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O Trecheiro O Trecheiro Notícias do Povo da Rua Ano XIX Agosto 2010 - Nº 190 IMPRESSO Rede Rua de Comunicação - Rua Sampaio Moreira, 110 – Casa 9 – Brás – 03008–010 São Paulo SP – Fone - 3227-8683 - 3311-6642 - [email protected] Fotos: Fabiano Viana/Rede Rua Conhecida como cidade “ecologicamente correta”, por ter uma população “educada” para a separação do lixo e em não jogar qualquer tipo de sujeira na rua, Curitiba é vista como Capital Social e reconhecida, internacionalmente, ela preocupação com o meio ambiente. Mas, nem tudo são flores, apesar das ruas da cidade com os singelos corredores floridos. Lá existem 2.773 pessoas morando em situação de rua. É um cenário crescente Fabiano Viana Em Curitiba, Moradores de rua de Curitiba contam sobre a truculência da polícia, as drogas e a indiferença dos curitibanos. “Nem olham na sua cara” e que se mistura com as flores, a impecável limpeza e a falta de uma rede socioassistencial. Truculência O jovem Michael denunciou que um dia dormia embaixo do Viaduto da Estação Capanema, conhecido com “Viaduto da Anaconda” e foi acordado pela equipe da Fundação de Assistência Social (FAS) que queria levá-lo para tomar banho. “Eles nem oferecem café lá, não adianta nada, preferi ficar dormindo, já tinha ali meu café da manhã, não tinha porque ir para a FAS”. Ele conta que por causa da resistência em não querer ir tomar banho na Fundação, acionaram a polícia. “Chamaram a GCM e no local tinha eu mais uns cinco moradores de rua. Ao invés deles chegarem com respeito, ‘desceram a borracha’. Encostou, todo mundo na parede e deram choque nos ‘piá’”, denunciou Michael, e disse que o caso aconteceu há um ano. Os moradores de rua são abordados seja por lojistas ou policiais.“Geralmente a Polícia não deixa você se deitar em algum lugar. Expulsa do local, se não sair é espancado. Ir para albergue é muita dificuldade, demora MP do PR abre as portas Em Curitiba, o Ministério Público (MP) do Estado possui uma Promotoria de Direitos Constitucionais, que tem como objetivo identificar vários grupos que são marcados pela inviabilidade causada pela violação de direitos. “Nisso tivemos mais proximidades com as pessoas em situação de rua, a partir de reclamações que chegavam ao MP”, contou o Promotor de Justiça, Marcos Bittencourt Fowler. A aproximação com a rua aconteceu por meio de um voluntário do Resgate Social, em 2007, que foi até o MP e fez uma série de denúncias sobre o funcionamento dos serviços socioassistenciais da Prefeitura para os moradores de rua. Com isso, foi aberto um processo administrativo para apurar. “Essa foi a primeira aproximação do MP com esse público”, explicou a assistente social do Centro de Apoio das Promotorias de Justiça e dos Direitos Constitucionais do MP de Curitiba, Sandra Mancino. Ação do MP Quando envolve agressão, as denúncias são encaminhadas para a justiça criminal. O promotor conta que existem já vários processos no Juizado Criminal de Curitiba. Existem investigações que são objeto de inquérito policial e estão em andamento. “A gente tenta dar resposta ao caso individual, mas também trabalha com a direção e os órgãos públicos responsáveis por essa política para evitar a disseminação da prática de mau atendimento ou violência. A gente tenta negociar para evitar repetição”, concluiu o promotor Marcos Bittencourt. muito para entrar e para sair”, contou Gilmar Aparecido Freitas, curitibano, oito anos morador de rua. Droga da rua Michael Leandro Ferreira, curitibano de 26 anos, há um ano estava na rua por causa das drogas. Ele disse que pela dependência química do crack, a família não confia mais nele e por isso foi buscar refúgio nas ruas. Estava em tratamento e teve “recaída”. De acordo com ele, a droga está nas ruas e é impossível viver sem ela. “Quem mora na rua, não tem como não usar drogas porque se fala muito dela”, relatou Michael. Indiferença “Os curitibanos nem olham na sua cara”, contou Michael Ferreira. Pela experiência que vivencia, ele considera que para a população em Curitiba o morador de rua é considerado um lixo. “Você não é considerado pelo próprio conterrâneo como um ser humano. Você abre a boca para pedir um pão, não te olham nem na cara. Eu acho que eles pensam que, quem está na rua é lixo”, contou indignado. Gilmar Aparecido disse que a Prefeitura deveria construir mais um albergue e considera o único que existe uma “porcaria”. Fala que era preciso construir mais um enorme. Mas, considerando o mundial de futebol de 2014, em que Curitiba será uma das sedes, faz uma previsão: “É capaz de melhorarem só por causa da Copa”. “Organizar é o nosso desafio” Sandra Mancino é assistente social do Centro de Apoio das Promotorias de justiça e dos Direitos Constitucionais do Ministério Público (MP) do Paraná. Contribui com organização do Movimento Nacional de População de Rua em Curitiba. O Trecheiro: Que denúncias chegam ao MP? “As principais estão relacionadas à violência física causada pelas abordagens nas ruas e do Resgate Social”. O Trecheiro: Existe rede socioassistencial que atenda de forma diferenciada? “Não. Para alguns que conseguem emprego, por exemplo, falta uma rede social. O que acontece é que eles ficam no albergue com o público que chega à noite alcoolizado. Psicologicamente, fica muito difícil de segurar o entusiasmo da saída”. O Trecheiro: Qual a sua avaliação dos serviços socioassistenciais em Curitiba? “Desde 2007, temos feito reuniões com o governo municipal para ampliar os serviços. Os próprios técnicos do albergue reconhecem que esse serviço deveria ser, apenas, porta de entrada mas, é o único programa que atende as pessoas em situação de rua. Temos insistido e o município está programando fazer algumas unidades regionalizadas do CREAS e construir redes solidárias de atendimentos sob a responsabilidade de ONGs”. O Trecheiro: Quais sãos as dificuldades para a mobilização da população de rua? “São pessoas com bastante dificuldade de organizar a própria vida. Participar de um movimento de luta não é algo fácil, exige renúncias. O morador de rua tem uma luta diária. Lutam para comer hoje e não amanhã. E pensar que ele pode se organizar é nosso desafio”.

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  • O Trecheiro O Trecheiro Notícias do Povo da Rua

    Ano XIX Agosto 2010 - Nº 190

    ImpressO

    Rede Rua de Comunicação - Rua Sampaio Moreira, 110 – Casa 9 – Brás – 03008–010 São Paulo SP – Fone - 3227-8683 - 3311-6642 - [email protected]

    Fotos: Fabiano Viana/Rede Rua

    Conhecida como cidade “ecologicamente correta”, por ter uma população “educada” para a separação do lixo e em não jogar qualquer tipo de sujeira na rua, Curitiba é vista como Capital Social e reconhecida, internacionalmente, ela preocupação com o meio ambiente. Mas, nem tudo são flores, apesar das ruas da cidade com os singelos corredores floridos. Lá existem 2.773 pessoas morando em situação de rua. É um cenário crescente

    Fabiano Viana

    Em Curitiba,

    Moradores de rua de Curitiba contam sobre a truculência da polícia, as drogas e a indiferença dos curitibanos.

    “Nem olham na sua cara”

    e que se mistura com as flores, a impecável limpeza e a falta de uma rede socioassistencial.

    Truculência O jovem Michael denunciou que um dia dormia embaixo do Viaduto da Estação Capanema, conhecido com “Viaduto da Anaconda” e foi acordado pela equipe da Fundação de Assistência Social (FAS) que queria levá-lo para tomar banho. “Eles nem oferecem café lá, não adianta nada, preferi ficar dormindo, já tinha ali meu café

    da manhã, não tinha porque ir para a FAS”. Ele conta que por causa da resistência em não querer ir tomar banho na Fundação, acionaram a polícia. “Chamaram a GCM e no local tinha eu mais uns cinco moradores de rua. Ao invés deles chegarem com respeito, ‘desceram a borracha’. Encostou, todo mundo na parede e deram choque nos ‘piá’”, denunciou Michael, e disse que o caso aconteceu há um ano.

    Os moradores de rua são abordados seja por lojistas ou policiais.“Geralmente a Polícia não deixa você se deitar em algum lugar. Expulsa do local, se não sair é espancado. Ir para albergue é muita dificuldade, demora

    MP do PR abre as portasEm Curitiba, o Ministério

    Público (MP) do Estado possui uma Promotoria de Direitos Constitucionais, que tem como objetivo identificar vários grupos que são marcados pela inviabilidade causada pela violação de direitos. “Nisso tivemos mais proximidades com as pessoas em situação de rua, a partir de reclamações que chegavam ao MP”, contou o Promotor de Justiça, Marcos Bittencourt Fowler.A aproximação com a rua aconteceu por meio de um voluntário do Resgate Social, em 2007, que foi até o MP e fez uma série de denúncias sobre o funcionamento dos serviços socioassistenciais da Prefeitura para os moradores de rua. Com isso, foi aberto um processo administrativo para apurar. “Essa foi a primeira aproximação do MP com esse público”, explicou a assistente

    social do Centro de Apoio das Promotorias de Justiça e dos Direitos Constitucionais do MP de Curitiba, Sandra Mancino.

    Ação do MPQuando envolve agressão, as denúncias são encaminhadas para a justiça criminal. O promotor conta que existem já vários processos no Juizado Criminal de Curitiba. Existem investigações que são objeto de inquérito policial e estão em andamento. “A gente tenta dar resposta ao caso individual, mas também trabalha com a direção e os órgãos públicos responsáveis por essa política para evitar a disseminação da prática de mau atendimento ou violência. A gente tenta negociar para evitar repetição”, concluiu o promotor Marcos Bittencourt.

    muito para entrar e para sair”, contou Gilmar Aparecido Freitas, curitibano, oito anos morador de rua.

    Droga da ruaMichael Leandro Ferreira, curitibano de 26 anos, há um

    ano estava na rua por causa das drogas. Ele disse que pela dependência química do crack, a família não confia mais nele e por isso foi buscar refúgio nas ruas. Estava em tratamento e teve “recaída”. De acordo com ele, a droga está nas ruas e é impossível viver sem ela. “Quem mora na rua, não tem como não usar drogas porque se fala muito dela”, relatou Michael.

    Indiferença “Os curitibanos nem olham na sua cara”, contou Michael Ferreira. Pela experiência que vivencia, ele considera que para a população em Curitiba o morador de rua é considerado um lixo. “Você não é considerado pelo próprio conterrâneo como um ser humano. Você abre a boca para pedir um pão, não te olham nem na cara. Eu acho que eles pensam que, quem está na rua é lixo”, contou indignado.

    Gilmar Aparecido disse que a Prefeitura deveria construir mais um albergue e considera o único que existe uma “porcaria”. Fala que era preciso construir mais um enorme. Mas, considerando o mundial de futebol de 2014, em que Curitiba será uma das sedes, faz uma previsão: “É capaz de melhorarem só por causa da Copa”.

    “Organizar é o nosso desafio”Sandra Mancino é assistente

    social do Centro de Apoio das Promotorias de justiça e dos Direitos Constitucionais do Ministério Público (MP) do Paraná. Contribui com organização do Movimento Nacional de População de Rua em Curitiba.

    O Trecheiro: Que denúncias chegam ao MP?

    “As principais estão relacionadas à violência física causada pelas abordagens nas ruas e do Resgate Social”.

    O Trecheiro: Existe rede socioassistencial que atenda de forma diferenciada?

    “Não. Para alguns que conseguem emprego, por exemplo, falta uma rede social. O que acontece é que eles ficam no albergue com o público que chega à noite alcoolizado. Psicologicamente, fica muito difícil de segurar o entusiasmo da saída”.

    O Trecheiro: Qual a sua avaliação dos serviços

    socioassistenciais em Curitiba? “Desde 2007, temos feito

    reuniões com o governo municipal para ampliar os serviços. Os próprios técnicos do albergue reconhecem que esse serviço deveria ser, apenas, porta de entrada mas, é o único programa que atende as pessoas em situação de rua. Temos insistido e o município está programando fazer algumas unidades regionalizadas do CREAS e construir redes solidárias

    de atendimentos sob a responsabilidade de ONGs”.

    O Trecheiro: Quais sãos as dificuldades para a mobilização da população de rua?

    “São pessoas com bastante dificuldade de organizar a própria vida. Participar de um movimento de luta não é algo fácil, exige renúncias. O morador de rua tem uma luta diária. Lutam para comer hoje e não amanhã. E pensar que ele pode se organizar é nosso desafio”.

  • Agosto de 2010página 2 O Trecheiro

    O Trecheiro Notícias do Povo da Rua

    Rua Sampaio Moreira,110 - Casa 9 - Brás - 03008-010 - São Paulo - SP - Fone: (11) 3227-8683 3311-6642 - Fax: 3313-5735 - www.rederua.org.br - E-mail: [email protected]

    REDE RUA DE COMUNICAÇÃO

    Conselho editorial:Arlindo Dias editorAlderon CostaMTB: 049861/0157

    equipe de redação: Alderon CostaCleisa RosaFabiano Viana Maria Carolina FerroRenata Bessi

    revisão:Cleisa Rosa

    FotograFia: Alderon Costa diagramação: Fabiano Viana

    ApoioArgemiro Almeida Andreza do Carmo Karina C. AragãoVagner Carvalho

    impressão: Forma Certa5 mil exemplares

    Por que viver nas ruas e em albergues?*

    EDITORIAL

    Nasci em 23 de dezembro de 1980, tenho 29 anos, sou pai de três filhos e vou contar um pouco da minha história.

    Pouco tempo depois que nasci, fui morar com meus avós paternos, pois meus pais havia se separado. Com 5 anos de idade, minha avó, Maria Jandira, veio a falecer e meu avô entrou em depressão e acabou sua vida naquele momento. Assim conheci meus avós maternos e passei a morar definitivamente com eles. Conheci meu outro irmão mais velho e minha mãe. Foi difícil essa fase.

    Aos 8 anos, passei a ir à escola. Lembro-me até o nome: Escola de Primeiro Grau João Ribeiro Ramos, em Sobral, Ceará. No ano seguinte, mudamos de casa, e eu mudei de escola também. Cursei o antigo ginásio, até a 7ª série. Em 1999, acabei interrompendo os estudos por causa de problemas pessoais familiares.

    No ano seguinte, tomei uma decisão que iria mudar minha vida. Quebrei todos os laços com minha família, pois já estava cansado de tantas desavenças. Conheci uma mulher que iria mudar minha vida, a Adriana, uma pessoa ciumenta. Tão brava que parecia siri numa lata. Nesse ano, também, fui trabalhar numa empresa multinacional, a Grendene Calçados, na cidade de Sobral, onde logo fui demitido por causa de baixa produção da empresa.

    Com a demissão passei por dificuldade financeira.e quase me separei por causa disso. Eu não gostava que minha mulher trabalhasse e sempre dizia que era obrigação só minha. Ainda em 2001, consegui um trabalho de garçon que foi dando para levar.

    Vamos refletir sobre as medidas que o poder público e a sociedade vêm adotando com as pessoas em situação de rua, em especial, o que foi retratado pela reportagem do O Estado de S. Paulo, intitulada “Paulista se blinda contra morador de rua”, de 8 de agosto de 2010. A matéria diz respeito à migração forçada das pessoas em situação de rua do centro da cidade para a Avenida Paulista e à instalação de paredes de vidro em calçadas para isolar fachadas, marquises e jardins pelos prédios da avenida.

    Qual a efetividade dessas medidas? Expulsar as pessoas do Centro, jogar água, colocar a GCM para “incomodar” essas pessoas, abrir tendas como espaços de “refugiados” ou fechar estas marquises resolvem? O que se pode propor como soluções para esse conflito?

    De um lado, comerciantes e moradores reclamam de constrangimentos causados pelo aumento de pessoas morando nas calçadas, marquises, baixos de viadutos, enfim, morando nos vãos da cidade. Por outro, vê-se inúmeras pessoas que têm a rua como sua única possibilidade de morar e de sobreviver e, muitos, encontraram nelas o seu modo de vida.

    No meio disso, o poder público municipal, organizações sociais e igrejas trabalham na criação de programas e projetos para dar conta dessa complexa realidade multifacetada. O que está dando errado nessas ações? Onde a sociedade pode contribuir? Como, podemos encarar essa realidade que tanto nos comove, incomoda, desafia e impõe uma atitude humanizada?

    Moradores de rua, população em situação de rua, o nome não importa desde que sejam vistas como pessoas. Essa pode ser uma profunda mudança que a sociedade e o poder público devem fazer. Ver naqueles que estão hoje em situação de rua, uma pessoa, com história, vínculos familiares, com conflitos e traumas que levam tempo para serem elaborados. Eles são frutos da profunda concentração de renda, de terra e de saber responsáveis pela imensa desigualdade social brasileira.

    O caminho às ruas não pode ser considerado como opção. Desemprego, falta de condições de pagar moradia, problemas de saúde, conflitos familiares e falta de perspectiva são alguns dos motivos principais pelos quais levam pessoas às ruas. Estando nas ruas se instalam e criam vínculos que podem impor condições definitivas para que não saiam mais delas.

    As ações do poder público municipal precisam ser integradas e diferenciadas que levem em consideração toda a complexidade e heterogeneidade dessa população. Pensar ações de expulsão por meio da segurança pública não é o melhor caminho porque traz um aspecto jurídico, transfere o problema e reforça a cultura da permanência das ruas, além do desrespeito aos direitos humanos.

    Um dos caminhos que as organizações sociais vêm apontando é a articulação e planejamento dos vários setores do poder público, na efetivação de políticas públicas ligadas à saúde, habitação, trabalho e assistência social, dentre outras.

    Outra idéia são os Centros de Referências Especializados para a População de Rua como porta de entrada na rede socioassistencial do município, além de programas preventivos para que as pessoas tenham outras alternativas. A rede de proteção social pode e deve funcionar para aqueles que estão no limite da situação de rua.

    Por último, uma solução profunda, no âmbito nacional, tem a ver com a geração de empregos, mudanças na política econômica, habitacional, educacional e de saúde. A solução desse conflito passa por transformações na estrutura da sociedade.

    * Com pequena adaptação, este texto foi elaborado como resposta à reportagem do O Estado de S. Paulo, de 8/5/2010, no caderno Cidades/Metrópole, p. C9.

    Em 2002, foi um ano que me marcou para sempre e não foi pelo penta da seleção brasileira, mas sim pelo nascimento de meu primeiro filho, Ivano. Estava morando com uma mulher que me valorizava, fui pai pela primeira vez. Eta muleque! É meu filho! E para completar, a Grendene me chamou de volta para trabalhar.

    Três anos depois comprei minha casa com muito suor e esforço. Em agosto desse ano nasceu minha filha Ivana Keyla, a gatinha mais linda da minha vida. Pouco tempo depois, estava já ficando chateado com minha mulher por causa do ciúme doentio dela e acabei fazendo besteiras, como farras e mulheres que resultaram na separação.

    No ano de 2006, conheci Ana Maria, com quem passei a viver. Ela trabalhava e era uma mulher cheia de opiniões. Ela odiava quando ia ver meus filhos e sem falar que suas amigas falavam mal de mim. Em 2007, estava sem trabalho, mantendo contato com os filhos e esperando a vinda de Geovanna Yngrid, minha primeira filha com Ana. Pensava que os problemas com as mulheres iriam parar, mas estava enganado. As dificuldades de relacionamento

    Pedro Paulo Barbosa de Sousa

    só aumentavam. Tomei uma decisão de ir embora de Sobral.

    Em dezembro de 2008, embarquei em um sonho chamado recomeço de vida e mudei para Fortaleza. Cheguei com a cara e a coragem. Conseguir um trabalho fixo, mas acabei não tendo êxito. Resultado: fui morar na rua. Fiquei de janeiro a abril de 2009, dormindo no papelão e debaixo de marquises até que uns anjos apareceram: Rodrigo, Sílvia e Cristiano. Todos eles funcionários do Centro de Apoio à População de Rua (CAPR) da prefeitura de Fortaleza. Eles me abordaram e disseram de um espaço em que eu poderia passar o dia, com direito a banho, alimentação e lavagem de roupas. Nesse espaço, descobri que existia uma casa nas proximidades que acolhiam pessoas, logo algo falou dentro de mim: “Vai atrás de saber disso, não pode deixar essa chance sumir”.

    Nessa casa tenho acompanhamento espiritual, alimentação e todos me tratam como gente. Estou falando da casa da Comunidade Shalom, que agora se chama Casa São Francisco.

    Em abril de 2010, recebi um convite para entrar no Movimento Nacional População de Rua (MNPR). No mesmo mês, ocorreu um seminário, onde fui o apresentador do evento por três dias. Depois fui eleito representante junto ao MNPR dessa galera tão sofrida de Fortaleza.

    Em 12 de julho de 2010, estou contando minha vida para quem interessar saber, não para aparecer, mas para mostrar que sou humano.

    Estou cansado de viver por nada, mas quero lutar e morrer por alguma coisa. Chega dessa mesmice!

    Fotos: Alderon Costa/Rede Rua

    VIDA NO TREChOMinha história de vida

    Debate políticocom os candidatos

    ao governo do Estado de São Paulo

    Dia: 9 de setembro de 2010Local: Centro Franciscanos de Reinserção Social Rua Riachuelo, 268, Centro de São Paulo.

  • Agosto de 2010página 3 O Trecheiro

    DIRETO DA RUA

    Nos dias 23 e 24 de julho de 2010, no Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores (CEPAT) em Curitiba, foi realizado o Seminário da População em Situação de Rua – Região Sul, com cerca de 70 participantes. Estiveram presentes pessoas que estão vivendo nas ruas das cidades de Curitiba, Londrina e Paranaguá do estado do Paraná e de Porto Alegre e vários parceiros dessas localidades, comprometidos com o fortalecimento do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR),

    Dr. Fernando Tadeu David, assessor da Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Sociais (Cimos) do Ministério Público do estado de Minas Gerais (MPMG), reafirmou os compromissos pessoais e do MP de Minas Gerais, contra a violação dos direitos humanos. “Este encontro contribui para o

    Articulação da Região Sul

    Cleisa Rosa

    TrecheirinhasAudiência pública no Condepe,

    Assessor da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo declarou que é preciso apurar e discutir os casos de violência policial ocorridos no Estado de São Paulo. Nas palavras dele: “Os policiais têm que atirar de qualquer jeito quando veem um suspeito, já que nesses casos estariam agindo em defesa da sociedade”.

    9ª edição do Festival Lixo e Cidadania No período de 16 a 21 de agosto, em Belo Horizonte, acontece

    mais uma edição desse festival que tem por objetivo refletir a relação entre preservação ambiental, justiça social e desenvolvimento humano, mobilizando diferentes setores da sociedade a fim de assegurar a inclusão produtiva dos catadores de material reciclável e da população de rua.

    Qualificação profissionalO Ministério do Trabalho e Emprego anunciou a realização de um

    Plano Nacional de Qualificação (PlanSeQ) para a população em situação de rua. A proposta inicial é qualificar 1.000 pessoas em oito capitais brasileiras. A data para a realização do PlanSeQ ainda não foi definida.

    Questionário do MNPR sobre trabalhoNo mês de setembro, será aplicado um questionário para,

    aproximadamente, 120 pessoas em situação de rua para conhecer o significado do trabalho para essas pessoas e quais atividades gostariam de se dedicar. Nessa atividade, o MNPR conta com organizações parceiras e profissionais ligados ao Projeto de Capacitação e Fortalecimento da População em Situação de Rua.

    GCMs sob pressãoGuardas-civis metropolitanos em São Paulo podem ser punidos caso

    não cumpram ordem de retirar moradores de rua do centro da cidade. A notícia foi dada pelo Portal G1, dia 25 de julho. A reportagem conseguiu o depoimento de dois guardas. Segundo eles, não há condições para que realizem tal tarefa. A assessoria da Secretaria Municipal da Assistência Social nega que não haja apoio para ações dos GCMs. Segundo a pasta, tanto agentes da secretaria quanto agentes da Secretaria Municipal da Saúde trabalham em conjunto com a Guarda Civil desde 2009. Eles saem em dupla para atuar nas abordagens, afirma a secretaria.

    “Do centro não me retiro” Aconteceu no dia 10 de agosto em Fortaleza o seminário “Do centro

    não me retiro - possibilidades de habitação de interesse social em prédios vazios e/ou subutilizados”, uma realização do Cearah Periferia – Construção da Cidadania, com parceria do Instituto Pólis e Movimento Nacional da População de Rua. Durante o seminário foi defendido que a moradia seja efetivada no centro da capital, uma vez que Fortaleza possui um déficit habitacional de 77 mil moradias e convive com 690 imóveis vazios apenas no centro da cidade.

    Reta finalO Projeto de Capacitação e Fortalecimento da População em

    Situação de Rua está em sua fase final. Dos dez encontros programados, entre seminários e fóruns, oito já aconteceram nos seguintes estados: Bahia, Ceará, Rio de Janeiro, Paraná, Minas Gerais, Rio Grande do Sul. Entre 25 e 27 de agosto acontecem o fórum e seminário em Brasília, fechando o ciclo. O projeto teve início em novembro de 2009 e está programado para terminar no final de agosto.

    O Presidente Lula decreta fim dos lixões No dia 2 de agosto de 2010, o Presidente Lula sancionou a lei da

    Política Nacional de Resíduos Sólidos. Dentre outros artigos, a lei proíbe ainda a criação de lixões e todas as prefeituras terão que construir aterros sanitários, ambientalmente sustentáveis, onde só poderão ser depositados resíduos sem qualquer possibilidade de reaproveitamento.

    Cleisa Rosa/Rede Rua Cleisa Rosa com a colaboração de Alderon Costa, Maria Carolina Ferro e Renata Bessi.

    Inspirado no Portal do Futuro sem futuro, nome de um albergue, a convocação geral da maloquerada toda. Agora é sério, dia 23/08 vamos para Brasília saindo da Casa de Oração. Mas não é um passeio. Nosso futuro está em jogo.

    Acabada a afetação geral da Copa do Mundo de Futebol, no país da corrupção em ano de eleição, gostaria de falar com um índio qualquer, se não der, pode ser o índio vice do tio Zé-moto-Serra.

    Por que não ‘OCAS’? Porque já são: maloka, gaiada, mocó, barraco, tenda, barraca. Improvisadas direto no “cimento das calçadas”. Não no asfalto das ruas. Quero quebrar este pré-conceito.

    Salvador d’acolá, em situação de rua

    Dia 11 de agosto houve manifestação do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis em frente à Câmara Municipal em defesa da reciclagem e contra a incineração: “Deus Recicla e o Diabo Incinera“.

    Alderon Costa/Rede Rua

    Alderon Costa/Rede Rua

    fortalecimento do movimento e a troca de experiências com outros grupos articula a luta por políticas públicas“. Veridiana Machado, educadora social que trabalha com a população em situação de vulnerabilidade social em Porto Alegre disse que “trata-se de um momento histórico porque estamos reunidos para pensar a articulação da Região Sul com temas importantes ligados ao fortalecimento do movimento para que consiga ocupar os espaços políticos“.

    Dr. Alberto Velozzo Machado, promotor de Justica no Paraná, disse das responsabilidades do MP frente às violações dos direitos humanos. “Para o MP uma pessoa só já justifica a ação de defesa de seus direitos, mas espera-se que mais e mais pessoas sejam ouvidas para que este movimento ganhe legitimidade e visibilidade, dando um perfil ao movimento, como organização social“.

    A imprensa local esteve presente e divulgou o evento,

    inclusive em programa televisionado dando visibilidade ao evento e às violações dos direitos das pessoas em situação de rua. Leonildo falou que “essa ampla visibilidade dada pelos meios de comunicação aumenta a credibilidade do movimento e das pessoas em situação de rua. Além disso. A criação do fórum local teve um papel importante na articulação entre as pessoas, ampliando as parcerias“, finalizou Leonildo.

    Sérgo Carvalho Borges do Movimento Aquarela da População de Rua (MAPR), atuante em Porto Alegre e aliado do MNPR, trouxe uma comitiva de 40 pessoas convidadas pelo MNPR e pelo Projeto para estarem presentes ao Seminário. Sérgio disse que o seminário apontou “uma luz no túnel, que apesar de ser escuro é preciso ver ao final dele, as políticas públicas como ferramentas. As pessoas em situação de rua não têm apenas deveres, mas também direitos.

    Li de um físico que é mais fácil quebrar um átomo do que quebrar um pré-conceito.

    Quanto mais informar nossa sociedade equivocada que a rua era há mais de 100 anos atrás um bom lugar para pedestres. Agora é terra de gigantes, que trocam vidas por diamantes.

    Não. O trabalho não enobrece o homem. Quem nasce com sangue azul... pode amarelar. Ainda mais se cair na rua paulistana. Muita geografia pra pouca iniciativa. Sem saber quando e se teremos acabativa (contrário de inciativa). Pode não levantar mais vivo. Chico doce na moleira.

    Isso é que é equilíbrio ético!

  • Agosto de 2010 página 4 O Trecheiro

    “Direitos do Morador de Rua um guia na luta pela dignidade e cidadania”

    Depois de quase dois anos de trabalho conjunto entre organizações e pessoas em situação de rua, foi lançada a cartilha de direitos humanos da população de rua, no dia 9 de agosto de 2010, em Belo Horizonte, numa ampla varanda, localizada no andar superior do prédio da Procuradoria-Geral da Justiça. Esse espaço

    público se transformou numa grande festa, alegre, acolhedora e musical.

    A apresentação do auto do “Boi Esperança” deu a dimensão da importância desse evento aberto festivamente por pessoas com trajetória de rua e por catadores de materiais recicláveis. A realidade se misturava, por assim dizer, a um sonho: a esperança de que direitos e felicidade estejam ao alcance de

    da cartilha. Segundo Dimir, educação e arte têm um poder transformador na vida das pessoas”.

    Para Anita Gomes dos Santos do MNPR “a cartilha é um grande marco porque através desse documento poderemos comprovar que somos cidadãos respeitáveis e com o MP abraçando essa causa, começamos a perceber que nossos direitos estão sendo reconhecidos como cidadãos brasileiros que somos”.

    “Esse é um momento de visibilidade porque a cartilha atinge a sociedade para que ela veja a situação

    Alderon Costa

    A população em situação de rua e a Polícia Civil de São Paulo realizaram, no dia 6 de agosto, o I Seminário da População de Rua e a Polícia Civil com o objetivo de promover o diálogo e a troca de experiência sobre a realidade das pessoas em situação de rua.

    O encontro foi na Academia de Polícia Civil (Acadepol) e contou com a presença do diretor da academia, Dr. Adilson José Vieira Pinto que reconhece que existem policiais que sabem atender bem e serem “solidários” com ricos e bonitos, mas que, também, terão que aprender a tratar com solidariedade os pobres e feios. “Temos que respeitar as diferenças e cumprir nosso papel, que é a defesa das instituições democráticas”, declarou Vieira.

    O Coordenador do Centro de Direitos Humanos da Acadepol, Dr. Tabajara Novazzi Pinto, defendeu que o policial precisa voltar seu olhar para a realidade daqueles que estão em situação de rua. “Nós fomos anestesiados pela ditadura, que nos disse que somos só repressão e nós acreditamos nisso”, declarou Novazzi.

    Para Anderson Lopes Miranda, do MNPR, a população de rua não é caso de polícia e defendeu no seminário que se acabe com a lei da vadiagem que tem criminalizado a população de rua. “Nós não somos caso de policia, nós somos a omissão do Estado”, conclui Anderson.

    A pesquisadora da Fundação Instituto de

    Pesquisas Econômicas (FIPE), Sílvia Schor, apresentou o perfil da população de rua identificado na última pesquisa da cidade de São Paulo no final de 2009.

    Padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, agradeceu a sensibilidade da polícia e destacou a importância de harmonizar as visões e participação da Guarda Metropolitana de Guarulhos e Osasco que estavam com, aproximadamente, 30 membros. “A população precisa conhecer esses dados (pesquisa apresentada), porque o morador de rua está no topo das queixas nos Conselhos de Segurança Comunitários (Consegs)”, afirmou Julio.

    Cleisa M. M. Rosa, representante do Fórum Permanente de Acompanhamento das Políticas Públicas para População em Situação de Rua, apresentou o histórico do aumento da população de rua e afirmou que, a situação em 1991 já apontava que 85% da população trabalhava para sobreviver e apenas 15% vivia do pedido. “Se ele não tiver um projeto de reconstrução de vida não deixará a rua, porque quanto mais o tempo passa, mais vínculos vão sendo criando”.

    O assessor especial da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Dr. Ivair Augusto Alves dos Santos, ressalta o clima de cooperação das polícias e a abertura da direção da academia. “A participação propositiva da direção da Acadepol, que não só aceitou fazer este evento, mas abriu a possibilidade de fazer o seminário em todas as regiões de São

    Paulo”, afirmou Ivair. Valter Machado, que

    está em situação de rua, participou e ficou contente com a notícia de que a população de rua vai fazer parte do currículo da formação da Polícia Civil. “É um avanço”, concluiu Machado. Já para Átila,

    do MNPR, o evento foi um marco e foi produtivo para todos, inclusive para os segmentos da segurança pública.

    O Seminário contou, ainda, com a participação da Dra. Jacinta de Fátima Senna da Silva do Ministério da Saúde, coordenadora do Comitê

    “Não somos caso de polícia”

    Fotos: Alderon Costa/Rede Rua

    todos e nas palavras de Alexandre Camargo Bella, artista que se apresentou, “esperança de que todos tenham casa para morar, comida para comer, caderno para estudar e muita, muita e muita folia de boi porque o amor que se planta agora, ele vem depois”.

    Essa intervenção cultural foi o resultado da união de três grupos; um deles, o Karecoragem, constituído a partir de oficinas realizadas, em 2004, pela Pastoral de Rua de Belo Horizonte com catadores de materiais recicláveis da Asmare. Outro grupo, a Oficina de Cultura Popular Brasileira, ligada à Prefeitura de Belo Horizonte dirigida pela atriz e educadora social Paula Nunes. Esses dois grupos e outro denominado “Para Dançar”, dirigido por Dimir Viana, educador e diretor de teatro participaram em vários momentos do lançamento

    L e a n d r o A l b a n o Trindade é catador, ar t is ta, mobi l izador social e integra o grupo Karecoragem.

    Dr. Tabajara e Anderson entregam camiseta do MNPR a um representante da GCM

    da Saúde da População em Situação de Rua, que apresentou o recorte da saúde como um direito, um dever do Estado e da sociedade. “Aqui foram feitas propostas que podem alterar o desenho do aparelho do Estado em relação à ação das polícias no Brasil”, avaliou Senna.

    de rua com outros olhos e, também, o poder público sensibilizando-o para ações apropriadas à realidade da população de rua”, disse Sérgio Carvalho Borges do Movimento Aquarela da População de Rua de Porto Alegre, que esteve presente ao evento.

    Segundo Samuel Rodrigues do MNPR, “essa cartilha é, pra nós da rua, uma grande vitória, uma grande conquista, uma coisa bem palpável, concreta, pela luta, pela articulação, pelas pessoas que se envolveram na construção dela, daí ela ter esse valor todo!Cleisa Rosa

    Cleisa Rosa/Rede Rua