o singular plural lahire

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O singular plural * Bernard Lahire Il se mit à rechercher parmi les innombrables impressions que le temps avait déposées, feuille à feuille, pli à pli, doucement, continuellement, sur son cerveau. (Virginia Woolf, Vers le phare, Gallimard, “Folio”, Paris, 1996) No momento em que o Homem se encontra sob a tendên- cia em ser cada vez mais apresentado ou idealizado como um ser isolado, autônomo, responsável, guiado por sua razão, oposto à “sociedade” contra a qual ele defenderia sua “autenti- cidade” ou sua “singularidade”, as ciências sociais possuem mais do que nunca o dever de revelar a fabricação social dos indivíduos. Pois o social não se reduz ao coletivo ou ao geral porquanto se encontra nas dobras as mais singulares de cada indi- víduo. Tal qual eu a concebo, uma sociologia à escala dos indi- víduos responde assim à necessidade histórica de pensar os fa- tos sociais no seio de uma sociedade em que se sacraliza o indi- víduo como maneira eficaz de responsabilizá-lo por seus pró- prios insucessos. * “Le singulier pluriel”. Este artigo corresponde ao prefácio do livro, do mesmo autor, Dans les plis singuliers du social: individus, institutions, socialisations. Paris: La Découverte, 2013. Tradução de Thiago Panica Pontes.

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o singular plural de Lahire

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  • O singular plural*

    Bernard Lahire

    Il se mit rechercher parmi les innombrables impressions que le temps avait dposes, feuille feuille, pli pli, doucement, continuellement, sur

    son cerveau. (Virginia Woolf, Vers le phare,

    Gallimard, Folio, Paris, 1996)

    No momento em que o Homem se encontra sob a tendn-

    cia em ser cada vez mais apresentado ou idealizado como um ser isolado, autnomo, responsvel, guiado por sua razo, oposto sociedade contra a qual ele defenderia sua autenti-cidade ou sua singularidade, as cincias sociais possuem mais do que nunca o dever de revelar a fabricao social dos indivduos. Pois o social no se reduz ao coletivo ou ao geral porquanto se encontra nas dobras as mais singulares de cada indi-vduo. Tal qual eu a concebo, uma sociologia escala dos indi-vduos responde assim necessidade histrica de pensar os fa-tos sociais no seio de uma sociedade em que se sacraliza o indi-vduo como maneira eficaz de responsabiliz-lo por seus pr-prios insucessos.

    * Le singulier pluriel. Este artigo corresponde ao prefcio do livro, do mesmo autor, Dans les plis singuliers du social: individus, institutions, socialisations. Paris: La Dcouverte, 2013. Traduo de Thiago Panica Pontes.

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    O interesse que experimentei, desde os primeiros anos de meu percurso cientfico, pela teoria do habitus me conduziu progressivamente a forjar a convico segundo a qual se faz ne-cessrio examinar o mundo social escala dos indivduos. A concepo de que existe um social (ou uma histria) em estado incorporado, sob a forma de disposies a agir, a crer, a sentir, etc., me parece fundamental quando nos propomos compreen-der as prticas ou os comportamentos.

    Este interesse se acompanhou entretanto de um questio-namento, teoricamente argumentado e empiricamente funda-mentado, de um certo nmero de aspectos do conceito de habi-tus. O ponto principal que me levou destacadamente a sistema-tizar a mudana de escala e de ponto de vista do conhecimento concerne questo da transferibilidade das disposies, mais postulada do que verificada empiricamente pela teoria do habi-tus enquanto sistema de disposies durveis e transferveis. Ao observar o mundo social escala individual, tomamos ra-pidamente conscincia do fato de que as influncias sociali-zadoras que modelam os indivduos esto longe de ser perfei-tamente coerentes, contrariamente ao que se pressupe quando se evoca abstratamente as classes de condies de existncia constitutivas dos habitus, que os indivduos portanto raramente possuem patrimnios de disposies homogneas, e, enfim, que as disposies (mais ou menos fortemente constitudas e mais ou menos heterogneas) de que eles so portadores no se transfe-rem sistematicamente de uma situao outra.

    Visando explicitar e nomear o tipo de programa que eu desenvolvia, comecei a falar em sociologia psicolgica,1 inici-almente sem ter ao esprito que mile Durkheim e Marcel

    1 B. Lahire, Lhomme pluriel. Les ressports de laction, Nathan, Essais & Recherches, Paris, 1998, p. 223-239. (N.T. Homem plural: os determinantes da ao. Petrpolis: Editora Vozes, 2002.)

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    Mauss haviam eles mesmos utilizado algumas vezes esta ex-presso ou expresses prximas (sociopsicologia ou psico-logia coletiva).2 A inteno principal era para mim sublinhar a legitimidade cientfica da questo da variao individual3 dos comportamentos, evidente em uma parte da psicologia porm ausente do domnio da sociologia. Meu projeto cientfico no saa portanto do domnio das cincias sociais visto que consis-tia em uma resposta lgica aos problemas oriundos da teoria do habitus e por conseqncia no havia nenhuma razo em posicion-lo sob o estandarte disciplinar da psicologia (diferen-cial, social, coletiva ou outra).

    Ao utilizar a partir de ento mais freqentemente a ex-presso sociologia escala individual, eu me esforo em evi-tar todas as expectativas (frustradas) logicamente passveis de serem engendradas pela expresso sociologia psicolgica. Nenhuma dvida de que uma parte do que se faz e se pensa em psicologia social hoje poderia ser considerado como legiti-

    2 Marcel Mauss menciona indistintamente psicologia coletiva ou sociologia psicolgica em Rapports rels et pratiques de la psychologie et de la sociologie (1924), in M. Mauss, Sociologie et anthropologie, PUF, Quadrige, Paris, 1991, p. 283-310. Durkheim utiliza a expresso sociopsicologia em De la division du travai social (1893), PUF, Quadrige, Paris, 1991, p. 341 e escreve alguns anos mais tarde que a psicologia coletiva a sociologia em sua totalidade (Reprsentations individuelles et reprsentations collectives, Revue de mtaphysique et de morale, tome VI, mai 1898). Cf. tambm M. Halbwachs, La psychologie collective daprs Charles Blondel, Revue critique, n 107, 1929, p. 444-456; La psychologie collecive du rasionnement, Zeitschrift fr Sozialforschung, 1938, p. 357-374 e Conscience individuelle et esprit collectif, American journal of sociology, vol.44, 1939, p. 812-822. Maurice Halbwachs foi inclusive eleito em 1939 ao Collge de France para uma cadeira intitulada Psicologia coletiva. 3 Variao que pode ser intra-individual (um mesmo indivduo agindo, pensando ou sentindo diferentemente em contextos diferentes) ou inter-individual (dois indivduos, da mesma classe social ou da mesma famlia, agindo, pensando ou sentindo diferentemente).

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    mamente sociolgico, apesar de sua vinculao institucional psicologia. Mas isto j uma outra histria.

    A fronteira entre o domnio da sociologia e o domnio da psicologia no cessou, no decurso histrico destas disciplinas, de se constituir como objeto de debates e de ser deslocada. To-memos dois exemplos emblemticos: Erving Goffman e Nor-bert Elias. Atualmente canonizado como socilogo mundial-mente conhecido e reconhecido, o primeiro no foi menos per-cebido no incio de sua trajetria perto do fim dos anos 1950 nos Estados Unidos como um pesquisador de perfil psicolo-gia social,4 devido ao fato de interessar-se por questes situa-das no mbito das interaes inter-individuais ou s relaes dos indivduos com as situaes sociais, e menos aos grupos e suas inter-relaes. Em um contexto totalmente outro, sabemos que o segundo desenvolvia seus trabalhos, no decorrer dos anos 1950 na Inglaterra, sob esta mesma rubrica de psicologia social. Podemos nos perguntar porque aquilo que aparece a uma poca como dizendo respeito psicologia social pode, em outra poca, ser percebido como se situando no corao da dis-ciplina sociolgica? A evoluo das percepes concernentes ao que sociolgico e ao que no o implica no delicado proble-ma da definio do social, e mais precisamente na questo das lutas cientficas acerca do monoplio da definio legtima do social.

    Assim, quando falei em sociologia psicolgica, depois em sociologia escala individual, o fiz para designar o tipo de tra-balho que me parecia indispensvel conduzir se desejssemos fazer do social em estado incorporado ou do social individualizado outra coisa que no uma simples evocao retrica unicamente

    4 Y. Winkin, Erving Goffman: portrait du sociologue en jeune homme, In E. Goffman, Les moments et leurs hommes, Seuil/Minuit, Paris, 1988, p. 13-92. 1988, p. 87.

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    destinada a lembrar que o social se encontra tanto no interior dos atores como em seu exterior. Por meio de quais operaes o exterior se dobra* no interior e como se organizam, no seio de cada indivduo, e nas suas relaes com os distintos contextos estruturantes de sua ao, os produtos destes dobramentos?

    A metfora do social em estado dobrado ou desdobra-do no mais do que uma maneira sugestiva de se colocar e representar as coisas. Ela significa que o mundo social no se apresenta somente enquanto realidades exteriores (coletivas e institucionais), pois que existe tambm em estado dobrado, quer dizer sob a forma de disposies e de competncias incor-poradas. Cada indivduo porta em si competncias e disposi-es a pensar, sentir e agir, que so os produtos de suas experi-ncias socializadoras mltiplas.5

    Tudo aquilo que institucional e cientificamente decompos-to (a escola, a famlia, a empresa, o clube esportivo, o partido poltico ou o sindicato, a Igreja, o grupo de pares, etc.) se recom-pe (no sentido de um entrecruzamento) de uma certa maneira em cada indivduo.6 Estes dois fatos remetem s realidades es-truturais de massa ou de classe, aos interesses coletivos comuns e s formataes e condicionantes coletivos de uma parte, e s possibilidades infinitas de variaes sobre os mesmos temas que constituem os indivduos em sua histria relativamente singular, de outra. Estes ltimos atravessam e experienciam,

    * N.T. Pli e plissements, imagens mobilizadas pelo autor que em portugus correspondem a dobras e, quanto ao ato, dobramentos ou plissagens. 5 B. Lahire, Portraits sociologiques. Dispositions et variations individuelles, Nathan, collection Essais & Recherches, Paris, 2002. (N.T. Retratos sociolgicos: disposies e variaes individuais. So Paulo: Artmed, 2004.) 6 O psiclogo Henri Wallon defendia, em relao s crianas, que muitos ambientes podem se recompor no interior do mesmo indivduo e mesmo se encontrar em conflito Cf. H. Wallon, Les milieux, les groupes et la psychogense de lenfant., Cahiers internationaux de sociologie, 1954, p.5. Sublinhado por mim.

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    diacrnica e sincronicamente, espaos, ambientes, grupos ou universos sociais que podemos optar por estudar separada-mente. Entretanto, o desdobrado e o dobrado, e decomposto e o recomposto, o coletivo e o singular no se opem de modo al-gum. Se trata somente de pontos de vista diferentes e comple-mentares acerca de uma mesma e nica realidade social.

    Se representarmos o espao social em suas diferentes di-menses (econmica, poltica, jurdica, cultural, esportiva, se-xual, moral, religiosa, cientfica, etc.; dimenses elas mesmas decomponveis em subdimenses) maneira de uma folha de papel, ento cada indivduo ser comparvel a uma folha amassada. Estas dimenses se dobram sempre de uma forma relativamente singular em cada ator e o pesquisador que se in-teressa pelos atores particulares encontra em cada um deles o produto de um conjunto de dobramentos do espao social. As cincias sociais tm estado preocupadas h muito tempo exclu-sivamente com o estudo do social em estado desdobrado, de-sindividualizado, dessingularizado, priorizando o estudo de estruturas sociais, grupos, instituies, organizaes ou siste-mas de ao. Chega-se mesmo, em certos casos, at a rejeio do estudo de caso individual e da biografia. Preteridos pela porta, todavia os indivduos geralmente retornam pela janela, forando os pesquisadores a adaptar suas ferramentas tericas e metodolgicas de modo a poderem pensar a especificidade de seu objeto e as relaes entre o dobrado e o desdobrado.7

    7 isto que fiz em um livro consagrado a Franz Kafka, sua biografia sociolgica e sua obra literria. Notadamente demonstrei como era necessrio remontar s experincias socializadoras anteriores quelas do jogo literrio (famlia, escola), observar as experincias paralelas quela do jogo literrio (experincias profissionais, polticas, sentimentais, etc.), e mesmo compreender as grandes estruturas sociais (nacionais, lingsticas, religiosas, sociais) do Imprio austro-hngaro, para chegarmos a compreender a obra literria de Kafka. Cf. B. Lahire,

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    A utilidade em sugerir-se a metafrica da dobra est tam-bm no fato de que o interior no seno um exterior em estado dobrado. No h para os indivduos nenhuma existncia possvel fora do tecido social. E, mais ainda, as fibras deste te-cido, que se cruzam e entrecruzam, so constitutivas de cada in-divduo. O interior consiste no exterior dobrado e no possui assim nenhuma espcie de especificidade alm das capacidades gerais de um crebro e de um sistema nervoso pronto a se nu-trir de todas as experincias humanas possveis.8 O mito da in-terioridade,9 que faz desta ltima uma realidade autnoma, an-terior a toda forma de experincia, desta forma seriamente minado por dentro pelas cincias sociais.

    Entretanto, a via na qual me engajei foi por vezes mal compreendida no interior de um universo cientfico muito cli-vado. Assim, certos comentadores precipitados me situaram ao lado daqueles que pensam que as classes sociais no existem mais, daqueles que delas se desinteressam ou que, pela escolha da escala de anlise, fazem desaparecer todas as espcies de ob-jetos macrosociais (instituies ou ambientes assim como gru-pos ou classes). suficiente no entanto conferir a importncia das classes sociais e das instituies em meus sucessivos traba-lhos, inclusive os estudos de caso que situam sempre os indiv-duos estudados no espao social e lhes apreendem no quadro das instituies familiares, escolares, profissionais etc., para fa-zer cair por terra tais juzos calcados mais no apressado desejo em desqualificar o adversrio do que no exame atento de seus trabalhos. O estudo do social em estado dobrado no teria sentido

    Franz Kafka. lments pour une thorie de la cration littraire, La Dcouverte, Laboratoire des sciences sociales, Paris, 2010. 8 P.-M. Lledo e J.-D. Vicent, Le cervau sur mesure, Odile Jacob, Paris, 2012. Cf. Chapitre 4: Le cervau dispos. 9 J. Bouveresse, Le mythe de lintriorit. Exprience, signification et langage priv chez Wittgenstein, Minuit, Paris, 1987.

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    algum caso no pudesse se apoiar no estudo do social em estado desdobrado. No porque nos afastamos, na medida em que a lgica da pesquisa o impe, da anlise macroscpica das dis-tncias entre as classes sociais para nos interessar nas comple-xidades disposicionais e nas variaes interindividuais ou in-tra-individuais de indivduos socialmente situados que questi-onamos a existncia de tais distncias.10 A microbiologia mole-cular nunca foi acusada de negar a existncia dos planetas; o mesmo deveria suceder nas cincias sociais.

    No somente as classes sociais (origens sociais e classes de pertencimento) estiveram onipresentes em meus trabalhos na definio dos casos individuais estudados como eu sempre par-ti desta base antes de complexificar o modelo de determina-es. Assim, no me ocorreria jamais ao esprito fazer da idade ou do sexo, da filiao religiosa ou poltica, da localizao na fratria ou da origem tnica, etc., dimenses independentes das condies de classe definidas a um s tempo por um de-terminado nvel de rendimento e de propriedades escolares e culturais. Complexificar a rede de determinaes que pesam sobre cada indivduo singular em nada autoriza estilhaar toda distino entre propriedades principais e secundrias ou a to-mar certas singularidades ou certas dimenses da condio de classe por princpios explicativos separveis e independentes.

    Mas o pertencimento de classe assim como as origens de classe no explicam tudo. O marxismo concreto, escrevia Sar-tre, deve aprofundar os homens reais e no dissolv-los em um banho de cido sulfrico.11 Em matria literria, certos marxis-tas puderam afirmar que o realismo de Flaubert se encontra em relao de simbolizao recproca com a pequena burguesia

    10 Cf. B. Lahire, Les classes sociales: objet dtudes ou instrument de disqualification?, Mouvements, n 29, septembre-octobre 2003, p. 179-180. 11 J.-P. Sartre, Questions de mthode, Gallimard, Tel, Paris, 1986, p.44.

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    do Segundo Imprio, contudo sem explicar porque Flaubert preferiu a literatura a tudo, nem porque ele viveu como um anacoreta, tampouco porque escreveu estes livros no lugar da-queles de Duranty ou dos Goncourt.12 E poderamos desen-volver o mesmo tipo de comentrio acerca da posio no cam-po ou do pertencimento a tal ou qual instituio. Quando te-mos necessidade de compreender as razes pelas quais tal indivduo particular agiu do modo como fez, no podemos mais nos contentar em recorrer apenas s grandes determina-es de grupo, classe ou campo. A investigao exige ento que o conjunto dos espaos de modelagem social (familial, escolar, profissional, cultural, poltico, religioso, esportivo, etc.) por que o indivduo passou sejam levados em conta. Comeando pela famlia particular no seio da qual ele experienciou sua classe. E deste gnero de complexificao e sutileza que precisa, desta-cadamente, a sociologia dos criadores ou dos intelectuais como maneira compreenso das obras. Mas ainda que desejssemos explicar o comportamento familial, cultural ou profissional sin-gular de um operrio da construo civil ou de uma dona de casa, o procedimento no seria distinto. A relativa singularida-de de um indivduo, produzida sob o efeito de uma complexa rede de determinaes sociais, no se restringe aos fenmenos de excepcionalidades socialmente reconhecidas (e.g. o gnio de Mozart ou de Poussin).

    Quando a lgica da pesquisa nos conduz a estudar o com-portamento singular de um determinado indivduo mais do que o comportamento coletivo de indivduos considerados enquanto mem-bros de grupos, comunidades ou classes, no podemos mais nos contentar em descrever e analisar a realidade em seus grandes traos. Buscar compreender a natureza da obra de um artista

    12 Ibid., p.56.

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    ou de um certo erudito, a situao escolar de um determinado aluno, a passagem ao ato criminoso, a tentativa de suicdio, o comportamento alimentar de uma pessoa anorxica ou bulmi-ca ou o destino singular de um indivduo, com suas etapas obrigatrias assim como suas bifurcaes e rupturas surpreen-dentes, requer a incurso na complexidade das determinaes tanto disposicionais como contextuais.

    Mais surpreendente ainda, portanto, a maneira como O homem plural e as pesquisas que consistiram em realizaes par-ticulares de seu programa foram associados a uma viso me-nos determinista de um ator supostamente mais livre e aut-nomo. Aquilo sobre o que insisto , ao contrrio, o fato de que os atores so multisocializados e multideterminados e que preci-samente por esta razo que eles no esto nas melhores condi-es para sentir ou obter a intuio prtica do peso destes de-terminismos. Quando o ator plural e sobre ele se exercem for-as diferentes segundo os contextos nos quais se encontra, ele no pode seno experimentar o sentimento de uma relativa li-berdade de comportamento. Poderamos dizer que somos de-masiado multisocializados e multideterminados para adqui-rirmos plena conscincia de nossos determinismos. Se nos ten-tamos a chamar sentimento de liberdade o produto desta multideterminao, por qu no? Entretanto este sentimento nada tem que ver com a liberdade soberana do ator que certas filosofias da ao nos apregoam em permanncia.

    Eu no saberia dizer o que mais consternador para mim: constatar que este gnero de leitura de meus trabalhos em parte realizado por pessoas que me felicitam por participar do coro individualista ao fornecer a imagem de um indivduo mais livre, remontando suas identidades ou inventando sua vida, ou por outro lado receber os ataques daqueles que, pelos mesmos motivos, me desaprovam. Algumas vezes desejara-

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    mos simplesmente partir na ponta dos ps e deixar que ambas as partes adversrias se digladiem entre si.13 [...]*

    13 Eu penso aqui situao perfeitamente ubuesca propsito de um livro (A cultura dos indivduo. So Paulo: Artmed, 2006) comentado de modo totalmente caricatural e distorcido por um jornalista do Monde (Bertrand Le Gendre, La culture, le numrique et le Karaok, Le Monde, 25 novembre 2004), citado com igual impropriedade por um jornalista de France Inter que se apoiava no mesmo artigo publicado (Yves Decaens, revue de presse du matin, France Inter, le 25 novembre 2004: De fato e o que demonstra Bernard Lahire em seu livro , nesta poca de internet, do DVD, do digital, da televiso por satlite a cultura tornou-se um vasto self-service onde cada um degusta de acordo com seus gostos e seu humor, de maneira totalmente imprevisvel!), para ainda me ver citado em 13 de dezembro de 2004 de maneira crtica por um animador do site ACRIMED (Action-Critique-Mdias), o qual deixa transparecer que os comentrios dos dois jornalistas em questo seriam fidedignos obra. (http://www.acrimed.org>). Em uma tal circulao de comentrios, apenas uma coisa se encontra ausente em todas as partes: uma leitura rigorosa do texto que no diz em lugar algum aquilo que cada um, com seus interesses e inclinaes prprias, pretende faz-lo dizer. * O restante do artigo, correspondente ao mencionado prefcio, se refere apresentao dos captulos do que se segue no livro Dans les plis singuliers du social: individus, institutions, socialisations.