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O tricentenário de nascimento Bartolomeu Lourenço de Gusmão e a constituição de um acervo audiovisual no MAST ALEXANDER LIMA REIS * ALINE MONTEIRO DE CARVALHO SILVA ** MARTA DE ALMEIDA *** Introdução A nona edição do Seminário Nacional do Centro de Memória da Unicamp traz como tema central Memória e histórias locais: esquecimento, diversidades culturais e identidades, em particular o problema do esquecimento é fundamental para este trabalho. As proposições de Jacques Derrida em Mal de Arquivo: uma impressão freudiana afirmam que as técnicas de arquivamento decidem o que deve ser ou não guardado. Isso significa que um conjunto de métodos da área de arquivo determina o que deve ser lembrado ou esquecido. (DERRIDA, 2001) Esse aspecto é fundamental para compreender a prioridade do arquivamento de documentos em suporte de papel. Por outro lado, houve um aumento progressivo no uso de suportes com imagem e som para se comunicar, mas a política de salvaguarda ainda é recente e carece de ações mais integradas. A criação do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST) em 1985 está imersa a uma discussão mais ampla que redimensionava o entendimento sobre preservação do patrimônio e constituição de museus. (LISBOA, 2012: 22) A mobilização para preservar os vestígios de ciência e tecnologia, de forma a permitir estudos em História da Ciência e da Tecnologia e para a sua divulgação foi marcada pela atuação do Grupo Memória da Astronomia (GMA), já em 1982, no Observatório Nacional (ON), quando começou a produzir conteúdos de história da ciência, a pensar formas de preservar o antigo acervo de instrumentos científicos e a divulgar as ciências 1 . * Museu de Astronomia e Ciências Afins, graduado em história pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), bolsista em História da Ciência e da Tecnologia do CNPq/MCTIC. ** Museu de Astronomia e Ciências Afins, doutora em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF), bolsista em História da Ciência e da Tecnologia do CNPq/MCTIC. *** Museu de Astronomia e Ciências Afins, doutora em história pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora de História da Ciência e da Tecnologia do MAST. 1 No mesmo ano, o GMA promoveu uma mesa redonda com membros da comunidade científica para discutir a criação de um museu de ciência. Dessa reunião resultou a proposta de uma carta assinada, encabeçada por Carlos Chagas Filho, que foi entregue ao então presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) Lynaldo Cavalcante de Albuquerque, solicitando que fosse posta em prática uma política de salvaguarda da memória e da documentação científica produzida no Brasil. (DOMINGUES, 2012: 640)

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O tricentenário de nascimento Bartolomeu Lourenço de Gusmão e a constituição de um

acervo audiovisual no MAST

ALEXANDER LIMA REIS*

ALINE MONTEIRO DE CARVALHO SILVA**

MARTA DE ALMEIDA***

Introdução

A nona edição do Seminário Nacional do Centro de Memória da Unicamp traz como

tema central Memória e histórias locais: esquecimento, diversidades culturais e identidades,

em particular o problema do esquecimento é fundamental para este trabalho. As proposições

de Jacques Derrida em Mal de Arquivo: uma impressão freudiana afirmam que as técnicas de

arquivamento decidem o que deve ser ou não guardado. Isso significa que um conjunto de

métodos da área de arquivo determina o que deve ser lembrado ou esquecido. (DERRIDA,

2001) Esse aspecto é fundamental para compreender a prioridade do arquivamento de

documentos em suporte de papel. Por outro lado, houve um aumento progressivo no uso de

suportes com imagem e som para se comunicar, mas a política de salvaguarda ainda é recente

e carece de ações mais integradas.

A criação do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST) em 1985 está imersa a

uma discussão mais ampla que redimensionava o entendimento sobre preservação do

patrimônio e constituição de museus. (LISBOA, 2012: 22) A mobilização para preservar os

vestígios de ciência e tecnologia, de forma a permitir estudos em História da Ciência e da

Tecnologia e para a sua divulgação foi marcada pela atuação do Grupo Memória da

Astronomia (GMA), já em 1982, no Observatório Nacional (ON), quando começou a produzir

conteúdos de história da ciência, a pensar formas de preservar o antigo acervo de instrumentos

científicos e a divulgar as ciências1.

* Museu de Astronomia e Ciências Afins, graduado em história pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

(UERJ), bolsista em História da Ciência e da Tecnologia do CNPq/MCTIC.

** Museu de Astronomia e Ciências Afins, doutora em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF),

bolsista em História da Ciência e da Tecnologia do CNPq/MCTIC. *** Museu de Astronomia e Ciências Afins, doutora em história pela Universidade de São Paulo (USP),

pesquisadora de História da Ciência e da Tecnologia do MAST. 1 No mesmo ano, o GMA promoveu uma mesa redonda com membros da comunidade científica para discutir a

criação de um museu de ciência. Dessa reunião resultou a proposta de uma carta assinada, encabeçada por Carlos

Chagas Filho, que foi entregue ao então presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e

Tecnológico (CNPq) Lynaldo Cavalcante de Albuquerque, solicitando que fosse posta em prática uma política

de salvaguarda da memória e da documentação científica produzida no Brasil. (DOMINGUES, 2012: 640)

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Além disso, havia um debate sobre um destino social para o conjunto arquitetônico do

observatório, o histórico prédio sede e as cúpulas. Apesar dessas cúpulas não estarem mais

sendo utilizadas para pesquisas astronômicas devido a observação limitada ocasionada pela

poluição industrial e luminosa, ainda era possível usá-las para observar alguns planetas e a lua

para fins pedagógicos. (CAZELLI, 1992: 65) Nesse contexto, todo o conjunto arquitetônico

antigo passou a ser um espaço considerável para a criação de um museu de ciências.

Desde os primeiros anos, houve preocupação do MAST em organizar e catalogar os

documentos pertencentes ao acervo, inclusive os audiovisuais e sonoros, cujo trabalho

minucioso, com descrição dos pormenores dos conteúdos ali encontrado, foi praticamente

interrompido diante de novas demandas de organização do arquivo na década de 1990.

(ALMEIDA, et al., 2019: 144-145)

Atualmente, o acervo audiovisual e sonoro do MAST não está somente no arquivo,

mas encontra-se também em outras coordenações que se ocupam das áreas de História da

Ciência e Tecnologia; Museologia; Educação em Ciências, além da Biblioteca Henrique

Morize.2 Há 1285 itens documentais em diversos formatos de suporte (fita rolo, fita cassete de

áudio, fita U-matic, fita Betacam, fita Betamax, fita em miniatura, disco CD, disco DVD).

Atualmente o material migrado tem sido arquivado em disco rígido doméstico. A maior parte

do material em fita VHS e disco DVD faz parte de uma antiga videoteca de ciências, pois

desde o início, a instituição tivera a função de atrair um público que pudesse ser

intelectualmente estimulado, em vista disso, a exibição de filmes científicos era uma das

estratégias. Uma publicação de 1984 do Informativo Astronômico da União Brasileira de

Astronomia (UBA) contém informações de uma agenda semanal de atividades voltadas para a

exibição de filmes científicos e filmes educativos sobre o observatório. (NUNES, JACCOUD,

1984) Isso contribuiu para explicar o número elevado de coleções compradas e vídeos

produzidos pela instituição para equipar uma videoteca de ciências.3 De todo o acervo,

identificou-se 98 itens raros, assim considerados por terem sido produzidos pelo museu,

configurando um material único da instituição. (SILVA, et al., 2018: 3111)

2 Este levantamento mais sistemático iniciou-se em 2015 com o projeto Vozes da Ciência no Brasil, vinculado à

Coordenação de História da Ciência e Tecnologia (COHCT). 3 O MAST ainda mantém a exibição de filmes sobre ciência na sua programação educativa.

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A maior parte do acervo foi constituído para compor essa videoteca de ciências na

instituição e uma parte menor como resultado de projetos de pesquisadores ao longo da

existência do museu. Na primeira fase, realizou-se um diagnóstico quantitativo sobre esse

acervo. Após empreender uma avaliação da condição material do suporte com separação dos

itens raros, buscou-se apoio da biblioteca da instituição para fazer a migração desses

documentos audiovisuais em suporte de fita VHS para suporte de disco rígido externo de uso

doméstico e duplicação em suporte de disco DVD. A atual fase busca analisar

qualitativamente o material identificado a partir da pesquisa histórica dos seus conteúdos.

Ação de migração de suportes em fita VHS para suportes em disco DVD e disco rígido (Arquivo Pessoal)

Apesar de todo o comprometimento do MAST com a preservação de seu acervo, o

levantamento realizado nesses arquivos audiovisuais e sonoros possibilitou perceber que a

primeira exposição organizada no MAST - Bartolomeu Lourenço de Gusmão: Tricentenário

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de nascimento - ainda que, parcialmente catalogada, está ausente nos trabalhos que de algum

modo abordaram as primeiras atividades realizadas no museu e mesmo nos que se voltaram

para a produção das primeiras exposições. (CAZELLI, ibdem, 1992; LISBOA, ibdem, 2012;

CANCELA, 2014; MARTINS, 2014) Pretende-se abordar essa exposição e o “esquecimento”

sobre a mesma, a partir de um documento audiovisual recentemente localizado no MAST,

buscando compreender o processo de elaboração e escolha do tema e que pode ser

interpretado como uma estratégia de afirmação da instituição como local de estudo e produção

de História da Ciência e da Tecnologia.

Aprimeira exposição do MAST

O primeiro documento encontrado sobre a exposição foi a fita VHS localizada na

Biblioteca Henrique Morize com o título Bartolomeu Lourenço de Gusmão: tricentenário de

nascimento. Em uma primeira análise, presumiu-se que o filme era um documentário sobre

Bartolomeu Lourenço de Gusmão. Seguiu-se o rastro deixado pela primeira fonte e o segundo

material localizado foi um folheto/ensaio com o título Bartolomeu Lourenço de Gusmão sua

obra e o significado fáustico de sua obra, de autoria de Murillo Florindo Cruz Filho. Embora

o prefácio do ensaio mencione a articulação interinstitucional entre a Escola de Engenharia da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o MAST para a comemoração, não havia

indícios de que havia sido organizada uma exposição. A partir da pesquisa no arquivo foram

localizados fita rolo, disco de áudio CD-R, letreiros, fotos, imagens e diapositivos.

A análise dos diapositivos confirmou a montagem de uma exposição para

comemoração do tricentenário. Ela foi organizada em painéis com reproduções fotográficas

legendadas que abordaram a trajetória de Bartolomeu Lourenço de Gusmão no Brasil e na

Europa e as perseguições sofridas por ele pela Inquisição. Destacavam ainda algumas das suas

invenções, como o sistema de escoamento de navios e a reforma em engenhos de açúcar

portugueses. Na narrativa, há um reforço de uma visão dicotômica entre fé e ciência,

mostrando aspectos já superados pela historiografia. Por fim, ressalta o papel de Bartolomeu

Lourenço como “precursor” do voo, relacionando-o com a invenção do zepelim e do 14 Bis

de Santos Dumont. Havia também uma sala de projeção de imagens acompanhada do áudio

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produzido para complementar as imagens projetadas com trechos do folheto/ensaio. Trata-se

do documento audiovisual mencionado acima.

Ainda faltam estudos mais aprofundados sobre o personagem ali destacado. Sabe-se

que Bartolomeu Lourenço de Gusmão nasceu em 1685 na cidade de Santos. É conhecido por

ter criado e reformado diversos maquinários. Iniciou os estudos em escola da ordem dos

jesuítas na capitania de São Vicente. Estudou no Seminário de Belém em Cachoeira (BA),

onde desenvolveu um projeto de captação de água do rio Paraguaçu para o seminário

utilizando o Parafuso de Arquimedes. Mesmo de forma esparsa, desde o século XIX, esse

inventor tem sido reconhecido como um personagem importante para a história. Bartolomeu

Lourenço de Gusmão e seu irmão Alexandre de Gusmão figuram na memória proferida pelo

Visconde de S. Leopoldo em 1841 em sessão do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

(IHGB) (LEOPOLDO, 1841). Em 1843, o português Francisco Freire de Carvalho publicou

na Academia das Ciências de Lisboa a Memória que tem por objeto reivindicar para a nação

brasileira a glória da invenção das máquinas aerostática, sendo reeditada na revista do

IHGB seis anos depois. (CARVALHO, 1849) Além disso, ele é mencionados no livro Galeria

dos Brasileiros Ilustres, publicado entre 1858 e 1861 pelo editor Sebastião Augusto Sisson,

(SISSON, 1ª ed. 1858/61) e no livro publicado em 1858 Os varões illustres do Brazil durante

os tempos coloniáes de João Manuel Pereira da Silva. (SILVA, 1ª ed, 1858)

Essas obras fazem parte de uma concepção de ciência que enaltece personagens

nascidos no Brasil reconhecidos como extraordinários, bem como reivindicam uma identidade

regional paulistana, pois Visconde de Leopoldo também nasceu em Santos. (KURY, 2011) A

própria dicotomia mencionada entre fé e ciência na exposição já se encontra presente nesses

escritos do século XIX. Contudo, o contato de Bartolomeu Lourenço de Gusmão com a

Companhia de Jesus foi fundamental para o desenvolvimento de seus trabalhos tendo em vista

as bibliotecas dessa ordem religiosa na América portuguesa, pois no colégio de Salvador:

“[...] poderiam ser encontrados os textos clássicos latinos, bem como diversos volumes de

teologia e de filosofia escrito por autores importantes da renascença e do século XVII [...]”

(KURY, op. cit., 2011: 68) Além disso, a autora menciona que nessas bibliotecas também

havia obras de filosofia natural e matemática, tais como o Princípios da Filosofia de René

Descartes, o Almagestumnovum do Padre Riccioli ou o Magnessive de arte magnetica do

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padre Kircher entre outros, obras que possivelmente contribuíram para a formação de

Bartolomeu Lourenço.

No século XX, Afonso de Escrognolle Taunay4 foi um dos principais estudiosos sobre

o personagem. A importância de Bartolomeu Lourenço de Gusmão no cenário científico

lusobrasileiro e internacional ocorreu por sua habilidade em construir e reformar máquinas.

Taunay foi diretor do Museu Paulista (1917-1939) e lá estão salvaguardadas duas pinturas

sobre Bartolomeu Lourenço. Na primeira obra, de Benedito Calixto de Jesus (1902), ele é

retratado em um gabinete com alguns instrumentos e frascos de soluções químicas. Em uma

das mãos, encontra-se um compasso e na outra um croqui, possivelmente de seus inventos. A

segunda pintura é de Bernardino de Souza Pereira (1940) em que é retratado a invenção do

aeróstato na sala das audiências do Palácio Real, sendo a invenção de maior destaque de

Bartolomeu Lourenço. A criação era um balão de ar quente que sobe ao céu por se tornar mais

leve que ar atmosférico. Embora a exposição tenha destacado essa inventiva, a imagem não

foi utilizada na exposição. A literatura sobre ele afirma que foi perseguido pela Inquisição por

suas criações e boa parte do seu material técnico-científico foi perdido. O inventor faleceu

com 39 anos em Toledo, Espanha, no ano de 1724.

Bartolomeu Lourenço de Gusmão por Representação da invenção do aeróstato na

Benedito Calixto de Jesus (1902) Sala das audiências do Palácio Real por

Museu Paulista Bernardino de S. Pereira (1940) Museu Paulista

4 TAUNAY, Afonso de E. Obras Diversas de Bartolomeu Lourenço de Gusmão. São Paulo: Cia.

Melhoramentos, 1934; TAUNAY, Afonso de E. "A vida Gloriosa e Trágica de Bartolomeu de Gusmão". São

Paulo: ANAIS DO MUSEU PAULISTA, 1938; TAUNAY, Afonso de E.. "Bartolomeu de Gusmão e a sua

Prioridade Aerostática". São Paulo: ANAIS DO MUSEU PAULISTA, 1938.

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A organização da exposição foi feita pela servidora do museu Lilian Maria Braga5 em

parceria com Murillo Florindo Cruz Filho, supervisionados pelo primeiro diretor do MAST,

Ronaldo Rogério de Freitas Mourão. Ronaldo Mourão fazia parte do GMA e foi um dos

colaboradores que idealizaram a criação do museu a partir de 1982. O único responsável pela

exposição ainda vivo é Murillo Cruz que trabalhou como técnico do CNPq e no Instituto

Nacional da Propriedade Industrial (INPI). A chegada dele ao museu ocorreu depois de um

intervalo em seu trabalho no INPI. Por conta de suas conexões institucionais foi trabalhar no

MAST, onde reportou-se diretamente ao diretor Ronaldo Mourão. A sua experiência com

patentes e propriedade industrial facilitou a execução do trabalho, porém foi necessário

aprofundar os estudos sobre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, através de livros relacionados

ao tema. Ele permaneceu no museu cerca de um ano e após terminar a exposição, retornou ao

INPI.

Chegou-se ao nome deste organizador primeiramente no documento audiovisual

Bartolomeu Lourenço de Gusmão - Tricentenário do Nascimento, como um dos responsáveis

pela pesquisa. A segunda referência emergiu quando se teve acesso ao seu folheto/ensaio

sobre o tricentenário. Seu nome foi pesquisado, aparecendo referências ao seu currículo lattes

e a uma página online desenvolvida pelo próprio contendo informações sobre sua trajetória e

seus textos. Após estabelecer contato por correio eletrônico, ele foi convidado para uma

entrevista, aceitando prontamente. A narrativa dele está associada a trajetória pessoal,

acadêmica e sua atuação dentro do MAST.

O caminho até aqui percorrido por conta da entrevista de Murillo Cruz reconhece o

potencial no relato oral, principalmente pelo fato de que há pouca documentação escrita sobre

os procedimentos dessa exposição. A documentação encontrada na biblioteca apontava apenas

para o documento audiovisual e o texto do folheto/ensaio, sem possibilitar a relação entre

5 Trabalhou em diversos projetos entre 1985 e 1995, incluindo roteiros e direção de vídeos produzidos pelo museu. Era editora do periódico Astronomia em Jornal de divulgação científica organizado nos primeiros anos

da instituição. Trabalhou em outras exposições do museu (MARTINS, ibdem, 2014), participou do Inventário do

Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas (CFE) e escreveu em coautoria o anais História

da Ciência: assunto ou forma; a experiência do MAST em documentação. Atualmente, por conta da migração de

fita VHS para disco DVD, algumas das produções executadas por ela na instituição encontram-se disponíveis

para consulta. A servidora aposentou-se em 1995 no cargo de analista em ciência e tecnologia no setor que hoje

equivale ao Serviço de Comunicação Social (SECOM) e faleceu em 2011.

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eles. Na documentação encontrada no museu, não havia informações sobre a produção do

texto nem a execução de sua impressão, que foi feita a partir do teste de um novo modelo de

máquina da Xerox Brasil. Outras informações acrescentadas foram os procedimentos para a

realização de uma projeção de áudio e imagem em uma das salas. A narração desse áudio foi

feita em um estúdio de gravação chamado Sonoviso com o conhecido locutor e jornalista

Celso Freitas. Em outras palavras, a narrativa e as imagens selecionadas estavam conectadas

por seus usos na exposição, no folheto e no vídeo.

A comemoração do tricentenário de nascimento de Bartolomeu Lourenço de Gusmão

teve apoio da Empresa Brasileira Correios e Telégrafos, que ao final de 1984, conforme

solicitado pela Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),

lançou um selo comemorativo do tricentenário de nascimento. A empresa Xerox do Brasil

contribuiu com a impressão 1500 exemplares do folheto/ensaio que fora distribuído no dia do

lançamento do evento. Hoje encontram-se dois exemplares na biblioteca do museu. Para a

publicação do ensaio, a empresa Xerox utilizou uma nova técnica de impressão para a época,

com tiragem mais rápida e prática. No interior da máquina denominada Sistema 9500 ocorria

a impressão e o acabamento do livreto. Após a entrevista, Murillo Cruz doou outros

exemplares de sua posse para a biblioteca da instituição. No prefácio desse ensaio, escrito

pelo professor Paulo Pardal da Escola de Engenharia, é mencionado que a efeméride fora

alertada pela Escola de Engenharia e a escolha do professor para o prefácio era uma forma de

dar continuidade a antiga parceria amistosa entre os professores dessa escola e os

pesquisadores do Observatório Nacional. (PREFÁCIO, Paulo Pardal, In CRUZ FILHO, 1985)

É interessante ressaltar que o ensaio sobre Bartolomeu Lourenço impresso pela Xerox do

Brasil fazia parte de uma coleção que se debruçava sobre diversos temas associados à história,

literatura, discografia, uma série sobre Documentos de Nossa História, além de publicações

mais próximas da área de História da Ciência e da Tecnologia como o ensaio de Murillo Cruz

e a publicação Memórias da Escola Politécnica do próprio professor Paulo Pardal em 1984.

Este documento em formato de fita VHS, encontrava-se na base da biblioteca do

MAST. Após migração de suporte de fita VHS para disco DVD, consta apenas o formato em

disco DVD como disponível para consulta. É importante destacar que esse documento foi

restaurado (migrado de suporte), pois o conteúdo em suporte de fita VHS poderia ter se

perdido, já que a literatura especializada informa que a durabilidade média desse suporte varia

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em torno de 30 anos. A maior parte das imagens e legendas exibidas nos murais da exposição

estavam no vídeo. Além disso, foram arquivados outras imagens da pesquisa realizada que

não fizeram parte da versão final da exposição. Apenas as reproduções tridimensionais dos

inventos, como o balão aeróstato e o laboratório astronômico, não se encontram arquivados no

MAST.

Fotos dos objetos icônicos da exposição. Arquivo do MAST.

Reprodução do laboratório astronômico e do aeróstato.

Através de duas matérias publicadas em jornais da época sobre a abertura da

exposição, cedidos pelo próprio Murillo Cruz, foi possível recuperar outras informações.

Consta que teria duração inicial de seis meses e que o selo comemorativo do tricentenário de

Bartolomeu Lourenço de Gusmão havia sido lançado no mesmo dia da abertura, com o valor

na moeda da época de Cr$ 500 e tiragem de 2,1 milhões, circulando até 31 de dezembro de

1986. A ilustração foi empreendida por Darlan Manoel Rosa6. Os periódicos destacaram

também réplicas dos inventos: o balão aeróstato e o laboratório astronômico, além do painel

fotográfico, o folheto/ensaio e o vídeo utilizado.

Um dos objetivos da exposição era envolver a comunidade local, principalmente o

público infantil, para “entrosar a criança com a ciência através do divertimento”, como

afirmou ao jornal O Globo, Lilian Braga. Por isso, os materiais icônicos eram interativos e

com altura próxima a das crianças. De acordo com os periódicos, alguns colaboradores

estiveram presentes, tais como o diretor regional da Empresa de Correios e Telégrafos (ECT),

6 Darlan Manoel Rosa nasceu em Minas Gerais no ano de 1947. É formado em publicidade pela Universidade de

Brasília (UnB), sendo pintor, escultor, desenhista, programador visual e professor.

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Joel Marciano Halber7, o diretor da Escola de Engenharia da UFRJ, Hugo Cardoso, o

representante do Ministério da Educação, Paulo Sergio Aquilim.

Considerações finais

Ao selecionar o que deve ser lembrado ou esquecido, a exposição sobre o tricentenário

de nascimento de Bartolomeu Lourenço de Gusmão ficou obliterada. O processo de

silenciamento ocorreu dentro da instituição, o que pôde ser vislumbrado a partir da falta de

informações, de rememorações e de estudos sobre o evento. O caminho percorrido através da

recuperação dos arquivos mostrou que não houve uma preocupação em reconhecer o evento

como um marco inicial nas produções museográficas da instituição. Se há um silenciamento

do evento dentro da própria instituição, seria possível percebê-lo como objeto de estudo fora

dela? Tanto a exposição quanto a efeméride permanecem pouco estudadas. A análise da

documentação encontrada no museu, as reportagens dos jornais e a entrevista concedida pelo

Murillo Cruz possibilitaram uma nova visão sobre a exposição.

É válido salientar que o uso de acervos audiovisuais e sonoros como fontes para

estudos históricos ainda é pequeno. No caso do museu, há fontes dessa natureza que podem

ser utilizadas em trabalhos sobre diversas temáticas. Por exemplo, a própria forma como se

constituiu a videoteca do MAST, entre coleções educativas e produções próprias, pode servir

de objeto de estudo. No caso aqui apresentado, a utilização do acervo audiovisual e sonoro

raro, que se relaciona com a memória e história da formação do museu, renova o olhar sobre a

trajetória e as narrativas construídas sobre o MAST.

Referências Bibliográficas

7 Político, formado em economia, ex-presidente da Empresa Correios e Telégrafos (a partir do governo de

Ernesto Geisel) e ex-ministro das Comunicações do governo Fernando Collor de Mello. Ocupou cargos nas altas

esferas do poder regionais e nacionais.

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