semântica gerativa

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UM CAPTULO DA HISTRIA DA LINGSTICA: A SEMNTICA GERATIVA1Jos Borges Neto UFPR/CNPq

Em um texto denominado As Convulses Metodolgicas da Lingstica Contempornea, publicado como introduo coleo Fundamentos Metodolgicos da Lingstica, Marcelo Dascal levantou uma srie de questes que ainda hoje esto por a, desafiando os lingistas e os filsofos da Lingstica2. O propsito do texto era, em parte, justificar a existncia de uma coleo de textos clssicos, que estavam sendo reunidos e apresentados em portugus pela primeira vez, e, em parte, fazer uma provocao aos lingistas, colocando em questo uma certa prtica do ensino de lingstica que ignorava e continua ignorando, uma vez que esta prtica amplamente utilizada ainda em nossos dias a pluralidade essencial de concepes e de tratamentos, em permanente competio, que constitui o panorama normal da imensa maioria das disciplinas cientficas. De certa forma, o que Dascal nos dizia que um bom ensino de cincia de qualquer cincia no pode ignorar que os avanos cientficos implicam sempre em rupturas mais ou menos pronunciadas com teorias e mtodos amplamente aceitos num determinando momento e que um ensino fechado (um ensino que no deixe margem para dvidas ou para contestaes) cria cientistas intolerantes e incapazes de acompanhar os movimentos prprios das teorias cientficas. A argumentao de Dascal segue risca o conselho que d aos professores de lingstica e, ao mesmo tempo em que usa a proposta de Thomas Kuhn apresentada em seu livro A Estrutura das Revolues Cientficas (Kuhn 1962) como modelo historiogrfico dessa cincia convulsionada, faz uma crtica severa da adequao das propostas kuhnianas aos fatos da histria da lingstica. O exemplo de conflito entre teorias lingsticas que Dascal usa para justificar a necessidade de abandono da proposta de Kuhn o conflito que se deu, nos anos 1960 e 1970, entre a Gramtica Gerativa chomskiana (GG) e a chamada Semntica Gerativa (SG). Segundo Dascal opinio com a qual concordo inteiramente a histria desse conflito no descrita adequadamente pela historiografia kuhniana (por deficincias do prprio modelo de Kuhn). Dascal no apresenta, no entanto, nenhuma soluo para isso, ou seja, nenhuma histria alternativa do conflito GG versus SG. Meu objetivo, neste texto3, retomar o perodo e, com o auxlio de outra metodologia historiogrfica, descrever e explicar o perodo de conflito entre GG e SG perodo que1

Texto publicado em Negri, Foltran e Oliveira (org) Sentido e Significao em torno da obra de Rodolfo Ilari. So Paulo: Contexto, 2004, p. 181-216. 2 Ver Dascal 1978. 3 A maior parte do material contido neste texto est em minha tese de doutorado, intitulada A Gramtica Gerativa Transformacional: um ensaio de Filosofia da Lingstica, defendida no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp em 1991 e orientada por Rodolfo Ilari.

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ficou conhecido, a partir do ttulo do livro de Harris (1993), como perodo das Guerras Lingsticas. A metodologia historiogrfica que vou utilizar a Metodologia dos Programas de Investigao Cientfica de Imre Lakatos4.

1. Antecedentes. Em 1965, Chomsky publica uma de suas obras mais importantes Aspects of the Theory of Syntax livro que inaugura um modelo de anlise lingstica extremamente influente, conhecido como teoria-padro. A teoria-padro pode ser entendida como o fim de uma etapa na construo do programa da Gramtica Gerativa (GG). Depois de cerca de dez anos de construo do modelo terico dez anos em que o Programa da GG procurou afastar-se o mais possvel das postulaes do Estruturalismo Americano (EA) e buscou adquirir, efetivamente, uma identidade prpria aparentemente h um bom modelo de anlise lingstica para dar sustentao s exigncias do Programa. Os mecanismos sintticos parecem ser suficientemente poderosos para permitir a descrio adequada das estruturas lingsticas; os componentes interpretativos semntica e fonologia parecem adequados para que se d conta da maior parte dos fatos lingsticos (ao menos dos fatos considerados pertinentes desde o ponto de vista com origens no EA); e as teorias auxiliares, como a teoria inatista da aquisio da linguagem, a psicolingstica e uma teoria geral dos mecanismos gerativos (Teoria Formal da Gramtica) parecem dar suficiente sustentao s descries e explicaes obtidas pela GG. At por volta de 1965, os tericos do gerativismo eram unnimes com relao a praticamente todos os pontos importantes. Num certo sentido isso pouco surpreendente Aspects foi escrito por Chomsky com o feedback constante dos colegas e dos estudantes do MIT, que constituam cerca de 90% dos transformacionalistas do mundo na poca. Mas havia mais do que isso. Por volta de 1965 apareceram inmeros estudos que demonstraram conclusivamente que a teoria podia ser aplicada com sucesso anlise dos fenmenos lingsticos mais complexos. O mais digno de nota a dissertao de Peter Rosenbaum, defendida no MIT em 1965, The Grammar of English Predicate Complement Constructions (Rosenbaum 1967). Rosenbaum fez por Aspects o que Lees havia feito por Syntactic Structures, mostrando que a recursividade da base e o princpio da aplicao cclica forneciam um quadro satisfatrio para a anlise dos processos sintticos fundamentais no ingls. (Newmeyer 1980, p. 93)

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Ver Lakatos 1978.

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Multiplicam-se anlises de novos fatos da lngua inglesa e multiplicam-se as anlises de fatos de outras lnguas. O sucesso dessas anlises refora a sensao de que se conseguiu chegar a uma teoria adequada do conhecimento lingstico dos falantes. O objetivo maior do Programa, ento, que era a construo de sistemas computacionais capazes de descrever a competncia lingstica dos falantes, se ainda no fora atingido, parecia bem prximo de s-lo. No final de 1965, no entanto, comearam a aparecer, no interior mesmo do gerativismo, as primeiras crticas s propostas de Chomsky. Particularmente, James McCawley, Paul Postal, John Robert Ross e George Lakoff entre outros ex-alunos e colaboradores de Chomsky comearam a contestar as anlises produzidas no quadro da teoria-padro. A principal rea de conflito, na poca, era o grau de abstrao das estruturas lingsticas subjacentes. O ponto em disputa era a distncia entre as estruturas profundas (EP) e as estruturas superficiais (ES) ou, em outras palavras, o grau de aproximao entre as EP e as representaes semnticas. Enquanto a teoria-padro procurava manter a EP e a ES bastante prximas, os dissidentes propunham que se distanciasse mais a EP da ES e que se aproximasse a EP das representaes semnticas. A afirmao de Chomsky de que A componente sintctica especifica um conjunto infinito de objectos formais abstractos, cada um dos quais incorpora toda a informao relevante para uma interpretao nica duma frase particular. (Chomsky 1965, p. 97) induziu os gerativistas a procurarem solues sintticas para os problemas semnticos e a buscarem estruturas profundas que representassem todos os aspectos do significado das sentenas sob anlise. Esse procedimento certamente levou postulao de estruturas profundas cada vez mais abstratas e mais prximas das representaes semnticas. O compromisso com a hiptese de que a interpretao semntica se d ao nvel da EP leva muitos lingistas a conclurem que no basta toda a informao necessria para a interpretao semntica da sentena estar na EP, preciso que tudo o que se considerar parte do significado da sentena esteja na EP. Assim, por exemplo, todas as ambigidades percebidas nas sentenas deviam ser resolvidas por meio da postulao de diferentes estruturas profundas. Note-se o raciocnio exposto por Newmeyer para o sentido de atividade percebido no verbo begin do ingls:

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(4.8) tem implcito um sentido verbal (escrevendo, lendo, etc.). Isto deve ser representado na estrutura profunda. (4.9) uma candidata plausvel: (4.8) John began the book. (4.9) S NP N it NP John 1.2 VS

VP V begin VP NP The book

[+activity] (Newmeyer 1980, p. 98)5

Uma srie de anlises e uma srie de argumentos empricos e tericos foram levantadas pelos abstracionistas, tudo levando a uma mesma concluso: necessrio postular estruturas profundas mais abstratas, que consigam representar mais diretamente as relaes semnticas presentes nas sentenas. importante destacar que os abstracionistas mantinham-se rigorosamente no interior da teoria-padro, o que pode explicar a aceitao quase geral de suas anlises pela comunidade gerativista. Com a expanso da postura abstracionista, chega-se a uma descaracterizao completa da noo de estrutura profunda, tal como imaginada por Chomsky quando de sua postulao. Como aponta Newmeyer: Pelo fim da dcada [de 1960], os sintaticistas abstracionistas tinham simplesmente abandonado a noo de estrutura profunda esse nvel tinha sido to alterado que no fazia nenhum sentido terico distingui-lo das representaes semnticas. (Newmeyer 1980, p. 96) Os abstracionistas tentam de forma desordenada reunir suas idias no que se chegou a considerar na poca um novo paradigma. Esse novo paradigma chamou-se Semntica Gerativa e pretendeu substituir o programa chomskiano6.5

O exemplo retirado por Newmeyer de um trabalho seu escrito no quadro terico da Semntica Gerativa (Newmeyer 1975). 6 O termo Generative Semantics apareceu pela primeira vez em Lakoff (1963).

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2. A Semntica Gerativa (SG). No incio, o que reunia os abstracionistas era a postulao de estruturas profundas mais abstratas e mais prximas das representaes semnticas do que as EP chomskianas. Logo se vai perceber que a abstrao das EP determina uma srie de alteraes em vrios pontos da gramtica da teoria-padro. O principal ponto alterado vem com o completo abandono da noo de EP e sua substituio por estruturas semnticas representadas na linguagem do clculo de predicados. O que se iniciou como uma disputa sobre o grau de abstrao das estruturas subjacentes acaba como uma disputa sobre a natureza e o lugar das representaes semnticas no interior da gramtica. O abandono da noo de EP torna inadequada a forma proposta por Chomsky para o componente de BASE da gramtica. A BASE era constituda, na teoria-padro, por um componente categorial, que consistia num conjunto de regras de reescritura operando sobre um conjunto de smbolos de categorias, e por um lxico; junto com o componente transformacional, a BASE constitua a sintaxe da gramtica. Sua importncia residia no fato de que seu output eram as estruturas profundas, com seu duplo papel: (i) ponto de partida para a aplicao das regras transformacionais e (ii) repositrio das informaes pertinentes para a interpretao semntica. James McCawley, por exemplo, critica essa proposta de BASE mostrando que (i) as regras de reescritura no permitem a construo de rvores sintagmticas livres de ambigidades, a menos que se lhes imponha, arbitrariamente, uma ordenao7; e (ii) as regras de subcategorizao estrita e as restries de seleo, presentes nas entradas lexicais, so redundantes uma vez que se limitam a copiar informaes j dadas pela estrutura arborescente. Como forma de superar as inadequaes que v na teoria-padro, McCawley (1968a) prope substituir as regras de derivao das estruturas em rvore por condies de admissibilidade de ns que se aplicam a rvores propostas diretamente, sem o auxlio de regras de reescritura. Essas condies de admissibilidade eliminariam as rvores mal formadas. O mesmo tipo de mecanismo poderia ser aplicado s entradas lexicais, eliminando-se a necessidade de regras de subcategorizao. O recurso s condies de admissibilidade torna desnecessrias as regras de reescritura. Problemas relacionados s restries de seleo levam McCawley a alterar a forma das entradas lexicais e as regras de insero lexical. A funo dessas restries no modelo da teoria-padro era permitir o tratamento de casos de agramaticalidade devido a restries contextuais na insero de determinados itens lexicais. Por exemplo, o verbo pensar s poderia ser inserido numa rvore cujo sujeito apresentasse o trao [+ humano] e, em conseqncia, deveria existir, em sua descrio, uma restrio selecional indicando essa exigncia contextual. As restries de seleo podiam, tambm, levar em considerao na insero lexical traos sintticos, como [+plural] ou [+comum], e justamente essa possibilidade que McCawley contesta. Para McCawley, exemplos como os de (1) mostram que todos os traos de seleo so semnticos.7

Esta questo o equivalente sinttico da questo da ordenao extrnseca das regras fonolgicas, que gerou imensa polmica na Fonologia Gerativa. Ver, por exemplo, Koutsoudas, Sanders & Noll 1971.

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(1) a. Contei os meninos. b. Contei a multido. c. * Contei o menino8. Segundo McCawley, o verbo contar no pode ser dito um verbo que seleciona exclusivamente um objeto plural, dada a existncia de (1b), mas tambm no pode ser deixado sem qualquer seleo, uma vez que no poderamos explicar a agramaticalidade de (1c). O que precisamos de um trao semntico que indique que o objeto de contar deve ser um conjunto. McCawley reduz todos os traos sintticos a traos semnticos e supe poder concluir da que a representao semntica de uma frase idntica sua estrutura profunda, podendo, portanto, confundir-se com ela. (Nique 1974, p. 177) Ao lado da reformulao na forma do componente categorial e do lxico, a questo do lugar onde se do as inseres lexicais tambm colocada em discusso pelos abstracionistas. McCawley (1968b) e Postal (1970) demonstram que a EP no o nvel onde isso se d (ao menos, onde isso se d exclusivamente) porque vrios itens lexicais comportam-se, nas estruturas superficiais, como se fossem itens complexos tanto de um ponto de vista semntico (ambigidades), quanto de um ponto de vista sinttico (possibilidades transformacionais). Dada a hiptese, assumida sem maiores questionamentos, de que o significado est contido na EP, a natureza complexa dos itens em questo deve ser estabelecida neste nvel. Ora, para obter essas estruturas complexas profundas necessrio postular transformaes pr-lexicais, ou seja, transformaes que se aplicam s rvores antes que a insero lexical esteja terminada. A existncia de transformaes pr-lexicais destri a idia de uma estrutura profunda tal como postulada na teoria-padro. Na viso dos semanticistas gerativos, os itens lexicais podem ser considerados simplesmente como unidades de superfcie na medida em que se postulam primitivos semnticos (predicados e ndices referenciais) na estrutura subjacente (estrutura profunda ou representao semntica). As transformaes pr-lexicais aplicam-se a estruturas contendo esses primitivos semnticos e, no processo derivacional, agrupam-nos, formando itens lexicais superficiais. Assim, por exemplo, ao item lexical matar vai corresponder, no nvel subjacente, o complexo semntico causar morrer e ao item lexical morrer vai corresponder o complexo semntico tornar-se no vivo. A sentena superficial Joo matou Pedro teria, aproximadamente, no nvel subjacente, a forma seguinte: [CAUSAR joo [TORNAR-SE NO-VIVO pedro]]. Na forma de uma estrutura em rvore:

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O verbo contar deve ser entendido sempre no sentido de enumerar e no no sentido de incluir numa enumerao. Empresto os exemplos de Galmiche (1975, p. 53).

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P1 CAUSAR joo P2 TORNAR-SE NO-VIVO pedro

As transformaes pr-lexicais teriam a tarefa de reordenar os predicados da estrutura acima de modo que pudssemos obter as contrapartes semnticas dos itens lexicais. A transformao de ascenso do predicado, por exemplo, associaria um predicado ao predicado imediatamente superior (P2 a P1) na rvore dando-nos, no caso, o predicado complexo CAUSAR TORNAR-SE NO VIVO, que seria posteriormente substitudo pelo item lexical matar9. A hiptese fundamental sobre que assenta este tipo de mtodo consiste, segundo Postal, em considerar que a estrutura semntica interna dos itens lexicais a estrutura sinttica, isto , que as relaes que podem existir entre as componentes de uma frase surgem igualmente entre as componentes do sentido de uma entrada de dicionrio. Por outras palavras, nada se ope, nesta perspectiva, a que o princpio gerativo surja como nico, contnuo e homogneo. (Galmiche 1975, p. 105-106) A forma da gramtica na teoria de SG a seguinte: BASE Representaes semnticas Regras Transformacionais Estruturas Superficiais Fonologia Representaes Fonticas

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Ficaram famosas as propostas de tratamento do verbo superficial recordar (Remind) em Postal (1970) e do verbo superficial matar (McCawley 1968b). Contra essa forma de tratamento, ver Fodor 1970.

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A BASE da gramtica gera Representaes Semnticas, que so estruturas simultaneamente sintticas e semnticas. Estas estruturas sofrem a ao das Regras Transformacionais que, recombinando os primitivos semnticos, nos permitem obter os itens lexicais e, recombinando os elementos frasais, nos permitem obter as Estruturas Superficiais da lngua. Finalmente, a Fonologia vai interpretar as estruturas superficiais, dando-nos, na sada, um conjunto de Representaes Fonticas.

3. A reao de Chomsky: a teoria-padro estendida. A reao de Chomsky no se fez esperar e, em 1967, ele prope alteraes na teoriapadro que impedem a abstrao10. A reao chomskiana tem duas conseqncias: (1) um novo modelo de anlise lingstica estabelecido e (2) o rompimento com os abstracionistas torna-se inevitvel. O novo modelo de anlise ficou conhecido como Teoria-Padro Estendida (TPE). A TPE proposta inicialmente em Remarks on Nominalizations (Chomsky 1967b) e desenvolvida em Deep structure, surface structure and semantic interpretation (Chomsky 1968) e Some empirical issues in the theory of transformational grammars (Chomsky 1970)11. Como o prprio nome indica, TPE no vai ser entendida como uma nova teoria, mas apenas como uma reforma da teoria de 1965. TPE procura manter, o mais possvel, o esquema geral da teoria-padro. Em TPE a gramtica de uma lngua permanece um conjunto de regras que faz a correspondncia entre a forma fontica e o significado das sentenas dessa lngua. O componente sinttico continua sendo o nico componente gerativo e os componentes fonolgico e semntico continuam meramente interpretativos. No que diz respeito ao componente semntico, a principal inovao consiste no abandono da hiptese de Katz & Postal de que a interpretao semntica era determinada exclusivamente pela estrutura profunda. Para evitar os problemas gerados pelas anlises abstracionistas, Chomsky vai preferir dizer que o significado de uma sentena , ao menos em parte, determinado pela estrutura superficial12. Jackendoff (1972) quem vai propor uma semntica consistente com as novas postulaes de TPE13. As principais inovaes, no entanto, ficam por conta do componente sinttico:

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Obviamente, Chomsky no , em princpio, contra a abstrao. Sua reao se d contra a aproximao das EP com as representaes semnticas, proposta pelo grupo de lingistas que estamos chamando de abstracionistas. As alteraes promovidas por Chomsky na teoria-padro impedem, ento, o tipo de abstrao proposto por este grupo. Mais frente voltaremos a discutir o confronto entre Chomsky e os abstracionistas. 11 Estes trs textos esto reunidos em Chomsky 1972. 12 Ver, principalmente, Chomsky 1968. Neste texto, Chomsky argumenta que para dar conta dos fenmenos relacionados com foco e pressuposio necessrio que a interpretao semntica das sentenas leve em considerao, alm das EP, as ES. 13 curioso observar que o postulado transformaes no alteram o significado, que foi usado para eliminar da teoria as transformaes interrogativa, negativa, etc., tambm vai ter que ser abandonado neste momento.

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deixa-se de fazer a distino entre categorias lexicais e traos categoriais todos os smbolos de categorias lexicais da gramtica (N, V, Det, etc.) deixam de ser primitivos e passam a ser entendidos como nomes de conjuntos de traos (formas abreviadas de matrizes de traos); b) prope-se uma nova teoria obedecendo a conveno X' (xis-barra) para o estabelecimento das relaes entre as matrizes de traos de modo a recuperar, por definio, as categorias sintticas14; c) prope-se que nem todas as relaes entre expresses devem ser tratadas transformacionalmente algumas relaes de derivao morfolgica, ao menos, no devem ser tratadas por meio de transformaes15.a)

No vou me alongar sobre as caractersticas de TPE, uma vez que este no o assunto principal deste texto. preciso estacar, no entanto, que TPE (e a hiptese lexicalista) importante porque abre a perspectiva de se poder tratar relaes entre expresses por meio de outros mecanismos formais que no as transformaes. Pode-se dizer que desde Syntactic Structures (Chomsky 1957) as transformaes possuam um certo monoplio do tratamento dessas relaes entre expresses. Identificada alguma relao sinttica ou semntica entre expresses, o procedimento padro era a postulao de alguma transformao que relacionasse as expresses, ou derivando uma da outra ou derivando ambas de uma mesma estrutura subjacente. Com TPE (e a hiptese lexicalista), altera-se este quadro: as transformaes deixam de ser o nico mecanismo disponvel e o lxico assume um lugar muito mais importante no interior da teoria.

4. As Guerras Lingsticas na tica da metodologia de Kuhn (1962). O desenvolvimento das propostas da SG, no final dos anos 1960, gerou um clima de guerra no seio da comunidade lingstica norte-americana. Por parte dos adeptos da SG havia uma euforia diante da morte da GG chomskiana e diante do surgimento de um novo paradigma (no sentido que Kuhn empresta ao termo) na lingstica. Por parte de Chomsky, e dos chomskianos, havia todo um esforo destinado a desqualificar as propostas da SG e a manter as posturas bsicas da teoria-padro. Podem-se encontrar, na literatura lingstica, vrias interpretaes desse conflito, o que torna especialmente interessante esse perodo da histria da GG. Dascal (1978) nos fala de trs interpretaes possveis. Em suas palavras: 1) A primeira a que se manifesta nas declaraes de alguns semnticos gerativos...: o conflito estritamente intraparadigmtico; SG [Semntica Gerativa] no uma nova revoluo em lingstica, mas apenas um desenvolvimento perfeitamente natural dentro do perodo de cincia normal institudo pelo novo paradigma chomskiano. As teses da SG surgem, principalmente, da tentativa de se aplicar o novo paradigma a um conjunto de fatos os fatos semnticos que a14 15

Esta teoria ficou conhecida pelo nome de Teoria X-Barra. Este novo enfoque recebeu o nome de Hiptese Lexicalista.

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primeira teoria de Chomsky no abordou de forma satisfatria. Em termos kuhnianos, tratar-se-ia de um caso de articulao do paradigma atravs de sua extenso terica e observacional. Segundo esta interpretao os semnticos gerativos estariam apenas tratando de resolver quebra-cabeas, delineados dentro do paradigma CH [chomskiano]. 2) Uma outra interpretao, sugerida por exemplo por Searle a que v no desenvolvimento acima pelo menos o comeo de uma nova revoluo na lingstica, comparvel revoluo STR [estruturalismo]. Segundo esta interpretao, os primeiros problemas levantados pela SG levaram a uma crise do paradigma chomskiano, que por sua vez gerou um perodo de cincia extraordinria, no qual j se detetam sinais de emergncia de um novo paradigma triunfante. As duas interpretaes acima tm em comum uma atitude essencialmente positiva em relao SG. Para ambas, a SG representa um progresso, quer seja ele revolucionrio, quer apenas intra-paradigmtico, sobre a teoria-standard. Ambas compartilham tambm a tese de que a batalha CH/STR j se completou, j coisa do passado, e que o paradigma CH, nela vitorioso, j se tornou do domnio comum entre os praticantes da lingstica. 3) A terceira interpretao no aceita nem a apreciao positiva da SG nem a tese de que STR/CH irrelevante por ser coisa do passado para uma discusso de CH/SG. Muito pelo contrrio, ela considera essencialmente a SG como um retrocesso e no como um progresso em relao revoluo chomskiana. E um retrocesso que significa essencialmente uma volta ao paradigma taxonmico. Segundo esta interpretao, defendida por partidrios de um chomskismo estrito, SG no nem um desenvolvimento natural, normal e sadio do paradigma chomskiano, nem o comeo de uma nova revoluo em lingstica, mas sim uma tentativa de contrarevoluo. Trata-se de uma tentativa extremamente perigosa porque muito sutil de re-introduzir os velhos mtodos e objetivos da lingstica taxonmica, por trs de uma terminologia chomskiana e de declaraes de fidelidade ao paradigma chomskiano. Segundo esta concepo, a batalha STR/CH est longe de ser coisa do passado, episdio completa e definitivamente ganho para a causa revolucionria. A fase atual, deste ponto de vista, no portanto ps-revolucionria, mas sim uma fase crtica da prpria revoluo, em que a batalha dos paradigmas, na terminologia de Kuhn, est em seu auge. (Dascal 1978, p. 30-32)

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Segundo Dascal, no possvel encontrar meios de se decidir entre as trs interpretaes, considerando-se, principalmente, a natureza vaga dos conceitos kuhnianos. Para sabermos se houve ou no uma revoluo cientfica num determinado perodo, para sabermos com segurana em que momento uma disciplina passou da fase prparadigmtica para a fase de cincia adulta, preciso que possamos identificar com segurana os paradigmas. Ora, a noo de paradigma , no trabalho de Kuhn, essencialmente vaga16 e, acima de tudo, uma noo que no pode ser explicitada, dada a sua natureza essencialmente implcita. O prprio Kuhn reconhece esse problema quando afirma: Cientistas podem concordar que um Newton, um Lavoisier, um Maxwell ou um Einstein produziram uma soluo aparentemente duradoura para um grupo de problemas especialmente importantes e mesmo assim discordar, algumas vezes sem estarem conscientes disso, a respeito das caractersticas abstratas que tornam essas solues permanentes. Isto , podem concordar na identificao de um paradigma, sem entretanto entrar num acordo (ou mesmo tentar obt-lo) quanto a uma interpretao ou racionalizao completa a respeito daquele. A falta de uma interpretao padronizada ou de uma reduo a regras que goze de unanimidade no impede que um paradigma oriente a pesquisa. (Kuhn 1962, p. 68-69) Embora a falta de uma interpretao padronizada no impea um paradigma de dirigir a pesquisa cientfica, dificulta muito sua utilizao na pesquisa meta-cientfica. Como afirma Dascal: Sendo... essencialmente implcito, um paradigma um verdadeiro camaleo. No h meio de capt-lo e defini-lo plenamente, e portanto, no h meio de refut-lo, no sentido popperiano. No h tambm meio de identificar numericamente paradigmas. (Dascal 1978, p. 39) Dado que o conceito de paradigma ocupa um lugar central no modelo de Kuhn, todos os outros conceitos dependentes dele so contaminados por essa vagueza. A conseqncia direta de tal estado de coisas a possibilidade de uso ideolgico dessas noes, para legitimar posies (dando-as como revolucionrias), para atacar posies (dando-as como contra-revolucionrias), para justificar certos modos de fazer cincia (mostrando-os como progressos em relao aos primeiros paradigmas), etc. O problema central com a metodologia de Kuhn parece ser a dependncia estrita do conceito de paradigma do conceito de comunidade cientfica. Em Kuhn (1962), a relao entre estes dois conceitos era claramente circular, como o prprio Kuhn reconhece: Um paradigma o que os membros de uma comunidade cientfica, e s eles, partilham. Reciprocamente, a respectiva possesso de16

Masterman (1970) identificou mais de vinte e dois sentidos diferentes para o termo paradigma em Kuhn (1962).

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um paradigma comum que constitui uma comunidade cientfica, formada, por sua vez, por um grupo de homens diferentes noutros aspectos. Como generalizaes empricas, estes dois enunciados podem ser defendidos. Mas, no livro [Kuhn 1962], funcionam, pelo menos em parte, como definies, e o resultado uma circularidade com algumas conseqncias viciosas. (Kuhn 1974, p. 355) Para que a noo de paradigma tenha alguma utilidade meta-cientfica, Kuhn precisa definir independentemente comunidade cientfica: a tarefa espinhosa e Kuhn s consegue nos dar uma conceituao fluida e camalenica de comunidade, o que, certamente, no o bastante. Uma comunidade cientfica consiste dos praticantes de uma especialidade cientfica. (...) Tais comunidades so caracterizadas pela relativa abundncia de comunicao no interior do grupo e pela relativa unanimidade do juzo grupal em matrias profissionais. (...) Sem dvida, existem, neste sentido, comunidades em numerosos nveis. Talvez todos os cientistas naturais formem uma comunidade. (...) S a um nvel ligeiramente mais baixo que os principais grupos profissionais cientficos fornecem exemplos de comunidades: fsicos, qumicos, astrnomos, zologos, etc. Para estas comunidades principais, fcil estabelecer a qualidade de membro do grupo, exceto nas fronteiras. Em relao ao mais alto grau, a participao em sociedades profissionais e as revistas lidas so em geral mais do que suficientes. Tcnicas semelhantes tambm isolaro os subgrupos principais: entre eles, os qumicos orgnicos e talvez os qumicos de protenas, fsicos do estado slido e das altas energias, radioastrnomos, e assim por diante. S no nvel seguinte aparecem dificuldades empricas. Como que, antes do reconhecimento pblico, podem-se isolar grupos menores? Para isso, deve-se recorrer s presenas em institutos de vero e conferncias especiais, a lista de distribuio de preprints e, sobretudo, as redes de comunicao formais e informais, incluindo as ligaes entre citaes. Creio que o trabalho possvel e ser feito, revelando tipicamente comunidades de talvez cem membros, algumas vezes significativamente menos. Os cientistas individuais, particularmente os mais capazes, pertencero a vrios grupos, tanto simultaneamente como sucessivamente. (Kuhn 1974, p. 356-357) Kuhn cr que o trabalho possvel, mas eu no creio. Pensemos na lingstica. Se usarmos o raciocnio de Kuhn, todos os lingistas constituiriam uma comunidade (de nvel relativamente alto). J aqui os problemas comeam a aparecer: ao olharmos para cima, para o nvel mais alto, a comunidade dos lingistas participaria da comunidade dos cientistas naturais (como Chomsky gostaria de acreditar) ou da comunidade dos cientistas

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humanos e sociais? Partindo para os nveis mais baixos, poderamos nos perguntar se os sintaticistas, os fonlogos e os analistas do discurso seriam subgrupos principais da comunidade dos lingistas e se os sintaticistas funcionalistas e os formalistas seriam subgrupos do subgrupo dos sintaticistas. As respostas no so nem bvias, nem unnimes, creio. Se voltarmos questo, proposta por Dascal, de decidir qual a melhor interpretao para o conflito STR/CH/SG, vemos que nada muda. Os semanticistas gerativos constituem um subgrupo do grupo dos gerativistas ou um subgrupo do grupo dos estruturalistas? Ou constituem um grupo de mesmo nvel dos gerativistas? Todas as dvidas que podamos ter para a classificao dos participantes do debate a partir da noo de paradigma permanecem se tentarmos olhar o perodo nesta perspectiva mais sociolgica e tentarmos dividir as comunidades. A noo de comunidade cientfica to, ou mais, vaga que a noo de paradigma. Como bonecas russas, as comunidades mantm relaes de incluso que as encaixam umas nas outras e sempre possvel recortar a comunidade que nos interessa por critrios tipicamente ideolgicos. Em outras palavras, Kuhn no consegue nem dar consistncia noo de comunidade, nem dar suporte ao conceito de paradigma. O outro caminho que Kuhn poderia ter seguido mas no o fez seria o de justificar independentemente o conceito de paradigma e, a partir dele, definir o conceito de comunidade cientfica. Este caminho teria a grande vantagem a meu ver de retirar da sociologia da cincia a responsabilidade pela identificao dos grupos e de recoloc-la como uma questo eminentemente epistemolgica. Na medida em que se constata a dificuldade de se trabalhar com a metodologia kuhniana e na medida em que os conflitos que identificamos na lingstica no recebem uma interpretao adequada17, s nos resta buscar algum outro modelo historiogrfico que nos permita a descrio da histria da GG nestes ltimos 50 anos.

5. A metodologia de Lakatos (1978). A viso de cincia que deve substituir a de Kuhn a sntese das duas descobertas seguintes. Primeiro, contm a descoberta de Popper de que a cincia progride pela discusso crtica de vises alternativas. Segundo, contm a descoberta de Kuhn da funo da tenacidade que ele expressou, erroneamente, a meu ver, mediante o postulado da existncia de perodos de tenacidade. A sntese consiste na afirmao de Lakatos (desenvolvida em seus prprios comentrios sobre Kuhn) de que a proliferao e a tenacidade no pertencem a perodos sucessivos da histria da cincia, mas esto sempre co-presentes. (Feyerabend 1970, p. 261) Comecemos com as duas descobertas de que nos fala Feyerabend: a proliferao de vises alternativas e a tenacidade.17

A inadequao do modelo kuhniano no se restringe apenas lingstica. Embora o modelo tenha sido projetado com vistas s cincias naturais, tambm nelas as inadequaes so muitas (ver os textos reunidos em Lakatos & Musgrave (eds.) 1970).

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Proliferao, em Lakatos, significa que desejvel que haja teorias em competio e, segundo ele, assim mesmo que as coisas se passam na histria da cincia. A histria da cincia no a histria de teorias sucessivas, como quer Kuhn, mas de teorias concorrentes. Para Lakatos, o paradigma kuhniano um programa de investigao que conseguiu um certo monoplio e, para que o progresso seja possvel, tal situao deve ser fortemente combatida. A histria das cincias tem sido, e deve ser, uma histria de programas de investigao competitivos (ou, se quiserem, de paradigmas), mas no tem sido, nem deve vir a ser, uma sucesso de perodos de cincia normal: quanto antes se iniciar a competio, tanto melhor para o progresso. (Lakatos 1970, p. 69) Tenacidade, para Lakatos, significa que o cientista no abandona uma teoria porque ela foi falseada, como quer Popper. O cientista, ao contrrio, faz o possvel para mant-la, desconhecendo os contra-exemplos ou reanalisando-os de modo a transform-los em evidncias corroboradoras de sua teoria. A natureza pode gritar no, mas o engenho humano contrariamente ao que sustentam Weyl e Popper sempre capaz de gritar mais alto. Com suficiente habilidade e com alguma sorte, qualquer teoria pode defender-se progressivamente durante longo tempo, inclusive se falsa. (Lakatos 1971a, p. 111) Segundo Lakatos, A melhor maneira de comear [o jogo da cincia] no com uma hiptese falsevel (e, portanto, consistente), mas com um programa de investigao. (Lakatos 1971a, p. 111 o grifo acrescentado) Um Programa de Investigao Cientfica (PIC) consiste basicamente em um ncleo e uma heurstica. O ncleo um conjunto de proposies metafsicas, i.e., proposies que por deciso metodolgica so dadas como no testveis. A heurstica um conjunto de regras metodolgicas e pode ser vista como a conjuno de uma heurstica negativa, que consiste em regras que nos dizem que direes de pesquisa devem ser evitadas, e uma heurstica positiva, que so regras que indicam as direes a serem seguidas. A heurstica negativa tem dupla funo: protege as proposies do ncleo das refutaes (induz o cientista a fazer modificaes nas hipteses auxiliares, e no no ncleo, quando diante de refutaes) e impede tentativas de explicao de tipos radicalmente diferentes das explicaes aconselhadas pela heurstica positiva (por exemplo, o uso de explicaes mentalistas no PIC do behaviorismo clssico). A idia de heurstica negativa de um programa de investigao cientfica racionaliza de forma considervel o convencionalismo

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clssico. Podemos decidir racionalmente no permitir que refutaes transmitam falsidade ao ncleo enquanto aumenta o contedo emprico corroborado do cinturo protetor de hipteses auxiliares. (Lakatos 1970, p. 49)18 A heurstica positiva de um PIC uma poltica de desenvolvimento do programa, isto , uma seleo e ordenao de problemas, um plano que conduz sofisticao progressiva dos modelos explicativos. Segundo Lakatos, enquanto se ocupa dessa tarefa de construo de modelos, o cientista ignora os contra-exemplos reais, os dados disponveis (1970, p. 50). O cientista Afunda-se na sua cadeira, fecha os olhos e esquece os dados. (...) Ocasionalmente, claro, ele faz Natureza uma pergunta manhosa: ele ser encorajado pelos SIM da Natureza, mas no ser desencorajado pelos NO. (Lakatos 1970, p. 50, nota 1) Lakatos nos oferece como exemplo da ao dessa heurstica positiva o processo de desenvolvimento do programa newtoniano. Newton elaborou inicialmente um modelo para um sistema planetrio que tivesse um nico planeta gravitando o sol e, tanto o sol quanto o planeta, tratados como pontos. Nesse modelo conseguiu obter a lei do inverso do quadrado para a elipse de Kepler. A terceira lei da dinmica, no entanto, proibia esse modelo extremamente simples (heurstica negativa em ao) e Newton o substituiu por outro modelo em que tanto o sol quanto o planeta giravam em torno do centro de gravidade do sistema formado por ambos. Em seguida, Newton adaptou o modelo para permitir mais planetas, admitindo no entanto apenas foras heliocntricas e no foras interplanetrias. Trabalhou depois no caso de serem, o sol e os planetas, esferas e no pontos. Esse momento do desenvolvimento do programa exigiu a superao de imensas dificuldades matemticas. Resolvidos os problemas, Newton comeou a trabalhar com esferas rotativas e suas oscilaes. Admitiu as foras interplanetrias e comeou a trabalhar com as perturbaes. Mais tarde trabalhou com planetas irregulares, ao invs de planetas esfricos, aproximando-se cada vez mais dos sistemas planetrios reais19. importante destacar que a grande maioria das modificaes introduzida nos modelos no foi motivada por dados de observao (que planetas esfricos, por exemplo, Newton poderia observar?), mas por dificuldades tericas. Na verdade, se a heurstica positiva est expressada com clareza, as dificuldades do programa so mais matemticas do que empricas.18

O convencionalismo uma concepo de cincia que entende as teorias como construes arbitrrias da razo, teis enquanto conseguirem descrever adequadamente a realidade (salvar os fenmenos). Para Lakatos a heurstica negativa de um PIC, entendida como um conjunto de proibies ou de restries aplicadas aos modos de construo de teorias, racionaliza o convencionalismo clssico na medida em que incorpora o poder discricionrio da razo num modelo de funcionamento da cincia que a entende como um empreendimento emprico, isto , que busca descobrir as leis verdadeiras que organizam o real. 19 Para uma apresentao mais detalhada deste caso, ver Lakatos 1970, p. 50-51.

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(Lakatos 1970, p. 51) Para Lakatos, ento, o programa avana pela elaborao de uma srie de modelos, diferentes entre si, mas compartilhando um mesmo ncleo e seguindo uma mesma heurstica. Na maior parte dos casos, os modelos se diferenciam porque assumem hipteses auxiliares diferentes (por exemplo, no programa newtoniano, a hiptese de que os planetas se comportam como pontos ou a hiptese de que os planetas so esferas). Eventualmente, podemos encontrar diferenas entre modelos que resultam de mudanas criativas (creative shifts) na heurstica positiva, ou seja, de re-avaliaes do plano de desenvolvimento do programa20. A avaliao de um PIC feita em termos da tendncia que a srie de teorias (ou modelos) apresenta na direo do progresso ou da degenerao. Diz-se que um programa de investigao progressivo enquanto seu desenvolvimento terico antecipar seu desenvolvimento emprico, ou seja, enquanto seguir predizendo com xito fatos novos (mudana progressiva de problemas); paralisante se o seu desenvolvimento terico se atrasa em relao a seu desenvolvimento emprico, isto , sempre que no oferece seno explicaes post hoc, seja de descobrimentos casuais, seja de fatos previstos, e descobertos, em um programa rival (mudana degenerativa de problemas). (Lakatos 1971a, p. 112) Esta avaliao sempre feita por comparao a outro programa. Se P2 [P = PIC] progride, custa da lentido do progresso de P1, j que P2 vai antecipar alguns fatos novos mais rapidamente que P1. Na verdade, P1 sem P2 poderia ser progressivo, mas em confronto com P2 est em degenerao. (...) Sem o programa de Einstein, o programa de Newton poderia estar ainda progredindo. (Lakatos 1971b, p. 177) Dentro de um PIC, uma teoria ser normalmente eliminada por uma teoria melhor. Uma teoria melhor do que outra se apresentar contedo emprico excedente ou se tiver (prometer) maior poder heurstico (por exemplo, uma teoria sinttica X ser melhor do que uma teoria sinttica Y ambas pertencendo ao mesmo PIC se X explicar mais fatos que Y ou se permitir mais facilmente, digamos, uma semntica). Para que essa substituio de teorias se d no necessrio que a teoria substituda esteja falseada: o falseamento e o abandono de teorias so processos independentes. O verdadeiro teste de uma teoria, ento, sua capacidade de prever fatos novos. Se o faz, refutaes e anomalias podem ser ignoradas.20

Esta situao pode nos deixar frente a uma bifurcao do PIC: alguns cientistas podem pensar em manter a heurstica velha. Talvez se possa falar aqui, dependendo do caso, de subprogramas ou de surgimento de um novo programa. A avaliao de um caso destes na histria da lingstica a Semntica Gerativa justamente o objeto deste texto.

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Antes de seguir em frente, cabe discutirmos um pouco a noo de fato novo, crucial para a metodologia de Lakatos. Como vimos, um PIC progressivo enquanto estiver prevendo fatos novos. Mas, em que condies um fato pode ser considerado novo? Em primeiro lugar, preciso abandonar o entendimento de fato novo como fato que no foi registrado anteriormente (fato que ainda no pertence ao conjunto dos conhecimentos bsicos da comunidade cientfica). A histria da cincia est cheia de exemplos de fatos velhos (fatos j bem conhecidos) que corroboram espetacularmente teorias. Um bom exemplo o do perilio de Mercrio que, embora bastante conhecido anteriormente, apoiou fortemente a Teoria da Relatividade Geral de Einstein21. No podemos usar tambm uma noo de fato novo que entenda por novo o fato predito por um programa que proibido (ou ao menos no previsto) pelo programa rival. Novamente, a questo do perilio de Mercrio mostra a improcedncia desse entendimento: a teoria de Newton, desde que assumidas certas pressuposies secundrias, tambm o explica (modernamente, percebeu-se que as aparentes irregularidades no movimento de Mercrio no so, de fato, uma anomalia para a teoria newtoniana). Deste modo, se assumirmos esse entendimento da noo de fato novo, j que a teoria de Newton tambm explica o problema do perilio de Mercrio, este fato no pode mais ser usado como critrio de julgamento da excelncia dos programas em confronto o perilio de Mercrio seria um fato que no apoiaria nem a teoria de Newton nem a teoria de Einstein. Desta forma, tanto a concepo temporal quanto a concepo exclusivista de fato novo devem ser abandonadas. Para superar os problemas implicados por estas duas concepes (ambas defendidas, em momentos diversos, por Lakatos), Zahar (1973) prope a seguinte noo de fato novo: Um fato ser considerado novo em relao a uma dada hiptese se no pertencer situao-problema que ordenou a construo da hiptese. (Zahar 1973, p. 103) Ou seja, um fato novo em relao a uma teoria se ele no fizer parte daquele conjunto de fatos para os quais a teoria foi especificamente proposta. A MPIC [Metodologia dos Programas de Investigao Cientfica] considera que uma teoria apoiada por todos os fatos dos quais ela seja uma descrio correta, contanto que tais fatos no tenham sido usados na construo da teoria. (Worral 1982, p. 55) Uma das conseqncias mais importantes dessa noo de fato novo que agora um fato ser considerado novo ou no conforme a heurstica que levou construo da teoria sob avaliao. No podemos mais falar em fatos apoiando teorias, mas em fatos apoiando teorias obtidas de uma certa maneira. Em ltima anlise, os fatos no apoiaro teorias mas sim programas (sries de teorias que compartilham um ncleo e uma heurstica), que, em funo disso, devem ser considerados as unidades de anlise da metodologia de Lakatos.

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Ver outros exemplos em Worral 1982.

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Das nossas consideraes se depreende que a heurstica positiva avana aos poucos, com descaso quase completo das refutaes; parece que as verificaes, mais que as refutaes, fornecem os pontos de contato com a realidade. (...) So as verificaes que mantm o programa em andamento, apesar dos casos recalcitrantes. (Lakatos 1970, p. 51-52) Os problemas racionalmente escolhidos por cientistas que trabalham em programas de investigao poderosos so determinados pela heurstica positiva do programa, muito mais do que pelas anomalias psicologicamente preocupantes (ou tecnologicamente urgentes). (...) S precisam concentrar sua ateno em anomalias os cientistas empenhados em exerccios de ensaio-e-erro ou que trabalham na fase degenerativa de um programa de investigao quando a heurstica positiva perde o gs. (Lakatos 1970, p. 52) O comportamento tpico do cientista que se defronta com refutaes a seu programa consiste em salvaguardar o ncleo do programa, fazendo alteraes, se for o caso, nas hipteses auxiliares que constituem o cinturo protetor do ncleo. A metodologia de Lakatos um programa de investigao historiogrfica. O historiador que dela se serve deve localizar no passado programas rivais e mudanas de problemas progressivas e degenerativas. A metodologia s aprecia os programas de investigao; no d conselhos aos cientistas sobre como chegar a teorias progressivas, nem sobre o que devem fazer os cientistas diante de programas degenerativos. Minhas regras metodolgicas explicam a racionalidade da aceitao da teoria de Einstein em substituio teoria de Newton, mas elas no impelem nem aconselham os cientistas a trabalhar no programa einsteiniano e no no programa newtoniano. (...) Quando se conclui que, pelos meus critrios, um programa de investigao est progredindo e seu rival est degenerando, isto apenas nos diz que os dois programas tm certas caractersticas objetivas, mas no nos diz que os cientistas devem trabalhar apenas no programa progressivo. (Lakatos 1971b, p. 174) Eu, obviamente, no digo ao cientista o que tentar fazer numa situao caracterizada pela existncia de dois programas de investigao rivais progressivos: tentar elaborar um ou outro, ou aproveitar a ambos e super-los com um Grande Salto Dialtico. O que quer que os cientistas faam, eu posso julgar; posso dizer se eles caminharam em direo do progresso ou no. Mas eu no posso aconselh-los e eu no quero aconselh-los sobre o que

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exatamente preocupar-se, nem em que direo procurar o progresso. (Lakatos 1971b, p. 178) Para Lakatos, o estudo histrico de um caso qualquer da histria das cincias deve se preocupar em dar uma descrio racional do caso e tentar comparar essa descrio racional com a histria real. Pela comparao, deve-se criticar tanto a descrio racional por falta de historicidade como a histria real por falta de racionalidade. A histria da cincia sempre mais rica que suas reconstrues racionais e, assim, a metodologia de Lakatos precisa ser completada por uma histria emprico-externa. Nenhuma teoria da racionalidade resolver jamais problemas como o do porqu a gentica mendeliana desapareceu da Rssia Sovitica nos anos 50, ou porque certas escolas de investigao em diferenas genticas raciais ou na economia de ajuda externa caram em descrdito nos pases anglo-saxes nos anos 60. Alm disso, para explicar os diferentes ritmos de desenvolvimento dos diferentes programas de investigao podemos ter necessidade de invocar a histria externa. A reconstruo racional da cincia (no sentido em que uso o termo) no pode abranger tudo porque os seres humanos no so animais completamente racionais; e mesmo quando agem racionalmente, podem ter uma falsa teoria de suas prprias aes racionais. (Lakatos 1971a, p. 114) 5.2. Comentrios sobre a metodologia de Lakatos. Segundo Hacking (1981), no se pode entender a filosofia da cincia de Lakatos sem levar em considerao duas grandes influncias em seu trabalho: de um lado, uma forte influncia do idealismo, em especial do pensamento hegeliano, e de outro, a influncia do pensamento filosfico britnico, em especial de Whewell e Popper. E a tentativa de sintetizar essas duas orientaes distintas que caracteriza o pensamento lakatosiano. De seu lado idealista ressalta a recusa de uma verdade entendida como representao do real; de seu lado britnico, sobressai o entendimento da cincia como uma atividade eminentemente objetiva. A tarefa a que se prope Lakatos, ento, a da construo de uma teoria da objetividade cientfica que no incorpore uma teoria representacional da verdade. Lakatos assume, para a realizao dessa tarefa auto-imposta, a mesma postura j assumida por outros filsofos como Kant e Peirce, por exemplo de substituir uma teoria representacional da verdade por uma metodologia. A postulao kantiana dos juzos analticos juzos que so verdadeiros independentemente de sua verificao pela experincia coloca o problema filosfico da distino entre o objetivo e o subjetivo. Nietzsche, por exemplo, privilegia o subjetivo e considera a verdade objetiva uma fbula criada pela legislao da linguagem (ver Nietzsche 1873). Peirce, por outro lado, procurou substituir a verdade pelo mtodo, considerando-a o ponto de chegada da atividade cientfica desenvolvida de certo modo (segundo o mtodo), qualquer que seja esse ponto.

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Peirce definiu verdade como aquilo que obtido no final ideal de uma pesquisa cientfica e pensou que era tarefa da metodologia caracterizar os princpios da pesquisa. Problema bvio: e se a pesquisa no chega a nada? Para Peirce no haveria esses cataclismos da razo: as teorias tm seus altos e baixos, e algumas vezes so substitudas por outras, mas tudo isso parte do mecanismo de auto-correo da pesquisa cientfica. a realidade, semelhana de qualquer outra qualidade, consiste nos peculiares efeitos sensveis produzidos pelas coisas que dela partilham. O nico efeito que as coisas reais produzem o de dar margem crena, pois todas as sensaes que elas estimulam brotam na conscincia sob a forma de crenas. O problema reside, pois, em saber como a crena verdadeira (ou crena no real) se distingue da crena falsa (ou crena na fico). Ora,... as idias de verdade e falsidade, em seu alcance pleno, dizem exclusivo respeito ao mtodo experimental de assentar opinio. (Peirce 1878, p. 65) De outra parte, todos os seguidores da cincia sentem-se possudos da estimulante esperana de que os processos de investigao, se impulsionados em extenso suficiente, ho de conduzir a uma soluo correta para cada questo a que se vejam aplicados. (...) Diferentes espritos podem firmar-se nas mais conflitantes posies e, no obstante, o progresso da investigao os levar, por fora externa, a uma nica e mesma concluso. (...) Essa grande esperana est presente nas concepes de verdade e realidade. A opinio que ser, afinal, sustentada por todos os que investigam o que entenderemos por verdade, e o objeto que nesta opinio se representa o real. Desta maneira explicaria eu a realidade. (Peirce 1878, p. 67-68)22 com um sentido prximo ao de Peirce que Lakatos entende o termo metodologia e, assim, no pode aceitar a doutrina atribuda a Kuhn de que o conhecimento muda por converses irracionais de um paradigma a outro. Deve haver alguma racionalidade metodolgica no processo de desenvolvimento do conhecimento cientfico. Para Lakatos, o conhecimento cresce e isso todos podemos ver, seja qual for a noo de verdade e de realidade que assumimos; o importante no que haja conhecimento, mas que haja crescimento: ns sabemos mais hoje do que sabamos no passado e certamente saberemos mais no futuro do que sabemos hoje. Podemos reconhecer alguns casos que obviamente (para Lakatos) exibem o crescimento do conhecimento; precisamos, no entanto, de uma metodologia de anlise que nos diga em que consiste esse crescimento, em que outros casos h crescimento e em que casos no h. Com os resultados dessa anlise, obteremos um critrio de demarcao entre atividade racional e irracionalismo: ser racional a atividade que leve ao crescimento do conhecimento. Tudo isso deve ser feito22

No se deve ver nesta posio de Peirce a proposta de verdade como consenso. Para Peirce no se trata de conseguir o consenso, mas de se chegar, por fora do mtodo, a este consenso. Peirce chega a dizer que essa atividade do pensamento pela qual somos levados no para onde queremos, mas para a meta preestabelecida, chama-se destino (1878, p. 67).

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sem referncia noo de verdade (o conhecimento cresce mas no nos aproximamos necessariamente da verdade) e com suporte em consideraes internas sobre a histria da cincia ( o mtodo o responsvel pelo crescimento do conhecimento). A metodologia de Lakatos examina seqncias de teorias no passado para ver se elas levaram ao progresso (crescimento do conhecimento) ou degenerao. Sua noo de progresso liga-se ao requisito de Leibniz-Whewell-Popper de que a construo das caixinhas deve anteceder o registro dos fatos que devero ser colocados nelas (Lakatos 1970, p. 100), e, portanto, depende crucialmente da noo de fato novo. Do ponto de vista de sua metodologia, Lakatos pode considerar vazia a disputa entre realistas e idealistas. o que ele afirma: Na medida em que se obtm este requisito, no importa se destacamos o aspecto instrumental de programas de investigao imaginativos na descoberta de fatos novos e na elaborao de predies confiveis, ou se destacamos o suposto aumento de verossimilhana popperiana (isto , a diferena estimada entre o contedo de verdade [truth-content] e o contedo de falsidade [falsity-content]) de suas sucessivas verses. O falsacionismo sofisticado [= a metodologia de Lakatos] combina, assim, o melhor do voluntarismo, do pragmatismo e das teorias realistas do crescimento emprico. (Lakatos 1970, p. 100) 23 Lakatos tem o cuidado, no entanto, de no pretender impor regras metodolgicas para a atividade cientfica vigente, voltando-se exclusivamente para a investigao do passado (seu modelo rigorosamente historiogrfico). Ele tem claro que no existem regras que nos possam dizer quais os melhores passos a serem dados no presente para obter o progresso no futuro. As regras metodolgicas que esperaramos encontrar no pensamento de Lakatos so as vrias heursticas que os programas assumem. Ao invs de entender a metodologia como uma coleo de regras e/ou de estratgias, teoricamente neutras, que levariam ao conhecimento, ele assume que cada programa tem sua prpria metodologia (heurstica). Deste modo, Lakatos foge de uma proposta de metodologia universal em favor de uma proposta de metodologias locais, dadas por conveno. Parece claro que estes dois pontos no-normativismo e relativismo metodolgico aproximam muito Lakatos do anarquismo epistemolgico de Feyerabend24. A principal diferena entre eles parece ser o fato de que Lakatos julga ser possvel avaliar a posteriori o desempenho dos programas de investigao, julgando-os por sua racionalidade ou irracionalidade, enquanto Feyerabend, porque assume a noo de incomensurabilidade, entre outras coisas, no considera isso possvel.23

O voluntarismo uma concepo filosfica que toma a vontade como o elemento central da realidade tudo fruto da vontade; o pragmatismo uma concepo filosfica que privilegia as conseqncias e os efeitos da ao em detrimento de seus princpios e/ou pressupostos; o realismo uma concepo filosfica que admite a existncia de uma realidade exterior, autnoma, independente de algum que a conhea; e o idealismo uma concepo filosfica que entende que o mundo exterior se interpreta em termos do mundo interior (de um mundo das idias platnico). Para o idealista, o mundo exterior (a realidade), se que existe, determinado pelo mundo interior. 24 Ver Feyerabend 1975 e 1991.

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A viso de histria da cincia de Lakatos certamente no ortodoxa e creio mesmo que em funo dela que muitos filsofos recusam sua metodologia. Vejamos a seguinte passagem de um dos apndices de seu livro pstumo A Lgica do Descobrimento Matemtico (o original sua tese de doutorado de 1961): A atividade matemtica atividade humana. Certos aspectos dessa atividade como qualquer atividade humana podem ser estudados pela psicologia, outros pela histria. A heurstica no est interessada primordialmente nesses aspectos. Mas a atividade matemtica produz matemtica. A matemtica, esse produto da atividade humana, aliena-se da atividade humana que a esteve produzindo. Ela se converte num organismo vivo, em crescimento, que adquire certa autonomia da atividade que a produziu; ela revela suas prprias leis autnomas de crescimento, sua prpria dialtica. O autntico matemtico criativo precisamente uma personificao, uma encarnao dessas leis que s se podem compreender na ao humana. Sua encarnao, porm, raramente perfeita. A atividade dos matemticos humanos, tal como aparece na histria, apenas uma tosca concretizao da dialtica maravilhosa de idias matemticas. (Lakatos 1976, p. 190) Esta alienao do produto da atividade matemtica, tanto dos agentes humanos que a produzem quanto das condies concretas de produo, essa autonomia do conhecimento produzido, pode ser tratada ou no quadro do idealismo hegeliano ou no quadro delineado pela noo de terceiro mundo de Popper. Segundo os organizadores do livro (Lakatos 1976), John Worrall e Elie Zahar, com o passar do tempo, Lakatos vinha cada vez mais abandonando a perspectiva hegeliana, mas mantinha a crena na autonomia, mesmo que parcial, dos produtos do esforo intelectual humano25. A alternativa de Lakatos, portanto, parece ser a noo de terceiro mundo de Popper. Segundo Popper, ns vivemos em trs mundos distintos e inter-relacionados, todos eles reais. O primeiro mundo o mundo dos objetos fsicos (tatus, cadeiras, campos de fora, movimentos, etc.); o segundo, o mundo dos processos mentais (intenes, emoes, desejos, crenas, etc.); e o terceiro mundo que nos interessa aqui o mundo das entidades e relaes tericas (teorias, conceitos, argumentos, etc.). Para Popper, os objetos do terceiro mundo so criados pela atividade psicolgica humana, mas uma vez criados, passam a ter uma existncia objetiva independente e, portanto, irredutvel atividade que os criou. deste compromisso com o terceiro mundo popperiano que sai a noo de reconstruo racional de Lakatos sua histria no a histria da cincia real mas a histria dessa cincia alienada, terceiromundista. da que surge tambm sua viso peculiar da distino interno/externo. Normalmente considera-se que a histria externa diz respeito a fatores que nada tm a ver diretamente com a cincia (fatores econmicos, sociais e tecnolgicos) e a histria interna diz respeito s idias propriamente cientficas (levando em considerao as motivaes dos cientistas, seus mecanismos de comunicao e25

Ver Lakatos 1976, p. 190, nota 258.

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suas linhas de filiao intelectual). A histria interna de Lakatos o extremo do contnuo: s leva em considerao o terceiro mundo a histria dos programas autnomos, independentes at dos cientistas que os desenvolvem. Lakatos tem um problema: caracterizar o crescimento do conhecimento internamente, pela anlise de exemplos de crescimento. H uma conjetura: que a unidade de crescimento o programa de investigao (definido pelo ncleo, cinturo protetor, heurstica) e que programas de investigao so progressivos ou degenerativos, e, finalmente, que o conhecimento cresce pelo triunfo dos programas progressivos sobre os degenerativos. Para testar essas suposies ns selecionamos um exemplo que deve prima facie ilustrar algo que cientistas descobriram. (...) Escolhido o exemplo, ns devemos ler todos os textos que nos chegarem s mos, cobrindo todo o perodo abrangido pelo programa de investigao e todos os cientistas adeptos. No que lemos, devemos selecionar a classe de sentenas que expressam o que os cientistas estavam procurando encontrar e como eles pensavam encontrar o que procuravam. (...) Havendo obtido esta parte interna dos dados, podemos agora tentar organizar o resultado numa histria de programas de investigao lakatosianos. (Hacking 1981, p. 139-140) O resumo que Hacking faz da metodologia de Lakatos nos parece uma descrio extremamente clara da tarefa que se coloca para o historiador da lingstica que pretenda usar a metodologia. Vou procurar fazer uma anlise tanto quanto possvel lakatosiana do conflito GG/SG, procurando, por um lado, caracterizar e avaliar o embate entre os dois contendores e, por outro lado, avaliar a prpria adequao da metodologia de Lakatos para a descrio e a anlise dos conflitos tericos nos estudos da linguagem humana.

6. As Guerras Lingsticas na tica da metodologia de Lakatos (1978). Vamos iniciar este pargrafo retomando as trs interpretaes do conflito GG/SG que vimos acima. Segundo Dascal: (i) SG um desenvolvimento intraparadigmtico da GG; ou (ii) SG um novo paradigma que vem para substituir o paradigma da GG; ou ainda (iii) SG , na realidade, um retorno, contra-revolucionrio, ao paradigma do estruturalismo americano (EA). luz das categorias de Lakatos, essas trs interpretaes poderiam ser caracterizadas como: (i) SG uma mudana criativa na heurstica do Programa da GG; (ii) SG um novo Programa de Investigao; ou (iii) SG um retorno ao Programa do EA. Aparentemente, continuamos diante de um dilema idntico ao que tnhamos quando usvamos a metodologia de Kuhn. S aparentemente, no entanto. A metodologia de Lakatos nos permite com objetividade maior decidir por uma ou outra interpretao. Comecemos perguntando sobre o que ops a teoria chomskiana ao EA.

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6.1. GG versus EA. O ncleo do programa do EA consiste de duas afirmaes: 1) Enunciados so manifestaes de um sistema subjacente; 2) Dado um conjunto cuidadosamente definido de procedimentos, o sistema subjacente (i.e., a gramtica da lngua sob anlise) pode ser descoberto pelo processamento dos enunciados registrados num corpus; A heurstica negativa determina que:a) b)

todo construto que pode aparecer numa gramtica deve ser diretamente garantido pelos dados fsicos26; e os procedimentos de descoberta devem ser formulados em termos de noes como distribuio, ambiente, equivalncia, contraste, substituio, e assemelhados.

A heurstica positiva do EA determina os meios para se chegar estrutura das lnguas (o sistema subjacente ou gramtica), que o objetivo final da atividade do cientista engajado no programa. Em primeiro lugar, a heurstica manda que se construam procedimentos de descoberta. A lngua tem uma estrutura e o lingista deve revelar essa estrutura com base nos dados fsicos registrados no corpus. Logo, o lingista deve criar, em cada caso, um procedimento qualquer que lhe permita desvendar a estrutura da lngua. Em segundo lugar, a heurstica exige que o lingista estabelea nveis de anlise e que os aborde sucessivamente, do mais concreto aos mais abstratos. Os nicos elementos lingsticos que se apresentam materialmente, como dados fsicos, so os sons. Logo, a tarefa do lingista se inicia com a anlise dos sons e, por generalizao e abstrao, vai passando do som ao fonema (= classe de sons), do fonema ao morfema, e assim por diante. Importa notar que no s so estabelecidos os nveis de anlise como estabelecida uma hierarquia bastante rgida para os nveis: os elementos de um nvel so definidos a partir dos elementos do nvel imediatamente anterior e assim por diante at que cheguemos aos sons, que podem ser observados diretamente e que ancoram toda a anlise27. Como ltima observao sobre o programa do EA gostaria de dizer que o procedimento de descoberta baseado distribuio das unidades lingsticas proposto por Bloomfield e levado s ltimas conseqncias por Harris foi de longe o procedimento mais utilizado pelos estruturalistas. Noam Chomsky, como aluno e orientando de Harris, certamente o conheceu bem e o incorporou nas primeiras formulaes da GG. A verso item-e-arranjo deste procedimento28, ainda hoje, delineia a arquitetura bsica da GG.26 27

Ver Jacobsen 1977, p. 3. Segundo Harris (1951, p. 21), o nvel dos fonemas e o nvel dos morfemas podem ser obtidos dos dados de maneira totalmente independente. A nica relao que Harris admite existir entre os dois nveis reside nas representaes estenogrficas. importante observar, no entanto, que no h independncia de qualquer um dos nveis com relao ao nvel observvel, que o nvel fontico. Apesar dessa ressalva de Harris que nos lembra a dupla articulao de Martinet creio que o estabelecimento de uma hierarquia rgida de nveis o procedimento mais comum no quadro do EA. 28 Ver Hockett 1954.

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O ncleo da GG consiste nas seguintes afirmaes: 1) Os comportamentos lingsticos efetivos (enunciados) so, ao menos parcialmente, determinados por estados da mente/crebro; 2) A natureza dos estados da mente/crebro, parcialmente responsveis pelo comportamento lingstico, pode ser captada por sistemas computacionais que formam e modificam representaes. Antes de seguir adiante, vale a pena justificar esta definio do ncleo da GG. Ao lermos a obra de Chomsky, de sua dissertao de mestrado (1951) proposta do Programa Minimalista (1995), podemos perceber uma busca obsessiva, poderamos dizer de um sistema computacional capaz de modelar a parte da mente/crebro (o mdulo) responsvel pelos comportamentos lingsticos dos falantes, particularmente a parte sinttica desses comportamentos. Os sistemas computacionais efetivamente propostos so alterados e substitudos constantemente; as noes tericas formais ou substantivas utilizadas mudam freqentemente (p.ex., nos primeiros trabalhos Chomsky no falava em estados da mente nem supunha que seu sistema computacional tivesse realidade psicolgica). A consistncia do trabalho de Chomsky, no entanto, salta aos olhos e o que nos permite dizer que estamos diante de um nico programa (a GG). Quero crer que as duas afirmaes que proponho como caracterizao do ncleo do programa cobrem bem essa identidade do pensamento chomskiano. A heurstica positiva do programa da GG determina que a tarefa fundamental do lingista a criao de sistemas computacionais adequados como modelos para a competncia lingstica dos falantes/ouvintes de uma lngua, ou seja, para os estados da mente/crebro parcialmente responsveis pelo comportamento lingstico efetivo. Esses sistemas computacionais devem ser entendidos como hipteses explicativas e suas conseqncias empricas devem ser avaliadas num esquema dedutivo. Parece claro que o programa chomskiano, se comparado ao programa do EA, inova em alguns aspectos importantes. Vejamos alguns deles. O objeto de estudos do EA era a lngua, entendida como a totalidade dos enunciados que podem ser feitos numa comunidade lingstica, segundo Bloomfield (1926 p. 47). Cabia ao lingista, no quadro do EA, descrever essa lngua e isso era feito, como vimos, a partir da coleta de um corpus representativo que era descrito minuciosamente com o instrumental fornecido pelo procedimento de descoberta. O que merece destaque aqui a natureza externa da noo de lngua do EA: a lngua vai ser vista, ao fim e ao cabo, como nada mais do que um conjunto de enunciados. O que chama a ateno de Chomsky desde os primeiros momentos a possibilidade de se supor a existncia de algo anterior a esta lngua dos estruturalistas: a capacidade que os falantes tm de produzir (e compreender) os enunciados que constituiro essa lngua externa. Como vimos em captulo anterior, o corpus, que se constitui no ponto de partida dos estudos estruturalistas, , para Chomsky, o ponto de chegada. Esse algo anterior lngua externa deve ser um conjunto de estados mentais que determinam os comportamentos lingsticos dos falantes e que definem (delimitam, geram) o conjunto de enunciados. Em suma, um primeiro ponto de divergncia entre o EA e a GG est na definio do objeto observacional (regio da realidade tomada como objeto de estudos): Para o EA o

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objeto um conjunto de enunciados (uma lngua entendida como um conjunto em extenso) e para a GG um conjunto de estados mentais (lngua entendida como um conjunto de regras internalizadas) que determinam os enunciados que constituem a lngua em extenso. Outro lugar de divergncia entre o EA e a GG a definio dos objetivos das teorias. Enquanto as teorias do EA so explicitamente descritivas, as teorias da GG pretendem-se explicativas. Vejamos o que Chomsky entende por explicao. Em lingstica, considera-se que uma explicao foi obtida quando se puder deduzir um campo de fenmenos a partir de um conjunto de princpios gerais e de algumas observaes particulares sobre a linguagem (ou sobre a lngua), em seguimento de uma cadeia dedutiva de raciocnios que parta de tais princpios, dados outros fatos particulares considerados como condio-limite. (Chomsky 1977, p. 106) A adoo por Chomsky desse modelo de cincia hipottico-dedutivo tem, certamente, implicaes profundas nos procedimentos de seu programa. No se trata mais, como no EA, de descrever os dados que se revelam percepo do lingista, mas de encontrar princpios gerais a partir dos quais as descries dos dados observveis possam ser logicamente derivadas. Com Chomsky, assume-se na lingstica a prioridade do terico sobre o emprico.

6.2. A Semntica Gerativa. A partir dessa pequena caracterizao dos programas do EA e da GG j podemos concluir que SG no um retorno ao programa do EA. Mesmo sem entrarmos em muitos detalhes, fcil ver que h muitos mais pontos de contato entre SG e GG do que entre SG e EA. A SG admite que h estados mentais responsveis pelo comportamento lingstico e admite que esses estados mentais podem ser representados por sistemas computacionais (gramticas gerativas). O ncleo do programa da GG, ento, no parece ser o que est em questo nas guerras lingsticas. A heurstica do programa da GG tambm no parece estar sendo contestada: os semanticistas gerativos tambm procuram desenvolver sistemas computacionais que representem adequadamente os estados mentais responsveis pelos comportamentos lingsticos dos falantes. Onde estaria, ento, o ponto de divergncia entre chomskianos e semanticistas gerativos? Creio que teremos que procur-lo numa especificao mais fina da heurstica positiva e em algumas hipteses auxiliares assumidas por Chomsky ou pelos semanticistas gerativos. J vimos que as principais divergncias entre Chomsky e os semanticistas gerativos concentram-se na definio do lugar e da natureza da interpretao semntica. As outras divergncias (presena/ausncia de EP, transformaes pr-lexicais, etc.) parecem decorrer da divergncia fundamental sobre o lugar da semntica na gramtica. Notem-se as posies de Chomsky e de Lakoff a respeito:

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De momento no vejo motivo para modificar o ponto de vista expresso em Chomsky (1957) e noutros trabalhos, de que, embora obviamente as consideraes semnticas sejam pertinentes para a construo de uma teoria lingstica geral (...) no existe, presentemente, nenhuma forma de mostrar que as consideraes de natureza semntica tm um papel na escolha da componente sintctica ou fonolgica de uma gramtica, ou que os traos semnticos (...) desempenham um papel no funcionamento das regras sintcticas ou fonolgicas. No se fez com efeito nenhuma proposta sria para mostrar como que as consideraes de ordem semntica podem contribuir para um processo de avaliao desses sistemas ou para fornecerem alguns dos dados lingsticos primrios com base nos quais estes seriam seleccionados. (Chomsky 1965, p. 325, nota 15) A posio da semntica gerativa essencialmente que a sintaxe e a semntica no podem ser separadas e que o papel das transformaes e das restries derivacionais em geral relacionar representaes semnticas a estruturas superficiais. (Lakoff 1969, p. 94, nota 1) Ora, essa divergncia bsica parece ser uma divergncia de heurstica e parece estar baseada na atitude ambgua de Chomsky com relao interpretao semntica. No primeiro perodo de desenvolvimento da GG (perodo Syntactic Structures) a tarefa que a heurstica imponha aos lingistas era a de representar formalmente aquela parte da competncia dos falantes que podemos chamar de sintaxe estrita. O restante da competncia, bem como o desempenho, ficava para ser descrito aps a descrio da parte sinttica da competncia. Quer me parecer que a heurstica era clara quanto ao plano de desenvolvimento do programa. A introduo do componente semntico na gramtica da teoria-padro constitui, de certa forma, uma mudana de heurstica. A atitude de Chomsky frente a essa introduo, no entanto, mostra que ele, embora aceite provisoriamente o componente semntico, mantmse ainda confiante na heurstica anterior. Imagino que a posio de Chomsky possa ser descrita como algo assim: V l! J que vocs insistem, eu acrescento um componente semntico na gramtica. Mas o trabalho com esse componente deve depender estritamente dos resultados obtidos no componente sinttico. Na medida em que os lingistas em geral no possuam maiores compromissos com a heurstica original do programa e na medida em que a aceitao de um componente semntico na gramtica abria perspectivas de novas anlises e da descoberta de fatos novos, essa nova heurstica (aceita cum grano salis por Chomsky29) passou a orientar as anlises lingsticas no perodo. Se entendidas deste jeito, as divergncias entre GG e SG no passam de discordncia quanto delimitao da heurstica positiva so divergncias internas ao programa, ento.

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Afirmo isto com base no depoimento de Katz (ver Katz 1980).

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Lakatos admite que se possa substituir uma heurstica por outra no interior de um mesmo programa (mudanas criativas). Essas mudanas vo aparecer, principalmente, em programas estagnados que, com a mudana de heurstica, retomam o progresso. Embora no se possa dizer que a GG estava estagnada no final dos anos 1960, no difcil ver que a introduo de um componente semntico na gramtica deveria propiciar a descoberta de muitos fatos novos, acelerando o progresso do programa. Creio que mesmo Chomsky apostava nesse progresso e, por isso, admitiu a existncia de um componente semntico como o de Katz, Fodor e Postal na teoria-padro30. Fica claro, no entanto, que rapidamente Chomsky se d conta de que a mudana na heurstica foi um erro31 e recua na direo da heurstica anterior. Infelizmente para Chomsky, a mudana efetuada na heurstica no tem volta e ele se v obrigado a uma nova mudana criativa, que determina o surgimento de TPE. No h como negar que a mudana criativa na heurstica da GG, determinando que os lingistas, ao descobrirem novos fatos e novas relaes entre fatos lingsticos, buscassem adaptar suas postulaes de estruturas profundas interpretao semntica e no, como antes, mera exposio de regularidades estruturais, teve o importante papel de expor deficincias da teoria-padro, colocando em xeque uma srie de anlises convencionais. As solues que os chomskianos propunham para fenmenos como a quantificao, a categorizao, a formularidade, etc., eram claramente inferiores s solues propostas no quadro da SG. Em vista disso, o simples recuo ficou impedido. O problema de Chomsky, ento, passou a ser o de propor uma nova teoria, que obedecesse o mais possvel heurstica anterior e que conseguisse dar conta dos fatos novos descobertos pela SG. Isso nos coloca diante de uma situao curiosa. Temos duas heursticas distintas: uma, da SG, postulando a considerao de fatos semnticos na formulao de regras sintticas e outra, de Chomsky, apoiada na considerao da autonomia e da centralidade da sintaxe, recusando a determinao semntica das regras sintticas. Embora ambas as heursticas fossem postuladas no interior de um mesmo programa, o debate entre seus defensores foi suficientemente acirrado para que houvesse a impresso de que eram programas que estavam em jogo. A retrica do debate e a importncia concedida a hipteses auxiliares (como a forma da gramtica) distorcem a natureza das divergncias, tornando-as mais profundas do que na realidade eram. A retrica dos semanticistas gerativos, por exemplo, vai aprofundar as divergncias para apresentar a SG como um novo programa. McCawley (1995, p. 343), por exemplo, aponta lugares de divergncia que ele considera mais substanciais do que a questo do lugar da semntica na gramtica. A questo da gramaticalidade um desses lugares. Segundo ele, os semanticistas gerativos rejeitavam a idia de que uma lngua pode ser identificada com um conjunto de sentenas e que o fato de uma sentena ser gerada pela gramtica lhe confere o estatuto de gramatical (de uma forma absoluta). Para eles, uma sentena (uma estrutura superficial) gramatical

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Chomsky, explicitamente, avaliza as propostas de Katz, Fodor e Postal, dizendo que O nico trabalho srio que conheo sobre a relao entre estes domnios [sintaxe e semntica] o de Katz, Fodor e Postal (Chomsky 1965, p. 325, nota 15). 31 Fodor tambm percebe o erro contido na introduo de um componente semntico na gramtica e passa rapidamente a renegar a idia de uma interpretao semntica nos moldes da teoria-padro. Sua recusa de um componente semntico na gramtica surpreendente e importante justamente porque Fodor um dos responsveis por este componente.

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relativamente ao significado representado em sua estrutura semntica e a quaisquer fatores contextuais a que os nveis derivacionais sejam sensveis. Tambm as polticas de conduo da pesquisa, como escreve McCawley32, apresentam divergncias entre os gerativistas e os semanticistas gerativos. Enquanto os primeiros trabalhavam com uma teoria e uma concepo de linguagem em que fronteiras so bem delimitadas (fronteiras entre sintaxe, semntica e fonologia; entre competncia e desempenho, etc.), numa antecipao genrica do que mais tarde vai ser chamado de modularidade, os semanticistas gerativos no viam importncia nessas delimitaes: tratavam todos os diferentes tipos de dados igualmente e todas as partes de uma anlise lingstica estavam sujeitas aos mesmos requisitos de explicitude, simplicidade e fidelidade aos fatos. Os semanticistas gerativos davam muita importncia aos dados e desprezavam a atitude de muitos gerativistas que tinham pouca ligao com os fatos lingsticos ou com a descrio lingstica detalhada. Isso lhes valeu a alcunha de fetichistas dos dados e permitiu, como vimos, que os gerativistas os acusassem de contra-revolucionrios que pretendiam o retorno do programa do EA. Talvez o ponto mais importante seja a adoo pelos semanticistas gerativos de uma concepo esttica de regra gramatical em oposio concepo derivacional do gerativismo chomskiano. Enquanto os gerativistas entendiam as regras como mecanismos que formavam e transformavam estruturas alinhando-as no tempo os semanticistas gerativos entendiam as regras como condies derivacionais, ou seja, como especificaes do que uma estrutura pode ou no conter e como uma estrutura em um nvel difere da mesma estrutura em outro nvel (McCawley 1995, p. 344). Essa divergncia na concepo de regra coloca problemas conceituais importantes para as duas teorias em confronto, permitindo e/ou proibindo diferentes mecanismo. Por exemplo, a concepo esttica permitiu a Lakoff (1970) a proposio de regras globais, regras que envolviam nveis de anlise no adjacentes, o que era absolutamente proibido na gramtica chomskiana que derivava um nvel de anlise do nvel imediatamente precedente. Todos esses pontos revelam discordncias importantes entre chomskianos e semanticistas gerativos e talvez apontem para ncleos diferentes e no apenas para heursticas distintas. Marcelo Dascal33 acha que podemos encontrar na noo de programa a mesma vagueza que encontramos na noo de paradigma. Se considerarmos todas as divergncias entre as duas posies, ficamos novamente com o problema de saber se estamos diante de dois programas ou de duas heursticas de um mesmo programa. Creio que posso levantar alguns argumentos capazes de decidir a questo. Bem no esprito da metodologia de Lakatos, esses argumentos s podem ser levantados retrospectivamente. Em outras palavras, ser diante dos desdobramentos da teoria chomskiana no espao de tempo que nos separa do debate GG/SG que poderemos decidir sobre o que estaria acontecendo naquele momento. As pessoas familiarizadas com Teoria de Princpios e Parmetros podem reconhecer nas caractersticas que McCawley aponta como divergncias substanciais mecanismos utilizados, de modo geral, na GG. A questo da natureza esttica das regras gramaticais, por exemplo, uma questo mais ou menos pacfica no interior da GG. J no final dos anos 1980 a abordagem derivacional cedeu lugar a uma abordagem representacional das estruturas sintticas.32 33

De certa forma, a heurstica da Semntica Gerativa. Comunicao pessoal.

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Numa perspectiva derivacional, as vrias representaes dos nveis lingsticos so derivadas umas das outras por meio de regras. A gramtica rigidamente direcional, ou seja, os diversos nveis de anlise lingstica so abordados e recebem representaes numa ordem determinada. At meados dos anos 70, ento, todas as propostas de gramticas feitas no interior da GG eram derivacionais. Na perspectiva representacional, por outro lado, as vrias representaes no se relacionam por derivao: elas so apenas representaes de propriedades estruturais resultantes das teorias que restringem a gramtica. As estruturas-P, por exemplo, podem passar a ser entendidas como uma representao pura das funes gramaticais relevantes para a atribuio de papis temticos e, nesse sentido, como uma abstrao das estruturas-S. A gramtica no direcional. Como diz Lobato: Essa mudana de abordagem leva a uma modificao na interpretao do que seja ser gerado pela base. Nas verses anteriores da teoria, essa expresso significava ser derivado, a partir de S, por aplicaes sucessivas de regras sintagmticas e com uso da regra de substituio lexical. Agora, ela significa ser projetado do lxico, a partir de X, de acordo com os princpios da GU [Gramtica Universal] e os parmetros que a lngua fixou. Essa nova perspectiva permite ento que se considere que uma estrutura-S seja gerada pela base, sendo Deslocamento de ALFA uma propriedade das estruturas-S, e no, nessa tica, uma regra que converte estruturas-P em estruturas-S (cf. Chomsky 1982b: 33). Do mesmo modo, qualquer outro nvel de representao pode ser considerado como derivado pela base, uma vez que qualquer nvel de representao determinado pela fixao dos parmetros da GU (Chomsky 1982b: 14). (Lobato 1986, pp. 403-404) Da mesma forma, basta observarmos os textos mais recentes produzidos no interior do quadro terico da GG para vermos que o desprezo pelos dados no mais existe. A preocupao com os dados, com a elaborao de corpora, com a justificao emprica de praticamente cada passo dado na construo de uma anlise, nos permitiriam dizer hoje que os chomskianos so to fetichistas dos dados como eram os semanticistas gerativos. Creio que estes pontos so suficientes para a minha concluso. Embora essas mudanas na GG, permitindo a incorporao dessas idias que tiveram origem na SG, sejam resultados de mudanas criativas na heurstica da GG, posteriores ao perodo das guerras lingsticas, e pode-se dizer at mesmo resultantes do debate com a SG, o fato de que essa mudanas puderam ocorrer sem descaracterizar a GG sem que precisemos dizer que a GG dos anos 1990 um programa de investigao diferente do programa da GG dos anos 1970 parece ser um bom indcio de que essas mudanas no eram incompatveis com o ncleo da GG. E se as mudanas puderam ocorrer porque o ncleo no as impedia, no h o que concluir seno que SG compartilhava esse ncleo com GG. Assim, a concluso imperativa: SG no passou de uma proposta de heurstica alternativa no interior do programa que podemos, de forma geral, chamar de Gramtica Gerativa.

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Creio que com isso consigo dar uma resposta questo que Dascal deixa aberta em seu texto de 1978: qual a natureza do movimento que se chamou de Semntica Gerativa e quais as relaes epistemolgicas que este movimento manteve com a GG e com o EA? Creio, tambm, que consigo mostrar que a Metodologia dos Programas de Investigao de Lakatos apresenta algumas vantagens sobre a metodologia de Kuhn como modelo condutor de investigaes historiogrficas na rea dos estudos da linguagem. Tenho claro, no entanto, que nada definitivo e que minhas concluses podem ser contestadas luz de novas investigaes. Acredito que parte da importncia desta pequena investigao historiogrfica reside na semelhana que podemos apontar entre o que ocorreu nas guerras lingsticas e o que vemos ocorrer em nossos dias no debate que se realiza entre os gerativistas defensores do Programa Minimalista e os gerativistas que ainda defendem a Teoria de Princpios e Parmetros no-minimalista. Novamente, estamos diante de duas heursticas em confronto, no interior de um mesmo Programa. O Minimalismo tem, neste novo confronto, papel semelhante ao que exerceu a Teoria Padro Estendida: proposta de mudana na heurstica para fazer frente a um movimento que podia colocar em risco a consistncia do Programa pela proliferao das anlises e dos mecanismos tericos destinados a obter adequao descritiva. De qualquer forma, ainda cedo para qualquer avaliao: no temos suficiente distanciamento temporal para dizer o que, de fato, est em jogo, nem suficiente documentao para fazer uma descrio historiogrfica minimamente consistente. Tudo que podemos dizer sobre este novo conflito que, de sada, pode ser caracterizado como um conflito, por enquanto, muito menos traumtico do que foram as guerras lingsticas est ainda no campo da especulao e no ser com especulaes que faremos a histria das cincias lingsticas.

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