o show de luzes do neotrópico o comportamento sincrônico ... ii/44.pdf · ii simpÓsio sobre a...

6
II SIMPÓSIO SOBRE A BIODIVERSIDADE DA MATA ATLÂNTICA. 2013 261 O show de luzes do neotrópico O comportamento sincrônico do vaga-lume de Mata Atlântica Bicellonycha sp.8 Pedro R. Busana¹; Raphael M. Santos²; Vadim R. Viviani³ 1,2,3. Universidade Federal de São Carlos, Campus Sorocaba, Rodovia João Leme dos Santos, km 110, Bairro do Itinga, SP-264, CEP 18052-780, Laboratório de Bioquímica e Biotecnologia de Sistemas Bioluminescentes, Projeto Biota-Bioluminescente; ¹[email protected]. Introdução Das mais de 2.000 espécies de vaga-lumes descritas, menos de 1% apresentam comportamento sincrônico (Branham, 2010). O termo “show de luzes” (Faust, 2010), refere-se a este comportamento visto em algumas espécies norte-americanas e asiáticas que sincronizam seus sinais luminosos quando reunidas em grandes grupos. Estes, realizados principalmente por machos, buscam atrair uma minoria de fêmeas através da sincronia dos seus flashes (Copeland & Moiseff, 1995). As razões exatas para o sincronismo ainda são motivo de debate, mas se aceita que o fenômeno tenha sido selecionado para aumentar o sucesso reprodutivo em relação aos machos isolados e assincrônicos (Buck, 1988). O fenômeno do sincronismo foi primeiro estudado em vaga-lumes do sudeste asiático e da melanésia, em países como Japão, Tailândia, Malásia e Papua Nova Guiné (Lloyd, 1973), sendo depois descrito em espécies neárticas de estados americanos como Texas, Arizona e Tenesse (Otte & Smiley, 1977; Buck, 1988; Copeland & Moiseff, 2000). Na região oriental, os vaga-lumes sincrônicos (Luciola e Pteroptyx) coordenam seus flashes para acenderem e apagarem simultaneamente enquanto fixos na vegetação (Buck, 1988). Já vaga-lumes norte-americanos (poucos do gênero Photinus e Photuris frontalis), tendem a realizar sincronismo intermitente, intercalando seu brilho em pleno voo e criando um efeito em onda (Copeland & Moiseff, 2000). O Brasil apresenta o caso inédito da espécie de Mata Atlântica Bicellonycha sp.8 (Viviani, 2001), estudada afundo somente neste trabalho. Seu comportamento foi observado no Parque Estadual Intervales (região sul do Estado de São Paulo) ao longo de dois anos, sempre nos períodos de agosto até abril. O resultado das atividades mostrou características do sincronismo neotropical que são análogas ao das espécies orientais e neárticas. Todavia, o ambiente de Mata Atlântica selecionou comportamentos únicos para a espécie, tal como sua distribuição ascendente nas bordas da mata e a realização tanto sincronismo contínuo quanto intermitente durante vários ciclos por noite. Materiais e Métodos O estudo foi realizado no Parque Estadual Intervales, localizado na região sul do Estado de São Paulo e cuja ampla área de mata atlântica, predominantemente de Floresta Ombrófila Densa, apresenta-se bem conservada. Iniciadas em 2011, as coletas mensais ocorreram de agosto até abril, buscando integrar as estações em que a maioria das espécies de vaga-lumes está ativa no hemisfério sul (Viviani, 2001). A duração das

Upload: dinhcong

Post on 09-Feb-2019

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

II SIMPÓSIO SOBRE A BIODIVERSIDADE DA MATA ATLÂNTICA. 2013 261

O show de luzes do neotrópico

O comportamento sincrônico do vaga-lume de Mata Atlântica Bicellonycha sp.8

Pedro R. Busana¹; Raphael M. Santos²; Vadim R. Viviani³

1,2,3.Universidade Federal de São Carlos, Campus Sorocaba, Rodovia João Leme dos Santos, km 110, Bairro do Itinga, SP-264, CEP 18052-780, Laboratório de Bioquímica e Biotecnologia de Sistemas Bioluminescentes, Projeto Biota-Bioluminescente; ¹[email protected].

Introdução Das mais de 2.000 espécies de vaga-lumes descritas, menos de 1% apresentam

comportamento sincrônico (Branham, 2010). O termo “show de luzes” (Faust, 2010), refere-se a este comportamento visto em algumas espécies norte-americanas e asiáticas que sincronizam seus sinais luminosos quando reunidas em grandes grupos. Estes, realizados principalmente por machos, buscam atrair uma minoria de fêmeas através da sincronia dos seus flashes (Copeland & Moiseff, 1995). As razões exatas para o sincronismo ainda são motivo de debate, mas se aceita que o fenômeno tenha sido selecionado para aumentar o sucesso reprodutivo em relação aos machos isolados e assincrônicos (Buck, 1988).

O fenômeno do sincronismo foi primeiro estudado em vaga-lumes do sudeste asiático e da melanésia, em países como Japão, Tailândia, Malásia e Papua Nova Guiné (Lloyd, 1973), sendo depois descrito em espécies neárticas de estados americanos como Texas, Arizona e Tenesse (Otte & Smiley, 1977; Buck, 1988; Copeland & Moiseff, 2000). Na região oriental, os vaga-lumes sincrônicos (Luciola e Pteroptyx) coordenam seus flashes para acenderem e apagarem simultaneamente enquanto fixos na vegetação (Buck, 1988). Já vaga-lumes norte-americanos (poucos do gênero Photinus e Photuris frontalis), tendem a realizar sincronismo intermitente, intercalando seu brilho em pleno voo e criando um efeito em onda (Copeland & Moiseff, 2000).

O Brasil apresenta o caso inédito da espécie de Mata Atlântica Bicellonycha sp.8 (Viviani, 2001), estudada afundo somente neste trabalho. Seu comportamento foi observado no Parque Estadual Intervales (região sul do Estado de São Paulo) ao longo de dois anos, sempre nos períodos de agosto até abril. O resultado das atividades mostrou características do sincronismo neotropical que são análogas ao das espécies orientais e neárticas. Todavia, o ambiente de Mata Atlântica selecionou comportamentos únicos para a espécie, tal como sua distribuição ascendente nas bordas da mata e a realização tanto sincronismo contínuo quanto intermitente durante vários ciclos por noite.

Materiais e Métodos

O estudo foi realizado no Parque Estadual Intervales, localizado na região sul do Estado de São Paulo e cuja ampla área de mata atlântica, predominantemente de Floresta Ombrófila Densa, apresenta-se bem conservada. Iniciadas em 2011, as coletas mensais ocorreram de agosto até abril, buscando integrar as estações em que a maioria das espécies de vaga-lumes está ativa no hemisfério sul (Viviani, 2001). A duração das

262 BUSANA ET AL: O SHOW DE LUZES DO NEOTRÓPICO

expedições variou de dois a quatro dias, com aproximadamente três horas de atividades por noite contadas após o pôr do sol. A área de coleta se restringiu ao circuito correspondente à sede de pesquisa do parque e as trilhas que circundam o Monte Rosa. Ao todo, foram seis pontos distintos com atividade sincrônica confirmada. Foram feitas coletas direcionadas para a captura e observação de larvas e adultos da espécie Bicellonycha sp.8. A coleta manual foi utilizada com indivíduos encontrados sobre a vegetação e a coleta com redes de captura (puçás) para indivíduos em pleno voo. A coleta de larvas se justificou para fins de criação e para se aferir se o sincronismo poderia estar presente já no estágio larval (Viviani, 2001). A maior parte das atividades de campo se resumiu na observação e descrição do comportamento de grupo dos vaga-lumes. Dentre os instrumentos utilizados para registros analíticos e de medição estão, principalmente, relógio, fotômetro, termômetro, cronômetro, trena e câmera fotográfica digital. Buscou-se determinar quais tipos de interferências poderiam interromper o sincronismo, utilizando para isso instrumentos simples, como luzes de lanternas de LED de alta luminosidade, agitação na vegetação e barulho de automóvel. Além disso, analisou-se o efeito de interferências naturais, como luz da lua, chuva, vento e temperatura.

Resultados e Discussão

O período do ano de início das atividades de larvas e adultos diferiu

consideravelmente, tendo as primeiras aparecido no começo de setembro e os adultos no começo de janeiro (com ambos finalizando suas atividades em meados de abril). A atividade de ambos começou de 10 a 40 minutos depois do pôr-do-sol, com os adultos sempre brilhando antes das larvas.

Luz direta de lanternas de LED, movimentação no mato e chuva pesada representaram interferências significativas para interromper o sincronismo. Luzes do luar e de construções próximas não afetaram a atividade dos vaga-lumes, bem como qualquer tipo de barulho ou vento forte. O sincronismo foi intenso em temperaturas em torno dos 20ºC, sendo que a noite mais fria marcou 12ºC e a mais quente chegou a 23ºC.

A natureza do sinal das larvas é do tipo contínuo, com uma cor que tende para o verde, diferente dos flashes amarelados dos adultos. Observações de campo apontam que o brilho conjunto entre as larvas está mais relacionado a um ciclo circadiano do que sincrônico, já que não há um reconhecimento claro entre os indivíduos, mas sim uma resposta conjunta a um mesmo estímulo ambiental.

Quanto à atividade dos adultos, somente os machos participaram do sincronismo principal e sua densidade populacional foi sempre muito superior à das fêmeas; relação esta semelhante à descrita em outras espécies sincrônicas (Lloyd, 1973). O início do sincronismo foi marcado por muitos indivíduos o realizando em pleno voo, o que se inverteu ao longo da noite com a maioria dos vaga-lumes sincronizando fixa na vegetação. Este comportamento caracteriza uma junção daquilo que é visto em espécies neárticas, de sincronismo aéreo, e asiáticas, de sincronismo sedentário (Buck, 1988). A maior parte do tempo, o sincronismo observado se assemelhou muito ao intermitente característico dos gêneros Photinus e Photuris (Copeland & Moiseff, 2000).

Porém, em Bicellonycha sp.8 o efeito ondulatório pode ser direcional ou difuso. Vários ciclos de sincronismo intermitente podem estar intercalados por momentos de blecaute. Houve também a ocorrência de sincronismo contínuo, o mesmo tipo descrito para os gêneros Luciola e Pteroptyx (Lloyd, 1973); este tipo teve um intervalo de

II SIMPÓSIO SOBRE A BIODIVERSIDADE DA MATA ATLÂNTICA. 2013 263

duração bem mais curto do que o sincronismo intermitente, se encerrando quase sempre em blecaute.

A conformação espacial vista no sincronismo da Bicellonycha sp.8 se caracterizou com indivíduos se distribuindo por grandes extensões horizontais de mata, mas dificilmente sincronizaram acima de 1,50m de altura do chão, mesmo os vaga-lumes que estavam em pleno voo. Além disso, a população sincrônica se concentrou preferencialmente nas margens de trilhas, locais onde há a uma ascensão gradual da vegetação. Supõe-se que esta escolha se deva a melhor visualização entre os indivíduos, cujo reconhecimento é facilitado em uma disposição ascendente regida pelo chamado “efeito arquibancada”. Isso foi sugerido porque o sincronismo só foi visto em regiões sujeitas ao efeito de borda, não tendo sido observado no interior da mata, tal como ocorre com espécies de florestas neárticas e asiáticas. Notou-se que, assim como em espécies norte-americanas e asiáticas, os machos evitaram sincronizar a uma distância inferior a 10 cm (Buck, 1938; Case, 1980), exibindo multiflashes e comportamento territorial agressivo para expulsar vizinhos muito próximos.

Conclusões

O sincronismo visto em Bicellonycha sp.8 na Região Neotropical apresenta diversas características análogas ao das espécies asiáticas e neárticas. Sua notoriedade, porém, deriva do conjunto de características do ambiente de Mata Atlântica que pareceu fusionar em Bicellonycha sp.8 os tipos de sincronismo descritos nos gêneros de vaga-lume do Novo e do Velho Mundo.

Agradecimentos

Agradeço ao CNPq e a FAPESP pelo financiamento e apoio ao projeto.

Referências Bibliográficas

Branham, M. 2010, Greenemeier, L. 2010. Acasalamento de vaga-lumes dá pistas sobre

conexões do cérebro. Scientific American Brasil, Notícias. Disponível em: www2.uol.com.br/sciam/noticias/acasalamento_de_vaga-lumes_da_pistas_sobre_conexoes_do_cerebro.html. (12 de Agosto de 2013)

Buck, J. 1938. Synchronous Rhythmic Flashing of Fireflies. The Quarterly Review of Biology, 13(3):301-314.

Buck, J. 1988. Synchronous Rhythmic Flashing of Fireflies. II. The Quarterly Review of Biology, 63(3): 265-289.

Case, J. 1980. Courting Behavior in a Synchronously Flashing, Aggregative Firefly, Pteroptyx tener. Biol.Bull., 159:613-625.

Cicero, J. M. 1983. Lek Assembly and Flash Synchrony in the Arizona Firefly Photinus knulli Green (Coleoptera:Lampyridae). The Coleopterists Bulletin, 37(4): 318-342.

Copeland, J. & Moiseff, A. 1995. The Occurrence of Synchrony in the North American Firefly Photinus carolinus (Coleoptera: Lampyridae). Journal of Insect Behavior, 8(3):381-394.

Copeland, J. & Moiseff, A. 2000. A New Type of Synchronized Flashing

264 BUSANA ET AL: O SHOW DE LUZES DO NEOTRÓPICO

Faust, L. 2010. Natural History and Flash Repertoire of the Synchronous Firefly Photinus carolinus (Coleoptera: Lampyridae) in the Great Smoky Mountains National Park. Florida Entomologist, 93(2):208-217. in a North American Firefly. Journal of Insect Behavior, 13(4): 597-612.

Lloyd, J. E. 1973. Fireflies of Melanesia: Bioluminescence, Mating Behavior, and Synchronous Flashing (Coleoptera: Lampyridae). Environmental Entomology, 2(6):991-1008.

Milius, S. 1999. U.S. Fireflies Flashing in Unison. Science News, 155(11): 168-171.

Otte, D. & Smiley, J. 1977. Synchrony in Texas Fireflies with a Consideration of Male Interaction Models. Biology of Behaviour, 2:143-158.

Tyrrell, A. et al, 2009. Biologically Inspired Synchronization for Wireless Networks. Studies in Computational Intelligence, 69:47-62.

Vadim, V. 2001. Fireflies (Coleoptera: Lampyridae) from Southeastern Brazil: Habitats, Life History, and Bioluminescence. Annals of Entomological Society of America, 94(1): 129-145.

Figura 1. Foto por satélite do circuito correspondente à área de coleta e destacando os pontos de sincronismo.

II SIMPÓSIO SOBRE A BIODIVERSIDADE DA MATA ATLÂNTICA. 2013 265

a)

b)

c)

Figura 2. a) Desenho esquemático da larva com vista ventral e dorsal. b) Desenho esquemático do adulto com vista ventral, dorsal e lateral. c) Escala comparativa entre larva, adulto macho e fêmea e com detalhe na morfologia das lanternas.

266 BUSANA ET AL: O SHOW DE LUZES DO NEOTRÓPICO

Figura 3. Desenho comparativo entre a bioluminescência da larva e a do adulto.

Figura 4. a) Sequência esquemática ilustrando o sincronismo intermitente, diferenciando o tipo difuso do direcional; cada algarismo romano representa uma parcela da população brilhando em um tempo específico. b) Sequência esquemática ilustrando o sincronismo contínuo.

Figura 5. Desenho da distribuição espacial dos vaga-lumes adultos durante o sincronismo em ambiente natural.