o tráfico de escravos, a pressão inglesa e a lei de 1831

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    O TRFICO DE ESCRAVOS, A PRESSO INGLESA E A LEI DE 1831

    Joo Daniel Antunes Cardoso do Lago Carvalho1

    RESUMOA Lei de 7 de novembro de 1831, tambm conhecida como Lei Feij-Barbacena, foicriada com o intuito de extinguir a entrada de novos escravos em territrio brasileiro, seconstituindo na primeira norma nacional neste sentido. Ela tambm pode ser entendida a

    partir das relaes diplomticas entre a Gr-Bretanha e o Imprio do Brasil, visto quesuas origens se encontram j na Conveno Anglo-brasileira de 23 de novembro de1826, em que o governo brasileiro se comprometeu em tornar o comrcio de cativosuma atividade de pirataria em at trs anos, o que ocorreu em 13 de maro de 1827. Esteartigo um exame dos fatos que levaram a promulgao da norma antitrfico brasileira,enfatizando que ela pode ser considerada, no momento de sua criao, uma vitriadiplomtica do governo britnico com relao ao Brasil.

    Palavras-chave: Brasil; Inglaterra; Lei de 1831; Conveno de 1826; trfico deescravos.

    ABSTRACTThe Law of November 7, 1831, also known as "Lei Feij-Barbacena," was created inorder to extinguish the entry of new slaves in Brazil, constituting the first nationalstandard in this regard. It can also be understood from the diplomatic relations betweenBritain and the Empire of Brazil, since its origins lie already in the Anglo-BrazilianConvention of 23 November 1826, when the Brazilian government has pledged to makethe slave trade a pirate activity by up to three years, which occurred on March 13, 1827.This article is an examination of the facts that led to the promulgation of the standard

    Brazilian anti-trafficking, emphasizing that it can be considered, in the moment of itscreation, a diplomatic victory of the British government in relation to Brazil.

    Keywords: Brazil; England; Law of 1831; Convention of 1826; slave trade

    1Mestrando do programa de ps graduao em histria da UNIVERSO/RJ.

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    Introduo

    A Lei de 7 de novembro de 1831 foi a primeira norma brasileira a proibir aentrada de escravos africanos nos portos do Brasil. Conhecida tambm como Lei Feij-

    Barbacena, sua construo est inserida no contexto maior das relaes diplomticas

    entre o Imprio brasileiro e a Gr-Bretanha nas dcadas iniciais do sculo XIX. A vinda

    da famlia real para o Rio de Janeiro, em 1808; a independncia do Brasil perante

    Portugal, em 1822; e a promulgao da lei; tudo isso est, de alguma forma, conectado

    aos anseios britnicos de erradicao do trfico atlntico (BETHELL, 2002). O que se

    tentar a seguir demonstrar, atravs de alguns documentos alocados no ArquivoHistrico do Itamaraty, no Rio de Janeiro, e de uma bibliografia pertinente, que as

    presses externas vindas do governo britnico foram muito importantes para que a

    norma antitrfico fosse criada.

    A questo do trfico entre Inglaterra e Portugal

    No incio do sculo XIX, grande parte dos territrios da Europa j estava sob

    comando do general francs Napoleo Bonaparte. Mas havia dois pases que ainda no

    tinham se curvado. Um era a Inglaterra, grande potncia martima e comercial da poca

    e rival histrica dos franceses; o outro, um pequeno reino incrustado no litoral atlntico

    da Pennsula Ibrica. Era Portugal.

    Importante na era dos descobrimentos, o pas agora passava por uma situao um

    tanto constrangedora. Seu domnio na Amrica era o local economicamente mais

    vibrante de todo o imprio portugus no final do sculo XVIII (ARRUDA, 2008). Toda

    a riqueza ali produzida era baseada no sistema deplantations: grandes unidades que se

    especializavam em apenas um item cujo destino era o mercado exterior, notadamente o

    europeu. O trabalho era realizado por escravos importados da frica. Quando chegavam

    ao territrio luso-americano, eram empregados nos mais diversos ofcios dentro da

    cadeia produtiva desses bens de exportao. E a forma mais usual de se repor essa mo

    de obra era atravs do trfico atlntico (BRUM, 1996; FURTADO, 2007; PEREIRA,

    1986).

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    O comrcio de cativos africanos foi uma das atividades mais rentveis entre os

    sculos XVI e XIX. Isso pode ser compreendido pelo grande nmero africanosencarcerados que fizeram a travessia do Oceano Atlntico, apesar das dificuldades em

    se chegar a um montante preciso. Um exemplo est no livro Em Costas Negras, de

    Manolo Florentino. Nessa obra, o autor faz um grande debate historiogrfico para se

    tentar alcanar um nmero mais claro possvel de africanos que desembarcaram no

    porto do Rio de Janeiro entre o final do sculo XVIII e comeo do seguinte.

    Concluindo, ele chega ao nmero de 697.945 indivduos entre os anos de 1790 e 1830

    (FLORENTINO, 1997: 50). Para um perodo de quarenta anos apenas, j muito. Logo,podemos imaginar quantos milhes deles aportaram nesta terra, a grande maioria nunca

    mais podendo voltar para a frica.

    Mas, muitos podem se perguntar: o que tinha o trfico a ver com o avano

    napolenico na Europa e a sobrevivncia de Portugal? Como a Gr-Bretanha entrava

    nessa equao? E a Amrica portuguesa, ento colnia; que tinha a ver com isso?

    Alan Manchester, em seu livro Preeminncia inglesa no Brasil, expe com

    detalhes como foi a ascenso e a queda do domnio britnico sobre o Brasil,

    principalmente quanto poltica internacional, e para alicerar seus argumentos, faz um

    histrico da influncia do governo ingls sobre a sua ento metrpole, o Reino de

    Portugal. Inclusive, s para exemplificar o que aqui foi dito, segue uma citao do texto

    de Manchester sobre a deciso de D. Joo em se aliar a Inglaterra e vir para o Brasil.

    O prncipe regente fora forado a uma grande deciso: confiara sua pessoa eseus domnios Inglaterra, em circunstncias nas quais o representante danao britnica julgava poder autorizar a Inglaterra a estabelecer com oBrasil relaes de soberano e sdito.(MANCHESTER, 1973: 72)

    Ou seja; os ingleses j estavam preparados para cobrar a conta pela ajuda que seria

    dada quando D. Joo, ento regente portugus, decidisse sair de Portugal e levar seu

    governo para a Amrica; e sabiam exatamente o que iriam pedir.

    Ento, em 1808, ocorreu a transferncia da Corte portuguesa para o Brasil,

    escoltada por navios ingleses. Alguns autores mencionam que a mudana do centro do

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    imprio portugus para terras americanas j era um plano antigo, notadamente pensado

    por alguns governantes e intelectuais lusitanos desde o sculo XVII (LYRA, 1994).

    Porm, naquele momento, a invaso francesa trouxe tona esse plano, que sem o apoio

    do governo britnico, seria praticamente inexecutvel. E isso, segundo Lus Norton,

    apontava para uma nova direo:

    Por um lado, tornava inevitvel o aumento da dependncia de Portugal paracom a Inglaterra, aprofundando uma relao cujas bases j estavam fixadasdesde a assinatura do Tratado de Methuen, em 1703. Mas, por outro lado,abria a perspectiva de a Famlia Real no se submeter a Napoleo, e fazer doimenso territrio da colnia americana (Brasil) a sede de um verdadeiro

    imprio. (NORTON, 1979: 1)

    Como pode se ver D. Joo e seu governo no tinham muitas escolhas. E dentre

    tantas incertezas, havia uma verdade indubitvel: a Gr-Bretanha cobraria o seu preo

    pelo auxlio a Portugal, e parte dele seria a abolio do trfico de escravos africanos.

    Como afirma Beatriz Gallotti Mamigonian em sua tese de doutorado, os britnicos,

    principalmente depois de vencerem Napoleo e de acabarem com seu prprio trfico de

    escravos em 1807, consideravam seu pas um campeo da liberdade no mundo

    civilizado, ideologia que legitimava suas aes em uma campanha extensa e cara

    com vistas a impor a abolio do comrcio de cativos a outras naes

    (MAMIGONIAN, 2002: 11).

    Logo ao chegar ao Brasil, uma das primeiras medidas tomadas pelo regente

    lusitano foi a famosa abertura dos portos s naes amigas. bvio que naquele

    instante histrico, com a Europa tomada de assalto pelas tropas revolucionrias

    francesas, o nico amigo de Portugal era a Inglaterra. Era o fim do pacto colonial

    (DIAS, 2005; PRADO JNIOR, 1986).Nessas bases, o Reino portugus e a Gr-

    Bretanha firmaram os Tratados de 1810.

    No total, foram assinados dois tratados: um de Paz e Amizade, e outro de

    Comrcio e Navegao. O que mais interessa a este trabalho o segundo, pois nele

    que se inseriu um artigo sobre a questo do trfico de escravos. A querela sobre este

    ponto da conveno foi tamanha que D. Domingos de Sousa Coutinho, Conde de

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    Funchal e negociador do governo portugus em Londres, chegou a publicar um plano

    em 1814, onde estaria previsto que Portugal aboliria imediatamente o trfico de cativosse o governo ingls aceitasse anular os acordos de 1810, que estavam previstos para

    durar quinze anos (ALEXANDRE, 1993: 269-285). Mas sua tentativa foi em vo, j

    que a Corte no Rio de Janeiro achou por bem no entrar em conflitos com seus

    vassalos americanos, que tinham no comrcio de cativos uma das suas principais

    atividades comerciais, das quais o governo lusitano e a realeza tiravam muito proveito

    (PARRON, 2011: 48-49).

    Na Europa, Napoleo fora definitivamente derrotado e o Congresso de Vienavinha para restaurar, na medida do possvel, o equilbrio do sistema europeu de Estados

    do final do sculo XVIII. Portugal, como um dos interessados no assunto, mandou

    enviados para essa conveno. Nela, os governos lusitano e ingls firmaram um novo

    acordo, em 1815, versando melhor sobre alguns pontos nebulosos da carta de 1810.

    Um deles era o problema do trfico e sua regulamentao. Por esse novo convnio, o

    governo luso aceitou que o comrcio de escravos se tornasse ilegal ao norte da Linha do

    Equador, ficando as embarcaes de sua jurisdio restritas ao comrcio negreiro na

    costa africana mais ao sul. E para completar, em 1817 foi negociada a Conveno

    Adicional ao Tratado de 1815, onde foram melhor regulamentados dois pontos muito

    caros aos interesses britnicos: a formao das famosas e contraditrias comisses

    mistas em Serra Leoa e no Rio de Janeiro para julgar os crimes do trfico; e uma melhor

    organizao das reas lcitas para comerciar cativos.

    Com a independncia brasileira, em 1822, a Inglaterra passou a ter uma

    importante vantagem: no precisava mais da intermediao portuguesa para tratar com

    o Brasil. E isso pode comear a ser visto j na negociao do reconhecimento da

    independncia pelo governo lusitano devidamente intermediada pela Gr-Bretanha.

    Para ilustrar o peso da Inglaterra nessa questo, citemos, como exemplo, o historiador

    Charles Boxer. Em sua clssica obra O imprio martimo portugus, o autor faz a

    seguinte colocao: em parte devido interveno diplomtica britnica (ou

    chantagem, como alguns a denominam), o governo portugus reconheceu com

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    relutncia a independncia do Brasil em 1825 (BOXER, 2002: 214). A palavra

    chantagem parece ter sido um pouco exagerada, talvez por questes de traduo. Ogoverno portugus, enquanto um Estado soberano, no pode ser tachado dessa forma.

    Mas o cenrio montado desde os acordos de 1810 j o punha nessa situao complicada.

    Desde a transferncia da Corte lusitana para o Brasil, os interesses ingleses foram

    praticamente convergidos para as paragens americanas. Utilizando dados de Philip D.

    Curtin, o autor Jaime Rodrigues mostra que pelos portos brasileiros entraram cerca de

    38% do total de escravos que tinham o continente africano como origem, sendo o porto

    do Rio de Janeiro (sede da colnia, do reino portugus e, posteriormente, do Impriobrasileiro), a partir de meados do sculo XVIII at a metade do XIX, o local de maior

    importao dos cativos da frica (RODRIGUES, 2005: 29). Alm disso, muitos

    interesses estavam inseridos na complexa cadeia do comrcio de escravos: havia os

    traficantes; os negociantes locais na frica (pombeiros, governantes lusos e africanos);

    agentes nos portos africano e americano; os negociantes brasileiros que remetiam esses

    escravos para os mais longnquos sertes; os donos, compradores e senhores de

    escravos, alm do prprio governo, que tinha nessa atividade uma importante fonte de

    arrecadao fiscal (FERREIRA, 1997; RODRIGUES, 2005). No seria fcil para o

    governo britnico e seu corpo diplomtico empreender tal tarefa. A necessidade do novo

    Estado americano ter seu governo reconhecido na Europa e, notadamente, pela sua ex-

    metrpole, criou a oportunidade perfeita para que a Gr-Bretanha pusesse as suas

    melhores cartas na mesa.

    Assim, a partir dessa vontade do governo brasileiro de ser aceito como legtimo e

    de se negociar um acordo com Portugal para garantir a recm alcanada autonomia

    poltica, os ingleses foram direto ao ponto: no haveria nenhuma possibilidade de

    negociao sem uma contrapartida clara e evidente; esta seria a abolio do trfico. E

    assim foi feito, em 1826, com o aceite de uma conveno entre Brasil e Inglaterra que

    versava sobre o fim do comrcio de escravos. O que vale mais a pena ressaltar o

    carter de continuidade da poltica externa britnica para o novo Imprio com relao

    aquela levada a cabo sobre o Reino portugus. Neste ponto, afirmam Amado Cervo e

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    Clodoaldo Bueno:

    Os desgnios do governo ingls no Brasil poca da Independnciapermaneceram os mesmos de 1808, porque idntico era seu projeto desupremacia. So eles o comrcio favorecido, a reciprocidade fictcia,facilidades e privilgios para seus sditos, a extino do trfico de escravos,tudo a ser consentido politicamente, sem recurso fora, a cujo emprego atento se opusera. (CERVO; BUENO, 2008: 37)

    Como se pode ver, a situao em 1822 era parecida com a de 1808, e

    consequentemente com os Tratados da dcada de 1810. Isso no quer dizer que a

    dependncia brasileira com relao ao governo ingls tenha comeado em 1808 quando

    era uma colnia de Portugal. Como bem coloca Ilmar Rohloff de Mattos, o que ocorreu

    foi que o Brasil conseguiu sair do controle luso para cair numa nova preeminncia, a

    britnica (MATTOS, 2011). A situao que se encontrava o Imprio (e, por conseguinte,

    a sua classe dirigente), aps a Independncia, fazia necessria a restaurao do pacto

    colonial, agora sobre novas bases: seriam os interesses ingleses que fariam o papel do

    colonizador (a Cara da moeda recunhada), com a diferena de que a elite mercantil-

    escravocrata, notadamente aquela ligada produo de caf (a Coroa), sairia da

    condio de colono para se tornar cidado. Era uma transformao com continuidade

    (MATTOS, 2011: 48). Alm disso, isso se impe dentro da noo de sistema-mundode

    Immanuel Wallerstein. No sculo XIX, a Inglaterra se tornou o ator hegemnico no

    quadro da economia global, principalmente devido Revoluo Industrial e ao

    desenvolvido do comrcio martimo britnico. Nesse caso, as relaes anglo-brasileiras

    podem ser colocadas na perspectiva de dominao da periferia pelo centro

    (WALLERSTEIN, 2001). Essa relao seria de desigualdade, j que ao segundo grupo

    de pases caberia a produo de manufaturados, ficando aos outros a responsabilidade

    de abastecer de matrias-primas os Estados centrais. Essa estrutura contraditria

    reforaria a prpria dicotomia interna do capitalismo (capital-trabalho), formando

    ambas a prpria base do sistema mundial wallersteiniano (WALLERSTEIN, 2001: 60).

    um jeito de se pensar. Mas inegvel, de qualquer forma, que a questo da abolio

    do comrcio negreiro era central para a poltica externa da Gr-Bretanha, assim como

    era para o Brasil, que teria necessariamente que ceder, e o Tratado de 1826 a sntese

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    dessa situao; para os bretes, essa mesma conveno poderia ser considerada como

    uma grande vitria na poltica exterior.

    Brasil independente: como ficou a questo do trfico?

    Em 23 de novembro de 1826, foi assinado o to propalado Tratado, ou Conveno

    entre o Imprio do Brasil e a Gr-Bretanha para a abolio do trfico de escravos ,

    documento que foi a culminncia das pretenses da poltica externa inglesa para o

    Brasil. Segundo Marcello Basile, este acordo declarava que o comrcio interatlntico

    de escravos se tornaria ilegal trs anos aps a ratificao do acordo, o que ocorreu em13 de maro de 1827 (BASILE, 2000: 215). Isso daria pouco tempo para os

    participantes do trfico de escravos se organizarem para o fim dessa atividade.

    A conveno pode ser considerada uma prova da ascenso e do poder que tinha a

    Inglaterra sobre o governo brasileiro dentro da questo do trfico. E quando digo poder,

    este entendido no apenas com o uso da fora, como coloca Max Weber (WEBER,

    2009: 59-61), mas como um poder potencial, que a capacidade de determinar o

    comportamento dos outros (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2004: 936). A

    partir de suas aes diplomticas e de uma poltica externa bem-sucedida, a Gr-

    Bretanha conseguiu extrair do governo brasileiro o to sonhado fim do trfico de

    escravos, pelo menos no papel. Claro que o contexto poltico interno vivido pela ex-

    colnia lusitana no deve ser esquecido. A questo do trfico de escravos e do seu fim

    foi um dos muitos temas tratados no Parlamento Imperial desde a sua instalao, em

    1826. A assinatura do acordo internacional com a Inglaterra, com certeza, afetou o

    discurso dos parlamentares, visto que muitos representavam os interesses da elite

    escravocrata imperial, j que tudo girava em torno de um dos pressupostos bsicos do

    liberalismo, que era o direito propriedade; e o escravo era, talvez, o bem mais

    valioso que se poderia possuir no Brasil naquela poca. Como afirma Argemiro Eloy

    Gurgel, o principal receio que os deputados iriam ter quando da promulgao da Lei de

    1831 era exatamente o fim da garantia do direito de possuir (GURGEL, 2004: p. 23).

    Isso, de certa forma, pode ser exemplificado com a pouca ateno que foi dada ao

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    projeto apresentado pelo deputado Jos Clemente Pereira na sesso parlamentar de 18

    de maio de 1826 que tratava do fim do comrcio de escravatura. Mexer nessa questono era algo que interessasse elite brasileira da poca (ANAIS DA CMARA DOS

    DEPUTADOS). Mas a necessidade do Brasil ser reconhecido como um Estado

    independente era mais forte que qualquer questo interna, que s apareceria com mais

    fora durante o perodo regencial e a ascenso dos conservadores ao poder (MATTOS,

    2011; PARRON, 2011). E isso pode ser observado nos documentos levantados no

    Arquivo Histrico do Itamaraty. Vejamos.

    Em um ofcio remetido da legao brasileira em Londres para a Corte, datado de29 de novembro de 1825, Manoel Rodrigues Gameiro Pessoa, Baro e futuro Visconde

    de Itabaiana, escrevia sobre a negociao entre os governos brasileiro e ingls de um

    novo tratado comercial que viria a substituir aqueles assinados por Portugal em 1810.

    Li tambm com a devida ponderao tanto aquela parte do Despacho n 81,que respectiva negociao encetada para o ajuste de um Tratado deComrcio entre o Brasil e a Gr-Bretanha, como o Projeto a Tratadooferecido pelo Plenipotencirio Britnico, e o Contraprojeto apresentado porV. Ex., e seus colegas: e grande foi a minha surpresa, vendo no somente

    que a marcha seguida porSir

    Charles Stuart no combina com o que Mr.Canning disse-me haver-lhe traado, mas tambm, que ele pretendeobter do Governo Imperial maiores favores comerciais do que asRepblicas Americanas tm concedido ao Comrcio Britnico. Eu teria jrepresentado a Mr. Canning a inadmissibilidade de tal pretenso, se ele noestivesse ausente desta Corte; mas logo que voltar a Londres buscarei ter comele uma conferncia sobre este e outros objetos, e informarei a V. Ex. do quenela se passar. (ARQUIVO HISTRICO DO ITAMARATY, Mao 216/1/2)

    De fato, a relao entre Canning e Stuart no era mais to amistosa, j que o

    plenipotencirio ingls deixou de seguir as instrues do chefe do Foreign Office

    (FREITAS, 1958). Contudo, o que chama mais a ateno era o fato do governo inglsexigir do Brasil mais do que as Repblicas Americanas tm concedido ao Comrcio

    Britnico. Neste caso, no se pode deixar de lado a conjuntura regional americana,

    principalmente os conflitos e tenses existentes na regio do Rio da Prata.

    Segundo Amado Cervo e Clodoaldo Bueno, a poltica externa do Brasil na poca

    de sua independncia poltica de Portugal movia-se em duas zonas e em algumas

    aberturas na periferia. Essas zonas seriam s relaes com o continente europeu e os

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    contenciosos na regio platense. Quanto a esta ltima, os conflitos posteriores entre os

    novos pases dessa regio, principalmente entre o Brasil e as Provncias Unidas do Rioda Prata (futuramente, Argentina), no teriam ineditismo; seriam mais um

    prolongamento histrico do secular conflito regional entre as duas coroas ibricas

    (Portugal e Espanha) pelo controle desse importante esturio (CERVO; BUENO, 2008:

    40). Ter o apoio da Gr-Bretanha, maior potncia ocidental da poca, era essencial.

    Alm disso, Canning no queria que a situao das repblicas latino-americanas fosse

    logo resolvida, muito por causa das intenes francesas na Amrica Latina. Nesse

    momento, a Espanha estava sob forte influncia da Frana, e o governo britnico novia essa relao com bons olhos. Logo, para o chefe diplomtico ingls, ou a Espanha

    regia e subjugava, pela fora, suas ex-colnias, () ou essas colnias se declarariam

    independentes. O que a Inglaterra no poderia tolerar seria a interveno de qualquer

    outra potncia europeia (leia-se: Frana) nos assuntos internos da Amrica Latina

    (FREITAS, 1958: 47).

    Outro fato importante que aparece nos ofcios da Misso Brasileira em Londres

    era a questo do fim do trfico de escravos, principal interesse britnico no Brasil e

    ponto focal do Tratado de 1826. Em 4 de dezembro de 1825, Gameiro Pessoa relatava

    ao Ministro de Negcios Estrangeiros do Imprio, Luiz Jos de Carvalho e Mello, os

    assuntos que foram debatidos na conferncia que teve com George Canning sobre as

    aes do negociador ingls, Sir Charles Stuart. Em dado momento do encontro,

    Gameiro disse:

    Passei a falar-lhe do objeto que ali me levava (Stuart), e disse-lhe que tendo-me ele assegurado que a misso de SirCharles Stuart se limitava a negociar a

    prorrogao do Tratado de 1810 por um tempo suficiente para que os doisGovernos pudessem com vagar fazer aqui um novo Tratado de Comrcio, ehavendo eu afirmado isso a minha Corte, estranhava ela a discordncia quehavia entre esta minha assero e o procedimento do PlenipotencirioBritnico. Ele (Canning) me interrompeu dizendo que eu podia confiarnas suas palavras; que tinha o dissabor de declarar-me que SirCharlesStuart havia transcendido os limites das suas instrues; e que semprefora sua inteno fazer uma simples Conveno para prorrogar oTratado findo (de 1810) por aquele prazo que o meu Governo quisessefixar para dentro dele efetuar a abolio definitiva do Comrcio deescravatura. (ARQUIVO HISTRICO DO ITAMARATY, Mao 216/1/2)

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    De fato, as aes de SirCharles Stuart durante a negociao do reconhecimentoluso da independncia brasileira e de um convnio comercial entre o Brasil e a

    Inglaterra, durante os anos de 1825 e 1826, no foram aprovadas pelo ministro Canning,

    que deu instrues claras a Stuart: preservar os interesses da famlia Bragana em

    ambos os hemisfrios; garantir a legitimidade de D. Pedro I no trono imperial brasileiro;

    e de jeito nenhum sair do Brasil sem um acordo com o governo brasileiro a respeito do

    Tratado de 1810 (MANCHESTER, 1973: 174-175). Ou seja: no era a inteno do

    ministro ingls formular um novo tratado entre o Brasil e a Inglaterra, pois na viso deleesse assunto j estaria resolvido com a garantia dos Bragana no controle do Imprio

    nas Amricas, logo que o suporte que o governo ingls tinha dado a coroa bragantina

    durante a invaso napolenica o colocava em excelentes termos para negociar diversas

    questes. E sendo o Estado brasileiro governado por um descendente direto desta casa

    real europeia, era de se esperar que seguisse os velhos ditames do acordo entre Londres

    e Lisboa. Mas o enviado de Canning acabou por exceder suas obrigaes: assinou com

    o governo brasileiro no apenas um, mas dois tratados, um de comrcio e outro de

    abolio do comrcio de escravatura, com garantia de ratificao de ambos por parte do

    imperador. Canning, obviamente, no apoiou essas aes do Plenipotencirio Britnico,

    rejeitando as duas convenes. Alm disso, fez regressar SirCharles Stuart a Londres e

    nomeou um novo negociador, Robert Gordon, que foi o definitivo assinante do Tratado

    de 1826 (MANCHESTER, 1973: 178-180).

    Manter os Tratados de 1810 era o objetivo principal da poltica externa inglesa

    para o Brasil durante a gesto de Canning que, devido a contingncias inesperadas e

    irremediveis, teve que apelar para a formulao de um novo convnio entre os dois

    pases que garantisse o fim do trfico de escravos para o Brasil. Apesar disso, o ministro

    britnico se considerou vitorioso, pois neste acordo conseguiu que o governo imperial

    garantisse o cumprimento e a extenso dos convnios de 1810.

    Deve-se ter em considerao, contudo, que a diplomacia brasileira no foi como

    um simples espectador que assistia a uma pea de teatro sem entender nada do que se

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    passava. A legao imperial em Londres foi bastante ativa durante as negociaes que

    culminaram com a promulgao do Tratado Anglo-brasileiro de 23 de novembro de1826. Durante o perodo em que SirCharles Stuart esteve representando os interesses

    bretes no Rio de Janeiro, o Visconde de Itabaiana relatou ao ministro brasileiro de

    negcios estrangeiros e futuro assinante do Tratado de 1826, Visconde de Inhambupe,

    sobre a no ratificao do tratado de abolio do trfico negreiro proposto pelo enviado

    ingls. Assim afirmou Itabaiana:

    Fico tambm ciente de que a no-ratificao do Tratado e Conveno feitospelo referido Plenipotencirio (Stuart) causou a maior estranheza aoMinistrio de Sua Majestade Imperial; e isso era bem de se esperar, atenta a

    percia, a importncia diplomtica do Negociador Ingls; mas estou bemcerto de que, desvanecida essa primeira impresso, haviam os Ministros deSua Majestade Imperial reconhecer que a no-ratificao dos referidos Atosfoi um acontecimento favorvel ao Imprio e saberiam tirar todo o partidodesse inesperado incidente. O Governo Imperial tem tantos e to urgentesnegcios que arranjar neste momento que tenho por melhor arbtrio nofazer-se novo Tratado de Comrcio com a Gr-Bretanha, e mandar-secontinuar o de 19 de fevereiro de 1810, com suspenso de todos aquelesartigos que foram onerosos para o Imprio, ou incompatveis com asatuais Instituies Polticas. Tal minha opinio; e eu faltaria ao meu deverse no a manifestasse com a maior franqueza e to repetidas vezes, como

    tenho feito. (ARQUIVO HISTRICO DO ITAMARATY, Mao 216/1/3)

    Isso foi uma das muitas aes tomadas pelos embaixadores brasileiros em solo

    ingls contra as investidas diplomticas de Sir Charles Stuart. Itabaiana, ao ver uma

    possvel oportunidade para pr a poltica exterior imperial em marcha, no se fez de

    rogado nas duras crticas ao negociador breto no Rio de Janeiro. A frase destacada foi

    uma forma de demonstrar fora na negociao.

    Essa tentativa brasileira de se fazer presente nas aes diplomticas com os

    ingleses foi realmente uma atitude de um Estado soberano que buscava preservar os

    seus interesses e fazer com que fossem respeitados no sistema internacional de Estados.

    Contudo, parece que os polticos brasileiros no perceberam que nessa questo

    diplomtica do fim do trfico de escravos no tinham condies de barganhar, j que a

    Inglaterra, depois que o Parlamento ingls abolira o trfico de escravos em suas

    colnias (1807), tornou-se paladina da emancipao e passou a perseguir os (navios)

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    negreiros em alto-mar (COSTA, 2008: 24). E a assinatura do Tratado de 1826 era uma

    prova disso.O que parece? Claro, uma vitria diplomtica de Canning e da diplomacia

    britnica sobre a poltica exterior brasileira. Faltava agora o cumprimento do acordo

    pelo governo brasileiro. No intervalo entre 13 de maro de 1827, quando D. Pedro I

    ratificou a conveno, at 7 de novembro de 1831, quando foi proclamada a Lei Feij-

    Barbacena, muitas coisas aconteceram, tanto no Brasil quanto na Inglaterra e na prpria

    relao entre ambos os pases. At que ponto essas mudanas afetaram a redao da

    primeira lei antitrfico brasileira? Ser que os ingleses ainda podiam ter umaparticipao efetiva na elaborao desta norma?

    O trfico e a lei de 1831: vitria inglesa?

    Com a promulgao da Conveno de 1826, o Brasil passou a ter um acordo com

    a Inglaterra para erradicar o trfico de escravos num prazo mximo de trs anos aps a

    ratificao da conveno, que se realizou em 13 de maro de 1827. Um dos maiores

    ramos comerciais do Brasil estava fadado ao fim. Mas o que aconteceu foi bem

    diferente.

    Durante o final da dcada de 1820 e incio de 1830, houve uma grande entrada de

    escravos no territrio brasileiro. Segundo Manolo Florentino, essas cifras para o Rio de

    Janeiro, porto mais importante do Brasil naqueles tempos, seriam as seguintes: at 1826,

    20.908 escravos por ano; aps essa data, e at a Lei de 1831, 38.434. Tal aumento, para

    o autor, foi desencadeado pela procura desenfreada por escravos, fato que pode ser

    relacionado ao crescimento da produo brasileira, principalmente de caf, acar e

    algodo, e a necessidade de braos para trabalharem, j que havia incerteza sobre o

    futuro do sistema escravista a partir de 1830, quando passaria a vigorar o Tratado de

    1826 (FLORENTINO, 2009: 75-76).

    No incio do sculo XIX, os ento domnios do Brasil passaram a experimentar

    um grande desenvolvimento econmico. Os ilustrados luso-brasileiros, embasados em

    conhecimentos cientficos, experincias de viagens e no uso da razo, em

    conformidade com os ideais de um Imprio dual luso com sede em Lisboa, deram

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    maior ateno colnia lusa na Amrica. Contudo, apesar das mudanas ocorridas na

    Europa, principalmente na Frana e na Inglaterra, sobre a viso de liberdade ehumanidade, a ilustrao portuguesa no eliminou a instituio da escravido, um dos

    pilares do sistema mercantil brasileiro (DIAS, 1968; NOVAIS, 1984, ROCHA, 2000).

    Logo, todo esse processo de desenvolvimento pelo qual passou a colnia lusa no incio

    dos oitocentos dependeu estritamente da mo de obra escrava que vinha da frica,

    fazendo do trfico de cativos uma das atividades mais importantes e rentveis da

    economia colonial luso-americana.

    Alm disso, h ainda a questo dofenmeno Brasil

    , expresso cunhada por JosJobson de Andrade Arruda em Uma colnia entre dois imprios. Nesta obra, o autor

    mostra como o fluxo de transaes entre Inglaterra e Portugal se inverteu no final do

    sculo XVIII favoravelmente aos lusitanos muito por causa da crescente participao da

    colnia brasileira e dos bens nela produzidos (ARRUDA, 2008: 45-93). Assim afirma

    Arruda:

    Esse fenmeno estava certamente no Brasil. Na diversificao de suaproduo agrcola, alimentos e matrias-primas, que aprovisionam ametrpole portuguesa, sustentavam o desenvolvimento de uma indstria txtile ainda produziam excedentes reexportveis, sobretudo a matria-prima maisvaliosa, escassa e estratgica em tempos de Revoluo Industrial: o algodo.O algodo brasileiro, produzido no Maranho e em Pernambuco,alimentava, concomitantemente, trs processos de industrializaocoetneos: ingls, francs e portugus. (ARRUDA, 2008: 53)

    Portanto, a Inglaterra tinha muitos motivos para acabar com o trfico de cativos

    africanos para os domnios do Brasil, j que este era o principal abastecedor de mo de

    obra para os diversos empreendimentos econmicos, tornando a sua balana comercial

    com Portugal, sempre um pas dependente seu, completamente deficitria. Como afirma

    Maurcio Goulart:

    Tomando o novo rumo (o fim do trfico nas colnias inglesas em 1807), noqual se conciliavam sentimentos e convenincias, dois objetivos deviaperseguir o governo de Londres: o aparecimento no continenteamericano, pela instituio do trabalho livre, de novas massas deconsumidores para os produtos manufaturados ingleses, e a defesa daproduo agrcola colonial contra a concorrncia de outras regies

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    tropicais, entre as quais o Brasil. Esses objetivos que lhe inspirariam,ento, os rumos da poltica exterior, exigindo ambos, como condio

    essencial para serem atingidos, o repdio universal ao trfico de negros .(GOULART, 1975: 237-238)

    Esses dois objetivos, realmente, sempre estiveram presentes na poltica externa

    britnica para as Amricas e, principalmente, para o Brasil. Logo, podemos entender

    esse repdio universal ao trfico de negros como um dos estratagemas ingleses para

    garantir que suas metas seriam alcanadas. Um exemplo disso est relatado na tese de

    Beatriz Gallotti Mamigonian. Em seu texto, a autora afirma que os africanos salvos dos

    navios negreiros e emancipados em Cuba, no Brasil e no Suriname nas primeirasdcadas do sculo XIX, acabavam ficando sobre a jurisdio do governo ingls, apesar

    de legalmente serem livres. Para piorar a situao, a suposta preocupao

    humanitria dos ingleses com os africanos traficados passou, durante a dcada de 1830,

    a ser vista com descrdito quando esses emancipados comearam a ser transportados

    para as colnias britnicas nas Amricas para trabalharem em plantations

    (MAMIGONIAN, 2002: 15).

    V-se, pois, que o trfico de escravos era uma questo muito importante tanto nas

    relaes diplomticas e comerciais entre o Reino de Portugal e a Gr-Bretanha, quanto

    nas questes internacionais entre esta potncia e o recm-emancipado Imprio do Brasil.

    Por um lado, o governo portugus e, depois, o brasileiro, tentou garantir a permanncia

    dessa prtica comercial de vital importncia para suas atividades comerciais; de outro,

    os ingleses queriam a qualquer custo erradicar esse mal contrrio ao bom senso e a

    liberdade individual, mas no por motivos humanitrios, e sim para alcanar seus

    objetivos comerciais enquanto potncia hegemnica. Logo, no contexto das relaes

    internacionais, cada Estado tentava garantir por si s que seus interesses, notadamente a

    sua sobrevivncia ou expanso, se sobrepusessem. E cada um lutava com as armas que

    tinha.

    Contudo, em 7 de novembro de 1831, parecia que o poder do mais forte se

    sobressairia ao do mais fraco. Nesta data, foi promulgada a lei que ps fim ao trfico de

    escravos para o Brasil. Elaborada pelo general e ento parlamentar Felisberto Caldeira

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    Brant, o Visconde de Barbacena, e pelo regente real, Diogo Antnio Feij, essa lei ficou

    conhecida como Lei Feij-Barbacena. Compunha-se de apenas nove artigos, sendo o1 o de maior relevncia, pois estabelecia que todos os escravos entrados no Brasil ou

    em seus portos a partir da data de promulgao da norma, vindos de fora, ficariam

    livres, com apenas duas excees: os escravos que estivessem trabalhando em navios de

    pases onde a escravido permitida, e os que fugirem de territrio, ou embarcao

    estrangeira.

    Com a nova lei brasileira, todos os esforos ingleses vindos desde Castlereagh,

    passando por George Canning, Charles Stuart e Robert Gordon, para ficar em algunsnomes, foram recompensados. O acordo assinado anteriormente com o Imprio

    brasileiro sobre a questo do fim do trfico de escravos comeou a ter uma validade

    legal tambm em mbito interno. E as estatsticas dos anos seguintes promulgao da

    Lei de 1831 eram animadoras.

    Segundo Mamigonian entraram no Brasil entre 1831 e 1835 um total de 26.095

    escravos africanos. S para comparao, no perodo anterior (1826-1830), esse total de

    cativos importados foi de 292.684, e no posterior (1836-1840), 201.140

    (MAMIGONIAN, 2009: 223). Esses nmeros so corroborados pelos estudos de

    Herbert Klein e Francisco Luna, que mostram que o trfico de escravos evoluiu de

    forma progressiva durante as primeiras dcadas do sculo XIX, com a quantidade de

    escravos desembarcados no Brasil passando de 34.115 na dcada de 1810 para 52.430

    no decnio 1821-1830. A ocorreu uma abrupta queda entre 1831 e 1840 para 33.818,

    com uma recuperao na dcada seguinte (40.002 escravos importados) (KLEIN;

    LUNA, 2010: 94).

    Todos esses nmeros comprovam que durante os primeiros anos de vigncia da

    Lei de 1831, houve uma diminuio importante do ritmo do trfico de escravos. Alguns

    autores, como Leslie Bethell, acreditam que durante a corrida desenfreada por escravos

    africanos antes do trfico se tornar ilegal, em 13 de maro de 1830, o mercado brasileiro

    ficou to saturado que no houve a necessidade de novas importaes por algum tempo,

    alm do fato de haver uma grande incerteza nos crculos comerciais interessados

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    quanto s medidas que os governos brasileiro e britnico poderiam adotar quando o

    comrcio se tornasse ilegal (BETHELL, 2002: 96). Outros, como Ricardo Silva,concordam em parte com o fato do comrcio de escravos ter se arrefecido nos anos

    iniciais de vigncia da Lei de 1831 por causa da saturao do mercado interno pelas

    importaes dos anos anteriores. Para ele, outro fator que tambm deve ser levado em

    considerao era o clima poltico liberal e reformista vigente no Brasil desde a forada

    abdicao de D. Pedro I... (SILVA, 2008: 5).

    A partir de 7 de abril de 1831, o governo brasileiro ficou a cargo de regentes

    durante nove anos, at que D. Pedro II assumisse o controle da nao, em 1840. De fato,os primeiros anos do perodo regencial foram marcados por certo otimismo dos liberais,

    visto que estes estavam no poder e conseguiram, de certa forma, pressionar pela sada

    do imperador, em 1831. Isso pode ser visto nas palavras de Tmis Parron:

    Com efeito, na turbulenta quadra inicial da Regncia (1831-1835), quase nohouve discursos a favor do cativeiro (escravido). Bem ao contrrio,aprovou-se ali uma determinao (a Lei de 1831) que libertava escravosafricanos contrabandeados para o Brasil, discutiam-se projetos que visavamaperfeio-la, foram ensaiadas companhias de colonizao do trfico e

    jornais publicaram artigos diversos contra a escravido. (PARRON, 2009: 66)

    Alm disso, Parron afirma que, apesar de no haver no Tratado Anglo-brasileiro

    de 1826 qualquer clusula que obrigasse o Brasil a criar uma norma interna para gerir o

    fim do trfico de escravos, mesmo assim o Parlamento brasileiro aprovou disposies

    mais severas que as originais (contidas no Tratado de 1826), em movimento

    contrrio ao que se via no imprio espanhol, por exemplo... (PARRON, 2009: 67).

    Definitivamente, as concluses mostram que o governo brasileiro foi alm na questo

    do trfico. Dizer, nesse momento, que a Lei Feij-Barbacena era para ingls ver,

    seria muito forado. Ela pode ser vista, sim, como parte da vitria diplomtica britnica

    sobre o Brasil, pas novo e ainda sem poder e coeso interna para ir de encontro aos

    desejos de uma potncia mundial como a Inglaterra Estado hegemnico dentro do

    sistema-mundoe centro do capitalismo no sculo XIX (WALLERSTEIN, 2001: 51).

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