdeladoseusrastelos,esfregaramosfiletesde mato do rosto e foram até o rio. Asencostas profundas e verdejantes e omarulhodaságuasaliviaramumpoucoocalor.

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Pyotr apoiou-se em seu rastelo eempurrou o cabelo úmido e grisalho datesta, mas não deixou a plantação decevada. O cavaleiro aproximava-se,galopando em uma égua de passosregulares. Pyotr prestou atenção.Conseguiudiscerniratrançaescuradesuasegunda filha fluindo atrás dela.Mas nãovinhamontadaemseupróprioetranquilopônei.OspésbrancosdeMyshreluziramna poeira. Vasya viu o pai e ocumprimentou com um acenar de braço.Pyotr esperou de cara fechada pararepreender a filha quando ela chegassemais perto.Um dia ela quebrará o pescoço,essamaluca.Mascomomontavabem!Aéguasaltou

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umavalaecontinuouvindoagalope,suaamazona imóvel, com exceção do cabeloque voava. As duas pararam à beira damata. Vasya tinha um cesto de juncoequilibradoàfrente.Sobaforteluzdosol,Pyotrnãoconseguiudiscernirsuasfeições,masficouchocadoaovercomoestavaalta.–Nãoestácomfome,pai?!–elagritou.A égua ficou parada, a postos. E sem

rédea. Não tinha coisa alguma, nemmesmoumcabresto.Vasyacavalgavacomasmãosnocesto.–Estouindo,Vasya–eledisse,sentindo-

se inexplicavelmente triste. Colocou orastelosobreoombro.O sol refletiu de uma cabeça dourada;

Konstantin Nikonovich não deixara a

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plantação de cevada, mas ficouobservandoaeleganteamazonaatéqueasárvoresaencobriram.Minha filha monta como um garoto da

estepe. O que ele deve pensar dela, nossovirtuosopadre?Os homens jogavam água fria sobre a

cabeça e a bebiam em grandes porções.Quando Pyotr veio até o córrego, Vasyatinhadescidodocavaloeestavaentreeles,passando um odre cheio de kvas. Dunyahavia feitoumenormepastelãono forno,recheado comgrãos, queijo e vegetais deverão.Oshomensreuniram-seaoredorecortaramfatias.Agorduramisturou-seaosuoremseusrostos.PyotrficouperplexoaovercomoVasya

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pareciaestranhaentreoshomensgrandese grosseiros, com seus ossos longos, suaesbelteza, os olhos grandes dispostos tãoseparados.Queroumafilhacomoeraaminhamãe,Marinatinhadito.Bem,aliestavaela,umfalcãoentrevacas.Os homens não falaram com ela;

comeram a torta rapidamente, de cabeçabaixa, e voltaram para os camposabrasadores. Alyosha puxou a trança dairmã e riu para ela, ao passar.Mas Pyotrviuoshomens lançarem-lheolharespelascostasaoiremembora.–Bruxa–umdelesmurmurou,embora

Pyotrnãotivesseouvido.–Elaencantouocavalo.Opadrediz…Oempadãofoi-seeoshomenscomele,

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masVasyaficoumaisumtempo.Deixouoodre de kvas de lado e foi mergulhar asmãos na corrente. Andava feito criança.Bem, é claro que ande. Ainda é umamenina,meu sapinho. E, no entanto, tinha algo deselvagememsuagraçadescuidada.Vasyadeixou o riacho e veio em sua direção,pegandoo cesto no caminho. Pyotr levouum choque ao olhar em seu rosto, o quetalvez fosse o motivo de ter franzido ocenhodemaneiratãosombria.Osorrisodelamurchou.–Tome,pai–eladisse,elheestendeuo

odredekvas.Ah,Deusdocéu,elepensou.Talvezafala

deAnnaIvanovnanãoestejatãoerrada.Seelanãoforumamulher,logoserá.Pyotrviuqueo

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olhar do padre Konstantin demorou-senovamenteemsuafilha.–Vasya–dissePyotr,maisbrutodoque

pretendia. – O que significa isto, pegar aéguaevircavalgandodestejeito,semsela,nemrédea?Vocêvaiquebrarumbraçoouseupescoçoidiota.Vasyacorou.–Dunyamepediuparatrazerocestoe

vir depressa. Mysh era o cavalo maispróximo,eerasóumcaminhocurto,pertodemaisparamepreocuparcomumasela.– Ou com um cabresto, dochka? –

inquiriuPyotrcomcertaaspereza.Vasyacorouaindamais.–Nãomemachuquei,pai.Pyotraanalisouemsilêncio.Seelafosse

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um menino, estaria aplaudindo aquelaexibição de habilidade na cavalgada.Masera uma menina, uma menina-moleque,prestes a ficar adulta. Pyotr tornou a selembrardoolhardopadre.– Falaremos disto mais tarde – disse

Pyotr. –Vápara casa ficar comDunya.Enãocavalguetãorápido.–Sim,pai–Vasyadissedocilmente.Mas

havia orgulho na maneira como saltoupara as costas do cavalo e também nocontrolecomquevirouaéguaeamandouameio-galope,pescoçoarqueado,devoltanadireçãodecasa.

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Odiaevoluiuparaocrepúsculo,chegandoaofim,demodoqueaúnicaluzeraofracofulgor do verão que iluminava as noitescomomanhã.–Dunya – chamouPyotr. –Há quanto

tempoVasyatornou-semulher?Estavam sentados a sós na cozinha de

verão.Aoredordeles,todaacasadormia.Mas para Pyotr as noites com luz diurnaafastavamosonoeaquestãodasua filhaincomodava-o. Dunya sentia dor nosmembros e não estava ansiosa para sedeitar emseucatreduro.Girou sua roca,mas devagar. Pyotr ficou atônito ao vercomoestavamagra.DunyaolhouparaPyotrcomdureza.– Há meio ano. Veio pra ela perto da

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Páscoa.–Elaéumameninabonita–dissePyotr.

– Embora selvagem. Precisa de ummarido, isso a acalmaria. –Mas, ao falarisso, veio-lhe uma imagem de sua filhaselvagem casada e coabitando, suandosobre um fogão. A imagem encheu-o deumpesarestranho,eeleaafastou.Dunya deixou de lado a roca e disse

lentamente:–Elaaindanãopensouemamor,Pyotr

Vladimirovich.–Edaí?Elafaráoqueformandado.Dunyariu.–Émesmo?Vocêseesqueceudamãede

Vasya?Pyotrficoucalado.

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– Eu te aconselharia a esperar – disseDunya.–Anãoserque…Durantetodooverão,Dunyatinhavisto

Vasya sumir ao nascer do sol e voltar aoentardecer. Tinha visto a impetuosidadecrescer na filha de Marina e um…distanciamento que era novo, como se ameninaestivesseapenasvivendoempartenomundodeplantações,criaçãoecosturadasuafamília.Dunyahaviaobservadoesepreocupara, lutando consigo mesma.Agora, tomou uma decisão. Afundou amão no bolso. Quando retirou a peça, ajoia azul estava aninhada em sua palma,incompatívelcomapelegasta.–Vocêselembra,PyotrVladimirovich?– Era um presente para Vasya – disse

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Pyotrcomaspereza.– Istoéumatraição?Pediavocêquedesseaela.–Eleolhouopingentecomosefosseumacobra.–Guardeiparaela–respondeuDunya.–

Implorei e o rei do invernomepermitiu.Era uma carga muito grande para umacriança.– Rei do inverno? – Pyotr perguntou,

furioso. – Você é alguma criança praacreditar em contos de fadas? Não existereidoinverno.– Contos de fadas? – replicou Dunya,

comraivanavoz. – Seráque sou tãomápara inventar uma mentira dessas?Também sou cristã, Pyotr Vladimirovich,mas acredito no que vejo. De onde veioestajoia,queseprestaparaumkhan,que

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vocêtrouxeprasuafilhinha?Pyotr,engolindoemseco,ficouquieto.–Quemtedeuisto?–Dunyacontinuou.

– Você trouxe de Moscou, mas nuncapergunteimaisnada.–Éum colar – dissePyotr,mas já não

haviaraivaemsuavoz.Pyotr tinha procurado esquecer o

homem de olhos claros, o sangue nagarganta de Kolya, seus homens parados,indiferentes.Aquele era ele, o reido inverno?Agoraeleselembravadarapidezcomquetinhaconcordadoemdaroberloqueparasuafilha.Magiaantiga,pareceuterouvidoMarina dizer.Quero uma filha como era aminhamãe.Edepois,maisbaixo:Proteja-a,Petya. Eu a escolhi, ela é importante. Petya,

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prometa-me.–Nãoésóumcolar–Dunyadissecom

dureza. – É um talismã, que Deus meperdoe. Tenho visto o rei do inverno. Ocolarédele,eelevaivirbuscá-la.–Vocêotemvisto?–Pyotrficouempé.Dunyaconcordoucomacabeça.–Ondevocêoviu?Onde?– Sonhando – disse Dunya. – Só em

sonhos. Mas ele manda os sonhos e elessãoverdadeiros.Eledizqueeutenhoquedarocolarpraela.Elevaivirbuscá-lanosolstício de inverno. Ela não émais umacriança.Maseleéembusteiro;todososreissão. – As palavras vieram atropeladas. –Amo Vasya como se fosseminha própriafilha.Ela é corajosademaisparaque seja

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bom.Tenhomedoporela.Pyotrfoiatéagrandejanelaevoltouem

direçãoaDunya.– Você está me falando a verdade,

AvdotyaMikhailovna?Pelaalmadaminhamulher,nãomintaparamim.–Tenhovistoele –Dunya repetiu. –E

acho que você também. Tem cabelospretoscacheados,olhosclaros,maisclarosdoqueocéuempleno inverno.Não tembarbaesevestetododeazul.–Nãodareiminhafilhaaumdemônio.

Elaéumamoçacristã.O medo em estado bruto na voz de

Pyotr era novo, vindo dos sermões deKonstantin.– Então ela precisa ter um marido –

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disse Dunya, simplesmente. – Quantoantes, melhor. Os demônios do gelo nãotêminteresseemmeninasmortais,casadascom homens mortais. Nas histórias, opríncipe-pássaro e o feiticeiro perverso,elessóvêmatrásdedonzelasselvagens.

–Vasya?–disseAlyosha.–Casada?Aquelacoelha?–Eleriu.Ostalossecosdacevadasussurraram. Rastelava ao lado do pai.Havia palha em seus cachos castanhos.Andaracantandoparaquebraraquietudeda tarde. – Ela ainda é umamenina, pai.Derrubei aos socos um camponês queolhoupraelatempodemais,maselanem

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reparou. Nem mesmo quando o imbecilpassou uma semana com o rosto todomachucado. – Ele também tinhaesmurrado um camponês que a chamaradebruxa,masnãocontouaopai.–Elanão encontrouumhomemque a

atraísse, só isso – retrucou Pyotr. – Maspretendoqueissomude.–Pyotrfoibrusco,estava decidido. – Kyril Artamonovich éfilho do meu amigo. Tem uma grandeherança e o paimorreu.Vasya é jovemesaudável,eseudoteémuitobom.Partiráantesdaneve.–Pyotrinclinou-semaisumavezemseurastelo.Alyoshanãooacompanhou.–Elanãovaiaceitarfacilmente,pai.– Facilmente ou não, fará o que for

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mandado–dissePyotr.Alyoshadesdenhou:–Vasya?Querosóver.

–Vocêvaisecasar–disseIrinaparaVasya,cominveja.–Evaiterumbomdote,vivernumacasagrandedemadeiraetermuitosfilhos.Estava ao lado da cerca rústica de

travessasemourões,masnão se recostounelaparanãosujar seusarafan. Sua longatrança castanha estava envolta num lençovivo, e sua mãozinha, pousadadelicadamentenamadeira.Vasyaaparavao casco de Metel, murmurando ameaças

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terríveis para o garanhão, caso eleresolvessesemexer.Pareciaqueeleestavadecidindoquepartedelairiamorder.Irinaestavabemassustada.Vasyaabaixouocascoeolhouparasua

irmãzinha.–Nãovoumecasar–disseela.A boca de Irina vincou-se numa

desaprovaçãomeioinvejosa,quandoVasyapulouacerca.–Vai sim–elacontestou.–Vemvindo

um lorde.OKolya foi buscar.Ouviopaidizerpramãe.AtestadeVasyafranziu-se.– Bem…Suponho que vou ter queme

casar… um dia – ela disse. Sorriu deesguelhaparaairmã.–Mascomoéqueeu

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vouatrairoolhardeumhomemcomvocêporperto,passarinho?Irinadeuumsorrisotímido.Suabeleza

jáestavasendocomentadaentreasaldeiassobdomíniodoseupai.Masentão:– Você não vai entrar na mata, vai,

Vasya?Estáquasenahorado jantar.Vocêestátodasuja.A rusalka estava sentada acima delas,

umasombraverdeestendidaemumgalhode carvalho. Ela acenou. Seu cabelo emcascatagotejavaágua.–Chegareiatempo–disseVasya.–Masopaidiz…Vasyapulouparapegarumgalho,umpé

notronco,agarrandoogalhoacimadasuacabeça com suasmãos fortes. Enganchou

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um joelho sobre ele, pendurando-se decabeçaparabaixo.–Nãovoumeatrasarprojantar.Nãose

preocupe,Irinka.No minuto seguinte, ela havia

desaparecidoentreasfolhas.

Arusalkaestavaabatidaetremendo.– O que você está fazendo? – Vasya

perguntou.A rusalka tremeumais do quenunca. – Está com frio? – Parecia quaseimpossível;aterradevolviaocalordodiaequasenãohaviabrisa.– Não – disse a rusalka. Seu cabelo

escorridoescondiaseurosto.–Quemtem

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frio são asmenininhas, não os chyerty. Oque aquela criança está dizendo, VasilisaPetrovna?Vocêvaideixarafloresta?Ocorreu a Vasya que a rusalka estava

commedo,emboranãofossefácilsaber;asinflexõesdasuavoznãoeramcomoasdeumamulher.Vasya nunca havia pensado nesses

termosantes.–Umdia,euvou–disse lentamente.–

Algumdia.Vou terquemecasare irpracasadomeumarido.Masnãoachavaqueseriatãorápido.Como a rusalka estava fraca! As folhas

farfalhantesexibiamseurostoabatidoporentreelas.–Vocênãopode–dissea rusalka. Seus

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lábiosarregaçaram-sedosdentesverdes.Amão que penteava o cabelo fez ummovimento brusco, de modo que a águaquecaíaescorreupelonarizepeloqueixo.– Não sobreviveremos ao inverno. Vocênãomedeixoumatarohomemfaminto,esuas proteções estão falhando. Você éapenasumacriança;seusbocadosdepãoehidromelnãopodemsustentarosespíritosdomésticos.Nãoeternamente.OUrsoestáacordado.–Queurso?–Asombranaparede–dissearusalka,

com a respiração acelerada. – A voz naescuridão. – O rosto dela não se mexiacomoumrostohumano,massuaspupilasavolumaram-senegras.–Cuidadocomos

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mortos. Você precisa prestar atenção emmim, Vasya, porque não vou voltar. Nãocomo eu mesma. Ele me chamará, e euatenderei; terá minha aliança e eu mevoltarei contra vocês. Não posso agir deoutro jeito. As folhas estão caindo. Nãoabandoneafloresta.–Oquevocêquerdizer com“cuidado

comosmortos”?Comoéquevocêvai sevoltarcontranós?Mas a rusalka apenas estendeu a mão

com tal força que seus dedos úmidos eenevoados pareciam carne, fechados emtornodobraçodeVasya.–Oreidoinvernoajudarávocênoque

puder – ela falou. – Ele prometeu.Todosnósouvimos.Eleémuitovelhoe inimigo

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doseuinimigo.Masvocênãodeveconfiarnele.As dúvidas acorreram aos lábios de

Vasya com tal rapidez que a deixaramsufocada em silêncio. Seus olhosencontraram os da rusalka. O cabelosedosodoespíritodaságuascaíaaoredordoseucorponu.–Euconfioemvocê–Vasyaconseguiu

dizer.–Vocêéminhaamiga.– Tenha um bom coração, Vasilisa

Petrovna – disse a rusalka com tristeza, eentão restou apenas uma árvore comturbulentas folhasprateadas.Comoseelanuncahouvesseestadoali.Vaiverqueestou loucadeverdade,pensou

Vasya.Agarrouogalhoabaixodelaepulou

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paraochão.Seuspéscorrerammaciosemdireção a casa, no glorioso entardecer doavançado verão. A toda volta, a florestaparecia sussurrar:A sombra na parede. Vocênãodeveconfiarnele.Cuidadocomosmortos.Cuidadocomosmortos.

–Casar,pai?O crepúsculo límpido e verde

transpirava frescor na terra ressequida eofegante, a talpontoqueo fogodo fornoconfortava em vez de atormentar. Aomeio-dia, eles tinhamcomidoapenaspãocomcoalhadaoucogumelosemconserva,porque não se podia desperdiçar tempo

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nas plantações. Mas naquela noite haviacozido e torta, frango assado e coisasverdesmergulhadas em um pouco de salprecioso.– Se houver alguém que possa ser

trazido pra ter você – disse Pyotr semgrande gentileza, colocando sua tigela delado. Safiras e olhos claros, ameaças epromessas semicompreendidas invadiamseucrâniodemaneiradesagradável.Vasya tinha entrado na cozinha com o

rostomolhado,ehaviasinaisexplícitosdeque tentara limpar a terra debaixo dasunhas. Mas a água só fizera espalhar asujeira. Estava trajada como umacamponesa,numvestidofinodelinhocru,o cabelo preto descoberto e formando

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cachos. Seus olhos estavam enormes,rebeldeseperturbados.Seriamuitomaisfácilfazê-lasecasar,Pyotr

pensou com irritação, se ela resolvesse seapresentar mais como uma mulher e menoscomo uma criança camponesa, ou um espíritodafloresta.Pyotr viu as sucessivas objeções

aflorarem em seus lábios e se afastarem.Todas as meninas casavam-se, a não serque se tornassem freiras. Ela sabia dissotãobemquantoqualquerum.– Casar? – ela repetiu, lutando pelas

palavras.–Agora?Novamente, Pyotr sentiu uma aflição.

Viu-a pesada como uma criança,debruçada sobre um fogão, sentada em

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frenteaumtear,agraçaperdida…Não seja tolo, Pyotr Vladimirovich. É o

destino das mulheres. Pyotr lembrou-se deMarina,quenteeelásticaemseusbraços.Mas também se lembrou das suas fugasparaafloresta,comoumfantasma,aquelemesmoolharselvagem.–Comquemvouterquemecasar,pai?Meu filho estava certo, Pyotr pensou.

Vasya estava realmente zangada. Suaspupilas tinhamcrescidoea cabeçaestavajogada para trás comouma potranca quenãovaiaceitarofreio.Eleesfregouorosto.As meninas ficavam felizes em se casar.Olga mostrara-se radiante quando seumaridocolocouumajoiaemseudedoealevouembora.TalvezVasya tivesse inveja

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da sua irmã mais velha. Mas sua filhajamaisencontrariaummaridoemMoscou.Seriaomesmoquecolocarum falcãoemumpombal.– Kyril Artamonovich – disse Pyotr. –

Meu amigo Artamon era rico e deixoutudoparaseuúnicofilho.Elessãograndescriadoresdecavalos.Os olhos dela ocuparam metade do

rosto. Pyotr repreendeu-a. Era uma boaunião; ela não tinha nada que ficarabalada.–Onde?–elamurmurou.–Quando?–Umasemanaparaolesteemumbom

cavalo – disse Pyotr. – Ele virá após acolheita.O rosto de Vasya ficou imóvel e

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determinado.Elaseviroudecostas.Pyotracrescentou,persuadindo-a:–Elemesmovaiviraqui.MandeiKolya

até ele. Será um bommarido e lhe daráfilhos.– Por que tanta pressa? – Vasya

retorquiu.A amargura em sua voz tocou-o num

pontosensível.–Basta,Vasya–disse,friamente.–Você

éumamulhereeleéumhomemrico.Sequeriaumpríncipe,comoOlga,bom,elesgostam que suas mulheres sejam maisgordasemenosinsolentes.Ele viu a rápida pontada de dor, antes

queelaodisfarçasse.– Olya prometeu que mandaria me

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buscar quando eu estivesse crescida – elareclamou. – Falou que viveríamos juntasemumpalácio.– É melhor que você se case agora,

Vasya – disse Pyotr de imediato. – Vocêpoderá ir visitar sua irmã depois quenascerseuprimeirofilho.Vasyamordeuolábioesaiu.Pyotrviu-

se especulando com inquietação o queKyrilArtamonovichfariadasuafilha.–Elenãoévelho,Vasya–disseDunya,

quandoVasyaatirou-seaochão,aoladodofogo.–Éfamosoporserbomnacaça.Vaitedarfilhosfortes.– O que o pai está deixando de me

contar? – retorquiu Vasya. – É muitoprecipitado. Eu poderia esperar um ano.

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Olyaprometeuquemandariamebuscar.–Bobagem,Vasya–disseDunya,talvez

com energia exagerada. – Você é umamulher. Vai se sair melhor com ummarido. Tenho certeza que KyrilArtamonovichdeixaráquevisitesuairmã.Os olhos verdes ergueram-se,

contraídos.–Você sabeomotivo domeupai. Por

queestapressa?–Não…Nãopossodizer,Vasya–disse

Dunya.Derepente,elapareceupequenaecansada.Vasyanãodissenada.–Éomelhor–continuouaama.–Tente

compreender.Ela se largounobancodo fogão, como

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setivesseperdidoasforças,eVasyasentiuumapontadaderemorso.–Estábem.Medesculpe,Dunyashka.–

Colocouamãonobraçodaama,masnãovoltouafalar.Depoisdeengolirseumingau,escapuliu

portaaforacomoumfantasmaesumiunanoite.

A lua estava um pouco maior do quecrescente, a luz um brilho azul. Vasyacorreu sentindo um pânico que nãoconseguiacompreender.Avidaquelevavadeixava-a forte. Disparou e deixou que ovento frio levasse o gosto de medo que

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tinhanaboca.Masnãoforalonge;aluzdofogodalareiradesuafamíliaaindaincidiasobre suas costas, quando ouviu alguémchamá-la.–VasilisaPetrovna.Quase correu e deixou que a noite a

engolisse.Masaondepoderiair?Parou.Opadre estava à sombra da igreja. Estavaescuro. Ela não o teria reconhecido pelorosto,masnãodavapara confundir a suavoz.Nãodissenada.Sentiugostodesalepercebeu que em seus lábios secavamlágrimas.Konstantin tinha acabado de sair da

igreja.NãohaviavistoVasyadeixaracasa,mas não se enganaria com sua sombradesabalada. Chamou-a antes de se dar

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conta e se amaldiçoou quando ela parou.Masavisãodoseurostochocou-o.– O que foi? – perguntou ele, com

rispidez.–Porqueestáchorando?Se tivesse falado de um jeito frio e

impositivo, Vasya não teria respondido.Mas,sendocomofoi,respondeu,exausta:–Voumecasar.Konstantinfranziuocenho.Viutudode

imediato, assim como acontecera comPyotr: a criatura selvagem levada paradentro de casa, atarefada e sem fôlego,umamulhercomoasoutras.AssimcomoPyotr, sentiu uma tristeza estranha e selivroudaquilo.Aproximou-se sempensar,para poder decifrar o rosto dela, e viu,atônito,queelaestavacommedo.

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– E daí? – perguntou ele. – Ele é umhomemcruel?– Não – Vasya respondeu. – Acho que

não.É melhor, foi o que veio na ponta da

línguadopadre.Masele tornouapensaremanosparindo filhoseexaustão.O fimda impetuosidade, a graça de falcãoacorrentada…Engoliu em seco.É melhor.Aimpetuosidadeerapecaminosa.Mas,mesmosabendoaresposta,viu-se

perguntando:– Por que está com medo, Vasilisa

Petrovna?–O senhor não sabe, Batyushka? – ela

indagou.Suarisadaeraleveedesesperada.– O senhor sentiu medo quando foi

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mandado pra cá. Sentiu a florestafechando-se sobre o senhor como umpunho.Pudever istoemseusolhos.Mas,sequiser,osenhorpodeirembora.Existetodo um vasto mundo à espera de umhomem de Deus, e o senhor já bebeu aáguadeTsargradeviuosolsobreomar.Enquantoqueeu…–Elepôdeveropânicoaflorando novamente nela, então foi emfrenteeagarrouoseubraço.– Calma. Não seja boba. Você está se

deixandotomarpelomedo.Elariunovamente.–Osenhortemrazão–disseela.–Sou

boba. Afinal, nasci para uma gaiola.Conventooucasa,queoutraopçãoexiste?– Você é uma mulher – Konstantin

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afirmou. Ainda segurava seu braço. Elarecuoueeleadeixou ir.–Como tempo,vocêaceitaráisso.Seráfeliz.Elamalconseguiaverorostodele,mas

havia um tom na sua voz que ela nãoentendeu. Soava como se ele mesmoestivessetentandoseconvencer.–Não–disseVasya,comavozabafada.

–Rezepormim,sepuder,Batyushka,maseu tenho que… – E, então, ela voltou acorrerentreascasas.Konstantinreprimiuodesejodechamá-

ladevolta.Apalmadasuamãoardia,nopontoondeatocara.Émelhor,pensou.Émelhor.

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ODIABOÀLUZDEVELA

ERA UM OUTONO DE CÉUS

CINZENTOSEFOLHASAMARELAS,denuvens repentinas e feixes inesperadosdeumaluzpálidadosol.Ofilhodoboiardoveio com Kolya após a colheita ter sidoguardada em segurança em porões epalheiros.Kolyamandouummensageiroàfrente, na trilha enlameada, e no dia dachegadadolorde,VasyaeIrinapassaramamanhã na casa de banhos. O bannik,espírito da casa de banhos, era uma

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criatura barriguda, com olhos como duasgroselhas. Bem-humorado, olhou asmeninascommalícia.–Vocênãopodeseesconderdebaixode

um banco? – Vasya perguntou baixinho,quando Irina estava no outro cômodo. –Minhamadrastavaitever,elavaigritar.O bannik sorriu. Emanava vapor por

entre os dentes. Era pouco mais alto doqueojoelhodela.–Comoquiser.Masnão se esqueçade

mim neste inverno, Vasilisa Petrovna. Acada estação estou menor. Não querosumir.Ovelhocomedorestádespertando.Este não será um bom inverno pra vocêperderseuvelhobannik.Vasyahesitou,surpreendida.Maseuvou

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me casar. Vou-me embora. Cuidado com osmortos.Seuslábiosfirmaram-se.–Nãoesquecerei.O sorriso dele alargou-se. O vapor

rodeou seu corpo até ela não poderdistingui-lo da carne. Uma luz vermelhaaqueceuofundodosseusolhos,dacordepedrasembrasa.–Umaprofecia,então,sereia.– Por que estáme chamando assim? –

elacochichou.O bannik flutuou para o banco ao lado

dela.Suabarbaeraovaporqueespiralava.– Porque você tem os olhos do seu

bisavô.Agora,meouça.Vocêvaicavalgaraté onde o céu encontra a terra.Nascerátrêsvezes:umadeilusões,umadecarnee

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uma de espírito. Colherá campânulasbrancas no solstício de inverno, chorarápor um rouxinol emorrerá por sua livreescolha.Vasyasentiufrio,apesardovapor.–Porqueeuescolheriamorrer?–Trêsnascimentos,umamorte–disseo

bannik. – Não é justo? Não me esqueça,Vasilisa Petrovna. – E então só restouvaporondeelehaviaestado.MãedeDeus,pensouVasya, já tive o que

bastadosavisosmalucosdeles.As duas meninas ficaram sentadas,

suando, até estarem coradas e brilhando;bateram uma na outra com ramos debétulas e jogaram água fria em suascabeças fumegantes. Depois de limpas,

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Dunya entrou com Anna para pentear etrançarseuscabeloslongos.–Éumapenaquevocêsejatãoparecida

com um menino, Vasya – disse Anna,passandoumpentedemadeiraperfumadapelos longos cachos castanhos de Irina. –Esperoqueseumaridonãosedecepcionedemais. – Ela olhou de esguelha para aenteada.Vasyacorouemordeualíngua.– Mas este cabelo – disse Dunya,

sarcasticamente – é o cabelomais bonitode Rus’, Vasochka. – E de fato era maislongo e mais espesso do que o de Irina,bemnegrocomlevesreflexosacobreados.Vasyaconseguiusorrirparaaama.Irina

escutara, desde a infância, que era lindacomoumaprincesa.Vasyatinhasidouma

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criança feia, frequentemente comparada,demaneiradesfavorável,comsuadelicadameia-irmã. No entanto, recentemente, aslongashorasnagarupadeumcavalo,ondesuaspernascompridaseramúteis,haviamfeitoVasyaterumaopiniãomelhorsobresimesma e, de qualquer modo, não eramuito dada à contemplação do próprioreflexo.Oúnicoespelhodacasaeraumdebronze,oval,pertencenteàmadrasta.Agora, contudo, todas as mulheres da

casa pareciam estar olhando para ela,avaliando-a como se fosse uma cabra naengorda para vender. Ocorreu a Vasyaimaginar se havia alguma vantagem emserbonita.Por fim, as duas meninas estavam

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vestidas. Vasya teve a cabeça envolvidacom um toucado virginal, o fio de pratapendendo para emoldurar o rosto. Annajamais deixaria Vasya ofuscar a própriafilha,mesmosendoelaquemiriasecasar.Assim sendo, o toucado e as mangas deIrina estavam bordados com pequenaspérolas, seu pequeno sarafan de um azul-claroarrematadoembranco.Vasyausavaverde e azul-escuro, sem pérolas, e umaleve sugestão de bordado branco. Seuúnico defeito era a simplicidade. EladeixaragrandepartedacosturaacargodeDunya.Masasimplicidadelhecaíabem.Orosto de Anna azedou quando viu suaenteadavestida.Asduasmeninassaíramparaodvor.O

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pátio da frente tinha lama até ostornozelos; a chuva caía como uma leveaspersão. Irina manteve-se junto à mãe.Pyotr já aguardava no dvor, rígido numapele elegante e botas bordadas. A esposade Kolya tinha vindo com os filhos; opequeno sobrinho de Vasya, Seryozha,corria por ali, aos gritos. Uma grandemancha já arruinava sua camisade linho.Padre Konstantin ficou ao lado, emsilêncio.–Tempoesquisitopraumcasamento–

disse Alyosha baixinho para Vasya,chegandoaoseu lado.–Umverãosecoeuma colheita minguada. – Seu cabelocastanho estava limpo, a barba curtapenteada com óleo perfumado. A camisa

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bordadadeazulcombinavacomafaixaaoredordacintura.–Vocêestámuito linda,Vasya.– Não me faça rir – a irmã retorquiu.

Maisséria,acrescentou:–É…eopaisenteisso.–Defato,Pyotrpareciajovial,alinhaentresuassobrancelhasestavanítida.–Eleparece alguém destinado a uma missãodesagradável.Deveestábemdesesperadopramemandarembora.Ela tentou fazer uma brincadeira com

isso,masAlyoshaolhouparaelaemrápidoentendimento.–Eleestátentandotemanterasalvo.–Eleamavaanossamãeeeuamatei.Alyoshaficouquietoporuminstante.–Vocêéquemdiz.Mas, falando sério,

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Vasochka, ele está tentando te manter asalvo. Os cavalos estão com a pelagemcomopenugemdepato,eosesquilosaindaestãoàsolta,comendocomosesuasvidasdependessem disso. Vai ser um invernodifícil.Um cavaleiro entrou pelo portão da

paliçada e galopou em direção a casa. Alama voou em grandes arcos da parteinferiordos cascosdo seucavalo.Estacouderrapando e pulou da sela. Era umhomem de meia-idade, não alto, mas decompleição larga, envelhecido, barbacastanha. Um toque de juventudeirrefreável espreitava ao redor da boca.Tinha todos os dentes, e o sorriso eraluminosocomoodeummenino.Fezuma

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mesuraparaPyotr.– Não estou atrasado, espero, Pyotr

Vladimirovich?–perguntou,rindo.Osdoishomenstrocaramumapertode

braço.Não é de estranhar que ele tenha

ultrapassado Kolya, Vasya pensou. KyrilArtamonovich cavalgava o cavalo jovemmais magnífico que ela jamais vira. AtéMetel, um príncipe entre os cavalos,parecia grosseiro perto da perfeiçãovigorosadogaranhãoruão.Quispassarasmãos sobre as patas do potro, sentir aqualidadedosossosemúsculos.–Eudisseaopaiqueestaeraumamá

ideia–sussurrouAlyoshaemseuouvido.–Oquê?Eporquê?–perguntouVasya,

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preocupadacomocavalo.–Casarvocêtãocedo.Porqueseespera

queasdonzelastímidasolhemcomcobiçaparaoslordesquedisputamsuamão,nãoparaseuslindoscavalos.Vasyariu.Kyrilfaziaumamesuraparaa

pequena Irina com uma cortesiaexagerada.– Um cenário rústico, Pyotr

Vladimirovich,paraencontrartaljoia–eledisse. – Pequena campânula branca, vocêdeveriairparaosuleflorescerentrenossasflores.ElesorriueIrinaficouruborizada.Anna

olhouparaafilhacomcertacomplacência.Kyrilvoltou-separaVasyacomosorriso

fácilaindanoslábios.Osorrisofoi-seassim

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queaviu.Vasyapensouqueeledevia terse desagradado com sua aparência;levantou o queixo em leve desafio.Tantomelhor. Encontre outra mulher, se eu lhedesagrado. Mas Alyosha entendeu muitobemoolharprofundo.Vasyaolhavaumapessoadiretamentenorosto;pareciamaisuma potranca indomada do que umamenina criada num lar, e Kyrilcontemplava-afascinado.Inclinouacabeçaparaela,osorrisomaisumavezbrincandonoslábios,masnãoeraomesmoquederaparaIrina.–VasilisaPetrovna.Seuirmãodisseque

vocêeralinda.Vocênãoé.–Elaenrijeceueelealargouosorriso.–Vocêémagnífica.–Osolhosdelepercorreram-nadotoucado

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atéospéscalçados.Aoladodela,amãodeAlyoshafechou-

senumpunho.– Ficou louco? – disse Vasya entre os

dentes. – Ele tem o direito. Estamoscomprometidos.AlyoshaolhavaKyrilcommuitafrieza.– Este é meu irmão – disse Vasya às

pressas.–AlekseiPetrovich.–Prazeremconhecê-lo–cumprimentou

Kyril,bem-humorado.Eraquasedezanosmaisvelho.SeusolhospercorreramVasyamaisumavez,lentamente.A pele dela pinicava sob as roupas.

PodiaouvirAlyosharangendoosdentes.Naquelemomento,houveumbufo,um

grito e um chapinhar. Todos se viraram.

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Seryozha, sobrinho de Vasya, tinha seesgueirado para o lado não visível dogaranhão vermelho de Kyril e tentadosubirnasela.Vasyaidentificou-secomele,ela já queria montar no potro vermelho,masopesoinesperadotinhafeitoojovemgaranhão empinar, com o olhar inquieto.Kyril correu para pegar a rédea do seucavalo. Pyotr levantou o neto da lama edeu uma bofetada em sua orelha. Nessemomento,Kolyaentrounopátioagalope,e sua chegada acabou com a confusão.AmãedeSeryozhalevouomeninoembora,aos berros.Ao longe na estrada, surgiu aprimeira carroça do restante do grupo,vívida contra a floresta cinzenta dooutono. As mulheres entraram

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rapidamente em casa, para servir arefeiçãodomeio-dia.– É bem natural que ele prefira Irina,

Vasya–disseAnna,enquantoelaslidavamcomumaimensapaneladecozido.–Umcachorro vira-lata jamais será igual a umde raça pura. Pelo menos sua mãe estámorta, o que torna ainda mais fácilesquecerseusinfelizesantepassados.Vocêé forte como um cavalo; isso conta paraalgumacoisa.O domovoi saiu sorrateiro do forno,

tremeluzindo, mas determinado.Disfarçadamente, Vasya havia derrubadoumpoucodehidromelparaele.–Veja,madrasta–disseVasya.–Aquilo

éogato?

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Anna olhou e seu rosto ficou cor deargila.Oscilouondeestava.Odomovoifez-lheumacareta,eeladesmaiounamesmahora. Vasya desviou-se, agarrando comforçaapanelaescaldante.Salvouocozido.Mas não se poderia dizer o mesmo deAnna Ivanovna. Seus joelhos falsearam eela bateu nas pedras do forno com umestalidosatisfatório.

– Você gostou dele, Vasya? – Irinaperguntounaquelanoite,nacama.Vasya estava semiadormecida. Ela e

Irinatinhamselevantadoantesdosolparasearrumarem,eafestaforaatétarde.Kyril

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ArtamonovichhaviasesentadoaoladodeVasyaebebidodasuataça.Seuprometidotinhamãoscarnudaseumamaneiraderirquepareciafazerasparedestremerem.Elagostou do tamanho dele, mas não dainsolência.– É um homem de bom tamanho –

Vasya disse, mas desejou por todos ossantosqueeledesaparecesse.–Eleébonito–concordouIrina.–Tem

umsorrisobom.Vasya virou-se na cama, franzindo o

cenho.EmMoscou,nãoerapermitidoqueas meninas se misturassem com ospretendentes, mas as coisas eram maislivresnonorte.–Podeserquetenhaumsorrisobom–

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elafalou–,masseucavalotemmedodele.Quandooentusiasmodafestadiminuiu,

elahaviaescapadoatéacocheira.Opotrode Kyril, Ogon, fora colocado em umabaia.Nãoeraconfiávelemumpasto.Irinariu.– Como é que você sabe o que um

cavalopensa?– Eu sei – respondeu Vasya. – Além

disso, ele é velho, passarinho. Dunya dizqueestábeirandoostrinta.–Masérico.Vocêvai ter joiasecarne

todososdias.–Então,casevocêcomele–disseVasya,

paciente,cutucandoairmãnoestômago.–Evocêvai ficargordacomoumesquiloevaisesentarodiatodoemcimadoforno,

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costurando.Irinariu.–Pode ser que a gente se veja quando

formos casadas, se nossos maridos nãomoraremmuitolonge.– Tenho certeza que não vão – disse

Vasya.–Vocêpodeguardarumpoucodassuas carnes gordas pra mim, quando euvier esmolar com meu marido-mendigo,enquanto você vai estar casada com umgrandelorde.Irinavoltouarir.–Masévocêquemvaisecasarcomum

grandelorde,Vasya.Vasya não respondeu. Não tornou a

falar. Por fim, Irina desistiu. Enroscou-sena irmã e adormeceu. Mas Vasya

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permaneceu muito tempo acordada. Eleencantouaminhafamília,masseucavalotemeasuamão.Cuidadocomosmortos.Vaiseruminvernodifícil.Vocênãodevedeixarafloresta.Os pensamentos fluíam feito água, e elaestavasendolevadapelacorrente.Maserajovem e estava cansada, e finalmente elatambémvirou-senacamaeadormeceu.

Os dias passaram-se numa sucessão dejogos e comemorações. KyrilArtamonovichserviuavasilhadeVasyanojantar e a provocou na porta da cozinha.Seucorpoexalavaumcaloranimal.Vasyairritou-seao sedescobrir corando sob seu

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olhar.Ànoite, ficava acordada, pensandoqualseriaasensaçãodetodoaquelecalorentreassuasmãos.Masarisadadelenãoincluía os olhos. O medo aflorava emmomentos estranhos, para agarrá-la pelagarganta.Osdias foramsepassandoeVasyanão

conseguiaseentender.Vocêprecisasecasar,asmulheresadvertiam.Todasasmeninassecasam.Pelomenoselenãoévelhoe,alémdisso,ébem-apessoado.Então,porquetermedo?MasVasya tinhaeevitavaonoivosemprequepodia, andando de lá para cá, umpassarinhonumagaiolaqueseencolhia.– Por quê, pai? – perguntou Alyosha a

Pyotr,nãopelaprimeiravez,no iníciodemaisumjantarbarulhento.Asalalongae

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pouco iluminada recendia a peles,hidromel, carne assada, sopa ehumanidade suada.Okasha circulava emuma grande vasilha; o hidromel eraesvaziado e reabastecido. Seus vizinhosentulhavam a sala. A casa agora estavatransbordando,eosvisitantesentulhavamascabanasdoscamponeses.– Faltam três dias para o casamento

dela. Precisamos homenagear nossoconvidado–dissePyotr.– Por que ela está se casando agora? –

retorquiu o filho. – Ela não pode esperarumano?Porquedepoisdeum invernoede um verão difíceis, precisamosdesperdiçar comida e bebida com estaspessoas?–Seugestoabarcoua longasala,

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onde seus convidados acabavamafoitamente com o resultado do trabalhodeumverão.–Porqueépreciso–Pyotrreplicou.–Se

querserdealgumautilidade,convençasuairmã maluca a não castrar o marido nanoitedenúpcias.–EsseKyriléumtouro–Alyoshadisse

de forma seca. – Teve cinco filhos comcamponesase achanormal flertar comasesposas dos fazendeiros enquanto sehospedaemsuacasa,nadamenosdoqueisso.Seaminhairmãacharcertocastraromarido, pai, terá razão, e eu não adissuadirei.Como que por um acordo não

verbalizado, eles olharam para onde o

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casal em questão estava sentado, lado alado. Kyril falava com Vasya com gestoslargoseimprecisos.Elaolhava-ocomumaexpressão que deixou Pyotr e Alyoshanervosos.Kyrilnãoparecianotar.–Eláestavaeu,sozinho–Kyrildissea

Vasya. Reabasteceu a taça deles,derrubando um pouco. Seus lábiosdeixaramumcírculodegorduraao redorda borda. – Minhas costas estavamencostadas em uma pedra, e o javaliinvestia. Meus homens haviam sedispersado, com exceção do que tinhamorrido, exibindo o grande buracovermelho.Esta não era a primeira narrativa

destacando o heroísmo de Kyril

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Artamonovich.AmentedeVasyacomeçoua divagar. Onde está o padre? PadreKonstantinnãocompareceraàfestaenãoeradoseufeitioficaràparte.–Ojavaliveiomepegar–disseKyril.–

Seuscascossacudiramaterra.EncomendeiminhaalmaaDeus.E morreu ali com sangue na boca, Vasya

pensou, desgostosa. Para mim teria sido amaiorsorte.Elapousouamãonoseubraçoeolhou

paraelecomumaexpressãoqueesperavaserpiedosa.–Chega.Nãosuportomaisouvir.Kyril olhou para ela, desconcertado.

Vasyaestremeceudospésàcabeça.– Não suporto saber do resto. Tenho

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medodedesmaiar,KyrilArtamonovich.Kyrilpareceuatônito.–Dunya tem nervosmuitomais fortes

doqueeu–disseVasya.–Achoquevocêdeveriaterminarahistóriapertodelaparaela escutar. – Não havia nada de erradocom os ouvidos de Dunya (ou com osnervos de Vasya, por falar nisso); a velhasenhora lançou um olhar de resignaçãopara o alto e outro de advertência paraVasya.Masestaestavadonadasituação,emesmooolharfuriosodopai,dapontadamesa, não a derrubou. – Agora – Vasyalevantou-secomumagraçateatralepegouum pão da mesa –, se me der licença,precisocumprirumdeverdecaridade.Kyril abriu a boca em protesto, mas

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Vasyafezumareverênciaapressada,enfiouopãonamangaesaiudesabalada.Foradosaguão lotado, a casaestava fria equieta.Porumlongomomento,elaficounodvor,respirando.Depois,saiuearranhouaportadopadre.– Entre – disse Konstantin, depois de

uma pausa gélida.O quarto todo pareciatremular com a luz da vela. Ele pintavajunto ao lume. Um rato havia roído acôdeaquerestavaintocadaaoseulado.Opadre não se virou quandoVasya abriu aporta.–Abênção,padre–eladisse.–Trouxe

pãoparaosenhor.Konstantinenrijeceu-se.–VasilisaPetrovna.–Pousouopincele

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fez o sinal da cruz. – Que o Senhor aabençoe.– O senhor está doente para não ter

vindofestejarconosco?–perguntouVasya.–Estoudejejum.–Émelhor comer.Nãohaverá comida

comoestadurantetodooinverno.Konstantin não disse nada. Vasya

substituiuacôdearoídapelopãonovo.Osilêncio alongou-se, mas ela não foiembora.–Porqueosenhormedeuasuacruz?–

perguntouela,abruptamente.–Depoisdonossoencontronolago?Eletravouoqueixo,masnãorespondeu

de imediato. Na verdade, mal sabia omotivo. Porque ela o deixara comovido;

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porque esperava que o símbolo pudessealcançá-la, quando ele não conseguia.Porquequeriatocarnasuamãoeolharemseurosto,perturbá-la,talvezvê-lainquietae de sorriso insinuante como as outrasmeninas, ajudá-lo a esquecer seu terrívelfascínio.Porqueelejamaispoderiavoltaraolhar

acruzsemveramãodelaàsuavolta.– A Cruz Sagrada vai colocá-la no

caminhocerto–disseKonstantin,porfim.–Vai?O padre ficou calado. Agora, à noite,

sonhava com a mulher do lago. Nuncaconseguia visualizar seu rosto, mas, emseussonhos,seucabeloerapreto,movia-secom rapidez e escorria junto a sua carne

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nua.Desperto, Konstantin passava longashoras rezando, tentando livrar-se daimagem.MasnãoconseguiaporquetodasasvezesviaVasya,sabiaqueamulherdosseus sonhos tinha os olhos dela. Estavaassombrado, envergonhado. A culpa eradelaportentá-lo,masemtrêsdiaselairiaembora.–Porqueestáaqui,VasilisaPetrovna?–

falou com a voz alta e irregular, e ficouirritadoconsigomesmo.A tempestade está vindo, Vasya pensou.

Cuidado com os mortos. Primeiro o medo,depois o fogo, depois a fome. Culpa sua.Tínhamos féemDeusantesdevocêapareceretambém fé nos espíritos domésticos, e tudocorriabem.

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Seopadre fosseembora,então, talvez,suagenteestariamaisumavezasalvo.– Por que o senhor fica aqui? – Vasya

perguntou.–Osenhorodeiaoscampos,afloresta e o silêncio. Odeia nossa igrejarude e simples. Mas continua aqui.Ninguémoculpariaporirembora.Um leve rubor percorreu as maçãs do

rostodeKonstantin.Suamãoremexeuastintas.–Tenhoumamissão,VasilisaPetrovna.

Preciso salvar vocês de vocês mesmos.Deuspuneaquelesqueseperdem.– Uma missão de foro íntimo – disse

Vasya–aserviçodoseuorgulho.Porquecabeao senhordizerqual é avontadedeDeus?Aspessoasjamaisovenerariam,seo

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senhornãoastivessedeixadocommedo.–Você é uma camponesa ignorante.O

quevocêsabe?–replicouKonstantin.– Acredito no que está evidente aos

meusolhos–Vasyadisse.–Tenhovistoosenhorfalar.Tenhovistominhagentecommedo.Eosenhorsabequeestoufalandoaverdade,estátremendo.Eletinhapegadoumavasilhadecornão

totalmente misturada. A cera morna dedentro tremeu. Konstantin soltou-aabruptamente.Ela chegou mais perto, e ainda mais

perto.Aluzdavelaressaltouossalpicosdeouroemseusolhos.Oolhardelevagouatéasuaboca.Demônio,desapareça.Masavozdela era a de uma menina com um leve

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toquesuplicante.– Por que não vai embora? Para

Moscou, ouVladimir ou Suzdal? Por quepermanecer aqui? O mundo é grande enossocantoémuitopequeno.– Deus me deu uma missão. – Ele

arrancoucadapalavra,quasecuspindo.– Somos homens e mulheres – ela

retorquiu.–Nãosomosumamissão.VolteparaMoscouesalveaspessoasdelá.Elaestavaparadapertodemais.Amão

dele disparou e atingiu-a no rosto. Vasyatropeçou para trás, a mão amparando aface. Ele deu dois passos rápidos para afrente, demaneira a baixar os olhos paraolhá-la,maselapermaneceufirme.Amãodele levantou-se para golpear mais uma

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vez,maselerespiroufundoesecontrolou.Estavaalémdelebaternela.Queriaagarrá-la, beijá-la, machucá-la, não sabia o quemais.Demônio.– Vá embora, Vasilisa Petrovna – ele

disseentreosdentes.–Nãopenseemmefazersermão.Enãovolteaqui.Ela recuoupara aporta.Mas sevoltou

com a mão no trinco. Sua trançaacompanhavaalinhadagarganta.Amarcaescarlate deixada pela mão destacava-sefuriosaemseurosto.– Como quiser – disse ela. – É uma

missão cruel amedrontar as pessoas emnome de Deus. Deixo em suas mãos. –Hesitoueacrescentou,bembaixinho:–Noentanto,Batyushka,eunãotenhomedo.

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Depoisqueela se foi,Konstantinpôs-seaandar de um lado a outro. Sua sombrapulava diante dele, e a mão, que tinhabatido na menina, queimava. A fúriafechava sua garganta.Ela vai embora antesda neve. Vai embora e estará acabado:minhavergonhaemeu fracasso.Masémelhordoquetê-laaqui.Avelapingavaemfrenteaosícones,ea

chamaemitiasombrasirregulares.Elavaiembora.Temqueir.Avozveioda terra,dachamadavela,

do próprio peito. Era suave, clara eradiante.

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– A paz está contigo – disse ele. –Emboraeuvejaquevocêestáperturbado.Konstantinficouparalisado.–Quemestáaí?– … Querendo contra a vontade e

detestandooqueama.–Avozsuspirou.–Ah,vocêélindo.–Quemestáfalando?–disseKonstantin,

irritado.–Estácaçoandodemim?–Eunãocaçoo–veioarespostapronta.

–Souumamigo,ummestre,umsábio.–Avozvibroucomcompaixão.Opadrevirou-se,àprocura.–Apareça–eleordenou, forçando-sea

ficarparado.–Mostre-se.–Oqueéisto?–Agora,avoztinhaum

toquederaiva.–Dúvidas,meuservo?Não

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sabequemsoueu?O quarto estava vazio, exceto pela

cama, pelos ícones e pelas sombrasreunidas nos cantos. Konstantin olhou-asfixo até seus olhos arderem.Ali…O queeraaquilo?Umasombraquenãosemexiacomaluzdofogo.Não,aquelaeraapenasa sua sombra, projetada pela vela. Nãohavia ninguém lá fora, ninguém atrás daporta.Então,quem…?O olhar de Konstantin buscou as

imagens. Olhou profundamente nos seusestranhos rostos solenes. O próprio rostomudou.– Pai – sussurrou ele. – Senhor. Anjos.

Depoisdetodooseusilêncio,osenhorporfimfalacomigo?–Todososseusmembros

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tremiam. Aguçou todos os sentidos,desejandoqueavozvoltasseafalar.–Podeduvidardisso,meufilho?–disse

avoz,novamentegentil.–Vocêsemprefoimeuservoleal.O padre começou a chorar, de olhos

abertos,emsilêncio.Caiudejoelhos.–Hátemposqueoobservo,Konstantin

Nikonovich–prosseguiuavoz.–Vocêtemtrabalhadocomafincoemmeunome.Masagora existe estamenina que o tenta e odesafia.Konstantinjuntouasmãos.– Minha vergonha – disse,

ardentemente. – Não consigo salvá-lasozinho.Estápossuída.Éumadiaba.Rezopara que em sua sabedoria o senhor lhe

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apontealuz.–Elaaprenderámuitaslições–replicou

avoz.–Muitas…muitas.Nãotenhamedo.Estouaoseuladoevocênuncamaisestarásó.Omundocairáaseuspéseconheceráosmeusmilagres através dos seus lábios,porquevocêtemsidoleal.Pareciaqueastrombetasdeveriamtocar

quando aquela voz falava. Konstantinestremeceu de prazer, as lágrimas aindacaindo.–Apenasnuncameabandone,Senhor–

ele pediu. – Sempre fui fiel. – Fechou ospunhos com tal força que suas unhasfizeramburacosnapeledasmãos.–Sejaleal–disseavoz–,eeujamaiso

abandonarei.

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UMCAVALOCHAMADOFOGO

KYRIL ARTAMONOVICH AMAVA,

ACIMADETUDO,CAÇAROS JAVALISDEPRESASlongasdonorte,maisvelozesdo que os cavalos. Na véspera do seucasamento,convocouumacaçadaajavali.– Vai fazer passar o tempo – disse a

Pyotr,dandoumapiscadaparaVasya,quenãodissenada.Pyotr não fez objeção. Kyril

Artamonovich era um caçador famoso, eno outono a carne de porco alimentado

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com castanhas era uma iguaria.Umbompernil honraria o jantar de casamento etrariacorparaorostopálidodasuafilha.A casa toda se levantou antes do

amanhecer.As lançasparacaçar javalis jáestavamdispostasemumapilhareluzente.Os cachorros tinham ouvido o som deafiaçãoepassaramanoitetodaandandoeuivandonoscanis.Vasya levantou-se antes de todos. Não

comeu, mas foi até a cocheira, onde oscavalos escavavamansiosos, por causadosom dos cachorros lá fora. O jovemgaranhãoruãodeKyriltremiaacadanovosom.Vasyafoiatéeleeencontrouovazilaali, empoleirado nas costas do potro.Sorriu para a criaturinha. O garanhão

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resfolegouparaelaeempinouasorelhas.–Vocêémal-educado–Vasyalhedisse.

–MassuponhoqueKyrilArtamonovichtetraganumcortado.Opotrotrouxeasorelhasparaafrente.

Vocênãopareceumcavalo.Vasyasorriu.–GraçasaDeus.Vocênãoquerircaçar?O cavalo refletiu. Gosto de correr. Mas o

porcocheiramal,eohomemvaibateremmim,seeu ficarcommedo.Prefeririapastaremumcampo.Vasya pousou a mão reconfortante no

pescoço do cavalo. Kyril ia acabarestragando aquele potro maravilhoso –pouco mais do que um potrilho – secontinuassedaquelejeito.Opotrocutucou

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seu peito com o focinho. Em seu vestidopingaramáguaebabaverde.–Agora,pareçomaisumespantalhodo

queonormal–Vasyaobservouaninguémem particular. – Anna Ivanovna vai ficarencantada.EacrescentouparaOgon:–Oporconãovai temachucarsevocê

forrápido,evocêéacoisamaisrápidadomundo, meu lindinho. Não precisa termedo.Opotronãodissenada,mascolocoua

cabeçaemseusbraços.Vasyaagradousuasorelhassedosasesuspirou.Nãohavianadaque quisessemais do que uma cavalgadadesembestada pela floresta de outono,preferivelmente montada no Ogon de

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pernas longas, que parecia poderultrapassar uma lebre em campo aberto.Em vez disso, deveria ir para a cozinha,amassar pão e ouvir as fofocas de umbando de mulheres visitantes. Tudo issoenquanto Irina exibia suas váriasperfeições e Vasya tentava não queimarnada.– Normalmente, eu chamaria uma

donzelade idiotaporchegartãopertodomeucavalo–disseumavozàssuascostas.Ogon jogou a cabeça para cima, quasequebrando o nariz de Vasya. –Mas vocêtemjeitocomanimais,VasilisaPetrovna.–Kyril Artamonovich aproximou-se deles,sorrindo. Pegou o potro pelo cabresto. –Calma, seu maluco. – O potro girou os

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olhos,masficouparado,tremendo.– Saiu cedo, meu lorde – disse Vasya,

recuperando-se.–Assimcomovocê,VasilisaPetrovna.A respiração deles formava nuvens; a

cocheiraestavagelada.– Tem muita coisa pra ser feita –

respondeu Vasya. – As mulherescavalgarãoparaencontrarvocêsdepoisdacaçada,seodiaestiverbom.Ehojeànoiteteremosacomemoração.Elesorriu.– Não precisa se desculpar, devushka.

Achobomqueumameninaacordecedoeseinteressepelosanimaisdeumhomem.–Ele tinha uma covinha em um lado daboca. – Não contarei ao seu pai que te

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encontreiaqui.Vasyarecuperouacompostura.–Conte,sequiser–disseela.Elesorriu.–Gostodasuaessência.Eladeudeombros.–Suairmãémaisbonitadoquevocê–

acrescentou ele, pensativo. – Daqui apoucosanoselaseráumaesposafácil,umaflorzinha. Não uma menina que váperturbar as noites de um homem. Masvocê…–Kyril estendeu o braço, puxou-aparaeleecorreuamãopelassuascostas,numa espécie de avaliação. – Ossosdemais,masgostodeumameninaforte.Evocê nãomorrerá de parto. – Lidou comela confiante, com a expectativa de ser

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obedecido. –Vocêvai gostar deme fazerfilhos?Beijou-a antes que ela se desse conta,

enquantoaindaestavadesconcertadacomaforçadassuasmãos.Seubeijoeracomoseu toque: firme, com uma espécie deprazercompetente.Vasyaempurrou-osemconseguir grande coisa. Ele levantou seurosto,afundandoosdedosnopontomacioatrásdomaxilar.Acabeçadelaflutuou.Elecheirava a almíscar, hidromel e cavalos.Tinhaamãomuitogrande,espalmadaemsuas costas. A outra deslizava sobre seuombro,opeitoeacoxa.O que quer que tenha encontrado,

agradou-lhe.Quandoasoltou,opeitodelearfava, e suas narinas alargaram-se como

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as de um garanhão. Vasya ficou parada,engolindo sua náusea. Olhou-o direto norosto. Para ele, sou uma égua, pensourepentinaeclaramente.Eseumaéguanãosesubmeteraosarreios,eleadomará.Por um segundo, o sorriso de Kyril se

desfez. Ela não pôde saber o quanto elehavia se inteirado do seu orgulho edesprezo. Seus olhos vagaram mais umavezparaabocadela,aformadoseucorpo,e ela soube que ele também viu o seumedo. O breve desconforto deixou o seurosto. Tentou alcançá-la novamente, masVasyafoimaisrápida.Tirouamãodeledelado,correudacocheiraenãoolhouparatrás.Quandochegouàcozinha,estavatãopálidaqueDunyafezcomquesesentasse

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aoladodofogoebebessevinhoquenteatéque seu rosto recuperasse um pouco decor.

Durante todo aqueledia,umabruma friaergueu-se da terra, circulando pelasárvores.Acaçadafezumamortepertodomeio-dia. Vasya, manejando uma pá depão com soturna competência, ouviu, aolonge, o grito do animal agonizante.Combinavacomseuestadodeespírito.Asmulheresdeixaramacasanummeio-

diacinzentocomhomensparaconduziroscarregados cavalos de carga. Konstantincavalgou com eles, o rosto pálido e

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exaltado à luz do outono. Homens emulheres olhavam-no com reverência efurtiva admiração. Vasya, evitando opadre,ficoucomIrinapróximaaofinaldacavalgada, segurando a passada longa dasuaéguaparaigualaraopôneideIrina.Abrumadominavaaterra.Asmulheres

reclamaramdo frioepuxaramsuascapasmaisparajuntodocorpo.Subitamente, Mysh empinou-se. Até o

calmoanimaldeIrinaassustou-se,fazendoacriançadarumgrito sufocadoeagarraras rédeas.Rapidamente,Vasyaacalmouaégua e segurou o cabresto do pônei.Acompanhou as orelhas deMysh com osolhos.Umacriaturadepelebrancaestavaentreduasbétulasdetroncosaltos.Tinha

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o formato de um homem e olhos claros.Seucabeloeraoemaranhadodavegetaçãorasteiradafloresta.Nãoprojetavasombra.–Estátudobem–VasyadisseaMysh.–

Aquelealinãocomecavalos, sóviajantesidiotas.Aéguagirouasorelhas,masrecomeçou

aandar,hesitante.– Leshy, lesovik – murmurou Vasya ao

passarem. Fez uma mesura dobrando otronco. Ele era o guardião da floresta, oleshy, e raramente chegava tão perto doshomens.– Gostaria de falar com você, Vasilisa

Petrovna.–Avozdoguardiãoda florestaeraosussurrodosramosaoamanhecer.–Logo–elarespondeu,dominandosua

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surpresa.Aoseulado,Irinaperguntoucomavoz

estridente:–Comquemvocêestáfalando,Vasya?– Com ninguém. Comigo mesma –

retorquiuVasya.Irina ficou quieta. Vasya suspirou

internamente;Irinacontariaparaamãe.Encontraram os caçadores um pouco

além na floresta, relaxando sob umagrande árvore. Já haviam pendurado ojavali, uma fêmea, pelos jarretes, em umgalho maciço. Sua garganta cortadapingava sangue emumbalde.Na florestaressoavamrisadaseostentação.Seryozha, que se considerava bem

crescido, com grande dificuldade fora

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convencido a cavalgar com as mulheres.Agora, pulava do seu pônei e corria paraver, de olhos arregalados, o porcodependurado. Vasya desceu das costas deMysh e deu as rédeas na mão de umempregado.–Conseguimosumbeloanimal,nãoé,

Vasilisa Petrovna? – A voz veio do seucotovelo.Vasyavirou-se.O sangueestavaendurecidonaslinhasdaspalmasdeKyril,masseusorrisomolequeerainabalável.–Acarneserábem-vinda–disseVasya.–Vouguardaro fígadopravocê.–Seu

olhareraespeculativo.–Vocêpoderiadarumaengordada.– Você é generoso – agradeceu Vasya.

Inclinou a cabeça e saiu, como uma

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donzela modesta demais para falar. Asmulheres estavam tirando uma refeiçãofria das trouxas que haviam sido levadas.Comcautela,Vasyafoiseaproximandoaospoucosdeumbosquedebétulas,depoisseenfiouentreasárvoresedesapareceu.Não viu Kyril sorrir consigo mesmo e

segui-la.

Os leshiye eram perigosos. Quandoqueriam, poderiam conduzir os viajantesemcírculosatéelessucumbirem.Àsvezes,osviajanteseramespertosobastanteparacolocar suas roupas ao contrário, comoproteção,masnãoeraonormal.Amaioria

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morria.Vasya encontrou-o no centro de um

bosquezinhodebétulas.Oleshyolhouparaelacomolhosfaiscantes.–Qualéanovidade?–perguntouVasya.Oleshyemitiuumrangidodedesprazer.– Sua gente vem com uma barulheira

para assustar a minha floresta e matarminhas criaturas. Eles costumavam pedirminhaautorização.–Pedimossuaautorizaçãonovamente–

disse Vasya rapidamente. Eles já tinhamproblemas suficientes sem irritar oguardião da floresta. Ela desamarrou seutoucadobordadoeocolocounamãodele.Ele o revirou com seus dedos longos degravetos. – Desculpe-nos – acrescentou

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Vasya.–E…nãomeesqueça.–Eupediriaomesmo–falouoguardião

da floresta, tranquilizado. – Estamosdesvanecendo, Vasilisa Petrovna. Até eu,queassistiaestasárvorescresceremdesdemudas.Suagentevacila,eassimoschyertydefinham. Se o Urso vier agora vocêsestarão desprotegidos. Haverá umaavaliação.Cuidadocomosmortos.–Oqueissoquerdizer:“cuidadocomos

mortos”?Oleshyabaixouacabeçaencanecida.–Trêssinaiseosmortossãooquarto–

eledisse.Depoisdesapareceuetudooqueela ouviu foram os passarinhos cantandonaflorestafarfalhante.–Chega disso –murmurouVasya, não

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esperando realmenteumaresposta.–Porque nenhum de vocês pode falarclaramente?Doquetêmmedo?KyrilArtamonovichsurgiuporentreas

árvores.Vasyaretesouaespinha.–Estáperdido,meulorde?Elefezummuxoxo.– Não mais do que você, Vasilisa

Petrovna. Nunca vi uma menina andarcomtantalevezanafloresta.Masvocênãodeveriasairdesprotegida.Elanãodissenada.–Caminhecomigo.Nãohaviacomorecusar.Andaramlado

a lado pela argila densa e molhada,enquantoasfolhascaíamàsuavolta.

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– Você gostará das minhas terras,Vasilisa Petrovna – Kyril afirmou. – Oscavalos correm por campos maiores doque a vista consegue enxergar, e osmercadoresnos trazemjoiasdeVladimir,acidadedaMãedeDeus.Vasyafoi,então,tomadaporumavisão,

não da bela casa de um lorde,mas de simesma em um cavalo a galope, em umaterra sem limites de floresta. Por ummomentoficouparalisadaedistante.Kyrillevantou-seeacariciousualongatrançanoponto em que repousava sobre o seio.Voltandoasimesmanumsobressalto,elaa livrou das suas garras. Ele pegou seucabelo num punho, sorrindo, e a trouxemaisparaperto.

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–Venha,deixedisso.–Elarecuou,maselefoiatrás,enrolandosuatrançanamão.–Vouteensinaramequerer.–Abocadeleprocurouadela.Umgritoagudoatravessouosilênciodo

meiodatarde.Kyril soltou-a. Houve um lampejo

marrom entre as árvores, e Vasya saiucorrendo amaldiçoando suas saias. Mas,mesmo dificultada, ela era mais leve doqueograndalhãoatrásdela.Arremessou-se contornando um azevinho e estacouhorrorizada. Seryozha estava agarrado aopescoço de Mysh, e a égua castanhapinoteavaegiravacomoumpotrilho.Umcírculo branco rodeava seus olhosfrenéticos.

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Vasyanãoconseguiuentenderaquilo.Omeninojátinhamontadonaéguaantes,eMysheramuitosensata.Masagorapulavacomo se houvesse três diabos montadosem suas costas. Irina estava grudada emuma árvore na beira da clareira, asmãosnaboca.– Eu disse pra ele – ela lamentava. –

Disse que ele estava sendomau,mas eledissequejáeragrande,quepodiafazeroque quisesse. Ele queria montar noscavalos.Nãoescutava.A clareira de amieiros estava cheia de

sombras, grandes demais para a luz domeio-dia. Uma delas pareceu inclinar-separa a frente. Por um segundo, Vasyapoderia jurar ter visto o sorriso de um

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loucoeumúnicoolhopiscante.–Mysh, fiquequieta – ela disse parao

animal.Aéguaparoude repente,orelhasempinadas.Houveumafraçãodesegundodecalmaria.–Seryozha–disseVasya.–Agora…Kyril chegou pesadamente pela

vegetaçãorasteira.Nomesmoinstante,assombras pareceram pular de três lugaresaomesmo tempo.Onervosismoda éguarecomeçou. Ela rodou e saiu desabalada.Suaslongaspernasafundavam-senatrilhada floresta e ela quase derrubou seucavaleiro em sua corrida louca entre asárvores. Seryozha berrava, mas aindaestava na sela, agarrado ao pescoço daégua.

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Emalgumlugar,alguémria.Vasya correu para os outros cavalos,

pegando sua faca de cinto. Kyril foi atrásdela,mas ela foimais rápida. Passou emdisparada por seu pai atônito e alcançouOgonantes.– O que você está fazendo?! – gritou

Kyril.Vasya não respondeu. O potro estava

amarrado,masacordafoicortadacomumgolpe, e comum salto ela se instalou emsuas costas nuas, os dedos enrolados nacrinavermelha.Ocavalodisparouemperseguição.Kyril

foideixadodebocaaberta.Vasyainclinou-separaafrente,inteirando-sedoritmodocavalo, os pés travados ao redor da sua

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barriga. Desejou que tivesse tido tempoparasedesembaraçardassuascamadasdesaias. Eles ventaram por entre as árvorescomo uma tempestade. Vasya abaixou-sebemsobreopescoçodocavalo.Umtroncocaído surgiu no caminho. Vasya respiroufundo. Ogon livrou-se da barreira com adestrezadeumveado.Elesirromperamparaforadaflorestae

entraram num terreno pantanoso a dezcorpos de distância da fugitiva.Milagrosamente, Seryozha continuavaagarrado ao pescoço deMysh.Não tinhamuita escolha; umaqueda emvelocidadeseria fatal, num percurso traiçoeiro comcentenasdetocossemiescondidos.Ogonassumiuumritmoconstante;era

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de longe o cavalo mais rápido, e a éguacorria em zigue-zagues apavorados,retorcendo-senumesforçoparaselivrardacriança. Vasya berrou para Mysh parar,mas a égua não ouviu ou não lhe deuatenção. Vasya gritou encorajandoSeryozha,masoventolevousuaspalavras.Ela e Ogon aos poucos venceram adistância. Dos lábios dos cavalos voavaespuma.Estavamchegandoaumavalanaextremidadedocampo,cavadaparaescoarágua da chuva da cevada. Mesmo queMysh pudesse saltar aquilo, Seryozhajamaisficarianassuascostas.VasyagritouparaOgon.Umasériedesaltosvigorososlevou-o a alcançar a fugitiva. A valaaproximava-serapidamente.Vasyaesticou

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obraçoparaosobrinho.– Solte, solte! – gritou, agarrando um

punhadodasuacamisa.Seryozha teve tempo para um olhar

cheiodepânico,eentãoVasyapuxou-odeuma só vez e o atirou de bruços sobre acernelha vermelha de Ogon. O meninotinhaumpunhadodecrinapretaagarradoemcadapunho.Simultaneamente,Vasyamudouopeso

doseucorpo,impelindoopotroavirar-seantesdabordaiminente.Dealgummodo,o garanhão conseguiu, juntando a anca edandoumaguinadadeladonumacorridaqueolevouparaleloàvala.Algunspassosdepois, deslizou numa paradaescorregadia, tremendodos pés à cabeça.

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Mysh não teve tanta sorte. Em pânico,acabou dentro da vala e agora estavaacabada,nofundo.Vasya escorregou das costas de Ogon,

cambaleando enquanto suas pernastentavam firmar-se sob ela. Puxou parabaixoosobrinhoquesoluçavaedeuumarápida examinadanele.Onariz e o lábioestavam ensanguentados por causa doombrodurocomoferrodogaranhão.– Seryozha – ela disse. – Sergei

Nikolaevich.Vocêestábem.Calma.Osobrinhosoluçava,tremiaeria, tudo

ao mesmo tempo. Vasya estapeou seurosto ensanguentado. Ele estremeceu eficou quieto, e ela o abraçou com força.Atrás deles veio o som de um cavalo

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fazendoesforço.–Ogon–disseVasya.Ogaranhãoestava

atrás dela, salpicado de espuma. – Fiqueaqui. –O cavalo contraiuumaorelha emconcordância.Vasya deixou o sobrinho ir e, meio

correndo, meio deslizando, chegou aofundo da vala. Mysh estava em trintacentímetros de água, mas Vasya nãoconsiderou isso. Ajoelhou-se ao lado dacabeça da égua, raiada de espuma.Milagrosamente,aspernasdoanimalnãoestavamquebradas.– Você está bem – Vasya cochichou. –

Vocêestábem.–Ela igualoua respiraçãoda égua uma vez e mais uma.Repentinamente, Mysh ficou calma sob

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sua mão ardente. Vasya levantou-se e seafastou.A égua recuperou-se, desajeitada como

um potro recém-nascido, e ficou em pécom as patas abertas. Vasya, tremendoagora como reação, passou os braços emvoltadopescoçodocavalo.–Boba–cochichouela.–Oquedeuem

você?Vi uma sombra, disse a égua. E tinha

dentes.Nãohouvetempoparamaisnada.Uma

confusão de vozes veio do alto da vala.Uma pequena avalanche de pedrasanunciou a chegada de KyrilArtamonovich.Myshrecuou.Kyrilolhavafixo.

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OrostodeVasyaardeu.– A égua levou um susto – disse às

pressas, agarrando o cabresto deMysh. –Você está cheirando a sangue, KyrilArtamonovich.Émelhorseafastar.Kyril não tinha intenção de escorregar

para dentro da lama e da água, masmesmo assim as palavras deVasya não oenterneceram.–Vocêrouboumeucavalo.Vasya teve a bênção de parecer

envergonhada.– Quem te ensinou a cavalgar desse

jeito?Vasya ficou quieta, avaliando sua

expressãohorrorizada.–Meupai.

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Seu noivo pareceu chocado, o que foigratificante.Elaseesforçouparasairdavala.Aégua

seguiu-a como um gatinho. A meninaparou no alto. Kyril lançou-lhe um olharduro.–Talvezeupossamontartodososseus

cavalos quando formos casados – Vasyadisse,inocentemente.Kyrilnãorespondeu.Vasya deu de ombros – e só então

percebeu o quanto estava cansada. Suaspernas se encontravam fracas como talosdejunco,eoombroesquerdo,odobraçousadoparapuxar Seryozhapara as costasdeOgon,doía.Um bando de cavaleiros corria pelo

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campo irregular. Pyotr conduzia-os nofirmeMetel.Os irmãosdeVasyavinhamlogoatrás.Kolyafoioprimeiroadescerdocavalo. Saltou e correu até o filho, queaindachorava.–Seryozha,vocêestábem?–perguntou

ele.–Synok,oqueaconteceu?Seryozha!–A criança não respondia. Kolya voltou-separaVasya.–Oqueaconteceu?Vasya não sabia o que dizer.Gaguejou

alguma coisa. Seu pai e Alyoshadesmontaram depois de Kolya. O olharurgente dePyotr passou rapidamente porVasya,Seryozha,OgoneMish.–Vocêestábem,Vasya?–perguntou.– Estou – Vasya conseguiu responder.

Corou. Agora, seus vizinhos, todos

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homens, chegavam a galope. Olhavamfixo. Vasya, subitamente, tomouconsciência, encolhendo-se,da sua cabeçadescoberta, das saias rasgadas e do rostosujo. Seu pai atravessou para tranquilizarKolya,queseguravaofilhoemlágrimas.Em sua missão desabalada, Vasya

deixara cair sua capa. Agora, Alyoshadesciadocavaloecolocavaasuasobreela.–Vamos,boba–disseele,enquantoela

prendia a capa, agradecida. – É melhorvocênãoficaràvista.Vasyaretomouseuorgulhoelevantouo

queixonumafraçãodeteimosia.–Nãoestouenvergonhada.Émelhorter

feito alguma coisa do que ver Seryozhamorto,comocrânioarrebentado.

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Pyotrouviuoqueeladisse.– Vá com seu irmão – rosnou,

acercando-se dela inesperadamente. –Agora,Vasya.Vasyaencarouopaieentão,semdizer

nada, deixou que Alyosha a ajudasse asubirnasela.Ummurmúriopercorreuosvizinhos. Todos olhavam avidamente.Vasya fechou os punhos e se recusou aabaixarosolhos.Mas os vizinhos não tiveram muito

tempo para ficar embasbacados. Alyoshapulou no cavalo atrás dela, incitou seuanimalesaiuagalope.– Você está envergonhado, Lyoshka? –

perguntouVasyacombastantedesprezo.–Vaime prender no porão, agora?Melhor

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nosso sobrinho morto do que euenvergonharafamília?– Não seja idiota – disse Alyosha,

secamente.–Istoterminarámaisrápidoseelesnãotiveremoseuvestidorasgadoparaficarencarando.Vasyanãodissenada.Com mais delicadeza, o irmão

acrescentou:–VoutelevaratéaDunya.Vocêparecia

prestesadesmoronarláondeestava.–Nãopossodizerquenão.–Avozdela

ficoumaisbranda.Alyoshahesitou.–Vasochka,oquevocêfez?Eusabiaque

vocêpodia cavalgar,mas…daquele jeito?Naquelepotrovermelhomaluco?

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–Oscavalosmeensinaram–Vasyadissedepoisdeumapausa.–Eucostumavalevá-losatéopasto.Não entrou em detalhes. Seu irmão

ficoucaladoporumbomtempo.–Nós teríamos trazido nosso sobrinho

mortoouquebrado,sevocênãootivessesalvado– ele disse, devagar. – Sei disso emesintoagradecido.Opai também,semdúvida.–Obrigada–Vasyasussurrou.–Mas–acrescentou, levemente irônico

–tenhomedodequesuatendênciasejaterumacabananamata,senãoquiserentrarpara um convento ou se casar com umfazendeiro. Seu comportamento deguerreiradissuadiunossovizinho.Kyrilfoi

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humilhadoquandovocêpegouseucavalo.Vasya riu, mas havia dureza em sua

risada.–Que bom – disse ela. – Salvei-me de

fugir antes do casamento. Preferiria mecasar com um camponês a casar comaqueleKyrilArtamonovich.Masopaiestábravo.Assim que a casa ficou à vista, Pyotr

surgiu cavalgando ao lado deles. Pareciaagradecido, exasperado, bravo e algumacoisa mais sombria. Poderia serpreocupação.Limpouagarganta.–Vocênãoestámachucada,Vasochka?Vasya não ouvia este tratamento

carinhosodoseupaidesdepequena.– Não – disse –, mas sinto ter te

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envergonhado,pai.Pyotr sacudiu a cabeça,mas não falou.

Houveumalongapausa.–Obrigado–disse,porfim.–Pelomeu

neto.Vasyasorriu.–DeveríamosficaragradecidosaOgon

–eladisse,sentindo-semaisanimada.–Eque Seryozha tenha tido a presença deespírito de se segurar por todo aqueletempo.Foram para casa em silêncio.

Rapidamente, Vasya retirou-se para seescondernacasadebanhosecolocarseusmembrosdoloridosnovapor.MasnaquelanoiteKyrilfoiatéPyotrno

jantar.

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– Pensei que estava recebendo umadonzela bem-educada, não uma criaturaselvagem.–Vasyaéumaboamenina–dissePyotr.

–Cabeçadura,masistopodeser…Kyrilriuentreosdentes.–Oquepoderiaseguraraquelamenina

no meu cavalo é magia negra, não umaartemortal.–Apenas força e impulsividade – disse

Pyotrcomcertodesespero.–Ela lhedaráfilhosfortes.– A que preço? – disse Kyril

Artamonovich, sombrio. – Quero umamulher em casa, não uma bruxa ou umespírito da floresta. Além disso, ela meenvergonhounafrentedetodososseus.

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E embora Pyotr tentasse argumentarcomele,nãoconseguiuinfluenciá-lo.Pyotr raramente batia nos filhos, mas,

quandoKyrilrompeuonoivado,bateuemVasyamesmoassim,emgrandeparteparaatenuarseumedoporela.Seráqueelanãopodefazeroquelhedizempelomenosumaveznavida?Elessóvêmbuscaradonzelaselvagem.Vasya aguentou aquilo com os olhos

secos e lhe lançou um olhar de censuraantesdesairandandoduro.Elenãoaviuchorandomaistarde,enrodilhadaentreospésdeMysh.Mas não houve casamento. Ao

amanhecer, Kyril Artamonovich foi-seemboraemseucavalo.

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UMHÓSPEDEPARA

OFIMDOANO

DEPOIS QUE KYRIL FOI EMBORA,ANNA IVANOVNA VOLTOU APROCURARomarido.Aslongasnoitesjáarrematavam os dias de outono; a casatoda se levantavanoescuroe ceavaà luzdo fogo. Naquela noite, Pyotr sentou-sealerta em frente ao forno. Seus filhos játinham se recolhido, mas lhe faltava osono. As brasas do fogo em combustão

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avermelhavam o cômodo. Pyotr olhava abocacintilante,pensandonafilha.Anna tinhaa costuraemseucolo,mas

nãocosturava.Pyotrnãolevantouosolhoseassimnãoviuorostodamulher,duroeexangue.– Então, Vasilisa não se casará – ela

disse.Pyotr sobressaltou-se. Sua esposa falou

com autoridade, lembrando a ele, pelaprimeira vez, o pai dela. E suas palavrasecoaramseuspensamentos.– Nenhum homem de boa linhagem a

aceitará – ela prosseguiu. – Você vaientregá-laaalgumcamponês?Pyotr ficou calado. Andara revirando

esta questão na cabeça. Era contra o seu

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orgulho dar a filha para um homem debaixaextração.MasoavisodeDunyanãodeixavadesoaremseusouvidos:Qualquercoisaémelhordoqueumdemôniodogelo.Marina,pensouPyotr.Vocêmedeixouesta

menina louca e eu a amo muito. Ela é maiscorajosa e mais intempestiva do que qualquerumdosmeusfilhos.Masdequeserveissoparaumamulher?Jureiqueiamantê-laasalvo,mascomopossoprotegê-ladesimesma?–Elaprecisairparaumconvento–Anna

disse. –Quanto antes,melhor.Queoutrachanceexiste?Nenhumhomemdefamíliadecente a aceitará. Está possuída. Roubacavalos,enlouqueceuumdeles,arriscouavidadosobrinhoàtoa.Pyotr, olhando atônito para a esposa,

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achou-a quase bonita em seu propósitopersistente.–Umconvento?–eleindagou.–Vasya?

– Cismou por um breve instante com omotivodeestartãosurpreso.Todos os dias, as filhas impossíveis de

casar iam para conventos.Mas ele nuncatinhavistoumafreiramaisimprováveldoqueVasya.Anna apertou as mãos. Seus olhos

buscaram-noesefixaramnele.–Umavidaentre irmãs santaspoderia

salvarsuaalmaimortal.Pyotr voltou a se lembrar do rosto do

estranhoemMoscou.Talismãounão,umdemôniodogelonãopoderiaviratrásdeumameninadevotadaaDeus.Mas,ainda

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assim, hesitou. Vasya jamais iria de boavontade.O padre Konstantin estava sentado na

penumbra, ao lado de Anna. Seu rostoestava fechado, os olhos escuros comoabrunhos.– O que o senhor acha, Batyushka? –

Pyotr perguntou. – Minha filha temassustadoseuspretendentes.Devomandá-laparaumconvento?– Você tem pouca escolha, Pyotr

Vladimirovich – Konstantin respondeu.Sua voz estava lenta e rouca. – Sua filhanãotemeráaDeusenãoouviráavozdarazão. O Ascensão é um convento paradonzelas de alta extração dentro dosmurosdoKremlindeMoscou.Asirmãsde

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láaaceitariam.Annaretesouaboca.Houveépoca,fazia

muito tempo, em que sonhara entrarnaqueleconvento.Pyotrhesitou.– As paredes do Kremlin são fortes –

acrescentou Konstantin. – Ela estariaseguraenãopassariafome.– Bem, vou pensar nisso – disse Pyotr,

devastado. Ela poderia ir com os trenós,quando ele enviasse seu tributo.Mas quehomem ele poderia mandar paracomunicar a vinda dela? Sua filha nãopoderia ser entregue como um pacoteindesejável, e já eramuito tarde,naqueleano,paramensageiros.Olya,elepoderiamandá-laparaela,que

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resolveria isso. Mas não… Vasya precisaestarcasadaoudetrásdasparedesdeumconventoantesdosolstíciodeinverno.Elevaivirbuscá-lanosolstíciodeinverno.Vasya… Vasya em um convento? Um

véu sobre seu cabelo negro, uma virgematémorrer?Mas a alma, acima de tudo havia sua

alma.Elateriapazefartura.Rezariapelafamília.Eestariaasalvodosdemônios.Maselanãoirádeboavontade.Ficaránuma

tristezaimensa.Konstantin viu a luta de Pyotr e ficou

calado.SabiaqueDeusestavaaoseulado.Pyotr seria convencido e os meios,encontrados. E, de fato, o padre estavacerto.

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Trêsdiasdepois,Vasyatrouxeparacasaum monge molhado e espirrando, queencontraraperdidonafloresta.

Elaoarrastouparadentroumpouco,antesdo pôr do sol, nomeio deumaguaceiro.Dunyacontavaumahistória.–Opaidelesadoeceudesaudade–ela

dizia. – Então, o príncipe Aleksei e opríncipe Dmitrii partiram em busca dopássaro de fogo de asas brilhantes.Cavalgaramparamuitolonge,trêsvezesadistância de nove reinos, até que deramcomumlugarondeaestradasedividia.Aolado do caminho havia uma pedra onde

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estavamesculpidaspalavras.A porta externa abriu-se com um

barulhão,eVasyaentrounasalasegurandopela manga um monge grande, jovem eesfarrapado.– Este é o irmãoRodion – disse ela. –

Estava perdido na floresta. Veio deMoscou, da corte do grão-príncipe. Sashafoiquemomandoupranós.Instantaneamente,acasaatônitapôs-se

em movimento. O monge precisava serseco e alimentado, era preciso encontrarumnovomantoecolocarhidromelemsuamão. Dunya, no meio de toda a pressa,ainda teve tempode fazer uma resistenteVasya trocar suas roupas molhadas e sesentaraopédofogoparasecarseucabelo

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encharcado. O tempo todo, o monge foibombardeado com perguntas: sobre otempo em Moscou, as joias que asmulheresdacorteusavamparairàmissa,oscavalosdossenhoresdaguerratártaros.Acima de tudo, perguntaram-lhe sobre aprincesa de Serpukhov e o irmãoAleksandr.Asperguntasjorravamcomtalabundância que o monge mal conseguiaresponder.Por fim, Pyotr interveio, afastando as

criançasdelado.– Calma, todos vocês. Deixem que ele

coma.Acozinhafoiseaquietandoaospoucos.

Dunyapegousuaroca,Irina,asuaagulha.OirmãoRodionseconcentrouunicamente

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emseujantar.Vasyapegouumpilãoeumalmofarizecomeçouatriturarervassecas.Dunyaretomouahistória:–Aoladodocaminhohaviaumapedra

ondeestavamesculpidaspalavras:“Aquele que cavalgar em frente encontrará

fomeefrio.Aquele que cavalgar para a direita viverá,

masseucavalomorrerá.Aquele que cavalgar para a esquerda

morrerá,masseucavaloviverá.“Nada disso soava nem um pouco

agradável.Então,osdois irmãosviraram-separaolado,armaramsuasbarracasemum bosque verdejante e passaram o

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tempo, esquecendo o motivo de suavinda.”O príncipe Ivã cavalgou para a direita,

pensou Vasya. Ela ouvira a históriamilhares de vezes.O lobo cinza matou seucavalo.Elechorouaovê-lomassacrado.Masashistórias nunca contamo que esperavapor elecasotivesseidoemfrente,ouparaaesquerda.Pyotrestavanumaconversaíntimacom

oirmãoRodionnooutroladodacozinha.Vasyadesejavapoderouviroquediziam,masachuvaaindatamborilavanotelhado.Ela havia saído para coletar alimentos

naprimeiraluzdamanhã.Qualquercoisa,atéficarencharcada,poralgumashorasaoarlivre.Acasaaoprimia.AnnaIvanovnaeKonstantin,eatémesmoseupai,olhavam

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paraelacomexpressõesquenãoconseguiadecifrar.Osaldeõesmurmuravam,quandoela passava. Ninguém havia esquecido oincidentecomocavalodeKyril.Tinha encontrado o jovem monge

cavalgandoemcírculosemsuafortemulabranca.Estranho, Vasya pensou, tê-lo

encontradovivo.Emsuasperambulações,ameninatinhadadocomossos,masnuncacom um homem vivo. A floresta eraperigosa para viajantes. O leshy osconduziria em círculos até que elesdesmoronassem, ou o vodianoy, espiandocomseusfriosolhosdepeixe,ospuxariampara dentro do rio. Mas esta grandecriatura de boa índole tinha andado às

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cegase,noentanto,sobrevivera.O aviso da rusalka aflorou à mente de

Vasya:Doqueoschyertytêmmedo?

– Você teve sorte de a minha filhatemerária ter saído para coletar com taltempo e ter te encontrado – constatouPyotr.O irmão Rodion, com a fome básica

satisfeita,arriscouumarápidaolhadaparaafornalha.Afilhaemquestãopilavaervas.A luz do fogo revestia de ouro seu corpoesguio. À primeira vista, achara-a feia, emesmo agora não a considerava bonita,mas, quantomais olhava,mais difícil era

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desviaravista.– Estou feliz que ela tenha feito isso,

Pyotr Vladimirovich – Rodion disserapidamente,vendoasobrancelhaerguidade Pyotr. – Tenho uma mensagem doirmãoAleksandr.– Sasha? – perguntou Pyotr,

rispidamente.–Quenotícias?– O irmão Aleksandr é conselheiro do

grão-príncipe – respondeu o noviço comdignidade. – Ele criou fama pelos bonsfeitos e pela defesa dos fracos. Éreconhecidoporsuasabedoriaaojulgar.– Como se eu quisesse ouvir sobre os

talentosqueSashapoderiateraproveitadomelhor como senhor de suas própriasterras–dissePyotr.MasRodionpercebeu

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o orgulho em sua voz. – Vá direto aoassunto.Essasnotíciasnãoo trariamaquitãonofimdoano.RodionolhouPyotrnosolhos.– Seu tributo para o khan já foi

mandado,PyotrVladimirovich?– Será mandado com a neve – rosnou

Pyotr. A colheita fora escassa, a caça,parca.Pyotrressentia-sedecadagrãoedecada pele. Matavam os carneiros quepodiam,eseus filhos ficavamexaustosdecaçar. As mulheres saíam para coletaralimentosemqualquertempo.–PyotrVladimirovich,eseosenhornão

tivesse que pagar tal imposto? – Rodionprosseguiu.Pyotr não gostava de perguntas

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especulativasedeixouissoclaro.– Muito bem – disse o rapaz com

firmeza. –Opríncipe e seus conselheirosse perguntaram por que deveríamoscontinuar pagando tributo, ou nosdobrarmos para um rei pagão. O últimokhan foi assassinado e seus herdeiros nãoconseguem se sentar por dozemeses emseus tronos sem que eles também sejamassassinados. Estão todos confusos. Porque deveriam ser senhores de bonscristãos?Vamos lutar contra aHorda, eoirmãoAleksandrpedesuaajuda,porquejáfoiseufilho.Vasyaviuo rostodopaimudare ficou

imaginando o que o jovem monge teriadito.

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–Guerra–dissePyotr.–Liberdade–respondeuRodion.–Usamosocabrestocomlevezaaquino

norte–dissePyotr.–Noentanto,usam.–Émelhorumcabrestodoqueopunho

daHordaDourada–dissePyotr.–Elesnãoprecisam nos encontrar em combateaberto,bastamandarhomensànoite.Dezflechasde fogoqueimariamMoscouatéochão, e minha casa também é feita demadeira.– Pyotr Vladimirovich, o irmão

Aleksandrmepediuparadizer…–Perdoe-me–dissePyotr,levantando-se

abruptamente–,mas jáouvio suficiente.Esperoquemeperdoe.

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Rodion teve, necessariamente, queaquiescer e voltou sua atenção para ohidromel.

– Por que não deveríamos lutar, pai? –perguntou Kolya. Dois coelhos mortospendiam do seu punho, seguros pelasorelhas. Pai e filho tiravam vantagem deuma trégua na chuvarada para percorrerumasériedearmadilhas.–Porqueprevejopoucavantagemnisso

e muitos danos – Pyotr respondeu, nãopelaprimeiravez.Nenhumdosseusfilhoshavia o deixado em paz desde que omonge virara suas cabeças com histórias

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da fama do irmão. – Sua irmã vive emMoscou. Você gostaria que ela se vissepresa em uma cidade sob cerco?Quandoos tártaros investem contra uma cidade,nãodeixamsobreviventes.Kolya rejeitou a possibilidade com um

aceno de mão, os coelhos sacudindo-segrotescamentenofimdoseubraço.– É claro que os encontraríamos em

batalha,bemantesdosportõesdeMoscou.Pyotrcurvou-separachecaraarmadilha

seguinte,queestavavazia.– E pense, pai – Kolya continuou,

entusiasmando-se com o assunto –,poderíamosmandarbensparaosulcomopermuta,não tributos.Meuprimonãoseajoelharia para ninguém,umpríncipe, na

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verdade. Seusprópriosbisnetospoderiamsergrão-príncipes.– Prefiro meus filhos vivos, e minha

filhaasalvo,aumachancedeglóriaparadescendentesnãonascidos.–Aoverabocado filho abrir-se emoutroprotesto,Pyotracrescentou,commaissuavidade:–Synok,vocêsabequeSashapartiuextremamentecontra a minha vontade. Não vou meinclinarparaamarrarmeuprópriofilhonobatente da porta. Se quiser lutar, pode irtambém,mas não vou abençoar a guerradeumtoloenãotedareinemumatiraderoupa,nemprataoucavalo.Sasha,vocêselembra, pode ser rico em fama, masprecisa esmolar seu pão e cultivar ervasemseuprópriojardim.

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O que quer que Kolya pudesse terrespondido foi abafado por umaexclamação de alegria porque mais umcoelho pendia da armadilha, sua outonalpelemosqueadaraiadadeterra.Enquantoofilhosecurvavaparadesenroscá-lo,Pyotrlevantouacabeçae,repentinamente,ficouimóvel. O ar cheirava a morte recente.Pyos,odoguealemãodePyotr,encolheu-se juntoàscanelasdodono,ganindofeitoumfilhote.–Kolya–dissePyotr.Algonotomdopai

fez o rapaz se levantar, um lampejo emseusolhosnegros.–Sintoocheiro–eledisse,depoisdeum

momento.–Oquemachucouocachorro?PorquePyosgania,tremiaeolhavacom

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ansiedade na direção da aldeia. Pyotrsacudiu a cabeça; olhava de um lado aoutro, ele mesmo quase como um cãofarejador. Não disse nada, mas apontou:umrespingodesanguenasfolhascaídasaoredor dos seus pés, e não era do coelho.Pyotrfezumgestofirmeparaocachorro;o dogue alemão ganiu e avançou,sorrateiro.Kolyapendeuumpoucoparaaesquerda,numsilênciodecoruja,comoopai. Rodearam cautelosamente um grupode árvores, chegando a uma pequenaclareira desgastada e sinistra, com suasfolhaspodres.Tinha sido um cervo. Uma anca jazia

quaseaospésdePyotr,arrastandosanguee tendão. A parte principal da carcaça

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estava um pouco além, as entranhasestouradas e espalhadas, fedendo até nofrio.Asanguinolêncianãoacalmounenhum

dos dois, embora a cabeça chifruda docervoestivessepróximaaseuspés,alínguapara fora. Mas eles trocaram um olharsignificativo porque nada naquela matapoderiamutilarumacriaturadaquelejeito.Equeanimalmatariaumcervogordodeoutonoedeixariaacarne?Pyotr agachou-se na lama, os olhos

perscrutandoochão.–Ocervocorreueocaçadorfoiatrás;o

cervocorreumuitoeestavaprivilegiandoumapernadianteira.Veioparaaclareira,aqui. – Pyotr movia-se, enquanto falava,

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semiagachado: – Um salto, dois, e entãoumgolpelateralderrubou-o.–Pyotrcalou-se. Pyos abaixou-se bem na borda daclareira,nãotirandoosolhosdodono.“Mas de quem veio o golpe?”,

murmurou.Kolya havia decifrado uma história

semelhantenalama.–Nãohá rastros – disse ele. Sua longa

faca silvou ao ser tirada da bainha. –Nenhum. Nem qualquer sinal de quealguémtenhatentadoapagá-los.–Olheprocachorro–dissePyotr.Pyos

havia se levantado e olhava para umabrechaentreasárvores.Todosospelosemsua espinha levemente coberta estavameriçados,eelerosnavabaixinho,osdentes

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à mostra. Os dois homens viraram-se aomesmo tempo, a faca de Pyotr em suamão,ogestoquaseantecipandoodesejo.Porumbreveinstante,elepensoutervistomovimento, uma sombra mais escura napenumbra, mas depois ela sumiu. Pyoslatiu uma vez, alto e curto, um som dedesafiomedroso.Pyotrestalouosdedosparaocachorro.

Kolya virou-se com ele. Atravessaram ocompostodefolhascaídassujodesangueeforamparaaaldeiasemumapalavra.

Um dia depois, quando Rodion bateu àportadeKonstantin,opadreinspecionava

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astintasàluzdevela.Comaumidade,asbordas e respingos das misturas de coreshaviamsetransformadoemmofo.Láforaaindaeradiaclaro,masasjanelasdopadreeram pequenas e o clamor da chuvaimpediaosol.Oquartoestariaescuro,senãofossepelasvelas.Velasdemais, pensouRodion.Umdesperdícioterrível.–Abênção,padre–pediuRodion.– Deus esteja convosco – respondeu

Konstantin.Oquartoestava frio.Opadretinhaenvolvido seusombrosmagroscomumcobertor.NãoofereceuumaRodion.–PyotrVladimirovich foi caçar comos

filhos – disse Rodion. –Mas não queremfalar sobre sua caça. Não disseram nadaqueosenhorpudesseouvir?

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– Que eu ouvisse, não – respondeuKonstantin.Choviacopiosamenteláfora.Rodionfranziuatesta.–Nãoposso imaginaromotivodeeles

levaremsuaslançasdejavali,deixandooscachorros para trás. E o tempo está cruelpracavalgar.Konstantinnãorespondeu.–Bem,queDeuslhestragasucesso,seja

qual for – continuou Rodion. – Precisopartir em dois dias, e não pretendoencontrar o que quer que tenha postoaquela expressão nos olhos de PyotrVladimirovich.–Rezareiporsuasegurançanaestrada–

disseKonstantin,secamente.

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– Fique com Deus – retrucou Rodion,ignorandoadispensa.–Seiquenãogostade serperturbadoemsuas reflexões.Maspediriaseuconselho,irmão.–Peça–falouKonstantin.–PyotrVladimirovichquerquesuafilha

receba os votos – disseRodion. – Elemeencarregou,compalavrasedinheiro,deira Moscou, até o Ascensão, e as preparepara a ida da filha. Diz que ela serámandada com os bens do tributo, assimquehouvernevesuficienteparaostrenós.– Uma tarefa piedosa, irmão – disse

Konstantin.Mashaviaerguidooolhardassuastintas.–Quenecessidadedeconselho?–Porqueelanãoéumameninafadadaa

conventos – disse Rodion. – Um cego

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conseguiriaver.Konstantin travou o maxilar, e Rodion

viu,comsurpresa,orostodopadrearderderaiva.– Ela não pode se casar – disse

Konstantin. –Apenasopecadoestá à suaespera neste mundo. É melhor que seretire. Rezará pela alma do pai. PyotrVladimirovich é umhomemvelho, ficaráfeliz com suas rezas quando for seencontrarcomDeus.Tudo isso era muito razoável. Não

obstante,Rodionsentiudornaconsciência.A segunda filha de Pyotr lembrava-lhe oirmão Aleksandr. Embora Sasha fossemonge, nunca ficava muito tempo nomosteiro.PercorriaaextensãodeRus’em

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seu bom cavalo de guerra, alternandoestratagemas,seduçãoelutas.Levavaumaespada às costas e era conselheiro depríncipes. Mas tal vida não era possívelparaumamulherquetomasseovéu.– Bem, farei isso – disse Rodion com

relutância.–PyotrVladimirovichtemsidomeu anfitrião e dificilmente eu poderiafazerpormenos.Mas,irmão,gostariaqueo fizesse mudar de ideia. Com certezaalguémpodeserconvencidoasecasarcomVasilisaPetrovna.Nãoachoqueeladurarámuito tempo em um convento. Ospássarosselvagensmorremnasgaiolas.– E daí? – replicou Konstantin. –

Abençoados os que permanecem poucotemponestelamaçaldemaldade,antesde

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irparaapresençadeDeus.Sóesperoquesuaalmaestejapreparadaquandohouvero encontro. Agora, irmão, eu gostaria derezar.Sem dizer uma palavra, Rodion

persignou-seesaiu,piscandoàdébilluzdodia. Bem, lamento pela menina, pensou. Edepois, comdesconforto:Como as sombrassãodensasnaquelequarto.

Pyotr e Kolya levaram seus homens paracaçarnãouma,masdiversasvezesantesdaneve. A chuva não cessava, emborapassasse a ser cada vez mais fria, e suasforçasbaqueassemnaquelesdias longos e

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molhados.Mas, pormais que tentassem,nãodescobriramumvestígiodacoisaquehavia despedaçado o cervo. Os homenscomeçaram a murmurar e, por fim, aprotestar. A exaustão competia com alealdade e ninguém ficou triste quando ogelopôsumfimàcaçada.Mas foi então queo primeiro cachorro

desapareceu. Era uma cadela alta, nova,boa e destemida diante de javalis, masencontraram-na junto à paliçada, sem acabeçaeensanguentadananeve.Asúnicaspegadaspertodocorpocongeladoeramdesuaspatascorrendo.As pessoas começaram a entrar na

florestaaospares,commachadonocinto.Mas depois umpônei sumiu, enquanto

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estava amarrado a um trenó para puxarlenha. Ao voltar com uma braçada delenha,o filhodoseudonoviuaspegadasocas e uma grande faixa escarlateespalhadapelaterraenlameada.Largouasachas, até o machado, e correu para aaldeia.Omedoinstalou-senaaldeia;ummedo

arraigado,murmurante, tenaz como teiasdearanha.

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PESADELOS

NOVEMBROCHEGOURUGINDOCOM

FOLHAS PRETAS E NEVE CINZA. Emumamanhãembaçada,comovidrosujo,opadreKonstantin ficouparadoao ladodasua janela, traçando com seu pincel apernadianteiraesguiadogaranhãobrancode São Jorge. Seu trabalho absorvia-o etudo estava tranquilo. Mas, de algumamaneira, o silêncio escutou. Konstantinviu-sefazendoforçaparaouvir.Senhor,nãovaifalarcomigo?

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Quandoalguémarranhouasuaporta,amão de Konstantin teve umestremecimento que quase manchou apintura.–Entre–grunhiu,jogandoopincelpara

o lado.Comcerteza, eraAnna Ivanovna,com leite apurado e tediosos olhos deadoração.MasnãoeraAnnaIvanovna.– A bênção, padre – disse Agafya, a

criada.Konstantinfezosinaldacruz.– Deus esteja convosco. – Mas estava

zangado.–Nãofiquebravo,Batyushka–amoça

sussurrou,torcendoasmãoscalejadaspelotrabalho.Nãotinhapassadodaporta.–Se

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eupudertersóummomento.O padre comprimiu os lábios. À sua

frente, São Jorge cavalgava o mundo emum painel de carvalho. Seu corcel tinhaapenas três pernas. A quarta, ainda porpintar, estaria levantada numa curvaelegante para esmagar a cabeça de umaserpente.– O que você quer me dizer? –

Konstantintentoufazersuavozsoargentil.Não conseguiu completamente; ameninaempalideceu e recuou, mas não foiembora.–Temossidobonscristãos,Batyushka–

gaguejouela.–Tomamoso sacramentoeveneramosas imagens.Masnunca foi tãodifícil pra gente. Nossas hortas

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apodreceram com a chuva de verão;sentiremos fome antes da mudança daestação.Elafezumapausaelambeuoslábios.– Fiquei pensando, não consigo deixar

de fazê-lo, será que a gente ofendeu osantigos? Chernobog, talvez, que adorasangue? Minha avó sempre dizia que, sealgum dia ele se voltasse contra nós,acabaria em desastre. E agora eu sintomedopelomeufilho.–Elaolhavaparaelenumasúplicamuda.– É melhor ter medo – rosnou

Konstantin. Seus dedos ansiavam pelopincel; lutou para ter paciência. –Mostraseu verdadeiro arrependimento. Esta é ahora do julgamento, quandoDeus saberá

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quemsãoseusleaisservidores.Éprecisosemanter firme, e logo você verá reinos deum tipo que não imagina. As coisas dasquais você fala são falsas, ilusões paratentarodesavisado.Agarre-seàverdadeetudoficarábem.Ele se virou novamente em busca das

tintas. Mas a voz dela tornou a se fazerouvir:– Mas eu não preciso de um reino,

Batyushka, só o bastante para alimentarmeu filho durante o inverno. MarinaIvanovnamantinhaosantigoscostumesenossosfilhosnuncapassaramfome.O rosto de Konstantin assumiu uma

expressão nada diferente do santo queempunhava a lança à sua frente. Agafya

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cambaleoucontraobatentedaporta.–EagoraDeus farásuaavaliação–ele

sibilou.Suavozfluíacomoáguacomumacamadadegelo.–Vocêachaquesóportersido adiado dois anos, ou dez, Deus nãoficou furioso com tal blasfêmia? A justiçatarda,masnãofalha.Agafya estremeceu como um pássaro

numarede.– Por favor – sussurrou ela. Pegou nas

mãosdeleebeijouseusdedosrespingados.–Osenhor,então,pediráperdãopornós?Nãopormim,maspelomeufilho.–Namedidadopossível–eledissecom

maisdelicadeza,colocandoamãoemsuacabeça curvada. – Mas primeiro vocêmesmatemquepedir.

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–Sim…sim,Batyushka–elaconcordou,levantandoosolhos, como rosto tomadodegratidão.Quando, finalmente, saiu apressada

paraatardecinzenta,eaportafechou-seàsua passagem, as sombras na paredepareceram esticar-se como gatos aodespertar.–Fezbem.–Avozecoounosossosde

Konstantin. O padre ficou paralisado,todososnervosalertas.–Elesprecisammetemeracimadetudo,paraquepossamsersalvos.Konstantin atirouo pincel de lado e se

ajoelhou.–Sódesejoagradar-lhe,Senhor.–Estousatisfeito–disseavoz.

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– Tentei colocar estas pessoas nocaminhodaretidão–disseKonstantin.–Sópediria,Senhor…Querodizer,gostariadepedir…Avozfoiinfinitamentegentil:–Oquevocêpediria?–Porfavor–disseKonstantin–,permita

queminhamissão aqui esteja terminada.Eulevariasuapalavraaosconfinsdaterra,se me pedisse, mas a floresta é pequenademais.Elecurvouacabeça,esperando.Masavozriu,comumdeleiteterno,de

talmaneiraqueKonstantinpensouquesuaalmavoariadoseucorpodealegria.–Claroquevocêdeveir–eladisse.–Só

mais um inverno.Apenas sacrifício e seja

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fiel.Então,vocêpoderámostraraomundoa minha glória, e estarei com você parasempre.– Sóme diga o que eu preciso fazer –

pediuKonstantin.–Sereifiel.– Desejo que você invoque a minha

presença, quando falar – disse a voz.Qualquer outro homem teria ouvido aansiedadenela.–Equandorezar.Chame-meemcadaalentoepelomeunome.Souo portador de tempestades. Eu estariapresenteentrevocêselhesdariagraça.– Será feito – disse Konstantin com

fervor. – Exatamente como o senhor diz,seráfeito.Sónuncamedeixenovamente.Todasasvelasoscilaramcomalgomuito

semelhante a um longo suspiro de

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satisfação.– Obedeça-me sempre – respondeu a

voz–,ejamaisodeixarei.

No dia seguinte, o sol afundou-se emnuvens saturadas e lançou uma luzfantasmagórica sobre um mundodesprovido de cor. Começou a nevar nonascer do dia. Os moradores da casa dePyotrforamtremendoparaaigrejinhaeseamontoaram lá dentro. A igreja estavaescura, com exceção das velas. Vasyapensou que quase podia ouvir a neve láfora, enterrando-os até a primavera. Elaimpediaa luz,masasvelas iluminavamo

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padre. Os ossos do seu rosto projetavamsombraselegantes.Suaexpressãoeramaisdistantedoqueadeseus ícones,e jamaisestiveratãolindo.Obiombodosíconesestavaterminado.

O Cristo ressuscitado, a imagem final,encontrava-se entronado acima da porta.Julgavasobreumaterratempestuosa,comuma expressão que Vasya não conseguiadecifrar.–InvocoaTi–disseKonstantin,emtom

baixoeclaro.–Deusquemechamouparaser seu servo. A voz vinda das trevas,amante das tempestades. Que Suapresençaestejaentrenós.Eentão,maisalto,começouamissa.–BenditosejaDeus.–Seusolhoseram

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grandes buracos negros, mas sua vozparecia faiscar com fogo. A missaprosseguiu indefinidamente. Quando elefalava, as pessoas esqueciam a umidadegelada e o espectro sombrio da fome.Osproblemasterrenosnãoeramnadaquandoaquela voz os tocava. O Cristo acima daportaparecialevantaramão,abençoando-os. – Ouçam – disse Konstantin. Sua vozabaixou tanto que eles tiveram que seesforçar para ouvir. – O demônio estáentrenós.–Acongregaçãoentreolhou-se.–Ele se insinua emnossas almas ànoite,nosilêncio.Estáàesperadosdesavisados.–Irinaaproximou-sedeVasya,quepassouo braço em volta dela. – Apenas a fé –Konstantinprosseguiu–,apenasaoração,

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apenasDeuspoderásalvarvocês.–Suavozcresciaacadapalavra.–TemamaDeusese arrependam.É suaúnica escapatória àdanação.Caso contrário, vocês arderão…Vocêsarderão!Anna gritou. Seu grito ecoou na

extensãodaigrejinha,seusolhossaltaramdebaixodaspálpebrasazuladas.–Não! – gritou. –Oh,Deus, não aqui!

Nãoaqui!Suavozpareceusepararasparedesese

multiplicar, de modo que centenas demulheresberravam.Nominutoantesdetudosetransformar

em caos, Vasya seguiu o dedo para ondesua madrasta apontava. O Cristoressuscitadoagorasorriaparaeles,quando

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antes estava solene. Seus dois caninosentravamnolábioinferior.Masemvezdedoisolhos tinhaapenasum.Ooutro ladodorostoestavariscadodecicatrizesazuis,eoolhoeraapenasumaórbita,costuradagrosseiramente.Ela já vira aquele rosto antes, pensou

Vasya,lutandocontraomedoquefechavasua garganta. Mas não tinha tempo parapensar.Ao seu redor, as pessoas levavamasmãosaosouvidos,jogavam-sedebruçosou abriam caminho em direção àsegurança do nártex. Anna foi deixadasozinha. Ria e chorava, arranhando o ar.Ninguém poderia tocá-la. Seus gritosatravessaramasparedes.Konstantinabriucaminho até ela e deu um tapa em seu

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rosto. Ela acalmou-se, em choque,mas obarulhopareceucontinuarecoando,comose as próprias imagens estivessemgritando.Vasya agarrou Irina no início do caos,

paraquenãofossearrastada.Uminstantedepois, Alyosha apareceu e passou seusbraços fortes ao redor deDunya, que erapequenacomoumacriança,frágilcomoasfolhasdenovembro.Osquatroagarraram-se. As pessoas corriam de um lado paraoutro,gritavam.– Preciso ir até a mãe – disse Irina,

contorcendo-se.– Espere, passarinho – disse Vasya. –

Vocêsóseriapisoteada.– Mãe de Deus – disse Alyosha. – Se

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alguémsouberqueamãedeIrinatemtaisataques,ninguémjamaissecasarácomela.–Ninguémvaisaber–Vasyaretorquiu.

Suairmãtinhaficadomuitopálida.Olhavapara o irmão enquanto a multidãoempurrava-os contra a parede. Ela eAlyosha protegeram Dunya e Irina comseuscorpos.Vasyatornouaolharparaoiconóstase.

Agoraestavacomosempreestivera.Cristosentadonotronoacimadomundo,amãoerguidaembênção.Teriaelaimaginadoooutrorosto?Mas,setivesse,porqueAnnahaviagritado?–Silêncio!A voz de Konstantin soou como uma

dúziadesinos.Todosficaramparalisados.

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Ele parou em frente ao iconóstase elevantou amão, umeco vivo da imagemdeCristoacimadasuacabeça.–Tolos!–trovejou.–Vocêssãocrianças

para terem medo de uma mulher quegrita?Levantem-se,todosvocês.Calem-se.Deusnosprotegerá.Eles seamontoaramemsilêncio, como

crianças castigadas. O que os urros dePyotr não haviam conseguido, a voz dopadre conseguiu. Aproximaram-se delebamboleando.Annacontinuou tremendo,chorando, lívida como o céu aoamanhecer. O único rosto mais pálidonaquela igreja era o do próprio padre. Aluz de velas enchia a nave de sombrasestranhas. Ali, novamente, uma delas se

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lançouemfrenteaoiconóstase,enãoeraasombradeumhomem.Deus,pensouVasya,quandoamissa foi

retomadacomhesitação.Aqui?Os chyertynão podem entrar nas igrejas; são criaturasdestemundo,eaigrejaéparaopróximo.Mesmoassim,elahaviavistoasombra.

Pyotr levou a esposa para casa assim queconseguiu.Suafilhaadespiueacolocounacama.MasAnna chorava, tinha ânsias devômito,choravaenãoparava.Porfim,Irina,desesperada,voltoupara

a igreja. Encontrou o padre Konstantinsozinho, ajoelhado perante o biombo de

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ícones. Depois da missa daquele dia, aspessoas haviam beijado sua mão e lhepedidoqueassalvasse.Ele,então,pareciaem paz. Até triunfante. Mas agora Irinaachou que ele parecia a pessoa maissolitáriadomundo.–Osenhorpoderiairatéaminhamãe?

–sussurrouela.Konstantin teveumsobressaltoeolhou

aoredor.– Ela está chorando e não para –

completouIrina.Konstantin não falou; estava

tensionandotodosossentidos.Depoisqueo povo deixou a igreja,Deus tinha vindoatéelenafumaçadasvelasapagadas.–Lindo.–Osussurromandouafumaça

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em pequenos rodamoinhos ao longo dochão. – Eles ficaram tão apavorados. – Avoz soava quase alegre. Konstantin ficouem silêncio. Por um instante questionousua sanidade e se a voz teria vindorastejandodoseucoração.Mas…não,claroquenão.Éapenasa suamaldadequeduvida,KonstantinNikonovich.– Estou contente que tenha vindo até

nós – murmurou Konstantin baixinho –,paraconduzirseupovoàretidão.Mas a voz não respondera, e agora a

igrejaestavaquieta.Maisalto,KonstantindisseparaIrina:–Sim,irei.

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– Aqui está o padre Konstantin – disseIrina, levando-oparadentrodoquartodamãe. – Ele a confortará. Vou buscar ojantar.Vasyajáestáesquentandooleite.–Elasaiucorrendo.– A igreja, Batyushka? – soluçou Anna

Ivanovna quando os dois ficaram a sós.Estavadeitadaemsuacama,enroladaempeles.–Aigreja…Nuncaaigreja.–Quebobagemvocêestáfalando–disse

Konstantin. – A igreja está protegida porDeus.SóDeusfazsuamoradanaigreja,eseussantoseanjos.–Maseuvi…

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– Você não viu nada! – Konstantincolocou a mão em seu rosto. Elaestremeceucomoumcavaloassustado.Avozdeleficoumaisbaixa,hipnótica.Tocouoslábiosdelacomoindicador.–Vocênãoviunada,AnnaIvanovna.Ela levantou a mão trêmula e tocou a

dele.– Não verei nada, se o senhor me

mandarnãover,Batyushka.–Coroufeitoumamenina.Seucabeloestavaescurodesuor.– Então, não veja – Konstantin disse.

Retirouamão.–Vejoosenhor–eladisse.Malerauma

respiração.–Osenhorétudoquevejo,àsvezes,nestelugarhorroroso,comofrio,os

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monstros e a fome. O senhor é uma luzparamim.–Elavoltouapegaramãodele.Apoiou-se em um cotovelo. Seus lábiosmarejaram de lágrimas. – Por favor,Batyushka,sóqueroficarperto.–Vocêélouca–eledisse.Empurrouas

mãosdelaparabaixoeseafastou.Ela era macia e velha, estragada pelo

medoepelasesperançasperdidas.– Você é casada e eu me entreguei a

Deus.–Nãoéisso!–elagritouemdesespero.

– Jamais isso. Quero que o senhor meenxergue. – Engolia em seco comdificuldadeegaguejava.–Me enxergue.Osenhorenxergaaminhaenteada.Observa-a.Assimcomoeuotenhoobservado.Euo

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observo.Porquenãoeu?Porquenãoeu?–Suavozsubiuparaumgemido.–Calma.–Elecolocouamãonaporta.–

Eu te enxergo, mas, Anna Ivanovna, hápoucoparasever.A porta era pesada. Ao ser fechada,

abafouosomdochorodela.

Naqueledia,aspessoasficarampertodosseus fornos, enquanto caíam rajadas deneve.MasVasya esgueirou-se para ver oscavalos. Ele está vindo, disse Mysh,revirandoosolhosdesvairados.Vasyafoiatéopai.– Temos que trazer os cavalos pra

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dentrodapaliçada–disseela.–Estanoite,antesdoescurecer.– Por que você está aqui pra nos

sobrecarregar,Vasya?–retorquiuPyotr.Aneve caía densa, grudando em seuschapéus eombros. –Vocêdeveria ter idoembora.Hámuito,eestariaa salvo.Masassustouseupretendenteeagoraestáaquieéinverno.Vasya não respondeu.Na verdade, não

podia,porqueviusúbitaeclaramentequeseu pai estava com medo. Nunca tinhavistoopaicommedo.Quisesconder-senoforno,comoumacriança.– Me desculpe, pai – ela pediu,

controlando-se. – Este inverno vai passar,assimcomoosoutros.Masachoqueagora,

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ànoite,deveríamosfecharoscavalos.Pyotrrespiroufundo.–Tem razão, filha.Tem razão.Venha,

ajudovocê.Os cavalos acalmaram-se um pouco

quando o portão foi fechado à suapassagem.VasyalevouMysheMetelparao próprio estábulo, enquanto que oscavalos menos valiosos andavam emcírculos pelo pátio. O pequeno vazilacolocouamãonadela.–Nãonosdeixe,Vasya.– Preciso buscar a minha sopa – disse

Vasya.ADunya está chamando.Masvouvoltar.Tomouasopa,enrodilhadanofundoda

estreitabaiadeMysh,edeuàéguaoseu

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pão. Depois, envolveu-se numa capaequinaecontouas sombrasnaparededoestábulo.Ovazilaestavaaoseulado.–Não vá embora, Vasya – ele disse. –

Quandovocêfica,eumelembrodaminhaforçaetambémdequenãotenhomedo.Então,Vasyaficou,tremendoapesarda

palha e da coberta. A noite estavamuitofria.Elapensouquejamaisdormiria.Masdeveterdormido,porqueacordou

gelada,depoisquealuasefoi.Oestábuloestava escuro. Até Vasya, com olhos degato, mal podia discernir Mysh paradaacimadela.Porummomento, tudo ficouquieto. Depois, de fora, veio umarisadinha. Mysh resfolegou e recuou,sacudindo a cabeça. Apareceu um círculo

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brancoaoredordosseusolhos.Vasyalevantou-seemsilêncio,deixando

a coberta cair. O ar frio entrava comopresasemsuacarne.Foidevagarzinhoatéa porta do estábulo. Não havia lua, enuvens gordas sufocavam as estrelas. Anevecontinuavacaindo.Um homem caminhava furtivamente

pela neve, silencioso como os flocos.Arremessava-se de sombra em sombra.Quando soltava o ar, ria no fundo dagarganta. Vasya chegou mais perto. Nãoconseguia ver o rosto, apenas roupasesfarrapadas e um tufo de cabelosgrosseiros.Ohomemaproximou-sedacasaepôsa

mão na porta. Vasya gritou assim que o

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homem se jogou para dentro da cozinha.Nãohouvesomdecarnenamadeira.Elepassoupelaportacomofumaça.Vasya atravessou o dvor, correndo. O

pátio reluzia com a neve recente. Ohomemesfarrapadonão deixara pegadas.Aneveestavaespessaemacia.Vasyasentiaos membros pesados. Mesmo assim,correu, gritando, mas antes queconseguissechegaracasaohomemhaviapulado de volta para o pátio da entrada,aterrissandodequatro,comaagilidadedeumanimal.Ria.– Ah – disse ele. – Faz tanto tempo.

Como as casas dos homens são doces, e,ah,comoelagritou…Ele então deu-se conta da presença de

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Vasya, e a menina tropeçou. Conheciaaquelascicatrizes,oúnicoolhocinza.Eraorostodoícone,orosto…o rostodohomemque dormia na mata, anos atrás. Como erapossível?–Bem,oqueéisto?–ohomemindagou.

Fezumapausa.Elaviualembrançacruzaro seu rosto. – Lembro-me de umagarotinha com os seus olhos. Mas agoravocê é uma mulher. – Os olhos delefixaram-se nos dela, como se elepretendesse arrancar um segredo da suaalma.–Vocêéabruxinhaquetentaomeuservo.Mas não vi… – Ele se aproximavacadavezmais.Vasya tentou fugir, mas seus pés não

obedeceram. O bafo dele recendia a

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sangue quente, ele o soprava em ondassobreoseurosto.Elajuntoucoragem.–Não sou ninguém – disse ela. –Caia

fora.Deixe-nosempaz.Os dedos úmidos dele saltaram para

foraelevantaramoqueixodela.– Quem é você, menina? – E depois,

maisbaixo:–Olheparamim.Seusolhos transpiravam loucura.Vasya

nãoolhou, sabia quenãodeveria,masosdedosdeleeramumaarmadilhadeferroelogoelaolharia…Mas,então,umamãofriaagarrou-aea

puxou para longe. Ela sentiu cheiro deágua gelada e pinheiro esmagado. Acimadasuacabeça,umavozdisse:–Aindanão,irmão.Volte.

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Vasyanãoconseguiavernadadequemfalava, a não ser uma linha curva de umcapote preto, mas pôde ver o outro, ocaolho. Sorria, encolhia-se e ria, tudo aomesmotempo.– Ainda não? Mas está feito, irmão –

disseele.–Estáfeito.–Piscouoolhobompara Vasya e se foi. O capote preto aoredordelapassouaseromundotodo.Elasentia frio, um cavalo relinchava e umacriançachoravabemaolonge.Então,Vasya acordou, rígida e trêmula

no chão do estábulo. Mysh pressionou onariz quente no rosto dela. Mas emboraVasyaestivesseacordadaaindaerapossívelouvir o choro. Continuou por muitotempo. Vasya levantou-se de um salto,

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afastandoopesadelo.Oscavalosnasbaiasrelinchavam e escoiceavam, lascando asportas do estábulo. E no dvor congelanteeles rodopiavam em pânico. Não haviauma figura caolha esfarrapada.Um sonho,Vasya pensou.Apenas um sonho. Disparouem meio aos cavalos, desviando-se dosseuscorpospesados.Acozinhaestava fervilhandocomoum

ninho de vespas furiosas. Seus irmãosentraram intempestivamente,semidespertos e armados; Irina e AnnaIvanovna amontoaram-se na entradaoposta.Ascriadascorriampracáepralá,persignando-se, rezando ou se agarrandoumasàsoutras.Eentãochegouseupai,grandeefirme,

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espada na mão. Abriu caminho à força,maldizendo, entre bandos de criadosaterrorizados.–Quietos–ordenoueleparaaspessoas

agitadas. O padre Konstantin irrompeuatrásdele.Quemgritava era a pequenaAgafya, a

criada. Sentou-se rapidamente em seucatre, com as costas tesas. Suas mãos dejuntasbrancasagarravamalãdocobertor.Tinha mordido o lábio inferior de talmaneiraqueosangueescorriapeloqueixo,eumcírculobrancocontornavaseusolhosarregalados.Osgritoscortavamoarcomopingentesdegelocaindodobeiralláfora.Vasya abriu caminho por entre as

pessoasapavoradas.Agarrouamoçapelos

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ombros.– Agafya, escute – disse ela. – Escute,

estátudobem.Vocêestásegura.Estátudocerto. Calma agora, calma. – Vasyasegurouameninacom firmeza, e,depoisdeummomento,Agafyagemeuesecalou.SeusolhosgrandessefocaramlentamentenorostodeVasya.Agargantaengoliacomdificuldade.Tentoufalar,Vasyaesforçou-separaouvir.–Eleveioatrásdosmeuspecados–ela

disse, sufocada. – Ele… – Arfou pararespirar.Um garotinho rastejou em meio à

multidão.–Mãe!–gritouele.–Mãe!–Atirou-se

sobreela,masamãenãolhedeuatenção.

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Subitamente,Irinaestavaali,orostinhosério.– Ela desmaiou – disse ele, com

gravidade.–Precisadeareágua.–Éapenasumpesadelo–disseopadre

Konstantin para Pyotr. – Émelhor deixarqueasmulherescuidemdela.Pyotr poderia ter respondido, mas

ninguém ouviu porque Vasya gritou,então, em choque e com uma fúriarepentina. Todo o cômodo agitou-se emnovomedo.Vasyaolhavaparaajanela.Então…– Não – disse ela, visivelmente se

recompondo. –Meperdoem.Eu…Nada.Nãofoinada.

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Pyotr franziu o cenho. Os criadosolharam para ela com uma suspeitaevidenteemurmuraramentresi.Dunya foi se arrastando até Vasya, a

respiraçãofarfalhanteeocanopeito.–Asmeninassempretêmpesadelosna

mudançadotempo–Dunyaarquejou,altoo suficiente para que todos ouvissem. –Vamoslá,criança,busqueáguaehidromel.–OlhouparaVasyacomdureza.Vasya não disse nada. Seu olhar vagou

mais uma vez para a janela. Por uminstante,poderia jurar tervistoumrosto.Masnãoerapossívelporqueeraorostodoseu sonho, com cicatrizes azuis e caolho.Eletinhasorridoepiscadoparaelaatravésdogelooscilante.

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Na manhã seguinte, assim que clareou,Vasyasaiuàprocuradodomovoi.Procurouaté que o sol aguado estivesse alto e aolongodabrevetarde,esquivando-sedoseutrabalho. O sol inclinava-se para oestequando ela conseguiu arrastar a criaturasorrateiramente para fora do forno. Asbeiradasdasuabarbafumegavam.Estavamagro e curvado, as roupas surradas,parecendoderrotado.– Ontem à noite – disse Vasya sem

preâmbulos, aninhando a mão queimada–, sonhei com um rosto e depois o vi najanela.Tinhaumolhoesorria.Quemera?

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– Loucura – resmungou o domovoi. –Apetite. O dorminhoco, o comedor. Nãoconseguimantê-loláfora.– Você precisa se esforçar mais –

replicouVasya.Masoolhardodomovoivagouesuaboca

pendeuaberta.–Estoufraco–dissecomdificuldade.–

Eoguardiãoda florestaestá fraco.Nossoinimigoafrouxousuacorrente.Logoestarálivre.Nãoconsigomantê-loadistância.–Queméoinimigo?–Apetite–repetiuodomovoi.–Loucura.

Terror.Elequerdevoraromundo.– Como posso vencê-lo? – disse Vasya

comurgência.–Comoéquea casapodeserprotegida?

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– Com oferendas – murmurou odomovoi.–Pãoeleitemedarãoforças…Etalvez sangue. Mas você é apenas umameninasozinha,enãopossoextrairminhavida de você. Vou desfalecer.O comedorviránovamente.Vasyasegurouodomovoieochacoalhou

demodoaseusmaxilaresbateremumnooutro. Seus olhos opacos carearam, e porummomentoelepareceuatônito.– Você não vai desfalecer – Vasya

retorquiu.–Podeextrairsuavidademim.Você fará isso.O caolho, o comedor, nãoentrarádenovo.Nãoentrará.Nãohavialeite,masVasyarouboupãoe

o enfiou na mão do domovoi. Fez issonaquelanoiteeemtodasasoutrasdepois

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disso, reduzindo as próprias refeições.Cortou a mão e espalhou o sangue nospeitoriseemfrenteaoforno.Pressionouamão sangrenta na boca do domovoi. Suascostelas saltaram pela pele, os olhosficaram fundos, e pesadelos perseguiramseusono.Masasnoitesseescoaram,uma,duas, uma dúzia, e ninguém mais gritouperantealgumacoisaquenãoestavaali.Ovacilante domovoi resistiu, e ela despejousuaforçadentrodele.MasapequenaAgafyanuncamaisfalou

coisa com coisa. Às vezes, alegava coisasqueninguémpodiaver:santos,anjoseumurso caolho.Mais tarde, delirou com umhomem e um cavalo branco. Uma noite,saiu correndo da casa, desmaiou na neve

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comoslábiosroxosemorreu.Asmulheresprepararamocorpocoma

rapidezpermitidapeladecência.OpadreKonstantin manteve uma vigília ao seulado, lábios brancos, cabeça curvada, umrosto que ninguém poderia interpretar.Embora se ajoelhasse ao seu lado, nemuma vez rezou em voz alta. As palavraspareciam engasgar em sua esforçadagarganta.EnterraramAgafyanabreve luzdiurna

de inverno, enquanto a floresta gemia aoredor deles. No rápido declinar docrepúsculo, todoscorrerampara se juntarperante seus fornos. O filho de Agafyachorou pela mãe, seu gemido pairandofeitonevoeirosobreaaldeiasilenciosa.

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Na noite após o funeral, um sonho seapossou deDunya como se fosse doença,como as mandíbulas de uma criaturacaçadora. Ela estava parada em umaflorestaimóvel,cheiadetocosescurecidosde árvores. Uma fumaça oleosa encobriaas estrelas hesitantes; o fogo faiscava sualuzcontraaneve.Orostododemôniodogelo era uma máscara de caveira com apelebemrepuxada.SuavozsuaveassustouDunyamaisdoquesegritasse.–Porquevocêadiou?Dunyajuntoutodasassuasforças.– Amo ela. É como se fosse minha

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própriafilha.Vocêéoinverno,Morozko,éamorte,égelado.Nãopodeficarcomela.ElavaientregaravidaaDeus.Odemôniodogeloriucomamargura.– Ela morrerá no escuro. O poder do

meuirmãoaumentadiaadia.Eelaoviu,quandonãodeveria.Agoraelesabecomoelaé.Sepuder,amataráealevaráconsigo.Aívocêterámotivoprafalaremdanação.– A voz de Morozko suavizou-seligeiramente.–Possosalvá-la–disseele.–Posso salvar todos vocês.Mas ela precisaficarcomaquelajoia.Casocontrário…EDunyaviuquealuzdofogofaiscante

era sua aldeia queimando. A florestaencheu-se de criaturas sinistras, cujosrostos ela conhecia. A maior dentre elas

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era um caolho sorridente, e ao lado delehavia outra forma, alta e esguia, com apalidezdeumcadáver,cabeloescorrido.– Você deixou que eu morresse – o

espectrodissecomavozdeVasya,eseusdentesreluziramentrelábiossangrentos.Dunya viu-se pegando o colar e o

estendendo. Ele soltou um minúsculofragmento de luz nummundo informe eescuro.– Eu não sabia – gaguejou Dunya. Ela

tentou alcançar a menina morta, o colarbalançandodoseupunho.–Vasyapegue.Vasya! – Mas o caolho apenas riu, e ameninanãofezumgesto.Então, o demônio do gelo colocou-se

entreelaeohorror,agarrouseusombros

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comasmãosdurasegeladas.– Você não tem tempo, Avdotya

Mikhailovna–afirmouele.–Dapróximavez que me vir, farei um aceno e vocêseguirá. – Sua voz era a voz damadeira,pareciaecoaremseusossos,vibraremsuagarganta. Dunya sentiu suas entranhasretorcerem-se de medo e certeza. – Masvocê pode salvá-la antes de ir – eleprosseguiu.–Temquesalvá-la.Dêocolarpraela.Salvetodos.–Darei–sussurrouDunya.–Serácomo

vocêdiz.Juro.Juro…E,então,aprópriavozacordou-a.Mas o calafrio daquela floresta

queimada,do toquedodemôniodogelo,permaneceu. Os ossos de Dunya

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estremeceram até que pareceu quetremeriam atravessando a pele. Tudo oque ela conseguia ver era o demônio dogelo,decididoedesesperado,eorostoàsgargalhadasdoseuirmão,acriaturadeumolhosó.Osdoisrostosconfundiram-seemum. A pedra azul no seu bolso pareciagotejar chama gelada. Sua pele rachou eescureceuquandosuamãosefechoucomforçaaoredordela.

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20

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UMPRESENTEDEUMESTRANHO

NAQUELES DIAS REDUZIDOS E

METÁLICOS, VASYA IA ATÉ OSCAVALOS todas as manhãs assim queamanhecia, apenas um pouco depois dopai. Tinham uma afinidade com isso,temer pelos animais ardorosamente. Ànoite,oscavaloseramcolocadosnodvor,asalvopordetrásdapaliçada,etodososquecabiam eram resguardados no estábuloresistente.Mas,duranteodia,eramsoltospara se defenderem por si mesmos,

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perambulando pelas pastagens cinza eescavandocapimdebaixodaneve.Numamanhãclaraegélida,poucoantes

do alto inverno, Vasya levou os cavalosparaopasto,aosgritos,montadaempeloem Mysh. Mas depois que os cavalosestavamacomodadosameninadesmontoue examinou a égua com atenção. Suascostelas estavam começando a apareceratravés da pelagem castanha, não pornecessidade,maspelaespera.Elevaivoltar,aéguadisse.Você consegue

sentirocheiro?Vasyanãotinhaofocinhodeumcavalo,

mas se virou para o vento. Por uminstante,ocheirodefolhasapodrecendoepestefechousuagarganta.

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–Consigo–dissesoturna,tossindo.–Oscachorros também sentem. Ganemquandosãosoltosecorremparaoscanis.Masnãovoudeixarqueeletemachuque.Elacomeçousua ronda, indodecavalo

emcavalo,commiolosmurchosdemaçã,cataplasmas e palavras carinhosas. Myshseguiu-acomoumcachorro.Àmargemdorebanho, Metel raspou o chão com umcascodianteiroeemitiuumdesafioparaamataàespera.– Fique calmo – pediu Vasya. Ela se

aproximou do garanhão e colocou amãonacrineiraquente.Ele estava furioso como um garanhão

quevêumrivalentresuaséguasequaseaescoiceou antes de se controlar. Que ele

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venha!Empinou-se,dandogolpescomsuaspatasdianteiras.Destavezvoumatá-lo.Vasya esquivou-se dos cascos voadores,

pressionando seu corpo de encontro aodele.–Espere–disseelaemseuouvido.Ocavalogirou,estalandoosdentes,mas

ela se colou nele, e ele não conseguiualcançá-la.Manteveavozbaixa:–Guardeasuaforça.Osgaranhõesobedecemàséguas;Metel

abaixouacabeça.– Você precisa estar forte e calmo

quandoelevier–explicouVasya.Seu irmão, disseMysh.Vasyavirou-se e

viuAlyosha,semchapéu,correndoemsuadireção,saindodoportãodapaliçada.

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Em umminuto, Vasya passou o braçopordetrásdacernelhadeMisheseviunascostas do animal. A égua galopou pelocampo, chutando para o alto a camadacongelada. A cerca resistente do pastosurgiu, mas Mysh venceu a barreira econtinuoucorrendo.Vasya encontrou-se com Alyosha logo

juntoàpaliçada.– É a Dunya – disse Alyosha. – Não

acorda.Estárepetindoseunome.–Vamos–disseVasya,eAlyoshalançou-

seatrásdela.

Acozinhaestavaquente;ofornoroncavae

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bocejava como uma boca. Dunya seencontravadeitada emcimado forno, deolhosabertosesemenxergar,imóvel,comexceção das mãos que se retorciam.Murmuravaconsigomesmavezououtra.Sua pele quebradiça estendia-se sobre osossos, tão repuxada que Vasya pensoupoder ver o sangue fluindo. Subiurapidamenteemcimadoforno.–Dunya–chamouela.–Dunya,acorde.

Soueu.AVasya.Osolhosabertospiscaramumavez,mas

foitudo.Vasyapassouporummomentodepânico; sufocou-o. Irina e Anna estavamajoelhadas ladoa ladoemfrenteaocantodos ícones, rezando. Lágrimas escorriamno rosto de Irina; não era bonita quando

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chorava.– Água quente – disse, secamente,

Vasya, voltando-se. – Irina, pelo amor deDeus, rezar não vai deixá-la aquecida.Tragasopa.Annaolhou comolhos venenosos,mas

Irina, com uma rapidez surpreendente,levantou-seeencheuumatigela.Vasyapassouodiatodosentadaaolado

de Dunya, curvada em cima do forno.Envolveuocorpomurchodasuaamacomcobertoresetentoufazê-laengolirocaldo.Masolíquidoescorriaparaforadaboca,eela não acordava. Durante todo aquelelongo dia, as nuvens amontoaram-se e aluzdiurnaescureceu.No fim da tarde, Dunya puxou o ar

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como se pretendesse engolir o mundo epegou nasmãos deVasya.Amenina deuum pulo para trás, surpresa. A força nagarradavelhaamasurpreendeu-a.–Dunya–eladisse.Osolhosdavelhasenhoravagaram.– Eu não sabia – a ama murmurou. –

Nãovi.–Vocêvaificarbem–respondeuVasya.–Ele temumolho.Não,ele temolhos

azuis. Eles são o mesmo. São irmãos.Vasya, lembre-se… – E, então, sua mãocaiu e ela ficou parada, resmungandoconsigomesma.Vasyadespejoumaiscolheresdebebidas

quentes na garganta de Dunya. Irinamanteveofogocrepitando.Masapulsação

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davelhasenhoraenfraqueceujuntocomaluzdodia.Elaparoudemurmurareficoucomosolhosabertos.– Ainda não. – Ela se dirigiu ao canto

vazio,chorandoalgumasvezes.–Porfavor–disse,então.–Porfavor.O dia débil tremeluziu e um silêncio

abateu-sesobreacasaeaaldeia.Alyoshasaiuparabuscar lenha. Irina foi cuidardesuamãerabugenta.QuandoavozdeKonstantinquebrouo

silêncio,Vaysaquasemorreudesusto.– Ela está viva? – ele perguntou. As

sombrasenvolviam-nocomoummanto.–Está–respondeuVasya.–Rezareicomela–eledisse.– Não faça isto – retorquiu Vasya,

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cansada e assustada demais paragentilezas.–Elanãovaimorrer.Konstantinaproximou-se.–Possoaliviaradordela.– Não – Vasya repetiu. Estava quase

chorando.–Elanãovaimorrer.PeloamorquetemaDeus,eulheimploro,saia.– Ela está morrendo, Vasilisa Petrovna.

Aquiéomeulugar.– Não está! – A voz de Vasya foi

arrancadada suagarganta.–Elanãoestámorrendo.Vousalvá-la.–Estarámortaaoamanhecer.– O senhor quer que aminha gente o

ame, então faz comque tenhammedo. –Vasya estava pálida de fúria. – Não voudeixarqueDunyatenhamedo.Saia.

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Konstantinabriuabocaevoltouafechá-la. Virou-se abruptamente e deixou acozinha.Vasya esqueceu-o na mesma hora.

Dunyanãohaviaacordado.Estavadeitadaquieta,suapulsaçãoporumfio,Vasyamalasentiarespiraremsuamãoinquieta.Anoiteveio.AlyoshaeIrinavoltaram.A

cozinha encheu-se brevemente de umburburinho abafado, enquanto a refeiçãonoturna era servida.Vasyanão conseguiucomer.Ashorassearrastarameacozinhase esvaziou mais uma vez até que sórestaram quatro pessoas: Dunya, Vasya,Irina e Alyosha. Os dois últimoscochilavamsobreoforno.AprópriaVasyacabeceava.

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–Vasya–disseDunya.Vasya acordou de um pulo, com um

soluço.Dunyatinhaavozfraca,masestavalúcida.– Você está bem,Dunyashka. Eu sabia

queestaria.Dunyasorriusemmostrarosdentes.–Sim–eladisse.–Eleestáesperando.–Quemestáesperando?Dunya não respondeu. Lutava para

respirar.–Vasochka–elachamou.–Tenhouma

coisaqueseupaimedeupraguardarpravocê.Precisoteentregaragora.–Maistarde,Dunyashka–disseVasya.–

Agoravocêprecisadescansar.MasDunya já remexianobolsoda sua

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saiacomamãorígida.Vasyaabriuobolsopara ela e tirou algo duro, embrulhadonumtrapomacio.– Abra – sussurrou Dunya. Vasya

obedeceu.O colar era feito de ummetalclaro e cintilante, mais brilhante do queprata,enoformatodeumflocodeneveoudeumaestrelacomváriosraios.Umajoiade um azul prateado brilhava no centro.Annanãotinhanenhumajoiaigualàquela.Vasyajamaisviraalgotãobelo.– Mas o que é isto? – ela perguntou,

aturdida.– Um talismã – respondeu Dunya,

lutando para respirar. – Ele tem poder.Mantenha-oescondido.Nãofalesobreele.Seoseupaiperguntar,digaquenãosabe

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nadaarespeito.Loucura. Uma linha formou-se entre as

sobrancelhas de Vasya, mas ela passou acorrente pela cabeça. Balançou entre osseusseios,invisíveldebaixodasroupas.Repentinamente,Dunyaficourígida,os

dedos secos esgaravatando o braço deVasya.–Oirmãodele–elafalouentredentes–

estábravoporvocêterajoia.Vasya,Vasya,você precisa… – Ela se engasgou eemudeceu.Lá de fora veio uma risadinha longa e

selvagem.Vasya ficou paralisada, o coração aos

pulos. De novo? Da última vez, eu estavasonhando. Então, veio uma raspagem, o

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som macio de um pé se arrastando. Eoutra, e outra. Vasya engoliu em seco.Desceu do forno sem fazer barulho. Odomovoiestavaagachadonabocadoforno,frágilealerta.– Ele não pode entrar – disse,

ameaçador.–Nãovoudeixar,nãovou.Vasyapousouamãosobreasuacabeça

efoicomcautelaatéaporta.Noinverno,nada cheira apodredo ladode fora,masna soleira ela captou uma lufada depodridãoquerevirouseuestômagovazio.Sobre o esterno, onde se achava a joia,sentiuumasensaçãodequeimadodefrio.Soltou um gritinho de dor. AcordarAlyosha? Acordar a casa? Mas o que eraaquilo?O domovoidiz que não vai deixá-lo

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entrar. Vou ver, Vasya pensou. Não tenhomedo.Saiupelaportadacozinha.–Não–arfouDunyadoforno.–Vasya,

não. –Virou um pouco a cabeça. – Salveela–sussurrouparaovazio.–Salve-aeeunãome importo se o seu irmão viermebuscar.

Fosseoquefossetinhaumcheirodiferentedetudo:morte,pestilênciaemetalquente.Vasya seguiu a pista das pegadas que searrastavam.Ali,ummovimento rápido,àsombra da casa. Viu algo como se fosseuma mulher, bem abaixada, usando umenvoltóriobrancoquesearrastavananeve.

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Acoisasemoviadelado,comosetivesseinúmerasarticulações.Vasya juntou coragem e se aproximou

furtivamente. A coisa arremessava-se dejanelaemjanela,parandoemcadauma,àsvezes estendendo a mão retrátil, nuncatocandoopeitoril.Mas,naúltimajanela,ado padre, ela ficou esticada. Seus olhoscintilavamvermelhos.Vasyacorreuemfrente.Odomovoidisse

queelenãopoderiaentrar.Masumapancadadeumpunhoexanguerompeuogeloqueestavaatracadonobatentedajanela.Vasyaviuumlampejodepelecinzaàluzdalua.A roupabrancaque se arrastavaeraumamortalha,edebaixodelaacriaturaestavanua.

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Morta, Vasya pensou. Aquela coisa estámorta.As mãos cinzentas e gotejantes

agarraram o alto peitoril da janela deKonstantin, e a coisa – ela, porque Vasyaviu de relance o cabelo longo eembaraçado – pulou para dentro doquarto. Vasya parou debaixo da janela,depois seguiu a coisa subindo e pulandopara dentro. Conseguiu fazer isso,recorrendo a uma força brutal. Dentroestavaescurocomobreu.Acoisaagachou-se, rosnando, sobre uma figura sedebatendonacama.As sombras na parede pareceram se

avolumar,comosefossemsaltarparaforadamadeira.Vasyapensouterouvidouma

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voz:Amenina!Deixe-o, ele jáémeu.Pegueamenina,pegue-a…Umadoremseuesternoaguilhoou-a;a

joiaqueimavacomoumgeloardente.Sempensar,Vasya levantou amãoe gritou.Acriaturana camagirou,o rostoescurodesangue.Pegue-a!, rosnou a voz-sombra

novamente. Os dentes brancos da coisamorta captaram o luar, enquanto ela sepreparavaparapular.Subitamente,Vasyapercebeuquehavia

maisalguémaoseulado:nãoumamulhermorta,nemumavozfeitadesombras,masum homem num capote escuro. Nãoconseguiaverseurostonaescuridão.Fossequemfosse,elepegouamãodelaeenfiou

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osdedosemsuapalma.Vasyaengoliuumgrito.Você está morta, disse o recém-chegado

para a criatura.E eu ainda sou o chefe.Vá.Suavozeracomoaneveàmeia-noite.A coisa morta na cama recuou

encolhida, gemendo. As sombras naparede pareceram erguer-se numa fúriaclamorosa,rugindo:Não, ignore-o; elenãoénada.Eusouochefe.Leve-a,leve…Vasyasentiuapeledasuamãoseabrire

pingarsanguenochão.Foitomadaporumentusiasmoviolento.– Vá – ela disse para a coisa morta,

como se sempre tivesse conhecido aspalavras.–Pelomeusangue,estelugarlheestáimpedido.–Fechouamãoaoredorda

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que segurava a sua, sentindo-aescorregadia com seu sangue. Por uminstante,aoutramãopareceureal,geladae dura. Ela estremeceu e se virou paraolhar,masnãohavianinguémali.As sombras na parede pareceram se

encolhersubitamente,tremendo,gritando,eoslábiosdacriaturamortacontorceram-se de volta sobre dentes longos e finos.GuinchouparaVasya,virou-seefoiparaajanela.Subiunopeitoril,pulouparaaneveeseguiuemdireçãoàfloresta,maisrápidadoqueumcavaloemdisparada,ocabeloembaraçadoesujoestendendo-seatrás.Vasyanãoaviupartir.Jáestavajuntoà

cama, puxando os cobertores sujos,procurandooferimentonopescoçonudo

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padre.

AvozdeDeusnãohaviaconversadocomKonstantin Nikonovich naquela noite. Opadrerezarasozinho,horapóshora.Masseus pensamentos não se concentravamnas palavras desgastadas. Vasilisa estáenganada, Konstantin pensara. Queimportância tem um pouco de medo, se elesalvasuasalmas?Ele quase voltara à cozinha para dizer

isso a ela.Mas estava cansado e ficou noquarto, ajoelhado, mesmo depois de terescurecidodemaisparaquesevisseoourodescascadodoícone.

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Poucoantesdonascerdalua,foiparaacamaesonhou.Emseusonho,avirgemdeolhosternos

descia do seu painel de madeira. Traziauma luz sublime no rosto. Sorria. Quis,maisdoquetudo,sentiramãodelaemseurosto, receber a bênção. Ela se curvousobre ele, mas não foi sua mão que elesentiu.Suabocaroçouemsuatesta,tocouseus olhos. Depois, ela pôs um dedo sobseu queixo, e sua boca encontrou a dele.Beijou-o repetidas vezes. Mesmodormindo, a vergonha lutou contra odesejo;tentouempurrá-ladebilmente,masos mantos azuis eram pesados, o corpodela era como uma brasa contra o dele.Por fim, ele se rendeu, virando o rosto

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paraodelacomumgemidodedesespero.Ela sorriu contra a boca dele, como se aangústia dele lhe agradasse. A boca delaarremessou-seemdireçãoàgargantadelecoma velocidade deum falcão embuscadapresa.Então, ela soltou um grito agudo e

Konstantinacordoudeumpulo,presosobumpesoqueestremecia.Opadrerespiroufundoeseengasgou.A

mulher sibilou e rolou de cima dele. Eleteveumrelancedocabeloembaraçadoquesemiencobriaolhoscomorubis.Acriaturafoiparaajanela.Eleviuduasoutrasfigurasnoquarto,umarevestidadeazul,aoutra,escura. A forma azul foi até ele. Semenergia, Konstantin tateou a cruz em seu

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pescoço,masorostoiluminadodeazulerade Vasilisa Petrovna, um ícone em simesma,todaangulosaedeolhosimensos.Osolhosdosdoisencontraram-seporummomento,osdelearregaladosdeespanto,e então as mãos dela foram até a suagargantaeeledesmaiou.

Elenãoestavaferido;suagarganta,obraçoe o peito não traziammarcas. Foi isso oqueVasya conseguiu sentir, apalpandonoescuro,eentãohouveumabatidaàporta.Vasyasaltouparaajanelaemeioquecaiuno dvor. A lua brilhava sobre o pátionevado.Elasejogounaterraeseagachou

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soba sombradacasa, tremendode frioecomoconsequênciadoterror.Ouviuhomensirromperemnoquartoe

estacou.Agarrandocomasmãos,aalturadeVasyasólhepermitiaespiarporsobreopeitoril de Konstantin. O quarto fedia apodridão.Rapidamente,opadresentou-seereto,agarrandooprópriopescoço.OpaideVasyaparousobreele, segurandoumalanterna.– Você está bem, Batyushka? – Pyotr

perguntou.–Ouvimosumgrito.– Estou – respondeu Konstantin

titubeante, olhar assustado. – Estou, medesculpe.Devotergritadoduranteosono.Os homens na entrada do quarto

entreolharam-se.

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–Ogelopartiu–disseKonstantin.Saiudacamaetevedificuldadeparasepôrempé.–Ofriomefeztersonhosruins.Vasya abaixou-se rapidamente, quando

seus rostos pálidos voltaram-se para olugar onde se escondia. Agachou-se àsombra da casa sob a janela, procurandonão respirar. Ouviu o pai pigarrear e sedirigiratéocaixilhoquebrado,ondetodooblocodegelohaviacaído.Asombradacabeçaedosombrosdeleincidiramsobreela,quandoele sedebruçoucomcuidadosobre o dvor. Por sorte, não olhou parabaixo.Nadasemovianopátiodeentrada.Então, Pyotr fechou as venezianas ecolocouumacunhaentreelas.MasVasya não ouviu isso.No instante

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em que as venezianas se fecharam, elaestavacorrendoatodaavelocidadeparaacozinhadeinverno.

A cozinha estava quente e escura, comoum útero. Vasya passou pela porta demansinho.Estava com todososmembrosdoloridos.–Vasya?–Alyoshadisse.Vasya escalou para cima do forno.

Alyoshaajoelhou-seaoseulado.–Está tudobem,Dunya – disseVasya,

pegando nas mãos da sua ama. – Agoravocêficarábem.Estamossalvos.Dunyaabriuosolhos.Umsorrisotocou

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suabocamurcha.– Marina ficaria orgulhosa, minha

Vasochka–disseela.–Voucontarpraelaquandoagenteseencontrar.– Você não vai fazer nada disso –

retrucouVasya.Tentousorrir,emboraseusolhos estivessem nublados de lágrimas. –Vocêvaificarboadenovo.Aoouvirisso,avelhasenhoralevantou

a mão gelada e, com surpreendentefirmeza,empurrouVasyaparalonge.–Nãovounão–disse a ama, comum

poucodo seuvelhoazedume.–Viviparaver todos os meus pequenos crescidos enão quero nada além de morrer comminhasúltimastrêscriançasdecadalado.–Irinatambémestavaacordadaagora,ea

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outra mão de Dunya esticou-se eencontrouadela.Alyosha estendeu a mão sobre todas

elas. Falou antes que Vasya pudesseprotestar:–Vasya,elatemrazão–disseele.–Você

precisa deixar que ela parta. O invernoserácruel,eelaestáexausta.Vasya sacudiu a cabeça, mas sua mão

vacilou.–Porfavor,querida–sussurrouavelha

senhora.–Estoumuitocansada.Vasyahesitouporummomento,depois

baixou a cabeça num consentimentomínimo.Avelhasenhorasoltouaoutramãocom

dificuldadeesegurouasdeVasyanassuas.

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–Suamãeteabençoouaopartir,eagoraeu façoomesmo.Fiqueempaz. –Parouporuminstante,comoseescutasse.–Vocêprecisa se lembrar das histórias antigas.Façaumaestacadesorveira-brava.Vasya,tomecuidado,tenhacoragem.Suamãocaiueelaficouquieta.Coubea

Irina,AlyoshaeVasyapegaremsuasmãosfrias, esforçando-se para ouvir o som dasuarespiração.Porfim,Dunyaergueu-seevoltou a falar, tão baixo que eles tiveramque se inclinar para junto dela paraentendersuaspalavras.–Lyoshka–sussurrouela.–Vocêcanta

pramim?– Claro – sussurrou de volta Alyosha.

Hesitou,depoisrespiroufundo.

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Houveumaépoca,hánãomuitotempo,emqueasflorescresciamoanotodoosdiaseramlongos,asnoitesestreladaseoshomensviviamlivresdomedo.Dunya sorriu. Seus olhos cintilaram

comoosdeumacriança,e,emseusorriso,Vasyaviuasombradameninaquejáfora.Masasestaçõessetransformameasestações

mudamoventosopradosul,chegamosfogos,astempestades,aslanças,atristezaeaescuridão.

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Um vento formava-se lá fora. O ventofrioqueanuncianeve.Masostrêssentadossobre o forno mantiveram-se alheios.Dunyaouviacomosolhosabertos,oolharfixo em alguma coisa que nem mesmoVasyaconseguiaver.Masbemaolongeexisteumlugarondecrescemfloresamarelasondeosolnascenteiluminaacostapedregosaedouraaespumaesvoaçanteondetudotemqueacabaretudo…Alyoshafoiinterrompido.Oventoabriu

aportadacozinhacomestrondoeentrou

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guinchandopelocômodo.Irinasoltouumgritinho.Comovento,veioumafiguradecapote preto, embora ninguém a visse,exceto Vasya. A menina prendeu arespiração.Jáatinhavistoantes.Afiguradirigiu-lhe um único olhar demorado,depois estendeu os longos dedos nagargantadeDunya.Avelhasenhorasorriu.–Jánãotenhomedo.Nestemomento,veioasombra.Incidiu

entre a figura de capote preto e Dunya,assimcomoummachadofendeamadeira.–Ah,irmão–disseavoz-sombra.–Tão

desprevenido? – A sombra sorriu, umgrande sorriso negro vazio, e pareceu seestenderepegarDunyacomdoisgrandes

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braços.Apaznorostodelatransformou-seemterror.Seusolhos saltaramdacabeça,salientes, e o rosto ficou escarlate. Vasyaviu-se de joelhos, amedrontada, aturdida,sacudidaporsoluços.–Oquevocêestáfazendo?!–gritou.– Não… Deixe-a ir! – O vento rugiu

novamente pelo cômodo, de início umvento invernal, depois o vento úmido ecrepitante que sopra antes de umatempestadedeverão.Mas o vento passou tão rápido quanto

tinhaseformado,levandocomeletantoasombraquantoohomemdecapotepreto.– Vasya – disse Alyosha em meio ao

silêncio.–Vasya.Pyotr e Konstantin entraram correndo,

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oshomensdacasalogoatrás.Pyotrestavacoradode frio;nãotinha idoparaacamadepois do incidente no quarto do padre,masmandaraseushomenspatrulharemaaldeia adormecida. Todos tinham ouvidoosgritosdeVasya.VasyaolhouparaDunya.Estavamorta.

Seu rosto banhado de sangue, e umapequena espuma manchava os cantos daboca.Seusolhosestavamprotuberantes,oescuronadandoempoçasdesangue.– Elamorreu commedo – disse Vasya

bem baixinho, tremendo. – Morreu commedo.–Vamoslá,Vasochka–disseAlyosha.–

Desça.Ele tentara fechar os olhos de Dunya,

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mas estavam muito salientes. A últimacoisa que Vasya viu antes de descer doforno foi a expressão de horror no rostomortodeDunya.

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ACRIANÇACOMCORAÇÃODEPEDRA

DUNYA FOI COLOCADA NA CASA DE

BANHOS, E, AO AMANHECER, ASmulheres vieram barulhentas comogalinhas cacarejando. Banharam o corpogastodeDunya,envolveram-naemlinhoevelaram ao seu lado. Irina ajoelhou-sechorando,acabeçanocolodamãe.PadreKonstantin também se ajoelhou,mas nãoparecia rezar.Tinhao rostobrancocomolinho. Sua mão trêmula tateou repetidasvezessuagargantasemmarca.

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Vasya não estava ali. Quando asmulheres foram atrás dela, não foiencontradaemlugaralgum.–Elasemprefoimalandra–murmurou

umaparaaoutra–,masnuncapenseiquefossetãomá.A amiga concordou sombriamente, a

bocacontraída.DunyaforacomoumamãeparaVasilisa, depois damorte deMarinaIvanovna.–Está no sangue.Dá pra ver no rosto.

Temolhosdebruxa.

Assimqueamanheceu,Vasyaesgueirou-separa fora, com uma pá sobre o ombro.

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Tinha uma expressão determinada. Fezalgunspreparativos, depois foi procuraroirmão. Alyosha cortava lenha. Seumachado assobiava, descendo com talforça que as achas estouravam e seespalhavamnaneveaseuspés.–Lyoshka–disseVasya–,precisodasua

ajuda.Alyoshapiscouaoolharairmã.Andara

chorando;oscristaisdegelocintilavamemsuabarbacastanha.Faziamuitofrio.–Oqueé,Vasya?–ADunya encarregou a gentedeuma

missão.Oqueixodorapazenrijeceu-se.– Este não é omelhormomento – ele

respondeu. – Por que você está aqui? As

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mulheres estão fazendo o velório; vocêdeveriaestarcomelas.–Ontemànoite–disseVasya,afoita–,

haviaumacoisamorta.Nacasa.Umupyr,comonashistóriasdaDunya.Veioquandoelaestavamorrendo.Alyosha ficou calado. Vasya encarou-o

nos olhos. Ele tinha os nós dos dedosbrancos, quando tornou a descer omachado.–Vocêafugentouomonstro, foi isso?–

disse com algum sarcasmo, entremachadadas. – Minha irmãzinha, porcontaprópria?–Dunyamecontou–Vasyadisse.–Ela

medissepramelembrardashistórias.Prafazerumaestacadesorveira-brava.Vocêse

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lembra?Porfavor,irmão.Alyoshaparoudecortar.–Oquevocêestásugerindo?–Agenteprecisaselivrardele.–Vasya

respirou fundo. – Precisamos procurarcovasremexidas.Alyoshafranziuocenho.Vasyatinhaos

lábiosbrancos,eseusolhoseramgrandesburacosescuros.–Bem,vamosver–Alyoshadisse,com

um levíssimo toque de ironia. – Vamosescavar no cemitério. Falando sério, fazmuito tempo que o padre não bate emmim.Ele empilhou sua lenha e ergueu o

machado.Tinha nevado na hora precedente ao

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amanhecer.Nãohavianadaaservistonocemitério, a não ser vagos montinhosdebaixodosdepósitos cintilantesdeneve.Alyoshaolhouparaairmã.–Eagora?A boca de Vasya retorceu-se

espontaneamente.– Dunya sempre disse que os homens

virgens são melhores para descobrir osmortos-vivos. Você anda em círculos atétropeçarnatumbacerta.Incomoda-sedeirnafrente,irmão?– Acho que você está sem sorte,

Vasochka – disse Alyosha com certarispidez–,ejáfazalgumtempo.Vamosterqueraptarummeninocamponês?Vasyaassumiuumaexpressãovirtuosa.

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–Ondeamaiorvirtude falha,amenordevefazeroseuinsignificantemelhor–elao informou e subiu primeiro entre astumbascintilantes.Sinceramente, ela duvidava que a

virtude tivesse algo a ver com aquilo. Ocheiropairavacomochuvadiabólicasobreo cemitério, e não demorou muito paraque Vasya parasse, chocada, num cantofamiliar.ElaeAlyoshaentreolharam-se,eseuirmãocomeçouacavar.Aterradeveriaestar dura de gelo, mas estava úmida erecém-remexida. À medida que Alyosharetirouaneve,ocheiroveiocomtalforçaque ele se virou, nauseado.Mas, com oslábioscerrados,enfiouapánaterra.Numtempo surpreendentemente curto,

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descobriram a cabeça e o torso de umafigura, envolta em uma mortalha. Vasyapegouumafaquinhaecortouaroupafora.–MãedeDeus–disseAlyosha,edeuas

costas.Vasyanãodissenada.Apeledapequena

Agafyatinhaobrancoacinzentadodeumdefunto, mas seus lábios estavamvermelhos como morango, cheios emacios,comonuncahaviamsidoemvida.Seus cílios lançavam sombras rendilhadasemsuasfacesemaciadas.Eladeveriaestaradormecida,empazemumleitodaterra.–Oquefazemos?–perguntouAlyosha,

muito pálido e respirando o mínimopossível.–Umaestacapelaboca–disseVasya.–

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Fizumaestacaestamanhã.Alyosha estremeceu, mas se ajoelhou.

Vasya ajoelhou-se ao lado dele, as mãostrêmulas. A estaca tinha sido feitagrosseiramente, mas era afiada, e Vasyalevantouumagrandepedraparaservirdemartelo.– Bem, irmão – disse ela –, você vai

seguraracabeçadelaouenfiaraestaca?Ele estava branco como os montes de

neve,masdisse:–Soumaisfortedoquevocê.– É bem verdade – ela respondeu.

Estendeu-lheaestacaeapedraeforçouosmaxilaresdacoisaaseabrirem.Osdentes,afiados como os de um gato, reluziamcomoagulhasdeosso.

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A visão deles arrancouAlyosha do seuestupor.Juntandocoragem,enfiouaestacaentreoslábiosvermelhosebateunelacomapedra.Jorrousangue,vazandoparaforadaboca e sobreoqueixo cinza.Osolhosabriram-se,imensosehorrorosos,emboraocorponãosemexesse.A mão de Alyosha teve um

estremecimento; ele largou a estaca, eVasya tirou os dedos dela bem a tempo.Houve um esmagamento repugnantequando a pedra estilhaçou o osso malardireito. A coisa soltou um grito débil,emboracontinuassesemsemexer.Para Vasya, pareceu que um vago

trovejardefúriaveiodafloresta.–Rápido–eladisse.–Rápido,rápido.

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Alyoshamordeualínguaereacomodousuaempunhadura.Apedratinhafeitoumestrago informe no rosto. Ele bateunovamente na estaca, e mais uma vez,suandoapesardofrio.Porfim,apontadaestacaraloucontraoossoeumgolpefinale feroz fez com que atravessasse para ooutro lado do crânio.A luz esvaiu-se dosolhos abertos do cadáver, e a pedra caiudosdedossemenergiadeAlyosha.Ele seafastou, ofegante. As mãos de Vasyapingavam sangue e coisas piores,mas elasoltou Agafya quase distraidamente.Olhavafixoparaafloresta.– Vasya, o que é isso? – perguntou

Alyosha.–Pensei tervistoalgumacoisa–Vasya

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sussurrou. – Olhe ali. – Ela havia selevantado. Um cavalo branco e umcavaleiroescuroafastavam-senumgalopeleve, engolidos quase queinstantaneamente no emaranhado dasárvores.Alémdeles, pareceu-lhe ter vistooutra figura, como uma grande sombra,observando.–Nãotemninguémaquianãosernós,

Vasya–disseAlyosha.–Venha,meajudeaenterrá-la e a alisar a neve. Rápido. Asmulheresvãoteprocurar.Vasya concordou com a cabeça e

levantou apá.Ainda estava como cenhofranzido.– Já vi o cavalo antes – disse consigo

mesma – e seu cavaleiro, que usa um

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capotepreto.Eletemolhosazuis.

Vasya não voltou para casa depois que oupyrfoienterrado.Lavouaterraeosanguedas mãos, foi para o estábulo e seenrodilhounabaiadeMysh,quefossouoaltodasuacabeça.Ovazilaestavaaoseulado.Vasya ficou ali sentada por um bom

tempo e tentou chorar. Pelo rosto deDunyaaomorrer,pelaruínasangrentadeAgafya. Até pelo padre Konstantin. Mas,emborativesseficadoalipormuitotempo,aslágrimasnãovieram.Haviaapenasumlugarocodentrodelaeumgrandesilêncio.

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Quandoosolestavasepondo,ameninajuntou-seàsmulheresnacasadebanhos.Todas as mulheres voltaram-se contra

ela, ao mesmo tempo. Descuidada,disseram.Maluca.Insensível.Maisbaixinho,elaouviu:Bruxa.Comoamãe.–Vocêéumacoisinha ingrata,Vasya–

regozijou-seAnnaIvanovna.–Maseunãoesperavanadamelhor.Naquela noite, ela curvou Vasya sobre

umbanquinhoedesceusuavaradebétulacom força, embora Vasya fosse velhademais para apanhar. Apenas Irina ficoucalada,mas olhou para a irmã com umacensuradeolhosvermelhos,piordoqueasfalasdasmulheres.Vasya suportou aquilo tudo, mas não

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conseguiuargumentaremsuadefesa.Dunya foi enterrada no fim do dia. As

pessoascochicharamentresidurantetodoo funeral, rápido e congelante. Seu paiestava abatido e pálido; ela nunca o viraparecertãovelho.–Dunyaamavavocêcomofilha,Vasya–

eledisse,maistarde.–Justohojevocêfoisumir.Vasya não disse nada, mas pensou em

suamãoferida,nanoitedifícileestrelada,najoiaemsuagarganta,noupyrnoescuro.

– Pai – ela disse naquela noite. Oscamponeses tinham voltado para suas

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cabanas.Elapuxouobanquinhoparapertode Pyotr. As chamas do fogo saltitavamvermelhas,ehaviaumespaçovaziojuntoà fornalha, onde Dunya costumava ficar.Pyotrfaziaumcabonovoparasuafacadecaça. Tirou uma pequena espiral demadeiraeolhouparaafilha.Sobaluzdofogo, seurostoestavaabatido.–Pai–elarepetiu. – Eu não teria sumido semnecessidade. – Falava tão baixo que nacozinha lotada apenas os dois podiamouvir.–Quenecessidade,então,Vasya?–Pyotr

colocouafacadelado.Parecia temer sua resposta, Vasya

percebeu. Reprimiu a confusa confissãoque estremecia em sua garganta.O upyr

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estámorto, pensou.Não vou sobrecarregá-lomais,nãoparaaliviarmeupróprioorgulho.Eleprecisaestarforteparatodosnós.– Fui… até o túmulo da mamãe – ela

disse,rapidamente.–Dunyamepediuquefosseerezasseparaelasduas.Elaestácomamamãe,agora.Era…maisfácilrezarali,nosilêncio.Seu pai pareceu mais acabado do que

jamaisovira.–Muitobem,Vasya–eledisse,voltando

para sua facadecaça. –Mas foi errado irsozinhaesemdizernada.Fezcomqueaspessoas falassem. – Houve um pequenosilêncio. Vasya retorceu as mãos. – Sintomuito, filha – acrescentou com maisdelicadeza.–SeiqueDunyaeracomouma

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mãe pra você. Ela lhe deu alguma coisaantes de morrer? Uma lembrança? Umpingente?Vasyahesitou,surpreendida.Dunyadisse

queeunãodeviacontarpraele.Masopresenteédele.Elaabriuaboca…Houveumatrovejantebatidanaporta,e

umhomementrouecaiu,semicongelado,aos pés deles. Pyotr levantou-se numinstante, eomomentopassou.A cozinhadeinvernoencheu-sedegritosdeespanto.A barba do homem chacoalhava com ogelodasuarespiração;seusolhosolhavamfixo sobre faces manchadas. Tremia nochão.Pyotroconhecia.–Oquefoi?–perguntouele,inclinando-

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seesacudindoohomempeloombro.–Oqueaconteceu,NikolaiMatfeevich?O homem ficou calado, apenas

permaneceuenrodilhadonochão.Quandotiraram as luvas, as mãos congeladasestavamcomogarras.–Vamosprecisardeáguaquente–disse

Vasya.– Faça com que ele fale assim que

conseguir–ordenouPyotr.–Aaldeiadelefica a dois dias de distância.Não consigoimaginar que desastre o traria aqui emplenoinverno.Vasya e Irina passaram uma hora

esfregandoasmãoseospésdohomemedespejando caldo quente pela suagarganta.Mesmoquando ele recobrou as

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forças,tudooquefezfoiseamontoarjuntoaoforno,arfando.Porfim,aceitoucomida,engolindo-a escaldante. Pyotr controlousuaimpaciência.Finalmente,omensageirolimpouabocaeolhoutemerosoparaseususerano.–Oqueotrazaqui,NikolaiMatfeevich?

–perguntouPyotr.– Pyotr Vladimirovich – o homem

sussurrou–,vamosmorrer.OrostodePyotrfechou-se.–Háduasnoitesnossaaldeiapegoufogo

– disse Nikolai. – Não restou nada. Se osenhor não se apiedar, vamos todosmorrer.Muitosdenósjámorreram.–Fogo?–perguntouAlyosha.– Sim – respondeu Nikolai. – Uma

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fagulhacaiudeumfornoetodaaaldeiafoipelos ares. Um vento doentio estavasoprando, um vento estranho, quentedemais para o auge do inverno. Nãopudemos fazer nada. Parti assim quedesenterramososvivosdascinzas.Ouviosgritos quando a neve tocou a pele deles.Talvezfossemelhorquetivessemmorrido.Andeiodiatodoeanoitetoda,quenoite!,comvozes terríveis namata. Parecia queos gritos me seguiam. Não me atrevi apararpormedodogelo.–Foimuitocorajoso–dissePyotr.– Vai ajudar a gente, Pyotr

Vladimirovich?Fez-seumlongosilêncio.Elenãopodeir,

pensouVasya.Agora não.Mas ela sabia o

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que seu pai diria. Aquelas terras lhepertenciam,eeleeraosenhordeles.–Meu filho e eu voltaremos comvocê

amanhã – afirmou Pyotr com esforço –,levandooshomenseanimaisquepuderemsercedidos.Omensageiroconcordoucomacabeça.

Seusolhosestavammuitodistantes.–Obrigado,PyotrVladimirovich.

Odiaseguinteamanheceucomumazulebranco ofuscantes. Pyotr ordenou que oscavalosfossemarreadosassimqueclareou.Os homens que não iriam a cavaloamarraramraquetesdenevenospés.Osol

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deinvernobrilhougelado.Grandesplumasbrancas saíam em ondas das narinas doscavalos,comoarespiraçãodeserpentesepingentes de gelo pendiam dos queixospeludos. Pyotr pegou as rédeas de Meteldas mãos do criado. O cavalo esticou olábio e sacudiu a cabeça, o gelochacoalhandoemsuascerdas.Kolya agachou-se na neve, olho com

olhocomSeryozha.– Deixe eu ir com você, pai – pediu a

criança. Seu cabelo caía nos olhos. Eletinhavindopuxandoseupôneimarromeusando todas as roupas que tinha. – Jáestoubemgrande.–Vocênãoestábemgrande–respondeu

Kolya,parecendoansioso.

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Irinasaiucorrendodecasa.–Venha–disse,pegandoacriançapelo

ombro.–Seupapaiestáindo,afaste-se.–Vocênãopassadeumamenina–disse

Seryozha. – O que você sabe? Por favor,papai.–Volteparacasa–ordenouKolya,agora

comdureza.–Guardeseupôneieouçasuatia.Mas Seryozha não obedeceu; em vez

disso, uivou e escapuliu, assustando oscavalos, e desapareceu atrás do estábulo.Kolyaesfregouorosto.–Elevoltaráquandotiverfome.–Subiu

noprópriocavalo.–FiquecomDeus,irmão–disseIrina.–Vocêtambém,irmã–disseKolya.

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Eleapertouamãodelaesevirou.Ocourofrioestalouquandooshomens

puseramacilhadoscavalosechecaramaamarração dos seus sapatos de neve. Ovapor de sua respiração engrossou ascerdas geladas das suas barbas. Alyoshaficounabeiradodvor,comumaexpressãodetrovãonorostobem-humorado.–Vocêprecisaficar–Pyotrdisseaele.–

Alguém precisa tomar conta das suasirmãs.– Você vai precisar de mim, pai – ele

respondeu.Pyotrsacudiuacabeça.– Dormirei melhor se você estiver

protegendo as minhas meninas. Vasya éimpetuosaeIrinaéfrágil.ELyoshka,você

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precisamanterVasyaemcasa.Paraobemdela.Oclimaestáfeionaaldeia.Porfavor,filho.Alyosha sacudiu a cabeça, sem dizer

nada.Masnãovoltouapedir.–Pai–disseVasya.–Pai.–Elasurgiuà

cabeça deMetel, o rosto tenso, o cabelomuito preto contra a pele clara do seugorro.–Vocênãodeveir.Agoranão.–Tenhoque ir,Vasochka–Pyotrdisse,

cansado. Ela já havia pedido na noitepassada.–Éomeulugareelessãoomeupovo.Tenteentender.– Eu entendo – ela disse. – Mas tem

maldadenamata.–Estessãotemposdomal–falouPyotr.

–Massouosenhordeles.

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– Tem coisas mortas na mata… Osmortosestãoandando.Pai,a florestaestáperigosa.– Bobagem, Vasya – retorquiu Pyotr.

Mãe de Deus. Se ela começasse a espalhartaishistóriaspelaaldeia…–Mortos–Vasyarepetiu.–Pai,vocênão

deveir.Pyotr agarrou seu ombro, com força

suficienteparafazê-laseencolher.Portodaasuavolta,oshomensestavamagrupados,esperando.–Vocêestávelhademaisparacontosde

fadas – ele rosnou, tentando fazê-laentender.–Contosdefadas!–exclamouVasyaem

umgrito sufocado.Metel atirou a cabeça

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para cima. Pyotr seguroumelhor a rédeado garanhão e dominou o cavalo. Vasyajogouamãodopaiparaolado.–Vocêviua janela quebrada do padre Konstantin –disse ela. –Vocênão pode sair da aldeia.Pai,porfavor.Oshomensnãoconseguiramouvirtudo,

mas escutaram o bastante. Seus rostosempalideceram debaixo das barbas.OlharamparaafilhadePyotr.Maisdeumolhou para a esposa ou para os filhos,parados, pequenos e corajosos, na neve.Não haveria como comandá-los, Pyotrpensou,sesuafilhatolacontinuasse.–Você não é uma criança,Vasya, para

ter medo de histórias – Pyotr replicou.Falavacalmaesecamenteparatranquilizar

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oshomens.–Alyosha,peguesuairmãpelamão.Nãotenhamedo,dochka–eledisse,mais baixo e mais gentil. – Devemosconseguirumavalentevitória;esteinvernopassará como os outros. Kolya e euvoltaremosparavocê. Sejaboazinha comAnnaIvanovna.–Mas,pai…Pyotrpuloupara as costas deMetel.A

mão de Vasya fechou-se no cabresto docavalo. Qualquer outra pessoa teria sidoderrubada e pisada, mas o garanhãoespetouasorelhasparaameninaeparou.–Solte,Vasya–disseAlyosha,chegando

aseulado.Elanãosemexeu.Elecolocouamão na dela, no local que segurava ocabresto, e se inclinou para sussurrar em

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seu ouvido: – Agora não é a hora. Oshomens desmoronarão. Eles temem porsuascasasetêmmedodedemônios.Alémdisso,seopaitederatenção,dirãoqueeleseguiuordensdasuafilhadonzela.Vasya respirou entre os dentes, mas

soltouocabrestodeMetel.– É melhor acreditar em mim –

murmurouela.Solto, o bravo e envelhecido garanhão

empinou-se. Os homens subjugadosenfileiraram-se atrás de Pyotr. Kolyacumprimentouoirmãoeairmã,enquantoo grupo partia a trote para o mundobranco,deixandoosdoisasósnopátiodoestábulo.

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Após a partida dos cavaleiros, a aldeiapareceu muito quieta. O sol geladobrilhavaalegremente.– Acredito em você, Vasya – disse

Alyosha.–Vocêenfiouaestacacomsuaprópria

mão;claroquevocêacredita,seubobo.–Vasyaandavadeumladoparaoutrocomoumloboenjaulado.–Eudeviatercontadotudopropai.– Mas nós matamos o upyr! – disse

Alyosha.Vasya sacudiu a cabeça, desanimada.

Lembrava-sedoalertadarusalkaedoleshy.

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–Nãoacabou–eladisse.–Fuiavisada:cuidadocomosmortos.–Quemteavisou,Vasya?Vasya estacou e viu o rosto do irmão,

frio, com leve desconfiança. Sentiu umapontadatãofortededesesperoqueriu.– Até você, Lyoshka? Amigos de

verdade, velhos e sábios, me avisaram.Vocêacreditanopadre?Souumabruxa?– Você é minha irmã – disse Alyosha

commuitafirmeza.–Efilhadanossamãe.Mas deveria ficar longe da aldeia até avoltadopai.

Naquela noite, a casa foi silenciando

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gradualmente, como se a calma seinsinuasse junto com o frio da noite. Osmoradores da casa de Pyotr juntaram-seperto do forno, para costurar, esculpir ouremendaràluzdofogo.– O que foi aquele barulho? – Vasya

perguntouderepente.Suafamíliafoisecalandoumaum.Alguémláforachorava.Erapoucomais

do que um gemido sufocado, mal davapara escutar. Mas após um tempo nãohouve dúvida, ouviam o som abafado deumamulherchorando.VasyaeAlyoshaentreolharam-se.Vasya

fezmençãodeselevantar.–Não–Alyoshadisse.Elemesmofoiaté

a porta, abriu-a e olhou por um bom

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tempo noite adentro. Por fim, voltou,sacudindoacabeça.–Nãohánadaali.Masochorocontinuou.Alyoshafoiduas,trêsvezesatéaporta.

Porfim,aprópriaVasyafoiatélá.Pensoutervistoumbrilhobranco,esvoaçandoporentre as cabanas dos camponeses. Então,elapiscouenãohavianada.Vasyafoiatéofornoeespioudentroda

boca brilhante. O domovoi estava ali,escondendo-senascinzasquentes.– Ela não pode entrar. – Ele respirava

emmeio a uma crepitação de chamas. –Juro,elanãopode.Nãovoudeixar.– Foi isso que você disse antes, mas a

coisaentrou–Vasyafalou,baixinho.– O quarto do homem aterrorizante é

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diferente–cochichouodomovoi.–Aqueleeunãopossoproteger.Elenegouaminhaexistência.Masaqui,agora,aquelaalinãopodeentrar.–Odomovoifechouasmãos.–Elanãovaientrar.Porfim,aluasurgiuetodosforampara

a cama. Vasya e Irina ficaram juntas,enroladas em peles, respirando naescuridão.Subitamente, o som de choro voltou a

surgir, muito perto. As duas meninascongelaram.Houveumarranharnajanela.Vasya olhou para Irina, que estava de

olhosabertoserígidaaseulado.–Parece…–Ah,nãodiga isso – implorou Irina. –

Não.

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Vasya rolou para fora da cama.Automaticamente, sua mão procurou opingenteentreseusseios.Ofriodoobjetoqueimou sua mão hesitante. A janelaficava bem alta na parede. Vasya subiu elutoucomasvenezianas.Ogelonajaneladistorceusuavisãododvor.Mashaviaumrostoatrásdogelo.Vasyaviuosolhoseaboca–grandesburacosescuros–eamãoossuda pressionada contra o vidrocongelado.Acoisasoluçava.–Medeixeentrar–elaarquejou.Houve

umleveruídodearranhar,unhasnogelo.Irinachoramingava.– Me deixe entrar – a coisa sibilou. –

Tenhofrio.Vasya perdeu o apoio do parapeito e

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caiuesparramada.– Não, não… – Lutou para voltar à

janela. Mas agora tudo estavacompletamente vazio e quieto. A luabrilhavaimperturbávelsobreodvorvazio.–Oqueeraaquilo?–cochichouIrina.–Nada, Irinka – retorquiuVasya. –Vá

dormir.Ela começara a chorar, mas Irina não

podiavê-la.Vasya voltou para a cama e passou os

braços ao redor da irmã. Irina não faloumais nada, mas passou muito tempodeitada, acordada, tremendo. Por fim,pegou no sono, e Vasya desvencilhou-sedosbraçosdairmã.Suaslágrimashaviamsecado; o rosto estava determinado. Foi

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paraacozinha.–Achoquetodosnósvamosmorrerse

vocêforembora–eladisseparaodomovoi.–Osmortosestãoandando.O domovoi colocou a cabeça cansada

paraforadoforno.–Voumantê-losadistânciatantoquanto

eu puder – ele disse. –Vigie comigo estanoite. Quando você está aqui, fico maisforte.

Pyotr não voltou por três noites, e Vasyaficounacasadevigília,comodomovoi.Naprimeira noite, pensou ter ouvido choro,mas nada se aproximou da casa. Na

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segunda noite, o silêncio foi perfeito, eVasyapensouquemorreriadevontadededormir.Noterceirodia,elaresolveupedirpara

Alyosha vigiar com ela. Naquele fim detarde,umcrepúsculosangrentoentrouemcombustão e morreu, deixando sombrasazuisesilêncio.A família demorou-se na cozinha; os

quartos pareciammuito frios e distantes.Alyoshaafiousualançaparajavaliàluzdoforno. A lâmina em formato de folhalançavapequenosbrilhosnafornalha.O fogo havia diminuído e a cozinha

estava repleta de um tom vermelho,quandoumlongoebaixolamentosoouláfora. Irina encolheu-se ao lado do forno.

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Annatricotava,mastodospodiamverquesuava e tremia. Os olhos do padreKonstantinestavamtãoarregaladosqueobranco aparecia como um círculo;murmuravaoraçõesbaixinho.Ouviu-seosomdepassossearrastando.

Foram chegando cada vez mais perto.Então,umavozchacoalhouajanela.–Estáescuro–disseavoz.–Sintofrio.

Abramaporta.Abram-na.–Depoispã,pã,pãnaporta.Vasyalevantou-se.As mãos de Alyosha fecharam-se em

tornodopunhodasualança.Vasya foi até a porta. Seu coração

golpeavanagarganta.Odomovoiestavaaoseulado,dentescerrados.

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–Não –Vasya conseguiu falar, emboraseus lábios estivessem entorpecidos.Fincou os dedos na ferida da sua mão ecolocouapalmasangrentaabertacontraaporta.–Sintomuito,acasaéparaosvivos.A coisa do outro lado gemeu. Irina

enfiou o rosto no colo da mãe. Alyoshapôs-sedepé,comalançanamão.Masospassos arrastados começarama semover,acabandonovazio.Todosrespirarameseentreolharam.Então vieram os berros de cavalos

apavorados.Sem pensar, Vasya destrancou a porta,

mesmoquandoquatrovozesgritaram.–Demônio!–esganiçouAnna.–Elavai

deixá-loentrar!

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Vasya já tinha saído correndo noiteadentro. Uma sombra branca lançava-seentre os cavalos, espalhando-os comopalha.Masumdelesfoimaislentodoqueos outros. A sombra branca grudou nagarganta do animal e o derrubou. Vasyagritou, correndo, esquecendo o medo. Acoisamorta levantouosolhos,silvando,eumfeixedeluarincidiuemseurosto.–Não – disse Vasya, parando com um

tropeção. – Ah, não, por favor, Dunya,Dunya…–Vasya – ciciou a coisa.Avoz eraum

arquejarentrecortadodedefunto,maseraavozdeDunya.–Vasya.Eraelaenãoera.Osossosestavamali,a

forma, o formato e a mortalha. Mas o

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nariz pendera, os lábios entraram paradentro,osolhoseramburacosembrasa,aboca,umabismoescurecido.Haviasangueemplastradonaslinhasdoqueixo,donarizedasfaces.Vasya juntou coragem. O colar

queimava gelado contra o peito, e ela oenvolveucomamãolivre.Anoitecheiravaa sangue quente e mofo de tumba. Elaachouqueumafiguraescuraestavaaoseulado, mas não olhou em torno paraconferir.– Dunya – Vasya disse, lutando para

manteravozfirme.–Vocêtemqueir. Jáfezmaldadesdemaisaqui.Dunyalevouamãoàboca,tampando-a.

Lágrimas saltaram dos seus olhos vazios,

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mesmo enquanto elamostrava os dentes.Ela oscilou, tremeu, mastigou o lábio.Dava quase impressão de que quisessefalar. Pulou para a frente, rosnando, eVasya recuou, já sentindo os dentes nagarganta.Eentão,oupyrguinchou,jogou-separatrásecorreucomoumcachorroemdireçãoàfloresta.Vasyacontemplou-aatéelaseperderao

luar.Houveumarespiraçãoáspera,vindado

cavaloaseuspés.EraofilhomaisnovodeMysh, pouco maior do que um potrilho.Elaseajoelhouaoladodele.Agargantadopotro estava aberta. Vasya pressionou asmãos no lugar dilacerado, mas o fluxoescuro corria descontroladamente. Foi

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comoseamortepenetrasseemseuventre.Ouviuogritoangustiadodovazila, vindodoestábulo.–Não–Vasyadisse.–Porfavor.Masopotroficouimóvel.Ofluxonegro

diminuiueparou.Uma égua branca saiu da escuridão e

colocouofocinhocommuitadelicadezanocavalo morto. Vasya sentiu a respiraçãoquentedaéguajuntoaoseupescoço,masquando se virou para olhar havia apenasumlevegotejardeluzdeestrelas.Odesesperoeocansaçoeramumfluxo

escuro,comoosanguedocavaloemsuasmãos, e dominaram Vasyacompletamente. Ela segurou em seusbraçosacabeçaqueseenrijecia,banhada

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desangue,echorou.

Ahoratinhaenvelhecido,ehámuitoelesdeveriam ter ido para a cama, quandoAlyoshavoltouparaacozinhadeinverno.Estava lívido,as roupas todasrespingadasdesangue.– Um dos cavalos está morto – disse,

pesaroso. – Sua garganta foi dilacerada.Vasya ficará no estábulo esta noite. Éimpossíveldissuadi-la.– Mas ela vai congelar. Vai morrer! –

exclamouIrina.Alyoshasorriulevemente.–NãoaVasya.Tentevocêdiscutircom

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ela,Irinka.Irinaapertouoslábios,largouacostura

e foi esquentar uma panela de barro noforno.Ninguémtevemuitacertezadoqueela pretendia até que despejou leite,cozinhou comvontadeumvelhomingau,pegouaquiloefoiatéaporta.–Irinka,volte!–gritouAnna.Alyosha tinha plena convicção de que

Irinajamaisdesafiarasuamãe,mas,dessavez,agarotadesapareceupelasoleirasemdizerumapalavra.Alyoshapraguejouefoiatrás dela. O pai tinha razão, pensousombriamente.Minhas irmãsnãopodemserdeixadassozinhas.Fazia muito frio e o dvor cheirava a

sangue.Opotrojaziaondehaviacaído.O

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corpo congelaria durante a noite, e logochegaria o amanhã trazendo os homenspararetalhá-lo.Oestábulopareceuvazio,quandoAlyoshaeIrinaentraram.– Vasya – chamou Alyosha.

Subitamente, foi tomado pelo medo. Ese…?–Aqui,Lyoshka –disseVasya.Ela saiu

dabaiadeMysh,comoandarmaciocomoodeumgato.Irinasoltouumgritoequasederrubouapanela.– Você está bem, Vasochka? – ela

conseguiudizer,tremendo.Eles não podiam ver o rosto deVasya,

apenas umpálido borrão sob a escuridãodoseucabelo.– Bem o bastante, passarinho – ela

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replicou,comavozrouca.–OLyoshkaestádizendoquevocêvai

ficarnoestábuloestanoite–disseIrina.–Vou – respondeuVasya, visivelmente

se recompondo. – Eu preciso… O vazilaestá com medo. – Suas mãos estavamnegrasdesangue.–Sevocêprecisa–disseIrinacommuita

delicadeza,comoseconversassecomumalunática querida. – Eu te trouxe ummingau.–Desajeitadamente,elapassouapanelaparaairmã.Vasyaapegou.Opesoe o calor pareceram estabilizá-la. – Masseria melhor se você entrasse e comessepertodofogo–acrescentouIrina.–Sevocêficaraqui,aspessoasvãocomentar.Vasyasacudiuacabeça.

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–Agoranãoimporta.OslábiosdeIrinafirmaram-se.– Venha – pediu ela. – Deste jeito é

melhor.Alyosha viu, com surpresa, Vasya se

deixar conduzir de volta para casa, sercolocadaemseu lugarao ladodo fornoeseralimentada.–Váparaacama, Irinka–disseVasya,

porfim.Seurostorecuperaraumpoucodecor.–Durmasobreoforno.Alyoshaeeuvigiaremosestanoite.O padre tinha ido embora. Anna já

roncava em seu quarto. Irina, que estavafrancamente desfalecendo, não hesitoumuito.Depois que Irina adormeceu, Vasya e

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Alyosha entreolharam-se. Vasya estavabranca como sal, com olheiras. Seuvestido, manchado com o sangue docavalo.Masacomidaeo fogohaviam-naacalmado.–Eagora?–disseAlyosha,baixinho.– Temos que vigiar esta noite – disse

Vasya.–Eprecisamostestarocemitérioaoamanhecerefazeropossívelàluzdodia.QueDeustenhapiedade.

Konstantin foi para a igreja ao nascer dosol. Arremeteu-se pelo pátio como se oanjo damorte o seguisse, barrou a portaquelevavaànaveesejogouemfrenteao

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biombo de ícones. Quando o sol subiu elançou uma luz cinzenta rastejando pelochão,nãolhedeuatenção.Rezoupedindoperdãoeparaqueavozvoltasseeacabassecom todas as suas dúvidas.Mas, durantetodo aquele dia, o silêncio manteve-seperfeito.Foiapenasnotristelusco-fusco,quando

haviamaissombradoqueluznochãodaigreja,queveioavoz.–Caiutanto,minhapobrecriatura?–ela

disse.–Agora,porduasvezesosdemôniosfemininos vieram à sua procura,Konstantin Nikonovich. Quebraram suajanela,bateramàsuaporta.– É – gemeu Konstantin. Agora,

acordado e dormindo, ele via o rosto do

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demônio feminino, sentia seus dentes nagarganta.–Elassabemquesouumdecaídoe então me perseguem. Tenha piedade.Salve-me. Eu imploro. Me perdoe. Tireeste pecado de mim. – As mãos deKonstantin fecharam-senumaperto,eelecurvouacabeçaemdireçãoaochão.– Muito bem – disse a voz com

suavidade.–Vocêestámepedindomuitopouco, homem de Deus. Veja, soumisericordioso.Salvareivocê.Nãoprecisachorar.Konstantin pressionou asmãos em seu

rostomolhado.–Mas–contrapôsavoz–eulhepedirei

algoemtroca.Konstantinlevantouosolhos.

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–Qualquercoisa–respondeuele.–Souseuhumildeservo.– A menina – disse a voz. – A bruxa.

Tudoissoéculpadela.Aspessoassabem,sussurram entre si. Elas veem que seusolhos a acompanham. Dizem que ela otentou.Konstantin não disse nada. Culpa dela.

Culpadela.–Desejofortementequeelaseretiredo

mundo.Temquesermaiscedo,nãomaistarde.Elatrouxemaldadeparaestacasaenãohaveráremédioenquantoestiveraqui.–Elairáparaosulcomostrenós–disse

Konstantin. – Vai antes do solstício deinverno.PyotrVladimirovichdisseisso.– Antes disso – afirmou a voz. – Tem

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que ser antes disso. Fogos e tormentasestãodestinadosaestelugar.Masmande-aemboraevocêpodesesalvar,Konstantin.Mande-a embora e você poderá salvartodos.Konstantinhesitou.Aescuridãopareceu

soltarumlongosuspiro.– Será como o senhor diz – sussurrou

Konstantin.–Prometo.Então, a voz se foi. Konstantin ficou

vazio, arrebatado e frio, sozinho no chãodaigreja.

Naquelamesma tarde, Konstantin foi atéAnnaIvanovna.Elaestavaacamadaesua

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filhalhetrouxeraumcaldo.– Você precisa mandar Vasya embora

agora – disse Konstantin. Havia suor emsua testa, as mãos tremiam. – PyotrVladimirovichtemocoraçãomuitomole,talvezelaoinfluencie.Mas,paraobemdetodos nós, a menina precisa ir. Osdemônios vêm por causa dela. Você viucomoela saiucorrendopelanoite?Elaosinvocou,nãotemmedo.Podeserquesuaprópria filha, a pequena Irina, seja apróxima a morrer. Os demônios têmapetitepormaiscoisasalémdecavalos.– Irina?–murmurouAnna.–Osenhor

acha que a Irina corre perigo? – Elaestremeceudeamoremedo.–Seiquesim–respondeuKonstantin.

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– Entregue Vasya ao povo – ordenouAnnaimediatamente.–Elesaapedrejarão,seosenhorpedir.PyotrVladimirovichnãoestáaquiparaimpedi-los.–Émelhorqueváparaumconvento–

disse Konstantin, depois de brevíssimahesitação.–Eunãodeixariaqueela fosseao encontro deDeus sem a chance de searrepender.Annatravouoslábios.–Ostrenósnãoestãoprontos.Émelhor

que morra. Não permitirei que a minhaIrinafiqueferida.–Osdoisprimeirostrenósestãoprontos

– replicou Konstantin. – Há homenssuficientes. Alguns estariam mais do quedispostos a levá-la daqui. Tratarei disso.

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Pyotr poderá ir visitar a filha, se quiser,depoisqueelaestiverasalvoemMoscou.Não ficará zangado, quando souber ahistória toda. Tudo ficará bem. Fiquetranquilaereze.–Osenhorsabemais,Batyushka–Anna

disse com raiva.Tanto cuidado, pensou. Etudo por aquele réptil de olhos verdes dodemônio.Maseleésábio;sabequeelanãopodeficar,corrompendobonscristãos.–Osenhorémisericordioso. Mas prefiro a meninamortaantesqueaminhaIrinasejaexpostaaoperigo.

Tudo foi arranjado. Oleg, grosseiro e

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velho, dirigiria o trenó, e os pais deTimofei, como lar vazio com a ausênciadofilhomorto,seriamoscriadoseguardasdeVasya.–Éclaroquefaremosisto,Batyushka–

falou Yasna, mãe de Timofei. – Deusabandonou a gente por causa daquelacriança-demônio. Se ela tivesse sidomandada embora antes, eu nunca teriaperdidoomeufilho.–Tomeestacorda–disseKonstantin.–

Amarre as mãos dela para o caso de elaperderacompostura.Em sua mente, viu o cervo caído na

cabana,pésamarrados,olhosarregalados,arrastando sangue pela neve. Sentiu umapontada de luxúria, vergonha e orgulho

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satisfeito. Amanhã. No dia seguinte, elairia embora,umamudançaparameia-luaantesdosolstíciodeinverno.

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CAMPÂNULASBRANCAS

NAQUELA NOITE,ANNA IVANOVNACHAMOUVASYA.–Vasochka!–gritou,estridente,fazendo

ameninapular.–Vasochka,venhaaqui!Vasyalevantouosolhos,abatidaàluzdo

fogo. Ela e Alyosha tinham ido aocemitério ao nascer do sol. Mas, quandocavaram, hesitantes, na tumbadeDunya,encontraram-na vazia. Entreolharam-sepor sobre a terra nua e fria, Alyoshachocado, Vasya sombriamente sem

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surpresa.–Nãopodeser–disseAlyosha.Vasyarespiroufundo.–Mas é.Venha.Temosqueproteger a

casa.Gelados e exaustos, ambos alisaram a

neve e voltaram para casa. As mulheresretalharam o potro para cozinhar suacarnenos fornose comê-la comcenourasmurchas,eVasyaseescondeu,vomitandoaténãosobrarnadanoestômago.AgoraeraopicodanoiteeDunyaviria

novamente atormentá-los comsoluços.Opai ainda estava fora, e Vasya, doente depavor. Foi com relutância até onde seencontrava Anna. Um pequeno baú demadeira, amarrado com tiras de bronze,

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estavaaoseulado.–Abra-o–mandouAnna.Vasya olhou com interrogação para o

irmão. Alyosha deu de ombros. Ela seajoelhouemfrenteaobaúeabriuatampa.Dentro havia… tecido. Um grande cortedobradodeumbelolinhocru.–Linho–disseVasya,aturdida.–Linho

suficienteparaumadúziadecamisas.Vocêpretende que eu costure o inverno todo,AnnaIvanovna?Annasorriucontraavontade.– Claro que não. É uma peça de altar.

Você irá embainhá-la e apresentá-la parasua abadessa. – Ao ver Vasya aindaintrigada,elaacrescentoucomumsorrisoainda mais largo: – Você vai para um

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conventoaosul,pelamanhã.Porummomento,Vasya ficou tonta, e

umaescuridãobaixouperante seusolhos.Custouaselevantar.–Meupaisabe?–Ah,sabe–respondeuAnna.–Erapra

você ter ido embora com os bens dosimpostos.Mas já tivemosobastante comvocê invocando os demônios. Partirá aoamanhecer. Os homens estão prontos, eumamulhercuidarádasuavirtude.–Annasorriucomcinismo.–PyotrVladimirovichfaria isto. Talvez as sagradas irmãsconsigamfazê-laobedecer,oquepramimfoiimpossível.Irinapareceuperturbada,masnãodisse

nada.

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Vasya inclinou-se para trás como umcavaloesporado.Tremiadospésàcabeça.–Madrasta,não.OsorrisodeAnnadesfez-se.–Estámedesafiando?Está feitoevocê

será amarrada com cordas, se não quisercaminhar.–Qualé–Alyoshainterrompeu.–Que

loucuraéesta?Opaiestáforadecasaeelejamaisaprovaria…–Não?–disseKonstantin.Agora,como

dehábito,suavozprofundaesuavecaptoue segurou a atenção da sala. Encheu asparedes e o espaço escuro próximo aoscaibros. Todos se calaram. Vasya viu odomovoi encolhendo-se para o fundo doforno. – Ele deu a sua aprovação. Uma

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vida entre irmãs sagradas poderia salvarsua alma. Ela não está segura na aldeia,ondeenganouatantos.Elesachamamdebruxa, Vasilisa Petrovna, sabe disso?Chamam-nadedemônio.Sevocênãofor,será apedrejada antes que este malditoinvernotermine.AtéAlyoshaficouquieto.MasVasyafalou,roucacomoumcorvo:– Não – disse ela. – Nem agora, nem

nunca.Nãoenganeininguém.Jamaisporeios pés em um convento. Nem se euprecisar viverna floresta epedir trabalhoparaBabaYaga.–Istonãoéumcontodefadas,Vasya–

interrompeuAnna,estridente.–Ninguémestá pedindo a sua opinião. É para o seu

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própriobem.Vasyapensounohesitantedomovoi, nas

coisas mortas assombrando pela casa, nodesastreporpoucoevitado.–Masoquefoiqueeufiz?–perguntou

ela. Ficou horrorizada ao perceber queseus olhos estavam marejados. – Nãomachuquei ninguém. Tentei salvar vocês!Padre…–ElasevoltouparaKonstantin.–Salvei o senhor da rusalka, quando ela iapegá-lojuntoaolago.Afasteiosmortos,outentei… – Ela parou, sufocada, lutandopararespirar.– Você? – disse Anna, esbaforida. –

Afastou-os? Você convidou seu cúmplicedemônioaentrar!Trouxe todasasnossasdesgraças.Pensaqueeunãovi?

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Alyosha abriu a boca, mas Vasyaadiantou-se:– Se eu for mandada embora neste

inverno,todosvocêsmorrerão.Annainspiroucomdificuldade.–Comoseatreveanosameaçar?–Não estou ameaçando – disse Vasya,

desesperada.–Estoufalandoaverdade.– Verdade? Verdade, sua pequena

mentirosa,nãoexisteverdadeemvocê!– Não irei – disse Vasya, com tal

ferocidade que até o fogo crepitantepareceuondular.– Não vai? – disse Anna. Seus olhos

estavam enlouquecidos,mas algo em suapostura lembrou a Vasya que seu pai eraum grão-príncipe. – Muito bem, Vasilisa

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Petrovna.Eulhedareiumaescolha.–Seusolhospercorreramocômodoesefixaramnas floresbrancasqueenfeitavamo lençode Irina. –Minha filha,minhaverdadeira,leal e obediente filha, está ansiosa, comtodaestaneve,pelavisãodecoisasverdes.Você,bruxafeia,lheprestaráumfavor.Váparaa florestae tragaparaelaumacestadecampânulasbrancas.Sefizeristo,estarálivre para fazer o que desejar daqui pordiante.Irina ficou boquiaberta. Konstantin

abriuabocanumprotestoalarmado.Vasya olhou sem expressão para sua

madrasta.– Anna Ivanovna, estamos em pleno

inverno.

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– Vá! – esganiçou Anna, rindoenlouquecida. – Saia da minha frente!Traga-me flores ou vá para o convento!Saiajá!Vasya olhou de rosto em rosto. Anna

triunfante, Irina apavorada, Alyoshafurioso, Konstantin inescrutável. Asparedes pareceram encolher-senovamente;o fogoqueimoutodooar,demodo que, por mais que seus pulmõesarfassem, ela não conseguia respirar. Foitomadapeloterror,oterrordeumanimalselvagemnaarmadilha.Virou-seecorreudacozinha.Alyoshapegou-anaportaquedavapara

fora.Elahaviaenfiadoasbotaseasluvas,enroladoumacapaaoseuredorecolocado

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umxale na cabeça.Ele a agarrou comasmãos,virou-a.–Ficoulouca,Vasya?–Mesolte!VocêouviuAnnaIvanovna.

Prefiro me arriscar na floresta a ficartrancada para sempre. – Ela tremia, osolhosdesvairados.– Tudo isto é bobagem. Espere o pai

voltar.– O pai concordou com isto! – Vasya

sufocouaslágrimas,maselascontinuaramescorrendo pelo rosto. – Se não fosseassim, Anna não teria se atrevido. Aspessoas dizem que nossas desgraças sãopor culpaminha. Pensa que eunãoouvi?Vou ser apedrejada como bruxa, se ficar.Talvez o pai esteja tentandome proteger.

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Mas prefiro morrer na floresta a morrernumconvento.–Suavoz falhou.–Nuncaserei uma freira, entendeu? Nunca! – Elatentou se desvencilhar dele, mas Alyoshasegurou-afirme.– Protegerei você até o pai voltar.Vou

fazer com que ele veja as coisas comclareza.–Vocênãopodemeprotegersetodosos

homensdaaldeia sevoltaremcontranós.Pensaqueeunãoouviosmurmúriosdeles,irmão?–Entãovocêpretendeentrarnafloresta

e morrer? – replicou Alyosha. – Umsacrifício nobre? Como é que vai ajudaralguém?– Ajudei em tudo o que pude, e as

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pessoas me retribuíram com ódio –retorquiuVasya.–Seestaforminhaúltimadecisão na vida, pelo menos é minhadecisão. Deixe-me ir, Alyosha. Não estoucommedo.– Mas eu estou, sua menina estúpida!

Você pensa que quero te perder pra estaloucura? Não vou deixar você ir. – Comcerteza ficariam marcas de dedos noombrodela,nolugarondeasegurava.– Você também, irmão? – Vasya se

enfureceu. – Sou criança? Sempre temalguémpradecidir pormim.Mas isso euvoudecidirsozinha.–SeopaiouKolyaenlouquecessem,eu

também não ia deixar que tomassemdecisões.

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–Deixe-meir,Alyosha.Elesacudiuacabeça.Avozdelasuavizou-se.– Talvez exista magia na floresta, o

suficiente pra que eu desafie AnnaIvanovna.Pensounisso?Alyoshadeuumabreverisada.–Vocêestávelhademaispracontosde

fadas.–Estou?–indagouVasya.Elasorriupara

ele,emboraseuslábiostremessem.Alyosha lembrou-se, subitamente, de

todasasvezesqueosolhosdelahaviamsemovido, seguindo coisas que ele nãoconseguiaver.Seusbraçosabaixaram.Elesseentreolharam.–Vasya,prometa-mequevouteverde

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novo.– Dê pão pro domovoi – disse Vasya. –

Vigie à noite, junto ao forno. A coragempoderá salvá-lo. Fiz o que pude. Adeus,irmão.Tentarei…tentareivoltar.–Vasya…Mas ela havia escapado pela porta da

cozinha.OpadreKonstantin esperava-a ao lado

daportadaigreja.–Ficoulouca,VasilisaPetrovna?Os olhos verdes de Vasya subiram até

ele, agora zombeteiros. As lágrimashaviamsecado;estavafriaeequilibrada.–Mas,Batyushka,tenhoqueobedecerà

minhamadrasta!–Entãovátomarseusvotos.

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Vasyariu.– Pra ela tanto faz que eume vá, que

morra ou que pegue os votos. Bem, vousatisfazeramimeaelaigualmente.–Esqueçaestabobagemlouca.Vocêvai

tomar os votos. Vai seguir a vontade deDeus,eelequerisso.–Quer?–perguntouVasya.–Epresumo

queosenhorsejaavozdeDeus.Bem,mederamumachanceeeuestouaceitando.–Elasevirouemdireçãoàmata.–Nãoestá–disseKonstantin,ealgoem

sua voz fez Vasya dar meia-volta. Doishomenssaíramdassombras.– Coloquem-na na igreja esta noite e

amarrem suas mãos – disse Konstantin,semtirarosolhosdeVasya.–Elapartiráao

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amanhecer.Vasyajácomeçaraacorrer.Massótinha

dado três pernadas, e eles eram muitofortes. Um a alcançou, e a mão deleagarrou a bainha da capa dela. Elatropeçou e caiu esparramada, rolando,golpeando,empânico.Ohomematirou-seemcimadela,segurando-anochão.Anevegelou o pescoço dela. Ela sentiu a cordageladarasparnospunhos.Forçou-se a ficar largada, como se

tivesse desmaiado de medo. O homemestavamaisacostumadoaamarraranimaismortosparacarregar.Elerelaxouoaperto,enquantolidavacomacorda.Vasyaouviuospassosdopadreedooutrohomemqueseaproximavam.

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Então,levantou-sedeumsalto,soltandoumgritosempalavras,enfiandoosdedosnosolhosdocaptor.Eleseencolheu,elasedesviou para o lado, virou-se e correucomo jamais fizera em sua vida. Atrásdela, ouviu gritos, respirações ofegantes,passos. Mas não seria pega novamente.Jamais.Continuoucorrendoenãoparouatéser

engolidapelassombrasdasárvores.

A noite clara iluminava a neve, quepermaneciafirmesobospés.Vasyacorreupara dentro da floresta, contundida earquejante.Suacapaafrouxadabatiaàsua

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volta.Ouviugritosdaaldeia.Suaspegadasapareciamnítidasnanevefresca;portanto,sua única esperança era a velocidade.Atirou-sedecabeçadesombraemsombra,atéqueos gritos foram se tornandomaisfracos e acabaram morrendo. Eles não seatrevem a prosseguir, pensou Vasya. Têmmedo da floresta depois que fica escuro. E,então,maisamarga:Sãoprudentes.Sua respiração foi se acalmando. Ela

entrou mais para dentro da floresta,empurrando a perda e o medo para ofundo damente. Ouviu, chamou em vozalta,mas tudo estava quieto.O leshy nãorespondeu. A rusalka dormia, sonhandocom o verão. O vento não agitava asárvores.

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O tempo passou sem que ela tivessecerteza de quanto. A mata ficou maisdensa e bloqueou as estrelas.A lua subiumaisparaoaltoeprojetousombras;então,asnuvensvieramemergulharamaflorestana escuridão.Vasya andou até começar ase sentir sonolenta, e então o terror dosono forçou-a a ficar novamente alerta.Virou-separaonortee,novamente,paraosul.Anoite caiu eVasya tiritava, enquanto

caminhava.Seusdentesbatiam.Osdedosdos pés ficaram entorpecidos apesar dasbotas pesadas. Uma pequena parte suatinha pensado – esperado – que haveriaalguma ajuda na floresta, algum destino,algumamagia.Esperaraqueopássarode

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fogoviesse,ouoCavalodeCrinaDourada,ou o corvo, que, na realidade, era umpríncipe… Menina tola para acreditar emcontos de fadas. A mata no inverno eraindiferenteahomensemulheres;oschyertydormiamnoinverno,enãohaviatalcoisacomoumpríncipe-corvo.Bem, então morra. É melhor do que um

convento.Mas Vasya não conseguia acreditar

realmente nisso. Era jovem, seu sanguecorriaquente.Nãopodiaseconvencerasedeitarnaneve.Prosseguiu aos tropeços, mas estava

ficando mais fraca. Temeu sua forçadebilitada, as mãos rígidas, os lábiosgelados.

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No maior negrume da noite, Vasyaparou e olhou para trás. Anna Ivanovnacaçoaria dela, se voltasse. Seria amarradacomo um cervo, trancada na igreja emandada para um convento. Mas nãoqueriamorreresentiamuitofrio.Então,Vasyaanalisouasárvoresdecada

ladoepercebeuquenãosabiaondeestava.Não importa. Poderia seguir a própria

trilhadevoltapelocaminhoporondetinhavindo.Olhounovamenteparatrás.Suaspegadashaviamsumido.Vasyareprimiuumsurtodepânico.Não

estavaperdida.Enãopoderiaestar.Virou-se para o norte. Seus pés cansadosesmagavammonotonamenteaneve.Maisuma vez, o chão começou a parecer

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convidativo. Certamente, ela poderia sedeitar.Sóporuminstante…Uma sombra escura se assomou à sua

frente, uma árvore, toda retorcida,maiordoquequalqueroutraqueVasyaconhecia.Amemóriaagitou-se,irrompendopelasuabruma. Lembrou-se de uma criançaperdida,umgrandecarvalho,umhomemadormecido com um único olho.Recordou-se de um velho pesadelo. Aárvore preencheu sua visão.Aproximar-se?Correr?Sentiamuitofrioparavoltaratrás.Então,ouviuosomdeumchoro.Vasya estacou, mal conseguindo

respirar.Aoparar, o som tambémparou.Mas,então,moveu-senovamenteeosomaacompanhou.Aluadoentiasurgiuefez

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desenhosestranhosnaneve.Ali, uma centelha branca, entre duas

árvores. Vasya caminhou mais rápido,desajeitadaemseuspésentorpecidos.Nãohavia casa para onde correr de volta,nenhum vazila para lhe dar força. Suacoragem cintilou como uma veladerretendo.A árvorepareciapreencheromundo.Venhacá,sussurrouumavozbaixaeagressiva.Cheguemaisperto.Umesmagar.Atrásdela,umpassoque

não era seu. Vasya virou-se. Nada. Mas,quando andava, os outros pésacompanhavamopasso.Estava a vinte passos do carvalho

retorcido. As pisadas aproximaram-se.Ficou difícil pensar. A árvore parecia

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preencheromundo.Maisperto.Comoumacriança em um pesadelo, Vasya não seatreviaaolharparatrás.Os passos atrás desataram a correr e

houve um grito estridente e ressecado.Vasyatambémcorreu,gastandooquelherestava de força. Uma figura esfarrapadasurgiu à sua frente, parada debaixo daárvore, a mão esticada. Seu único olhoreluzia com um triunfo ávido. Encontreivocêprimeiro.Então, Vasya ouviu um novo som: o

estalardecascosgalopando.Afigurajuntoàs árvores gritou para ela, em fúria:Maisrápido! A árvore estava à sua frente, acriatura atrás, mas à sua esquerda veiouma égua branca a galope, rápida como

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fogo. Cega, aterrorizada, Vasya virou-separaocavalo.Comocantodoolho,viuoupyrdarumainvestida,osdentesbrilhandonovelhorostomorto.Naquele instante, a égua branca

apareceu ao lado.O cavaleiro estendeu amão.Vasyaaagarroueocorpofoilançadosobreacernelhadaégua.Oupyraterrissounaneveondeelaestivera.Ocavalosaiuemdisparada. Atrás deles vieram gritosduplos,umdedoreumdefúria.O homem que montava a égua não

falou. Vasya, ofegante, só teve ummomentopara se sentirgratapeloalívio.Pendia de cabeça para baixo sobre acernelha do animal, e foi assim quecavalgaram. A cada batida dos cascos da

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égua, a menina sentia-se como se suasentranhas fossem sair pela pele; noentanto, eles galopavam indefinidamente.Ela não conseguia sentir o rosto, nem ospés. Amão forte que a havia retirado danevesegurava-afirme,masocavaleironãofalava.AéguatinhaumcheirodiferentedequalqueroutrocavaloqueVasyahouvesseconhecido, como flores estranhas e pedramorna,incongruentenanoitegélida.Correram até Vasya achar que já não

poderiasuportaradorsemofrio.– Por favor – disse arquejando. – Por

favor.Abruptamente, fizeramumaparadade

chacoalhar os ossos. Vasya escorregou decostas do cavalo e caiu dobrada sobre a

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neve, entorpecida, comânsiasdevômito,agarrada às costelas contundidas. A éguaficou imóvel.Vasyanãoouviuocavaleirodesmontar,massubitamenteeleestavaempé na neve. Ela levantou-se comdificuldade, não conseguindo mais sentiros pés. Sua cabeça estava descoberta.Nevava.Os flocosdeneve emaranharam-se em sua trança. Tinha ultrapassado oestágiodetremer,sentia-sepesadaefraca.Ohomembaixouosolhosparaela,que

levantou o olhar para ele. Os olhos deleeramclaroscomoaágua,oucomoogelonoinverno.–Porfavor–murmurouVasya.–Estou

gelada.–Tudoégeladoaqui–elereplicou.

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–Ondeestou?Eledeudeombros.–Nascostasdoventonorte.Nofimdo

mundo.Emlugaralgum.Vasya oscilou repentinamente e teria

caído,masohomemapegou.–Diga-meoseunome,devushka.–Avoz

deleprovocavaecosestranhosnamataaoseuredor.Vasyasacudiuacabeça.Acarnedeleera

gelada.Elaseafastou,tropeçando.–Quemévocê?Os flocos de neve prenderam-se nos

cachos escuros dele; trazia a cabeçadescoberta como a dela. Ele sorriu e nãodissenada.–Eujáteviantes–elaafirmou.

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–Venhocomaneve–eledisse.–Venhoquandooshomensestãomorrendo.Ela o conhecia. Soube quem era no

instanteemqueamãoagarrouadela.–Euestoumorrendo?–Talvez.–Elecolocouamãofriasobo

queixo dela. Vasya sentiu seu coraçãopulsando debaixo daqueles dedos. Então,derepente,veioador.Suarespiraçãoficoucurta; ela caiu de joelhos.Em seu sanguepareciamseformarcacosdecristal.Eleseajoelhoucomela.Karachun,Vasyapensou.Morozko, o demônio do gelo. Morte, isto é amorte.Vãomeacharcongeladananeve,comoameninadahistória.Ela tomou fôlego e sentiu que o gelo

haviaseespalhadoparaseuspulmões.

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–Solte-me–sussurrouela.Seuslábiosesua língua estavam gelados demais paraobedecer.–Vocênãoteriamesalvadonaárvoresequisessemematar.Odemôniosoltouamão.Elacaiupara

trás na neve, ofegante, dobrada em simesma.Eleselevantou.–Nãoteria,boba?–eledisse,avozfina

de raiva. –Que loucura te trouxe para aflorestaestanoite?Vasyaforçou-seaficarempé.–Nãoestouaquiporescolha.–Aégua

branca veio atrás dela, soprou um bafoquente em sua face. Vasya enfiou seusdedos gelados na longa crina. – Minhamadrastaiamemandarpraumconvento.

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Avozdeleestavacheiadedesdém:– E por isto você fugiu? É mais fácil

escapardeumconventodoquedoUrso.Vasyaolhou-onosolhos.–Eunãofugi.Bom,eufugi,massó…Ela não conseguiu se controlar mais.

Agarrou-se ao cavalo no fim das suasforças.Suacabeçarodava.Ocavalocurvouopescoçoàsuavolta.Ocheirodepedraeflores reanimou um pouco Vasya, ela seendireitouefirmouoslábios.Odemôniodogeloaproximou-se.Vasya

estendeu a mão, instintivamente, paramantê-loadistância.Maselepegouamãodelaenluvadanassuas.–Venha,então–eledisse.–Olhepara

mim. – Ele tirou a luva que ela trazia e

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colocouapalmadasuamãonadela.A menina retesou o corpo todo,

temendo a dor,mas ela não veio.Amãodele era dura e fria como um rio gelado;era atémesmo gentil de encontro a seusdedoscongelados.–Me diga quem é você. – A voz dele

enviou um arrepio de ar gélido em seurosto.– Sou… Vasilisa Petrovna – ela se

apresentou.Os olhos dele pareceram penetrar em

seu cérebro. Ela mordeu a língua e nãodesviouosolhos.–Muitoprazer,então–disseodemônio.

Elesoltouamãoerecuou.Seusolhosazuisirradiavam centelhas. Vasya pensou ter

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imaginado a expressão de triunfo no seurosto. – Agora repita para mim, VasilisaPetrovna – ele acrescentou, meiozombeteiro–,oqueestáfazendo,vagandopelaflorestanegra?Estahoramepertenceesomenteamim.–Eles iammemandarparaoconvento

aoamanhecer–disseVasya–,masaminhamadrastadissequeeunãoprecisaria irselhe trouxesse as flores brancas daprimavera,aspodsnezhniki.Odemôniodogeloolhoufixoedepois

riu. Vasya olhou para ele atônita econtinuou:–Oshomenstentarammeimpedir,mas

eu escapei, corri para dentro da floresta.Estava tão apavorada que não conseguia

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pensar.Penseiemvoltar,masmeperdi.Viocarvalhoretorcido.Eaíouvipassos.– Loucura – o demônio do gelo disse,

secamente.–Nãosouoúnicopodernestafloresta.Vocênãodeveriaterdeixadoasuacasa.– Eu precisava – Vasya respondeu.

Subitamente, uma escuridão precipitou-sefrente a seus olhos. Seu breve alentoesmorecia rapidamente. – Eles iam memandar para um convento. Decidi quepreferiacongelaremummontedeneve.–Suapeleestremeceuporcompleto.–Bem,issofoiantesdeeucomeçaracongelaremummontedeneve.Dói.–É–disseMorozko.–Dóimesmo.– Os mortos estão andando – Vasya

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sussurrou.–Odomovoidesapareceráseeuforembora.Minhafamíliamorreráseelesme mandarem embora. Não sei o quefazer.Odemôniodogelonãodissenada.– Tenho que ir pra casa agora – Vasya

conseguiu dizer. – Mas não sei onde elafica.A égua branca bateu o pé e sacudiu a

crina. As pernas de Vasya subitamentebaquearam,comoseelafosseumpotrilhorecém-nascido.–A leste do sol, a oeste da lua – disse

Morozko.–Alémdapróximaárvore.Vasya não respondeu. Suas pálpebras

pestanejavam.–Vamos,então–acrescentouMorozko.

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–Está frio.–AgarrouVasyanomomentoemqueela caía.Ao ladodeles,haviaumbosque de velhos abetos, com ramosentrelaçados.Eleergueuamenina.Tinhaacabeçaeosmembroslargados.Ocoraçãodelabatiafraquinho.Esta foi por pouco, disse a égua para o

cavaleiro, soltando uma nuvem de bafofumegantenorostodamenina.–É–respondeuMorozko.–Elaémais

fortedoquemeatreviaesperar.Qualqueroutrateriamorrido.A égua bufou. Você não precisava tê-la

testado.OUrsojáfezisso.Porpoucoelenãoapegouprimeiro.–Bem,nãopegouedevemossergratos

porisso.

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Vocêvaicontaraela?,perguntouaégua.–Tudo?–observouodemônio.–Sobre

ursos, feiticeiras, feitiços feitos de safira esobre o rei do mar? Não, claro que não.Devo contar a ela o mínimo possível. Eesperarquebaste.A égua sacudiu a crina, e suas orelhas

relaxaram para trás, mas o demônio dogelonãoviu.Caminhouapassosdecididosparadentrodosabetos,comameninanosbraços.Aéguasoltouumsuspiroeseguiu.

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PARTETRÊS

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ACASAQUENÃOESTAVALÁ

ALGUMAS HORAS DEPOIS, VASYAABRIUOSOLHOSESEUVIUDEITADAna cama mais linda com que alguémjamais sonhara. As cobertas eram de lãbranca, pesadas e macias como a neve.Azul-claroeamarelopermeavamotecido,como um dia ensolarado de janeiro. Amoldura da cama e as colunas eramescavadas para parecerem troncos deárvores vivas, e, sobre ela, pendia umgrandedosselderamos.

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Vasya lutou para se entender. A únicacoisa da qual se lembrava: flores, andaraprocurandoflores.Porquê?Eradezembro,plenoinverno.Mastinhaquebuscarflores.Ofegando, Vasya sentou-se, debatendo-

senasdobrasdocobertor.Viuoquartoecaiuparatrás,tremendo.Oquarto,bem,seacamaeramagnífica,

o quarto era simplesmente estranho. Deinício, Vasya pensou que estava deitadanum bosque de árvores imensas. Bemacima pairava uma abóbada de céu azul.Mas, no momento seguinte, pareceu queestavanointeriordeumacasademadeira,cujo teto estava pintado com uma finacamadadeazul-celeste.Nãofaziaideiadequaldasduasalternativaseraverdadeira,e

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atentativadedecidirdeixou-azonza.Porfim,afundouorostonumcobertore

decidiu que voltaria a dormir. Comcerteza,acordariaemcasa,comDunyaaoseu lado, perguntando se tinha tido umpesadelo. Não, aquilo era um engano,Dunyaestavamortaevagavapelaflorestaenrolada no pano com o qual foraenterrada.O cérebro de Vasya entrou em

turbilhão. Mas ela não conseguia selembrar… E então se recordou. Oshomens, o padre, o convento. A neve, odemônio do gelo, os dedos dele na suagarganta, o frio, um cavalo branco. Eletinha pretendido matá-la. Havia salvadosuavida.

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Ela se esforçou novamente para sesentar,massóconseguiuajoelhar-seentreos cobertores. Forçou a vistadesesperadamente, mas foi impossívelfazeroquartoficarparado.Porfim,fechouos olhos e descobriu a beirada da camarolando por cima dela. Seu ombro bateuno chão. Pensou ter sentido um roçar deumidade, como se tivesse caído em ummonte de neve. Não…Agora o chão eramacio equente, comoumamadeirabemaplainadapertodeumalareira.Pensouterouvidoocrepitardeumfogo.Levantou-sesem firmeza. Alguém havia tirado suasbotasemeias.Ospésestavamcongelados.Viuosdedosdospésbrancoseexangues.Nãoconseguiaolharparanadanacasa.

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Eraumquarto; era umbosque de abetossob céu aberto, impossível decidir o queera o quê. Fechou os olhos com força,tropeçandonospésmachucados.–O que você está vendo? – perguntou

umavozestranhaeclara.Vasya virou-se em direção à voz, não

ousandoabrirosolhos.–Umacasa–grasnouela.–Umbosque

deabetos.Osdoisaomesmotempo.–Muito bem – disse a voz. – Abra os

olhos.Encolhendo-se,Vasyafezoqueeradito.

O homem gelado, o demônio do gelo,estavanocentrodoquarto,epelomenosela conseguia vê-lo. Os cabelos escuros erebeldesdele iamatéosombros.Orosto

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sardônico poderia pertencer a um jovemde vinte anos ou a um guerreiro decinquenta. Diferentemente de todos osoutros homens que Vasya já vira, estavabarbeado. Talvez fosse isso que desse aorostootoqueestranhodejuventude.Comcerteza tinha os olhos de um velho.Quandoolhoudentrodeles,pensou:Eunãosabiaquealgopudessesertãovelhoeviver.Opensamentodeu-lhemedo.Porémmais fortedoqueomedoeraa

suadeterminação.–Por favor –disse ela. –Preciso ir pra

casa.Seu olhar claro percorreu-a de cima a

baixo.–Eles a expulsaram–ele respondeu. –

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Vãomandá-laparaumconvento.Emesmoassimvocêirápracasa?Elamordeuolábioinferiorcomforça.–Odomovoisumiráseeunãoestiverlá.

Talvez agorameupai tenha voltado e euconsigafazê-loentender.O demônio do gelo analisou-a por um

momento.–Talvez–disseele,porfim.–Masvocê

está machucada. Está cansada. Suapresençadepoucoserviráparaodomovoi.– Preciso tentar. Minha família corre

perigo.Porquantotempoeudormi?Elesacudiuacabeça.Umlevetoquede

humorcurvousuaboca.–Aquisóexistehoje.Nãoexisteontem,

nem amanhã. Você pode ficar um ano e

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chegar em casa logo depois de ter saído.Não importa quanto tempo tenhadormido.Vasyaficoucalada,absorvendoisso.Por

fim,perguntounumavozmaisbaixa:–Ondeestou?Anoitenanevetinhaviradoumborrão

emsuamemória,maspensavaselembrarde tervisto indiferençano rostodele,umtoquedemalíciaeoutrodetristeza.Agora,apenaspareciasedivertir.– Na minha casa – ele respondeu. –

Considerandoqueeutenhauma.Isto não está ajudando. Vasya engoliu as

palavrasantesquepudessemescapar,maselasdevemtertransparecidonorostodela.– Temo que você tenha o dom, ou a

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maldição, daquilo que sua gente poderiachamardesegundavisão–eleacrescentougravemente, embora houvesse um brilhoemseusolhos.–Minhacasaéumbosquede abetos, e este bosque de abetos é aminha casa, e você vê os dois aomesmotempo.– E o que eu faço com isto? – Vasya

indagou entredentes, quase incapaz de seesforçar para ser educada. Logo estariavomitandonochãoaospésdele.–Olheparamim–elemandou.Avoz

dele a obrigou; parecia ecoar em seucrânio. –Olhe apenas paramim. – Ela oencarou nos olhos. – Você está naminhacasa.Acreditenisto.Vasya repetiu para si mesma, com

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hesitação. As paredes pareceram sesolidificar, enquanto olhava. Estava emuma morada rústica, espaçosa, comentalhesgastosemsuasvigastransversaiseum teto da cor do céu aomeio-dia.Umagrande estufa na extremidade do quartoirradiava calor. Das paredes, pendiamestampas em tecidos: lobos na neve, umurso hibernando, um guerreiro de cabeloescuroconduzindoumtrenó.Eladesviouosolhos.–Porquevocêmetrouxeaqui?–Meucavaloinsistiu.–Estácaçoandodemim.– Estou? Você andou vagando pela

floresta por tempo demais. Seus pés emãos estão congelados. Talvez você

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devessesesentirhonrada;nãocostumoterhóspedescomfrequência.– Então estou honrada – falou Vasya,

sem conseguir pensar emmais nada paradizer.Eleaanalisoupormaisummomento.–Estácomfome?Vasyapercebeuahesitaçãonavozdele.– Seu cavalo também sugeriu isso? –

perguntou ela, antes de conseguir seconter.O homem riu, e ela achou que ele

pareciaumtantosurpreso.–Sim,éclaro.Elajáteveváriospotros.

Eucedoàsuaopinião.Subitamente,eleinclinouacabeça.Seus

olhosfaiscaram.

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– Meus criados cuidarão de você –acrescentou ele, abruptamente. – Precisosairumpouco.Não havia nada de humano em seu

rosto; e por um instante, Vasya nãoconseguiu absolutamente ver o homem;em vez disso, viu apenas um ventoaçoitando os galhos de árvores antigas,uivando em triunfo enquanto se erguia.Afastouavisãopiscandoosolhos.– Adeus – despediu-se o demônio do

gelo,esefoi.Vasya, tomada de surpresa com a

partida, olhou em torno com cautela. Astapeçarias a atraíram. Extremamentevivas, os lobos, o homem e os cavalospareciam prestes a pular para o chão em

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um rodamoinho de ar frio. Andou peloquarto, examinando-as enquantocaminhava. Por fim, chegou em frente àfornalhaeestendeuosdedoscongelados.O raspar de um casco fez com que se

voltassenumgiro.Aéguabrancaveioemsua direção, sem qualquer arreio. Sualonga crina espumava comouma cascata.Pareceuque tinha saídodeumaportanaparede oposta, mas ela estava fechada.Vasya olhou. A égua sacudiu a cabeça.Vasyalembrou-sedesereducadaefezumamesura.– Obrigada, senhora. Salvou a minha

vida.Aéguaestremeceuumaorelha.Foiumacoisinhadenada.

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–Pramim,não–disseVasyacomcertaaspereza.Nãoquisdizerisso,disseaégua.Quisdizer

quevocêéumacriaturacomonós,produtoemestado bruto dos poderes do mundo. Teria sesalvado por si mesma. Não foi feita paraconventos, nem para viver como uma criaturadoUrso.–Teria?–perguntouVasya,lembrando-

sedafuga,doterror,dospassosnoescuro.–Eunãoestavamesaindomuitobem.Masoquevocêquerdizercom“ospoderesdomundo”?FomostodosfeitosporDeus.Suponho que este Deus ensinou a você a

nossafala?–Claro que não – disseVasya. – Foi o

vazila quem me ensinou isso. Eu lhe fiz

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oferendas.Aéguaraspouumcasconochão.Eu me lembro de mais coisas e vejo mais

coisasdoquevocê,eladisse.Eporumtempoconsiderável seráassim.Nãoconversamoscommuitaspessoas, e o espíritodos cavalosnão serevelaaqualquerum.Seusossostrazemmagia.Vocêprecisacontarcomisto.– Então, estou amaldiçoada? – Vasya

murmurou,apavorada.Nãoentendoo“amaldiçoada”.Vocêé.Epor

ser, pode andar onde quiser, na paz, noesquecimentoounosburacosde fogo,masvocêvaisempreescolher.Houve uma pausa. O rosto de Vasya

doía, e sua visão tinha começado a sefragmentar. O campo nevado puxava as

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bordasdasuavisão.Háhidromelnamesa,aéguadisse,vendo

os ombros caídos damenina.Você deveriabeber e depois descansar de novo. Quandoacordar,haverácomida.Vasyanãocomiadesdeahoradojantar,

antes de se aventurar pela floresta. Seuestômagolevouumtempo, forçosamente,para lembrá-la. Do outro lado do fogãohavia uma mesa de madeira, escura develha,ricadeentalhes.Ogarrafãodepratasobre ela era adornado com floresprateadas. O copo era de prata batida,incrustada de gemas vermelho-fogo. Porummomento,ameninaesqueceuafome.Levantou o copo e o inclinou na luz. Eralindo. Olhou interrogativamente para a

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égua.Ele gosta de objetos, ela disse, embora eu

não entenda o motivo. E é um grandepresenteador. De fato, o garrafão continhahidromel: ralo e forte e, de certo modo,penetrante comoa luzdo solno inverno.Bebendo-o, Vasya sentiu-se,repentinamente, sonolenta.Comosolhospesados, tudo o que conseguiu fazer foipousar o copo de prata. Fez umamesuraemsilêncioparaaéguabrancaevoltouaostropeçosparaagrandecama.

Durantetodoaqueledia,umatempestadeatravessouasterrascongeladasdonortede

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Rus’. Os camponeses correram para seabrigar e barraram suas portas. Até osfogosdosfornosnopaláciodemadeiradeDmitrii, em Moscou, dançavam eoscilavam.Osvelhosedoentessabiamquesua hora havia chegado e escapuliam novento choroso. Os vivos persignavam-sequandosentiamasombrapassar.Mas,nacaída da noite, o ar aquietou-se e o céuencheu-se da promessa de neve. Aquelesque haviam resistido aos chamadossorriram, porque sabiam quesobreviveriam.Um homem de cabelos escuros surgiu

porentreduas árvorese levantouo rostopara um céu rasgado por nuvens. Seusolhos reluziram um azul sobrenatural,

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enquantoelepercorria as sombrasque seavolumavam. Seu manto era de pele ebrocadoescuro,emborativessevindoparaaszonasfronteiriçasaocrepúsculo,ondeoinverno rendia-se à promessa daprimavera. O chão estava coberto decampânulasbrancas.Uma canção penetrou no princípio da

noite, tênue, calma e doce.Mesmo ao sevoltar em direção a ela, Morozkoexperimentou o lado mais sombrio damagia que acionara, porque amúsica lhelembrava tristeza, horas lentas, plenas dearrependimento.Nãosentiaessatristeza–não tinha conseguido perceber – haviamilharesdeanos.Caminhou mesmo assim, até chegar a

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umaárvoreondeumrouxinolcantavanoescuro.–Pequenino,vocêvoltarácomigo?A minúscula criatura pulou para um

galho mais baixo e inclinou a cabeçamarrom-clara.–Paravivercomoseus irmãose irmãs

têmvivido–disseMorozko.–Tenhoumacompanhiaparavocê.Opassarinhotrinou,masbaixinho.– Você não conseguirá a sua força de

outro jeito, e esta é generosa e de bomcoração.O passarinho piou e ergueu as asas

marrons.– É, a coisa contém morte, mas não

antesdaalegriaoudaglória.Vocêprefere

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ficar aqui, em vez disso, e cantar aeternidade?O passarinho hesitou, depois pulou do

seu galho com um grito. Morozko viu-opartir.–Siga,então–dissebaixinho,enquanto

oventoerguia-senovamenteàsuavolta.

Vasya ainda estava dormindo quando odemôniodogelovoltou.Aéguacochilavapertodoforno.–O que você acha? – ele perguntou, a

meia-voz.Aéguaestavaprestesaresponder,mas

umrelinchoeumbarulhointerromperam-

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na. Um garanhão baio com uma estrelaentre os olhos irrompeu no quarto.Resfolegou e bateu a pata, sacudindo anevedasancasmanchadasdepreto.Aéguaabaixouasorelhasparatrás.Acho, disse ela, que meu filho veio aonde

nãodeveria.Ogaranhão,emboragraciosocomoum

veado,aindatinharesquíciosdeumpotrode pernas compridas. Olhou para a mãecomcautela.Soube que havia uma defensora aqui, ele

disse.Aéguaabanouorabo.Quemfalouisso?– Eu – disse Morozko. – Trouxe-o de

voltacomigo.

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Aéguaolhouparaseucavaleirocomasorelhasespetadaseasnarinastremendo.Vocêotrouxeparaela?– Preciso daquela menina – disse

Morozko,olhandoparaaéguacomdureza–, como você bem sabe. Se ela é tola osuficienteparavagarpelaflorestadoUrsoànoite,vaiprecisardecompanhia.Elepoderia ter continuadoa falar,mas

foi interrompido por um estrondo. Vasyatinhaacordadoecaídodacama,semestaracostumada com roupas de cama quetambémeramummontedeneve.O cavalo grande, o escuro pelo baio

reluzindo à luz do fogo, adiantou-se compassoscurtos,orelhasempé.Vasya,aindasemiacordadaeesfregandooombromuito

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dolorido,levantouosolhoseseviunarizanarizcomumenormee jovemgaranhão.Ficouimóvel.–Oi–eladisse.Ocavalogostou.Oi,respondeuele.Vocêvaimecavalgar.Vasya levantou-se com dificuldade,

muitomenos idiotadoquenoseuúltimodespertar.Massuafacelatejavaeelateveque controlar os olhos cansados para verapenas o garanhão, não as sombras quelembravampenaseflutuavamàvoltadele.Depoisquesuavisãoseestabilizou,olhouas costas dele, dois palmos acima dacabeçadela,comalgumceticismo.–Euficariahonradadecavalgarvocê–

ela respondeu educadamente, embora

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Morosko notasse o tom seco na voz damenina emordesse o lábio. –Mas talvezeudevaadiarporumtempinho.Gostariade ter mais algumas roupas. – Olhou aoredordoquarto,massuacapa,suasbotaseluvasnãoestavamàvista.Nãovestianadaalém de sua roupa de baixo amassada,sentindo o toque gelado do pingente deDunya junto ao esterno. Sua trançahaviase desmanchado enquanto dormia, e aespessacortinadocabelonegroacobreadocaíasoltaatéacintura.Tirou-odorostoe,comumtoquedebravata,caminhouatéofogo.Aéguabrancaestavaaoladodoforno,

comodemôniodogelojuntoàsuacabeça.Vasyaficouperplexacomasemelhançada

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expressão dos dois: os olhos do homemcontraíram-se e as orelhas da éguaespetaram-se.Ogaranhãobaiosoltouumbafoquentenocabelodela.Seguia-atãodepertoqueo focinhobateuemseuombro.Sempensar,Vasya pousou amão em seupescoço. Satisfeitas, as orelhas do cavaloderamumalevegirada,eelasorriu.Havia espaço sobrando em frente ao

fogo,apesardapresençaincongruentedosdois cavalos altos e musculosos. Vasyafranziuocenho.Oquartonãopareceratãograndeassimemseuúltimodespertar.Amesaestavapostacomdoiscoposde

prata eum jarro fino.Operfumedemelquente flutuava pelo quarto. Um pão deforma preto, cheirando a centeio e anis,

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achava-se ao lado de uma travessa comervas frescas. De um lado havia umavasilha com peras e do outro uma commaçãs.Alémdaquilotudo,haviaumcestodefloresbrancascomascorolaspendendodespretensiosamente. Podsnezhniki.Campânulasbrancas.Vasyaparoueolhou.–Foipor istoquevocêveio,não foi? –

Morozkoperguntou.–Nãopenseiquefossedefatoencontrá-

las!– Então você tem sorte por eu ter

conseguido.Vasya olhou para as flores e não disse

nada.–Venhacomer–disseMorozko.–Mais

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tarde,conversamos.Vasya abriu a boca para argumentar,

masseuestômagovazioroncou.Refreouacuriosidadeesesentouemumbanquinhoem frente a ela, recostado no ombro daégua.Elainspecionouacomida,eoslábiosdelesecontorceramaoversuaexpressão.–Nãoéveneno.– Imagino que não – disse Vasya, em

dúvida.Ele arrancou um pedaço de pão e o

estendeuparaSolovey.Ogaranhãopegou-ocomentusiasmo.– Vamos – disse Morozko –, ou seu

cavalocomerátudo.Comcautela,Vasyapegouumamaçãe

deu uma mordida. Uma doçura gelada

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fascinoua sua língua.Pegouopão.Antesde perceber, sua vasilha estava vazia,metade do pão se fora, e ela estavasatisfeita,dandopedacinhosdepãoefrutapara os dois cavalos.Morozko não tocouna comida.Depois de ela ter comido, eleserviu o hidromel. Vasya bebeu no seucopodepratagravado,saboreandoogostodaluzsolarfriaedasfloresdeinverno.O copo dele era igual ao dela, exceto

pelaspedrasaolongodaborda,queeramazuis. Vasya não falou enquanto bebia.Mas pousou, enfim, o copo na mesa eolhouparaele.Poder, pensou Morozko um tanto

inquieto, vendo a coisa nadar nasprofundidadesverdes.OvelhoChernomora

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reconheceria de imediato. Mas ela é muitojovem.– O que vai acontecer agora? – ela

perguntouaele.–Dependedevocê,VasilisaPetrovna.– Preciso ir pra casa – ela afirmou. –

Minhafamíliacorreperigo.–Vocêestáferida–observouMorozko.

–Mais do que pensa. Ficará até se curar.Sua família não vai ficar nem um poucopior por causa disso. – Com maisdelicadeza, acrescentou: – Você irá paracasanamadrugadadanoiteemquepartiu.Possoprometerisso.Vasya não disse nada. O fato de não

argumentar demonstrava o tamanho doseu cansaço. Tornou a olhar para as

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campânulasbrancas.–Porquevocêmetrouxeisto?– Suas opções eram levar estas flores

parasuamadrastaouirparaumconvento.–Vasya concordou coma cabeça. –Bem,então,aquiestãoelas.Façaoquequiser.Vasya estendeu, hesitante, um dedo

indicadorparaagradarumapétalasedosaeúmida.–Deondevieram?–Dasfronteirasdasminhasterras.–Eondeficaisso?–Nodegelo.–Masissonãoéumlugar.– Não? É muitas coisas. Exatamente

comovocê e eu somosmuitas coisas, e aminha casa é muitas coisas, e até esse

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cavalocomofocinhonoseucoloémuitascoisas.Suasfloresestãoaqui.Alegre-se.Os olhos verdes chamejaram para ele

mais uma vez, rebeldes, em vez dehesitantes.–Nãogostoderespostaspelametade.– Então, pare de fazer perguntas pela

metade – ele disse, e sorriu com umcharmerepentino.Elacorou.Ogaranhãoaproximou sua grande cabeça. Ela seretraiuquandoocavalolambeuseusdedosmachucados.– Ah – disseMorozko. – Esqueci, está

doendo?–Sóumpouco.–Maselanãooencarou.Ele contornou a mesa e se ajoelhou,

fazendo com que seus rostos ficassem no

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mesmonível.–Posso?Elaengoliuemseco.Elepegouoqueixo

delaevirouo rostoparao fogo.Sua facetinha marcas pretas no lugar onde ele ahaviatocadonafloresta.Apontadosseusdedos dos pés e dasmãos estava branca.Ele examinou suasmãos, passou a pontadodedoemseupécongelado.–Nãosemexa–elemandou.–Porquê…Masentãoelecolocouamãoespalmada

em seu queixo. Seus dedos ficaramrepentinamente quentes,inacreditavelmentequentes,apontodeelaesperarocheirodaprópriacarnequeimar.Tentou afastar-se, mas ele a segurou por

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detrás da cabeça com a outra mão,afundando-a em seu cabelo. A respiraçãodela estremeceu, raspando na garganta.Ele desceu amão até a sua garganta e aqueimaçãoaumentou.Ela estava chocadademais para gritar. Justo quando pensouque não poderia suportar nem mais umminutoeleasoltou.Eladesaboucontraogaranhão baio. O cavalo soprou em seucabelo,reconfortando-a.–Medesculpe–disseMorozko.Oarà

sua volta estava frio, apesar do calor dassuas mãos. Vasya percebeu que tremia.Tocou em sua pele machucada; estavamacia,quenteesemsinais.–Nãoestádoendomais.–Elaforçoua

vozaparecertranquila.

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–Não–eledisse.–Possocuraralgumascoisas. Mas não consigo curar comdelicadeza.Ela olhou para os dedos dos seus pés,

paraapontadosdedosdestruída.–Émelhordoqueficaraleijada.–Éissoaí.Masquandoeletocounosseuspés,ela

nãoconseguiurefrearaslágrimas.–Vocêmedáasmãos?–elepediu.Ela hesitou. A ponta dos dedos estava

congelada,eumadasmãosseencontravamal envolvida emuma tira de linhoparaproteger o buraco irregular da palma,resultado da noite em que o upyr tinhavindoatrásdeKonstantin.Alembrançadador ribombou para ela. Ele não esperou

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que a menina falasse. Vasya precisou detoda sua força, mas conteve o gritoenquantoacarnedapontadosseusdedostornava-seróseaequente.Por fim, ele pegou na mão esquerda

delaecomeçouadesenrolarolinho.– Foi você quemmemachucou – disse

Vasya,tentandosedistrair.–Nanoiteemqueoupyrveio.–Fuieu.–Porquê?–Paraquevocêmevisse–eledisse.–

Paraquevocêselembrasse.–Eujátinhatevistoantes.Nãoesqueci.Ele estava com a cabeça debruçada

sobresuatarefa,maselaviuacurvadasuabocasarcásticaeumpoucoamarga.

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– Mas você duvidou. Não teriaacreditado no seu próprio discernimentodepois de eu ter ido embora. Agora, soupoucomaisdoqueumasombranascasasdoshomens.Houveépocaemqueeraumconvidado.–Queméocaolho?–Meu irmão–eledissebrevemente.–

Meu inimigo. Mas esta é uma longahistória e não é para hoje à noite. –Colocouaataduradelinhodelado.Vasyalutoucontraavontadedefecharamãoemum punho. – Este vai ser mais difícil decurardoqueocongelamento.–Eufiqueireabrindoele–disseVasya.–

Issopareciaajudaraguardaracasa.– Ajudaria – disse Morozko. – No seu

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sangue há virtude. – Tocou o lugarmachucado. Vasya encolheu-se. – Masapenas um pouco porque você é jovem,Vasya. Posso curar isto, mas você ficarácomamarca.– Faça isso, então – ela disse, sem

conseguirimpedirotremornavoz.–Muitobem.Elepegouumpunhadodenevedochão.

Poruminstante,Vasyaficoudesorientada;viu o bosque de abetos, a neve no chão,azulcomocrepúsculo,vermelhacomaluzdofogo.Mas,então,acasasereconfigurouà suavolta,eMorozkopressionouaneveno ferimento da sua palma. Todo o seucorpoenrijeceu-se,eentãoveioador,piordo que antes. Ela reprimiu um grito e

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conseguiu se manter imóvel. A dor foialém do suportável, de modo que elasoluçou uma vez antes de conseguir secontrolar.Cessouabruptamente.Elesoltouamão

eelaquasecaiudobanquinho.Ogaranhãobaio salvou-a; ela caiu de encontro a seucorpanzil quente e se segurou agarrandonacrina.Ogaranhãovoltouacabeçaparalambersuamãoquetremia.Vasya empurrou-o de lado e olhou. A

ferida tinha sumido. Restava apenas umamarcafriaefraca,perfeitamenteredonda,no meio da palma. Quando ela a virouparaa luzdofogo,pareceuquecaptavaaluz, como se uma lasca de gelo estivesseenterrada debaixo da pele. Não, estava

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imaginandocoisas.–Obrigada. – Apertou ambas asmãos

nocoloparaesconderotremor.Morozko se levantou e se afastou,

olhandoparaela.–Vocêvaisarar–disseele.–Descanse.

É minha hóspede. Quanto a suasperguntas,haverárespostas.Nahoracerta.Vasya concordou com a cabeça, ainda

olhando para a mão. Quando voltou alevantarosolhos,elehaviadesaparecido.

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VIODESEJODOSEUCORAÇÃO

_ ENCONTREM-NA – KONSTANTINORDENOU RISPIDAMENTE. – Tragam-nadevolta!Mas os homens não entrariam na

floresta. Seguiram Vasya até a beirada eempacaram, resmungando a respeito delobosedemônios.Sobreofriorigoroso.–Deusajulgaráagora,Batyushka–disse

o pai deTimofei, eOleg concordou comumgestodecabeça.Konstantin hesitou, surpreendido. A

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escuridãosobasárvorespareciaabsoluta.–Comovocêsdizem,meusfilhos–disse

gravemente–,Deusajulgará.FiquemcomDeus.–Fezosinaldacruz.Os homens perambularam pela cidade

murmurando com as cabeças juntas.Konstantin foi para sua cela fria enua.Omingau que tivera ao jantar pesava noestômago.AcendeuumavelaemfrenteàMãe de Deus, e centenas de sombrascriaram vida furiosamente ao longo dasparedes.–Servomalvado– rosnouavoz.–Por

queameninabruxaestá livrena floresta,quando eu te disse que ela deve sercontida?Queprecisairparaumconvento?Estou desgostoso, meu servo. Muito

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desgostoso.Konstantincaiudejoelhos,acuado.–Fizemosopossível–alegouele.–Elaé

umdemônio.– Aquele demônio está com o meu

irmão,eseeletiverahabilidadedeveraforçadela…A vela oscilou. O padre, encolhido no

chão,ficoumuitoquieto.–Seuirmão?–murmurouele.–Maso

senhor… – Então, a vela se apagou, erestou apenas a escuridão respirando. –Quemévocê?Umlongoelentosilêncio,eentãoavoz

riu.Konstantinnãotevecertezadeouvi-la;talvez só a tenha visto, no tremor dassombrasnaparede.

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– O que traz as tempestades –murmurou a voz com certa satisfação. –Porumavezvocêmeinvocoudessejeito,mas há muito tempo os homens mechamavamdeoUrso,Medved.– Você é um demônio – sussurrou

Konstantin,fechandoasmãos.Todasassombrasriram.–Comoquiser.Mas qual é a diferença

entre mim e aquele a quem chama deDeus?Eutambémmealegrocomosfeitosrealizados em meu nome. Posso dar-lheglória,secumpriraminhaordem.–Você–sussurrouKonstantin.–Maseu

pensei… – Ele tinha se acreditadoexaltado, escolhido, mas era apenas umpobre ingênuoehaviacumpridoaordem

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de um demônio. Vasya… Sua gargantafechou-se. Em algum lugar na sua almahavia uma garota orgulhosa cavalgandoum cavalo à luz diurna do verão. Rindocomseuirmãoemseubanquinhoaoladodoforno.– Ela vai morrer. – Ele pressionou os

olhos com os punhos. – Fiz isto a seuserviço. – Mesmo enquanto falava,pensava:elesjamaisdeverãosaber.–Eladeveriateridoparaumconvento.

Ou vindo a mim – disse a voz,simplesmente, com apenas uma levesugestãofervilhantederaiva.–Masagoraestácomomeuirmão.ComaMorte,masnãomorta.– Com a morte? – murmurou

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Konstantin.–Nãomorta?–Elequeriaqueelaestivessemorta.Desejavaqueestivesseviva. Queria que ele mesmo estivessemorto.Enlouqueceriaseavozcontinuassefalando.O silêncio estendeu-se, e quando ficou

insuportável,avozvoltouafalar:– O que você quer acima de tudo,

KonstantinNikonovich?–Nada –Konstantin respondeu. –Não

queronada.Váembora.– Você parece uma donzela histérica –

disse a voz, acidamente. E, então,suavizou-se:–Nãoimporta,seioquevocêquer.–E,depois,rindo:–Gostariadeteraalma imaculada, homem de Deus?Gostaria que a garota inocente voltasse?

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Bem, saiba que posso tirá-la dasmãos daprópriaMorte.–Émelhor que elamorra e deixe este

mundo–disseKonstantincomavozrouca.– Ela viverá atormentada antes de

morrer.Possosalvá-la,eu,sozinho.– Então prove – disse Konstantin. –

Traga-adevolta.Asombrabufou.–Tãoprecipitado,homemdeDeus.– O que você quer? – Konstantin

engasgou-secomaspalavras.Avozdasombraenvelheceu.–Ah,KonstantinNikonovich,étãobom

quando os filhos dos homens meperguntamoqueeuquero.– Então, o que é? – disse Konstantin,

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bruscamente.Como é que eu posso ser justocomessavoznosmeusouvidos?Seeleatrouxerdevolta,estareinovamentepuro.–Umacoisinha–disseavoz.–Apenas

umacoisinha.Avidadevepagarpelavida.Vocêquerabruxinhadevolta;precisodeumabruxaparamim.Traga-meumaeeulhedareiasua.E,então,euodeixarei.–Oquevocêquerdizer?–Tragaumabruxaparaafloresta,para

a beira, para o carvalho, ao amanhecer.Vocêsaberáqualéolugarquandoovir.– E o que acontecerá – perguntou

Konstantin, em pouco mais do que umsuspiro – com esta… bruxa que eu lhetrouxer?–Bem,elanãomorrerá–explicouavoz,

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eriu.–Quebenefíciometrazumamorte?Amorteéomeuirmão,aquemodeio.–Masnãoexistembruxas,comexceção

deVasya.– As bruxas precisam ver, homem de

Deus.Ésóapequenadonzelaquevê?Konstantin ficou em silêncio. Na sua

mente, viu uma figura rechonchuda, semforma, ajoelhada aos pés do biombo deícones, segurando sua mão com a mãosuada.A voz dela soou em seus ouvidos.Batyushka, vejo demônios. Por toda parte. Otempotodo.– Pense nisto,KonstantinNikonovich –

disse a voz. – Mas preciso tê-la antes donascerdosol.–Ecomovouencontrá-lo?–Aspalavras

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soavam mais brandas do que a nevecaindo. Um homem mortal não as teriaouvido,masasombraescutou.–Entrenafloresta–sibilouasombra.–

Procure campânulas brancas. Então, vocêsaberá. Entregue-me uma bruxa e leve asua.Entregue-meumabruxaeestarálivre.

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OPASSARINHOQUEAMOUUMADONZELA

VASYAACORDOUCOMOTOQUEDA

LUZDOSOLEMSEUROSTO.ABRIUosolhos para um teto de azul tênue – não,não,paraumaabóbadadecéuaberto.Seussentidos confundiram-se, e ela nãoconseguiu se lembrar… E então serecordou.Estouna casado bosquedeabetos.Um queixo com cerdas encostou-se aodela.Abriuosolhosedescobriu,maisumavez,queestavacaraacaracomogaranhãobaio.

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Vocêdormedemais,disseocavalo.–Penseiquevocêfosseumsonho–disse

Vasya com certo fascínio. Tinha seesquecidodecomoeragrandeocavalodosonho e da expressão ardente em seusolhos escuros.Empurrou seu focinhoe sesentou.Normalmente, não sou, respondeu o

cavalo.A noite anterior voltou para Vasya em

uminstante.Campânulasbrancasnoaugedoinverno,pãoemaçãs,hidromelfortenalíngua. Dedos longos e brancos no rosto.Dor.Livrouamãodocobertor.Haviaumalevemarcanocentrodapalma.– Isto também não foi um sonho –

murmurouela.

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O cavalo olhava para ela com algumapreocupação.Émelhoracreditarquetudoéreal,disseele,

comosefalassecomumalunática.E eu tedigosevocêestásonhando.Vasyariu.–Feito.Agoraestouacordada.Deslizou para fora da cama menos

doloridadoqueantes.Suacabeçaestavasedesanuviando.Acasaseencontravaquietacomoumaflorestaaomeio-dia,salvopelocrepitar e estalar de um bom fogo, ondeuma pequena panela fumegava.Subitamente voraz, Vasya foi até lá edescobriu um luxo: mingau, leite e mel.Comeu,enquantoogaranhãorondava.– Qual é o seu nome? – perguntou ao

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cavalodepoisdesatisfeita.O garanhão estava ocupado,

terminandooquerestaranavasilhadela.Inclinou uma orelha para ela, antes deresponder:MechamoSolovey.Vasyasorriu.–Rouxinol.Umnomepequenoparaum

cavalo grande. Como é que recebeu estenome?Fui parido ao crepúsculo, ele disse com

gravidade.Ou talvez tenha saídodeumovo,nãoconsigomelembrar.Foihámuitotempo.Àsvezeseucorro,eàsvezeseumelembrodevoar.Efoiassimquefuichamado.Vasyaolhoufixamente.–Masvocênãoéumpassarinho.

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Vocênãosabeoqueé,conseguesaberoqueeusou?, replicou o cavalo. Me chamam deRouxinol,temalgumaimportânciaomotivo?Vasya não teve resposta. Solovey havia

terminado omingau e levantou a cabeçapara olhar para ela. Era o cavalo maisadorável que já vira.Mysh,Metel,Ogon,todoseleseramcomopardaisfrenteaoseufalcão.–Ontemànoite–disseVasya,hesitante

–, ontem à noite você disse que medeixariamontar.O garanhão relinchou. Seus cascos

bateramnochão.Minhamãedissequeeudeveriaserpaciente,

ele disse.Mas normalmente não sou. Venhacavalgar.Nuncafuimontado.

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Vasya ficou subitamente em dúvida,mas voltou a trançar seu cabeloembaraçado,vestiua jaquetaeacapa,asluvas e as botas, que encontrou ao pé dofogo. Seguiuo cavalonodiaofuscante.Aneveestavaespessasobospés.Vasyaolhouas costas altas e nuas do garanhão.Experimentou braços e pernas e viu queestavam fracos como geleia. O cavaloposavaorgulhosoenaexpectativa,pareciasaídodeumcontodefadas.–Acho–disseVasya–quevouprecisar

deumtoco.Asorelhasespetadasabaixaram-se.Umtoco?–Umtoco–repetiuVasya,decidida.Foi

atéumbemconveniente,ondeumaárvore

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haviaquebradoecaído.Ocavaloaseguiucom indolência. Parecia estarreconsiderando sua escolha de cavaleiro.Masficouparadojuntoaotoco,parecendotriste, e de láVasya saltou delicadamenteparasuascostas.Todos os músculos do animal ficaram

rígidos, e ele jogou a cabeça para o alto.Vasya, que já tinha montado em cavalosjovens, estava esperando algo do tipo eficouparada.Por fim, o grande garanhão soltou um

bufo.Muito bem, disse. Pelo menos você épequena.Mas,quandoelesepôsaandar,foicom um passo afetado, de lado. A cadapoucossegundos,viravaacabeçaparaverameninaemseudorso.

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Cavalgaramodiatodo.–Não–repetiuVasyapeladécimavez.

Suanoitenaflorestanevadadeixara-amaisfraca do que imaginara e estavadificultando uma tarefa já difícil. – Vocêprecisa baixar a cabeça e usar as costas.Neste exato momento, cavalgar você écomo cavalgar um tronco. Um troncograndeeescorregadio.Ogaranhãovirouacabeçaparaolhar.Euseiandar.–Mas não sabe carregar umapessoa –

Vasyaretorquiu.–Édiferente.Você dá uma sensação estranha, o cavalo

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reclamou.–Dápraimaginar–disseVasya.–Não

precisamecarregarsenãoquiser.Ocavalonãodissenada,sacudindosua

crinanegra.Então:Voucarregarvocê.Minhamãedizquecomo

tempo fica mais fácil. Ele parecia cético.Bem,chegadisso.Vamosveroqueconseguimosfazer.Esaiuemdisparada.Vasya, tomadadesurpresa,jogouopesodocorpoparaafrente e envolveu a barriga dele com aspernas.O garanhão adernou emmeio àsárvores. Vasya viu-se gritando em altosbrados. Ele era gracioso como um gatocaçador e fazia quase tanto barulhoquanto. Em velocidade, os dois eram umsó. O cavalo corria como água, e todo o

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mundobrancolhespertencia.– Precisamos voltar – disse Vasya por

fim, afogueada, ofegante e rindo. Soloveydiminuiu para um trote, a cabeçalevantada, as narinas mostrando-severmelhas.Pinoteouporpuroentusiasmo,eVasya,agarrando-se,esperouqueelenãoaderrubasse.–Estoucansada.O cavalo apontou a orelha na direção

dela, de uma maneira insatisfeita. Malestava ofegante.Mas soltou um suspiro evoltou. Num tempo surpreendentementecurto, o bosque de abetos estava à frentedeles.Vasyaescorregouparaochão.Seuspés bateram na terra com um grandechoquededor,eelacaiunaneve,arfando.Seus dedos dos pés curados estavam

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entorpecidos, e a cavalgada de algumashorasnãotinhamelhoradoasuafraqueza.–Masondeestáacasa?–perguntouela,

rangendoosdentesesepondoempé.Sóconseguia ver os abetos. O fim do diaenvolviaamataemumvioletaestrelado.Ele não pode ser encontrado quando se

procura,disseSolovey.Vocêprecisadesviarosolhos sóumpouquinho.Vasyafez isso,eali,num rápido lampejo, na beirada da suavisão,estavaacabanaemmeioàsárvores.O cavalo caminhou ao seu lado, e ela sesentiu um pouco envergonhada porprecisar do apoio do seu ombro quente.Eleaempurrouportaadentro.Morozko não tinha voltado.Mas havia

comidanafornalhaembrasa,colocadapor

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mãos invisíveis, e algo quente econdimentadoparabeber.Ela enxugou Solovey com panos,

escovou sua pelagem baia e penteou alongacrina.Eletambémnuncahaviasidotratado.Bobagem, disse o cavalo, quando ela

começou. Você está cansada. Não faz amínimadiferençaseeuestouescovadoounão.Mas mesmo assim ele pareceuimensamente satisfeito consigo mesmo,quando ela teve um cuidado extra com asua cauda. Roçou sua face quando elaterminou e passou toda a refeiçãoanalisandoocabelodela,orosto,ojantar,como se suspeitasse que ela estivesseescondendoalgumacoisa.

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–Deondevocêvem?–Vasyaperguntou,quandojánãoconseguiacomermaisnadae alimentava o insaciável cavalo compedaçosdepão.–Ondevocêfoiparido?–Solovey não respondeu. Estendeu opescoço e trincou uma maçã com seusdedosamarelos.–Queméseupai?–Vasyainsistiu.Soloveycontinuousemdizernada.Roubou o que restava do pão dela e seretirou lentamente, mastigando. Vasyasuspirouedesistiu.

Durante trêsdias,VasyaeSoloveysaíramcavalgando juntos. A cada dia o cavalolevava-a com mais facilidade e,

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lentamente,aforçadeVasyavoltou.Naterceiranoite,aovoltaremparacasa,

Morozko e a égua branca os esperavam.Vasyapassoupela soleiramancando, felizdeconseguirfazê-locomosprópriospés,e,aovê-los,parouabruptamente.Aéguaestava juntoao fogo, lambendo

sossegadamente um torrão de sal.Morozko se encontrava sentado do outroladodobraseiro.Vasyadespiu suacapaese aproximou do forno. Solovey foi paraseu lugar costumeiro e ficou à espera,ansioso. Para um cavalo que nunca haviasidotratado,adaptara-semuitorápido.– Boa noite, Vasilisa Petrovna – disse

Morozko.–Boanoite–respondeuVasya.Parasua

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surpresa, o demônio do gelo estavasegurandoumafaca,talhandoumblocodemadeira de textura fina. Algo como sefosseuma flordemadeiraganhava formasob seus dedos habilidosos. Ele deixou afacadelado,eseusolhosazuistocaram-naaquielá.Elaseperguntouoqueelevia.–Meuscriadosforamgentiscomvocê?–

perguntouMorozko.– Foram – disse Vasya. –Muito. E lhe

agradeçoporsuahospitalidade.–Nãotemdequê.Ele ficou calado, enquanto ela cuidava

deSolovey,emboraosentisseobservando.Escovouocavaloepenteouosnósdasuacrina.Depoisdelavarorostoecomamesaposta, ela atacou a comida como um

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filhote de lobo.Amesa estava repleta decoisas boas: frutos estranhos e nozesespinhentas, queijo, pão e coalhada.Quando, finalmente, Vasya endireitou ocorpo e foimais devagar, deparou comoolharsardônicodeMorozko.– Eu estava com fome – disse,

desculpando-se. –Não comemos tãobememcasa.–Possomuitobemacreditarnisso.Você

pareciaumfantasmanoaltoinverno.– É mesmo? – indagou Vasya,

desapontada.–Maisoumenos.Vasya ficou calada. A fogueira

desmoronouemseucerneea luzdasalapassoudedouradaavermelha.

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–Aondevocêvaiquandonãoestáaqui?–elaperguntou.–Ondeeuquiser–eledisse.–Éinverno

nomundodoshomens.–Vocêdorme?Elesacudiuacabeça.–Nãodamaneiracomovocêpensaria,

não.Vasya olhou involuntariamente para a

grande cama, com sua estrutura escura ecobertores amontoados como um montedeneve.Segurouapergunta,masMorozkoleu seu pensamento. Levantou umadelicadasobrancelha.Vasya ficou escarlate e deu um grande

gole para esconder o rosto fumegante.Quandovoltouaolharparaele,Morozko

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estavarindo.–Vocênãoprecisafazeressacarapudica

pra mim, Vasilisa Petrovna – ele disse. –Essa cama foi feita pra você pelos meuscriados.– E você… – Vasya começou. Corou

aindamais.–Vocênunca…Ele tinha retomado seu entalhe. Tirou

maisumalascadaflordemadeira.–Frequentemente,quandoomundoera

jovem–eledissecomsuavidade.–Elesmedeixavam donzelas na neve. – Vasyaestremeceu.–Àsvezes,elasmorriam–eleacrescentou.–Àsvezeseramteimosasoubravase…nãoqueriam.–Oqueaconteciacomelas?–perguntou

Vasya.

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–Iamparacasacomoresgatedeumrei– disse Morozko, secamente. – Você nãoouviuashistórias?Vasya, ainda corando, abriu a boca e

tornou a fechá-la. Acorreram váriasdezenasdecoisasquepoderiadizer.–Porquê?–conseguiudizer.–Porque

salvouaminhavida?–Acheidivertido–respondeuMorozko,

emboranãotivesse levantadoosolhosdoseu entalhe. A flor estava grosseiramenteterminada. Ele colocou a faca de lado,pegouumpedaçodevidro,oudegelo, ecomeçouaalisá-la.Amão deVasya subiu silenciosamente

até o rosto, até o ponto que estiveracongelado.

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–Émesmo?Ele não disse nada, mas seus olhos

encontraram os dela além do fogo. Elaengoliuemsecocomdificuldade.– Por que você salvou aminha vida e

depoistentoumematar?– Os bravos vivem – respondeu

Morozko.–Oscovardesmorremnaneve.Eu não sabia em qual dos dois você seenquadrava.–Elepousouafloreestendeuamão.Seuslongosdedosroçaramolugarqueestiveramachucado,na sua faceenoqueixo. Quando o polegar encontrou suaboca,arespiraçãoestremeceunagarganta.–Sangueéumacoisa.Avisãoéoutra.Masa coragem, esta é a mais rara de todas,VasilisaPetrovna.

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O sangue extrapolou para a pele deVasya,atéelaconseguirsentircadafrêmitonoar.– Você faz perguntas demais – disse

Morozko,abruptamente,esuamãocaiu.Vasyaencarou-o.Osolhosimensosàluz

dofogo.–Foicruel–eladisse.–Vocêvaipercorrerumlongocaminho

– disseMorozko. – Se não tiver coragempara conhecê-lo, émelhor,muitomelhor,para você, morrer tranquila na neve.Talvezeutenhalhefeitoumagentileza.– Tranquila não – disse Vasya. – Nem

gentil.Vocêmemachucou.Ele sacudiu a cabeça. Tinha retomado

seuentalhe.

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–Foiporquevocêreagiu–eleexplicou.–Nãoprecisamachucar.Ela se virou, recostando-se contra

Solovey.Houveumlongosilêncio.Então,eledissebembaixinho:–Medesculpe,Vasya.Nãotenhamedo.Elaolhoudiretamentenosseusolhos.–Nãotenho.

Noquintodia,VasyadisseaSolovey:–Estanoitevoutrançarsuacrina.O garanhão não ficou exatamente

paralisado, mas ela sentiu todos os seusmúsculosretesarem-se.Ela não precisa ser trançada, ele disse,

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sacudindo a crina em questão. A pesadacortinanegraonduloucomoumcabelodemulherecaiuabaixodo seupescoço.Eraimpraticáveleridiculamentelinda.– Mas você vai gostar – Vasya tentou

convencê-lo. –Você não iria gostar se elanãocaíssenosseusolhos?Não,disseSolovey,muitoseguro.Ameninatentounovamente:–Vocêvaipareceropríncipedetodosos

cavalos. Seu pescoço é tão elegante, nãodeveriaficarescondido.Solovey sacudiu a cabeça perante esse

assunto de aparência.Mas era um poucovaidoso; todos os garanhões são. Ela osentiuhesitar.Suspiroueseinclinousobreascostasdele.

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–Porfavor.Ah,tudobem,disseocavalo.Naquelanoite,assimqueocavaloficou

limpo e penteado, Vasya pegou umbanquinho e começou a trançar a crina.Comescrúpulosporcausadasensibilidadeultrajada do garanhão, abandonou osplanosdefazerumatiaradetrança,cachosou enfeites. Emvez disso, juntou a longacrina em uma grande trança cascata aolongodacrineira,demodoqueopescoçoparecia arquear commais imponência doque nunca. Ficou encantada. Sub-repticiamente, tentou pegar algumas dascampânulasqueaindapermaneciamsobrea mesa, perfeitas, e trançá-las junto. Ogaranhãoempinouasorelhas.

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Oquevocêestáfazendo?– Acrescentando flores – Vasya disse,

sentindo-seculpada.Soloveybateuocasco.Nadadeflores.Vasya, depois de se debater contra si

mesma,deixou-asdeladocomumsuspiro.Prendendo a última ponta, parou e se

afastou. A trança enfatizava o arcoorgulhoso do pescoço escuro e os ossosgraciososdacabeçadocavalo.Encorajada,Vasyadeuavoltacomseubanquinho,paracomeçarnacauda.Ocavalosoltouumsuspiroinfeliz.Orabotambém?–Vocêvaiparecerosenhordoscavalos,

quandoeuterminar–prometeuVasya.

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Solovey espiou em torno, numatentativa vã de ver o que ela estavafazendo.Se você está dizendo. Pareceu que ele

estavareconsiderandoasvantagensdeumbom trato.Vasya ignorou-o, cantarolandobaixinho,ecomeçouaentrelaçarospelosmaiscurtossobreoossodacauda.Subitamente,umabrisageladaagitouas

tapeçarias, e o fogo saltou no forno.Soloveyempinouasorelhas.Vasyavirou-seexatamente quando a porta se abriu.Morozko atravessou a soleira, e a éguabranca abriu caminho atrás dele.O calordacasaextraiuvapordoseupelo.SoloveypuxouacaudadasgarrasdeVasya,acenoudemaneiradignacomacabeçaeignoroua

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mãe. Ela espetou as orelhas perante suacrinatrançada.– Boa noite, Vasilisa Petrovna –

cumprimentouMorozko.–Boanoite–disseVasya.Morozkotirouseumantoazulexterno.

Omanto escorregou pela ponta dos seusdedosedesapareceuemumabaforadadepó.Tirou as botas, que caíram cadaumapara um lado, deixando uma manchaúmidanochão.Foidescalçoatéofogão.Aégua branca o seguiu. Ele pegou umatorção de palha e começou a passá-la aolongo do corpo dela. No espaço de umapiscada, a palha transformou-se em umaescova de pelos de javali. A éguapermaneceu comas orelhas relaxadas, os

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lábiosfrouxosdeprazer.Vasyaaproximou-se,fascinada.– Você transformou a palha? Isso foi

mágica?–Comovocêvê.–Elecontinuouatratar

daégua.–Vocêpodemecontarcomofazisso?–

Elachegouaoladodeleeespiou,ansiosa,aescovaemsuamão.–Vocêestáligadademaisàscoisascomo

elas são – disse Morozko, penteando acernelhadaégua.Olhouparabaixo, comindolência.–Vocêprecisapermitirqueascoisas sejamoquemelhor serve aos seuspropósitos.E,então,elasserão.Vasya, intrigada, não respondeu.

Soloveybufou,nãoquerendoficardefora.

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Ela pegou a própria palha e começou nopescoçodocavalo.Pormaisquetentasse,noentanto,aquilocontinuavapalha.–Vocênão pode transformá-la em uma

escova–disseMorozkoolhandoparaela.–Porque isso seria acreditar que porenquanto é palha. Apenas permita que,agora,sejaumaescova.Insatisfeita, Vasya olhou furiosa para o

flancodeSolovey.–Nãoentendo.–Nadamuda, Vasya. As coisas são ou

nãosão.Mágicaéesquecerqueumacoisajá foi outra coisa além daquilo que vocêdesejouqueelafosse.–Continuosementender.– Isto não significa que não possa

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aprender.–Achoquevocêestábrincandocomigo.– Como quiser – disse Morozko. Mas

sorriuaodizerisso.Naquela noite, quando a comida havia

terminadoeofogoardiavermelho,Vasyadisse:– Uma vez você me prometeu uma

história.Morozkobebeuatéofimdocopoantes

deresponder:– Que história, Vasilisa Petrovna? Sei

muitas.– Você sabe qual. A história do seu

irmãoeseuinimigo.–Prometimesmoessahistóriapravocê

–disseMorozkocomrelutância.

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– Por duas vezes, eu vi o carvalhoretorcido–disseVasya.–Porquatrovezes,desdea infância,viohomemcaolhoeosmortos andando. Você achou que eupediriaalgumaoutrahistória?–Entãobeba,VasilisaPetrovna.–Avoz

suave de Morozko percorreu suas veiasjuntamente como vinho. –E ouça. –Eleserviu o hidromel e ela bebeu. Pareciamais velho, mais estranho e muitodistante.“Eu sou a Morte”, começou Morozko,

lentamente. “Agora, como no início. Hámuito tempo, nasci nas mentes doshomens.Mas não nasci sozinho. Quandoolhei para as estrelas pela primeira vez,meu irmão estava ao meu lado. Meu

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gêmeo.E quando vi pela primeira vez asestrelas,eletambémviu.”As palavras tranquilas e cristalinas

caíramnamentedeVasya,eelaviuoscéusfazendo rodas de fogo, em formatos quenão conhecia, e uma planície nevada quebeirava um horizonte gélido, azul sobrepreto.–Eutinhaorostodeumhomem–disse

Morozko.–Masmeuirmãotinhaorostode um urso, porque para os homens umursoémuitoassustador.Esseéopapeldomeu irmão, ele deixa os homens commedo.Elecomeomedodeles,devoraasimesmoedormeaté voltar a sentir fome.Acima de tudo, ele ama a desordem:guerra e peste, fogo à noite. Mas num

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passadodistanteeuoamarrei.SouaMortee o guardião da ordem das coisas. Tudopassaperantemim;éassimqueacontece.–Sevocêoamarrou,entãocomo…–Amarreimeu irmão–disseMorozko

semlevantaravoz.–Souseuresponsável,seuguardião, seucarcereiro.Àsvezeseleacorda e às vezes ele dorme. Afinal decontas, é um urso. Mas agora estáacordadoemais fortedoquenunca.Tãofortequeestáselibertando.Nãopodesairda floresta. Ainda não. Mas já deixou asombra do carvalho, coisa que não fezdurantecentenasdevidasdoshomens.Suagente ficou com medo; abandonou oschyerty,eagorasuacasaestádesprotegida.Ele já satisfaz sua fome com vocês.Mata

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sua gente à noite. Faz os mortoscaminharem.Vasya ficou calada por um momento,

absorvendoisso.–Comoéqueelepodeserderrotado?–Àsvezes,portrapaça–Morozkodisse.

–Hámuitotempo,venci-opelaforça,masentão eu tinha outros parame ajudarem.Agora, estou sozinho e me enfraqueci. –Fez-seumbreve silêncio. –Masele aindanão está livre. Para se libertarcompletamente, precisa de vidas, váriasvidas, e do medo dos mortosatormentados.Avidadaquelesquepodemvê-loéamaisfortedetodas.Seeletivessepegadovocênomato,nanoiteemquenosconhecemos, ele estaria livre, embora

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todos os poderes do mundo estivessemalinhadoscontraele.–Comoéqueelepode sernovamente

amarrado? – perguntou Vasya com umtoquedeimpaciência.Morozkoesboçouumsorriso.– Tenho um último truque. – Seria

imaginação dela ou os olhos deledemoraram-se em seu rosto? Seu talismãpesava em sua garganta. –Vou amarrá-lonosolstíciode inverno,quandoestivernoaugedaforça.–Possoajudarvocê.– Você pode? – perguntou Morozko

levementedivertido.–Umamenina,meio-sangueedestreinada?Vocênãosabenadasobre doutrinas, batalhas nem magia.

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Como,exatamente,vocêpodemeajudar,VasilisaPetrovna?– Mantive o domovoi vivo – Vasya

protestou. – Mantive os upyry longe decasa.–Bomtrabalho–disseMorozko.–Um

upyr recém-nascido assassinado à luz dodia, um pequeno e pálido domovoiagarrando-se à vida e uma menina quefugiucomoumabobapelaneve.Vasyaengoliuemseco.–Tenhoumtalismã–eladisse.–Minha

ama me deu. Veio do meu pai. Ele meajudounasnoitesemqueosupyryvieram.Podeajudardenovo.–Ergueuasafiradesobsuatúnica.Estavafriaepesadaemsuamão.Quandoavirouparaaluzdofogo,a

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joiaazulprateadaresplandeceucomoumaestreladeseispontas.Era sua imaginação ou o rosto dele

estavaumtommaispálido?Oslábiosdelese comprimiram, e seus olhos ficaramprofundoseincolorescomoaágua.–Umpequenotalismã–disseMorozko.

–Umamagiaantigaefrágilparaprotegerumamenina.UmobjetorelesparacolocarperanteoUrso.–Masseuolhardemorou-senele.Vasyanãoviu.Soltouocolar.Inclinou-se

paraafrente.–Durantetodaaminhavida–eladisse

–, me mandaram “ir” e “vir”. Me dizemcomo vou viver e como devo morrer.Tenho que ser a criada de um homem e

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uma égua para seu prazer, ou tenho quemeesconderentremurose renderminhacarne para um deus silencioso e frio. Euentrarianasmalhasdopróprioinferno,sefosse um caminho da minha própriaescolha.Prefiromorreramanhãnaflorestaavivercemanosavidaquemeéindicada.Porfavor,deixe-meajudar.Por um instante, Morozko pareceu

hesitar.– Você nãome ouviu? – disse ele, por

fim. – Se o Urso tiver a sua vida, bom,então ele estará livre e não haverá nadaque eu possa fazer. É melhor você ficarlongedele.Vocêéapenasumadonzela.Vápara casa, onde está segura. Isto vai meajudar, é omelhor. Use sua joia. Não vá

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para um convento. – Ela não viu aseveridade em sua boca. – Haverá umhomem para casar com você. Garantireiisto. Darei o seu dote: um resgate depríncipe, como a história prescreve. Vocêgostaria disso? Ouro nos punhos e nagarganta,omelhordotedetodaaRus’?Vasya levantou-se, repentinamente,

fazendo o banquinho despencar no chão.Não conseguiu juntar as palavras; correuparafora,noiteadentro,descalçaecomacabeça descoberta. Solovey olhou paraMorozkoeaseguiu.A casa caiu em silêncio, exceto pelo

crepitardofogo.Issofoimalfeito,disseaégua.– Eu estava errado? – perguntou

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Morozko.–Omelhorlugarparaelaéemcasa.Seuirmãoaprotegerá.OUrsoficaráamarrado. Haverá um homem para secasarcomela,eelaviveráemsegurança.Ela precisa carregar a joia. Precisa viverbastanteeselembrar.Nãovoudeixarquearrisque a vida.Você sabeo que está emrisco.Então você nega a natureza dela. Ela vai

fenecer.– Ela é jovem. Vai acabar se

acostumando.Aéguanãodissenada.

Vasya não soube por quanto tempo

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cavalgou.Soloveyseguira-apelaneve,eelasubiu cegamente nas costas dele. Teriacavalgado eternamente, mas, por fim, ocavalovoltouparaobosquedeabetos.Acasaentreosabetosondulouemsuavisão.Soloveysacudiuacrina.Desça,disse.Ali

tem fogo. Você está gelada, está exausta,assustada.–Nãoestouassustada!–replicouVasya,

masdesceudocavalo.Encolheu-sequandoseus pés bateram na neve. Mancando,passou por entre os abetos e cruzou comdificuldade a soleira familiar. O fogosaltava alto na estufa. Vasya despiu suaspeçasexternasmolhadas,semperceberascriadassilenciosasqueaslevaramembora.De algum modo, conseguiu chegar até o

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fogo.Despencouemsuacadeira.Morozkoeaéguabrancatinhamidoembora.Porfim,tomouumcopodehidromele

cochilou com os dedos dos pés geladospertodafornalha.O fogo diminuiu, mas a menina

continuou dormindo. Sonhou no períodomaisescurodanoite.EstavanaceladeKonstantin.Oarrecendia

aterraesangue,eummonstroagachousobreocorpo surrado do padre. Quando o monstrolevantouorosto,Vasyaviuseuslábioseoqueixocobertos de sangue. Levantou a mão paraafastá-lo, ele gritou, saltou pela janela edesapareceu. Vasya ajoelhou-se ao lado dacama,remexendooscobertoresrasgados.Mas o rosto entre as suasmãos não era do

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padre Konstantin.Os olhos cinza emortos deAlyoshamiravamfixosnela.Vasyaouviuumrosnadoe sevirou.Oupyr

havia voltado, e era Dunya, morta,cambaleando, semiatravessada na janela, aboca um grande buraco, o osso aparecendo naponta dos dedos. Dunya que fora suamãe. E,então, as sombras na parede do padretornaram-seuma,asombradocaolho,queriudela.–Chore–disseele.–Vocêestácommedo.É

delicioso.Todasasimagensnocantoganharamvidae

guincharam, concordando. A sombra abriu abocapararirtambém,eentãojánãoeraumasombra, mas um urso, um grande urso compenúriaentreosdentes.Elesoltoufogo,eentão

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aparedecomeçouaqueimar,acasadelaestavaqueimando.Emalgumlugar,ouviuIrinagritar.Umrostoarreganhadoapareceuporentreas

chamas, mosqueado de azul, com um grandeburacoescuroondehouveraumolho.–Venha–disseele.–Vocêficarácomelese

viveráparasempre.Seuirmãoeirmãmortosestavamaoladoda

aparição, parecendo acenar por detrás daschamas.AlgodurobateunorostodeVasya,mas

elanãolhedeuatenção.Elaestendeuamão.–Alyosha–chamouela.–Lyoshka!Sentiu uma dor rápida,mais aguda do

queantes.Vasyafoiarrancadadoseusono,sufocandoemumsomentreumsoluçoe

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umgrito.Soloveycutucava-a,ansioso,comofocinho.Tinhamordidoapartesuperiordoseubraço.Elaagarrousuacrinaquente.Suas mãos estavam como dois blocos degelo; os dentes batiam. Afundou o rostoemsuapelagem.Tinhaacabeçacheiadegritosedaquelavozrindo.Venha,oujamaisos verá de novo. Então, ouviu outra voz esentiuumalufadadearfrígido.–Volte,seugrandeboi.Houveumguinchodeindignaçãovindo

deSolovey,eentãomãosgeladaspousaramno rosto de Vasya. Quando ela tentouolhar, tudooqueconseguiuver foiacasadoseupaiqueimandoeumhomemcaolhoqueacenava.Esqueça-o,disseocaolho.Venhacá.

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Morozkodeuumtapaemseurosto.–Vasya–disseele.–VasilisaPetrovna,

olheparamim.Eracomoseelaestivessesearrastando

por uma grande distância, mas os olhosdele, finalmente, entraram em foco. Elanãoconseguiuveracasanafloresta.Tudooqueviaeramosabetos,neve,cavaloseocéunoturno.Oarenrodilhavafrígidoàsuavolta.Vasyatentouacalmarsuarespiraçãoempânico.Morozko sibilou algo que ela não

entendeu.Então,eledisse:–Tome.Beba.Seus lábios receberam hidromel, ela

sentia o cheiro de mel. Engoliu comdificuldade, engasgou e bebeu. Quando

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levantou a cabeça, o copo estava vazio esuarespiraçãotinhaficadomaislenta.Elavoltou a ver as paredes da casa, emboraelas ondulassem nas bordas. Soloveyenfiava sua cabeçorra na dela, lambendoseucabeloeorosto.Elariudebilmente.–Estoubem–começouadizer,massua

risada transformou-se em lágrimas, e elafoi tomada por um choro convulsivo.Cobriuorosto.Morozko observou-a, de olhos

apertados. Ela ainda podia sentir o toquedassuasmãos,eumadasfacespulsavanolugarondeeleatinhagolpeado.Porfim,aslágrimasdiminuíram.– Tive um pesadelo – ela disse, sem

olharparaele.Curvou-seemsuacadeira,

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gelada e constrangida, grudenta delágrimas.– Não parece – disse Morozko. – Foi

mais do que um pesadelo. A culpa foiminha. – Vendo-a estremecer, ele soltouumsomdeimpaciência.–Venhaatéaqui,Vasya.Quando ela hesitou, ele acrescentou

secamente:–Nãovoumachucarvocê,menina,evai

tetranquilizar.Venhaaqui.Desnorteada,elaendireitouocorpoese

levantou,reprimindonovaslágrimas.Eleaenvolveucomumacapa.Vasyanãosoubeonde a arrumara, talvez a tirara do ar.Morozko a pegou e se deixou largar noaquecido banco do forno com ela nos

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braços.Foi delicado. Sua respiração eraovento de inverno, mas sua carne estavaquenteeseucoraçãobatiasobamãodela.Elaquisseafastar,olhá-locomtodooseuorgulho,masestavacom frioe assustada.Sua pulsação latejava nos ouvidos.Desajeitadamente, aninhou a cabeça nacurvadoombrodele.Elecorreuosdedospelocabelosolto.Aospoucos,seutremorfoipassando.–Estoubemagora–eladissedepoisde

um tempo, um pouco instável. – O quevocêquisdizercomaculpatersidosua?Ela mais sentiu do que ouviu a risada

dele.–Medved é ummestre dos pesadelos.

Paraele,raivaemedosãocarneebebida;

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então,elecapturaasmentesdoshomens.Desculpe-me,Vasya.Elanãodissenada.Depoisdeuminstante,eledisse:–Conte-meoseusonho.Vasya contou. Recomeçou a tremer

depois disso, e ele a abraçou e ficou emsilêncio.– Você tinha razão – disse Vasya, por

fim. – O que é que eu sei sobre magiaantigaourivalidadesantigas,ouqualqueroutra coisa? Mas tenho que ir pra casa.Possoprotegerminhafamília,pelomenosporumtempo.OpaieAlyoshaentenderãodepoisqueeuexplicar.A imagem do seu irmão morto

perturbou-a.

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–Muitobem–disseMorozko.Elanãoestavaolhandoparaele,eentãonãoviuatristezanoseurosto.– Posso levar Solovey comigo? –

perguntouVasya, comhesitação. – Se elequiservir?Soloveyouviuesacudiuacrina.Baixou

acabeçaparaolharparaVasyaporumdosolhos.Ondevocêfor,euvou,disseogaranhão.–Obrigada–Vasyasussurroueagradou

seufocinho.– Você parte amanhã – interrompeu

Morozko.–Durmaorestantedanoite.–Porquê?–perguntouVasya,afastando-

separaolharparaele.–SeoUrsoestiveresperando nosmeus sonhos, com certeza

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eunãovoudormir.Morozkosorriuenviesado.– Mas desta vez estarei aqui. Até nos

seussonhos,Medvednãoousariaentrarnaminhacasa,seeunãoestiverlonge.–Comoéquevocêsabequeeuestava

sonhando?–perguntouVasya.–Comofoiquevoltouatempo?Morozkolevantouumasobrancelha.–Eusoube.Evolteiatempoporquenão

hánada sob estas estrelas que corramaisrápidodoqueaéguabranca.Vasya abriu a boca para fazer outra

pergunta,masaexaustãogolpeou-acomoumaonda.Estavaàbeiradosono,quandoserecobrou,assustada.–Não–murmurouela.–Não…Eunão

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suportariaissodenovo.– Ele não vai voltar – disse Morozko.

Tinhaavozfirmejuntoaoseuouvido.Elasentiu os anos que ele trazia e a força. –Tudoficarábem.–Nãová–elasussurrou.Algo cruzou o rosto dele, sem que ela

pudessedecifrar.–Nãovou– ele disse.E, então, já não

importava mais. O sono foi uma grandeonda escura que passou sobre e atravésdela.Suaspálpebras fecharam-secomumestremecimento.–Osonoéprimodamorte,Vasya–ele

murmurousobreasuacabeça–,eosdoismepertencem.

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Quando ela acordou, ele ainda estava lá,como prometera. Vasya se arrastou dacamaefoiatéofogo.Estavamuitoquieto,contemplandoaschamas.Eracomosenãotivessesemexidonemporuminstante.SeVasyaolhasse comatenção,poderiaver afloresta ao redor dele, e ele um grandesilênciobranco,informe,nomeio.Maselase largou em seu próprio banquinho, eleolhou em volta, e seu rosto perdeu partedodistanciamento.– Aonde você foi ontem? – ela

perguntou. – Onde você se encontravaquando o Urso soube que você estava

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distante?– Aqui e lá – respondeu Morozko. –

Trouxepresentespravocê.Haviaumapilhadepacotesaoseulado.

Vasya olhou para eles. Ele levantou umasobrancelha como um convite, e ela eracriança o bastante para se atirarimediatamente para o primeiro pacote eabri-locomocoraçãodisparado.Continhaum vestido verde arrematado emvermelhoeumacaparevestidadezibelina.Havia botas feitas de feltro e pele,bordadas com frutinhas carmesim,toucadosparaseucabeloejoiasparaseusdedos, muitas joias. Vasya pegou-as namão.E tambémouro e prata em alforjesdecouropesado.Haviatecidoscomprata

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e um suntuoso e macio que ela nãoconhecia.Vasya olhou para aquilo tudo. Sou a

meninadahistória,pensou.Esteéoresgatedopríncipe.Agoraelevaimelevardevoltaparaacasadomeupai,cobertadepresentes.Lembrou-sedasmãosdeleànoite,uns

poucosmomentosdedelicadeza.Não, isso não foi nada.Não é assimque se

passaahistória.Souapenasameninanocontodefadas,eeleéomalvadodemôniodogelo.Adonzela deixa a floresta, casa-se com umhomem bonito e esquece tudo em relação àmagia.Por que ela sentia essa dor?Colocouo

tecidodelado.–Esteéomeudote?–falavabaixo,sem

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saberoquetranspareciaemseurosto.–Vocêprecisaterum–disseMorozko.–Nãovindodevocê–sussurrouVasya.

Ela o viu subitamente surpreso. – Voulevar suas campânulas para minhamadrasta. Solovey virá para LesnayaZemlya comigo, se ele quiser. Mas nãorecebereimaisnadadevocê,Morozko.– Você não receberá nada de mim,

Vasya? – perguntouMorozko, e por umavezelaouviuumavozhumana.Vasya oscilou para trás, tropeçando no

resgatedopríncipe,espalhadoaseuspés.–Nada!–Elasabiaqueeletinhacerteza

dequeelaestavachorando,etentoufalardemaneirarazoável.–Amarreseuirmãoesalveagente.Voupracasa.

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Sua capa pendia junto ao fogo. Elacalçou as botas e pegou o cesto decampânulas. Parte dela queria que eleobjetasse,maselenãoofez.– Então, você vai cruzar a barreira da

suaaldeiaaoamanhecer–disseMorozko.Estava empé. Fezumapausa. –Acrediteemmim,Vasya.Nãomeesqueça.Masela jáhaviaatravessadoasoleirae

partido.

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NODEGELO

ELAÉAPENASUMAPOBREBOBALOUCA,

PENSOU KONSTANTINNIKONOVICH.Eledissequenãovaimatá-la. Preciso fazer com que me deixe. Ninguémpodesaberdisso.Umamanhecercinzaeumsolvermelho

nascendo.Ondeestáabeiradaqualelefalou?Na floresta. Campânulas. O velho carvalhoantesdoamanhecer.Konstantin foi sorrateiramente até o

quarto de Anna e tocou no seu ombro.

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Irina dormia ao seu lado, mas não semexeu. Ele pôs a mão sobre a boca deAnnaparaabafarseugrito.–Venhacomigoagora–elemandou.–

Deusnoschamou.–Konstantinacapturoucom os olhos. Ela ficou imóvel, a bocaescancarada. Ele a beijou na testa. –Vamos.Ela olhou para ele comolhos imensos,

bordejadosdelágrimas.–Sim–Annaconcordou.Seguiu-ocomoumcachorro.Eletinhase

preparadoparasussurrar,falartolices,massó foi preciso um olhar e ela oacompanhou. Estava escuro,mas o céu alestetinhaclareado.Faziamuitofrio.Eleaenvolveucomsuacapaea levoudecasa.

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FaziamesesqueAnnanãosaíaaoarlivre,atémesmo à luz do dia,mas agora ela oseguiaapenascomumleveacelerardasuarespiração entrecortada, enquantocruzavamabarreiradaaldeia.Chegaram a um velho carvalho,

avançando apenas um pouco na floresta.Konstantin nunca o havia visto. À voltadeles,tudoerainverno,amortalhadeneverigorosa, a terra como ferro, o rioparecendo mármore azul. Mas sob ocarvalho a neve havia derretido e –Konstantin chegou mais perto – o chãoestava forrado de campânulas. Anna seagarrouaobraçodele.–Padre– sussurrouela.–Ah,padre,o

que é aquilo ali? Ainda é inverno, cedo

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demaisparacampânulas.–Odegelo–disseKonstantin,cansado,

nauseadoeseguro.–Venha,Anna.Elaenvolveu suamãonadele.Tinhao

toquedeumacriança.Àluzdoamanhecer,elepodiaverosespaçosescurosentreseusdentes.Konstantin levou-a para mais junto da

árvore, com seu tapete prematuro decampânulas.Cadavezmaispróximo.E,repentinamente,osdoisestavamem

uma clareira que nenhum deles jamaisvira.O carvalho ficou sozinhono centro,enquanto as flores brancas agrupavam-sepertodosseusjoelhosencanecidos.Océuestavabranco.Ochãoviraraumalamadeneve derretida, transformando-se em

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húmus.–Bomtrabalho–disseavoz.Pareciavir

do ar, da água. Anna soltou um gritosoluçante.Konstantinviuuma sombrananeve,tornando-semonstruosamentevasta,estendendo-se e se distorcendo, a sombramais escura que já vira. Mas Anna nãoolhavaparaasombraesimparaoespaçoalém.Apontouseudedotrêmuloegritou.Gritouegritou.Konstantin olhou para onde Anna

olhava,masnãoviunada.Asombrapareceuesticar-seesesacudir,

como um cachorro acariciado pelo dono.OsgritosdeAnnacortaramoarvazio.Aluzestavauniformeefraca.– Bom trabalho, meu servo – disse a

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sombra.–Elaétudooqueeudesejo.Elapode me ver e está com medo. Grite,vedma,grite.Konstantin sentiu-se vazio,

estranhamentecalmo.AfastouAnnadesi,embora ela arranhasse e lutasse. Suasunhasafundaram-seemseubraçoforradodelã.– Agora – disse Konstantin –, cumpra

sua promessa.Me deixe. Traga ameninadevolta.A sombra ficou quieta, como o javali

queouveaspassadasdistantesdocaçador.– Vá para casa, homem deDeus – ela

disse. –Volte e espere. Amenina voltaráparavocê.Juro.OsgritosaterrorizadosdeAnnaficaram

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aindamais altos. Ela se atirou ao chão ebeijouospésdopadre,passouosbraçosàsuavolta.– Batyushka – implorou ela. –

Batyushka!Não…Porfavor.Nãomedeixe.Eu imploro. Eu imploro! Aquele é umdiabo.Aqueleéodiabo!Konstantinfoitomadoporumdesgosto

enfadonho.–Muitobem–disseparaasombra.EmpurrouAnnaparaolado.–Aconselho-aarezar.Elasoluçouaindacommaisforça.– Estou indo – disse Konstantin para a

sombra. – Esperarei. Não falte à suapalavra.

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OURSODOINVERNO

VASYA VOLTOU PARA LESNAYAZEMLYA À PRIMEIRA LUZ DE UMACLARA madrugada de inverno. Soloveycarregou-a até o trecho da paliçada maispróximoda casa.Quandoela se levantouem suas costas, pôde alcançar o alto daparededeestacas.Esperarei por você, Vasya, disse o

garanhão.Seprecisardemim,bastachamar.Vasya colocou amão no pescoço dele.

Então,saltouapaliçadaecaiunaneve.

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Encontrou Alyosha sozinho na cozinhadeinverno,armadoeandandodeumladoaoutro,decapoteedebotas.Eleaviueestacou.Irmãoeirmãseentreolharam.Então,Alyoshadeudoisgrandespassos,

agarrou-aeapuxouparasi.–PorDeus,Vasya, vocême assustou–

disse junto ao seu cabelo. – Pensei queestivessemorta.MalditosAnnaIvanovnaeosdoisupyry;euiasairparateprocurar.Oque aconteceu? Você… você nemmesmoparece estar gelada. – Ele a afastou umpouco.–Vocêestádiferente.Vasyapensounacasanafloresta,naboa

comida,nodescansoenocalor.Pensounassuas infindáveis cavalgadas pela neve etambémemMorozko,amaneiracomoele

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acontemplavasobaluzdofogo,ànoite.–Talvezeuestejadiferente.–Elajogou

asfloresnochão.Alyoshaficouboquiaberto.–Onde?–gaguejouele.–Como?Vasyasorriudeesguelha.–Umpresente.Alyosha estendeuo braço e tocouuma

hastefrágil.–Não vai funcionar, Vasya – disse ele,

recobrando-se. – Anna não manterá suapromessa. A aldeia já está temerosa. Seestanotíciaseespalhar…–Nãovamoscontaraeles–disseVasya,

com firmeza. – Já basta eu ter mantidominha metade do trato. No solstício deinverno, os mortos ficarão novamente

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quietos.Opaivoltarápracasa,eeuevocêfaremos com que ele pense com clareza.Enquantoisso,temosqueprotegeracasa.Elasevirouparaoforno.Nesse momento, Irina entrou aos

tropeçosnasala.Soltouumgrito.–Vasochka!Vocêvoltou.Euestavacom

tantomedo.–Atirouosbraçosaoredordairmã, e Vasya agradou seu cabelo. Irinaafastou-se.–Masondeestáaminhamãe?–perguntou ela. –Ela não estava na cama,embora geralmente durma por muitotempo.Penseiqueestivessenacozinha.Umdedogeladotocouapartedetrásdo

pescoçodeVasya,emboraelanãoestivessecertadomotivo.–Talvezelaestejanaigreja,passarinho

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– Vasya sugeriu. – Vou dar uma olhada.Enquantoisso,aquitêmalgumasflorespravocê.Irina pegou as flores, pressionou-as

contraoslábios.–Tãocedo!Jáéprimavera,Vasochka?–Não–respondeuVasya.–Elassãosó

uma promessa. Deixe-as escondidas.Precisoacharasuamãe.Não havia ninguém na igreja, além do

padreKonstantin.Vasyaentrou sem fazerbarulho na quietude. Os ícones pareciamolharparaela.–Você–disseKosntantin,exausto.–Ele

cumpriu a promessa. – E não desviou oolhardosícones.Vasyarodeou-odemaneiraaficarentre

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eleeobiombode ícones.Um fogobaixoardianosolhosfundosdopadre.–Deitudoporvocê,VasilisaPetrovna.–Nãotudo–observouVasya.–Umavez

que é evidente que seu orgulho estáintacto,bemcomosuasilusões.Ondeestáaminhamadrasta.Batyushka?–Não, eu dei tudo – disse Konstantin.

Sua voz elevou-se; parecia falarindependentemente da sua vontade. –Pensei que fosse a voz deDeus,mas nãoera.Efuideixadocomomeupecado…porquerervocê.Ouviodiabopara te afastardemim.Agora,jamaisvoltareiaserpuro.– Batyushka, qual é esse diabo? –

perguntouVasya.– A voz no escuro – respondeu

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Konstantin. – O que traz tempestades. Asombra na neve. Mas ele me contou… –Konstantin cobriu o rosto com as mãos.Seusombrossesacudiram.Vasya se ajoelhou e tirou as mãos do

padredorosto.–Batyushka,ondeestáAnnaIvanovna?– Na mata – disse Konstantin. Olhava

para o rosto dela como se estivessefascinado, muito semelhante ao queacontecera com Alyosha. Vasya seperguntouquemudançaacasanaflorestateria forjado nela. – Com a sombra. Opreçodosmeuspecados.– Batyushka – Vasya falou com muita

cautela.–Nessamata,vocêviuumgrandecarvalhopretoeretorcido?

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–Éclaroquevocêconheceriaolugar–disse Konstantin. – É o reduto dosdemônios.Então, ele levou um susto. Vasya

perderatodaacorquetrazianorosto.– O que foi, menina? – ele perguntou

com um tanto da sua antiga maneiraimperiosa.–Vocênãopodeterdódaquelavelhalouca.Elateriapreferidovocêmorta.Mas Vasya já havia partido, subindo e

correndoparaacasa.Aporta fechou-seàsuapassagem.Elaselembroudamadrasta,encarando

odomovoicomosolhossaltados.Eledeseja,acimadetudo,asvidasdaqueles

quepodemvê-lo.O Urso tinha a sua bruxa, e era o

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amanhecer.Ela colocou dois dedos na boca e

assobiou com estridência. Já começava asubir fumaça das chaminés. Seu assoviodividiu a manhã como as flechas deinvasores, e jorraram pessoas das suascasas.Vasya!,elaouviu.VasilisaPetrovna!Mas,

então, todos se calaram porque Soloveytinhasaltadoapaliçada.GalopouatéVasyaenãodiminuiuopassoquandoelapulouem suas costas. Vasya ouviu gritos deperplexidade.Ocavalosedeteve,derrapandonodvor.

Doestábulo,vieramrelinchosdecavalos.Alyosha saiu correndo da casa com aespada desembainhada em punho. Irina,

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atrás dele, pairava encolhida na soleira.ElespararameolharamparaSolovey.–Lyoshka,venhacomigo–disseVasya.–

Agora!Nãohátempo.Alyoshaolhouparaairmãeogaranhão

baio. E também para Irina e para aspessoas.–Você leva ele também? –Vasya disse

paraSolovey.Levo, respondeu o cavalo. Se você me

pedir.Masaondeestamosindo,Vasya?–Atéocarvalho.AtéaclareiradoUrso

– respondeu Vasya. – Omais rápido quevocêconseguir.Alyosha subiu para a garupa semdizer

umapalavra.Solovey ergueu a cabeça, um garanhão

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pressentindobatalha.Masdisse:Você não pode fazer isto sozinha. Morozko

está longe.Ele disse que precisa esperar até osolstíciodeinverno.–Nãoposso?–disseVasya.–Voufazer.

Rápido.

AnnaIvanovnajánãotinhavoz.Ascordase músculos estavam todos esticados epartidos. Ainda assim, tentava gritar,emboraapenasumsomásperoedestruídoescapassedosseuslábios.Ocaolhosentou-seaoladodeondeelajaziaesorriu.– Ah, minha linda – disse ele. – Grite

novamente.É lindo.Suaalmaamadurece

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enquantovocêgrita.Eleseinclinoumaisparaperto.Emum

momento ela viu um homem comretorcidas cicatrizes azuis no rosto; nomomento seguinte, arqueado sobre ela,viuumursocomumolhosó,comcabeçaeombros que pareciam estilhaçar o céu.Então, ele não era absolutamente nada:uma tempestade, um vento, um fogodescontroladodeverão.Umasombra.Elase encolheu para longe, com ânsias devômito.Tentouficarempé,masacriaturariudela,eelaperdeuaforçadosmembros.Ficou ali deitada, respirando o arfedorento.– Você é gloriosa – disse a criatura,

debruçando-semais para perto, babando.

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Percorreu sua carne com mãos ásperas.Agachadaaospésdelehaviaoutrasombrapequena, envolta em branco. O rostoestava enrugado até quase se reduzir anada, apenas olhos implantados juntos,têmporasestreitaseumabocaqueseabriaenormeevoraz.Agachou-senochãocoma cabeça entre os joelhos. De vez emquando, olhava para Anna, um brilhofamintoreluzindonosolhosescuros.– Dunya – disse Anna, soluçando.

Porque era ela, vestida como havia sidoenterrada.–Dunya,porfavor.PorémDunyanãodissenada.Abriusua

bocacavernosa.–Morra–disseMedvedcomarrebatada

ternura,deixandoAnnaafastar-se.–Morra

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evivaparasempre.Oupyrdeuobote.Annareagiuapenas

com tentativas de arranhões dos dedosfrágeis.Mas então, do outro lado da clareira,

veioogritoreverberantedeumgaranhão.

EnquantoSoloveygalopava,VasyacontouaAlyoshaqueamadrastadelesestavaempoderdeummonstro,e,seeleamatasse,estaria livre para assolar o campo deterror.– Vasya – disse Alyosha, levando um

momentoparadigerir aquilo. –Onde vocêesteve?

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– Fui hóspede do rei do inverno –explicouVasya.– Bem, você deveria ter trazido um

resgate de príncipe – Alyosha disse depronto,eVasyariu.Odia estava amanhecendo.Umcheiro

estranho, quente e rançoso, emanou porentre os troncos das árvores. Soloveygalopou sem trégua, as orelhas para afrente.Eraumcavalodignodofilhodeumdeus, mas as mãos de Vasya estavamvazias,eelanãosabialutar.Vocênãodevetermedo,disseSolovey,eela

acariciouopescoçomacio.À frente assomou o grande carvalho.

Atrás dela, Vasya sentiu a tensão deAlyosha.Osdoiscavaleirospassarampela

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árvore e se viram em uma clareira, umlugarqueVasyanãoconhecia.Océuestavabranco, o ar morno, a ponto de elatranspirardebaixodasroupas.Soloveyempinou-se,chamandoparaum

desafio. Alyosha agarrou Vasya pelacintura. Uma coisa branca estavadebruçada na terra enlameada, enquantooutraformaofegavasobela.Umagrandepoça de sangue destacava-se à volta dasduas.Acima delas, esperando, sorrindo,

estava o Urso. Mas ele já não era umhomem pequeno com cicatrizes na pele.Agora, Vasya viu um urso de verdade,porémmaior do que qualquer outro quejamaisvira.Tinhaopelomanchadodacor

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do líquen; seus lábios pretos reluziam aoredordeumabocavastaeraivosa.Um leve sorriso surgiu naqueles lábios

pretosquandoosviu,ealínguamostrou-severmelhaentreeles.–Doisdeles!–eledisse.–Melhorainda.

Penseiquemeuirmãojáativesse,menina,massuponhoqueelefoibobodemaisparaconseguirtemanter.Vocêtemosolhosdoreidomar.Quedonzelamortaltemolhoscomoesses?Comocantodoolho,Vasyaviuaégua

brancaadentrarnaclareira.–Ah,não,aquiestáele–disseoUrso.

Mas sua voz se enrijecera. – Olá, irmão.Veiosedespedirdemim?MorozkodeuaVasyaumolharrápidoe

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intenso,eelasentiuumfogosubirdentrodela, em resposta: poder e liberdadejuntos.Ograndegaranhãobaioestavasobela;osolhosardentesdodemôniodogeloali, e entre eles, o monstro. Ela jogou acabeça para trás e riu, e, ao fazer isso,sentiuqueimarajoiaemsuagarganta.–Bem–disse-lheMorozkocomironia,

sua voz como o vento –, eu tentei temanterasalvo.Um vento estava se formando. Era

pequeno, leve, rápido e penetrante. Umtanto da nuvem branca foi para longe, eVasyapôdevislumbrarumcéulímpidodoamanhecer.OuviuMorozkofalando,baixoe claramente, mas não entendeu aspalavras.Ele tinhaosolhos fixos emalgo

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que Vasya não enxergava. O vento ficoumaisforte,lamuriento.–Vocêachaquemeassusta,Karachun?–

perguntouMedved.– Posso ganhar tempo,Vasya – disse o

ventoaoseuouvido.–Masnãoseiquanto.Eu teria ficadomais forte no solstício deinverno.– Não houve tempo. Ele está com a

minha madrasta – replicou Vasya. – Eutinhameesquecido.Elatambémconseguever.Subitamente,elapercebeuoutrosrostos

na mata, à beira da clareira. Havia umamulhernuacomlongoscabelosmolhadoseumacriaturacomose fosseumvelho,apele igual à de uma árvore. E também o

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vodianoy, o rei do rio com seus grandesolhos de peixe. O polevik estava ali e obolotnik. Havia outros, dúzias. Criaturascomocorvosecomopedras,cogumelosemontes de neve. Muitos se adiantaramlentamente para onde estava a éguabranca, ao lado de Vasya e Solovey, e seagruparampertodosseuspés.Atrás dela, Alyosha soltou um assobio

desurpresa.–Possovê-los,Vasya.Mas o Urso também estava falando,

numa voz como se fossem homensgritando. E alguns dos chyerty foram atéele. O bolotnik, a criatura malvada dopântano. E – Vasya sentiu seu coraçãoparar – a rusalka, selvageria, vazio e

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luxúriaemseurostoestranhoebonito.Oschyertytomarampartido,eVasyaviu

todos os rostos intensos. Rei do inverno.Medved. Reagiremos. Vasya sentiu todosestremecendo à beira da batalha. Seusangueferveu.Ouviusuasinúmerasvozes.E a égua branca também foi à frente,levando Morozko às costas. Soloveyempinou-seedeupatadasnaterra.–Vá,Vasya–disseoventocomavozde

Morozko.–Suamadrastadeveviver.Digaaseuirmãoqueaespadadelenãofuraráacarnedosmortos.E…nãomorra.AmeninaendireitouopesoeSoloveyos

levouàfrentecomonumgalopevoador.OUrsorosnou,einstantaneamenteaclareiramergulhounocaos.Arusalkapulousobre

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o vodianoy, seu pai, e mordeu o ombroverruguento. Vasya viu o leshy ferido,soltando algo como se fosse seiva de umtalho em seu tronco. Solovey seguiugalopando. Eles chegaram à grande poçadesangueepararam,derrapando.Oupyrlevantouosolhosesilvou.Anna

achava-se sob ela, o rosto lívido,emplastrado de barro, sem se mexer.Dunya estava coberta de sangue eimundície,orostolanhadodelágrimas.Anna soltou um suspiro lento e

gorgolejante. Tinha a garganta aberta.Atrás deles veio um rugido de triunfo doUrso. Dunya estava agachada como umgato prestes a saltar.Vasya encarou-a nosolhoseescorregoudascostasdeSolovey.

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Não,Vasya,disseogaranhão.Subaaquidevolta.– Lyoshka – disse Vasya, sem tirar os

olhosdeDunya.–Válutarcomosoutros.Soloveymeprotegerá.AlyoshadesceudascostasdeSolovey.–Atéparecequeeudeixariavocê!–ele

exclamou.Algumasdas criaturasdoUrsorodearam-nos.Alyoshasoltouumgritodeguerraegirouaespada.Soloveyabaixouacabeçacomoumtouroprestesainvestir.–Dunya –Vasyadisse. –Dunyashka. –

Ouviu vagamente o ronco do irmãoquando amargem da batalha chegou atéeles.Dealgumlugar,veioumuivocomosefosse de lobo, um grito como se fosse demulher.Mas ela e Dunya semantiveram

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em um pequeno núcleo de silêncio.Solovey escavou a terra, as orelhasgrudadasnocrânio.Essacriaturanãoconhecevocê,disse.– Conhece. Sei que conhece. – A

expressãodeterrornorostodoupyrlutavaagoracomumafomeávida.–Sóvoudizera ela quenão precisa termedo.Dunya…Dunya,porfavor.Seiqueestágeladaaquieassustada. Mas você não consegue selembrardemim?Dunya ofegava, com todo o brilho do

infernonosolhos.Vasya tirou a faca do cinto e enfiou-a

com vontade nas veias do seu punho. Apele resistiu antes de ceder, e então osangue jorrou para fora. Solovey,

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instintivamente,recuouemdefesa.– Vasya! – exclamou Alyosha, mas ela

não lhedeuatenção.Vasyadeuumlongopassoadiante.Seusanguecaía,manchandodeescarlateaneve,alama,ascampânulas.Atrásdela,Soloveyempinou-se.–Tome,Dunyashka–ofereceuVasya.–

Tome. Você está com fome. Você mealimentouotempotodo.Vocêselembra?–Elaestendeuseubraçosangrando.E, então, não teve mais tempo para

pensar.Acriaturaagarrou suamãocomoumacriançagulosa,grudouabocanoseupunhoebebeu.Vasya ficou parada, tentando

desesperadamentemanter-seempé.A criatura choramingava enquanto

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bebia.Choravabaixinhocadavezmaise,então, repentinamente, atirou a mão deVasya para longe e tropeçou para trás.Vasya cambaleou, tonta, flores negrasdesabrochando nas bordas da sua visão.MasSoloveyestavaatrásdela,amparando-a,focinhando-acomansiedade.Opunhohaviasidodestroçadocomose

fosseumosso.Trincandoosdentes,Vasyarasgouumpedaçodasuasaia,amarrando-ocomforça.OuviuoassobiardaespadadeAlyosha. A pressão de lutar tomou contadoirmãoeolevouembora.O upyr olhava para ela com terror

abjeto.Tinhaonariz,oqueixoe as facespintalgadas e manchadas de sangue. Amatapareciaprenderarespiração.

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–Marina–disseovampiro,eavozeradeDunya.Eveioumurrodefúria.O brilho infernal esmoreceu nos olhos

do vampiro.O sangue rachou e escamouemseurosto.– Minha própria Marina, finalmente.

Faztantotempo.–Dunya–disseVasya.–Estoufelizem

vervocê.–Marina,Marushka, onde estou? Sinto

frio.Tenhosentidotantomedo.–Está tudobem–disseVasya, lutando

contraaslágrimas.–Vaificartudobem.–Envolveu com os braços a coisa quecheiravaamorte.–Nãoprecisatermedo,agora. – De um lugar mais distante veio

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outro rugido. Dunya estremeceu nosbraços de Vasya. – Calma – acrescentouVasya,comosefalassecomumacriança.–Nãoolhe.–Sentiagostodesalnoslábios.Subitamente, Morozko estava ao seu

lado.RespiravaaceleradoetinhaumolharselvagemqueseigualavaaodeSolovey.– Você é uma tola louca, Vasilisa

Petrovna–disseele.Pegouumpunhadodeneve e o pressionou no braçosanguinolento. A neve congelou sólida,bloqueandoosangue.Quandoelaespanouoexcesso,encontroua feridaresguardadaporumafinacamadadegelo.–Qualéasituação?–perguntouVasya.– Os chyerty resistem – respondeu

Morozko sombriamente –, mas isso não

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vai durar. Sua madrasta está morta,portanto o Urso está solto. Agora, eleescaparálogo,logo.A lutatinhavoltadoparaaclareira.Os

espíritos damata eram como crianças aolado do tamanho do Urso. Ele tinhacrescido. Seus ombros pareciam dividir océu. Agarrou o polevik em seusmaxilaresimensos e o atirou para longe. A rusalkaficou ao seu lado, soltando umgrito sempalavras. O Urso atirou para trás suagrandecabeçadesgrenhada.– Livre! – trovejou, mostrando os

dentes, rindo. Agarrou o leshy, e Vasyaouviubarulhodemadeiralascando.– Você precisa ajudá-los – replicou

Vasya.–Porqueestáaqui?

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Morozkoestreitouosolhosenãodissenada. Vasya cismou, por um ridículoinstante,queeleteriavoltadoparaimpedi-lade sematar.AéguabrancaencostouofocinhonorostomurchodeDunya.– Eu te conheço – a velha senhora

cochichouparaaégua.–Vocêétãolinda.–Então, Dunya viu Morozko, e um levemedo insinuou-se novamente em seusolhos.–Teconheçotambém.–Vocênãomeveránovamente,Avdotya

Mikhailovna, realmente espero – disseMorozko,massuavozeragentil.– Leve-a – disse Vasya rapidamente. –

Façacomqueelamorradeverdadeagora,paranãoficarcommedo.Olhe,elajáestáesquecendo.

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Eraverdade.Aclareza tinhacomeçadoaesvanecerdorostodeDunya.–Evocê,Vasya?–Morozkoperguntou.–

Seeulevá-la,tereiquedeixarestelugar.VasyapensouemenfrentaroUrsosem

eleevacilou.–Quantotempovocêficarálonge?–Uminstante.Umahora.Nãodápara

saber.Atrás deles, o Urso chamava. Dunya

ficouagitadacomoschamados.–Tenhoqueiratéele–sussurrouela.–

Preciso…Marushka,porfavor.Vasyatomousuadecisão:–Tenhoumaideia.–Seriamelhor…–Não–respondeuVasyabrevemente.–

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Leve-aagora.Porfavor.Elafoiminhamãe.– Agarrou o braço do demônio do gelocom asmãos. – A égua branca disse quevocê era um presenteador. Faça isto pormimagora,Morozko.Euteimploro.Fez-se um longo silêncio. Morozko

olhouparaabatalhaalémdeles.Olhoudevolta para ela. Pela centelha de uminstante, seu olhar vagou pelas árvores.Vasyaolhouparaondeeleolhavaenãoviunada. Mas, subitamente, o demônio dogelosorriu.– Muito bem – Morozko disse.

Inesperadamente,eleestendeuobraçoeatrouxeparasi,beijando-adeformarápidae intensa. Ela ergueu os olhos para ele,espantada. – Você vai ter que aguentar,

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então – ele disse. – Tanto quanto puder.Sejacorajosa.Elerecuou.–Venha,AvdotyaMikhailovna,epegue

aestradacomigo.Subitamente, ele e Dunya estavam

montados na égua branca, e apenas umacoisavazia,sangrentaeamarfanhadajaziananeve,aospésdeVasya.– Adeus – sussurrou Vasya, lutando

contra a vontade de chamá-lo de volta.Então, eles partiram, o cavalo branco eseusdoiscavaleiros.Vasya respirou fundo. O Urso tinha

descartado o último dos seus atacantes.Agora,exibiaorostodeumhomemcheiode cicatrizes,mas umhomem alto, forte,

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commãoscruéis.Riu.–Bomtrabalho–disseele.–Eumesmo

estousempretentandomelivrardele.Eleé uma coisa gelada, devushka. Eu sou ofogo, aquecerei você. Venha cá, pequenavedma,evivaparasempre.Ele acenava. Seus olhos pareciam

agarrá-la.Seupoderinundavaaclareira,eoschyertyferidosencolhiam-seperanteele.ArespiraçãodeVasyafoiabsorvidacom

medo. Mas Solovey estava ao seu lado.Sentiuseupescoçovigorosodebaixodasuamão e, então, às cegas, subiu nas suascostas.–Prefiromilmortes–elarespondeuao

Urso.O lábio com cicatriz levantou-se e ela

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viuobrilhodeseuslongosdentes.– Que seja, então – ele retrucou, com

frieza.–Escravaouservaleal,aescolhaésua.Mas,sejacomofor,vocêmepertence.– Ele foi crescendo enquanto falava e, deumahoraparaoutra,voltouaserumurso,com mandíbulas para engolir o mundo.Sorriuparaela.–Ah,vocêestácommedo.Nofim,elassempreficamcommedo.Masomedodequemtemcorageméomelhor.Vasya pensou que seu coração saltaria

dopeito,masdisseembomsom,comumavozpequenaesufocada:–Vejoopessoaldamata,masondeestá

odomovoi,obannikeovazila?Venhamparamim agora, filhos dos lares da minhagente,porqueminhanecessidadeégrande.

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–Arrancouacamadadegelodoferimentono seu braço, de modo que seu sanguejorrasse. A joia azul brilhava sob suasroupas.Houve um instante de silêncio na

clareira,quebradopelosoardaespadadeAlyosha e os grunhidos dos chyerty queainda lutavam. Seu irmão estava cercadopor três seguidores do Urso. Vasya viu orosto dele intenso, o brilho de sangue nobraçoenorosto.–Venhamparamimagora–disseVasya,

emdesespero.–Jáquesempreameivocêse vocês sempreme amaram, lembrem-sedosanguequevertiedopãoquedei.O silêncio continuou.OUrso raspou a

terracomsuasgrandespatasdianteiras.

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–Eagoravocêvaisedesesperar–disseele.–Odesesperoéaindamelhordoqueomedo. – Ele colocou a língua para foracomoumacobra,comoseprovasseoar.Meninatola,pensouVasya.Comoéqueos

espíritos domésticos poderiam vir? Estãocomprometidos com os nossos lares. Sentiugosto de sangue, amargo e salgado naboca.– Pelo menos podemos salvar meu

irmão – Vasya disse para Solovey, e ocavalochamouparaoconfronto.Umadasgrandes patas do Urso apareceu numlampejo, pegando-os de surpresa, e ocavalo mal se desviou. Recuou com asorelhas grudadas na cabeça, e a grandepatapreparou-separaatacarnovamente.

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Subitamente,todososdomoviye,todososguardiãesdacasadebanhoseosespíritosdopátiodetodasasmoradiasemLesnayaZemlya estavam se amontoando aos seuspés. Solovey teve que levantar os cascospara evitar pisar neles, e então o vazilapulou para sua cernelha. O pequenodomovoi da própria casa deVasya brandiaumcarvãoacesoemsuamãofuliginosa.Pela primeira vez, o Urso pareceu em

dúvida.– Impossível – murmurou ele. –

Impossível.Elesnãodeixamsuascasas.Os espíritos domésticos trovejaram

desafios estranhos, e Solovey sapateounaterraenlameada.Mas, então, o coração de Vasya saltou

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para a garganta e pareceu ficar alipendurado, martelando. A rusalka tinhaderrubadoAlyosha por terra.Vasya viu aespadadelesairvoando,viu-oparalisado,em transe, olhandopara amulhernua.Etambém os dedos dela rodeando agargantadoirmão.OUrsoriu.–Fiquemtodosondeestão,ouaqueleali

morre.–Lembre-se–Vasyadirigiu-seàrusalka,

desesperada, do outro lado da clareira. –Joguei flores pra você e agora vertomeusangue.Lembre-se!A rusalka estacou, ficou perfeitamente

imóvel,comexceçãodaáguaqueescorriapelo seu cabelo. As mãos ao redor do

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pescoçodeAlyoshaafrouxaram.Alyosha golpeou, recomeçando a luta,

masoUrsoestavapertodemais.–Vamoslá!–gritouVasyaparaSolovey,

para todo o seu exército esfarrapado. –Vão.Eleémeuirmão!Mas, nessemomento, um grande urro

de raiva veio da outra extremidade daclareira.Vasyaolhouparaoladoeviuseupaiali

parado,delançanamão.

OUrsoeraduas,trêsvezesotamanhodeumursocomum.Tinhasomenteumolho,metade do seu rosto era uma massa de

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cicatrizes.Oolhobombrilhavadacordeuma leve sombra na neve. Não estavasonolento, como um urso comum, masacesodefomeevertiginosamalícia.Em frente ao Urso estava Vasya,

indiscutivelmente minúscula perante oanimal,cavalgandoumcavaloescuro.MasAlyosha, seu filho, estava quase debaixodos pés do animal, e a bocarra abaixava-se…Pyotr soltou um grito, um berro de

amoreraiva.Abestavirouacabeça.– Quantas visitas! – disse. – Silêncio

durante mil vidas de homens, e então omundo cai sobre mim. Bem, não vouobjetar.Masumdecadavez.Primeiro,omenino.

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Mas, naquele momento, uma mulhernua, de pele verde, com água cintilandoemseulongocabelo,guinchouepulounascostasdoUrso,agarrando-ocomasmãoseos dentes.Nominuto seguinte, a filha dePyotr conclamou em altos brados e ogrande cavalo investiu, golpeandoabestacom suas patas dianteiras. Com eles,vieram todos os tipos de criaturasestranhas, altos e magros, minúsculos ebarbudos, masculinos e femininos.Atiraram-se ao mesmo tempo sobre oUrso, gritando com vozes agudas eestranhas.Abestacaiuparatrássobeles.Vasyapendurou-senascostasdocavalo,

agarrouAlyosha e o levou embora. Pyotrouviu-asoluçando.

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–Lyoshka–elagritava–,Lyoshka!Ogaranhãogolpeounovamentecomas

patas dianteiras e recuou, protegendo omenino e a menina no chão. Alyoshapiscouparaeles,desorientado.– Levante-se, Lyoshka – implorava

Vasya.–Porfavor,porfavor.O Urso se sacudiu, e a maioria das

criaturas estranhas foi atirada longe.Atacou com uma pata, e o grandegaranhão mal evitou o golpe. A mulhernua caiu na neve, a água voando do seucabelo. Vasya atirou-se sobre seu irmãosemiconsciente. Dentes monstruososavançaramparasuascostasdesprotegidas.Pyotr não conseguia se lembrar de ter

corrido, mas, de repente, viu-se parado,

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ofegante, entre seus filhos e o animal.Estava firme, com exceção do coraçãodisparado, e segurava sua espada com asmãos.Vasyaolhavaparaelecomosefosseuma aparição. Ele viu seus lábiosmoverem-se:Pai.OUrsoparou,derrapando.– Dê o fora – rosnou e estendeu uma

patacheiadegarras.Pyotrvirou-ocomsuaespadaenãosemexeu.– Minha vida não vale nada – disse

Pyotr.–Nãotenhomedo.O Urso abriu a boca e rosnou. Vasya

encolheu-se. Mesmo assim, Pyotr não semexeu.– Fique de lado – disse o Urso. – Vou

pegarosfilhosdorei-mar.

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Pyotravançoudeliberadamente.– Não conheço nenhum rei-mar. Estes

sãomeusfilhos.Os dentes do Urso estalaram a dois

centímetrosdo seu rosto, emesmoassimelenãosemoveu.–Caia fora – disse Pyotr. –Você é um

nada,éapenasumahistória.Deixeminhasterrasempaz.OUrsobufou.–Estasmatassãominhas,agora.–Mas

oolhogirou,cauteloso.–Qualéoseupreço?–perguntouPyotr.

–Eutambémescuteiasantigashistórias,esempreexisteumpreço.–Comoquiser.Entregue-mesuafilhae

vocêterápaz.

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Pyotr olhou para Vasya. Seus olhos seencontrarameeleaviuengoliremseco.–EstaéaúltimacriadaminhaMarina–

eledisse.–Éminhafilha.Umhomemnãooferece a vida de outra pessoa, muitomenosavidadasuaprópriafilha.Uminstantedeperfeitosilêncio.– Eu te ofereço aminha – disse Pyotr,

deixandocairaespada.–Não!–Vasyaberrou.–Pai,não!Não!O Urso analisou com seu olho bom e

hesitou.De repente, Pyotr atirou-se de mãos

vaziasnopeitocordelíquen.OUrsoagiupor instinto; jogou o homem de lado.Ouviu-se um estalo horrível. Pyotr vooucomoumabonecadepanoeaterrissouna

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nevedebarrigaparabaixo.

O Urso uivou e saltou atrás dele, masVasyaestavaempé,esquecendo-sedetodoo medo. Ela gritou numa fúria sempalavras,eoUrsotornouagirar.Vasya subiu nas costas de Solovey.

Investiram contra o Urso. A meninachorava,tinhaesquecidodequenãotinhaarma. A joia em seu peito queimavagelada,batendocomooutrocoração.OUrsoabriuumlargosorriso,alíngua

pendendo como um cachorro entre seusgrandesdentes.– Ah, sim – disse ele. – Venha cá,

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pequena vedma, venha cá, bruxinha.Vocêaindanãoé forteo suficienteparamimenuncaserá.Venhaparamimesejunteaoseupobrepai.Mas, mesmo enquanto falava, ele ia

diminuindo.OUrsotornou-seumhomem,um homenzinho encolhido que olhavapara eles através de um lacrimoso olhocinzento.Uma figura branca surgiu ao lado de

Solovey, e uma mão branca tocou opescoço tenso do garanhão. O cavalolevantouacabeçaediminuiuopasso.–Não! – gritou Vasya. – Não, Solovey,

nãopare.Masocaolhoencolheu-senaneveeela

sentiuamãodeMorozkosobreadela.

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–Chega,Vasya–eledisse.–Vê?Eleestáamarrado.Acabou.Elaolhouparaohomenzinho,piscando,

atordoada.–Como?– Tal é a força dos homens – afirmou

Morozko. Parecia estranhamentesatisfeito. – Nós, que vivemoseternamente, não podemos conhecer acoragem,nemamamosobastanteparadarnossasvidas.Masseupaipôde.OsacrifíciodeleamarrouoUrso.PyotrVladimirovichmorrerácomoteriadesejado.Acabou.–Não–disseVasya,puxandoamão.–

Não…Ela saltou de Solovey. Medved saiu se

contorcendo, resmungando, mas ela já o

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tinhaesquecido.Correuatéopai.Alyoshachegara ali antes dela. Abriu o capoterasgadodopai.Ogolpehaviaquebradoascostelas de Pyotr de um lado, e o sangueborbulhava entre seus lábios. Vasyapressionouasmãosnoferimento.Ocalorexpandiu-se em suasmãos. Suas lágrimascaíramnosolhosdopai.Umtoquedecortingiu a pele de Pyotr, que se tornavalívida, e ele abriu os olhos. Focaram emVasyaeseiluminaram.–Marina–disseelecomavozrouca.–

Marina.A respiração esvaiu-se dele, que não

voltouarespirar.–Não–sussurrouVasya.–Não.–Enfiou

apontadosdedosnacarnefrouxadopai.

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Seu peito arfou subitamente, como umfole, mas seus olhos estavam fixos novazio. Vasya sentiu gosto de sangue nolugarondemorderaolábioelutoucontraamortecomosefossesua,comose…Umamãofriaedededoslongospegou

as mãos dela, retirando o calor. Vasyatentousoltá-las,masnãoconseguiu.Avozde Morozko bafejava ar gelado em suaface.–Deixe,Vasya.Ele escolheu isto.Você

nãopodedesfazer.– Posso sim – ela sibilou em resposta,

engasgando-se.–Deveriatersidoeu.Solte-me! – Então, a mão se foi, e ela girou.Morozkojáhaviaseafastado.Elaolhounoseu rosto, pálido e indiferente, cruel e

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apenasumtantobondoso.–Tardedemais–eledisse,eatodavolta

oventoabsorveuaspalavras:Tardedemais,tardedemais.E, então,odemôniodogelopulounas

costasdaéguabranca,atrásdeoutrafiguraque Vasya só podia ver com o canto doolho.–Não–eladisse,correndoatrásdeles.–

Espere…Pai.–Masaéguabrancajátinhapartidoameio-galopeporentreasárvoresedesaparecidonaescuridão.

A quietude foi repentina e absoluta. Ocaolhoescapuliraparaomatoeoschyerty

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desapareceram na floresta de inverno. ArusalkapousouamãogotejantenoombrodeVasya,aopassar.– Obrigada, Vasilisa Petrovna – ela

agradeceu.Vasyanãorespondeu.Soloveycutucou-adelicadamentecomo

focinho.Vasya ficou indiferente. Olhava para o

vazio, segurando amão do pai enquantoelaesfriavalentamente.– Veja – sussurrou Alyosha rouco e de

olhos marejados. – As campânulas estãomorrendo.Eraverdade.Oventoquente,insalubre,

cheirando a morte, tinha resfriado,tornara-se penetrante, e as flores caíam

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murchas na terra dura. Ainda não era osolstíciodeinverno,efaltavammesesparachegar a sua época. Não havia clareira,nenhumlocallamacentosobumcéucinza.Existia apenas um enorme e velhocarvalho, com os galhos entrelaçados. Aaldeia ficava além, agora claramentevisível, a pouca distância. O dia tinhaamanhecidoeestavaextremamentefrio.–Amarrado–disseVasya.–Omonstro

está amarrado. O pai fez isso. – Elaestendeuamãorígidaparacolherumaflorquedesfalecia.–Comoépossívelopaiaqui?–observou

Alyoshanumleveespanto.–Eletinha…talexpressão!Comosesoubesseoque fazer,como e por quê. Agora, ele está com a

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mãe,comagraçadeDeus.–Alyoshafezosinal da cruz sobre o corpo do pai,levantou-se,foiatéAnnaerepetiuogesto.Mas Vasya não se mexeu, nem

respondeu.Colocou a flor namão do pai.Depois,

deitouacabeçaemseupeitoecomeçouachorarbaixinho.

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NOFIMENOCOMEÇO

FOI FEITO UM VELÓRIO NOTURNO

PARAPYOTRVLADIMIROVICHESUAesposa. Os dois foram enterrados juntos,Pyotrentreaprimeiraeasegundaesposa.Embora lamentasse, o povo não sedesesperou. O miasma da morte e dadestruição tinha deixado seus campos ecasas. Até os remanescentes esfarrapadosdeumaaldeia semiqueimada,conduzidospelo portão por um exausto Kolya, nãoconseguiram assustá-los.O armordiscava

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comdelicadeza,eosollançavaseusraios,salpicandoanevedediamantes.Vasyaficoucomsuafamília,encapuzada

eencapotadacontrao frio, suportandoosmurmúrios das pessoas: Vasilisa Petrovnadesapareceu.Voltounumcavaloalado.Deveriater morrido. Bruxa. Vasya lembrava-se dotoque da corda em seus punhos, daexpressão fria nos olhos de Oleg, umhomem que conhecia desde a infância, etomouumadecisão.Ao entardecer, quando todos os outros

haviamidoembora,Vasyaficousó,juntoàtumbadoseupai.Sentia-sevelha,soturnaecansada.– Você pode me ouvir, Morozko? –

perguntouela.

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–Posso.–Elesurgiuaoseulado.Elanotouumadesconfiançasutilemseu

rostoesoltouumarisadaqueeraummeiosoluço.–Estácommedoqueeupeçameupai

devolta?– Quando eu caminhava livremente

entre os homens, os vivos gritavam paramim – Morozko respondeu num tomuniforme. – Agarravam minha mão, acrina do meu cavalo. As mães meimploravam para levá-las quando eupegavaseusfilhos.– Bem, já tive mortos suficientes

voltando.–Vasyalutouparaconseguirumtom de distanciamento gelado. Mas suavozvacilou.

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– Acho que sim – ele replicou.Mas jánãohaviadesconfiançaemseurosto.–Voume lembrar da coragem que ele teve,Vasya–eledisse.–Edasua.Abocadelaseretorceu.–Sempre?Quandoeu for comoomeu

pai, barro na terra fria? Bem, isso é algoparaserlembrado.Ele não disse nada. Os dois

entreolharam-se.– O que você quer de mim, Vasilisa

Petrovna?– Por que meu pai morreu? – ela

perguntou rapidamente. – Precisamosdele.Sealguémtinhaquemorrer,seriaeu.–A escolha foi dele,Vasya – retorquiu

Morozko.–Foiseuprivilégio.Elenãoteria

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aceitadoocontrário.Morreuporvocês.Vasyasacudiuacabeçaecaminhouem

círculosemtrégua.–Comoéqueopaisabia?Eleveioatéa

clareira.Elesabia.Comoelepôdeacharagente?Morozko hesitou. Então, disse

lentamente:–Elechegouemcasaantesdosoutrose

viuquevocêeseuirmãotinhamsaído.Foiaté a floresta procurar. Aquela clareira éencantada. Até que a árvore morra, elafará tudo que estiver em seu poder paraconteroUrso.Elasabiaaindamaisdoqueeuoqueeranecessário.Atraiuseupaiparavocês,depoisqueeleentrounafloresta.Vasya ficou calada por um longo

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momento.Olhouparaeleperscrutando,eele encarou seu olhar. Por fim, elaaquiesceucomumgestodecabeça.Então.–Temumacoisaqueeuprecisofazer–

Vasya disse, abruptamente. – Preciso dasuaajuda.

Tudotinhadadoerrado,pensouKonstantin.PyotrVladimirovichestavamorto,atacadoporumanimalselvagemnaentradadesuaaldeia. Anna Ivanovna, pelo que diziam,tinhacorridoparadentroda florestanumataquedeloucura.Bem,éclaroquesim,eledisseconsigomesmo.Erauma loucaeuma

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idiota, todos nós sabíamos disso. Mas eleainda podia ver seu rosto desvairado eexangue. E pendia frente a seus olhosdespertos.Konstantin leu as orações por Pyotr

Vladimirovich,malsabendooquedizia,ecomeu no banquete do funeral, malsabendooquecomia.Mas,aocrepúsculo,houveumabatidaà

portadasuacela.Quandoaportaseabriu,suarespiração

saiu num silvo e ele tropeçou para trás.Vasya estava na entrada, a luz da velabatendo forte no seu rosto. Tinha setornado tão linda, pálida e distante,graciosaeperturbada.Minha, ela éminha.Deusmandou-adevoltaparamim.Esteéoseu

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perdão.–Vasya–eledisse,efoiemsuadireção.Mas ela não estava só. Ao passar pela

porta, uma figura de manto escurodesdobrou-se das sombras junto ao seuombro e entrou deslizando ao seu lado.Usava um manto e um capuz queprojetava sombras. Konstantin nãoconseguiavernadadorosto,salvoqueerapálido.Asmãoserammuitolongasefinas.– Quem é esse, Vasya? – perguntou

Konstantin.– Eu voltei – Vasya respondeu –, mas

nãosozinha,comopodever.Konstantin não conseguia ver os olhos

do homem, de tanto que estavamafundadosnocrânio.Asmãostinhamuma

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magreza esquelética. O padre lambeu oslábios.–Queméele,menina?Vasyasorriu.–AMorte–elacontou.–Elemesalvou

na floresta. Ou talvez não tenha mesalvado e eu seja um fantasma. Sinto-meumfantasmaestanoite.–Você está louca – disseKonstantin. –

Estranho,quemévocê?Oestranhonãodissenada.– Viva oumorta, vim pra te dizer pra

deixarestelugar–disseVasya.–VoltepraMoscou, pra Vladimir, pra Tsargrad, oupro inferno, mas você precisa ir emboraantesqueascampânulasfloresçam.–Minhamissão…

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–Suamissãoterminou–disseVasya.Eladeuumpassoàfrente.Ohomemescuroaoseu lado pareceu crescer. Sua cabeça eraumcrânio,efogosazuisardiamnasórbitasdosseusolhosfundos.–Você vai,KonstantinNikonovich.Ou

morrerá.Esuamortenãoseráfácil.– Não vou. – Mas estava pressionado

contraaparededoseuquarto.Seusdentesbatiam.–Vocêvai–falouVasya.Elaavançouaté

estar a ponto de tocar. Ele podia ver acurvada sua face, a expressão implacávelnosseusolhos.–Ouvamosfazercomquefiqueloucocomoaminhamadrasta,antesdofim.– Demônios – disse Konstantin,

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ofegante. Um suor frio irrompeu em suatesta.–Sim–disseVasya,e sorriu, aprópria

filhadodiabo.Afiguraescuraaoseuladosorriutambém,umsorrisolento.Eentãoelesseforam,silenciososcomo

tinhamvindo.Konstantin caiu de joelhos perante as

sombras em sua parede. Estendeu mãossuplicantes.– Volte – implorou o padre. Fez uma

pausa,ouvindo.Suasmãossacudiram-se.–Volte. Você me levantou, mas ela medespreza.Volte.Pensouqueassombraspoderiamterse

mexido um pouquinho, mas só ouviusilêncio.

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–Achoqueeleiráembora–Vasyadisse.–Ébemprovável–respondeuMorozko.

Estava rindo. – Nunca tinha feito isso apedidodeoutrapessoa.– E imagino que você amedronte as

pessoas o tempo todo, por sua própriaconta–disseVasya.– Eu? – disse Morozko. – Sou apenas

umahistória,Vasya.EfoiavezdeVasyarir.Então,suarisada

parounagarganta.–Obrigada–elaagradeceu.Morozko inclinou a cabeça. Então, a

noitepareceuseesticareapanhá-lo,dobrá-

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lodentrodesimesma,demodoasórestaroescuronolugarondeelehaviaestado.

Acasatodatinhaidoparaacama.ApenasIrinaeAlyoshaestavamnacozinha.Vasyaentroudeslizandocomoumasombra.Irinaestivera chorando; Alyosha abraçava-a.Semdizernada,Vasyasentou-senobancodofornoao ladodelesepassouosbraçosao redor dos dois. Todos ficaram caladosporumtempo.–Nãopossoficaraqui–disseVasyabem

baixinho.Alyoshaolhouparaela,entorpecidode

tristezaecansaçodabatalha.

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– Você ainda está pensando noconvento? – perguntou ele. – Bem, nãoprecisamaispensarnisso.Anna Ivanovnaestámorta e o pai também. Tereiminhaprópria terra, minha própria herança.Cuidareidevocê.–Vocêprecisa seestabelecer comoum

senhorentreoshomens–Vasyadisse.–Oshomens terão menos condescendênciacom você, quando souberem que abrigasua irmã louca. Você sabe que muitosporãoaculpaemmimportudoisso.Souabruxa.Opadrenãodisseisso?– Não se preocupe com isso – disse

Alyosha.–Vocênãotempraondeir.– Não tenho? – disse Vasya. Um fogo

lento ardeu no seu rosto, relaxando os

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traçosdepesar. –Soloveyme levaráparaosconfinsdaterra,seeupedir.Voucairnomundo, Alyosha. Não serei noiva deninguém, nemde homem, nemdeDeus.Vou para Kiev, Sarai, Tsargrad e olhareiparaosolsobreomar.Alyoshaolhoufixoparaairmã.–Vocêestálouca,Vasya.Ela riu, mas as lágrimas toldaram sua

visão.– Completamente – ela disse. – Mas

terei minha liberdade, Alyosha. Duvida?Trouxecampânulasparaminhamadrasta,quandodeveriatermorridonafloresta.Opai se foi; não existe ninguém que meimpeça. Seja sincero, o que tem aqui pramim,anãosermurosejaulas?Sereilivre,

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custeoquecustar.Irinaagarrou-seàirmã.– Não vá, Vasya, não vá. Serei boa,

prometo.–Olhepramim,Irinka–mandouVasya.

–Você é boa.Você é amelhor garotinhaqueeuconheço.Muitomelhordoqueeu.Mas,irmãzinha,vocênãoachaqueeusouumabruxa.Osoutrosacham.– Isto é verdade – disse Alyosha. Ele

também tinha visto os olhares soturnosdosaldeões,ouvidoseussussurrosduranteofuneral.Vasyanãodissenada.– Uma coisa antinatural – disse seu

irmão, mas estava mais triste do quezangado. – Você não consegue ficar

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satisfeita? Com o tempo, as pessoasesquecerão,eoquevocêchamadejaulaséodestinodasmulheres.–Nãoomeu–retrucouVasya.–Eu te

amo, Lyoshka. Amo vocês dois. Mas nãoposso.Irina começou a chorar e se agarrou

mais.– Não chore, Irinka – acrescentou

Alyosha. Olhava para sua irmã comatenção.–Elavaivoltar,nãovai,Vasya?Elabalançouacabeçaumavez.–Umdia.Juro.– Você não vai sentir frio e fome na

estrada,Vasya?Vasya pensou na casa da floresta, no

tesouro empilhado ali, à espera. Não um

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dote, agora, mas gemas para permutar,umacapacontraofrio,botas…Tudooqueprecisavaparaviajar.–Não–eladisse.–Achoquenão.Alyoshaconcordoucomrelutância.Um

propósito implacável reluzia como fogosemcontrolenorostodairmã.–Nãoseesqueçadagente,Vasya.Aqui.Eleergueuobraçoetirouumobjetode

madeirapenduradonumatiradecouronaalturadopescoço.Estendeu-oparaela.Eraumpassarinhoesculpido,comasasabertasegastas.–Opaifezistopramãe–disseAlyosha.

–Use-o,irmãzinha,eselembre.Vasyabeijouosdois.Suamãoapertou-

seaoredordoobjetodemadeira.

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–Eujuro–repetiuela.–Vá–disseAlyosha–,antesqueeu te

amarrenofornoefaçavocêficar.–Masosolhosdeletambémestavammolhados.Vasyaesgueirou-separafora.Assimque

tocou na soleira, ouviu novamente a vozdoirmão:–VácomDeus,irmãzinha.Mesmo depois que a porta da cozinha

fechou-se à sua passagem, era impossívelabafarosomdochorodeIrina.

Soloveyesperavaporeladoladodeforadapaliçada.–Venha–Vasyadisse.–Vocêmelevará

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para os confins da terra, se a estrada noslevar tão longe? – Chorava, enquantofalava,masocavalolimpousuaslágrimascomofocinho.Suas narinas abriram-se para pegar o

ventodanoite.Praqualquer lugar,Vasya.Omundo é vasto, e a estrada nos levará paraqualquerlugar.Ela subiu nas costas do garanhão e ele

partiu, rápido e silencioso como umpássaronoturno.Logo,Vasyaviuumbosquedeabetose

a luz do fogo vislumbrando por entre asárvores,derramandoouronaneve.Aportaseabriu.–Entre,Vasya –Morozkodisse. –Está

frio.

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NOTADAAUTORA

OS ESTUDANTES E FALANTES DE

RUSSO COM CERTEZA NOTARÃO, Epossivelmente lamentarão, minhaabordagemanárquicadatransliteração.Quasepossoouvirotorcerdemãosdos

leitores, que estarão se perguntando, porexemplo, por que método possível eupoderia ter obtido vodianoy do russo e depois dado a volta e obtidodomovoi do russo , uma palavracomfimidêntico?

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Arespostaéqueeutinhadoisobjetivosnatransliteração.Emprimeirolugar,procureisubstituiras

palavras russas de maneira a reter umpouco do seu sabor exótico. Foi por estarazão que substituí porKonstantinemvezdaformamaisfamiliar,Constantino,eporDmitriienãoDmitri.Em segundo lugar, e mais importante,

quis que essas palavras russas fossemrazoavelmente pronunciadas eesteticamente agradáveis aos falantes dalíngua inglesa. Talvez seja mais precisotransformar a palavra emMyetyel’, emvezdeMetel,mas este tipode ortografia é esquisito em inglês, além

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deconfuso.Gosto da maneira como vodianoy

aparece na página, assim como gosto donome Aleksei (Aee), mas preferitransformaronomeeemSolovey.Desistidequalquertentativade indicar

sinais átonos e tônicos comapóstrofosoude outra maneira, uma vez que eles nãotêm qualquer significado para o leitormédiofalantedeinglês.Aúnicaexceçãoéa palavra Rus’, em que o uso extensivodessa ortografia com o apóstrofo nahistoriografia tornou-a amais familiar detodasparaosleitoresfalantesdeinglês.Paraosestudantesdahistória russa, só

posso dizer que tentei ser tão fiel quantopossível em relação a um período de

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tempo muito pouco documentado. Nasvezesemquemedeiaodireitode tomarliberdade com o registro histórico – porexemplo, ao fazer o príncipe VladimirAndreevich mais velho do que DmitriiIvanovich(naverdade,eleeraalgunsanosmaisjovem),eocasandocomumameninachamadaOlgaPetrovna–,foiporrecursosdramáticos, e espero que meus leitoressejamcondescendentescomigo.

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GLOSSÁRIO

BABAYAGA–Umavelhabruxaqueapareceemmuitoscontos de fadas russos. Ela cavalga em um almofariz,voando com um pilão e apagando sua passagem comumavassouradebétula.Moraemumacabanaquedávoltasevoltassobrepernasdegalinhas.

BANNIK – “Morador da Casa de Banhos”, guardião dacasadebanhosnofolclorerusso.

BATYUSHKA – Literalmente, “padrezinho”, usadocomo uma maneira respeitosa de se dirigir aoseclesiásticosortodoxos.

BOBOSAGRADO –Umyurodivy,ouBoboemCristo,eraalguémqueabriamãodesuaspossesterrenasesededicava a uma vida ascética. Acreditava-se que sualoucura,realoufingida,fosseinspiradapelodivino,efrequentemente falavam verdades que outras pessoasnãoousavamdizer.

BOGATYR –Um lendárioguerreiroeslavo, algocomoumcavaleiroerrantedaEuropaOcidental.

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BOLOTNIK–Habitanteedemôniodopântano.BOIARDO – Membro do Kievan ou, mais tarde, daaristocracia moscovita, segundo na hierarquia abaixoapenasdeumknyazoupríncipe.

BUYAN – Misteriosa ilha no oceano, creditada namitologia eslava com a sua capacidade de aparecer edesaparecer.Constaemvárioscontosdofolclorerusso.

CZAR – A palavra “czar” deriva da palavra latina caesar(césar em português), e originalmente era usada paradesignaroimperadorromano(imperator)e,maistarde,o imperador bizantino, nos textos da Antiga IgrejaEslava. Neste romance, portanto, a palavra “czar”refere-se ao imperador bizantino em Constantinopla(ouTsargrad,literalmente“cidadedoczar”)enãoaumpotentadorusso. IvãIV(IvãoTerrível) foioprimeirogrão-prínciperussoaassumirotítulodeczardetodasas Rússias, quase duzentos anos depois dosacontecimentos ficcionais deO urso e o rouxinol. Osgovernantesrussosassumiramotítulodeczarporque,apósaquedadeConstantinoplaparaosotomanosem1453, consideraram Moscou a “Terceira Roma”, aherdeira da autoridade espiritual de Constantinoplaentreoscristãosortodoxos.

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DEVOCHKA–Garotinha.DEVUSHKA–Moça,donzela.DOCHKA–FilhaDOMOVOI – No folclore russo, o guardião da casa, oespíritodoméstico.

DURAK–Bobo;nofeminino:dura.DVOR–Pátio,oupátiodaentrada.DVORNIK –No folclore russo,oguardiãododvor, oupátio.Tambémozelador,nalinguagemmoderna.

FORNO–Ofornorussooupech’,eminglês“oven”, eraumaenormeconstruçãoqueentrouemlargousonoséculo XV, tanto para cozinhar quanto para aquecer.Umsistemadedutosasseguravaumadistribuiçãoporigual do calor, e, frequentemente, famílias inteirasdormiamnoaltodofornoparasemanteremaquecidasaolongodoinverno.

GOSPODIN – Forma respeitosa de se dirigir a umhomem,maisformaldoque“senhor”ou“mister”eminglês.Poderiasertraduzidaparaoinglêscomo“lord”.

GOSUDAR – Termo de tratamento próximo a “SuaMajestade”ou“Soberano”.

GRÃO-PRÍNCIPE(VELIKIYKNYAZ) –Títulodeumgovernante de um principado importante, por

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exemplo, Moscou, Tver ou Smolensk, na Rússiamedieval.O título czar entrou emuso quando Ivã oTerrívelfoicoroadoem1547.

HIDROMEL–Vinhodemel,feitopelafermentaçãodeumamisturademeleágua.

ICONÓSTASE(BIOMBODEÍCONES)–Umaparededeícones ou imagens com um leiaute específico quesepara a nave do santuário numa igreja ortodoxaoriental.

IRMÃZINHA – Adaptação do termo afetivo russosestryonka.Podeserusadoparairmãsmaisvelhasemaisnovas.

IRMÃOZINHO – Adaptação do termo afetivo russobratyuska. Pode ser usado para irmãos mais velhos emaisnovos.

IZBA –Casadecamponês,pequenae feitademadeira,frequentemente adornada com entalhes. O plural éizby.

KASHA – Mingau. Pode ser feito de trigo sarraceno,trigo,centeio,painçooucevada.

KOKOSHNIK – Um toucado russo. Existem muitosmodelos de kokoshniki, dependendo do local e daépoca. Geralmente, a palavra se refere ao toucado

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fechado, usado por mulheres casadas, embora assolteirastambémosutilizassemabertosatrás.Ousodekokoshnikilimitava-seànobreza.Aformamaiscomumde cobertura para a cabeça para uma mulher russamedievaleraumlenço.

KREMLIN–Umcomplexofortificadonocentrodeumacidaderussa.Emboraousodo inglêsmoderno tenhaadotadoapalavrakremlinparasereferirunicamenteaomais famoso exemplo, o Kremlin de Moscou, naverdade, existem kremlins na maioria das cidadeshistóricasrussas.

KVAS–Bebidafermentadafeitadepãodecenteio.LESHY – Também chamado de lesovik, o leshy era, namitologia eslava, um espírito dasmatas, protetor dasflorestasedosanimais.

LESNAYAZEMLYA–Literalmente“TerradaFloresta”.METEL–Pronuncia-seMyetyel.Significa“tempestadedeneve”.

METROPOLITANO – Alto dignitário da IgrejaOrtodoxa.NaIdadeMédia,ometropolitanodaigrejadosRus’eraamaiorautoridadeortodoxadaRússia,eeraindicadopeloPatriarcaBizantino.

MYSH–Mysh’,camundongo.

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OGON–Ogon’,fogo.PATRIARCAECUMÊNICO–ChefesupremodaIgrejaOrtodoxa Oriental, baseado em Constantinopla, amodernaIstambul.

PODSNEZHNIK – Campânula branca, uma florzinhaqueflorescenoiníciodaprimavera.

PYOS–Cachorro,vira-lata.RUS’ – Originalmente, os Rus’ eram um povoescandinavo. No século IX d.c., a convite das tribosguerreiras eslavas e fínicas, eles estabeleceram umadinastia dominante, os ruríquidas, que acabaram porcompreender uma grande faixa do que hoje é aUcrânia, a Belarus e a Rússia Ocidental. O territórioquegovernavamveioareceberseunome,assimcomoopovoqueviviasobsuadinastia.ApalavraRus’vingouaté os dias atuais, como podemos ver nos nomes daRússiaedaBelarus.

RUSALKA–Nofolclorerusso,umaninfaaquática,algocomoumsúcubo.

RÚSSIA–DoséculoXIIIatéoséculoXVnãohaviaumaorganizaçãopolíticaunificadadenominadaRússia.Emvezdisso,osRus’viviamsobumasériediscrepantedepríncipes (knyazey) rivais, que deviam sua aliança

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máxima aos suseranosmongóis.ApalavraRússia nãoentrou emuso comumaté o séculoXVII.Assim, nocontextomedieval,apessoanãosereferiaà“Rússia”esimà“terradosRus’”,ousimplesmente“Rus’”.

RUSSO–Existemdoisadjetivosnalínguarussa:russkiyerossiyskiy, quepodem ser traduzidos como “russo(a)”,ou“russian”eminglês.Oprimeiro,russkiy, refere-se,especificamente, ao povo e cultura russos, semdistinção ou limites. Rossiyskiy se refere,especificamente,aomodernoEstadorusso.Quandoapalavra “russo(a)” é usada no romance, semprepretendooprimeirosignificado.

SAPATOSDEENTRECASCA –Sapatos leves feitosdeentrecasca, a cascamais internadeumabétula.Eramfáceis de ser feitos, mas não duráveis. Chamavam-selapti.

SARAFAN –Umvestidoque lembrauma jardineiraouum avental, com tiras nos ombros, usado sobre umablusa de mangas compridas. Esta peça, na verdade,entrouemusocomumapenasnoiníciodoséculoXV.Incluí-anoromanceligeiramenteantesdoseutempoporcausadaforçacomqueessamaneiradevestirevocaocontodefadasrussoparaoleitorocidental.

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SOLOVEY–Rouxinol.STARIK–Velho.SYNOK–Adjetivocarinhosoderivadodapalavrasyn,quesignifica“filho”.

TSARGRAD – “Cidade do czar”, Constantinopla (verczar).

UPYR–Vampiro(pluralupyry).VAZILA –No folclore russo, o guardião do estábulo eprotetordosrebanhos.

VEDMA–Vyed’ma,feiticeira,mulhersábia.VERSTA – Unidade de distância que correspondegrosseiramente a um quilômetro ou dois terços demilha.

VODIANOY – No folclore russo, um espírito da águamasculino,geralmentemalicioso.

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AGRADECIMENTOS

ESCREVER UM ROMANCE É QUASE

COMOLUTARCONTRAUMMOINHOde vento, com a remota possibilidade deque ele possa ser um gigante. Sinto-memaisagradecidadoquepossocolocarempalavrasatodasaquelaspessoasqueestãodispostas a bancar o Sancho Panza nestalongaeestranhamissão.Em outras palavras, agradeço a todos

por acreditarem. Tem sido uma loucaempreitada.

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Apapai eBeth, omeumuito obrigadapela primeira leitura, por tantos jantaresdeliciososeporestaremdispostosaabrigaraprópriaensandecidanosótão.Àmamãe,por prestar a atenção na escavaçãoficcional que, literalmente, ninguémmais(inclusiveeu)notou.ACarolDawsonporler, gostar e ajudar, muito antes de quequalquer pessoa, exceto meus pais, ofizesse. A Abhay Morrissey, por mearrastar para o sol quando ameacei ficargrudadanomeulaptopatécriarraízes.AChris Johnson e R. J. Adler, por filmes ecançõesrespectivamente,eterríveispiadasveganasvindasdosdois.APhylCastpelochocolate puro e pelas informações debastidores sobre o mundo editorial. A

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KaitlinMaxfieldporcarregarumapilhadepáginasportodaparte,atéleralgoqueseparecesse com um rascunho. A ErinHaywood por algumas horas realmenteinteressantespassadas inventandocoisas–se alguma vez me faltarem ideias,chamarei você. A Robin Rice por chorarem uma Boa Parte e incentivar minhadebilitada segurança. A TatianaSmorodinskaya,SergeiDavydoveatodooDepartamento Russo do MiddleburyCollege por uma formação educacionalincrível, que espero não ter estragadointeiramente. A Carl Sieber, Konstantin,Anton e a todos os colegas da Carbon12Creative pelo site mais maravilhoso queuma moça poderia ter. A Deverie

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Fernandez,porestardispostaa tirar fotosnachuva.AChrisArcher,portirarfotosàluz do sol e gastar horas comenlouquecidas habilidades com oPhotoshop. A Paula Hartman pelaspalavras amáveis no início, que meajudaram a atravessar alguns trechosdifíceis. A Ann Dubinet pelos jantaresdeliciosos e conselhos tarde da noite. Atodas as pessoas da Random House, acomeçar pela genial editora, JenniferHershey, cujo talento com ideias simplestorna um manuscrito infinitamentemelhor.AgradeçotambémaAnneSpeyer,Vincent La Scala e EmilyDeHuff. Ameuincrível agente, Paul Lucas, que mearrastoudevoltaparaestejogoquandoeu

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estava a ponto de desistir, e entãocontinuouatéprovarquesuaconfiançaerabemfundamentada.Nãopossoagradecer-lheobastante.AgradeçoaindaaDorothyVincent, Brenna English-Loeb, MichaelStegereatodosdaJanklowedaNesbit.A todos vocês, soumais agradecida do

queconsigoexpressar.

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TítulooriginalTHEBEARANDTHENIGHTINGALE

Estaéumaobradeficção.Nomes,personagens,lugareseincidentessãoprodutosdaimaginaçãodaautora,foramusadosdeformafictícia.Qualquersemelhançacomacontecimentosreais,localidadesoupessoas,vivasounão,émeracoincidência.

Copyright©2016KatherineArden.

Todososdireitosreservados,incluindoo

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dereproduçãonotodoouempartesobqualquerforma.

FÁBRICA231OselodeentretenimentodaEditoraRoccoLtda.

DireitosparaalínguaportuguesareservadoscomexclusividadeparaoBrasilàEDITORAROCCOLTDA.Av.PresidenteWilson,231–8oandar20030-021–RiodeJaneiro–RJTel.:(21)3525-2000–Fax:(21)[email protected]

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PreparaçãodeoriginaisGUILHERMEKROLL

CoordenaçãoDigitalMARIANAMELLOESOUZA

AssistentedeProduçãoDigitalMARIANACALIL

RevisãodearquivoePubANNAEMÍLIASOARES

Ediçãodigital:agosto,2017.

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CIP-Brasil.CatalogaçãonaPublicação.SindicatoNacionaldosEditoresdeLivros,RJ

A72uArden,KatherineO urso e o rouxinol [recurso eletrônico] /KatherineArden;traduçãoElisaNazarian.-1.ed.-RiodeJaneiro:Fábrica231,2017.

recursodigital

Traduçãode:ThebearandthenightingaleISBN978-85-9517-026-1(recursoeletrônico)

1.Romanceamericano.2.Livroseletrônicos.I.Nazarian,Elisa.II.Título.

17-42055 CDD:813

CDU:821.111(73)-3

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AAUTORA

Nascida em Austin, no Texas, KatherineArdenpassouumanodoensinomédioemRennes,França.ApósseraprovadaparaaMiddlebury College em Vermont, elaadiouainscriçãoporumanoparavivereestudar em Moscou. Na Middlebury,especializou-se em literatura francesa erussa.Depoisde formada,mudou-separaMaui, Havaí, e atualmente vive emVermont.