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SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA O TESOURO DE SÃO ROQUE Um olhar sobre a contra-reforma W. TELFER, M.A.

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SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA

O TESOURO

DE SÃO ROQUEUm olhar sobre a contra-reforma

W. TELFER, M.A.

O Tesouro de São Roque: um olhar sobre a Contra-reforma2017© Santa Casa da Misericórdia de Lisboa

Coordenação Geral: Maria Margarida MontenegroCoordenação Científica: Teresa Freitas MornaAutor: William Telfer, M.A. Tradução: António Meira Marques Henriques

Edição: Centro Editorial I Direção da CulturaDesign Gráfico e paginação: Catarina FrançaRevisão: Rítaca-Serviços linguísticos, LDACréditos Fotográficos: Arquivo Histórico/SCML, Biblioteca da Revista Brotéria, Lobkowicz Collections, Nelahozeves Castle, Praga, República Checa, Júlio Marques, Museu da Cidade de Lisboa, Museu de São Roque/SCML, NAM/SCML, Pedro Aboim Borges.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida de qualquer forma ou por quaisquer meios, electrónicos ou mecânicos, incluindo fotocópias, gravações ou qualquer sistema de armazenamento e recuperação de informação sem autorização prévia, por escrito, da editora.

Impressão:Tiragem. 500 exemplaresISBN: 978-989-8712-64-6Depósito Legal: 431844/17

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ÍNDICE

Apresentação pelo Provedor 5Prefácio à versão portuguesa 7Prefácio do autor 13Introdução 171. A Caixa Metálica 35 2. A Doação de D. João de Borja 473. As Listas de Relíquias 594. Relíquias Pré-borjianas 795. Os Documents de Malaspina 956. Amigos de Borja na Corte Imperial 1317. Relicários Diversos Obtidos em Praga 1678. Ofertas Imperiais 1819. Outros documentos do “Recebimento” 20710. Ofertas posteriores a 1590 22511. Os Documentos Restantes 26912. Conclusões gerais 277Registo de Pessoas 291Registo de Lugares 295Registo de Relíquias 297

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APRESENTAÇÃO PELO PROVEDOR

A coleção de relicários e relíquias do antigo santuário da Igreja de São Roque constitui um património ímpar, pela dimensão reli-giosa das próprias relíquias, pelo carácter artístico das peças que

as protegem, e ainda pela dimensão histórica que as mesmas encerram.Não tem paralelo em Portugal o conjunto de relíquias que se en-

contram expostas à contemplação na Igreja de São Roque, em Lisboa - peças datáveis dos séculos XIV ao XVIII - reunidas pela Companhia de Jesus na sua antiga Casa Professa, durante a sua vivência de quase dois séculos em São Roque, vindo parar à posse da Misericórdia de Lisboa, por doação régia de D. José I, em 1768.

A compreensão da génese deste excepcional conjunto de peças de-ve-se ao notável trabalho de investigação de William W. Telfer, professor especializado em estudos eclesiásticos da Universidade de Cambridge, na sua obra histórica O Tesouro de São Roque, editada em Londres em 1932, após um profundo e minucioso estudo levado a cabo em Lisboa pelos arquivos da Misericórdia.

Atendendo à relevância indiscutível desta obra, a então Adminis-tração da Santa Casa considerou imperioso traduzi-la para português, iniciativa que foi deliberada em reunião de Mesa de 1933, ano em que foi incumbido de realizar a tradução deste texto, o poeta Fernando Pes-soa, na época tradutor oficial do Ministério das Finanças (Deliberação de 09.02.1933).

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Não tendo sido concretizada a tradução portuguesa do prestigiado Poeta, pela ocorrência da sua morte em 1935, é com especial agrado que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa vê agora editada a versão portu-guesa do Tesouro de São Roque, o que constitui um contributo relevante para os estudiosos e investigadores que se interessam pela valiosa cole-ção de relicários e relíquias à guarda da Misericórdia de Lisboa.

Pedro Santana Lopes,Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa

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PREFÁCIO À VERSÃO PORTUGUESA

The Treasure of São Roque – A sidelight on the Counter-Reformation constitui o estudo histórico mais completo que alguma vez se realizou sobre o conjunto de relíquias e relicários da Igreja de São Roque. Esta obra considera-se fundamental para a compreensão da proveniência das relíquias doadas à Companhia de Jesus nos séculos XVI, XVII e XVIII, salientando em particular a avultada colecção doada por D. João de Borja (1533-1606), filho de São Francisco de Borja, em 1587, a qual pela sua grandiosidade distinguiria para sempre a primeira igreja jesuí-tica em Portugal. Qualquer estudo subsequente sobre esta matéria deve-rá remeter necessariamente para este manancial de erudição, rigorosa-mente elaborado em 1932, por William Telfer, investigador e académico inglês da Universidade de Cambridge, editado pela Church Historical Society, em Londres, no mesmo ano.

Além das razões pessoais que motivaram o autor a empreender este meticuloso trabalho de investigação, que o próprio invoca no seu prefá-cio, esta obra recomenda-se por três motivos fundamentais:

Primeiro, porque descreve profusamente o contexto histórico do século XVI que proporcionou a D. João de Borja a aquisição de um conjunto excepcional de relíquias e relicários, através de uma complexa rede de personalidades importantes ligadas à corte do sacro imperador germânico, Rudolfo II, em Praga, onde Borja residiu durante cinco anos, a partir de 1576, na qualidade de embaixador de Espanha e mordomo-

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-mor da Imperatriz Maria de Áustria, irmã do rei Filipe II de Espanha. Após terminar esta comissão e no regresso definitivo a Madrid, em 1581, D. João de Borja viria a receber da própria Imperatriz algumas das mais preciosas relíquias como recompensa pelo seu prestigiado serviço. Basta referir a título de exemplo, o sumptuoso relicário de S. Gregório Tauma-turgo, contendo a relíquia insigne do santo patriarca natural de Niksar, oferta da própria Imperatriz a Borja, em 1587. Descreve ademais o autor os contactos privilegiados deste nobre valenciano com a Companhia de Jesus em Portugal, e, particularmente com os padres mais influentes da Casa Professa de São Roque, que seriam determinantes na sua opção em doar a esta ordem religiosa a sua vasta colecção, em vez de a destinar ao real mosteiro de S. Lourenço do Escorial, como seria expectável.

Segundo: porque elabora, pela primeira vez, um estudo sistemático do conjunto de relíquias e relicários que formam o “Santuário” da Igreja de São Roque, tanto as que já existiam antes da chegada da colecção bor-jiana, nomeadamente as provenientes da colecção régia de D. Catarina de Áustria, mulher de D. João III, como, sobretudo, as que vieram in-corporadas no majestoso cortejo do “Recebimento”, cuja lista completa foi compilada pelo Padre Manoel de Campos, em 1588, bem como as recebidas posteriormente na Casa Professa de São Roque, designada-mente em 1594, ao longo do século XVII e no início do século XVIII, até à expulsão da Companhia de Jesus. Este tesouro sacro preservado em São Roque, é considerado um dos conjuntos mais representativos da Contra-reforma católica que ainda se conserva in situ.

Terceiro, porque examina à lupa a série de “documentos de autenti-cação” (vulgo, Autênticas) que acompanhavam as relíquias, uma colec-ção inédita de 84 documentos originais, assinados por figuras marcan-tes da aristocracia e da hierarquia católica, milagrosamente encontrados já no final do século XIX, conservados nas dependências da antiga Casa Professa de São Roque, fechados dentro de um baú em metal, cons-tituindo hoje um acervo ímpar do Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, muitos dos quais agora pela primeira vez

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traduzidos do Latim. Nas palavras do autor, temos aqui “o todo de uma colecção intacta, tal como existia quando a Companhia ainda estava na posse das relíquias e de seus registos”. Tais documentos, uns manus-critos, outros impressos, alguns artisticamente redigidos e decorados (contando-se entre os mais relevantes a Carta de Rodolpho Segundo Imperador dos Romanos, de 20 de Abril do Anno do Senhor de 1580, au-tenticando as relíquias sagradas doadas a D. João de Borja, bem como o soberbo pergaminho assinado pelo Núncio em Praga, Horatio de Ma-laspina), consideram-se Fontes indispensáveis que permitem aos espe-cialistas traçar com rigor a origem das relíquias e seus doadores, bem como as autoridades eclesiásticas que as aprovaram como objectos de veneração. Os mesmos documentos ajudam não só a identificar a prove-niência - pessoas e locais - pelos quais transitaram as relíquias até ao seu destino final na Igreja de São Roque, como permitem ainda compreen-der o desaparecimento de relicários sumptuosos que já não constam, por exemplo, no inventário Memoria do Descobrimento e Achado das Sagradas Relíquias do Antigo Santuário da Igreja de S. Roque, elaborado em 1843, e, por isso, omitidos nos inventários do século XX. Cada um destes documentos pode ser identificado por um algarismo sequencial, manuscrito pelo então 1º oficial arquivista da SCML, Victor Ribeiro (1862-1930), e é com base nesta classificação pioneira que Telfer cita cada um dos documentos históricos.

Por último, a leitura deste texto proporciona um olhar histórico-crítico desapaixonado acerca do culto das relíquias, como este era en-tendido e rejeitado pelos Reformadores protestantes e o entendimento contrário defendido pela Igreja Católica na época áurea da Contra-Re-forma, em que a Companhia de Jesus desempenhou um papel militante na defesa do seu culto, bem como na sua divulgação.

O âmbito da obra de William Telfer incide essencialmente no vasto campo das relíquias e relicários que enriqueceram o antigo santuário da Igreja de São Roque e tudo o que é pertinente para este estudo. Não era intenção do investigador inglês elaborar um tratado histórico acerca

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da Companhia de Jesus nem tão pouco sobre a Misericórdia de Lisboa - instituição que, desde 1768, ficou detentora de todo este património histórico e sacro. Por isso, a descrição que o autor apresenta sobre esta instituição, reflecte uma imagem algo retrógrada, fruto da sua percep-ção aquando da sua visita a Lisboa em 1932.

Dada a relevância indiscutível desta obra, considerou-se há muito imperioso traduzi-la para português, iniciativa que foi apresentada à consideração da Mesa da SCML, em 1933, nestes termos: Julgando da máxima conveniência para elucidação da história da Igreja da Misericór-dia, que fosse traduzida para língua portuguesa por pessoa competente. O Conselho resolveu que fosse encarregado dessa tradução o Senhor Fer-nando Pessoa, tradutor oficial do Ministério das Finanças […] (Livro 26, Deliberação de 09.02.1933).

Porém, este desiderato nunca foi levado a cabo, provavelmente de-vido à morte prematura do poeta, em 1935. Seguiu-se depois um longo silêncio de oito décadas em que a obra permaneceu apenas acessível como livro de consulta para raros especialistas.

No contexto da obra de remodelação e ampliação do Museu de São Roque, levada a cabo pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, entre 2006 e 2008, a qual incluía um número significativo de intervenções de restauro em obras de arte, nomeadamente uma selecção de relicá-rios mais emblemáticos provenientes da Igreja de São Roque, com vis-ta à sua inclusão na exposição permanente do museu, foi-me sugeri-do pela sua directora, Teresa Freitas Morna, o projecto de concretizar a tão ansiada tradução portuguesa do clássico texto de William Telfer, editado em 1932.

Não sendo fácil a tradução desta obra, dificultada pela elevada den-sidade de dados e contextos históricos, acrescida pela profusão de ter-mos eclesiásticos e pela quantidade de documentos latinos transcritos, pontuada aqui e ali por traços de humor britânico, foi, apesar de tudo, uma tarefa gratificante poder levar a cabo a versão que, finalmente, se torna disponível aos leitores de língua portuguesa.

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Nota final: por respeito ao autor inglês, os nomes de pessoas, lu-gares, títulos ou cargos eclesiásticos e de nobreza mantêm-se em letra maiúscula, em harmonia com o texto original. Pelo mesmo motivo, optámos por manter a grafia do português clássico.

António Meira Marques HenriquesAbril de 2017

1212Vista geral do interior da Igreja de São Roque

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Este trabalho tem a finalidade de apresentar uma colecção iné-dita de documentos do século XVI, autenticando relíquias de santos, ao mesmo tempo extraindo deles uma refrescante visão

histórica que os mesmos podem encerrar. Documentos como estes, de segunda categoria, têm uma coisa a seu favor. Se eles possuem alguma informação valiosa (e tal poderá admitir-se com bastante certeza), ela é dada de passagem, e os seus escritores, do meu ponto de vista, esta-vam totalmente desprevenidos. Dados de autenticação de relíquias são documentos que existem em considerável quantidade, de modo que, se esta experiência for bem-sucedida, poderá ser seguida por outras seme-lhantes.

Devo acrescentar uma palavra com respeito às circunstâncias que conduziram a isto. O (meu) ponto de partida foi uma pesquisa sobre o culto de São Gregório Taumaturgo. O crânio deste santo é reclamado por Lisboa, onde se encontra conservado em São Roque, entre outras relíquias. O doador foi D. João de Borja, que o trouxe do território que pertencia a um seu parente, o Príncipe de Squillace, onde se situa o tú-mulo deste santo. Considerando que esta ligação poderia ser uma chave para a história da relíquia, procurei informação adicional junto de Vic-tor Ribeiro, na sua obra A Santa Casa da Misericórdia, na qual (p. 271) ele descreve a redescoberta dos referidos documentos de autenticação,

PREFÁCIO DO AUTOR

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encontrados numa caixa de metal. Quase 30 anos se passaram desde que Ribeiro redigiu o livro, tendo havido uma revolução pelo meio em Portugal, parecendo não ter a mínima dúvida de que se poderiam ter perdido ou destruído, entretanto. Porém, uma visita de férias a Lisboa deu-me a oportunidade de testar esta matéria, que resultou num traba-lho de cerca de 12 horas sobre o conteúdo material da caixa metálica, isto é, cerca de oitenta documentos, um dos quais se referia ao crânio de São Gregório Taumaturgo. Este dado específico, curiosamente, revelou-se pouco satisfatório, mas a colecção, no seu todo, parece demasiado interessante para ser desperdiçada. Daí resultou o presente trabalho. Se ele é uma novidade no seu género, pode e deve ser considerado como um estudo respeitável. Há cerca de 40 anos, M. Samuel Berger, um colaborador do Comte de Riant, escreveu na Revue de l’Orient Latin,1 “La science des reliques et l’histoire…. On a se rendre mutuellement les plus grands services”. E este dito poderia muito bem servir de mote para encabeçar este meu trabalho.

Estou em dívida para com o Dr. J. W. Barker, por ter verificado e cor-rigido as minhas transcrições dos documentos espanhóis e portugueses, bem como a E. Bullough, por igual amabilidade relativamente aos textos italianos. Reconheço, com gratidão, a honra que recebi pela aprovação deste estudo como trabalho de investigação para o meu B.D. em Cam-bridge, bem como à Church Historical Society por tê-lo publicado como mais um volume da sua admirável série de monografias.

W. Telfer8 de Julho de 1932