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Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Linguística O sintagma nominal do caboverdiano: uma investigação semântica — versão corrigida — Wânia Miranda Araújo da Silva São Paulo

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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Departamento de Linguística

O sintagma nominal do caboverdiano:uma investigação semântica

— versão corrigida —

Wânia Miranda Araújo da Silva

São Paulo

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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Departamento de Linguística

O sintagma nominal do caboverdiano:uma investigação semântica

— versão corrigida —

Wânia Miranda Araújo da Silva

Dissertação de Mestrado apresentada ao Pro-

grama de Pós-Graduação em Semiótica e Lin-

guística Geral do Departamento de Linguís-

tica da Faculdade de Filosofia, Departamento

de da Universidade de São Paulo para a obten-

ção do título de Mestre em Linguística.

Orientador: Prof. Dr. Marcos Lopes

São Paulo

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Agradeço...

Acima de tudo a Deus, por ter iluminado meus caminhos e a minha mente.Ao Marcos Lopes, por ter sido um excelente orientador. Pela paciência,

dedicação e acima de tudo por acreditar nesse projeto e em mim.Ao Departamento de Linguística pelo financiamento da Viagem de

Campo.À CNPq pelo auxílio financeiro.Aos professores do Departamento de Linguística que contribuíram para

a minha formação.À Profa Margarida Petter, um exemplo de pessoa e pesquisadora, sempre

tão atenciosa e disposta a me ajudar.À Profa Márcia Oliveira, que me iniciou nas pesquisas com o cabover-

diano e que sempre me apoiou em tudo, mesmo depois de não ser maisminha orientadora.

À Profa Evani Viotti, por seus valorosos conselhos em cada uma dasetapas desse mestrado.

À Profa Leila Hernandez, pelo seu maravilhoso curso de História daÁfrica e pelo seu carinho e apoio.

À Profa Simone Caputo Gomes, meu exemplo, por ter me acolhido emtodos os eventos sobre Cabo Verde desde o início de meus estudos sobre otema, por ter me ensinado a olhar outros aspectos, não só os linguísticos eprincipalmente, por ter me ajudado com a viagem de campo, realizandocontatos e me incentivando sempre.

À Profa Ulisdete Rodrigues, da Universidade de Brasilia, por ter respon-dido a todas as minhas dúvidas e por ter sido tão generosa nos conselhossobre a viagem de campo.

Aos funcionários do Departamento de Linguística, Érica, Ben-Hur eRobson.

Ao Paulo Cezar pela revisão do texto.Ao Eduardo, pela companhia sempre constante em todos os momentos

da minha vida acadêmica e por ter ultrapassado os muros da Academiatornando-se já um membro da família.

À Paula e Vanessa, as melhores amigas que a academia poderia ter medado. Cada uma contribuiu, a seu modo, para que a vida acadêmica setornasse melhor e mais prazerosa.

A tantos outros que tornaram esse caminho muito mais agradável, emespecial ao Everton, Roberlei, Fernanda, Luciana, Ana Paula Quadros,Renata, Wallace, Manuelle, Shirley, Maria e tantos outros.

Ao Ricardo Jorge, por ter me ajudado com os dados do caboverdiano,esclarecendo minhas dúvidas.

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Ao Francisco, por sempre me ajudar em relação aos dados, esclarecerminhas dúvidas e sobretudo pela paciência e por ser sempre tão prestativo.

Em Cabo Verde...

Em primeiro lugar à Gabriela, prima de Francisco, por ter me acolhidoem sua casa sem antes me conhecer. Por ter me oferecido não só abrigo,mas amizade. Obrigada pela preocupação, pelos conselhos, pelas conversase sobretudo pelo exemplo de mulher e ser humano que levarei para semprecomigo.

Ao Júnior e Valdir, filhos de Gabriela, pelo acolhimento e cuidado.Ao Prof. Dr. Manuel Veiga, por ter me recebido e ter me dado conselhos

tão preciosos, além de ter me presenteado com seu livro Odju d’Águ.Ao Prof. Natal, pela generosidade ao ceder tantos materiais, muitos

deles raros, sobre o caboverdiano.À Profa Maria de Fátima, por ter me acolhido e por ter sido tão gentil.Ao Prof. Carlos, pela ajuda e por ter me acompanhado, juntamente com

seu sobrinho, em uma das gravações.Ao Francisco da Cidade Velha, não tenho palavras para agradecer a

generosidade, mesmo depois de minha volta ao Brasil.Em especial ao Prof. Luís Rodrigues, por ter me recebido sem reservas

e ter me ajudado de uma forma tão generosa. Agradeço por ter solicitadoa ajuda de seus alunos, por ter me acompanhado em algumas gravações,pelas caronas, pelos cafés e por ter me ajudado mesmo depois de minhavolta ao Brasil.

Ao Otílio, Evandro e Necildo por terem se disponibilizado a serviremde intérpretes nas entrevistas e por terem realizado contato com os infor-mantes, além de ter aberto as portas de suas casas para mim.

Ao Sr. Felisberto e ao João dos Santos por terem me ajudado a contactarinformantes.

A todos os meus informantes, sem exceção, pela lição de vida e pelagenerosidade com que me acolheram. Ao sr. Chun, por ter me presenteadocom os poucos ovos de galinha caipira que tinha e por ter me ensinado que“enquanto há vida, há lida.” Ao sr. Francisco, por tantas histórias e porter me ensinado a cheirar kankan (tabaco). Ao Francisco da Cidade Velha,que apesar de não ter sido meu informante, me ajudou imensamente e meapresentou o grógu direto do alambique e a tantos outros.

À Vânia, que não fez parte da pesquisa, mas que me ajudou muito coma companhia e conversas, mesmo que poucas, aliviando um pouco o peso

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de estar sozinha.

A minha família...

Aos meus pais, por terem me incentivado desde o início e por teremapoiado todas as minhas decisões em relação à vida acadêmica.

Ao Yuri, meu filho querido, a criança (ou adolescente) mais carinhoso ecompreensível que existe no mundo.

Aos meus irmãos, Wanny, Wellington e, é claro, Flávia, pela paciência ecompreensão de que nem sempre eu podia estar presente.

Ao Saulo, meu companheiro, por ter me apoiado nessa jornada e por tertrazido mais alegria e amor a minha vida.

Ao Totó...

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Descobri como é bom chegar quando se tem paciência. E para sechegar, onde quer que seja, aprendi que não é preciso dominara força, mas a razão. É preciso, antes de mais nada, querer.

— Amyr Klink

Para compreender as línguas bantas [e africanas em geral], serianecessário que nos abstraíssemos da maior parte das nossasnoções gramaticais europeias.

— Henri Junod

Se em tudo o mais forem idênticas as várias explicações de umfenômeno, a mais simples é a melhor.

— William de Ockham

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Resumo

A presente dissertação realiza uma investigação semântica do sintagmanominal (NP) do caboverdiano, língua falada no arquipélago de CaboVerde, localizado na costa ocidental africana. As análises concentram-sena variedade de Santiago, ilha em que está localizada a capital do país, acidade de Praia.

Os nomes no caboverdiano, em geral, não são acompanhados de determi-nante e podem ser interpretados tanto como definidos quanto indefinidos.A utilização de un / uns está, em geral, associada a introdução de novosreferentes, seu uso, contudo, não é frequente. Existe, ainda, a partículakel/kes que parece veicular, entre outras coisas, definitude. Tal emprego,todavia, tampouco se dá frequentemente.

O estatuto de kel, em caboverdiano, causa algumas divergências entre ospesquisadores da língua. Alguns autores advogam que ele desempenha, porvezes, o papel de artigo definido (ver, entre outros, (Alexandre and Soares,), (Baptista, ), (Quint, )). Discutiremos alguns dos trabalhosque versam sobre o sintagma nominal em caboverdiano, apresentandoargumentos que corroboram ou não essa hipótese.

A bem da verdade, a maioria das descrições sobre o caboverdiano nãomanifesta acordo quanto à existência ou não de artigo definido nessa língua.Os que afirmam sua existência parecem, muitas vezes, apresentar análisesda língua centradas na descrição e análise do português, principalmentedo português europeu. Diante dessa perspectiva, diversos fenômenosidiossincráticos do caboverdiano podem passar despercebidos, como nocaso de uma possível contribuição ilocucional do operador uma, outromodificador do sintagma nominal.

Este trabalho procura realizar uma análise do caboverdiano centradanos fatos da própria língua, investigando as diferentes estratégias de in-terpretação dos nomes, bem como o papel dos elementos que compõem osintagma nominal.

Palavras-chave: semântica, sintagma nominal, caboverdiano, definitude.

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Abstract

This dissertation conducts an investigation of the semantic of the nounphrase (NP) Cape Verdean language, spoken in the Cape Verde, archipelagolocated on the West African coast. The analysis focuses on the Santiagovariety.

The nouns in the Cape Verdean are generally determinerless and canbe interpreted both as definite and indefinite. The introduction of newreferents is generally associated with the use of un/uns, it’s use howeveris not frequent. There are also the particle kel/kes it seems vehicle, amongother things, definiteness. Such employement, however, nor is often gives.

The status of kel in Cape Verdean, cause some disagreement among ofthe language researchers. Some scholars advocate that kel may assume,sometimes, the role of a definite article (see among others (Alexandre andSoares, ), (Baptista, ), (Quint, )). I will discuss several workswhich deal with noun phrase in Cape Verdean, revealing arguments whichconfirm whether or not this hypothesis.

In fact, most of the Cape Verdean descriptions not show agreement onthe definite article presence or absence in that language. Those who claimits existence often seem to present analysis of the Cape Verdean centeredon the description and analysis of the Portuguese, especially EuropeanPortuguese. With that prospect, severals idiosyncratic phenomena of theCape Verde may go unnotice, as in the case of a possible illocutionarycontribution of the uma operator, another noun phrase modifier.

This work attempt examine of the an Cape Verdean analyse focused onthe language facts theirselves, investigating different strategies for nounsinterpretation, as well as the elements role on the noun phrase.

Keywords: semantics, noun phrase, Cape Verdean, definiteness.

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Lista de abreviações

SG/SG/SG a/a/a pessoa do singularPL/PL/PL a/a/a pessoa do pluralCAIXA ALTA acento fonológicoADV advérbioCOMP complementizadorCONJ conjunçãoDEM demonstrativoDET determinanteF femininoGRAU flexão de grauHAB aspecto habitualIMPF imperfeitoInt intensificadorM masculinoNEG partícula de negaçãoOBJ objetoOBL oblíquoPFV perfectivoPON aspecto pontualPOSS possessivoPOT aspecto potencialPREP preposiçãoPROG aspecto progressivoPST passadoPRON pronomeQP sintagma quantificadorREFL reflexivoSING singularizadorT pronome tônico

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Sumário

Resumo viii

Abstract ix

Lista de abreviações x

Apresentação

Metodologia . Metodologia e Trabalho de Campo . . . . . . . . . . . . . .

.. Dificuldades potenciais . . . . . . . . . . . . . . . . . .. Coleta e transcrição dos dados . . . . . . . . . . . . .

. Sobre o corpus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Um detalhe ortográfico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

A terra e a língua . Formação do caboverdiano . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

.. Aspectos geográficos . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. Aspectos sócio-históricos . . . . . . . . . . . . . . . .

. Características do caboverdiano . . . . . . . . . . . . . . . . .. Língua materna versus língua oficial . . . . . . . . . .. Caraterísticas morfossintáticas da língua . . . . . . .

Número . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Gênero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pronomes Pessoais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Domínio Verbal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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SUMÁRIO xi

Línguas Crioulas . Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sobre o surgimento das línguas crioulas . . . . . . . . . . .

.. Teorias que tomam como foco o input europeu . . . Teorias monogenéticas . . . . . . . . . . . . . . . . . Foreigner talk e baby talk . . . . . . . . . . . . . . . . Aprendizagem imperfeita de segunda língua . . . .

.. Teorias que focam o input não europeu . . . . . . . . Saramacan . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Akan . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

.. Hipóteses gradualistas . . . . . . . . . . . . . . . . . .. Abordagens universalistas . . . . . . . . . . . . . . .

. O método histórico comparativo . . . . . . . . . . . . . . . . . Crioulização como apropriação linguística . . . . . . . . . . . Evolução das línguas como especiação . . . . . . . . . . . .

.. Evolução de línguas e línguas crioulas . . . . . . . . . O estatuto das línguas crioulas . . . . . . . . . . . . . . . . . . Considerações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

O sintagma nominal do caboverdiano . Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Características gerais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os nomes nus no caboverdiano . . . . . . . . . . . . . . . .

.. Sobre os nomes nus: discussão teórica . . . . . . . . .. A noção de pressuposição . . . . . . . . . . . . . . . .. Leitura genérica no caboverdiano . . . . . . . . . . . .. Interpretação definida . . . . . . . . . . . . . . . . . .. Interpretação indefinida . . . . . . . . . . . . . . . .

. Considerações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Kel e a definitude . Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A noção de definitude em Heim () . . . . . . . . . . . . . A definitude segundo C. Lyons () . . . . . . . . . . . . . Artigo definido versus demonstrativo . . . . . . . . . . . . . . Comportamento de kel no caboverdiano . . . . . . . . . . .

.. Análises de kel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. Kel li, Kel la . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. Kriyol da Guiné-Bissau e o caboverdiano . . . . . . . .. Kel li versus Es (li) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

. Considerações do capítulo . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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SUMÁRIO xii

Uma . Situando a questão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Por que uma não seria um artigo indefinido? . . . . . . . . . . Modificadores de grau: discussão teórica . . . . . . . . . . . . Por que uma tampouco seria um modificador de grau? . . .

.. Txeu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. Uma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

–óna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Adjetivos que expressariam grau . . . . . . . . . . .

. Evidenciais: abordagem teórica . . . . . . . . . . . . . . . . . Uma seria um operador ilocucionário? . . . . . . . . . . . . . Uma como “singularizador” . . . . . . . . . . . . . . . . . .

.. Experiência pessoal do falante . . . . . . . . . . . . . .. Necessidade explicativa . . . . . . . . . . . . . . . . .. Interação com os elementos que expressam grau . .

Ocorrência com eventos valorizados negativamente . Considerações do capítulo . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Considerações Finais

Referências bibliográficas

Anexos

Roteiro Kel

Roteiro Uma

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CAPÍTULO

Apresentação

O caboverdiano oferece sérios desafios para o linguista. Nesta língua estãoquestões de notória dificuldade de serem abordadas, particularmente noque diz respeito ao sintagma nominal e ao paradigma pronominal.

No que diz respeito ao sintagma nominal do caboverdiano, o fato depossuir características não atestadas em outras línguas próximas acaba pordespertar o interesse dos estudiosos da língua. Os nomes no caboverdiano,em geral, não são acompanhados de qualquer determinante e podem serinterpretados tanto como definidos quanto indefinidos. A introdução denovos referentes e expressão de quantificação pode ser associada à partículaun / uns. Sua utilização, contudo, não pode ser considerada frequente emcaboverdiano. A língua lança mão ainda da partícula kel / kes para veicular,entre outras coisas, definitude. Este emprego, todavia, também não se dáde modo usual.

Alguns autores que se debruçaram sobre o tema advogam que kel / kesdesempenha, por vezes, o papel de artigo definido na língua (ver (Ale-xandre and Soares, ), (Baptista, ), (Quint, ), entre outros).Verificaremos os argumentos utilizados para defender seu estatuto comoartigo definido a fim de verificar se essa hipótese pode ser sustentada combase nos dados e na literatura semântica.

A bem da verdade, a maioria das descrições sobre o caboverdiano nãomanifesta acordo quanto à existência ou não de artigo definido nessa língua.

Agradeço a banca pelas sugestões. Os erros que porventura permanecerem são deminha inteira responsabilidade.

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Os que afirmam sua existência parecem, muitas vezes, apresentar análisesda língua centradas na descrição e análise do português, principalmentedo português europeu.

Este trabalho procura realizar uma análise do caboverdiano centradanos fatos da própria língua, investigando as diferentes estratégias de in-terpretação dos nomes, bem como o papel dos elementos que compõem osintagma nominal.

O trabalho está organizado da seguinte forma: no capítulo dois aborda-remos alguns aspectos do trabalho de campo, assim como a metodologiautilizada. No capítulo três versaremos sobre a formação de Cabo Verde e aconsequente formação da língua caboverdiana.

No capítulo quatro apresentaremos uma visão panorâmica sobre algu-mas das teorias que tratam das línguas crioulas, a fim de situar o leitorsobre a maneira como essas línguas têm sido abordadas por diferentesautores.

No quinto capítulo, trataremos do sintagma nominal do caboverdianoe apresentaremos suas características gerais. Exploraremos as diferentesestratégias de interpretação definida e indefinida dos nomes, assim comoda leitura genérica das sentenças.

O sexto capítulo será dedicado à análise de kel e da noção de definitude.Apresentaremos seu comportamento dentro do sintagma nominal e explo-raremos os diferentes argumentos utilizados para defender seu estatutocomo artigo definido.

No sétimo capítulo trataremos de uma, tomado por muitos estudiososda língua como um artigo indefinido e ainda como sendo a contrapartefeminina de un. Empreenderemos uma análise semântico-pragmática dessecomponente da língua e mostraremos por que ele não pode ser consideradoum determinante indefinido, nem tampouco a contraparte feminina deun. No oitavo e último capítulo, realizaremos as considerações finais dadissertação.

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CAPÍTULO

Metodologia

. Metodologia e Trabalho de Campo

.. Dificuldades potenciais

Pratas () faz um relato muito interessante a respeito do trabalho decampo em geral e, especialmente, de seu trabalho de campo em Cabo Verde.Embora não seja nossa intenção fazer um relato exaustivo do trabalho decampo realizado, reproduziremos um trecho do relato de Pratas que, anosso ver, é compartilhado por quem realiza um trabalho de campo:

A busca por novas revelações, sobretudo quando implica a des-locação e a permanência do investigador em lugares longe decasa e sozinho, tendo por vezes de pagar de seu próprio bolsotodas as despesas, de se alojar em condições pouco confortáveise vendo-se obrigado a falar com pessoas que não conhece sobreum assunto que à partida pode nem lhes interessar, apresenta àpartida as suas dificuldades.(. . . )A escolha do(s) informante(s) é um dos aspectos que mais pesotem na determinação do sucesso de um trabalho de campo.Conforme se acerta ou erra, pode atravessar-se um período ex-tremamente gratificante ou inesquecivelmente penoso. Paraacertar nessa escolha não há, contudo, regras fixas. Há apenas

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. Metodologia e Trabalho de Campo

pistas com as quais se deve jogar, entregando a equação final àintuição.

Os trechos reproduzidos ilustram as duas grandes dificuldades do tra-balho de campo: o deslocamento, que implica a estada no local em quese realiza o trabalho e todas as questões e imprevistos que podem advirdesse fato, e a localização de informantes, coisa que, na grande maioria doscasos, não é uma tarefa simples, pois temos de contar sempre com a dispo-nibilidade dos informantes e, em alguns casos, de intérpretes. No entanto,especificamente para este trabalho de campo, se analisado de modo geral,as dificuldades não foram tantas.

.. Sobre a coleta e a transcrição dos dados

Matthewson () aponta, em seu artigo sobre o trabalho de campo emsemântica, que não é possível obter informações adequadas sobre o signifi-cado somente através dos dados de conversas espontâneas. Acreditamos,contudo, que não se pode realizar elicitação controlada sem bases suficien-tes sobre determinados comportamentos da língua. Diante disso, iniciamosnossa análise com dados espontâneos para, a partir daí, elaborarmos testesde elicitação direta, uma vez que as análises realizadas por outros autoressobre o sintagma nominal do caboverdiano não nos oferecia uniformidadesuficiente para que pudéssemos tomá-las como ponto de partida.

Essa questão é levantada pela própria Matthewson (), uma vez queela afirma que o tipo de trabalho de campo em semântica requer que opesquisador reconheça e construa sentenças gramaticais na língua-objeto.Dado que nosso objeto específico possui poucas descrições, achamos porbem iniciar os estudos com dados espontâneos. Outra razão para tantoestá no fato de nosso objetivo ser uma análise do sintagma nominal em seusentido amplo, não somente de uma característica específica.

Dimmendaal () afirma que o sentido referencial do nome (em ter-mos de definitude e especificidade) é um tópico complexo e extremamentedifícil de investigar com base em elicitação. Para o autor, no final, é o textoou conexões com o discurso em geral que provê as mais importantes pistaspara a análise desse domínio gramatical. Outrossim, entender o significadode uma palavra ou sentença na língua sob investigação é provavelmenteo ponto de maior desafio para o investigador. Os julgamentos de grama-ticalidade dos informantes e a interpretação semântica de sentenças sãousualmente voltados para a questão se tal enunciado poderia fazer sentidono mundo real. Por isso, a nosso ver, no estudo de uma língua em quenão há muitos dados disponíveis para o pesquisador, faz-se importante

||

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. Sobre o corpus

primeiro entender como se dá o funcionamento dessa língua para, então,elaborar testes pertinentes.

Para a transcrição dos dados, usamos o ALUPEC — Alfabeto UnificadoPara a Escrita do Caboverdiano. O ALUPEC é um alfabeto de base latinae teve sua origem em maio de , tendo sido elaborado pelo Grupo dePadronização da Língua Cabo-Verdiana.

O alfabeto foi aprovado no ano de como modelo experimentale reconhecido pelo governo de Cabo Verde em como sistema viávelpara a escrita do caboverdiano, tendo sido oficializado em . Emborareconhecido pelo governo, ainda há a utilização de outros modelos deescrita, usados idiossincraticamente por diferentes autores.

As glosas seguem o modelo de Leipzig Glossing Rules do Max PlanckInstitute, disponível em http://www.eva.mpg.de/. Esse modelo tem sidodesenvolvido por Bernard Comrie e Martin Haspelmath, do Departamentode Linguística do Instituto Max Planck para Antropologia Evolucionária, epor Balthasar Bickel, do Departamento de Linguística da Universidade deLeipzig (Bickel, Comrie, and Haspelmath, Bickel et al.).

Sobre as glosas, é importante salientar que, quando um morfema sus-cita mais de uma interpretação, as duas (ou mais) interpretações estarãoseparadas por ponto (.). As abreviações que não constavam no modeloadotado foram acrescentadas e estão relacionadas na lista de abreviaçõesdesta dissertação.

. Sobre o corpus

O trabalho de campo foi realizado entre os dias de junho e de julhode , na ilha de Santiago, na região de Sotavento do arquipélago deCabo Verde.

O corpus colhido em Cabo Verde conta com:

• dez horas de gravações de conversas espontâneas;

• testes semânticos de aceitabilidade;

• questionários.

Além disso, para questões pontuais, após a viagem de campo, recorre-mos a:Para os dados retirados de outros autores, os exemplos serão transcritos de acordo

com as fontes originais.Alguns dos roteiros utilizados para os testes encontram-se entre os Apêndices.

||

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. Sobre o corpus

• testes com falantes caboverdianos residentes no Brasil;

• testes enviados (por e-mail) a pessoas em Cabo Verde e aplicados nailha de Santiago;

• dados retirados de análises já realizadas por outros autores sobre ocaboverdiano.

Os dados foram coletados em diferentes regiões da ilha de Santiago. Asregiões foram Assomada, Porto Rincão, Fonte Lima, Cidade Velha, Calhetasde São Miguel, Engenho, Pedra Badejo, São Domingos, São Jorge e SãoLourenço dos Órgãos. Optamos por essas regiões pelo fato de localizarem-se mais para o interior da ilha, onde há falantes que têm pouco ou quasenenhum contato com o português, o que tornou possível o registro de umavariedade mais basiletal.

Para a localização de informantes, primeiramente, realizou-se um con-tato com professores da Universidade de Cabo Verde (Uni-CV): Profa Mariade Fátima, Prof. Dr. Manuel Veiga e Prof. Antônio Francisco AfonsecaMartins. A professora Maria de Fátima, por sua vez, estabeleceu contatocom o professor Luís Rodrigues, da Universidade de Santiago, sem o qualesse trabalho de campo não teria sido realizado.

O Prof. Luís Rodrigues solicitou a alguns de seus alunos que ajudassemcom a coleta de dados. Os alunos também serviram de intérpretes, além dopróprio professor Luís, que também acompanhou uma das viagens e ajudounas primeiras gravações. Os alunos entraram em contato com familiares eamigos que aceitaram realizar as gravações. O trabalho de campo tambémcontou com a ajuda de outras pessoas, de extrema importância, que sedispuseram a localizar informantes e acompanhar as gravações como, porexemplo, o Sr. Francisco Lopes Moreira, da Cidade Velha.

Em termos logísticos, para a realização do trabalho de campo, o des-locamento deu-se em transporte público, por meio de ônibus, das hiaces,uma espécie de van — em geral com muito mais passageiros do que suacapacidade —, e, para os locais mais distantes, os chamados “carros decaixa”. A utilização de transporte público permitiu maior contato com aPara tanto, contamos com a colaboração do professor Luís Rodrigues, da Universidade

de Santiago.Uma variedade basiletal é tida como possuidora de características mais próximas

das línguas de substrato, ao passo que a variedade acroletal possuiria característicasmais próximas da língua lexificadora. Entre essas duas variedades estaria o mesoleto.Considerando-se o caso de Cabo Verde, as variedades basiletais seriam as que possuemquase ou nenhum contato com o português e a variedade acroletal, por sua vez, estaria emcontato com o português.Pequenas caminhonetes em que os passageiros vão na parte de trás.

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. Sobre o corpus

língua, além, é claro, da cultura. As gravações foram realizadas nas casasdos respectivos informantes. Apresentamos o mapa da ilha de Santiago.

Figura .: Mapa da ilha de Santiago. Fonte: Pereira ()

Em relação aos dados, priorizou-se a gravação de conversas espontâneasà elicitação de dados — embora tenham sido aplicados pontualmente testesde aceitabilidade e questionários. As conversas foram conduzidas portópicos pertinentes a cada local. A partir da análise dos dados retirados dasconversas espontâneas, elaboraram-se testes específicos para a verificaçãode determinados comportamentos evidenciados durante a análise.

A viagem contou com o financiamento parcial do Departamento deLinguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Uni-versidade de São Paulo. Os equipamentos para a gravação dos dados foramcedidos por docentes da universidade: a Profa Dra Margarida Petter, do De-partamento de Linguística, e a Profa Dra Márcia Santos Duarte de Oliveira,do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas.

Em Rincão, uma vila de pescadores, por exemplo, a conversa foi conduzida com baseno tópico da pesca, sempre contando com a presença de um intérprete a fim de utilizar-seo mínimo possível de português.

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. Um detalhe ortográfico

. Um detalhe ortográfico

Outra questão metodológica é o motivo pelo qual escrevemos caboverdiano,sem hífen. Nossa posição está em consonância com a de Veiga ( : ). Oautor prefere que assim seja representado por tratar-se da língua maternados caboverdianos e ainda por analogia a outros povos e suas respectivaslínguas. Veiga observa que não se trata de um erro; quando muito, é umarepresentação que não está conforme com a norma portuguesa. Explicaainda:

Razões de nossa opção: caboverdiano vem de Cabo Verde. MasCabo Verde não é um cabo que é verde. O mesmo representa umúnico monema. Por isso, se é tolerável a representação de CaboVerde em duas palavras o mesmo não se pode dizer em relaçãoa caboverdiano. Uma outra razão: o elemento “verdiano” não éum monema autónomo e o hífen que separa as duas unidades(de um mesmo monema) não faz sentido.

Em suma, as razões pela não utilização do hífen configuram-se maiscomo um posicionamento teórico do que uma tentativa de transgressão danorma ortográfica.

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CAPÍTULO

A terra e a língua

. Formação de Cabo Verde e a consequente for-mação do caboverdiano

.. Aspectos geográficos

O arquipélago de Cabo Verde está situado na zona tropical do AtlânticoNorte a cerca de quatrocentos e cinquenta quilômetros da costa senegalesa.É composto por dez ilhas e alguns ilhéus de origem vulcânica. Das ilhas,Santiago é a maior e Santa Luzia a menor; as ilhas estão distribuídas emdois grupos tradicionais, de Barlavento, ao norte, e de Sotavento, ao sul.

Pela sua posição geográfica, Cabo Verde marca a extremidade ocidentalda faixa do Sahel, caracterizada por condições climáticas de aridez esemiaridez.O Sahel é a região da África situada entre o deserto do Saara e as terras mais férteis do

sul que formam um corredor ininterrupto do Atlântico ao Mar Vermelho. Normalmente,incluem-se no Sahel o Senegal, a Mauritânia, o Mali, o Burkina Faso, o Níger, a parte norteda Nigéria, o Chade, o Sudão, a Etiópia, o Djibouti e a Somália.

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. Formação do caboverdiano

Figura .: Mapa do arquipélago de Cabo Verde. Fonte: http://www.hidroex.mg.gov.br

.. Aspectos sócio-históricos

Relatos históricos afirmam que o arquipélago era desabitado quando dachegada dos portugueses, na segunda metade do século XV. A situaçãogeográfica da ilha, desde o primeiro momento, foi considerada favorávelao comércio escravocrata. Do século XV aos princípios do século XVII, otráfico alcançou a sua mais alta expressão, sendo as atuais ruínas da entãoCidade da Ribeira Grande (hoje Cidade Velha) o principal ponto do sistemaescravocrata (Veiga, ).

Por não ter riquezas naturais abundantes e significativas, o grandetrunfo de Cabo Verde, para Santos et al. (), foi a sua capacidade emdesempenhar um papel ativo nas redes de troca e circulação de escravose mercadorias entre diferentes locais. Essa troca envolve, entre os séculosXVI e parte do XVII, os Rios da Guiné, Portugal, as ilhas atlânticas, Castela

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. Formação do caboverdiano

e, posteriormente, Índia, França, Holanda, Brasil e outros.Veiga () observa que a ilha de Santiago e, em especial, a Cidade de

Ribeira Grande, funcionou, na época, como um grande motor do tráficoescravocrata: os escravizados eram capturados em grande quantidade naCosta Ocidental da África e, seguidamente, eram trazidos para a RibeiraGrande, onde aprendiam os rudimentos da língua e da religião. Depois,eram exportados tanto para a Europa quanto para a América do Sul.

No século XVI, a economia escravocrata atingiu seu auge, tendo come-çado a declinar a partir das primeiras décadas do século XVII. O sistema,porém, só seria banido em Cabo Verde na segunda metade do século XIX.

Para a formação da sociedade caboverdiana contribuem povos de duasáreas geográficas bem distintas, a saber, os portugueses, primeiramenteoriundos do norte de Portugal, e os africanos. Além dos portugueses, hádocumentos que atestam a presença de genoveses já em . A presençados castelhanos também era significativa. Os europeus vão concentrar-se sobretudo na Ribeira Grande, mas o número nunca atingiu grandesproporções, se comparado, relativamente, aos africanos.

As origens étnicas do contingente africano dificilmente podem ser es-clarecidas por documentações quinhentistas. Durante o primeiro século dahistória de Cabo Verde, não há referência às origens étnicas dos africanos.A posição mais aceita é que o maior número dos escravos era provenientedos grupos localizados na região da costa da Guiné, que se estendia desdea margem sul do rio Senegal ao rio Orange, no limite norte de Serra Leoa.António Carreira () aponta para vinte e sete grupos étnicos e algunssubgrupos.

Quint () assinala que as línguas africanas mais faladas em CaboVerde na época eram o uólofe, o mandinga e o timené. Segundo o autor,essas línguas contribuíram fortemente para a formação do caboverdiano.As etnias jalofa, mandinga e papel são citadas por Pratas () como asmais proeminentes. Já Baptista () aponta para os grupos mandinga,jalofos e fulas pretos como os mais proeminentes.

Brásio (), citado por Baptista (), com base no censo de ,assinala os mandingas, os balantas, os bijagós, os felupes, os beafadas, ospapels, os kissis (kizis), os brames, os banhuns, os peuls, os jalofos, os bam-baras, os bololas e os manjacos como os principais povos que contribuírampara a formação do caboverdiano. Por aí se vê a dificuldade de se afirmarcom certeza quais as etnias originárias do continente africano que tomaramparte da formação do caboverdiano.

Apesar dos relatos dos diferentes autores, não é possível atestar, comexatidão, quais as línguas, além do português europeu, que realmentecontribuíram para a formação do caboverdiano.

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. Características do caboverdiano

Sobre as condições que favoreceram a formação da língua, podemoscitar, em primeiro lugar, a questão geográfica, por se tratar de uma ilha e omultilinguismo existente.

Veiga () assinala, entre as condições que favoreceram a emergênciado caboverdiano, o fato de, além dos escravizados pertencerem a diferentesetnias, o número de negros sempre ter sido mais elevado que o número debrancos. A permanência transitória também pode ser levada em conta: osescravizados ficavam o tempo necessário para aprender os rudimentos doserviço e da língua e, posteriormente, eram comercializados.

Pode-se citar também o fato de que os brancos, além de estar em númeroreduzido, falavam diversos dialetos do português europeu. A urgência dacomunicação entre eles, guiada pelos interesses econômicos, também deveser levada em conta.

Devido à conjuntura daquela dada situação, não foi possível a imposiçãode nenhum dos códigos linguísticos conviventes na ilha naquele período, oque levou à emergência de um novo código linguístico, diferente de todosaqueles que coexistiam naquele mesmo ambiente. A língua caboverdianaestava, de acordo com Veiga ( : ), fortemente estabelecida no séculoXIX e início do século XX.

. Das características da língua caboverdiana

.. Língua materna versus língua oficial

Antes de elencarmos as características morfossintáticas da língua, é impor-tante observar, mesmo que de modo breve, a situação político-social dasduas línguas faladas no país.

Embora a língua portuguesa seja a língua oficial de Cabo Verde, ela érestrita às salas de aula, às cerimônias oficiais e aos meios de comunicação.O caboverdiano é amplamente falado no país. Há uma movimentação porparte de intelectuais e alguns políticos para a oficialização da língua, mas,por ora, o português ainda figura como língua oficial e de ensino. Um dosnomes mais representativos em defesa da oficialização do caboverdiano é oProf. Dr. Manuel Veiga, com diversas publicações sobre a língua, inclusivedicionários.

É interessante notar, porém, que, apesar de o caboverdiano ser umalíngua relativamente estudada, com gramáticas, dicionários e até manuais,inclusive de bolso, a grande maioria da população não tem notícia nemacesso a esses trabalhos, ficando restritos ao meio acadêmico.

A despeito de muitos afirmarem que todos os caboverdianos compre-

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. Características do caboverdiano

endem e até mesmo falam o português, não é o que se observa em todosos lugares, ao menos não em Santiago, existindo muita dificuldade de co-municação em português, sendo necessária a presença constante de umintérprete. Há, ainda, opiniões divergentes quanto à oficialização do cabo-verdiano, mas há também, por outro lado, um interesse por grande partedos caboverdianos de que sua língua materna seja oficializada.

Conforme aponta Quint (), o caboverdiano não possui uma normaque seja reconhecida de forma unânime. Cada ilha do arquipélago (nove)possui sua própria variedade linguística e, ainda, a língua falada no interiordas ilhas possui diferenças em relação à língua falada nas cidades. Essasdiferenças, contudo, não impossibilitam a intercompreensão. São seme-lhantes às diferenças dialetais que encontramos no português brasileironas diferentes regiões do Brasil.

É importante observar a necessidade e importância da implantação doensino do caboverdiano nas escolas. Necessidade essa tanto social quantolinguística, uma vez que são notáveis as dificuldades engendradas emrelação ao ensino escolar em língua não-materna. Veiga () afirma quea “verdadeira afirmação” do caboverdiano acontecerá no dia em que estefor introduzido no sistema de ensino.

Para essa implantação, contudo, é necessária, para além da formaçãodos professores, a elaboração de material didático em caboverdiano. Di-ante desse fato, vale ressaltar a importância da oficialização, em , doALUPEC.

Os diferentes trabalhos realizados mais recentemente sobre o caboverdi-ano fazem uso do ALUPEC para a transcrição dos dados, o que possibilitauma uniformização da escrita e maior intercompreensão. Outrossim, as aná-lises empreendidas por diferentes autores de diferentes partes do mundorepresentam um número suficiente para servir de base para o início daelaboração de materiais didáticos, o que poderia configurar-se como um dosprimeiros passos para a implantação do ensino escolar da língua maternaem Cabo Verde.

.. Caraterísticas morfossintáticas da língua

Apresentamos a seguir apenas as características que serão pertinentes aesta dissertação. Antes de mais nada, em caboverdiano, as flexões, tanto

Não entraremos na discussão sobre as diferenças dialetais, nem tampouco qual a varie-dade mais representativa. Apontamos, porém, paralelamente às discussões geradas a cercadesse tema, para a necessidade maior que é a implementação do ensino do caboverdianonas escolas.

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. Características do caboverdiano

nominais como verbais, são em número reduzido quando comparadas àsdas línguas flexionais em geral.

Número

Quanto ao número, a língua distingue entre singular e plural apenas emnomes de seres animados. Na visão de Quint ( :), entretanto, oemprego do plural seria obrigatório quando se trata de seres humanos eopcional nos outros casos.

O plural é marcado através de um marcador que faz referência diretaà quantidade — dôs (“dois”) ou txeu (“muito”), por exemplo — e, emnúmero menor, com o sufixo -(i)s em final de palavra. Observa-se também,a ausência de redundância na morfologia de número (Veiga, ).

Para estabelecer uma comparação, em termos da utilização do pluralna língua, pode-se dizer que, em caboverdiano, o uso do plural é menosfrequente que no português, por exemplo. Quint () apresenta algunsprincípios que restringem o uso do plural:

. Princípio contextual: caso um elemento do contexto indique que onome está no plural, a marcação do plural torna-se desnecessária,como em ().

() NSG

tenter

trestrês

fidju.filho

Eu tenho três filhos.(Quint, : )

. Princípio da marca única: seria a marcação não redundante do plural,conforme ().

() kesDEM.PL

katxor.cachorro

Aqueles cachorros.(Quint, : )

. Princípio semântico: salvo raras exceções, somente nomes que se refe-rem a seres animados podem receber a marca do plural. Fora essescasos, o plural é marcado com uma referência direta à quantidade(dôs, tres...), ou através de advérbios (txeu, poku...), ou ainda atravésdo indefinido (uns) ou demonstrativo (kes).

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. Características do caboverdiano

Gênero

No que concerne ao gênero, o caboverdiano geralmente não distingue entremasculino e feminino. A exceção é verificada, porém, quando se refere aseres sexuados (seres humanos e outros animais).

Quint ( : ) divide as formas femininas em lexicais, analíticas esintéticas.

• Formas lexicais:

ómi (homem) , mudjer (mulher)

pai (pai) , mai (mãe)

boi (boi) , báka (vaca)

• Formas analíticas:

fidju mátxu (filho) , fidju fémia (filha)

kátxor mátxu (cão, cachorro) , katxor fémia (cadela)

• Formas sintéticas:

tiu (tio) , tiâ (tia)

pursor (professor) , pursóra (professora)

trabadjador (trabalhador) , trabadjadera (trabalhadora)

Em Quint ( : ), o autor observa que, em caboverdiano, as noçõesde feminino ou ainda de plural diferem grandemente da percepção quese tem (sobre essas mesmas noções) em português, espanhol ou francês.A compreensão precisa das marcas de número e gênero em caboverdianopassam, de acordo com o autor, por uma visão mais englobante da língua.

Pronomes Pessoais

Sobre os pronomes pessoais, é importante salientar os pronomes tônicosiniciais, ou pronomes fortes, que ocorrem, em geral, em início de senten-ças — ou isoladamente — e possui função de reforço. Apresentamos naTabela . as expressões pronominais do caboverdiano retirado de Pratas( : ).

A distinção entre as formas lexicais e sintéticas, contudo, pode não ser evidente.

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. Características do caboverdiano

FortesFracos(clíticos tônicos)

Clíticosátonos

a singular ami mi N/ -ma singular (informal) abo bo bu / -ua singular (formal, masc) anhu nhu nhua singular (formal, fem) anha nha nhaa singular ael el e/ -la plural anos nos nua plural anhos nhos nhosa plural aes es -s

Tabela .: O sistema pronominal do caboverdiano (listagem parcial).

Além dos pronomes apresentados acima, o caboverdiano possui ainda ospronomes de sujeito enclíticos, os pronomes átonos de objeto, os possessivosátonos e os possessivos tônicos. Não iremos, contudo, apresentar as tabelasde todos os pronomes, somente os que serão relevantes aos nossos objetivos.

É importante observar que a reflexividade e a reciprocidade são ex-pressas (quando o contexto não as torna evidente) pelas palavras kabésa“cabeça”, como o exemplo em () e kunpanheru “companheiro”, conformeexemplificado em ().

() NSG

PFVodjaolhar

nhaSG.POSS

kabésacabeça.PRON.REFL

naPREP

spedju.espelho

Eu me olhei no espelho.(Brüser et al., : )

() EsPL

krequerer

kunpanheru.companheiro.PRON.REFL

Eles se gostam.(Brüser et al., : )

Domínio Verbal

Na conjugação verbal, o sujeito é sempre expresso. Quanto à flexão, alíngua possui três desinências temporais, a saber, –ba, em (), –du, em () e–da, em (). Todavia, os verbos, em sua grande maioria, não se flexionam emfunção de pessoa, tempo ou número. Brüser et al. () assinalam as desi-nências –ba, –du e –da como marcadoras de “anterioridade”, “passividade”

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. Características do caboverdiano

e “anterioridade + passividade”, respectivamente.

() ZináidaZinaida

taHAB

kantábacantar.PST.IMPF

sábi.bem

Zinaida cantava bem.(Quint, : )

() ElEle

fládu.falar.PST

Ele tinha falado.

() PedruPedro

fládafalar.PST

maque

PáluPaulo

PFVmóri.morrer

Pedro tinha dito que o Paulo morreu.(Quint, : )

As noções de tempo, modo e aspecto são, na grande maioria dos casos,veiculadas por uma partícula pré-verbal. As partículas pré-verbais sãoinvariáveis, sempre precedem o verbo e combinam-se somente na forma deuma por verbo (Quint, ). As partículas aspectuais são:

• Ta: marca o aspecto imperfectivo, ou habitual. Indica que a açãoé praticada habitualmente, independente do tempo, conforme ().Ademais, de acordo com Brüser et al. (), a partícula marca tam-bém “imperfectividade”, englobando“iteratividade”, “habitualidade”e “futuridade”.

() DjonJoão

taHAB

kánta.cantar

O João canta (habitualmente).(Quint, : )

• Sata: marca o aspecto progressivo ou durativo, como em ().

() DjonJoão

sataPROG

kánta.cantar

O João está cantando.(Quint, : )

• Dja: marca o aspecto pontual. Indica que a ação acabou de ser re-alizada logo antes do momento da enunciação, conforme exemplo

A distinção entre as desinências –du e –da parece residir mais no domínio aspectualdo que temporal e pode, contudo, não ser evidente.

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. Características do caboverdiano

em ().

() DjonJoão

djaPON

kánta.cantar

O João acabou de cantar.(Quint, : )

• Ál: marca o aspecto potencial ou eventual. Indica que a ação é susce-tível de ocorrer, exemplificado em ().

() DjonJoão

álPOT

kánta.cantar

Talvez (é possível que) o João cante.(Quint, : )

A ausência de qualquer marca aspectual antes de verbos não-estativosindica o aspecto perfectivo, que será marcado nos dados com o símbolo ∅.A negação verbal é indicada pela partícula ka e ocorre, regularmente, entreo sujeito e a partícula aspectual.

Quint ( : ) observa que “não existe um sistema de equivalênciassimples entre o sistema aspecto-voz-tempo do caboverdiano e o sistemamodo e tempo do português.” Assinala ainda que seria impossível dizer aque forma determinada combinação de tempo-modo-aspecto do caboverdi-ano corresponderia exatamente tal ou tal flexão verbal do português. Emoutras palavras, seria praticamente impossível estabelecer uma correspon-dência exata entre o sistema verbal das duas línguas.

Para finalizar, o verbo ser é apresentado pelo autor como exceção àsregras aplicadas aos demais verbos da língua por não possuir uma formapassiva e por sua flexão não ser derivada do radical, exceto pela forma dopassado regular:

• presente: el é (ele é)

• passado: el éra (ele era)

• passado regular: el serba (ele ia ser)

A forma do presente é, em geral, elidida, principalmente em contextosexclamativos, em (), na presença da partícula de negação ka, exemplifi-cado em () e em expressões comparativas, como em ():

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. Características do caboverdiano

() KáruCarro

bunitu!bonito

Este carro é bonito.(Quint, : )

() DjonJoão

kaNEG

mutumuito

spértu.esperto

O João não é muito esperto.(Quint, : )

() DjonJoão

másADV

grándigrande

kiPRON.CONJ.PREP

Pálu.Paulo

O João é maior que o Paulo.(Quint, : )

A língua possui ainda, outras especificidades quanto o domínio verbal quenão serão contemplados no presente trabalho. Optamos por apresentarapenas as características relevantes à análise apresentada no decorrer dadissertação.

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CAPÍTULO

Línguas Crioulas

. Introdução

A formação das línguas crioulas e seu estatuto são temas que, para osestudiosos da área de crioulística, independentemente de seu objeto deestudo, não podem ser colocados de lado, por constituírem um debateainda presente para os pesquisadores da área.

Não é de nosso intento, todavia, realizar uma apresentação exaustiva dosautores e trabalhos que se debruçaram sobre o tema pois, como é sabido, háestudiosos que já o fizeram minuciosamente. Nem tampouco pretendemosempreender uma historiografia sobre a discussão gerada acerca do tema.Apresentaremos aqui, de modo sucinto, alguns dos trabalhos pertinentessobre a formação das línguas crioulas, bem como as diferentes correntesexistentes.

Assumimos, porquanto, que nomes como Holm () e McWhorter() seriam, também, importantes para a discussão desse tema. Todavia,por uma questão de tempo e por não ser esta uma dissertação sobre todasas teorias que versam a respeito das línguas crioulas, esses autores nãoestão aqui contemplados. Entretanto, sublinhamos a importância delespara o debate.

Nesse capítulo exploramos algumas teorias — mais antigas — que versam sobreo surgimento das línguas crioulas. Admitimos que não contemplamos trabalhos maisrecentes sobre o debate, o que poderia ter levado a uma discussão mais produtiva sobre otema. Agradecemos a banca pelas sugestões a respeito desse capítulo e afirmamos que os

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. Sobre o surgimento das línguas crioulas

. Um breve panorama dos estudos sobre o sur-gimento das línguas crioulas

O estudo das línguas crioulas, como campo de pesquisa sistemático, trazCoelho () e Schuchardt () como precursores. Todavia, o estatutodessas línguas tem sido fonte de grande debate ao longo dos estudos naárea. Crioulistas não concordam quanto à definição dos termos pidgins ecrioulos, nem sobre o status de um número de línguas que se tem afirmadopertencer a tal classificação. Para Muysken and Smith (), devemosolhar para a história, linguística ou social — de preferência as duas —,antes de classificarmos uma determinada língua como crioula.

Na mesma esteira de pensamento, Arends () reforça a necessidadede olhar para a história dessas línguas, embora, como é sabido, não sejapossível estabelecer uma história comum para todas as línguas crioulas. Oautor aponta, com base na história de formação, para três tipos de línguascrioulas: de plantação, de forte e de quilombos (maroons).

As línguas crioulas de plantação desenvolveram-se na área atlânticaonde o sistema de plantation foi introduzido. Esse sistema utilizou-se deum largo número de escravos trazidos da costa africana. Importa salientaro fato de esses elementos não estarem necessariamente interligados. Emoutras palavras, não podemos afirmar que, em todos os lugares onde foi im-plementado, o sistema de plantation teve como consequência um processode formação das línguas crioulas, haja vista o caso do Brasil.

O segundo tipo de contexto foram os fortes. Estes eram postos fortifi-cados, situados ao longo da costa do oeste africano, nos quais os europeusimplantaram suas atividades comerciais. O caboverdiano é oriundo dessetipo de contexto sócio-histórico.

O terceiro tipo de contexto sócio-histórico, em que houve a formação delínguas crioulas, foram os quilombos, ou maroons. Nesse caso, os escravosfugidos das plantações formaram suas próprias comunidades isoladas doresto da colônia. Há relatos de comunidades quilombolas na Jamaica,Suriname, São Tomé, entre outros locais.

Para o entendimento do caboverdiano, vale ainda ressaltar a distinçãoentre línguas crioulas endógenas e exógenas feita por Chaudenson (),dado que Cabo Verde configura-se como um arquipélago sem populaçãoautóctone.

erros que porventura ainda persistirem, é de nossa responsabilidade. Alertamos aindaao leitor que, caso tenha um interesse mais direto na análise do sintagma nominal docaboverdiano, a leitura desse capítulo não interfere diretamente no entendimento dasanálises.

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. Sobre o surgimento das línguas crioulas

As línguas crioulas endógenas desenvolveram-se pelo contato entre po-pulações indígenas e um grupo imigrante. As exógenas, por seu turno,desenvolveram-se através do contato entre imigrantes e a população trans-plantada e são, em geral, variedades insulares. A população nativa temum papel limitado nesse último caso, por ter sido rapidamente expulsa ouexterminada pelo processo de colonização, ou ainda, como no caso de CaboVerde, por não haver sequer população nativa.

Um ponto que parece ser de concordância em relação à formação daslínguas crioulas é que seu surgimento, na grande maioria dos casos, estáligado ao contexto de expansão colonial europeia e o consequente tráficode escravos advindo dessa expansão. Como consequência, houve o apare-cimento do sistema de plantation, introduzido pelas nações europeias emalgumas colônias. Esse ambiente, segundo Arends (), deve ter sido umdos principais loci de crioulização.

A demografia é apontada por Arends () como uma precondição aoprocesso de crioulização e também como um determinante da naturezadesse processo. O desenvolvimento quantitativo entre as partes brancase negras da população seria um dos fatores demográficos que poderiamcontribuir para o entendimento do processo de crioulização, visto que, con-forme o autor salienta, a presença de “modelos” da língua lexificadora seriauma condição necessária para a transmissão desta à população escrava.

.. Teorias que tomam como foco o input europeu

Sobre as teorias que tomam como foco o input europeu para explicar aslínguas crioulas, den Besten et al. () fazem uma divisão entre as que en-fatizam uma língua europeia específica e as que acentuam a transformaçãodas estruturas das línguas europeias.

As primeiras, conhecidas como teorias monogenéticas, afirmam, em suaforma mais radical, que todas as línguas crioulas do mundo derivaramde um único pidgin, de base lexical portuguesa, falado na costa do oesteafricano. Já as teorias que acentuam a transformação das estruturas daslínguas europeias dividem-se, por sua vez, entre a suposição de que ospróprios europeus simplificavam suas línguas quando falavam com osafricanos — é a chamada hipótese baby talk / foreigner talk — e a hipótesede aprendizado imperfeito de segunda língua pelos africanos.

Teorias monogenéticas

Apresentam, basicamente, duas versões. A primeira afirma que todas aslínguas crioulas teriam sido derivadas do pidgin português do oeste africano

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. Sobre o surgimento das línguas crioulas

(WAPP — West African Pidgin Portuguese); a segunda, além de incorporara primeira hipótese, assevera também que esse pidgin teria sido derivado,por sua vez, de uma língua franca do mediterrâneo.

A teoria da monogênese esteve em voga nas décadas de sessenta esetenta do século XX e foi primeiramente articulada por Taylor ()e Thompson (). Esses autores presumiram que o WAPP teria sidofalado do século XV ao XVII em vários fortes e comércios realizados, pelosportugueses, ao longo da costa da África.

Um desenvolvimento dessa hipótese alega que o WAPP teria provindo,por meio do processo de relexificação, de uma língua franca falada nomediterrâneo. den Besten et al. () reconhecem que o papel de umalíngua franca na formação do WAPP não poderia ser negado, entretantonão pode ser confirmado também. Salientam ainda que a ideia de que todosos pidgins e línguas crioulas tenham derivado de um único caso de pidg-nização é completamente irracional, pois um exemplo único de qualquertipo de fenômeno ligado à atividade conceptual humana é simplesmenteinconcebível.

Foreigner talk e baby talk

Nessa perspectiva teórica, o resultado que tem sido chamado na literaturasociolinguística de foreigner talk, ou seja, a simplificação da fala pelosnativos quando falam com estrangeiros, poderia ter se constituído comobase para a formação de pidgins e, em último caso, das línguas crioulas.O foreigner talk seria resultado de pelo menos quatro processos separados:acomodação, imitação, condensação telegráfica e adoção de convenções.

Nessa esteira de pensamento, o status do falante não nativo seria umfator crucial que determinaria o tipo de contato e processos utilizados nainteração de comunicação entre falantes nativos e não nativos.

den Besten et al. () salientam o fato de que, qualquer que seja omérito da teoria do foreigner talk, ela claramente corre o risco de ser circulare faz certas predições específicas que não são corroboradas. O risco decircularidade liga-se ao fato de que, uma vez que as formas do foreignertalk são, em geral, modeladas em pidgin, esse último pode, erroneamente,ser pensado como tendo surgido do primeiro. Ademais, para os autores, ospidgins e línguas crioulas parecem ser mais um resultado de aprendizado

Para explicar a existência das línguas crioulas de base lexical francesa e inglesa, entreoutras, a teoria afirma que estas teriam surgido igualmente do WAPP, e que teriam sofridoum processo de relexificação.Esse primeiro pidgin, de base lexical italiana/provençal, teria existido por volta do

ano , embora os primeiros registros tenham sido feitos apenas no século XIV.

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. Sobre o surgimento das línguas crioulas

de segunda língua do que de foreigner talk.

Aprendizagem imperfeita de segunda língua

O primeiro estudioso a propor que os pidgins são resultado de aprendiza-gem imperfeita de segunda língua (L) foi Coelho (). Nessa perspectivateórica, são levantadas algumas características de “sistemas de interlíngua”que podem ser encontrados em pidgins e línguas crioulas:

a. formas verbais invariáveis, derivadas ou do infinitivo ou da formaverbal menos marcada;

b. não uso de determinantes ou, em alguns casos, uso de demonstrativoscomo determinantes;

c. posição invariável da partícula de negação pré-verbal;

d. uso de advérbios para expressar modalidade;

e. uma única ordem de palavra fixa, sem inversão de questões;

f. redução ou ausência de marcação plural nominal.

.. Teorias que focam o input não europeu

Aqui, três conceitos são de fundamental importância, a saber, substrato,superstrato e adstrato. O termo substrato tem origem na linguística históricae geografia dialetal do século XIX e refere-se à língua ou dialeto do grupo demenor prestígio dentro da situação de contato linguístico. De modo similar,a língua do grupo que possui alto prestígio é denominada superstrato ousuperstratum e, finalmente, duas línguas que possuíam igual prestígio nasituação de contato eram denominadas adstratos.

Além do fato de referir-se à línguas particulares na situação de contato,os três termos são utilizados também para referir-se a efeitos causados poressas línguas nas que resultaram do contato linguístico.

Arends et al. (), ao abordar a questão do substrato na formação daslínguas crioulas, apontam para o problema metodológico conhecido comoo Princípio da Cafeteria.

Nos estudos das línguas crioulas, o termo “adstrato” geralmente é utilizado parareferir-se à línguas que estiveram envolvidas na formação sem pertencer ao substrato ousuperstrato.

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. Sobre o surgimento das línguas crioulas

Esse termo foi cunhado por Dillard () para referir-se à prática deatribuir, arbitrariamente, características de línguas crioulas de base lexicalinglesa à influência do superstrato de vários dialetos ingleses.

Nesse sentido, considerando as teorias que tomam como foco o input nãoeuropeu, ou seja, que enfatizam as características do substrato, o Princípioda Cafeteria referir-se-ia a um processo similar, mas no sentido oposto, naordem de “demonstrar”, por meio de explicações ad hoc, influências de umalíngua particular do oeste africano em determinada língua crioula.

Outro problema metodológico seria estabelecer, com algum grau decerteza, qual ou quais substratos tiveram papel numa dada característicade determinada língua crioula. Ao lado desses problemas metodológicos,há ainda um problema empírico, que consiste em saber quais línguas dosubstrato estiveram na situação de contato e ainda quando e qual o númerode falantes de cada língua.

Os autores, todavia, apontam que a influência direta do substrato podeser observada na fonologia, morfologia e sintaxe das línguas crioulas. Umexemplo na fonologia é a estrutura silábica das línguas crioulas suriname-sas, que difere de sua língua lexificadora, a inglesa, aproximando-se delínguas como gbe (CV, CV) e kikongo (CV, CVV, CVVN), além de possuirtons distintivos.

Na morfologia, a influência africana pode ser constatada, por exemplo,nos afixos aspectuais do berbice dutch (BD), o qual replica completamenteo sistema do i

˙jo˙

oriental: –arε imperativo e –tε perfectivo. Na sintaxe, acaracterística mais apontada como influência do substrato é a construçãoserial verbal. Esse tipo de construção é apontado pelo autores como relati-vamente raro entre as línguas do mundo, exceto para línguas sino-tibetanas,línguas papua e um número bastante representativo de línguas do oesteafricano, tais como akan, gbe, gã e kru. Observem-se os exemplos () e ()retirados de Arends et al. ( : ):

Saramacan

() ASG

teipegar

goniarma

sutiatirar

diDET

pingo.porco

Ele atirou no porco com uma arma.

Akan

() Odehe-take

adaremachete

noDET

twaacortar.PST

nkromata.galho

Ele cortou o galho com um facão.

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. Sobre o surgimento das línguas crioulas

Quanto à semântica, Arends et al. () salientam que há poucos estudosna área quanto ao papel da influência do substrato, e chamam a atençãopara um estudo comparativo, realizado por Huttar (), entre o ndjuka eoutras quarenta e três línguas.

.. Hipóteses gradualistas

Arends and Bruyn () afirmam que alguns crioulistas compartilham davisão de que as línguas crioulas, por definição, emergiram de pidgins pormeio do processo de nativização. Essa noção foi adaptada por Mühlhäsler() com o nome de developmental continuum.

Contrastando com a hipótese da crioulização como um processo “abrupto”ou “instantâneo”, desenvolveu-se, durante o final dos anos oitenta e iníciodos anos noventa do século XX, o Modelo Gradualista (Carden and Steward,); (Arends, ) ou Hipótese de Crioulização Gradual (McWhorter,).

Com base em documentos históricos, os autores apontam que a taxade nativização das sociedades escravas — ou seja, a taxa em que a propor-ção dos negros localmente nascidos e dos trazidos do continente africanomudou em favor dos primeiros — foi tão lenta que parece improvávelque o processo de crioulização tenha se dado de modo instantâneo. Outrapossível evidência trazida à baila pelos autores é o fato de um número depidgins, tal como o tok pisin, ter se expandido e estabilizado antes de seremnativizados.

Essa hipótese aponta para o problema da definição de crioulização.Num sentido restrito, adotado por Bickerton () e outros, crioulização étomada como relacionada somente aos requerimentos mínimos da língua,enquanto no sentido amplo, adotado por Labov () e outros, outraspropriedades da língua são incluídas na definição. Ambas as visões sãoproblemáticas. No sentido restrito, um dos problemas seria decidir quaissão os requerimentos mínimos para a língua e, no sentido amplo, decidironde a crioulização para e a mudança normal da língua começa (Arendsand Bruyn, ).

Neste estudo, verificou-se a extensão polissêmica de vinte morfemas do ndjukacomparando-se a quarenta e três línguas, incluindo pidgins e línguas crioulas do Ca-ribe, oeste africano, não atlânticas e outras. As diferentes línguas foram arranjadas deacordo com o grau de semelhança de seus lexemas por relação à estrutura semânticalexical de ndjuka.

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. Sobre o surgimento das línguas crioulas

.. Abordagens universalistas

A ideia geral é a de que aspectos universais da capacidade linguísticahumana são, de alguma forma, responsáveis por características específicasde pidgins e línguas crioulas. Coelho (), citado por Muysken andVeenstra (), escreve:

O crioulo românico e os dialetos indo-portugueses e todas asformações similares devem sua origem à ação de leis fisiológicasou psicológicas [que são] as mesmas em todos os lugares, e não àinfluência de línguas anteriores das pessoas onde esses dialetosforam formados.

A afirmação de Coelho é direcionada primeiramente contra a ideia deinfluência do substrato.

No que concerne às duas concepções dominantes de universais, estespodem ser denominados de processuais e constitutivos. Os universais pro-cessuais são, como o nome indica, propriedades universais de processo, taiscomo gramaticalização e aprendizagem de segunda língua.

Os universais constitutivos são propriedades do resultado de pidgins elínguas crioulas, tal como o sistema de partículas de tempo, modo e aspecto(TMA), ou ordem de palavras. Esses universais pertencem ao domínio dateoria da gramática que afirma que toda língua natural deve estar de acordocom a Gramática Universal, sendo esse “estar de acordo com” não opcional.Essa teoria, dentro da abordagem das línguas crioulas, tem Bickerton comoprincipal expoente com seu livro Roots of language, de . O conjuntototal de ideias é conhecido como Teoria do Bioprograma.

De modo breve, essa teoria afirma que as línguas crioulas são “invenções”das crianças que cresceram nas plantações recém-formadas. Essas criançasteriam ouvido somente os pidgins falados pelos seus pais e teriam utilizadosua própria capacidade inata para transformar esse input em uma língua“de pleno direito”.

Mesmo sem nos determos nessa hipótese, bastaria um olhar sobre osfatos históricos para indicar que ela não poderia sustentar-se. Praticamentenão existiam crianças crescendo nos ambientes de plantação, pois eraminúsculo o número de crianças ali nascidas, o que é ainda reforçado pelabaixíssima expectativa de vida dos africanos uma vez trazidos às sociedadesde plantação: entre sete e oito anos. Ou seja, a população não era fixa nemtampouco estável, o que torna impossível advogar por uma teoria que

Esses universais possuem, em geral, uma base psicolinguística e são formulados comoestratégias que um falante pode empregar em uma situação de contato.

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. O método histórico comparativo

sustenta a formação das línguas crioulas na aquisição de primeira línguade crianças nascidas nessas sociedades.

. O método histórico comparativo: Thomason& Kaufman

No livro Language contact, creolization and genetic linguistics, de , Tho-mason & Kaufman advogam que pidgins e línguas crioulas não seriamgeneticamente relacionados a nenhuma das línguas envolvidas no processode formação, pelo fato de não terem surgido através de um processo normalde transmissão.

Sobre o método comparativo utilizado pelos autores, este geralmenteé descrito compreendendo duas diferentes questões, a saber, o estabeleci-mento de uma relação genética de um grupo de línguas e a reconstrução deuma protolíngua da qual aquelas teriam surgido.

Ao utilizar o método comparativo, com o estabelecimento de uma re-lação genética entre um grupo de línguas, em que a língua é passada deuma geração a outra, Thomason & Kaufman deixam os pidgins e línguascrioulas de fora, por acreditarem não ser possível estabelecer uma relaçãocom as línguas através das quais os pidgins e línguas crioulas tivessem sedesenvolvido.

Para Thomason and Kaufman (), a língua é passada de uma ge-ração pai para uma geração filha ou através de um grupo de pares, doimediatamente mais velho ao mais novo. Asseveram ainda que é a históriasociolinguística dos falantes, e não a estrutura de suas línguas, o determi-nante primeiro do resultado do contato linguístico, sendo as consideraçõeslinguísticas relevantes, mas secundárias.

Os autores consideram as línguas crioulas resultado de mudança semtransmissão normal. Afirmam não haver necessariamente um pidgin ances-tral para cada língua crioula e argumentam que as similaridades poderiam

Essa relação genética entre as línguas seria demonstrada de acordo com os seguintescritérios: (i) o estabelecimento de correspondência fonológica entre palavras do mesmosentido, ou sentidos relacionados, (ii) a reconstrução de sistemas fonológicos, (iii) o estabe-lecimento de correspondências gramaticais e (iv) a reconstrução de sistemas gramaticais.Quando mais de duas línguas estão envolvidas, também são adicionados os critérios de (v)construção de um subgrupo de modelo para as línguas e (vi) elaboração de um modelo dediversificação.Essa afirmação dos autores torna saliente o problema desse tipo de abordagem e

reforça a visão de que as línguas crioulas seriam línguas “especiais”, que deveriam sertratadas de modo diferente em relação às demais línguas.

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. Crioulização como apropriação linguística

ser explicadas pelas rotas parcialmente paralelas de surgimento. O desen-volvimento de um pidgin para um crioulo não pareceria plausível dado ocenário social do tráfico europeu de escravos.

A hipótese defendida pelos autores é de crioulização abrupta, em que alíngua de contato emergente torna-se ao mesmo tempo o idioma principalda comunidade e é aprendido como primeira língua por qualquer criançanascida na nova comunidade multilíngue.

Thomason and Kaufman () salientam, no entanto, que esse não éo único contexto histórico de surgimento e dão como exemplo a Jamaica,onde os escravos eram homens adultos e a população era reabastecida pelaimportação de novos escravos adultos, não por crianças, sendo a nativizaçãoda língua de contato emergente lenta e tardia.

Na abordagem dos autores, as línguas crioulas surgiriam de uma quebrade transmissão e não possuiriam origem genética. As línguas africanasteriam sido abandonadas e as línguas europeias não teriam sido adquiridascompletamente pela população de escravos, o que para eles removeria detodas as línguas crioulas as possibilidades de classificação genética.

. Crioulização como processo de apropriaçãolinguística: Chaudenson

Em Creolization of language and culture, de , Robert Chaudenson centra-se nas línguas crioulas de base lexical francesa e argumenta, ao longo dolivro, contra as abordagens tradicionais da gênese das línguas crioulas.

Distingue dois tipos de pidgins e línguas crioulas ( : ):

. O primeiro tipo é chamado de endógeno, desenvolvido pelo contatoentre populações indígenas e um grupo imigrante.

. O segundo tipo é o exógeno, desenvolvido fora do contato entre imi-grantes e a população transplantada. Abrange, em geral, variedadesinsulares. A população nativa tem papel limitado por ter sido rapida-mente expulsa ou exterminada pelo processo de colonização.

O autor aponta a crioulização como uma tragédia humana e socialcaracterizada por três unidades similares:

As línguas crioulas de base lexical francesa, que são o foco da análise de Chaudenson(), são faladas nas seguintes regiões: [Região América Caribenha (ACR):] Louisiana,Haiti, Guadalupe e suas dependências, Martinica, Dominica, Santa Lúcia e Guiana Fran-cesa; [Região do Oceano Índico (IOR):] Reunião, Mauritânia, Rodriguez e Seychelles.

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. Crioulização como apropriação linguística

. unidade de lugar: emergência tipicamente em ilhas;

. unidade de tempo: desenvolvimento dentro de aproximadamente umséculo;

. unidade de ação: evolução em comunidades coloniais de escravos.

Chaudenson coloca como a base primeira do trabalho um exame pre-ciso das condições sócio-históricas de formação e evolução das sociedadescoloniais, bem como o modo como essas sociedades eram estruturadas.

Para explicar a formação das sociedades coloniais, o autor a divide emdois períodos: société d’habitation e société de plantation:

Primeira fase: société d’habitation — seria a fase inicial da colonização,em que os brancos eram tão numerosos quanto os negros. Economicamente,foi a fase de colonização e aclimatação e compreendeu o desenvolvimentode uma infraestrutura mínima necessária à agricultura colonial, que pode-ria definir o período seguinte.

Possui duas características relevantes. A primeira é a evolução demo-gráfica marcada por baixo aumento da população escrava e a segundacaracterística é socioeconômica, uma vez que as condições da vida diáriaeram difíceis e colocavam brancos e negros em pé de igualdade.

Segunda fase: société de plantation — a mudança de uma fase a outra nãose deu de forma abrupta ou absoluta. Nesta fase houve também uma prole-tarização dos brancos (os chamados petits blancs) e aumento da populaçãoescrava, o que, inevitavelmente, levou a outra forma de trabalho e organi-zação do estilo de vida nas sociedades de habitação; como consequência,essas fazendas tornaram-se o que é geralmente conhecido como plantation.

Terceira fase: o fim da imigração — essa é menos significativa em termosde crioulização da língua e da cultura. Inicia-se quando a ampla imigra-ção da força de trabalho se encerra, o que na maioria dos casos se deu noséculo XX, coincidindo com um novo sistema de contrato de servidão en-volvendo não europeus, o que foi, de diversas formas, um modo disfarçadode escravidão.

Ainda segundo o autor, a abordagem que coloca uma língua crioulacomo resultado da evolução de um pidgin através de “complexificaçãodas formas” e “expansão dos domínios de uso” é incompatível com osfatos sócio-históricos e sociolinguísticos que caracterizam as fases iniciaisdas sociedades coloniais. Segundo ele, não há características estruturais

O autor define esse relacionamento como complementar e assimétrico. A assimetriaadvém do fato de os membros dos dois grupos tratarem-se de modo diferente, embora ascondições de vida fossem similares.

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. Crioulização como apropriação linguística

que definam as línguas crioulas independentemente das circunstânciassócio-históricas de sua gênese, nem tampouco considerações estruturaisnem sócio-históricas suficientes para caracterizar isoladamente as línguascrioulas.

Chaudenson ( :) define em sua hipótese a crioulização como“resultado de um processo sociolinguístico peculiar ao desenvolvimentodas sociedades que surgiram na colonização europeia do século XVII”.Ademais, o processo é caracterizado pela emergência de novos sistemasautônomos que surgiram da aproximação contínua inicial de um francêsdialetal anterior.

O autor admite que essa perspectiva diverge das teorias clássicas de cri-oulização, em que esta é definida como “nativização” ou “complexificação”de um pidgin. Na perspectiva apresentada por ele, a crioulização resultariada convergência de fatores como:

. a provável emergência de uma koiné, já marcada pela reestruturação;

. a emergência de um continuum de aproximações da língua-alvo emsituações comunicativas em que um forte sistema centrípeto é encon-trado; e

. um sistema no processo de autonomização, constituído por estratégiasrelativamente constantes de apropriação da língua, aproximações“periféricas” de fases anteriores de desenvolvimento.

Todas essas situações apresentam, em graus variados, a característicacomum de pouca exposição ou sensibilidade à norma, que seria um fatorfavorável à reestruturação do sistema. Poder-se-ia considerar a crioulizaçãoparte de um caso especial de divergência, na medida em que a reestrutura-ção afeta áreas já variáveis no sistema original. Contudo, ao mesmo tempo,a crioulização seria um processo de mutação linguística radical, já que asmudanças estruturais atingem outras áreas que não seriam, em princípio,afetadas por mudanças associadas exclusivamente a fatores linguísticosinternos.

Em suma, o processo de crioulização seria o resultado de três conjuntosde processos que se sobrepõem:

. “radicalização” e “transmissão” de processos de reestruturação, paraos quais as variedades “marginais” do francês ofereceram variantes

Esses novos sistemas seriam distinguidos pela aceleração e radicalização do processode autorregulação, ilustrado pelas variedades “marginais” do francês, especialmente daAmérica do Norte.

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. Evolução das línguas como especiação

e providenciaram a direção. Essas variedades seriam, de algumaforma, os “elos perdidos” na reconstrução de uma evolução que vaido francês à língua crioula, afetando alguns aspectos do sistema, masnão todos;

. emergência de estruturas não atestadas nas variedades francesas fa-ladas em comunidades onde o francês é transmitido como línguanativa. Essas novas estruturas seriam resultados do reajuste ligado àaprendizagem e ao contato linguístico;

. evolução interna ligada à própria dinâmica do sistema.

Essa abordagem vê o relacionamento entre as línguas crioulas de basefrancesa como um “contínuo interlinguístico” e evita o “mito” de uma únicalíngua crioula francesa. As similaridades entre as línguas crioulas poderiaser explicada pela gênese comum do francês e, mais particularmente, peloprocesso de autorregulação dessas línguas. Por outro lado, a diferença entreelas poderia ser explicada pela influência de línguas não europeias.

. Evolução das línguas como especiação: Muf-wene

Mufwene () e () faz notar que as línguas crioulas são especiaisapenas por um acidente e esse acidente é o modo como têm sido abordadaspela linguística. As línguas crioulas são tão naturais como as línguasnão crioulas e, ao contrário do que tem sido afirmado pela maioria doscrioulistas, elas não teriam tido uma evolução abrupta, nem teriam sidoprodutos de quebra de transmissão das línguas das quais elas evoluíram.

O autor apresenta o processo de crioulização como um processo social,não estrutural. Um ponto importante levantado por Mufwene seria o fatode as novas variedades de línguas terem sido originadas da apropriação devariedades não padrão das línguas europeias. E, ainda, as línguas crioulasteriam se desenvolvido pelo mesmo processo de reestruturação que marcaa evolução das línguas não crioulas. O contato entre as línguas seria umfator de grande importância nesses desenvolvimentos.

Mufwene aponta que as línguas crioulas, como resultado de contato delínguas e como exemplo perfeito de “línguas mistas”, têm sido tratadascomo “filhos fora do casamento” e cita Thomason and Kaufman (),que afirmam não poderem as línguas crioulas ser classificadas genetica-mente pela impossibilidade da utilização do método comparativo. O autor

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. Evolução das línguas como especiação

argumenta que a base do problema das abordagens como a de Thomason eKaufman viria da interpretação incorreta da genética Stammbaum, tomadacomo forma de dar conta da diversificação das línguas.

O problema também viria da suposição básica, em linguística genética,desde o esquema do Stammbaum feito por August Schleicher no séculoXIX, de que a diversificação normal da língua procede monoparentalmente,como uma reprodução assexuada. Nessa perspectiva, o contato de lín-guas tem sido especialmente invocado para dar conta de “irregularidades”reveladas pelo método comparativo, não como o gatilho das mudanças“regulares” que levam à especiação.

O autor apresenta algumas abordagens comuns sobre a formação daslínguas crioulas que ele considera mitológicas. A primeira delas seria aafirmação de que o desenvolvimento das línguas crioulas teria se dado demaneira abrupta, por obra de crianças, através dos pidgins de seus pais.

A história sugere, no entanto, o desenvolvimento gradual de uma koinéancestral, falada como vernáculo pela população crioula dos descendenteseuropeus e não europeus, nas comunidades de habitação que precederamas de plantação. Mufwene também assinala que as plantações não teriamsurgido “da noite para o dia”, já que a maioria das populações que fundaramas colônias era muito pobre para começar uma plantação. Então, essaspopulações teriam iniciado com uma pequena fazenda e levado décadasou, em alguns casos, um século inteiro antes de desenvolver uma plantaçãoconsiderável.

Outra afirmação comum é que as línguas crioulas refletem a aprendiza-gem imperfeita das línguas coloniais europeias pelos escravos. Contudo,há outras variedades coloniais que são divergentes da língua falada na“metrópole”, como o inglês americano e o português brasileiro, e não sãotidas como línguas crioulas.

Um terceiro mito residiria em se afirmar que o fato de as estruturas daslínguas crioulas serem tão diferentes de suas “aparentadas” não crioulasseria devido a uma quebra na transmissão de seus lexificadores. Esse é ocaso da “hipótese descontinuísta”, que não explicaria por que as línguascrioulas retêm grande proporção de seus vocabulários do lexificador, nempor que podemos ligar tantas de suas características estruturais com seusancestrais europeus não padrão. Não haveria nada na estrutura das línguascrioulas que desse suporte a essa hipótese.

O quarto mito seria a afirmação de que o método comparativo nãopoderia ser aplicado às línguas crioulas, no sentido de determinar se elasseriam ou não geneticamente relacionadas aos seus “lexificadores”. Essemito seria baseado na comparação incorreta das estruturas das línguas

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. Evolução das línguas como especiação

crioulas com as variedades padrão das línguas europeias.Em relação ao pressuposto de que as línguas crioulas seriam línguas

peculiares, com tipos únicos de condições ecológicas que as colocariam àparte de outros casos de especiação de língua, Mufwene argumenta quealgumas questões devem ser resolvidas. Uma delas seria a questão quesurge da associação da emergência das línguas crioulas com as colônias deplantação, especialmente de cana-de-açúcar. Se essa associação é verdadeirapara o Caribe, não o é para o Brasil.

Algumas colônias, como as Antilhas Holandesas e Cabo Verde, produzi-ram variedades identificadas como línguas crioulas, embora dificilmentetenham desenvolvido qualquer agricultura industrial notável. Elas servi-ram primeiramente como posto de comércio e depósito de escravos. Diantedisso, levanta-se o questionamento se haveria alguma justificativa paraassociar o desenvolvimento de línguas crioulas às grandes plantações etratar a emergência do português popular brasileiro como uma exceção àregra.

No que concerne ao mito da “descrioulização”, Mufwene afirma que nãohá evidências diacrônicas convincentes para esse processo e mostra tambémque o grande problema da hipótese de semicrioulização, como reversa àhipótese de descrioulização, encontra-se na dificuldade em determinarquais são realmente as “características crioulas” ou o que seria um suposto“crioulo prototípico”.

O processo “crioulização”, para o autor, seria a extensão de um processode reestruturação já iniciado nos “lexificadores” relevantes. Não haveriauma medida exata que pudesse ser utilizada para identificar se a reestrutu-ração procedeu-se somente na metade, ou em partes, pois a realidade decada língua crioula, mesmo as que evoluíram de um mesmo lexificador,difere da de outra, do mesmo modo que as línguas românicas, germânicasou bantas e seus respectivos familiares compartilham apenas partes daestrutura.

Sobre o fato de as línguas crioulas terem surgidos de pidgins, o autorsalienta que um simples olhar na distribuição geográfica já sugere que essaancestralidade seria questionável. A maioria dos pidgins está concentradana costa atlântica da África e em ilhas do Pacífico, enquanto que a maioriadas línguas crioulas que evoluíram de línguas europeias está concentradano Atlântico, ilhas do Oceano Índico e na costa atlântica das Américas.

No tocante ao papel das crianças na evolução das línguas crioulas,

O autor observa que, nesse caso, as línguas crioulas podem realmente revelar aartificialidade do método comparativo, se baseado em dados constituídos de registrosescritos. Afirma ainda que as línguas crioulas seriam, juntamente com suas parentescoloniais, o último resultado linguístico da dispersão indo-europeia.

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. Evolução das línguas como especiação

sua função seria mais de agentes de normalização. As crianças crioulascontribuíram da mesma forma que crianças em toda parte contribuem paraa mudança e divergência da variedade de seus pais, até mesmo porque, nosperíodos prósperos das colônias, a população cresceu mais por importaçãodo que por nascimento.

A chave para entender por que as línguas crioulas são diferentes desuas aparentadas não crioulas que evoluíram de variedades similares daslínguas europeias é o fato de que a “aquisição da linguagem” é um processode reconstrução sensível às variantes em competição. As línguas crioulasdesenvolveram-se pela reestruturação gradual de estruturas de uma pri-meira koiné colonial das línguas europeias relevantes, em direção aos seusbasiletos, que na verdade são os últimos a terem evoluído.

.. Evolução de línguas e línguas crioulas

A divergência entre as variedades crioulas e não crioulas que emergiram nascolônias seria, então, uma consequência da segregação racial, que reduziu oalcance social e, portanto, a interação verbal entre europeus e não europeusnas plantações.

Mufwene utiliza o termo princípio fundador juntamente com populaçãofundadora para explicar como as características estruturais das línguas cri-oulas foram predeterminadas, em larga medida, pelas características dosvernáculos falados pela população que fundou as colônias. O desenvol-vimento das línguas crioulas seria um conjunto de casos de adaptaçõesnaturais de língua às mudanças das condições ecológicas.

Sumarizando, a história da colonização europeia sugere que nem todosos cidadãos ou pessoas falavam nativamente as línguas que lexificaram asdiferentes línguas crioulas, e que o contato nas sociedades de habitaçãoque precederam as plantações teria sido regular. Depois que as colôniasmudaram para a fase de economia de agricultura, com plantações de cana-de-açúcar e campos de arroz, a população escrava passou a constituir deoitenta a noventa por cento da população. Esse período foi marcado peloaumento geral de importações de escravos, o que levou à “maioria negra” eà concomitante institucionalização da segregação racial. Essa rápida taxa desubstituição em que cada vez menos falantes eram suficientemente fluentesteria servido como modelo linguístico para os que chegavam depois.

Outro fator importante que daria conta da evolução linguística seria aafirmação de que uma língua não é transmitida indiscriminadamente. ElaO princípio fundador não é uma hipótese de desenvolvimentos das línguas crioulas

tal como as hipóteses universalistas, substratistas ou superstratistas. Seria, sim, um dosvários princípios que devem ser considerados para dar conta do desenvolvimento delas.

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. O estatuto das línguas crioulas

seria desconstruída e recriada para adequar-se cada vez mais às necessida-des comunicativas de cada falante. Essa transmissão pode ser caracterizadacomo um processo fragmentado e nenhum falante recria perfeitamenteum idioleto particular nem o conjunto de idioletos que ele visa. Haveriatambém o fato de que nem a desconstrução nem a recriação, ao menos naaquisição natural da língua, são atividades conscientes.

. O estatuto das línguas crioulas

Neste momento do trabalho, assumiremos em consonância com Mufwene(), () que o que torna possível a classificação de uma língua comocrioula são as condições sócio-históricas de seu surgimento. Na visão doautor o processo de crioulização configura-se como social, não estrutural.

Lang ( :) assinala que: “uma língua não é crioula pela sua ’es-sência’ (que nem sei o que é), nem pelo seu funcionamento, mas pela suaorigem.”

Enfatizamos também, em consonância com Chaudenson ( :),que o processo de crioulização seria “o resultado de um processo socio-linguístico peculiar ao desenvolvimento das sociedades que surgiram nacolonização europeia do século XVII.”

Nessa esteira de pensamento podemos afirmar que, em última instância,o próprio termo “línguas crioulas” deve ser repensado, dado que não háelementos linguísticos que as diferenciem das demais línguas naturais.

Diante disso, como consequência, optamos por nos referir à língua, nopresente trabalho, não como crioulo de Cabo Verde, mas simplesmente,caboverdiano.

Em nossa perspectiva, o debate apresentado neste capítulo, a saber,sobre a formação das chamadas línguas crioulas, deve inserir-se em umcontexto mais amplo sobre o contato de línguas, ao invés de tentar apontarcomo se deu sua origem, ou ainda tentar encontrar características queseriam exclusivas a essas línguas — uma vez que vários estudos apontamque essas características exclusivas não existiriam —, mas no sentido deentender como se dá o processo do contato linguístico e quais mudançaslinguísticas podem advir desse contato.

Tal opção permitiria, por exemplo, ajudar a esclarecer as mudançasocorridas em línguas como o português brasileiro (PB). Este seguiu umcaminho diferente do português europeu (PE) devido, segundo algunsestudiosos, ao contato com diferentes línguas africanas e indígenas. Logo,ao aprofundar os estudos sobre as “línguas crioulas de base portuguesa”,poderíamos elucidar alguns aspectos das mudanças seguidas por essas

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. O estatuto das línguas crioulas

línguas, como um modo de entender o caminho evolutivo — se é quepodemos chamar assim — de línguas que tiveram o mesmo componenteinicial, a saber, o português europeu do século XVI, mas com resultadosdiferentes. É importante ressaltar que não se devem deixar de lado ascaracterísticas sócio-históricas da formação de cada uma delas.

Em outras palavras, sugerimos que línguas como o caboverdiano, são-tomense e principense ajudariam a entender certas mudanças ocorridas noportuguês brasileiro, dada algumas semelhanças existentes entre elas noque concerne ao contexto de formação. Levando em conta o fato de queo português que foi levado tanto para o Brasil quanto para Cabo Verdeou ainda para São Tomé e Príncipe foi o português europeu do séculoXVI e ainda que existiu uma situação de contato entre esse português eoutras línguas — africanas no caso de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe elínguas africanas e indígenas no caso do Brasil — nesses diferentes países,faria mais sentido aproximar essas diferentes línguas (português brasileiro,caboverdiano, são-tomense e principense) entre si, do que compará-lasao português europeu, por exemplo, sobretudo ao português europeucontemporâneo.

O português europeu contemporâneo sofreu uma mudança em relaçãoao português que foi levado às diferentes colônias no século XVI como, porexemplo, a expressão do aspecto progressivo, logo, se há alguma relaçãoentre o português brasileiro ou o caboverdiano com o português europeu,seria com o português quinhentista.

É importante trazer à tona também a proposta de Petter (). Aautora mostra que, através da história do contato e dos aspectos linguísticoscomuns entre o “português moçambicano”, o “português angolano” e o“português brasileiro”, é possível levantar a hipótese de um continuumentre essas variedades que derivam de uma história comum, a saber, aexpansão da língua portuguesa num contexto de colonização. Esse contínuoresultaria de uma “mistura” de línguas locais com uma língua dominadoracomum. A autora observa ainda que:

Desse contexto decorre um estatuto linguístico específico paraa língua portuguesa em cada território onde ela é falada, quenão impede, no entanto, a existência de um continuum entre asvariedades linguísticas selecionadas.

(Petter, : )

Em suma, e em termos gerais, a ideia seria a de que toda mudançalinguística seria engatilhada através do contato e isso colocaria em “pé

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. Considerações

de igualdade” todas as línguas naturais. O que as diferenciaria seria osaspectos sociais e históricos, ou seja, a ecologia particular a cada situaçãode contato de línguas.

. Considerações

Neste capítulo apresentamos um panorama de como as chamadas “lín-guas crioulas” têm sido tratadas por diferentes estudiosos ao longo dosanos. Apresentamos os diferentes argumentos utilizados na tentativa deestabelecer elementos que seriam exclusivos às línguas crioulas.

Por fim, apresentamos a visão dos autores Chaudenson () e Muf-wene (), (), que trazem uma abordagem diferente, não conferindomais um estatuto linguístico singular a essas línguas.

Na esteira desses dois autores e da proposta apresentada na seção .,enfatizamos o fato de que o caboverdiano deve ser estudado com basenos fatos da própria língua, e não em uma comparação com o portuguêseuropeu devido a uma alegada ancestralidade, ou ainda devido a uma“ruptura” em relação ao português europeu.

Nesse sentido seria mais fácil explicar alguns fatos do caboverdiano(ou entendê-los de maneira mais adequada) ao olhar outras línguas quesurgiram em condições semelhantes do que tentar enquadrá-los em análisesbaseadas no português europeu.

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CAPÍTULO

O sintagma nominal do caboverdiano

. Introdução

No presente capítulo trataremos das características gerais do sintagma no-minal do caboverdiano. Exploraremos a questão dos nomes nus observandouma das estratégias de expressão de genericidade na língua, bem como asinterpretações definida e indefinida dos nomes nus.

Em outras palavras, partindo do fato de que os nomes em caboverdiano,em sua maioria, não precisam ser acompanhados de determinantes, tentare-mos verificar o que pode favorecer determinadas leituras ou interpretaçõesdo nome em detrimento de outras.

. Características gerais

Em caboverdiano, os nomes, em geral, não são acompanhados de qualquerdeterminante. A língua possui, no entanto, a partícula un(s), que pode, en-tre outras coisas, veicular indefinitude. A presença de un(s), contudo, nãoé obrigatória para que um dado NP possa ser interpretado como indefinido.É importante notar que há, conforme registros do World Atlas of LanguageStructures Online (WALS), pelo menos, quarenta e cinco línguas no mundo— não denominadas crioulas — em que os nomes não precisam ser acom-panhados de qualquer determinante para que possam ser interpretadoscomo indefinidos. Entre elas estão o lango, o núbio, o obolo e o duka, no

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. Características gerais

continente africano; o remo, o santali e o byansi, na Índia; e o nuaulu, naIndonésia, entre outras.

Uma das análises mais amplas realizadas sobre o sintagma nominaldo caboverdiano foi empreendida por Baptista (). A autora definenomes nus como nomes sem determinante aberto, que podem ou nãocarregar a marca de plural. Afirma que há, em caboverdiano, dois tipos dedeterminantes que marcam número, mas não gênero: o artigo indefinido une sua contraparte plural uns. No campo da definitude, kel e sua contraparteplural kes poderiam exercer, segundo a análise da autora, um papel dedeterminante definido, embora sua função primeira seja de demonstrativo(pg. e ).

Em caboverdiano, un(s), tanto em sua forma singular, quanto em suaforma plural, pode desempenhar várias funções na língua. Pode atuarcomo numeral, determinante indefinido ou, ainda, como quantificador.O NP introduzido por un pode ser interpretado como específico ou nãoespecífico. A contraparte singular, quando acompanha entidades abstratas,comporta-se como quantificador, já a contraparte plural, por outro lado,comportar-se-ia como um quantificador quando acompanhada de entidadescontáveis (Baptista, : a ).

Segundo a autora, embora uma das funções de un(s) seja introduzirum novo referente, sua presença não é requerida para que dado NP sejainterpretado como informação nova (pg. ). Tanto nomes sem a presençade un(s) quanto nomes acompanhados por ele podem ter as mesmas inter-pretações. Em outras palavras, nomes com ou sem a presença de un(s) sãopassíveis de ser interpretados como indefinidos específicos, não específicosou, ainda, como nomes quantificados.

Para fatos como esse, Dryer (a) aponta que nas línguas em que háapenas o determinante indefinido, como o tauya da Papua-Nova Guiné, apresença desse determinante, na grande maioria das vezes, não é obrigató-ria. Assinala também que, nessas mesmas línguas, um NP sem artigo podeser interpretado igualmente como definido ou como indefinido.

Utilizaremos a nomenclatura nomes nus, ao longo desta dissertação, para nos referiraos nomes sem a presença de determinantes. Essa denominação serve à literatura emgeral para contrapor nomes com a presença de determinantes a nomes sem essa presença,considerando que nomes acompanhados de determinantes sejam a forma mais usual.Contudo, pelo menos em caboverdiano, os nomes nus seriam a forma “padrão” na língua.A presença de determinantes, por outro lado, é guiada por estratégias específicas.Embora existam algumas questões a serem esclarecidas quanto ao comportamento

de un no caboverdiano, principalmente em relação ao possível comportamento comoquantificador tanto de sua contraparte singular, quanto plural, não nos aprofundaremosna análise de suas diferentes funções. Adotaremos, portanto, as análises realizadas porBaptista ().

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. Características gerais

Baptista questiona então se é possível prever, categoricamente, quandoun ou kel devem ser usados e quando∅ deve aparecer. Admite, porém, quenão está apta a responder a essa questão por ora, mas que, em sua análise,realiza uma tentativa de definir as condições favoráveis à ocorrência dosnomes nus.

Na análise da autora, os nomes nus do caboverdiano apresentam altograu de variabilidade interpretativa, o que os torna passíveis de sereminterpretados como genérico, definido específico (singular ou plural), de-finido não específico singular, indefinido específico (singular ou plural),indefinido não específico (singular e plural). A interpretação relevante, deacordo com ela, seria capturada através de pistas no próprio texto ou foradele (contextuais).

Além desses fatos, para a autora a ausência de um determinante oude marcador plural não implica que o nome possua denotação massiva.Os dados () e () são apresentados para exemplificar, respectivamente, aleitura atômica e não atômica de nomes como djentis (“pessoas”):

() TaHAB

benvir

djentispessoas

diPREP

stranjeiruestrangeiro

kiPRON.CONJ.PREP

taHAB

ben,vir

taHAB

benvir

buska-mbuscar-SG.OBJ

pa’NPREP’SG.OBJ

konta-lcontar-SG.OBJ

storiahistória

di (. . . )PREPTem gente que vem de fora do país, vem me buscar para eu lhe contar(para ele) história de (. . . )

(Baptista, : )

() TaHAB

benvir

djentispessoas

diPREP

stranjeiruestrangeiro

kiPRON.CONJ.PREP

taHAB

ben,vir

taHAB

benvir

buska-mbuscar-SG.OBJ

pa’NPREP’SG.OBJ

konta-scontar-PL.OBJ

storiahistória

di (. . . )PREPTem gente que vem de fora do país, vem me buscar para eu lhes contar(para eles) história de (. . . )

(Baptista, : )

Ainda segundo a autora, a marcação do status de definitude do nomeseria vista como desnecessária se a consciência coletiva ou a unicidadeNa análise da autora, kel seria um demonstrativo quando não há menção prévia do

referente, mas um determinante anafórico quando há menção prévia. Detalharemos essaquestão no capítulo .

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. Os nomes nus no caboverdiano

da entidade a tornasse familiar aos interlocutores. Seria, por exemplo, ocaso de fenômenos naturais como txuba (“chuva”), ou entidades únicas,como sol. Outra razão para a ocorrência de nomes nus, conforme Baptista( :), seria o fato de haver indivíduos e outros elementos que sãoparte da experiência e conhecimento comum dos interlocutores.

Na análise de Baptista, os nomes nus definidos singulares tendem aser encontrados em posição de sujeito, enquanto os indefinidos singularesaparecem na posição de objeto ( : ). A autora salienta, porém, que setrata apenas de tendências da língua e que é possível encontrar indefinidosespecíficos e genéricos () em posição de sujeito.

() Amiguamigo

kaNEG

taHAB

fazefazer

keli.DEM

Amigo não faz isso.(Baptista, : )

Ademais, na perspectiva de Baptista, outros elementos na sentença, taiscomo tempo e aspecto, podem direcionar o ouvinte à interpretação correta.A oposição genérico versus episódico também influencia na interpretaçãorelevante ( : ).

Ao apresentar as condições e os cenários subjacentes à ocorrência dosnomes nus em caboverdiano, Baptista destaca que os apresentados por elaseriam apenas tendências e não refletem todo o conjunto de condições sobas quais os nomes nus podem ocorrer.

. Os nomes nus no caboverdiano

Antes de tentar prever quando um ou outro elemento deve aparecer junta-mente com o nome, tentaremos explorar, mesmo que de modo tangencial,as estratégias de interpretação dos nomes nus.

Dado que os nomes em caboverdiano prescindem da presença de deter-minantes, verificaremos quais seriam então as estratégias que possibilitamou favorecem as diferentes interpretações. Para tanto, trataremos de doisfatos separadamente: a leitura genérica das sentenças e as interpretaçõesdefinida e indefinida dos nomes.Em nossas análises, no entanto, a definitude, ou o status de definido do nome não

precisa estar associado a um item lexical, há outras estratégias, além das apontadas porBaptista (), que possibilitam a interpretação definida do nome.A interpretação definida e indefinida do nome, em caboverdiano, não estaria tão

atrelada à posição sintática, mas sim à estratégias semânticas de interpretação, conformeapresentaremos ao longo deste capítulo.

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. Os nomes nus no caboverdiano

.. Sobre os nomes nus: discussão teórica

Na tradição semântica, um dos trabalhos mais citados dentro da literaturasobre os nomes nus é o artigo A Unified Analysis of the English Bare Plural,de , escrito por Greg Carlson. Nesse artigo, o autor divide a leitura dosplurais nus em dois tipos básicos: genérico () e existencial ():

() Cavalos são mamíferos.

() Eu vi transeuntes recusar ajuda ao ferido.(Müller, : )

A respeito dos tipos básicos de leitura dos plurais nus feita por Carlson,poder-se-ia descrever a leitura genérica como incorporando um quantifica-dor do tipo universal (); a leitura existencial, por sua vez, seria descritacomo incorporando um quantificador equivalente ao plural do artigo inde-finido ():

() Todos os cavalos são mamíferos.

() Eu vi alguns transeuntes recusar ajuda ao ferido.(Müller, : )

Na perspectiva de Carlson, os plurais nus comportam-se tanto sintáticaquanto semanticamente como nomes próprios. Um exemplo disso seria seucomportamento em contextos opacos. Observe-se a sentença ():

() Maria quer falar com um pesquisador de baleias.

A sentença () gera duas leituras possíveis. Na primeira, representadaem (a), o pesquisador de baleias existe e é intenção da Maria falar com ele;já na segunda leitura, em (b), falar com um pesquisador de baleias estáembutido no desejo da Maria e esse pesquisador não precisa sequer existir.

() a. Existe alguém que é pesquisador de baleias e Maria deseja falarcom este alguém.

Carlson (), em Müller (), chama de bare plurals (“plurais nus”) os sintagmasnominais não precedidos de determinantes. No português brasileiro, nem sempre a formaplural sem artigo será a mais natural para expressar o sentido dos plurais nus do inglês(Müller, ).

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. Os nomes nus no caboverdiano

b. Maria deseja falar com qualquer pessoa que seja pesquisadorde baleias.

Compare-se () com os dados () e (), retirados de Müller ( :).A sentença () não permitiria uma leitura em que economistas progres-sistas existam necessariamente, tal como a leitura em (b). Tanto em ()quanto em () não há leitura ambígua, e é esse o comportamento queCarlson atribui aos plurais nus do inglês. Em síntese, os nomes nus nãogerariam leitura ambígua em contextos opacos, o que seria equivalente aocomportamento dos nomes próprios no mesmo contexto.

() Maria deseja falar com economistas progressistas.

() Maria deseja falar com Carlos.

Deve-se observar que, em alguns casos de contextos transparentes, a mesmaambiguidade gerada em () pode ser produzida por um modalizador deôn-tico como dever ().

() Maria deve falar com um pesquisador de baleias.

A análise sobre a denotação dos plurais nus do inglês apresentada porCarlson () não pode, entretanto, ser aplicada a todas as línguas. Noportuguês brasileiro, singulares nus também podem veicular uma leituragenérica, como se pode observar em (). Todavia, o singular nu nãoé uma condição necessária para se obter a leitura genérica, argumentoexemplificado em ().

Müller ( : ) aponta que as sentenças () e (), embora suscitemleitura genérica, são interpretadas com base em dois processos distintos. Asentença (), com o singular nu, diz: “geralmente, se alguém é brasileiro,gosta de futebol”. A generalização envolve a sentença inteira, ou seja, oconteúdo como um todo expressa uma generalização. Em (), por suavez, “ter quatro patas é uma propriedade que se aplica à classe dos gatos”,refere-se a toda a classe de entidades. A genericidade, nesse caso, é umapropriedade do sintagma nominal e não da sentença.

() Brasileiro gosta de futebol.

() O gato tem quatro patas.

Para Müller (), no PB, as sentenças genericamente quantificadaspreferem o singular nu — () —, ao passo que a expressão de referência àespécie pode ser denotada pelo sintagma nominal definido — ().

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. Os nomes nus no caboverdiano

Outrossim, de acordo com a análise de Müller ( : ), o definidogenérico tem sua referência determinada, em grande parte, pelo conheci-mento partilhado e não tanto por seu conteúdo lexical.

Diante da ambiguidade de muitas expressões nominais, que trazem umaleitura genérica e uma leitura específica, e também de muitas sentenças comleitura episódica e leitura de quantificação genérica, Müller ( :)apresenta alguns testes para verificar se determinada expressão nominalou sentença tem leitura genérica ou não.

A autora argumenta que sentenças genericamente quantificadas podemser parafraseadas, de maneira aproximada, com advérbios sentenciais comonecessariamente, geralmente ou tipicamente. O teste em (b) mostra queessa não é uma sentença genericamente quantificada, uma vez que o usodo advérbio sentencial geralmente a torna agramatical.

() a. Gatos perseguem ratos.b. Gatos tipicamente perseguem ratos.

() a. Gatos acabam de chegar na sala.b. *Gatos geralmente acabam de chegar na sala.

() a. Político fala muito.b. Geralmente, político fala muito.

(Müller, : )

() *Político está falando muito agora na sala .

Para Müller ( : ), no português brasileiro, os nomes nus singularessão agramaticais em posição de sujeito de sentenças episódica () e ().

() Menino brinca de herói.

() *Menino estava brincando de herói agorinha há pouco.(Müller, : )

Na visão da autora, no PB os nomes nus em posição de sujeito teriam sempreinterpretação genérica. Não seria possível uma interpretação específica ouexistencial para esses casos, mesmo em sentenças episódicas — ver ().

() Judeu está fazendo jejum hoje. (Müller, : )Leitura existencial: #Tem judeu que está fazendo jejum hoje.

Exemplos (), () e () foram adaptados.

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. Os nomes nus no caboverdiano

Leitura genérica: A maioria dos judeus está fazendo jejum hoje.

Entretanto, em algumas situações, o PB parece admitir interpretaçõesepisódicas associadas a nominais nus em posição de sujeito. É o caso, porexemplo, do uso (em alguns dialetos, ao menos) de nomes comuns muitofamiliares, que se comportam quase como nomes próprios, como pode serobservado em (), de sentenças com verbo topicalizado como em () ou,em alguns dialetos, de sentenças com o objeto topicalizado, conforme ().

() Mãe passou lá em casa na semana passada.

() Caiu água que não acabava mais ontem à tarde.

() O outro que morava na praia, carro matou na estrada.(Oliveira and Miranda, )

É preciso acrescentar, contudo, que tais exemplos são menos frequentes,pelo menos na região sudeste do Brasil, que os explorados por Müller().

.. A noção de pressuposição

Antes de analisarmos as diferentes leituras em caboverdiano, é necessáriodiscorrer um pouco sobre a noção de pressuposição que estará presente aolongo de nossas análises.

Cançado () faz notar que a pressuposição além de relacionar-secom o sentido das expressões lexicais contidas nas sentenças, também serefere a um conhecimento prévio, extralinguístico, compartilhado entre ofalante e o ouvinte e seria uma noção semântico-pragmática.

A autora observa ainda, em consonância com Ilari and Geraldi ( : )citados por Cançado (), que as pressuposições não fazem parte doconteúdo assertado, no entanto, a estrutura linguística é que nos ofereceos elementos para derivar o conteúdo pressuposto, daí ser uma noçãosemântico-pragmática.

Chierchia and McConnell-Ginet () observam que, grosso modo,a ideia seria a de que a pressuposição de uma sentença S restringe ou

O dado () foi retirado de Oliveira and Miranda (). O referido trabalho foifruto do Projeto-Piloto IPHAN/USP “Levantamento etnolinguístico de comunidades afro-brasileiras de Minas Gerais e Pará”, coordenado pelas professoras Dras Margarida Petter eMárcia Oliveira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Esse projetoinsere-se no quadro do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL), que visouinventariar a diversidade linguística brasileira.

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. Os nomes nus no caboverdiano

limita a classe de contextos C relativos aos quais S pode ser enunciada demaneira feliz ou adequada. A pressuposição de S deveria ser satisfeita porum contexto c a fim de que S possa ser assertada, ou seja, para que umenunciado de S seja satisfatório naquele dado contexto.

A sentença (a) pressupõe a sentença (b) e o conteúdo de (a)implica que (b) é tomado como certo. Nesse caso, presumir que Joanatomava vinho no café da manhã é necessário para que a sentença façasentido ao ouvinte, mesmo se esse fato não for previamente conhecido.

() a. Joana parou de tomar vinho no café da manhã.b. Joana tomava vinho no café da manhã.

O conteúdo pressuposto de uma dada sentença se mantêm inalteradomesmo quando essa sentença for negada (b), ou colocada em uma formainterrogativa (c), ou ainda como uma condicional antecedendo umaoutra sentença (d).

() a. José emprestou o carro dele para Pedro.b. Não é verdade que José emprestou o carro dele para Pedro.c. José emprestou o carro dele para Pedro?d. Se José emprestou o carro dele para Pedro, Pedro deve estar

contente.

No caso da sequência de sentenças em (), o fato de o carro pertencer aJosé permanece inalterado e esse conteúdo compartilhado pelas sentençasé chamado de pressuposição (Cançado, : ).

.. Leitura genérica no caboverdiano

Nem as análises sobre os plurais nus do inglês, nem tampouco as análi-ses sobre os nomes nus do português brasileiro, podem ser aplicadas aocaboverdiano.

Na subseção .., vimos que, no português brasileiro, nomes nus são ge-ralmente agramaticais em posição de sujeito de sentenças episódicas. Alémdo mais, quando em posição de sujeito, tendem a receber interpretaçãogenérica.

Em caboverdiano, por outro lado, nomes nus são gramaticais em posiçãode sujeito de sentenças episódicas () e ainda podem ter leitura existencial.

() MudjerMulher

PFVgostagostar

d’el,PREP’SG

PFVfikaficar

kuPREP

elSG

ala.lá

(A) mulher gostava dele e ficou com ele lá.

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. Os nomes nus no caboverdiano

Existe um x, tal que x é mulher e x gostava dele.(Baptista, : )

Observamos o fato de tanto o inglês quanto o português brasileiro nãopossuírem nomes nus como a forma padrão do sintagma nominal. Este fatopor si só produziria importante diferença em relação ao comportamentosintático e semântico dos nomes nus em caboverdiano. Dessarte, os nomesdo caboverdiano devem ser analisados de modo distinto aos do portuguêsbrasileiro, ou aos de qualquer outra língua em que os nomes geralmentesejam acompanhados de determinantes.

Baptista () não explora a interpretação genérica das sentençasem caboverdiano, contudo, apresenta um insight importante para nossasanálises.

() JoãoJoão

taHAB

bebebeber

garafagarrada

diPREP

vinhuvinho

João bebe garrafa de vinho.(Baptista, : )

Para a autora, em (), garafa di vinhu pode ser interpretado como defi-nido específico (a), como indefinido não específico (b) e, ainda, comoindefinido específico (c), conforme explicitado:

() a. João bebe as garrafas de vinho (armazenadas na adega).b. João bebe garrafas de vinho (a noite toda).c. João bebe garrafas de vinho (que datam de ).

A interpretação precisa de garrafas de vinho, de acordo com Baptista, variade acordo com o sentido da marca aspectual de habitualidade ta, contextogeral ou a ancoragem de advérbios e modificadores.

A nosso ver, em (), há realmente uma interpretação ambígua de’garafa di vinhu’ que deverá ser explicitada pelo contexto, no caso do dadoem questão. Observamos, no entanto, que não é a marca aspectual dehabitualidade que tornará a interpretação do nome saliente, nesse caso, amarca de habitualidade favoreceria uma interpretação genérica da sentença,

Diferente do que fora apontado por Baptista ( : ), não atribuímos a ocorrênciados nomes nus no caboverdiano a uma tendência à economia. A autora questiona aocorrência do uso de determinantes em caboverdiano em contraste com a utilização dedeterminantes em línguas como o francês e o inglês, atribuindo a utilização dos nomesnus em caboverdiano a uma propensão à economia. De acordo com a autora, quando ofalante julga que há informação situacional suficiente, eles tendem a respeitar o princípiodo mínimo esforço. Conforme apontamos, não partilhamos dessa análise.

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. Os nomes nus no caboverdiano

que se configura, a nosso ver, como uma estratégia separada da estratégiainterpretação do nome como definido e indefinido. E será essa a questãoabordada nessa e nas próximas seções.

Sobre as sentenças genéricas, é importante reiterar que não descrevemeventos particulares mas sim regularidades, além de denotar espécies.De acordo com nossas análises, uma das estratégias que favoreceriam aleitura genérica das sentenças é a presença da marca aspectual verbal dehabitualidade — ta.

A sentença () significa que a cachupa leva, em geral, três horas paraficar pronta. Em (), a interpretação da habitualidade é bastante clara.

() KatxupaCachupa

taHAB

duradurar

trestrês

órahora

paPREP

staestar

prontu.pronta

(A) Cachupa leva três horas para ficar pronta.(Inverno and Swolkien, )

() Amiguamigo

kaNEG

taHAB

fazefazer

keli.DEM

Amigo não faz isso.(Baptista, : )

A sentença em (), com leitura genérica e também com marca de aspectohabitual, diz: “Em geral, eu conto papelão e recebo dois contos por isso”.Trata-se de uma sentença genericamente quantificada. A genericidade,nesse caso, envolve toda a predicação.

() NSG

taHAB

kontacontar

papelon,papelão

NSG

taHAB

recebêreceber

dôsdois

kontu.conto

Eu conto papelão e recebo dois contos.

Em () observa-se uma interpretação semelhante: “Em geral, eu trabalhona estação de chuvas”.

() MasADV

ami,SG.T

NSG

taHAB

trabadjatrabalhar

azagua.estação-de-chuva.

Mas eu, eu trabalho na estação de chuvas.(Baptista, : )

Em (), a despeito da presença do quantificador todo, observa-se a leituragenérica favorecida pela marca aspectual de habitualidade.

Prato típico de Cabo Verde feito à base de milho.

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. Os nomes nus no caboverdiano

() TuduTodo

mundomundo

taHAB

flabafalar.PST

kiPRON.CONJ.PREP

mudjermulher

staestar

paPREP

tenter

fidjufilho

kaNEG

taHAB

karegacarregar

sacusaco

sal,sal

kaNEG

taHAB

karegacarregar

simentu.cimentoTodo mundo dizia que mulher que está para ter filho não carrega sacode sal, não carrega saco de cimento.

A leitura genérica pode ser veiculada por verbos estativos, conformedados () e ():

() TradisonTradição

diPREP

Badiu,badio

tenter

txeumuito

kuza:coisa

kotxiesmaga

midju,milho

kotxiesmaga

naPREP

pilon,pilão

buSG

kotxi,esmaga,

buSG

bentia,separa,

buSG

tratirar

farelu,farelo,

buSG

popor

katxupacachupa

riba,em.cima,

ie

buSG

fasefazer

masa,massa,

fasefazer

tenteren,tenterén,

kucom

pexipeixe

oou

kucom

leti.leite

Tradição de Badio tem muitas coisas: mói milho, mói no pilão, vocêmói, separa, tira o farelo, coloca a cachupa em cima, e faz a massa, faztenterén com peixe ou com leite.

(Baptista, : )

() KelaEsta

k’ePRON.CONJ.PREP’ser

nosPL.POSS

kumidacomida

tradisional,tradicional,

fixon,feijão,

kucom

xeren,xerém,

kucom

tenterén.tenterén

Esta que é nossa comida tradicional: feijão com xerém, com tenterén.(Baptista, : )

Diante do exposto, o caboverdiano parece comportar-se de modo dis-tinto ao português brasileiro quanto a expressão de genericidade. Müller( : ) observa que no português brasileiro, assim como no inglês, assentenças genéricas “parecem não possuir nenhuma característica formal,quer em sua estrutura sintática, quer na marcação morfológica de seusconstituintes, que as distingua superficialmente das outras sentenças da

Baptista () não explora a interpretação genérica das sentenças. Observamos, con-tudo, em adição à análise da autora, que o que veicula a leitura genérica das sentenças ()e () são os verbos estativos.Tenterén: comida tradicional, para ou xerém de milho torrado.

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. Os nomes nus no caboverdiano

língua.”Em suma, no que concerne à leitura genérica das sentenças no cabover-

diano, podemos conjecturar, conforme os dados, que a marca aspectualde habitualidade apresenta-se como uma das estratégias que poderiamtorná-la saliente. Os verbos estativos também podem veicular uma leituragenérica. Além disso, a expressão da genericidade em caboverdiano nãoestaria necessariamente atrelada à presença de qualquer determinante,mesmo em sintagmas nominais de referência a espécies.

.. Interpretação definida

Nas línguas que possuem artigo definido, a interpretação definida dosintagma nominal é comumente veiculada quando da presença desse artigojunto ao nome.

Uma das propriedades semânticas que distinguem o artigo definido deoutros determinantes é a pressuposição de unicidade da extensão modifi-cada pelo artigo definido, enquanto os demais determinantes não geramtal pressuposição.

C. Lyons () observa que a unicidade assinala que há somente umaentidade que satisfaz determinada descrição. Essa unicidade, contudo, nãoé absoluta, mas entendida como relativa a um contexto particular.

Em () a pressuposição de unicidade do nome modificado pelo artigodefinido se mantém, mesmo que, nesse caso específico, ele se refira a umaclasse.

() O gato tem quatro patas.

Consoante as nossas análises, em caboverdiano — assim como em outraslínguas que não possuem artigo definido —, a interpretação definida donome não prescinde da pressuposição de unicidade, mesmo sem um artigodefinido. Por conseguinte, essa pressuposição seria uma das estratégiaspara a captura de tal interpretação.

Aqui, corroboramos a afirmação de Baptista ( :) de que os de-terminantes podem estar ausentes se a informação suficiente quanto aostatus de (in)definitude for provido por outras estratégias, sejam sintáticas,semânticas ou ainda relativas ao tempo verbal.

Observamos, no entanto, que não estamos discutindo aqui outras estratégias quepoderiam favorecer leituras genéricas como, por exemplo, a presença do quantificadortudu, tal como evidenciado no exemplo ().

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. Os nomes nus no caboverdiano

A autora observa que a marcação do status de definitude, ou referencial,do nome é vista como desnecessária se o conhecimento partilhado entre osfalantes ou ainda a unicidade da entidade a torna familiar aos interlocutores(pg. ). Entretanto observamos, novamente, que o status de definitudenão precisa estar associado a um item lexical.

Diante disso e levando em conta o fato de a grande maioria dos nomesem caboverdiano prescindirem da presença de determinantes, explora-remos a noção de pressuposição de unicidade da entidade, vista comouma das estratégias para a captura da interpretação definida do nomeem caboverdiano. Essa pressuposição de unicidade pode ser marcada porestratégias sintáticas ou semânticas.

Vale ressaltar que, em nossas análises, as estratégias de leitura genéricada sentença e de interpretação do nome não estão necessariamente relacio-nadas. Em outras palavras e diferente do que fora apontado por Baptista( :), a leitura genérica da sentença não implica, necessariamente,que não se pode ter uma interpretação definida do nome.

Nas sentenças () e (), a estratégia sintática utilizada para gerar apressuposição de unicidade é a retomada do nome através do pronome deterceira pessoa “e” (ele).

() sakusaco

simentucimento

eSG

taHAB

bemvir

láADV

SomadaAssomada

kárucarro

taHAB

trazedutrazer.PST

diPREP

lá.ADV

O saco de cimento, ele vem lá da Assomada, o(s) carro(s) que trouxe(traziam)de lá.

() Inton,Então

maridumarido

NSG

PFVvivêviver

ku’elPREP’SG

unsDET

ténpu,tempo

mámas

maridumarido

benvem

móri.morrer.

Então, (meu) marido, eu vivi com ele um tempo, mas ele já morreu.

(Rodrigues, )

Em () observa-se, igualmente, a pressuposição de unicidade. Aqui, aentidade (Câmara dos Deputados, ou dos Vereadores) faz parte do conheci-mento partilhado (common ground) entre os informantes, num comporta-mento semelhante ao dos nomes próprios.

Mesmo levando em conta que em sociedades monogâmicas tem-se, pelo menos pe-rante a lei, apenas um único marido, ainda consideramos a utilização da retomada donome através da terceira pessoa do singular, como uma estratégia sintática que gera apressuposição de unicidade da entidade.

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. Os nomes nus no caboverdiano

() MaMas

NSG

taHAB

trabadjatrabalhar

gosiagora

kuPREP

kanbra.câmara

Mas eu trabalho agora com a Câmara (prefeitura).(Baptista, : )

Em (), não obstante a marca aspectual verbal de habitualidade e, conse-quentemente, da leitura genérica, observa-se que a entidade é única. Ouseja, é a língua caboverdiana que se ouve todos os dias em Cabo Verde e fazparte do common ground dos falantes.

() PamodiPorque

kriolucrioulo

nuPL

taHAB

obiouvir

tudutudo

óra.hora

Porque (o) crioulo a gente ouve toda hora.

Müller ( : ) observa, para o português brasileiro, que o fato dehaver uma sentença genérica não implica necessariamente que a generali-zação recaia sobre o sujeito ou ainda que o sujeito possua necessariamenteuma interpretação de espécie. A nosso ver, essa análise pode ser aplicadatambém ao caboverdiano.

O nome auto-káru no caso de (), motiva uma interpretação definida.Aqui observamos que o auto-káru esperado era único, aquele que iria paraVila Nova.

() NSG

PFVpéraesperar

auto-káru,auto-carro

NSG

baiir

láADV

VilaVila

Nova.Nova

Eu esperei o ônibus, eu fui lá para Vila Nova.

Importa ainda destacar que, tanto em () quanto em (), a interpreta-ção é definida e não específica, ou seja, embora pressuponham unicidade, onome não aponta para um ser em particular no mundo.

Em (), também há a interpretação definida, é a cabeça do marido queestá doente. Aqui, a interpretação gerada é a definida específica, ou seja,aponta para uma entidade específica no mundo.

() NhaSG.POSS

maridumarido

tenter

cinkucinco

anuano

kuPREP

kabesacabeça

mariada.doente

Não se observa, em (), a presença da marca de aspecto habitual antes do verbo.Como apresentado na subseção .., a ausência de qualquer marca aspectual antes deverbos não estativos indica que estes estão no passado. Tem-se aí uma sentença episódica,em que a verdade ou a falsidade dependem de um lugar e tempo específicos.A marcação do aspecto verbal dá-se de maneira distinta em verbos estativos, como

“ter”. Logo, em tais casos, essa não seria uma noção relevante para a captura das diferentesleituras das sentenças.

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. Os nomes nus no caboverdiano

Meu marido tem cinco anos que está doente da cabeça.

Exploramos aqui uma das noções semânticas que possibilitam a interpreta-ção definida dos nomes em caboverdiano: a pressuposição de unicidade,que pode ser veiculada na língua através de estratégias sintáticas e semân-ticas.

Observamos ainda que a interpretação do nome não está, necessaria-mente, ligada à posição sintática, conforme dados () e () em que osnomes não são sujeitos das sentenças e, ainda sim, possuem interpreta-ção definida. E, além disso, que as sentenças genéricas não impedem ainterpretação definida dos nomes. Em outros termos, diferente do que foraapontado por Baptista ( : ), a interpretação dos nomes parece estarmais associada às noções semânticas e não tanto à função sintática.

.. Interpretação indefinida

Diferentemente da leitura definida, na indefinitude parece haver certaneutralidade quanto à unicidade do referente. Para C. Lyons (), no NPindefinido o falante parece estar ciente do que é referido, mas o ouvintenão.

Em () observamos a ausência de marca aspectual verbal, o que ancoraesse evento em um momento passado. Diante disso, podemos conside-rar () como uma sentença episódica, o que, de partida, produziria umaleitura não genérica. No que concerne a interpretação dos nomes, aquipoderia haver mais de um médico, enfermeiro e servente arrumando ainformante. Não há requerimento, nem tampouco estratégia sintática ousemântica, que indique ser apenas um de cada.

Aqui nossa análise difere novamente da de Baptista (). Segundoa autora, em caboverdiano, um nome nu é interpretado como referencial(definido ou indefinido) se a sentença for episódica (pg. ). No entanto,esse não parece ser o caso de ().

() LáADV

dentudentro

duPREP

hospitalhospital

PFVrumanuarrumando

ami.SG.T

Dotor,doutor

nfermér(u),enfermeiro

(serventi),servente

tudutudo

rumanuarrumando

ami.SG.T.

Lá dentro do hospital, eles me arrumaram. Doutor(es), enfermeiro(s),servente(s), todos me arrumaram.

Em (), () e (), do mesmo modo que em (), além de as sentençasserem episódicas, não há requerimento ou qualquer estratégia — sintáticaou semântica — que indique serem as entidades únicas.

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. Considerações

() AmiSG.T

djaADV

fasifazer.PST

dosidoce

paPREP

bendi (. . . )vender

amiSG.T

djaADV

bendivender

paozinhu. . .pão.GRAUEu já fiz doce para vender (. . . ) Já vendi pãozinho. . .

() LiADV

eraser.PST

sósó

rabidantevendedor

kiPRON.CONJ.PREP

moraba.morar.PST

Aqui, era só vendedor (ambulante) que morava.

() AmiSG.T

djaADV

PFVkavucavar

kovacova

simentéra.sementeira

Eu já cavei cova na sementeira.

Sumarizando, em caboverdiano, a interpretação indefinida dos nomesparece ser favorecida pela não pressuposição de unicidade, ou seja, atravésda neutralidade quanto à unicidade da extensão. Salientamos, porém, queessa seria uma das estratégias possíveis para a captura da interpretaçãoindefinida do nome.

. Considerações

Apresentamos, de maneira sucinta, alguns dos comportamentos dos nomesnus do caboverdiano. Aqui, temos em síntese duas noções relevantes: ainterpretação dos nomes e as diferentes leituras das sentenças.

Sobre as leituras das sentenças, observamos que uma das estratégiasque possibilitam a leitura genérica parece ser a marca aspectual de ha-bitualidade — ta —, que aponta para regularidades. A ausência dessamarca, por outro lado, geraria outras leituras. Embora contrapondo aquias leituras genéricas e não genéricas, ressaltamos que também há outrasmarcas aspectuais verbais, conforme apresentado na subseção .., quepodem veicular leituras diferentes.

As interpretações definida e indefinida dos nomes, por seu turno, seriamfavorecidas em sentenças episódicas. Esta não chega a ser, porém, umacondição necessária para tais interpretações.

Em caboverdiano, mesmo sem um determinante definido, a pressupo-sição de unicidade do nome é veiculada por diferentes estratégias — sejapela retomada anafórica do nome, seja por fazer parte do conhecimentopartilhado entre os falantes — e essa pressuposição seria uma das noçõessemânticas que possibilitam a interpretação definida dos nomes na lín-gua. A ausência dessa pressuposição, por sua vez, levaria à interpretaçãoindefinida dos nomes.

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. Considerações

Observamos, por fim, que ao analisar os nomes nus como a formadefault dos nomes em caboverdiano, as análises poderiam ser simplificadasna medida em que o questionamento não recairia mais sobre o motivopelo qual os determinantes são omitidos na língua, mas sim o porquêe em quais situações eles ocorrem, uma vez que diferentes estudos jáapontaram que a ocorrência de nomes acompanhados de determinantes ébem menos frequente do que a ocorrência de nomes nus. Diante disso, ofoco das análises recairia nas diferentes estratégias (sintáticas, semânticasou pragmáticas) de interpretação dos nomes (nus) em caboverdiano.

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CAPÍTULO

Kel e a definitude

. Introdução

Alguns estudos sobre o sintagma nominal do caboverdiano apresentam kele sua forma plural kes como possíveis artigos definidos, ou afirmam queeles exercem, por vezes, o papel de artigos definidos na língua (Baptista(), () e (), Alexandre and Soares (), entre outros). Osautores que se debruçaram sobre o tema, contudo, parecem não precisar oque licencia tal uso.

Para Brüser et al. () e Veiga (), o caboverdiano não possuiartigo definido. Veiga admite, todavia, que há algumas manifestações doartigo definido que se confundem com o demonstrativo. Exploraremos essaquestão mais adiante.

Importante observar que tanto a classe do artigo definido quanto a dosdemonstrativos podem expressar definitude. Para C. Lyons (), naslínguas em que não há o artigo definido, a definitude seria expressa, emalguns casos, por um demonstrativo. Esse fato poderia levar, em nossaopinião, alguns autores a afirmar que kel exerce o papel de artigo definidoem caboverdiano.

Outrossim, em alguns estudos sobre o sintagma nominal do cabover-diano, parece haver um equívoco quanto à distinção entre as noções deinformação dada e familiaridade ou identificabilidade, o que acaba levandoa análises e interpretações dúbias sobre o comportamento de kel.

Nas próximas seções, empreenderemos uma discussão teórica sobre

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. A noção de definitude em Heim ()

definitude, dado que tanto o artigo definido quanto o demonstrativo ex-pressam essa noção. Esta discussão teórica visa, igualmente, esclareceralguns questionamentos sobre as duas classes para que possamos, por fim,apresentar — e entender — o comportamento de kel dentro do sintagmanominal do caboverdiano.

. A noção de definitude em Heim ()

Para Heim (), a característica da descritividade, ou seja, a presençaou não de conteúdo descritivo, seria o que distingue sintagmas nominaiscomo “um gato” e “o gato” de pronomes como “ele”. A definitude, poroutro lado, distinguiria sintagmas nominais como “o gato” e “ele” de “umgato”. Em outras palavras, a definitude coloca NPs indefinidos de um ladoe descrições definidas e pronomes de outro.

A autora apresenta a definitude como um conjunto de três propriedades:

i. definidos não estão sujeitos à regra de interpretação de Indexação deOperador;

ii. definidos não estão sujeitos à Condição de Novidade; e

iii. definidos pressupõem seu conteúdo descritivo.

Heim questiona então quais seriam as condições semânticas e pragmá-ticas que determinam a escolha (do falante) entre um NP definido e umindefinido. Para tratar dessa questão, apresenta Christophersen ()como o primeiro a desenvolver uma teoria influente, a “Teoria da Familiari-dade da Definitude”. Nessa perspectiva, a função essencial da definitudeseria assinalar que o referente pretendido de um sintagma nominal já éfamiliar à audiência no corrente estágio da conversação.

Em seu trabalho, Heim () dissocia familiaridade de referência e,por outro lado, liga a distinção novo-familiar a algo mais abstrato quereferentes. Afirma, então, que novidade e familiaridade, conceitos tomadostradicionalmente como pragmáticos, são propriedades puramente formais

Heim () explora uma análise alternativa daquelas que analisavam as descriçõesdefinidas e indefinidas como quantificadores e os pronomes definidos como variáveis.Na análise da autora, todos os indefinidos e definidos são quantificadores livres, ou seja,possuem uma variável livre essencial e o predicado descritivo.As descrições definidas, na visão da autora, pressupõem existência no sentido de ser

um elemento do domínio de indivíduos. Quanto a saber se isso implica a existência nomundo real ou se pode referir-se ou quantificar possíveis indivíduos que não existem,Heim () deixa em aberto.

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. A noção de definitude em Heim ()

dentro das formas lógicas; ou seja, um NP será “familiar” ou “novo” em umtexto se estiver, ou não, coindexado a outro NP que o precede nesse mesmotexto. Ademais, definidos novos poderiam ocorrer quando um pronomefosse usado deiticamente.

O conceito de “novidade”, na perspectiva da Condição de Novidadeapresentada pela autora, seria, dessa forma, puramente uma questão decoindexação na forma lógica. A novidade em relação à forma lógica seriauma condição necessária, mas não suficiente. Para Heim, o NP pode sernovo em relação à forma lógica do texto em que é enunciado, e ainda serfamiliar ao “arquivo”.

Na visão da autora, nem a Condição de Novidade-Familiaridade nema de Conteúdo Descritivo podem ser deduzidas uma da outra. No en-tanto, há uma relação próxima entre as duas. Ainda de acordo com Heim(), pode-se dizer, intuitivamente, que ambas as condições relacionam-se com “familiaridade” em algum sentido, pois a Condição de Novidade-Familiaridade requer que o definido esteja associado a um NP já estabe-lecido e a Condição de Conteúdo Descritivo, por seu turno, requer que oconteúdo descritivo do definido já seja estabelecido, isto é, “familiar”.

A autora admite, no entanto, que há muitos usos de definidos, emespecial de descrições definidas, que não cabem na teoria apresentada porela. Ao olhar a taxonomia dos usos do artigo definido, não seria possívelpara a presente perspectiva teórica dar conta da maioria deles.

Para tratar dos diferentes usos do artigo definido a autora apresentaHawkins () que cita, pelo menos, oito. Desses, somente dois obedecemà Condição de Novidade-Familiaridade de Heim, a saber: o uso anafóricoe o chamado “uso de situação visível”, ou seja, que requer a saliênciaperceptual do referente. Alguns dos usos que não se enquadrariam naCondição de Novidade-Familiaridade são exemplificados a seguir:

• Situação de uso imediato — uma pessoa está andando na calçada eoutra diz:

() Cuidado, o cachorroi vai te morder.

• Uso em situação ampla (larger situation use) — uma pessoa diz aotelefone:

Dentro dessa perspectiva teórica, “arquivo” pode ser visto como common ground, ouseja, o conhecimento prévio dos participantes, a informação que os interlocutores têm emcomum no discurso.As duas condições são apresentadas como dois aspectos de uma condição mais inclu-

siva denominada, por Heim (), de Condição de Novidade-Familiaridade Estendida.

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. A definitude segundo C. Lyons ()

() O soli está brilhando.

• Uso anafórico associativo:

() João leu [um livro sobre Schubert]i e escreveu para o autorj .

Para os usos que não obedecem à condição apresentada por Heim (),ela argumenta haver um mecanismo de acomodação ou ajustamento, masnão abandona a Condição de Novidade-Familiaridade. Esse mecanismo deacomodação seria engatilhado a partir da violação de alguma condição defelicidade, o que levaria a adicionar informação suficiente para evitar essaviolação.

Heim () observa, no entanto, que a questão de acomodação emrelação aos definidos é um pouco mais complexa, não se trata de uma sim-ples adição de informação que restaura a condição de felicidade. Quandouma nova informação é introduzida sob acomodação, esta deve ser ligada,através de referência cruzada, a alguma já existente. A referência cruzadaformaria uma “ponte” conectando o novo referente do discurso a umarede de referentes já estabelecida. Isso torna-se, de acordo com a autora,particularmente evidente nos chamados usos anafórico-associativos.

. A definitude segundo C. Lyons ()

Ao explorar a questão da definitude, C. Lyons () observa o fato de exis-tirem, em algumas línguas, elementos que parecem ter o papel exclusivode indicar a definitude ou indefinitude do sintagma nominal.

À semelhança de Heim (), o autor explora a noção de familiaridadee identificabilidade. Segundo ele, no sintagma nominal indefinido, somenteo falante parece estar ciente do que é referido, enquanto que, no definido,essa consciência é compartilhada pelos interlocutores. Nesse sentido, o ar-tigo definido assinalaria que a entidade é “familiar”, enquanto o indefinidoseria usado quando o falante não tivesse a intenção de compartilhar essafamiliaridade.

C. Lyons argumenta, contudo, que a noção de familiaridade é um tantoproblemática para a distinção definido-indefinido. Exemplos disso seriamPara a autora, na maioria dos casos de uso imediato e de uso em “situação ampla”, a

informação nova adicionada não estaria ligada, talvez, a uma informação já existente, masdiretamente à situação de enunciação.Esses elementos podem possuir a forma de um item lexical, como os artigos definido e

indefinido do inglês, ou de um afixo, como, por exemplo, em árabe, com o prefixo definidoal– e o sufixo indefinido –n.

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. A definitude segundo C. Lyons ()

os usos associativos, situacionais, entre outros — apresentados na seçãoanterior.

O autor argumenta ainda que alguns linguistas preferem ver a defini-tude relacionada à identificabilidade. O artigo, ele mesmo, não identifica oreferente, pois se trata de uma palavra gramatical, sem conteúdo lexicaldescritivo. O máximo que pode fazer é convidar o ouvinte a explorar pistasno contexto linguístico ou extralinguístico. O artigo pode estar relacionadoà identificabilidade, mas não à identificação. Essa hipótese, porém, nãoexclui a familiaridade, pois é ela que habilita o ouvinte a identificar oreferente.

Para C. Lyons (), a identificabilidade parece dar conta de modomais adequado da definitude que a familiaridade. Todavia, há casos emque a primeira não seria possível. Os usos associativos, em geral, sãoproblemáticos para a identificabilidade. Funcionam porque o ouvinte estáapto a associar um NP definido a alguma entidade que ele espera encontrarou associar àquela situação determinada.

C. Lyons () acrescenta que a distinção mais fundamental a ser feitaé entre as línguas que possuem artigos e as que não possuem. Segundo oautor, todas as línguas possuem demonstrativos e pronomes pessoais quesão, talvez, inerentemente definidos.

A marcação de definitude simples seria, na visão do autor, uma caracte-rística areal. Uma grande concentração de línguas que marcam definitudesimples encontra-se na Europa ocidental e no Mediterrâneo e, também, empartes do mundo onde línguas dessas regiões foram transplantadas pelacolonização.

Das línguas que distinguem definido e indefinido simples haveria, então,três modos pelos quais essa distinção pode ser expressa:

a. somente pela marca de definitude;

b. somente pela marca de indefinitude;

c. pelas duas marcas.

Haveria, ainda, segundo o autor, línguas em que o artigo definido podeser omitido quando as condições situacionais — ou do discurso — para adefinitude são aplicadas, como, por exemplo, o hausá.

A ideia seria que o uso do artigo definido direciona o ouvinte ao referente do NP,assinalando que o ouvinte estaria em condições de identificá-lo.A noção de inclusividade também é importante. A definitude com plurais e massivos

não envolve unicidade, mas inclusividade: a referência é a totalidade dos objetos oumassas no contexto.

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. A definitude segundo C. Lyons ()

Em hausá, o sufixo definido é usado, em geral, anáforica e associati-vamente. Nessa língua, o aparecimento ou omissão do artigo não podeser completamente previsto. Esse aparecimento ou omissão, contudo, éamplamente determinado pela acessibilidade do referente. Em outras pala-vras, um nome nu é usado quando se julga que o referente é de fácil acesso,enquanto a marca de definido é utilizada quando um esforço maior pareceser requerido. Caso a tarefa de identificar o referente seja ainda maior, umdemonstrativo é usado (Jagger, ).

C. Lyons () salienta que, na maioria das línguas, é possível referir-sea algo previamente mencionado utilizando um demonstrativo. Pode ser,no entanto, que não esteja claro se um determinante especializado em usoanafórico é artigo ou demonstrativo.

Ainda sobre os demonstrativos, o sistema em que o falante é o ponto dereferência primário seria, para o autor, básico e encontrado em quase todasas línguas. As línguas variam, todavia, quanto ao princípio organizacionalpautado na pessoa ou na distância do falante. Os demonstrativos são quaseinvariavelmente acentuados, e para C. Lyons esse seria o maior ponto decontraste com os artigos definidos.

Por fim, há as oposições tópico-comentário, tema-rema, dado-novo epressuposição-foco que figuram, proeminentemente, na organização dainformação. Muitas dessas noções, aliás, podem ser intercambiáveis.

Uma informação dada é diferente de familiaridade ou identificabili-dade. Um NP definido pode representar uma informação nova, em que oreferente não tenha sido introduzido previamente, ou que não seja salientena consciência dos participantes. Um NP indefinido, por sua vez, podeser dado, ou seja, seu conteúdo descritivo pode ter ocorrido previamenteno discurso ou, ainda, ele pode ser parte do conhecimento comum dosfalantes. A identificabilidade que caracteriza muitos definidos geralmenteé uma questão de ocorrência prévia no discurso e a familiaridade é, emgeral, suficiente para prover a saliência mental necessária para algo que édado.

C. Lyons () assinala que a definitude parece, empiricamente, serum fenômeno unificado. Duas características seriam proeminentes masnão, nas palavras do autor, completamente adequadas: a identificabilidade,que favoreceria particularmente o uso referencial, sobretudo quando oreferente é uma entidade física e localizável (visualmente) no contexto; e ainclusividade, que favoreceria os usos não referenciais.

Na teoria pragmática, definitude tem seu lugar na área denominada “estrutura dodiscurso” ou “estrutura da informação”, ou ainda “estrutura temática”. Essa área preocupa-se com os modos em que sentenças “agrupam” a mensagem transmitida, de forma aexpressar o relacionamento entre a mensagem e o contexto, ou o background.

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. Artigo definido versus demonstrativo

. Artigo definido versus demonstrativo

Alexiadou et al. () apresentam, além da noção de artigo definido deC. Lyons (), as seguintes concepções do artigo definido:

• um subordinador que assinala o status argumental a um NP comple-mento (Abney, ); (Stowell, ), (); (Szabolcsi, : );

• um carregador “natural” de referencialidade (Loebel, ); (Longo-bardi, ) e ();

• um morfema puramente gramatical cujo papel primário é assinalarcaso ao NP complemento (Giusti, ), () e ().

Sobre os demonstrativos, Alexiadou et al. ( : ) argumentam que adiferença entre eles e o artigo definido é que os primeiros são uma categoriauniversal, isto é, diferentemente do artigo definido, os demonstrativossão encontrados em todas as línguas. As autoras destacam ainda que osdemonstrativos admitem uso duplo: são usados ou intransitivamente, semum NP complemento como, por exemplo, no inglês “this” e no alemão“diese”, ou transitivamente, com um NP complemento, como o inglês “thisbook” e o alemão “dieses Buch”. Esse último, em geral, é referido como ouso adjetival dos demonstrativos.

As duas classes expressam definitude, porém, há algumas peculiarida-des que as distinguem entre si. Alexiadou et al. ( : ) assinalam que,embora ambos sejam definidos, somente o artigo definido pode referir-se atermos de classe:

() a. O dodo está extinto.

b. #Este dodo está extinto.

Além disso, de acordo com as autoras, os demonstrativos não trazem leituragenérica, denotam entidades sem descrevê-las, além de serem diretamentereferenciais. O uso do demonstrativo envolve um contraste entre referentes.

Se, por um lado, o artigo definido e os demonstrativos compartilham oscomponentes semânticos da identificabilidade e da referencialidade, poroutro, o elemento dêitico os coloca em conjuntos diferentes.

C. Lyons () concebe o artigo definido como uma categoria gramatical que, emalgumas línguas, gramaticaliza a noção semântico-pragmática de definitude, apesar de aprópria definitude ser considerada pelo autor como categoria gramatical.

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. Comportamento de kel no caboverdiano

O componente dêitico dos demonstrativos ajuda a localizar o referenteem algum ponto no contexto não linguístico. A característica dêitica é, emgeral, interpretada de dois modos: ou codificam a oposição [+ / – proximal],com o falante como ponto direto de ancoragem; ou, alternativamente,a característica dêitica é feita contingentemente na categoria gramaticalde pessoa e denota associação ou proximidade do falante, ou ainda umconjunto de indivíduos que inclui o falante (Alexiadou et al., : ).

Na visão de Roberts (), a característica diferenciadora dos demons-trativos seria a pressuposição de uma demonstração que os acompanha. Oautor considera os demonstrativos um tipo de NP definido, assim como ospronomes e as descrições definidas.

Em defesa de seu argumento, o autor observa que os demonstrativospodem ser utilizados para fazer referência a constituintes de um discurso;podem ainda ser acompanhados por demonstração, mas também podemocorrer sem a indicação gestual do referente e, nesse caso, na maioriadas vezes, possuem um antecedente. Alguns demonstrativos podem ter ainterpretação de variável presa, além de poderem ter escopo restrito sobremodais ou outros operadores. Em síntese, para Roberts (), os NPsdemonstrativos apresentam uma gama de comportamentos que são típicosde descrições definidas e pronomes.

. Comportamento de kel no caboverdiano

Quanto às argumentações sobre a existência de determinante definido emcaboverdiano, Alexandre and Soares () afirmam que a língua possuium artigo definido em desenvolvimento, no caso, kel. Veiga ( :)argumenta que o artigo definido, como classe gramatical, não existe emcaboverdiano. Assinala também que o emprego de kel como artigo definidoé muito raro. Quint () declara que essa partícula possui amplitudesemântica tão vasta que, por vezes, pode cobrir a função do artigo românicoou português. Para Brüser et al. () contudo, em caboverdiano, não háartigo definido.

É importante além disso observar que a grande maioria dos autoresafirma não poder o uso dessa partícula ser considerado sistemático, tam-pouco previsível, nem na função de artigo definido nem na de demonstra-tivo.

O WALS (World Atlas of Language Structures Online) assinala sessenta enove línguas ao redor do mundo que se utilizam do demonstrativo paraveicular definitude. Dentre elas citamos o ewe, o akan, o musgu e o xhosano continente africano; o newar, o lahu, o tibetano e o tamang no continente

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. Comportamento de kel no caboverdiano

asiático; o indonésio, o ma’anyan e o bajau na Indonésia; e o chashibo e ouraruna no Peru.

Neste trabalho conjecturamos que, em caboverdiano, assim como emum número de outras línguas do mundo, o emprego do demonstrativo —nesse caso, kel — tem por função também veicular definitude, embora esseuso não seja considerado frequente na língua.

Desde já frisamos que não encontramos, pelo menos nos registros doWALS, qualquer língua que possua como único artigo o indefinido e que aomesmo tempo empregue o demonstrativo para veicular definitude.

.. Análises de kel

Baptista ( : ) advoga que kel é demonstrativo quando não há mençãoprévia do referente, mas um determinante anafórico quando há menção pré-via. Ressaltamos, porém, que os demonstrativos também podem retomarum referente (conforme Roberts () e C. Lyons ()). Por conseguinte,esse não poderia ser um argumento suficiente para conjecturar que keldesempenha o papel de artigo definido em caboverdiano.

Nomes modificados por kel, do mesmo modo que os nomes modificadospor un, podem ser interpretados como específicos ou não específicos eparecem ocorrer, segundo Baptista, em variação livre com a marca ∅ (pg.).

A respeito das características de kel, observamos que:

• ele pode ocorrer tanto com nomes específicos quanto com não especí-ficos;

• pode funcionar como anafórico correferencial, embora o referentepossa também ser retomado na ausência de qualquer determinante;

• a menos que seja sucedido pelo pronome ki em orações relativasrestritivas, não pode, sozinho, realizar anáfora por ligação;

• parece não poder ser utilizado para apresentar informações novas.

Note-se que o fato de kel poder ocorrer com nomes não específicos e nãoter leitura genérica já poderia distanciá-lo da classe dos artigos definidos.

Apesar de kel realmente parecer expressar definitude no caboverdiano,sua presença, assim como a presença de qualquer outro determinante,não é necessária para que os nomes em caboverdiano sejam definidos,conforme apresentado na subseção .. do capítulo anterior. À semelhançado kriyol da Guiné-Bissau, em caboverdiano, especificadores vazios são

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. Comportamento de kel no caboverdiano

frequentemente encontrados onde artigos definidos são previstos para oportuguês.

Lucchesi () advoga que, em caboverdiano, não há nenhum dispo-sitivo especial para marcar a distinção entre específico e não específico.Afirma também que o uso da partícula tida como artigo definido (kel) juntoaos NPs específicos pressupostos é bastante irregular. Na visão do autor, ouso dessa partícula seria determinado, então, mais por fatores discursivosou estilísticos do que por alguma necessidade de se marcar determinadareferencialidade do nome. Ele destaca ainda que, além de o uso de kel serirregular, a partícula também pode ocorrer com nomes não específicos,como se vê em ():

() alvesàs-vezes

unDET

pesoapessoa

taHAB

labãtalevantar

dentidentro

diPREP

sink’oracinco’horas

oou

seysseis

orahoras

diPREP

palmañã,manhã,

paPREP

buskabuscar

kelDEM

palapalha

oou

kelDEM

leña.lenha.Às vezes, uma pessoa levanta por volta das cinco ou seis horas da manhãpara buscar palha ou lenha.

(Lucchesi, )

Em sua tese de doutorado, Baptista ( :) aponta kel como de-monstrativo usado para marcar definitude quando refere-se a entidadesjá conhecidas. Observa, porém, que há situações em que serve puramentecomo marcador de definitude, explicitando, na visão da autora, uma perdada função demonstrativa.

Já em Baptista ( :), a autora assinala que a função primária dekel seria a de um demonstrativo, embora, de acordo com ela, possa desem-penhar o papel de determinante definido na língua. Para defender a duplafunção de kel em caboverdiano, Baptista argumenta que a língua tem se-guido o caminho evolutivo comum aos determinantes em várias línguas nomundo, em que artigos definidos são desenvolvidos de demonstrativos.

Segundo a autora, por regra, o caboverdiano não marca um NP comodefinido por meio de determinante aberto. O uso de kel como determinantedefinido seria para referir-se a uma entidade conhecida no discurso, masnão necessariamente que já tenha sido introduzida previamente.

Na seção ., vimos que o demonstrativo, além de retomar um referente,

Salientamos, porém, que explicações diacrônicas podem não ser as mais adequadasem análises que apresentam recorte sincrônico, como é o caso do estudo da autora emquestão.

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. Comportamento de kel no caboverdiano

pode ser utilizado para referir-se a uma entidade familiar no discurso,mesmo sem esta entidade ter sido introduzida anteriormente. Essa nãoseria uma função exclusiva do artigo definido.

Em (), há a retomada do nome bolsa através de kel e essa retomadadá-se por meio de uma relativa explicativa.

() NSG

kaNEG

tenter

nhaSG.POSS

bolsa,bolsa

kelDEM

bolsabolsa

kiPRON.CONJ.PREP

dáPREP

porpor

tudutudo

kusacoisa

neli,PREP

unDET

bêsvez

nSG

kaNEG

tinha.ter.PASS

Eu não tinha minha bolsa, aquela bolsa que dá para pôr um monte decoisa nela, antigamente eu não tinha.

Dryer (b) observa que, em muitas línguas pelo mundo, é possível usaro demonstrativo anaforicamente. Todavia, as línguas diferem, de maneiraconsiderável, na frequência com que o demonstrativo é utilizado dessemodo. Também de acordo com ele, considera-se que um demonstrativotenha uso de artigo definido se os exemplos em que os nomes são retomadosanaforicamente por esse demonstrativo “sejam maiores do que no caso doinglês”, embora, a nosso ver, esse critério não pareça ser muito claro.

Ao que parece, se aplicássemos essa definição ao caboverdiano, caso osexemplos de retomadas anafóricas do nome com kel fossem mais numerososdo que a retomada do nome sem a presença dele, poderíamos considerarque ele desempenha o papel de artigo definido. Como vimos de acordocom nossas análises e, ainda, de acordo com Baptista (), este não é ocaso.

Em algumas línguas em que o demostrativo pode ser usado como artigodefinido, quando cumpre a função de artigo definido, em geral, ele ocorreem posição diferente dentro do sintagma nominal. Em swahili, por exem-plo, o demonstrativo segue o nome quando usado demonstrativamente,mas o precede quando usado como artigo definido. A situação inversa éatestada em ute, shambala e pa’a (C. Lyons, ).

Diferentemente do que apontamos em Miranda et al. (), kel podeintroduzir um referente no discurso, mas isso não significa que seja umaentidade desconhecida dos interlocutores. É importante sublinhar aqui adistinção entre informação dada e nova versus familiaridade e identificabi-lidade, realizada por C. Lyons () e apresentada em ..

Caso a entidade faça parte do conhecimento partilhado entre os in-terlocutores, ela pode ser introduzida no discurso por kel. Nesse caso, oque está em jogo é a familiaridade, que, de acordo com C. Lyons (), é

Em caboverdiano a expressão un bês significa “antigamente, nos tempos antigos”.

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. Comportamento de kel no caboverdiano

suficiente para prover a saliência mental necessária a algo que é dado. Emsuma, “informação dada” não significa obrigatoriamente que tenha sidopreviamente introduzida no discurso.

Nos dados () e (), temos a presença de kel juntamente com um NP emsua primeira ocorrência no discurso:

() Inton,Então,

tenter

kelDEM

fésta,festa,

primeruprimeiro

féstafesta

kiPRON.CONJ.PREP

nuPL

taHAB

tenter

liali

. . .

. . .Então, tem aquela festa, a primeira festa que nós temos ali . . .

(Rodrigues, )

() KelDEM

otuoutro

diadia

dimingu,domingo

taHAB

leduler.PST

naPREP

kelDET

otuoutro

kasa.casa

Naquele domingo, [nós] líamos naquela outra casa.(Baptista, : )

Em (), o referente também é introduzido no discurso por kel. No entanto,o referente aí torna-se familiar através da explicação que se segue: nãoé qualquer mulher, é a mulher que mora próximo, ao lado. Em outraspalavras, o referente faz parte do common ground.

() “NSG

taHAB

baiir

kuPREP

bo”,SG

kelDEM

mudjermulher

kiPRON.CONJ.PREP

moramorar

pegadupegado

PFVfla-m.falar-PRON.OBL

“Eu vou com você”, disse aquela mulher que mora ao lado.

Outro argumento utilizado para defender o status de kel como artigo defi-nido é a sua aparente impossibilidade de ocorrer juntamente com possessi-vos (Alexandre and Soares, ).

Alexandre and Soares () afirmam que kel é um artigo definidoque está em desenvolvimento no caboverdiano. Um dos testes em favordessa hipótese seria a presença de possessivos. Segundo os autores, quandoum possessivo está presente, kel / kes não poderia ocorrer sem o clíticodemonstrativo.

A sentença () é utilizada pelos autores como controle, para exemplifi-car que o pronome possessivo pode ocorrer sem kel / kes.

() NSG

PFVatxaachar

rabesestranho

pamodiporque

eSG

kaNEG

PFVkumicomer

Tratamos essa questão também em Miranda ().

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. Comportamento de kel no caboverdiano

nhaSG.POSS

kumida.comida.

Achei estranho porque ele não comeu minha comida.(Alexandre and Soares, : )

DP

Spec PossP

Poss

nha

NP

kumida

A sentença (), por sua vez, é considerada agramatical, pois kel / kes nãopoderia, segundo a proposta dos autores, ocorrer com o pronome possessivosem a presença do clítico (la ou li) posposto ao nome. Já a sentença (),com kel / kes juntamente com o pronome possessivo e somado ao clítico, éconsiderada gramatical. Representamos o NP a seguir.

() *DjaADV

buSG.POSS

odjaolhar

kesDEM

nhaSG.POSS

fidjufilho

femia?fêmea

(Alexandre and Soares, : exemplo adaptado)

() DjaADV

buSG.POSS

odjaolhar

kesDEM

nhaSG.POSS

fidjufilho

femiafêmea

li?ADV

Você já viu estas minhas filhas aqui?(Alexandre and Soares, : exemplo adaptado)

DP

kes (li) PossP

Poss

nha

NP

fidju femia

Como contra-argumento, no entanto, apresentamos os dados () e ():

() KelDEM

buSG.POSS

amigoamigo

PFVtilifona.telefonar.

Aquele teu amigo telefonou.

() BuSG.POSS

nemNEG

kaNEG

PFVdêxa-mdeixar-SG.OBJ

kelDEM

buSG.POSS

livru.livro.

||

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. Comportamento de kel no caboverdiano

Você nem deixou aquele seu livro para mim.(Quint, : )

Em Miranda (), observamos através dos dados () e () que a hipóteseapresentada por Alexandre and Soares () sobre a alternância entrekel e os pronomes possessivos na mesma posição sintática não poderiaser sustentada e indicamos a necessidade de maior aprofundamento naanálise sobre o que causa a agramaticalidade de (). Logo, esse argumentonão poderia ser utilizado para a defesa de kel como um artigo definido,dado que, conforme apresentamos acima, a coocorrência com pronomespossessivos é possível.

Outrossim, mesmo em português, língua que atestadamente possui ar-tigo definido, tanto este quanto o pronome demonstrativo podem coocorrercom o pronome possessivo, como pode ser observado na representação aseguir.

DP

oeste

aquele

PossP

Poss

meu/seu

NP

livro

De volta às características de kel e de acordo com o que apresentamos emMiranda et al. (), essa partícula não pode ser utilizada para expressargeneralizações (como ilustração, ver ()). Aqui, chamamos a atenção parao argumento de Alexiadou et al. () apresentado na discussão teóricasobre as classes artigo definido e demonstrativo, uma vez que as autorasapontam que o demonstrativo não admite leitura genérica.

Observamos que, mesmo com a presença da partícula aspectual dehabitualidade, que poderia favorecer a leitura genérica, a presença de kelnão permite tal leitura.

() *TuduTodo

kelDEM

brasilerubrasileiro

taHAB

gostagostar

diPREP

futibol.futebol.

Para expressar leitura genérica, as formas adequadas seriam () e ().

() TuduTodo

kenhaquem

éser

brasilerubrasileiro

taHAB

gostagostar

diPREP

futibol.futebol.

Tudo que é brasileiro gosta de futebol.

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. Comportamento de kel no caboverdiano

() TuduTodo

brasilerubrasileiro

taHAB

gostagostar

diPREP

futibol.futebol.

Todo brasileiro gosta de futebol.

Kel também não pode ser utilizado para introduzir entidades desco-nhecidas: em um contexto no qual Maria foi assassinada brutalmente, asentença () só será aceita se a pessoa que a proferir conhecer a identidadedo assassino. Kel não poderia ser usado para referir-se a um assassino deMaria incógnito.

() KelDEM

ómihomem

kiPRON.CONJ.PREP

PFVmátamatar

MariaMaria

éser

dodu.doido

Aquele homem que matou (a) Maria é doido.(Miranda et al., )

Em Miranda et al. () apontamos que, caso o falante saiba que foi Joãoquem matou Maria, ele pode usar a sentença ().

() DjonJoão

kelDEM

kiPRON.CONJ.PREP

PFVmátamatar

Maria.Maria

João, aquele que matou a Maria.(Miranda et al., )

Se João não estiver presente na situação, o falante pode valer-se das senten-ças () e ():

() KelDEM

dódudoido

kiPRON.CONJ.PREP

PFVmátamatar

MariaMaria

éser

Djon.João

Aquele doido que matou Maria é o João.(Miranda et al., )

() DjonJoão

kenhaquem

kiPRON.CONJ.PREP

PFVmátamatar

Maria.Maria

O João (foi) quem matou a Maria.(Miranda et al., )

As características arroladas acima parecem corroborar a hipótese deque, em caboverdiano, não há artigo definido e que kel(s) se comportariaprincipalmente como demonstrativo.

.. Kel li, Kel la

Kel pode ainda ocorrer com os advérbios li e la, em geral, pospostos aonome modificado pelo demonstrativo. De acordo com Brüser et al. (),

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. Comportamento de kel no caboverdiano

kel não diz nada sobre a proximidade ou distância do referente, se espacialou temporal. O traço [+ / – distal (ou proximal)] do demonstrativo kel érealizado por meio dos advérbios li (ver () e ()) e la (ver () e ()),que indicam proximidade e distância do falante, respectivamente.

() AmiSG.T

PFVpanhapegar

kelDEM

latonalata.GRAU

liADV

xeicheia

d’agu.PREP’agua

Eu peguei esta latona aqui cheia d’água.

() Tenter

unDET

punhalpunhal

da’kelPREP’DEM

granduragrandeza

li.ADV

Tem um punhal grandão assim.

() NSG

PFVbenvir

kuPREP

kónpracompra

ribaem.cima

sacusaco

simentu,cimento

pirguntapergunta

kelDEM

mudjermulher

lá,ADV

kiPRON.CONJ.PREP

éser

nhaSG.POSS

kumadri,comadre

tudutodo

alguémalguém

(kiPRON.CONJ.PREP

nascinascer

liADV

éser

sim).assim

Eu vim com compra em cima do saco de cimento, pergunta para aquelamulher lá, que é minha comadre, todo mundo (que nasce aqui é assim).

() NSG

taHAB

recebêreceber

dôsdois

kontu,conto

sise

encomendaduencomendado

maismais

escudos,escudos,

naPREP

lojinhaloja.GRAU

kiPRON.CONJ.PREP

tentem

láADV

naPREP

kelDEM

buatiboate

lá.ADV

Eu recebo dois contos, se é encomendado mais quatrocentos escudos, nalojinha que tem lá naquela boate lá.

Veiga ( :) assinala que kel li indica a proximidade de quem fala (oespaço da primeira pessoa), ao passo que kel la pode ser usado tanto paraindicar a proximidade da pessoa com quem se fala (o espaço da segundapessoa) quanto o espaço da terceira pessoa.

Para mais detalhes sobre essa argumentação, ver Miranda ().

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. Comportamento de kel no caboverdiano

.. Kriyol da Guiné-Bissau e o caboverdiano

O kriyol da Guiné-Bissau e o caboverdiano compartilham diversas caracte-rísticas. Dentre elas estaria o comportamento do pronome demonstrativo.

Kihm () analisa kil do kriyol como demonstrativo distal. Para oautor, na gramática do kriyol, não há nenhuma marcação explícita quantoà eventual identificabilidade da entidade.

Na análise de Kihm, o uso de un em kriyol pode ser associado à intro-dução de novos referentes, como em (), e de nomes sem determinantes,associados a referentes pressupostos, conforme ().

() IDET

yeraser.PST

baPST

unDET

tarbajutrabalho

garandigrande

paPREP

mi.SG.OBL

Este foi um grande trabalho para mim.(Kihm, )

() LaADV

jajá

tarbajutrabalho

yeraser.PST

menus.menos.

Lá, o trabalho já foi menor.(Kihm, )

Em kriyol, a função anafórica pode ser realizada pelo especificadorvazio, como caso especial de especificidade, mas também é possível atravésdo uso do demonstrativo distal kil, embora frequentemente seja difícildecidir se este uso é anafórico ou dêitico.

() KilDEM

asasinusassassinos

binvir

diPREP

elikóteru.helicóptero

Os assassinos vieram de helicóptero.(Kihm, )

Em (), notícia transmitida em um jornal, a função de kil não pode ser,segundo as análises de Kihm (), mais do que indicar que os assassinosreferidos são os mesmos já mencionados anteriormente. Quando usado ana-foricamente, kil não pode ser reforçado com la seguido do núcleo nominal.Kil asasinus la significa “aqueles assassinos”, com força dêitica. A partículakil em kriyol é analisada como demonstrativo distal; a proximidade oudistância é medida relativamente pelo falante e pode ser material ou ideal,referir-se a espaço ou tempo, ou ainda a ambos.

Observamos que tanto a introdução de novos referentes associada a unquanto a retomada de referente por meio de nomes sem determinantesocorrem nas duas línguas, o caboverdiano e o kriyol. Todavia, diferente-mente de kil do kriyol, kel não poderia ser analisado como demonstrativo

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. Comportamento de kel no caboverdiano

distal sem a presença dos pronomes clíticos, uma vez que são estes queindicam a proximidade ou distância do falante, conforme apresentado nasubseção ...

.. Kel li versus Es (li)

No que concerne ao determinante es, Quint () aponta que seria menosempregado que kel e essencialmente por contraste a ele, sendo utilizadoapenas com nomes singulares. Quint () argumenta que es seria equiva-lente ao demonstrativo este do português, e serviria para designar um serou coisa próximos no espaço ou no tempo.

Alexandre and Soares () afirmam que não há dúvidas quanto aoestatuto de es como demonstrativo, mesmo quando ocorre sem o clítico –li.

Para Brüser et al. (), es “situa-se sempre espacialmente próximo dolocutor ou temporalmente próximo do momento da enunciação”.

Observamos em nossas análises, porém, que es, apesar de ser aceitoquando apresentado em alguns contextos — mas não em todos, comomostraremos a seguir —, é pouco empregado na fala corrente dos cabover-dianos, embora aparente possuir realmente uma função demonstrativa. Aoque parece, essa função estaria restrita mais a uma questão temporal doque à distância do falante.

Na sentença (), “esses dias” têm de estar próximos. O falante nãosabe ao certo em que dia irá a Assomada, mas o dia tem de ser próximo— digamos, na semana corrente ou na seguinte. A sentença () não seráadequada caso a ida a Assomada se dê em mais de uma semana. Nessecaso, será mais adequado dizer a sentença () e, aqui, o mês tem de ser opresente. Se a ida a Assomada der-se no mês seguinte, ou em outro mêsdistante, deve-se realizar uma referência explícita, tal como () ou ().

() EsDEM

diadia

liADV

NSG

taHAB

baiir

paPREP

Somada.Assomada

Esses dias eu vou para Assomada.

() EsDEM

mêsmês

liADV

NSG

taHAB

baiir

paPREP

Somada.Assomada

Este mês (aqui) eu vou para Assomada.

() MêsMês

kiPRON.CONJ.PREP

benvem

NSG

taHAB

baiir

paPREP

Somada.Assomada

No mês que vem eu vou para Assomada.

Observamos o fato de a interpretação não estar no singular.

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. Comportamento de kel no caboverdiano

() Setenbrusetembro

NSG

taHAB

baiir

paPREP

Somada.Assomada

Em setembro eu vou para Assomada.

Em um contexto no qual algumas pessoas estão conversando próximasao falante, a sentença () não se emprega. Nesta situação, o falante oferecea sentença (), apontando gestualmente para as pessoas.

() *EsDEM

pesoapessoas

liADV

staestar

papia.conversar

() KesDEM

pesoapessoa

//

(gentis)(pessoas)

la,ADV

esPL

staestar

papiaconversar

(manenti).(agora)

Aquelas pessoas lá, elas estão conversando.

No caboverdiano, es é aceito para falar de um evento que teve lugar nopassado recente, como a noite anterior, por exemplo, em (). Entretanto,de modo inesperado, o determinante es não é utilizado para referir-se aalgo que ocorre no momento da fala nem para referir-se a algum objeto queesteja na posse do falante.

Em (), o informante refere-se à música que está tocando naquele exatomomento na rádio. Já em (), a criança refere-se à caneta que está em suasmãos, pedindo-a à sua mãe. Em (), o falante está com duas colheres, umaem cada mão, e pede para escolher entre uma das duas.

() EsDEM

notinoite

txobichover

txuba.chuva

Esta noite choveu.

() KelDEM

musicamusica

li,ADV,

NSG

kaNEG

konxi.conhecer

Essa música (aí) eu não conheço.

() NSG

krequerer

kelDEM

li.ADV

Eu quero esse aqui.

() BuSG

krequerer

kelDEM

liADV

oou

kelDEM

li?ADV.

Um fato interessante é que es, referindo-se a seres animados no singular, causaráestranhamento aos falantes nativos. Nesse caso, ou seja, quando nós, pesquisadores,usamos es para referir-nos a seres animados no singular, na grande maioria das vezes ofalante nos “corrigirá”, afirmando que es só pode ser utilizado quando houver mais deuma pessoa. Esse estranhamento pode ser causado, talvez, pelo fato de o pronome deterceira pessoa do plural ser homófono ao demonstrativo.

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. Considerações do capítulo

Você quer essa ou essa (aqui)?

Embora es seja aceito pelos falantes — exceto no caso de seres animados— quando lhes é apresentado o contexto, esse pronome não se mostra tãoprodutivo na língua.

Para Veiga (), tanto es, es li quanto kel li indicam proximidade dapessoa que fala. Observamos que es encontra-se em expressões cristalizadascomo, por exemplo, “es anu” (esse ano), ou “es noti” (essa noite) e aindaem expressões de saudação, como “Es bida?” ou “Es korpu?”. Contudo, aoque parece, a função de indicar proximidade do falante parece ser maisassociada a kel li.

Para Baptista () a diferença semântica entre kel e es é que, enquantoaquele pode indicar proximidade e distância, es estaria restrito apenas àindicação de proximidade.

É interessante observar ainda que Quint () assinala — por se tratarde uma obra de ensino da língua — que, em caso de dúvida, deve-se utilizarsempre kel, exceto em expressões que se refiram ao momento da enunciaçãoou do futuro próximo.

. Considerações do capítulo

Neste capítulo apresentamos o comportamento de kel, kel li, kel la e es (li)dentro do sintagma nominal do caboverdiano. Apontamos que nessa línguanão há artigo definido e que kel / kes, analisado com um demonstrativo, éutilizado para veicular definitude. Tal uso, todavia, não pode ser conside-rado frequente, uma vez que sintagmas anafóricos são retomados, em geral,sem a presença do demonstrativo.

Apontamos ainda que os usos dêiticos estão frequentemente associadosao uso de kel li e kel la, que indicam, respectivamente, proximidade edistância do falante. O uso de es (li) para indicar proximidade, por sua vez,parece estar restrito a indicações temporais e expressões cristalizadas.

No que diz respeito às controvérsias geradas sobre o estatuto de kel, ob-servamos que mesmo os comportamentos tomados por alguns autores paradefender seu estatuto como artigo definido são típicos dos demonstrativoscomo, por exemplo, retomar um referente no discurso. Ademais, de acordocom C. Lyons (), os demonstrativos são sempre definidos.

Por fim, observamos que, conforme já mencionado, não há nos registrosdo World Atlas of Language Structures Online nenhuma língua que possua,ao mesmo tempo, a característica de possuir como único artigo o inde-finido e ainda usar um demonstrativo como marcador de definido. No

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. Considerações do capítulo

entanto, diferente do que consta no WALS, nossas análises apontam para,pelo menos, duas línguas que compartilham dessas duas característicasconcomitantemente, a saber, o caboverdiano e o kriyol da Guiné-Bissau.

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CAPÍTULO

Uma

. Situando a questão

Nos estudos sobre o sintagma nominal do caboverdiano, uma é tomado poralguns estudiosos como a contraparte feminina do determinante indefinidoun.

Baptista ( : ), além de considerá-lo como a contraparte femininade un, afirma, em nota de rodapé, que os informantes caboverdianos outilizam em raras ocasiões. Segundo a autora, o uso de uma apresenta-setão escasso em seu corpus que ela poderia assinalá-lo como meramenteacidental e não sistemático.

Em nossas análises, no entanto, observamos que a utilização de umadá-se de modo frequente na língua caboverdiana. Ademais, uma nãocompartilharia das características da classe dos artigos indefinidos, comomostraremos mais adiante.

Partindo do fato de que em caboverdiano não há concordância de gênero— exceto para seres animados, ver ..—, uma não poderia ser semprea contraparte feminina de un. Em outras palavras, uma não realizariaconcordância de gênero com os nomes que modifica, uma vez que ocorre

Agradeço a Francisco Lopes por ter chamado a minha atenção sobre o comportamentode uma no caboverdiano.Observamos o fato desse item ser pouco abordado nas análises sobre o sintagma

nominal do caboverdiano. Em geral, menções sobre o comportamento de uma são restritasa poucos parágrafos ou notas de rodapé.

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. Por que uma não seria um artigo indefinido?

sem restrições com nomes considerados no português como masculinos ()e femininos (). De acordo com nossas análises, uma e un não seriamalomorfes; uma pertenceria, desta feita, a uma classe distinta.

() AmiSG.T

PFVpeskapescar

UMASING

pexi!peixe

Eu pesquei o maior peixão!

() AmiSG.T

PFVkonxiconhecer

UMASING

mininamenina

bunita!bonita

Eu conheci a menina mais linda!

Neste capítulo, apresentaremos os contextos de ocorrência de uma emcaboverdiano, bem como suas restrições de uso, destacando os elementosque o distinguem da classe dos artigos indefinidos, bem como da classe dosmodificadores de grau.

. Por que uma não seria um artigo indefinido?

Parece consenso entre grande parte dos estudiosos do caboverdiano queuma é um artigo indefinido — exceto por Veiga (), que o coloca comoadvérbio. Propomos, porém, que uma não compartilha das característicasde um artigo indefinido e que não deveria ser tratado como tal.

Em caboverdiano, uma seria utilizado exclusivamente quando o falantepretende enfatizar alguma propriedade do nome ou do adjetivo com o qualse combina. Sua função seria a de destacar o nome que modifica e nãoveicular indeterminação. A sentença () é produzida pelo falante em umdia de muito calor e só seria apropriada em um contexto no qual o falanteconsidera o calor muito acima da média.

() AmiSG.T

staestar

kuPREP

UMASING

kalor!calor

Estou com o maior calorão!

Muito importante também é o fato de uma sempre ocorrer com acentoprosódico enfático, não sendo reconhecido na língua sem esse acento. Osartigos, por outro lado, devem caber em todos os contextos pragmático-conversacionais, não só nos enfáticos.

Em contraposição, C. Lyons ( : ) aponta que os artigos definidoe indefinido (the e a do inglês) são formas fonologicamente fracas e essacaracterística os tornaria membros básicos e não marcados de suas respecti-vas classes. Logo, o acento fonológico de uma também o afasta da classe

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. Modificadores de grau: discussão teórica

dos artigos indefinidos.

. Modificadores de grau: discussão teórica

O fato de uma sempre destacar o nome que modifica nos levou, em primeirolugar, a analisá-lo como um possível modificador de grau. As análisesrealizadas, todavia, o afastam desta classe, como veremos.

Grande parte dos trabalhos sobre modificadores de grau tratam de itenscomo muito, que gerariam uma leitura escalar.

Para o inglês, Kennedy and McNally () afirmam que very estárestrito a modificar expressões que são, ao mesmo tempo, adjetivais egraduais, além de modificar escalas totalmente abertas e ser manipulávelpelo contexto.

() The international space station is very expensive.A estação espacial internacional é muito cara.

() The coffee at the airport is very expensive.O café do aeroporto é muito caro.

Os autores salientam que tomar os adjetivos expensive, old e long comoadjetivos de escala aberta pode parecer contraintuitivo, já que seria naturalimaginar que tanto velho quanto caro possuem um valor mínimo que seriaequivalente a zero. Contudo, de modo a defender a hipótese, apontamque a não aceitabilidade de modificadores maximizando os seus antônimosseria indicativo de que esses são adjetivos de escala aberta.

A diferença entre expensive e very expensive, segundo Kennedy and Mc-Nally (), é que o último, apesar de denotar uma propriedade tal comoo primeiro, tem padrão relativo aumentado por uma certa quantidade.

Para os autores, no uso normal, adjetivos absolutos rejeitam a modifica-ção por very. A aceitabilidade, por vezes, de very com adjetivos absolutos(tal como aberto) poderia, contudo, ser explicada nos termos da teoria doshalos pragmáticos.

A teoria dos halos pragmáticos, apresentada por Lasersohn (),propõe que o contexto pode associar a qualquer expressão da língua umconjunto de denotações do mesmo tipo, que diferiria apenas em uma me-dida aceitável da real denotação, o que pode ser pragmaticamente ignorável

Escalas totalmente abertas são as que não possuem um valor máximo nem um valormínimo, tal como velho e caro.A estação espacial é considerada cara se comparada a outros projetos espaciais.O café é muito caro se comparado aos cafés em geral.

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. Modificadores de grau: discussão teórica

pelo contexto. Isso é o halo pragmático. Qualquer valor no halo pragmáticode uma expressão α conta como aproximação informativa e aceitável de αe estaria “próximo da verdade”.

Por exemplo, se uma pessoa chegar a um local às h e disser quechegou às h, essa informação não será considerada falsa, pois estápróxima da verdade e essa pequena diferença é pragmaticamente ignoradapelo contexto.

Kennedy and McNally (), embora atribuam a interpretação devery com adjetivos absolutos aos halos pragmáticos, dizem-se neutros emrelação à explicação de como se dá exatamente essa interpretação; afirmamque, quando o contexto é controlado para forçar o uso absoluto, vê-se comclareza a sensibilidade desse modificador de grau em relação à distinção depadrão relativo/absoluto () e () .

() ??I always leave the door to my office very open.Eu sempre deixo a porta da minha sala muito aberta.

() ??That drug is currently very available.Essa droga está muito disponível atualmente.

Parece necessário observar a ocorrência de very de modo mais detido, jáque essa sensibilidade pode não ser tão efetiva, uma vez que há necessidadede controlar o contexto para forçar tal uso. No português brasileiro, porexemplo, o dado () não causa estranhamento.

Em relação ao francês, Doetjes () assinala que beaucoup semprecorresponde a uma expressão de grau alto e opera no significado de um pre-dicado que tem de ser interpretado como escala. Essa escala corresponde,no caso de NPs e VPs, ou a uma escala global, com predicados massivos, oua uma escala discreta, com predicados contáveis plurais.

Expressões como beaucoup não poderiam combinar-se com NPs singu-lares porque eles correspondem a uma quantidade específica e não a umaescala. A quantidade de referência de beaucoup seria interpretada comouma entidade global “mais que n”, onde n é contextualmente determinadopor uma norma.

() Sylvie va beaucoup au cinéma.Silvia vai muito ao cinema

Expressões como beaucoup são tipicamente encontradas em contextos queespecificam grau. Quando combinadas com adjetivos, as expressões de

Observamos que Doetjes () contrapõe beaucoup a souvent. Por isso, a grandemaioria dos exemplos apresentados pela autora (com beaucoup) gera uma leitura iterativa.

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. Por que uma tampouco seria um modificador de grau?

grau, a depender do contexto, introduzem uma escala qualitativa ou deintensidade. De acordo com a autora, a generalização que pode ser feitasobre os contextos em que as expressões de grau são utilizadas é a de que osintagma modificado deve introduzir uma escala.

Embora Doetjes () considere que beaucoup seja sempre uma expres-são de grau, assim como o muito do português brasileiro ele não é utilizadoexclusivamente para expressar grau. Por exemplo, a expressão “Merci be-aucoup” não parece veicular grau, porque não há expressões concorrentescom outro grau, como “Merci un peu”, por exemplo.

Já em relação ao português brasileiro (PB), Quadros Gomes ( : )argumenta que muito pode modificar qualquer tipo de adjetivo. De acordocom a autora, o produto da modificação é sempre uma escala aberta, e temsempre parâmetro relativo. Muito pode marcar um grau além do parâmetro,e esse pode vir explicitado na sentença como, por exemplo (a) e (b):

() a. A banheira está muito cheia para dar banho no bebê.b. A banheira está muito vazia para mim.

(Quadros Gomes, : )

Ainda de acordo com Quadros Gomes (), em relação a muito, oproduto da modificação de um adjetivo é um valor dependente do contexto.Como modificador nominal, muito não define uma quantidade e pode virinterno em outros determinantes, como “os muitos meninos”. No queconcerne aos eventos, muito modificaria diretamente o VP e construiriauma intensificação vaga. Não se pode definir precisamente a quantidadeem causa, dada a manipulação contextual embutida em “muito”.

. Por que uma tampouco seria um modificadorde grau?

Em Miranda et al. ( :), apontamos uma não como a contrapartefeminina de un, mas como um intensificador que aponta para o maior grau,tanto de quantidade quanto de qualidade. Argumentamos ainda que “umaé um operador que marca o caráter excepcional do referente quanto ao grauextremado de certa qualidade ou dimensão que o destaca”.

Diferentemente do que nós mesmos apontamos em Miranda et al.(), uma tampouco poderia ser classificado como intensificador, ou mo-dificador de grau, nos termos de Kennedy and McNally (), por nãoveicular grau.

Nesta subseção, verificaremos o motivo pelo qual uma não poderia ser

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. Por que uma tampouco seria um modificador de grau?

analisado como intensificador, tal como apontado em Miranda et al. (),tampouco como modificador de grau nos termos de Kennedy and McNally() — ou, ainda, como advérbio de grau nos termos de Doetjes ().

.. Txeu

No caboverdiano, o modificador de grau equivalente ao very do inglês,beaucoup do francês e ainda ao muito do português brasileiro seria txeu.

Nos exemplos () e (), o grau de contentamento do falante excede amédia ou a norma da escala no contexto em questão, ou seja, a escala degrau de contentamento. Em (), contudo, o grau excedido está acima dograu expresso por (), pois quando o falante produz (), ele está mais doque muito contente — se assim fosse, o mais adequado seria dizer ().

() AmiSG.T

staestar

UMASING

kontenti!contente

Estou super contente!

() AmiSG.T

staestar

txeumuito

kontenti!contente

Estou muito contente!

Aqui, escalas não precisam ser construídas por números. O importante,para Kennedy and McNally (), é que, seja qual for o status ontológicodos graus — se correspondem a números, a classes de objetos ou construtosmentais —, eles podem variar.

Os autores propõem que essa variação se dá em termos da distinçãoentre escala aberta e fechada. Não é essa, no entanto, a distinção quetomamos como base para a explicação dessa variação, pelo menos não nocaboverdiano, e sim os tipos dos nomes sobre os quais o modificador opera.

Em caboverdiano, txeu modifica nomes e verbos e o resultado dessa mo-dificação, assim como no PB e no francês, é contextualmente dependente.

Nos dados a seguir, não há uma quantidade específica. Seria o queQuadros Gomes chama de intensificação vaga. Para os dados () e ()seria mais adequado considerar a cardinalidade vaga, posto que não sepode definir exatamente a quantidade expressa nos dados.

Assim como os modificadores de grau, txeu não está restrito a umaordem adverbial canônica, ocorrendo tanto antes — () e () — quantodepois do nome — () e () — ou verbo — () — que modifica, além demodificar nomes contáveis plurais — () e () —, nomes abstratos — ()e () — e massivos — ().

Os dados () e () podem ser explicados em termos de escalas; o grau

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. Por que uma tampouco seria um modificador de grau?

de saudade e de “enganação” estariam acima do que pode ser consideradoa média. Todavia, como esses são nomes abstratos, o padrão da escala variade acordo com a norma considerada pelo falante e a escala gerada é deintensidade, não de quantidade. O grau superado nesses itens é o grauconsiderado pelo falante, o que é contextualmente dependente.

() SantuSanto

OntonAntão

tenter

txeumuito

águ.água

Santo Antão tem muita água.

() TaHAB

tenter

txeumuito

mininusmeninos

kiPRON.CONJ.PREP

taHAB

bair

skola.escola

Tem muitos meninos que vão para escola.(Baptista, : )

() MunduMundo

staestar

nganaduenganado

txeu.muito.

O mundo está muito enganado.(Baptista, : )

() DinheruDinheiro

txeumuito

taHAB

mátamatar

algén.pessoas

Pamódiporque

dinherudinheiro

txeu,muito

buSG

taHAB

usausar

puderpoder

diPREP

dinheru.dinheiro.

Muito dinheiro mata as pessoas. Porque, com muito dinheiro, você usao poder dele.

() LivruLivro

goagora

nuPL

teneter

txeu.muito.

Agora temos muitos livros.(Baptista, )

() NSG

tenter

txeumuito

sodádi-bo.saudade-SG

Tenho muita saudade de você.(Quint, : )

Diferentemente de uma, txeu não parece estar associado exclusivamentea uma superação de expectativa. Txeu, tal como muito do PB, pode modifi-car nomes sem necessariamente ter uma ideia de escala associada a ele ()e ().

() KadaCada

diadia

elSG

staestar

sabesaber

masmais

txeu.muito

lit: A cada dia ele/ela sabe muito mais.

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. Por que uma tampouco seria um modificador de grau?

A cada dia ele sabe mais.(Silva, : em Baptista, : )

() AmiSG.T

djaADV

PFVsentasentar

txeu.muito

Eu já fiquei sentado (tempo) demais.

Os dados (), () e () também não parecem ser interpretados em escalade graus.

() AmiSG.T

taHAB

konxiconhecer

txeumuito

algén.pessoas

Eu conheço muita gente.

() Plantaplanta

tenter

txeumuito

saúdi.saúde

As plantas são muito saudáveis.

() AmiSG.T

panhapegar

txeumuito

sufrimentusofrimento

enorme.enorme

Passei por muito sofrimento.

Txeu também ocorre em contextos comparativos como em () e () e,ainda, serve como resposta: () é dado como resposta pelo informante àpergunta se ele possui muitos porcos.

() Éé

quentiquente

masmais

txeumuito

kiPRON.CONJ.PREP

friu.frio

É muito mais quente do que frio.

() PrétuPreto

éé

masmais

txeu,muito

brakubranco

éé

masmais

pocu.pouco

Tem mais preto do que branco.

() NonNEG

éé

kaNEG

txeu.muito.

AmiSG.T

tenter

dôsdois

porkuporco

lá.ADV

Não é muito não, eu tenho dois porcos lá.

As sentenças () e () poderiam ser aceitáveis com a ocorrência de uma.No entanto, a interpretação — com uma — seria de quantidade absoluta-mente acima do esperado, ou seja, uma quantidade surpreendente.

() Grógugrogue

eraser.PST

txeu.muito

Tinha muito grogue.

Aguardente produzida no país à base de cana-de-açúcar.

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. Por que uma tampouco seria um modificador de grau?

(Rodrigues, )

() NaPREP

órtahorta

tenter

txeumuito

makaku.macaco

Na horta tem muito macaco.(Rodrigues, )

Em alguns contextos, txeu comporta-se como modificador de grau, gerandouma leitura escalar contextualmente dependente. Contudo, assim comoo muito do PB, não ocorre exclusivamente como modificador de grau. Oimportante aqui é que txeu nem sempre gera uma escala. Por esse fato, nãopode ser considerado exclusivamente como um modificador de grau nostermos de Doetjes () ou Kennedy and McNally ().

.. Uma

Em () o informante, em conversa espontânea, falava a respeito de umpeixe que pescou no ano anterior; disse que era o maior peixe que elehavia pescado, um atum de noventa e nove quilos. Nesse caso, uma operadiretamente sobre o tamanho do objeto.

() AmiSG.T

PFVpeskapescar

UMASING

pexi!peixe

Eu pesquei o maior peixão!

A sentença () só é adequada para se referir a uma chuva extremamenteforte. Não seria possível utilizar uma para referir-se a um dia chuvoso,em que a chuva não tenha sido de grande intensidade, mesmo que tenhachovido durante todo o dia.

() OjiHoje

PFVtxobechover

UMASING

txuba!chuva

Hoje deu a maior chuvarada!

Em () a informante, ao contar um episódio sobre o nascimento de umdos seus filhos, fala que o marido trouxe uma trouxa cheia de roupaspara a criança. De modo mais preciso, nesse contexto, uma aponta para aquantidade de roupas dentro da trouxa e é essa quantidade que supera aexpectativa do falante. Ou seja, havia muito mais roupas do que se podeconsiderar normal dentro do contexto relevante, como se pode observar nadescrição da trouxa de roupas feita pela informante em (). Chamamos aatenção para a explicitação feita pela informante após a utilização de uma.

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. Por que uma tampouco seria um modificador de grau?

() N’otuPREP’outro

diâdia

nhaSG.POSS

maridumarido

PFVtxigachegar

kucom

UMASING

troxa!trouxa

No outro dia, meu marido chegou com uma trouxa (de roupa) imensa!

() KuPREP

dôsdois

panupano

tératerra

(. . . )(. . . )

KuPREP

róbi,robe

kuPREP

kamisacamisa

diPREP

nóti,noite,

kuPREP

dôsdois

parpar

diPREP

sapatinhusapato.DIM

mininu,menino,

kuPREP

dôsdois

chapéuchapéu

diPREP

mininu,menino,

kuPREP

quatuquatro

kamisacamisa

diPREP

mininu,menino,

kuPREP

rôpa,roupa,

kuPREP

tudutudo

kusa.coisa

Com dois “panos de terra” (. . . ), com robe, com pijama, com dois paresde sapatinho de menino, com dois chapéus de menino, com quatrocamisas de menino, com roupa, com todas as coisas.

Em () a informante diz que estava com uma barriga enorme, prestes adar à luz. Nesse caso, uma aponta para o tamanho.

() AmiSG.T

tinhater.PST

UMASING

bariga!barriga

Eu estava com o maior barrigão! (de grávida)

Nos dados apresentados até agora, podemos observar que a modificaçãogerada por uma está mais associada à expectativa do falante, conformeapontamos em Miranda et al. (), e é contextualmente dependente, nãogerando uma quantidade específica. Parece haver, tal como no muito do PB,uma manipulação contextual embutida em uma.

A sentença () foi apresentada em um teste de aceitabilidade. Mesmoaceitando a expressão (), na grande maioria dos casos, o dado () foitambém oferecido espontaneamente pelos falantes. Nesse caso, conside-ramos ser () o dado adequado para o contexto em que o falante querindicar que uma pessoa possui um pé bem grande.

() ElSG

tenter

UMASING

pé!pé

Ele tem um pezão!

Pano de terra é um tecido feito em tiras de algodão produzido em teares no própriopaís.Salientamos que, aparentemente, testes de aceitabilidade não seriam os mais ade-

quados para elicitar a ocorrência de uma, por não favorecer seu uso. Diante disso, nãodescartamos a hipótese do dado () poder ser utilizado no contexto apresentado.

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. Por que uma tampouco seria um modificador de grau?

() ElSG

tenter

pesóna!pé.GRAU

Ele tem um pezão!

O par de dados () () poderia nos levar a imaginar que uma e –óna seriamintercambiáveis para a expressão de grau no caboverdiano, principalmenteno que diz respeito ao tamanho. Contudo, o dado () nos mostra que umatambém modifica o tamanho do objeto, o que descartaria essa hipótese. Odado () refuta ainda mais a hipótese mostrando, inclusive, que uma podeocorrer juntamente com a desinência –óna.

Em (), o falante, em conversa espontânea, contava sobre um sapatoque o amigo possui; sapato extremamente chamativo, tão chamativo que,segundo ele, o amigo deveria ser preso por perturbar a ordem pública.Nesse caso, tanto uma quanto –óna operam sobre a característica do sapato,e não sobre o tamanho extremado. Aqui, especificamente, o que está acimada escala considerada normal é tanto a cor quanto a forma do sapato, e essaleitura é capturada contextualmente.

() ElSG

tinhater.PST

UMASING

sapato,sapato

UMASING

sapatóna,sapato.GRAU

UMASING

sapatosapato

bermedju!vermelhoEle tinha um sapato, um sapatão (muito chamativo), um sapato verme-lhaço!

Em (), trata-se de um contexto em que o informante fala a respeito decerta garota que conheceu em uma festa e que é, segundo ele, a garota maisbonita que ele já conheceu. A sentença () sem o adjetivo soou estranhaao falante, o que reforçaria a hipótese da sua não interpretação como artigoindefinido.

() AmiSG.T

PFVkonxiconhecer

UMASING

mininamenina

bunita!bonita

Eu conheci a menina mais linda!

() #AmiSG.T

PFVkonxiconhecer

UMASING

minina!menina

Uma parece apontar para uma característica extremada, seja essa carac-terística o tamanho, a quantidade ou a qualidade. Caso fosse consideradomodificador de grau, que gera uma escala, deveríamos considerar que aescala gerada sempre aponta para o grau máximo, independentemente dotipo de dimensão considerada na escala.

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. Por que uma tampouco seria um modificador de grau?

A análise dentro de uma perspectiva escalar parece não ser tão apropri-ada para uma, como foi para txeu. Em txeu — quando comporta-se comoum modificador de grau — a escala gerada é contextualmente dependente,e não se pode definir a quantidade gerada pela escala, apenas que estáacima do que seria considerado a média. No caso de uma, seria sempre oponto mais alto da escala. Txeu gera tanto uma intensidade quanto umacardinalidade vaga. Uma não parece denotar uma cardinalidade vaga, nemtampouco uma intensificação vaga, uma vez que o grau expresso por eleserá sempre o grau máximo.

Ademais, quando não se trata de tamanho extremado, a utilização deuma diretamente com o nome não parece ser considerada aceitável. Dife-rentemente de txeu, uma parece não veicular, por si só, toda a informaçãorelevante. Comparem-se os dados () e ().

() #AmiSG.T

PFVkonxiconhecer

UMASING

minina!menina

() TaHAB

tenter

txeumuito

mininusmeninos

kiPRON.CONJ.PREP

taHAB

bair

skola.escola

Tem muitos meninos que vão para escola.

Em suma, a teoria que trata dos modificadores de graus parece não capturar,nem explicar, determinadas características de uma que serão arroladas naspróximas seções.

–óna

Na subseção .., apontamos a questão da coocorrência de uma e –óna.Apresentaremos, sucintamente, as características da desinência –óna queserão importantes para a discussão dos dados mais adiante.

O sufixo –óna é considerado aumentativo por grande parte dos estudio-sos do caboverdiano. Quint ( : ) assinala que, quando combinadocom “nomes masculinos”, esse sufixo possui um valor enfático. Logo,segundo o autor, uma pedróna “designa uma pedra ainda maior do que asmerecedoras da designação uma pedron”.

A despeito da afirmação feita pelo autor, acentuamos novamente que ocaboverdiano não distingue gênero de seres inanimados. Assim, não seriaadequado considerar que –óna possui valor enfático quando se combinacom nomes masculinos, uma vez que, especialmente no exemplo oferecidopor Quint (), não há tal distinção. Ao que parece, esse sufixo possuiriavalor enfático em todas as suas ocorrências.A forma simples do nome é pédra.

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. Por que uma tampouco seria um modificador de grau?

Em (), –óna é utilizado para dar ênfase ao tamanho do bode. Nasequência do diálogo, o falante ainda explica o tamanho do bode; ver (),utilizando o nome sem o sufixo –óna.

() ÓkiQuando

benvir

bodónabode.GRAU

elSG

taHAB

odja,olhar

elSG

taHAB

máta.matar

Quando vem o bodão, ele olha e mata.(Rodrigues, )

() Bódibode

eraser.PST

grandi,grande

bódibode

eraser.PST

tamanhu!muito.alto

O bode era grande, o bode era enorme!(Rodrigues, )

Tanto em (), quanto em () o sufixo –óna aponta para o tamanho. Maisespecificamente, para o tamanho da lata e para o tamanho da subida,respectivamente.

() AmiSG.T

panhaapanhar

kelDEM

latónalata.GRAU

liADV

xeicheio

d’agu.PREP’agua

Eu pego esta latona aqui cheia de água.

() NunPREP

subidónasubida.GRAU

kiPRON.CONJ.PREP

tenter

láADV

Sonsão

Jorge.jorge

Numa subidona que tem lá em São Jorge.

A nosso ver, o sufixo –óna apontaria exclusivamente para o tamanho doobjeto, mas não estaria relacionado a uma superação de expectativa dofalante, o que pode indicar que esse sufixo não poderia ser intercambiávelcom uma, já que não expressariam a mesma informação e, por conseguinte,não poderiam formar um paradigma. Enquanto o sufixo –óna seria utilizadocomo um sufixo aumentativo, uma seria utilizado para expressar umacaracterística extremada que não se restringe apenas ao tamanho.

Adjetivos que expressariam grau

Finalizando a abordagem a respeito de graus, em caboverdiano, algunsadjetivos podem ser utilizados para expressar ênfase. Quint ( :)cita pelo menos quatro: álta () e (), bruta (), nháku () e sépa ().

() AltaSING

son!som

Que música boa!

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. Evidenciais: abordagem teórica

() AltaInt

kamiza!camisa

Que camisa bonita (da hora)!

() UMASING

brutaInt

sónu!sono

Um baita sono!(Quint, : )

() Éser

nhákuInt

membra!namorada

É uma super namorada (muito boa)!(Quint, : )

() SépaInt

kása!casa

(Que) casa grande!(Quint, : )

Em (), o autor não deixa claro se a intensificação é realizada somentepelo adjetivo ou se uma tem algum papel nessa intensificação. Acreditamosser necessário testar este dado para verificar, por exemplo, se o sono de umabruta sónu é maior que o de bruta sónu. No entanto, esses itens seriamutilizados exclusivamente para a expressão de grau na língua.

. Evidenciais: abordagem teórica

Outra possibilidade de análise quanto à contribuição semântica de umaseria tratá-lo como operador de evidencialidade. Aikhenvald () defineevidencialidade como uma categoria linguística cujo sentido primeiro seriamanifestar a fonte de informação. Essa categoria pode ser expressa demodo variado. Algumas línguas possuem afixos ou clíticos, enquantooutras possuem marcação de evidencialidade conectada a outras categorias.A autora afirma ainda que somente de forma ocasional pidgins e línguascrioulas apresentam evidenciais.

Basicamente, os parâmetros empregados em línguas com evidenciali-dade gramatical cobrem, segundo Aikhenvald (), informações sensori-ais, vários tipos de inferências e relato verbal. Os parâmetros semânticosrecorrentes seriam:

I. Visual: cobre informações adquiridas por meio visual;

Voltaremos a essa questão logo mais.

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. Evidenciais: abordagem teórica

II. Sensório não visual: cobre informações adquiridas através da audiçãoe é tipicamente estendida ao olfato, ao paladar e, algumas vezes, aotato;

III. Inferência: baseado em indícios visíveis ou tangíveis;

IV. Suposição: baseado em indícios não visíveis, o que pode incluir racio-cínio lógico, suposição ou simplesmente conhecimento geral;

V. Boato: para informações relatadas sem nenhuma referência à fonte;

VI. Citativo: informações relatadas com referência explícita à fonte citada.

Faller vem realizando uma série de estudos sobre os evidenciais emquechua de Cuzco e os analisa, dentro da teoria dos atos de fala, comomodificadores ilocucionários que adicionam ou modificam as condições desinceridade. Em Faller (), essa autora argumenta que o termo “eviden-cialidade” é usado para referir-se à codificação gramatical do conhecimentodo falante. Em asserções, essa experiência do falante pode ser identificadacom a fonte de informação veiculada pelo enunciado.

Haveria três tipos principais de fonte de informação codificadas pelosevidenciais: acesso direto, relatado por outros e inferidos.

Os evidenciais arquetípicos, de acordo com Anderson (), citado porFaller (), devem apresentar as seguintes propriedades:

a. mostrar o tipo de justificativa para uma afirmação factual disponívelpara a pessoa que realiza a asserção;

b. não serem, eles mesmos, a predicação principal da sentença, mas umaespecificação adicionada à afirmação factual;

c. terem a indicação de evidência como seu sentido primeiro, não apenascomo inferência pragmática;

d. morfologicamente, serem flexões, clíticos ou elementos sintatica-mente livres.

Conforme mencionado, Faller analisa os evidenciais em quechua comooperadores ilocucionários. A lógica ilocucionária desenvolvida por Searleand Vanderveken () traz, como principal objetivo, o de formalizar aspropriedades lógicas da força ilocucionária. O ato ilocucionário consistiriade uma força F e de um conteúdo proposicional P. Os elementos quemodificam F podem ser chamados de modificadores ilocucionários.

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. Uma seria um operador ilocucionário?

Davis et al. () analisam o valor pragmático das sentenças evidenci-ais e mostram que os morfemas evidenciais gramaticalizados recaem emalgumas categorias como experiência pessoal, percepção direta, inferência,conjectura e outras. Os autores afirmam que diferentes línguas escolhemdiferentes subconjuntos das categorias evidenciais e que haveria, ainda,uma variação considerável no modo como os diferentes tipos de morfemasrelacionam-se com uma informação específica.

O componente de sentido que parece derivar mais diretamente da pre-sença dos morfemas evidenciais seria um comprometimento do falanteem relação à existência de uma situação de certo tipo. A contribuição dosevidenciais seria puramente pragmática, no sentido de que parecem operarsobre o contexto de interação e não no sentido de qualquer enunciado emparticular. Podem ser percebidos como fortalecimento global da força asser-tiva de um enunciado declarativo. O fortalecimento geralmente ocorreriacom a experiência pessoal e direta (Davis et al., ).

Os evidenciais marcariam um tipo particular de estratégia do falante:ao usar um evidencial, o falante engatilha um contexto de comparação detipo particular.

Em sentenças declarativas regulares, a estratégia pragmática do falanteao usar o evidencial seria, de acordo com os autores, deslocar o limiar paraum ponto em que a asserção respeite a máxima de qualidade. A asserção Sseria julgada pragmaticamente nesse novo contexto.

. Uma seria um operador ilocucionário?

Uma do caboverdiano não se enquadraria na teoria da evidencialidade emsentido estrito, uma vez que não codifica a fonte de informação do falanteem relação aos parâmetros apresentados por Aikhenvald () — ver ..Ou seja, não há uma especificação se a fonte de informação é visual, nãovisual ou ainda por inferência ou suposição.

Uma noção relevante aos nossos propósitos é a de informação pessoal.Faller ( : ) considera informação pessoal a informação sobre eventosda vida privada do falante. A melhor fonte de informação possível seriadeterminada em termos de “acesso direto”. Em eventos observáveis, oacesso mais direto seria a percepção do evento.

Ao que parece, uma estaria associado a uma experiência pessoal do fa-lante e o sentido derivado estaria de acordo com o apontado por Davis et al.(), ou seja, um comprometimento do falante em relação à existência deuma situação de certo tipo. Uma marcaria a estratégia do falante de apontarpara uma característica extremada, considerada conforme a experiência do

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. Uma seria um operador ilocucionário?

falante, de um evento ou objeto de certo tipo ().

() AmiSG.T

PFVpanhaapanhar

UMASING

kárga,carga

diPREP

papelon,papelão

diPREP

simentu,cimento

UMASING

fixon!feijão

Eu peguei uma carga imensa, de papelão, de cimento, um monte defeijão!

Uma característica compartilhada por uma com os evidenciais é sua inefa-bilidade descritiva, apontada por Davis et al. () e Faller ():

“É difícil dizer o que os evidenciais significam — difícil traduzi-los, e difícil parafraseá-los com outras palavras da mesma lín-gua.”

(Davis et al., : )

“Evidenciais são notoriamente difíceis de traduzir, e traduçõespara o inglês tendem a sugerir que o significado do evidencialnão contribui para a proposição expressa.”

(Faller, : )

Apontamos, em consonância com os autores citados, a dificuldade detradução de uma do caboverdiano para o português, pelo fato de a traduçãonão conseguir captar facilmente seu sentido. Temos de parafraseá-lo comalgumas expressões para tentar capturar o seu significado. Considerem-seos dados () e (), repetidos por conveniência:

() AmiSG.T

PFVpeskapescar

UMASING

pexi!peixe

Eu pesquei o maior peixão!

() AmiSG.T

PFVkonxiconhecer

UMASING

mininamenina

bunita!bonita

Eu conheci a menina mais linda!

Em () e () optamos por traduzir as expressões “uma pexi” e “uma mi-nina bunita” como o maior peixão e a menina mais linda, respectivamente.Entretanto, as traduções mais próximas ao significado das expressões se-riam, talvez, o maior peixe que eu já pesquei em () e a menina mais bonitaque eu já conheci na vida em ().

Um ponto interessante sobre a sentença () é que, quando o falantedestaca alguma menina com uma, dificilmente outros irão discordar, ou

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. Uma seria um operador ilocucionário?

seja, não haveria a possibilidade de outra pessoa discordar e não achá-labonita — tecnicamente, a asserção torna-se incancelável. Uma veiculariatambém certo grau de verdade.

O professor Dr. Renato Basso, da Universidade Federal de São Carlos,em comunicação pessoal, sugeriu que uma do caboverdiano poderia, talvez,ser equivalente ao termo “puta” usado informalmente no português brasi-leiro para marcar ênfase, conforme dados () e (). Acreditamos porém,que a singularização realizada por uma expresse mais do que este “puta”do português. Outrossim, ele não é adequado em todos os contextos emque uma pode ocorrer, como, por exemplo, nas sentenças () e ():

() Estou com uma “puta” dor de cabeça!

() Pesquei um “puta” peixe!

() #Conheci uma “puta” menina linda!

() #Estou “puta” contente!

De volta às análises dos evidenciais, Faller () utiliza-se do termo mo-dificador ilocucionário, baseada na análise de Vanderveken () que tratade certos advérbios de atos de fala que modificam o indicador principalda força ilocucionária. Essa modificação derivaria um indicador complexo,que expressa a força ilocucionária obtida da asserção.

A autora salienta que, na maioria das línguas analisadas, os elementosque codificam evidencialidade também expressam outros conceitos — alémda indicação da justificativa do falante para fazer uma afirmação — egeralmente é difícil decidir qual seria o sentido primeiro dos evidenciais.Em quechua, por exemplo, os clíticos evidenciais também apareceriampara indicar o grau de certeza do falante de que a proposição expressa éverdadeira.

Em caboverdiano, uma não poderia ser classificado como evidencialnos termos de Aikhenvald (), de Davis et al. () ou ainda de Faller(). As análises sobre os evidenciais, porém, parecem fornecer uma di-reção de análise para uma. Partindo das noções apresentadas, analisaremos

O advérbio por favor do português, por exemplo, pode ser considerado um modificadorilocucionário, pois muda a força da proposição. Quando o advérbio é utilizado em umasentença com força imperativa, como em “Por favor, pegue esse lápis”, essa força éatenuada pelo uso do operador.

||

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. Uma como “singularizador”

na seção . o comportamento de uma com base nas seguintes conjecturas:

i uma estaria diretamente ligado à experiência do falante, marcandoum tipo de estratégia: o de salientar determinada característica donome;

ii a contribuição de uma seria principalmente pragmática, semelhante àcontribuição dos evidenciais apontada por Davis et al. (), poisoperaria principalmente no contexto de interação e não no sentido deum enunciado particular.

. Uma como “singularizador”

Na seção ., verificamos que a tentativa de analisar uma como modificadorde grau nos termos de Kennedy and McNally () e Doetjes () nãoseria a maneira mais adequada de explicar o funcionamento de uma nocaboverdiano, já que parece haver um componente pragmático em suaocorrência.

Outro caminho em relação à análise de uma foi a tentativa de aproximá-lo dos evidenciais. Entretanto, de acordo como nossas análises apresentadasna seção ., uma também não poderia ser enquadrado nessa categoria.

Já Delgado ( : ), em sua análise — correta, a nosso ver —, chamaa atenção para algumas situações especiais em que há o “artigo indefinido”uma, como, por exemplo, “quando se quer dar ênfase a um substantivo numdeterminado contexto de comunicação”.

Quint ( : ) também aponta o valor enfático de uma que assinalaalguma qualidade particular, como beleza, inteligência e outras.

Os dados de fala espontânea que coletamos, os resultados de algunstestes semânticos específicos, além dos debates na literatura, levam a crerque — eis a hipótese que defenderemos — a função de uma é a de tornarsingular determinada qualidade, objeto ou, ainda, determinado evento. Émuito importante destacar que a produção de uma, ademais, é sempreacompanhada por seu acento prosódico característico.

As questões que serão exploradas a partir de agora concernentes ao usode uma, a fim de fundamentar nossa hipótese, serão: (i) experiência dofalante; (ii) a aparente necessidade de explicitação quando da utilizaçãode uma; (iii) a interação com outros elementos que expressam grau; e, demodo tangencial, (iv) o papel de seu acento prosódico.

Deve-se salientar que uma não é reconhecido na língua sem tal acento.

||

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. Uma como “singularizador”

.. Experiência pessoal do falante

De acordo com o pensamento de Faller (), os evidenciais em quechuanão requerem que a indicação da fonte de informação seja seu sentidoprimeiro. Segundo a autora, os evidenciais codificam a fonte de informação,em vez de implicá-la. A autora aponta que, em algumas ocasiões, a fontede informação mais direta possível pode não ser uma fonte de informaçãono sentido usual como, por exemplo, em questões de fé, que envolvemsimplesmente a crença do falante.

A autora considera informação pessoal as informações sobre a vida pri-vada dos falantes; é essa noção que tomaremos neste trabalho, na medidaem que conjecturamos estar o uso de uma diretamente ligado à experiênciado falante.

Em quechua, o uso do evidencial –mi, de acordo com as análises deFaller (), indica que o falante adquiriu a informação da melhor fontedentre todas aquelas a que uma pessoa normal poderia ter acesso para otipo de informação transmitida. De modo similar, propomos que o uso deuma indica o objeto ou evento mais singular que o falante viu ou vivenciouem dada situação. A qualidade ou especificidade do objeto ou evento,quando modificadas por uma, tornam o objeto ou evento algo exclusivo ouexcepcional diante da experiência do falante.

Por exemplo, em Miranda et al. ( : exemplos adaptados), aponta-mos que a sentença () é inadequada para expressar uma quantidade dedinheiro de todos os dias como, por exemplo, para comprar pão:

() #TeneTer

UMASING

dinherudinheiro

ribaem.cima

mésa.mesa

BuSG

panha!pegar

Todavia, caso seja uma quantia inesperadamente alta, a sentença () podeser utilizada:

() Teneter

UMASING

dinherudinheiro

ribaem.cima

mésa!mesa

Tem dinheiro à beça em cima da mesa!

Uma, apesar de estar ligado à experiência do falante, pode ser utilizadoem informações reportadas por outros falantes, conforme exemplo (), eainda pode referir-se a eventos futuros, conforme ().

() NhaSG.POSS

maimãe

PFVfla-mdizer-SG.OBJ

kiPRON.CONJ.PREP

WâniaWânia

éser

UMASING

interessaduinteressado

naPREP

língualíngua

kriola!crioula

||

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. Uma como “singularizador”

Minha mãe me disse que Wânia é a pessoa mais interessada do mundona língua caboverdiana!

() AmiSG.T

taHAB

átxaachar

kiPRON.CONJ.PREP

NSG

taHAB

baiir

staestar

UMASING

kansaducansado

palmanhãde.manhã

pamodiporque

ojihoje

NSG

PFVtrabadjatrabalhar

txeu!muito!

Acho que vou estar morto de cansaço pela manhã porque trabalheidemais hoje!

.. Necessidade explicativa

Em (), observamos a relativa inefabilidade descritiva de uma. No contextoem questão, o falante aponta para uma pessoa que rouba muito, que teria“mão leve”. Porém, ao que nos parece, essa tradução não consegue capturaradequadamente o sentido de uma panhadura.

() Benvir

unDET

brejerubrejeiro

algénalguém

tenter

UMASING

panhadura,mão-leve,

PFVpanhaapanhar

simacomo

sta!DEM

Vem um brejeiro, alguém com uma bruta mão leve, pegou desse jeito!

Observe-se que, nesse caso, o falante singulariza o modo com que a pessoapega (mais especificamente, trata-se de um roubo de dinheiro). Logo aseguir, em () o falante descreve a quantidade de coisas que essa pessoa,que roubou o dinheiro, conseguiu comprar, o que aponta para a enormequantidade de dinheiro roubado.

() Panhaapanhar

paPREP

fazifazer

kunpra,compra,

kunpracompra

dezdez

litrulitros

grógu,grogue

kunpracompra

saquinhusaco.GRAU

diPREP

batatabatata

inglésa,inglesa

kunpracompra

kusa,coisa

kusa,coisa

unDET

montimonte

kusa.coisa

Cincucinco

litru,litros

dezdez

litru,litros

kunpracompra

unDET

montimonte

diPREP

kónpra.compra.

Pegou para fazer compra, comprou dez litros de grogue, comprou sa-quinho de batata inglesa, comprou coisas e mais coisas, um monte decoisas. Cinco litros, dez litros, comprou um monte de coisas.

Uma outra tradução possível seria “Minha mãe disse que a Wânia é a maior interessadana língua caboverdiana.”Uma outra tradução possível seria “Acho que vou estar maior cansado amanhã de

manhã porque trabalhei demais hoje!”

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. Uma como “singularizador”

Um ponto interessante, quando da ocorrência de uma, é a aparente necessi-dade de explicação da ocorrência, conforme pode-se observar em (), queexplica o evento em (). Em todas as ocorrências retiradas de conversasespontâneas, houve a explicitação. Essa explicação parece, assim, ser sem-pre requerida pelo uso de uma, ou seja, a ocorrência de uma engatilhariaalguma necessidade de explicitação do que é modificado por ele.

Observem-se os dados () e () reproduzidos na sequência. Em (),a informante explicita o que havia nessa trouxa trazida pelo marido. Parecehaver um reforço da singularidade da trouxa de roupas.

() N’otuPREP’outro

diâdia

nhaSG.POSS

maridumarido

PFVtxigachegar

kucom

UMASING

troxa!trouxa

No outro dia, meu marido chegou com uma baita de uma trouxa (deroupa)!

() KuPREP

dôsdois

panupano

tératerra

(. . . )(. . . )

KuPREP

róbi,robe

kuPREP

kamisacamisa

diPREP

nóti,noite,

kuPREP

dôsdois

parpar

diPREP

sapatinhusapato.GRAU

mininu,menino,

kuPREP

dôsdois

chapéuchapéu

diPREP

mininu,menino,

kuPREP

quatuquatro

kamisacamisa

diPREP

mininu,menino,

kuPREP

rôpa,roupa,

kuPREP

tudutudo

kusa.coisa

Com dois “panos de terra” (. . . ), com robe, com pijama, com dois paresde sapatinho de menino, com dois chapéus de menino, com quatrocamisas de menino, com roupa, com todas as coisas.

Na sentença (), coletada por meio de testes, quando se utiliza apenasa expressão “uma kábra”, ressalta-se alguma particularidade dessa cabraque deve ser detalhada depois, que pode ser uma cabra que dá muito leite,conforme (), ou uma cabra que come mais do que as outras, ou ainda amaior cabra do rebanho. De acordo com o informante, a explicação deve virapós a utilização de uma, caso contrário a informação não estaria completa.

() AmiSG.T

teneter

UMASING

kábra,cabra

kiPRON.CONJ.PREP

taHAB

dadar

txeumuito

leti!leite

Eu tenho uma cabra que é demais, é uma cabra que dá muito leite!

Novamente, em (), a característica singular da casa deve ser explicitada,não bastando apenas ressaltar a casa entre as demais; deve-se salientartambém o que essa determinada casa possui, aquilo que a distingue deoutras casas que a pessoa conhece.

||

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. Uma como “singularizador”

() AmiSG.T

PFVodjaolhar

UMASING

kasacasa

onti!ontem

KuPREP

dôsdois

andar,andar

kuPREP

piscina,piscina

kuPRER

tudutudo

kusa!coisa

Eu vi uma senhora casa ontem! Com dois andares, com piscina, ummonte de coisas!

Em síntese, uma singulariza determinado evento, característica ou objeto.Além disso, o motivo pelo qual esse evento, característica ou objeto é tãosingular deve ser explicitado pelo falante.

.. Interação com os elementos que expressam grau

Em (), a expressão uma tankóna refere-se a um tanque enorme e que nuncafica vazio, mói-se tanto milho que o tanque não se esvazia. A singularizaçãodo tanque dá-se por uma mas, aqui, o falante ainda utilizou-se do sufixoaumentativo –óna para apontar que era realmente um tanque de milhomuito grande. Ao final, o falante ainda utiliza-se da expressão “ta muimidju txeu di más”, que em sentido literal significa que “mói milho muitodemais”, apontando para a grande quantidade de milho que é moída.

() TaHAB

muimoer

midjumilho

sacusaco

másmais

saku,saco

tanki,tanque

UMASING

tankónatanque.GRAU

naPREP

kelDEM

ribaem.cima

kaNEG

taHAB

secasecar

taHAB

muimoer

midjumilho

txeumuito

dimais

más!

Mói o milho, sacos e mais sacos, tanque, um tanque imenso, lá naquelasubida, que não seca, mói milho demais!

Em Miranda et al. (), realizamos testes com uma para verificar ainteração com elementos que expressam grau. Nas sentenças a seguir, o in-formante entende que uma espécie de medicamento será aplicada. Em ()não há um comprometimento com a quantidade, nem com a qualidade doremédio a ser aplicado, no entanto, dizer () só seria apropriado caso oremédio em questão fosse muito eficaz ou aplicado em grande quantidade.

() AmiSG.T

staestar

kalokacolocar

unDET

ramediremédio

naPREP

buSG.POSS

firida.ferida.

Vou passar um remédio na sua ferida.

() AmiSG.T

staestar

kalokacolocar

UMASING

ramediremédio

naPREP

buSG.POSS

firida!ferida.

||

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. Uma como “singularizador”

Vou passar um remédio como nenhum outro na sua ferida!

A sentença () enfatiza ainda mais a eficácia do remédio. A sentença ()será adequada se o remédio aplicado for ainda mais eficaz que em ().Interessantemente, o falante interpreta o singularizador como qualificandoa eficácia do remédio em questão e não tanto sua quantidade.

() AmiSG.T

staestar

kalokacolocar

UMASING

brutabaita

ramediremédio

naPREP

buSG.POSS

firida!ferida.

Vou passar o melhor remédio sensacional, sem igual, na sua ferida!

Diante desses dados, somos levados a inferir que a singularização deuma pode ainda ser reforçada tanto através de um adjetivo que expressagrau (como bruta em ()), quanto pelo uso do sufixo aumentativo (–ónaadjungido ao nome que uma modifica).

A partir daí, realizamos novos testes para a verificação de aceitabilidadede uma com o sufixo –óna e com o adjetivo bruta. Apresentamos aos falantesalgumas opções para que se verificasse qual seria a maneira mais adequadapara expressar uma pedra extremamente grande. Em todos os questiona-mentos, pedimos aos informantes que oferecessem a forma correta casonenhuma das opções fosse a mais adequada. As opções apresentadas foramas seguintes:

a. pedron;

b. uma pédra;

c. uma pedróna.

A maioria dos informantes aceitou a opção “uma pedróna” como sendoa maior pedra de todas, o que poderia reforçar a hipótese de reforço dasingularização de uma por meio de outros elementos que expressam grau.

Nesse mesmo teste, procuramos igualmente verificar qual seria a op-ção mais adequada para o “maior sono”. As opções apresentadas são aselencadas a seguir. Salientamos que esse é o mesmo contexto da sentençaapresentada na subseção .. — da parte que trata dos adjetivos queexpressam grau, sentença () —, que fora retirada de Quint ().

a. bruta sónu;

b. uma bruta sónu;

c. uma sónu;

||

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. Uma como “singularizador”

A expressão uma sónu mostrou-se a preferida pelos informantes. Logo,o adjetivo bruta não serviu para reforçar a intensidade (do sono, no caso).

Novamente, verificamos qual forma seria a mais adequada para falardo maior bode que a pessoa já viu na vida. Foram apresentadas as opções:

a. bruta bódi;

b. uma bódi;

c. bodóna;

d. uma bodóna;

e. uma bruta bódi;

f. uma bodóna grándi.

A expressão uma bodóna grándi foi considerada agramatical pelos fa-lantes e a expressão mais adequada para indicar o “maior bode que eujá vi na vida” é uma bódi. Concluímos, diante desses resultados, que nãoé sempre que a singularização de uma pode ser reforçada com o auxíliode uma expressão de grau, seja através de um adjetivo ou de um sufixoaumentativo.

Os resultados desses primeiros testes, entretanto, trouxeram à baila oquestionamento de quais seriam os contextos que favorecem a interaçãode uma com elementos de grau, já que, em princípio, não seria possívelestabelecer uma relação. Se a interação com o sufixo –óna é válida parafalar de uma pedra extremamente grande, ou ainda de um tanque de milhoque nunca fica vazio, ela não é válida para falar do maior bode que já seviu.

Aplicamos novos testes para elucidar os questionamentos advindosdo teste anterior. Em princípio, consideramos ter o traço [+ / – animado]algum papel nessa interação.

A interação do aumentativo –óna com nomes [ – animado] foi aceitopelo informante, conforme (), mas a ocorrência com nomes abstratos foiconsiderada agramatical, conforme () e (), sendo preferível a utilizaçãode uma isoladamente, como em () e ().

() AmiSG.T

PFVpánhapegar

UMASING

batatónabatata.GRAU

onti!ontem

Peguei a maior batata ontem!

() *AmiSG.T

staestar

kuPREP

UMASING

saudadónasaudade.GRAU

diPREP

bu!SG.

||

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. Uma como “singularizador”

() *AmiSG.T

pegarpánhaPFV

UMApegar

febróna!SING febre.GRAU

() AmiSG.T

staestar

kuPREP

UMASING

saudádisaudade

diPREP

bu!SG

Estou morrendo de saudade de você!

() AmiSG.T

PFVpánhapegar

UMASING

febre!febre

Estava com uma febre enorme!

A interação com o adjetivo bruta também causou estranhamento ().

() #AmiSG.T

PFVpánhapegar

UMASING

brutabaita

febre!febre

# Eu estava com uma baita febre!

Embora () tenha sido aceito, o exemplo () foi considerado o mais ade-quado entre as opções apresentadas para expressar que alguém passa porum problema extremamente grande. A sentença () causou estranhamentoao informante, que a considerou uma expressão pouco utilizada.

() ElSG

staestar

kuPREP

UMASING

prublema!problema

Ele está com o maior problema!

() ElSG

staestar

kuPREP

unDET

prublemaproblema

grándi.grande

Ele está com um problema grande.

() #ElSG

staestar

kuPREP

unDET

problemóna.problema.GRAU

Ele está com um problemão.

Ao que parece, uma seria exclusivo para singularizar determinada caracte-rística. Em relação à interação com elementos que expressam grau, o traço[+ / – animado] parece realmente ter alguma relevância. Quando se tratade nomes com o traço [– animado], a coocorrência de uma com o sufixo–óna parece aceitável. Por outro lado, quando se trata de nomes abstratos

Ao que parece, esse adjetivo não seria tão utilizado na variedade de Santiago, comuma sendo escolhido como a melhor opção para singularizar determinada característica;isso poderia explicar a escolha de “uma sónu” para referir-se a um sono exageradamentegrande, em vez de “uma bruta sónu”. Acreditamos, porém, que a variação dialetal pode nãoser a explicação mais adequada para esse estranhamento e reconhecemos a necessidade demaior aprofundamento nessa questão.

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. Considerações do capítulo

ou com o traço [+ animado], essa coocorrência não seria permitida.Outro ponto relevante seria a impossibilidade de uma combinar-se com

mais de um elemento que expressa grau, o que pode ser observado pelaagramaticalidade atribuída pelos informantes à expressão “uma bodónagrándi”. Todos os outros exemplos foram considerados gramaticais, comuma ocorrendo ou somente com o adjetivo de grau ou com o sufixo aumen-tativo. Não seria possível, no entanto, a ocorrência de uma com o sufixoaumentativo somado ainda a um adjetivo de grau.

Ocorrência com eventos valorizados negativamente

Outra questão verificada nos testes foi a aparente exclusividade de uma emeventos valorizados positivamente. Contudo, a ocorrência de uma não érestrita a esses contextos, conforme ():

() AmiSG.T

staestar

UMASING

tristitriste

oji!hoje

Estou na maior tristeza hoje!

. Considerações do capítulo

Diante do exposto no presente capítulo, uma não poderia ser classificadocomo evidencial, tampouco como advérbio de grau ou ainda como artigoindefinido.

Aqui, propomos interpretar uma como singularizador, já que, pelo queapontamos até então, sua função é a de tornar singular determinada quali-dade, um objeto ou ainda determinado evento.

Essa característica seria particular a uma, já que parece não existir outroelemento em caboverdiano que tenha a função de singularizar determi-nado objeto, qualidade ou evento. Logo, uma não participa do paradigmados modificadores de grau, pois as expressões de grau não codificam amesma informação veiculada por ele, embora possam reforçá-la, sendouma exclusivo para tal função.

O papel do acento fonológico parece ser o de reforçar a singularização,pois sempre ocorre com tal acento e, conforme apontamos na seção ., nãoé reconhecido na língua sem ele.

De acordo com a hipótese levantada, a contribuição de uma seria princi-palmente pragmática, dado que não veicula toda a informação relevantesozinho, havendo necessidade de explicitação posterior. Ele destaca o nomeque modifica, mas o que torna singular o objeto deve ser explicitado paraque a informação seja completa. Ou seja, uma marcaria a estratégia do

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. Considerações do capítulo

falante dentro do contexto de interação de ressaltar o nome, engatilhandoa “necessidade” de completar a informação introduzida por ele.

Em síntese, uma pertence a uma classe distinta da classe dos artigosindefinidos e também dos modificadores de grau. Este fato também explicao porquê de o analisarmos em capítulo distinto daquele que trata dosdeterminantes e demonstrativos do caboverdiano.

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CAPÍTULO

Considerações Finais

Este trabalho analisou algumas características semânticas do sintagma no-minal do caboverdiano, explorando diferentes estratégias de interpretaçãodos nomes.

No capítulo , apresentamos diferentes perspectivas teóricas sobre aformação das línguas crioulas, realizando um panorama histórico sobreas diferentes abordagens. Salientamos, por fim, a visão adotada nestetrabalho que está em consonância com a dos autores Mufwene (),() e Chaudenson (), no sentido de que aquilo que torna possível aclassificação de uma língua como crioula são as condições sócio-históricasde seu surgimento e, ainda, que essas condições fazem parte de um processosociolinguístico peculiar ao desenvolvimento das sociedades que surgiramna colonização europeia do século XVI. Por isso, optamos por nos referir àlíngua como caboverdiano e não como crioulo de Cabo Verde.

No capítulo , apresentamos as características gerais do sintagma no-minal do caboverdiano. Observamos que nessa língua os nomes, em geral,não são acompanhados de determinantes e que a língua possui diferentesestratégias para a interpretação dos nomes enquanto definidos, indefinidosou genéricos. Essas estratégias podem ser sintáticas, semânticas ou prag-máticas. Defendemos ainda que as diferentes estratégias de interpretaçãodos nomes não estão necessariamente atreladas às diferentes leituras dassentenças e que esses são processos distintos.

Não obstante o fato, a língua possui um determinante indefinido. Suautilização, porém, não pode ser considerada frequente. A função de unna língua estaria associada à introdução de novos referentes, enquanto

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. Capítulo . Considerações Finais

a retomada seria realizada sem a presença de qualquer determinante ou,ainda, em casos esporádicos, através do demonstrativo kel.

No capítulo apresentamos que, assim como um conjunto de línguasque não possuem artigo definido, o caboverdiano utiliza-se do demonstra-tivo para veicular definitude. Esse uso, porém, não é considerado frequente.Através das análises, evidenciamos que kel comporta-se exclusivamentecomo um demonstrativo, mesmo em situações (por vezes advogadas poroutros autores) em que ele se comportaria como um determinante definido.

O capítulo foi dedicado à análise de uma. Verificamos que uma ocorrede modo frequente em caboverdiano e ainda, possui estratégias específicasde ocorrência. A função de uma seria a de salientar um objeto, qualidadeou evento, tornando-os como nenhum outro do mesmo tipo. Daí a propostade chamá-lo de singularizador, pois torna singular, no sentido de ser comonenhum outro, este objeto, qualidade ou evento.

Diante do que fora apresentado nesta dissertação, salientamos nova-mente a diferença entre o português e o caboverdiano. Um exemplo dissoé a contribuição ilocucionária de uma presente na sintaxe aberta do cabo-verdiano. Desta feita e conforme apontamos no capítulo , o caboverdianodeve ser estudado com base nos fatos da própria língua, evitando compa-rações diretas com o português europeu (ou com o português brasileiro),devido a uma alegada ancestralidade, ou ainda devido a uma “ruptura” emrelação ao português europeu.

Apontamos ainda que poderia ser relevante para o estudo do caboverdi-ano uma comparação com algumas línguas africanas (que possivelmenteparticiparam da formação da língua), no sentido de verificar, por exemplo,se há entre elas casos de marcação ilocucionária na sintaxe aberta, tal comoverificamos em caboverdiano. Esse fato poderia, também, ajudar a elucidaras línguas que tiveram participação na formação do caboverdiano.

Partindo da perspectiva teórica do contato de línguas em que diferenteslínguas contribuem com suas respectivas características ou traços para amudança, e que o novo código linguístico formado “escolhe” caracterís-ticas das diferentes línguas, ou ainda características convergentes dessaslínguas, esse poderia ser um aspecto interessante a se investigar nas línguasafricanas historicamente vinculadas à formação do caboverdiano.

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Referências Bibliográficas

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Roteiro Kel

Volto ao Brasil e quero contar da minha viagem a Cabo Verde, dos lugaresque conheci e, principalmente do que eu mais gostei.

() a. Kel kau foi ki N gosta más.b. N kré txeu odja kel otu bes.c. N atxa ki bo ta ba gosta txeu di kel kau.

Estou planejando minha próxima viagem e quero que meu marido meacompanhe:

() a. Nu bai ta fazi kel viáxi.b. Kel viáxi ta ba ser mutu bon.c. Bo kré ta bai na kel viáxi?

Se eu quero falar de uma pessoa, mas não sei quem é a pessoa. A únicainformação que tenho é que ela trabalha no mercado:

() Kel ki trabadja na merkadu.

Se eu quero falar de alguém que beijou Maria na festa, não sei quembeijou, mas sei que agarrou Maria, deu um beijo e saiu correndo:

() Kel ki beja Maria é dodu.

Em um contexto semelhante, mas agora sei que foi João quem beijou:

() a. Djon, kel ki beja Maria.b. Djon, kel li ki beja Maria.c. Djon, kel la ki beja Maria.

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Qual seria a diferença entre as três acima?Para falar de alguém que chegou na cidade. Ainda não sei quem é, mas

sei que chegou ontem:

() a. Kel ki txiga onti!b. Kal la ki txiga onti!c. Kal li ki txiga onti!

Em um contexto em que alguns meninos estão jogando bola e um deles ficabravo, pega a bola, sai correndo e vai embora:

() a. Mininu pega bola.b. Kel mininu pega bola.c. Kel mininu li pega bola.d. Kel mininu la pega bola.

Se quero pegar uma maçã que está numa cesta e eu peço para Maria, porexemplo, daí ela responde:

() a. Bu pega kel ki bu ta atxa más bunitu (sábi)b. Bu pega kel li ki bu ta atxa más bunitu (sábi)

Se eu vi um menino ontem, não sei o nome dele, tampouco a pessoa comquem falo:

() a. Kel mininu ki N odja ontib. Kel mininu la ki N odja onti

Se eu deixei alguma coisa em cima da mesa, mas ela não está mais lá e euestou procurando:

() a. Undi sta kel kusa ki staba riba mesa?b. Undi sta kel kusa li ki staba riba mesa?c. Undi sta kel kusa la ki staba riba mesa?

Sobre a aceitabilidade das sentenças abaixo:

() Kel ki ta krê tudu ka ta ten nada.

() Tudu kel ki ta trabadja ta meresi un bon dinheru.

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Roteiro Uma

João está jogando bola e machuca o joelho, mas não percebe que estásangrando. Você quer avisá-lo:

() a. Odja Djon, sata sai sangi di bu djuedju.b. Odja Djon, sata sai un sangi di bu djuedju.c. Odja Djon, sata sai dôs sangi di bu djuedju.d. Odja Djon, sata sai un bon bukadu sangi di bu djuedju.

O João entra e você vai passar um remédio em seu machucado:

() a. N sta kaloka ramedi na bu firida.b. N sta kaloka un ramedi na bu firida.c. N sta kaloka uma ramedi na bu firida.d. N sta kaloka uma bruta ramedi na bu firida.

João vai a uma festa e conhece uma garota. Ele a considera a garota maisbonita que já conheceu:

() a. N konxi uma minina na es fésta.b. Tinha uma minina na kel fésta.

Se eu, por exemplo, fui ao Sucupira e comprei muitos vestidos.

() N kónpra uma bistidu!

Caso eu encontre uma quantidade enorme de dinheiro:

() N kóntra uma dinheru!

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Caso alguém esteja passando por um problema muito grande, de difícilsolução:

() a. El ten uma prublema!b. El ten un prublema grándi!c. El ten un problemóna!

Caso alguém tenha o pé muito grande:

() E ten uma pé!

Quanto à distância:

() a. É uma lonji!b. É uma kaminhu!c. É uma pértu!

Se chove muito forte, mas dura apenas cinco minutos, ou seja, é umachuva rápida:

() Txobe uma txuba onti!