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VIVIANE MARQUES MIRANDA O SER E A LINGUAGEM EM A PAIXÃO SEGUNDO G.H., TRAVESSIA DO DIZÍVEL AO INDIZÍVEL PELA VIA-CRÚCIS DA LINGUAGEM

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VIVIANE MARQUES MIRANDA

O SER E A LINGUAGEM EM A PAIXÃO SEGUNDO G.H.,

TRAVESSIA DO DIZÍVEL AO INDIZÍVEL PELA VIA-CRÚCIS DA LINGUAGEM

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Dedico a Zita de Paula Rosa, grande pessoa, grande

educadora, grande mulher, grande partícipe em

minha formação. Fez-me renascer dentre os mortos

para uma viva esperança (I Pedro 1, 3) com palavras

salutares (I Timóteo 6, 3).

In memoriam de Virgínia Bueno, Adelino Miranda e

Priscila Olímpio da Silva. Descansem de teus

trabalhos pois tuas obras vos seguem (Apocalipse

14, 13).

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Deus disse: “Faça-se a luz!” E a luz foi feita. (...).

Deus chamou à luz dia, e às trevas noite. (...).

Deus disse: “Faça-se um firmamento entre as águas (...)”.

E assim se fez. Deus chamou ao firmamento céus (...).

Deus disse...” – (Gênesis 1, 3-9)

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RESUMO

Clarice Lispector, cuja escritura persegue uma realidade que lhe escapa, problematizou radicalmente a

linguagem em relação ao ser. Desta sorte, a linguagem de curso exploratório que atravessa “A Paixão Segundo

G.H.” constitui o busílis que examinaremos, partindo da conjetura de que há uma disjunção inevitável entre o

entre o real e a representação, o ser e a linguagem, nessa narrativa. Optamos por tal tema, porque o texto se

compraz num exercício em que se testam as potencialidades e os limites da própria linguagem, alinhando a

diluição do gênero narrativo, a quebra do tempo linear e do espaço físico, havendo o desnudamento contínuo do

processo de narrar, em que se põe em xeque a própria ficção. Pretendemos demonstrar que, nesse texto, a

linguagem não substitui o real ou o ser; em contrapartida, a despeito de não substituí-los, ela é eficaz, no sentido

de que só quando falha a construção, obtém-se o que a linguagem não conseguiu, segundo palavras da própria G.H. Os procedimentos técnicos empregados foram a pesquisa bibliográfica e a descritiva. Esta consistiu no

registro, análise e correlação dos fenômenos observados; aquela, na utilização de documentos impressos e

eletrônicos, com o fito de reunir, sobre o assunto, um referencial teórico que possibilitasse o levantamento de

hipóteses a partir do corpus bibliográfico.

Palavras-chave: ser, linguagem, real, representação.

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SUMÁRIO

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................................ 6

2IMODERAÇÃO E DESMESURA – DIÁLOGOS E REFUTAÇÕES A UMA

TRADIÇÃO.............................................................................................................................8

3 INTERTEXTUALIDADE EM PSGH .............................................................................. 8

3.1 Origem e definições da paródia ................................................................... ......14

3.1.2 A paródia no texto ................................................................................ 16

3.1.2.3 Tratamento paródico dado ao “tópos”.................................................. 33

3.1.2.3.4 Espaço, tempo e enredo na narrativa..................................................35

3.1.2.3.4.5 Um comentário sobre espaço e tempo na narrativa.........................42

3.2 Paráfrase: origem e definições..............................................................................45

3.3 O desgaste da linguagem em PSGH.....................................................................56

3.4 Metalinguagem em PSGH ................................................................................ 58

3.5 A fenda entre o real e a representação em PSGH............................................... 63

3.6 A coisa cerceada, vista por fora............................................................................72

3.7 O sagrado e o profano em PSGH..........................................................................75

3.8 Acerca do nome da protagonista..........................................................................79

4 EPÍLOGO ....................................................................................................................... 80

4.1 A manducação e o esputo.....................................................................................81

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................85

ANEXOS..................................................................................................................................91

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus.”

(João 1, 1)

Narrativa em 1º pessoa, A Paixão Segundo G.H. tem como narradora-personagem:

G.H., que relata a experiência que teve ao comer uma barata. A protagonista é uma mulher

de meia idade, solteira e sem filhos, escultora diletante, de classe média e mora num

apartamento de cobertura. Sua empregada, Janair, pedira as contas após seis meses de

trabalho; então G.H. resolve, na manhã que se segue à demissão da empregada, limpar o

apartamento e decide começar pelo bas-fond. A narradora levanta-se da mesa da cozinha, na

qual ao tomar café da manhã fazia bolinhas de miolo de pão, tira o telefone do gancho para

não ser incomodada e vai executar a tarefa a que se propôs. Quando a patroa chega ao quarto

da ex-empregada se surpreende, pois esperava encontrar um lugar sujo e sombrio, porém o

aposento estava limpo e iluminado. De repente, sai uma barata de dentro do guarda-roupa e

G.H. a esmaga pela cintura, prensando o inseto na porta do móvel de que emergira. A

imagem do ortóptero desencadeia na protagonista uma reflexão profunda sobre suas origens.

Imobilizada no chão, porque caíra entre a cama e o guarda-roupa, presa pelo pé na passagem

estreita dos dois móveis, G.H. olha com repulsa e fascínio a barata e sua massa branca saindo

pelo corpo, e depois de muitas ponderações decide atravessar até o fundo a náusea do

contato, passando pela experiência nauseante da manducação do inseto.

A escritura de Clarice Lispector persegue uma realidade que lhe escapa: um detalhe,

um instante, o reverso do instante, um momento fugidio carregado de delicadeza e

densidade, conforme observa Berta Waldman (1992), a qual acrescenta que:

Talvez por isso o seu estilo [o de Clarice Lispector] seja marcado pelo estigma da

repetição, da comparação (os numerosos “como”, “como se”), do subjuntivo

(“como se fizesse”, “como se contasse”), capazes de potenciar, indicar, esboçar

uma realidade, mas não afirmá-la; (...) [são] marcas tateantes de estilo, reveladoras

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de que o autor está de certo modo, cerceando o que vai dizer (WALDMAN, 1992,

p. 59).

Concordamos com a autora supracitada e por isso conjeturamos ser intransponível a

fenda entre o real e a representação em A Paixão Segundo G.H.. Dizer as coisas é aceitar

perdê-las, nas palavras de Leyla Perrone-Moisés, que acrescenta não poder a linguagem

substituir o mundo (1984, p. 105):

(...) a literatura aponta sempre para o que falta, no mundo e em nós. Ela empreende

dizer as coisas como são, faltantes, ou como deveriam ser, completas. Trágica ou epifânica, negativa ou positiva, ela está sempre dizendo que o real não satisfaz.

(loc. cit., p. 104).

A filosofia contemporânea duvida da possibilidade de se captar o mundo como uma

totalidade representável e o texto de A Paixão... põe em pauta tal questão, derivando daí

nossa escolha tanto pelo tema quanto pela obra. Mas apesar de o ser apresentar para Clarice

Lispector uma face misteriosa e obscura, impossível de escrever, não alcançável pela

linguagem, essa faceta, que não se entrega ao signo, desdobra-se, condensa-se e forma

núcleos (SÁ, 1993), fenômeno presente na narrativa que constitui nosso objeto de estudo.

Donde advém a tentação, no texto, do silêncio, o qual não trai, não diz de menos e seria,

entrementes, a única expressão digna e adequada da face não representável do ser, “porque

ele [o silêncio] não participa da natureza escorregadia e indomável da palavra, este ser de

som que tem sempre uma porta disfarçada, por onde se pode escapar” (SÁ, 1979, p. 136).

Em contrapartida há a face visível, sensorial e alcançável, capaz de ser representada

pela linguagem, a serviço dessa particularidade cria-se “imagens estranhas, símbolos,

recursos desdobráveis e múltiplos, expressivos” (SÁ, 1993, p. 21).

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2 MODERAÇÃO E DESMESURA – DIÁLOGOS E REFUTAÇÕES A UMA

TRADIÇÃO

“E assim invalidastes a palavra (...) pela vossa tradição (...).” (Marcos 7, 13)

Nesse capítulo procederemos ao cotejo da narrativa de Clarice Lispector com o

tratado de Aristóteles, “Poética”, procurando considerar os possíveis diálogos e refutações de

A Paixão Segundo G.H. à tradição legada pelo estagirita.

A Poética é um tratado em que Aristóteles analisa o modo de ser e proceder da

epopéia e da tragédia, no primeiro livro, e da comédia, no segundo livro (o qual se perdeu).

A obra teve grande influência na teoria literária e na oratória até a Antiguidade

tardia, passou pelas tradições culturais helenistas e árabes enquanto era posta de

lado pela Europa medieval, até que, editada e impressa no final do séc. XV e início

do séc. XVI (a edição veneziana de Aldo Manuzzio), passou a ser leitura

obrigatória em todas as escolas de Arte européias, principalmente as italianas. (...).

A Poética de Aristóteles muitas vezes chegou a determinar os cânones de vários

estilos, principalmente, os de inspiração clássica: classicismos e neoclassicismos

diversos. E mesmo quando se queria contestar alguma tradição ou escola artística, a

Poética serviu, quando não era o modelo a seguir, de modelo a contestar, como, por

exemplo, ao se criticar o naturalismo, ou o figurativismo, ou as famosas prescrições

de unidade – de tempo, espaço e ação. (SANTORO, s.d., p. 76).

O conceito de mímesis é basilar para a compreensão da Poética de Aristóteles; o

termo designa, em sua acepção mais geral, imitação. Para o filósofo de Estagira “imitar é

natural ao homem desde a infância e nisso difere dos outros animais, em ser capaz de imitar e

de adquirir os primeiros conhecimentos por meio da imitação (...).” (1992, p. 22). A mímesis

consiste na imitação não de pessoas, mas de uma ação, da vida, da felicidade, da desventura

(ib.). Entretanto, em PSGH ocorre largo uso do recurso paródico, no qual se tem por referente

o próprio código, isto é, a narração apresenta-se como pura narração, sendo sua própria

realidade (SÁ, 1993); a linguagem encena a linguagem, o texto encena o texto, o discurso

toma por objeto outro discurso. Haja vista que a fábula (conjunto de ações, segundo

Aristóteles) é relativizada em PSGH, sobressaindo o fluxo de consciência, o monólogo

interior, dos quais falaremos em momento azado. Fato notável é a passagem da consciência

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individual ao primeiro plano da narração, como limiar da apreensão ou transformação artística

da realidade – esta constitui, segundo Berta Waldman, a primeira etapa de uma crise aguda

que se processa na forma narrativa (1992, p. 45). Esse “eu” que narra, situado fora de seu

centro à procura do “neutro” (PSGH, 1988, p. 56 e 60), tem de abrir mão da harmonia, de um

conceito de arte, tem de usar uma linguagem que faz voto de perpétua pobreza, linguagem

despojada, o que predispõe a realçar o cru, o seco, o árido, o inexpressivo; toda essa

desmontagem que põe à mostra a matéria de que é feito o monologo, faz periclitar a noção de

gênero literário (WALDMAN, 1992, p. 86).

Aristóteles afirma ser preciso que a “fábula” (1992, p. 24, cap. VI), visto ser imitação

duma ação, o seja de uma única e inteira, e que suas partes estejam arranjadas de tal modo

que, deslocando-se ou suprimindo-se alguma, a unidade seja aluída e transtornada; “com

efeito, aquilo cuja presença ou ausência não traz alteração sensível não faz parte nenhuma do

todo” (1992, p. 28, cap. VIII). Isso porque tiraria do texto o efeito de verossimilhança e

necessidade (seqüência natural, o que não é casual), que para Aristóteles é indispensável na

imitação. Considerado isso, em PSGH, as ocorrências estão articuladas entre si, de modo a

haver o efeito de necessidade, ou seja, um episódio não ocorre, simplesmente, depois do

outro, mas por causa do outro: G.H. só se propõe a limpar o bas-fond por causa da demissão

de Janair; seria incoerente se a patroa fosse limpá-lo tendo à sua disposição uma empregada

responsável pela feitura desse serviço; também seria inconsistente se a protagonista

permanecesse no quarto mesmo após constatar a presença da barata, pela qual tinha aversão,

porém o caso é que no susto ao ver o inseto emergindo do fundo do guarda-roupa, a mulher

“apressada por sair daquela câmara ardente”, em sua “tentativa de fuga” tropeça “entre o pé

da cama e o guarda-roupa” – fato que a imobiliza, fazendo com que permaneça no aposento

mesmo à sua revelia (PSGH, 1988, p. 32-3).

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Para o filósofo de Estagira, é mister também, nos caracteres, como no arranjo das

ações, buscar sempre o necessário ou o provável, de modo que seja necessário ou provável

que tal personagem diga ou faça tais coisas e necessário ou provável que tal fato se siga a tal

outro. (1992, p. 35, cap. XV). Diz ainda que para maior verossimilhança é bom reforçar o

efeito por meio das atitudes (id., p. 37, cap. XVII). G.H., aparentemente, não representa o

protótipo do sujeito de uma experiência que atinge as raízes do ser (SÁ, 1993, p. 139), por ser

frívola e superficial, deseja sair, recuperar sua superficialidade vazia e leve, reintegrar-se no

humano (id., p. 153), ou seja, sua atitude reforça seu caráter: quer evadir-se acovardada, com

nojo e com medo (PSGH, 1988, p. 10), mas já não pode pela já apontada eventualidade

possível e crível, isto é, tropeça entre dois móveis (id., p. 33). Mas ao longo da narrativa esse

caráter será transformado – apontaremos, oportunamente, como dentro do verossímil deu-se

tal transformação.

Melhor para o autor da Poética é quando a personagem pratica a ação sem

conhecimento e reconhece depois de a praticar; o reconhecimento produz abalo (1992, p. 34,

cap. XIV). Em PSGH, de certo modo, isso ocorre:

Então avancei.

Minha alegria e minha vergonha foi ao acordar do desmaio. Não, não fora desmaio.

Fora uma vertigem (...). uma vertigem que me fizera perder conta dos momentos e

do tempo. Mas eu sabia, antes mesmo de pensar, que enquanto eu me ausentara na

vertigem “alguma coisa se tinha feito”.

Eu não queria pensar mas sabia. Tinha medo de sentir na boca aquilo que estava

sentindo (...).

Eu tinha vergonha de ter me tornado vertiginosa e inconsciente para fazer aquilo que nunca mais eu ia saber como tinha feito – pois antes de fazê-lo eu havia tirado de

mim a participação. Eu não tinha querido “saber”. (PSGH, 1988, p. 106-7).

Nota-se, neste fragmento, que G.H. oscila entre a alegria e a vergonha após o

reconhecimento do que fizera.

Para Aristóteles o enredo é o que vai do início até aquela parte que é a última antes

da mudança para a ventura ou desdita e por desfecho entende o que vai do começo da

mudança até o final (1992, p. 38). Porém em PSGH por haver uma estrutura circular,

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relativiza-se essa tradição: a narrativa começa com seis travessões, termina com seis

travessões, os capítulos não são numerados, a última frase do capítulo precedente é iterada no

seguinte, criando um efeito cíclico, no qual a fixação de começo, meio e fim torna-se mais

incerta de se determinar (também acerca disso falaremos de modo mais amiudado,

oportunamente).

A linguagem nobre e distinta do vulgar, para Aristóteles, é a que emprega termos

surpreendentes. Entenda-se por surpreendente o termo raro, a metáfora, o alongamento e tudo

que foge do trivial (ARISTÓTELES, 1992, p. 43-4, cap. XXII). PSGH é rica em recursos

surpreendentes: metáforas, paradoxo, ironia, paródia etc, porém tudo isso vem associado à

oralidade, o que freqüentemente, está ligado ao vulgar, não ao nobre. Essa mescla (uso do

“recurso surpreendente” associado ao “vulgar”) em PSGH, não acata a tradição aristotélica

que preconiza a divisão dos estilos; observe-se, de passagem, que essa desmesura a esse

preceito clássico não é única na narrativa, pois a ligação do trivial e/ou grotesco com o

sublime ocorre em outras ocasiões que serão explicitadas em breve, mas por enquanto, com o

fito de elucidar podemos apontar o “ato ínfimo” (PSGH, 1988, p. 115) da protagonista, o qual

consistiu em comer a barata, relacionado à “experiência de glória” (id., p. 111).

A apresentação de “um ser feio” (PSGH, 1988, p. 50), “monstruos[o]” (id., p. 64),

“horrível e cru, matéria-prima e plasma seco” (id., p. 38), “muito velh[o]”, (id., p. 32) “gota

virulenta” (id., p. 33), “bicho de cisterna seca” (id., p. 39) não observa o preceito clássico que

aconselha que se imite o belo.

Aristóteles, no capítulo sete, parágrafos oito e nove da Poética, afirma que:

(...) o belo, em um ser vivente ou num objeto composto de partes, deve não só

apresentar ordem em suas partes como também comportar certas dimensões. Com

efeito, o belo tem por condições uma certa grandeza e a ordem.. Por este motivo, um ser vivente não pode ser belo, se for excessivamente pequeno (pois a visão é

confusa, quando dura apenas um momento quase imperceptível), nem se for

desmedidamente grande (neste caso o olhar não abrange a totalidade, a unidade e o

conjunto escapam à vista do espectador, como seria o caso de um animal que

tivesse de comprimento dez mil estádios). (ARISTÒTELES, p. 13; Poética online)

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De fato, em PSGH, a barata é apresentada de modo desproporcionado: “cílios

pestanejando que chamam” (id., p. 40), “toda cheia de cílios”, sem nariz, “cada olho em si

mesmo parecia uma barata”, (id., p. 37), “corpo rebentado que é todo feito de canos e de

antenas e de mole cimento ” (id., p. 77); sua forma não é fixa, pois no começo “ela estava de

frente, à altura [da] cabeça e [dos] olhos” de G.H. (id., p. 37), paulatinamente, porém, “ia se

modificando à medida que (...) engrossava para fora” (id., p. 41) e, por fim, é apresentada com

extensões incompatíveis: “a barata é maior que eu” (id., p. 82), “Agora era com os olhos

erguidos que eu a via. (...) ela me olhava de cima para baixo.”, (id., p. 49), isto é, como se a

barata tivesse crescido.

Mesmo G.H. apresenta-se com uma forma não fixa: “Eu estava agora tão maior que

já não me via mais. Tão grande como uma paisagem ao longe. Eu era ao longe. Mas

perceptível nas minhas mais últimas montanhas e nos meus mais remotos rios (...).” (id., p.

115), pois “quebrara-se” o seu “invólucro” e “sem limite” G.H. era (ib.).

Por fim, a partir da marcação exata de um tempo cronológico, este recebe um

tratamento polissêmico em PSGH, quebrando a percepção de tempo aristotélica, segundo a

qual a obra deveria seguir o critério da imitação do tempo natural. Os acontecimentos se

iniciam quase às dez horas da manhã (id., p. 23) à mesa do café. Às dez horas, G.H. já entrou

no quarto e abriu o guarda-roupa, do qual emergiu a barata. Às onze horas, o inseto já está

meio esmagado pelo golpe recebido. Então, durante quase uma hora, o tempo, inchado até os

limites, transforma-se num presente, num “agora”, até o meio dia, quando G.H. diz que

sucumbiu (id., p. 80). Depois não há mais alusão ao tempo cronológico; somente às passagens

de nuanças de luz.

Desse modo PSGH exprime a crise do romanesco, abandonando espaço ficcional,

enredo, tempo, e personagem convencionais (NUNES, 1988, p. 82). Em vez da linearidade, a

autora oferece a descontinuidade. Em vez da narrativa em sua seqüência de acontecimentos

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(fábula), a autora revela a construção desses mesmos acontecimentos (trama) (WALDMAN,

1992, p. 32). Características tais como o monólogo interior, a digressão, a fragmentação dos

episódios, caracterizam a ficção moderna em geral, e inclui a narrativa de PSGH (id., p. 35).

A propósito, examinaremos mais amiudadamente os itens citados nesse parágrafo, com o

intuito de delinear uma possível explicação para a incidência desses fenômenos.

3 INTERTEXTUALIDADE EM PSGH

A paródia e a paráfrase são exemplos de intertextualidade, a qual consiste na

sobreposição de um texto a outro, numa referência explícita ou não.

Para Barthes, os outros textos tomam explicitamente o lugar da realidade, e é a

intertextualidade que se substitui à referência, (COMPAGNON, s. d., p. 110). As relações

entre uma obra e outras que a precederam ou se lhe seguiram são as únicas referências que

importam nos textos literários, os quais são auto-suficientes e não falam do mundo, mas de si

mesmos e de outros textos, (id., p. 113), se há referência externa, não é ao real – muito ao

contrário; só há referência externa a outros textos. Para Barthes o mundo dos livros se

substitui inteiramente ao livro do mundo, (id., p. 121). Assim sendo podemos explanar a

questão do real e da representação em PSGH começando pelo recurso da paródia, usado

largamente na narrativa, bem como ocorre o uso de outros recursos tais a paráfrase e a

metalinguagem por exemplo, e que outrossim referem à questão supracitada, isto é, do real e

da representação, visto que a paráfrase tem por referente outro discurso ou texto e a

metalinguagem tem por referente o próprio código.

A paródia conforme observa Sant‟Anna (2006, p. 7):

(...) é um efeito de linguagem que vem se tornando cada vez mais presente nas obras

contemporâneas. A rigor, existe uma consonância entre paródia e modernidade.

Desde que se iniciaram os movimentos renovadores da arte ocidental na segunda

metade do século XIX, e especialmente com os movimentos mais radicais do século

XX, como o Futurismo (1909) e o Dadaísmo (1916), tem-se observado que a paródia

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é um efeito sintomático de algo que ocorre com a arte de nosso tempo. Ou seja: a

freqüência com que aparecem textos parodísticos testemunha que a arte

contemporânea se compraz num exercício de linguagem em que a linguagem se

desdobra sobre si mesma num jogo de espelhos.

Concordamos com o autor e tomá-lo-emos como base para analisarmos os recursos

paródicos que identificamos no texto de PSGH. Veremos convenientemente que pelo uso

amiudado do recurso paródico dentre outros, o texto de PSGH é moderno e subversivo.

3.1 Origem e definições da paródia

Do grego para-ode, paródia significa etimologicamente “canto paralelo”. Shipley

(1972 apud SANT‟ANNA, 2006) registra que o termo implicava a idéia de uma canção que

era cantada ao lado de outra, como uma espécie de contracanto, destacando, portanto, sua

origem musical.

O termo paródia já aparece em Aristóteles (1992, cap. II, p. 20) conotando

“inversão”: Hegemon de Thaso (séc. 5 a.C.), teria usado o estilo épico – que comumente

servia para representar homens nobres e superiores – para representar homens inferiores;

neste contexto, teria ocorrido uma inversão (SANTAN‟ANNA, 2006).

Segundo Sant‟Anna, o termo paródia tornou-se institucionalizado a partir do século

XVII, sendo que os autores que antecedem os dois formalistas russos (Tynianov, 1919, e

Bakhtin, 1928) definiam-na de modo a aproximá-la do burlesco. Porém, modernamente, isto

é, a partir de Tynianov e Bakhtin e das vanguardas européias, a paródia se define por meio de

um jogo intertextual em que o texto paródico serve como um campo de batalha para

interações contrárias e discordantes, não necessariamente cômicas, entre o texto parodiado e o

texto paródico (id., p. 11-14).

Assumindo uma atitude contra-ideológica, na faixa do contra-estilo, a paródia foge

do jogo de espelhos denunciando o próprio jogo e colocando as coisas fora do seu lugar

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convencional. Nesta, a máscara denuncia a duplicidade, a ambigüidade e a contradição.

Sant‟Anna usa um paralelo numa linguagem mística, afirmando que a paráfrase faz o jogo

celestial, e a paródia faz o jogo do demoníaco. O angelical é a unidade, o demoníaco é a

divisão. Na paráfrase não há a tensão entre os dois jogadores, é como se estivessem jogando o

mesmo jogo, do mesmo lado. Enquanto a paródia é uma disputa aberta do sentido, uma luta,

um choque de interpretação, (id., p. 29-30), consoante esta observação, veremos,

oportunamente, que GH oscila entre o angelical e o demoníaco.

Sant‟Anna diz que ética e misticamente a paródia só poderia estar do lado do

demoníaco e do inferno. Marca a expulsão da linguagem de seu espaço celeste, instaura o

conflito. E, da mesma maneira que a paráfrase é o recalque da linguagem própria e a

repressão do desejo da linguagem ou da linguagem do desejo, a paródia surge como o

insaciável desejo. E não estranha que as ideologias estéticas e políticas que controlam o

cenário social considerem as paródias sempre como um discurso “in-desejável”. (id., p. 33),

considerado isso, é significativo que PSGH, que faz escancarado uso da paródia e da

paráfrase, tenha surgido no cenário de transição para a ditadura militar (anos de chumbo:

1964-85). Sant‟Anna nota a relação entre o eixo parafrásico e os regimes totalitários.

Seguindo esta ordem de raciocínio, ele aproxima igualmente a paródia de um regime político,

dizendo que se assemelha mais a um universo democrático e também de decadência, (id., p.

49). A par disto é sintomático que PSGH surja exatamente num período de decadência: a

decadência oligárquica, com o fim da democracia e o início da ditadura, pontue-se a renúncia

de Jânio Quadros, o impedimento da posse de João Goulart e, posteriormente, o golpe de abril

de 64, ano da publicação de PSGH, em que Castello Branco toma posse.

O jogo que se estabelece entre os dois extremos que são a paráfrase e a paródia é o

mesmo jogo entre a automatização e a desautomatização (SANT‟ANNA, 2006). Sá (1979)

observa que Clarice Lispector desgasta clichês e palavras, conseguindo uma desautomatização

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do leitor, provocada pelo estranhamento de certas imagens e colocações: “E eu não quero o

paraíso, tenho saudade do inferno!”, (PSGH, 1988, p. 92), “Eu oferecera o meu inferno ao

Deus.”, (id., p. 85), “Quando de noite ele me chama para o inferno, eu vou.”, (id., p. 83), “(...)

eu estava feliz como o demônio, o inferno é o meu máximo.”, (id., p. 81), “Somos livres, e

este é o inferno. Mas há tantas baratas que parece uma prece.”, (id., p. 80). E é pela

desautomatização que se tem a contestação desta mesma linguagem (SANT‟ANNA, 2006);

em PSGH há a desautomatização da linguagem pelo uso da paródia dentre outros recursos, os

quais usam o espaço textual para contestar a linguagem – essa afirmação tornar-se-á mais

clara no tópico que se segue.

3.1.2 A paródia no texto

“Está vestido com um manto tinto de sangue, e o seu nome é Verbo de Deus.”

(Apocalipse 19, 13)

A estética da mímesis, entendida sob o ângulo clássico ou renascentista, isto é,

representação da natureza e/ou da realidade é relativizada no texto sobre o qual nos

debruçamos, pois como vimos, na paródia não há a intenção de representar a natureza ou a

realidade e sim a outros textos; observa-se, portanto, que os textos dialogam não com a

realidade aparente das coisas, mas com a realidade da própria linguagem. Apontaremos a

seguir alguns excertos de PSGH em que ocorre a paródia.

O leitor é que constrói o sentido, a realidade, porquanto, conforme observa

Sant‟Anna (id., p. 26), os conceitos de paródia, paráfrase e estilização são relativos ao leitor,

isto é, dependem do receptor; este seria o dono da “mão” que “acompanha” (PSGH, 1988, p.

40) e “sustenta” (id., p. 42) G.H. em sua via-crúcis pela linguagem.

Ressalte-se, antes porém, que G.H. não faz uma paródia ridicularizando a Paixão de

Cristo, pois há um clima sério nesse itinerário, que não nos permite lê-lo na pauta do burlesco,

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embora muitos aspectos possam ser lidos na clave do irônico e da reversão paródica (SÁ,

1993, p. 135).

A começar pelo título, que logra as expectativas do leitor comum, habituado a

entender o termo “paixão” no sentido erótico, G.H está consciente de que frustrou tal

expectativa quando afirma: “(...) eu também vivia bem, eu era uma mulher de quem se

poderia dizer “vida e amores de G.H.”.”, (PSGH, 1988, p. 102).

O título retoma a etimologia da palavra “paixão” no sentido de sofrimento e remete à

paixão de Cristo segundo os evangelhistas (Mateus, João, Lucas e Marcos).

G.H. segue um modelo bíblico, mas o reverte, freqüentemente, na construção de seu

próprio itinerário (SÁ, 1993, p. 135), pois, para G.H., viver a nossa condição é a nossa paixão

(PSGH, 1988, p. 112). É a própria protagonista quem reconhece que a alegria infernal de que

provou é oposta ao “sentimento-humano-cristão”, (id., p. 67).

Assim como Deus descansou no sétimo dia (Gênesis 2, 2), G.H. também pretende

arrumar o apartamento e descansar “na sétima hora como no sétimo dia”, (id., p. 23).

No fragmento que se segue, G.H. demonstra que tem consciência do recurso

paródico de que lança mão: “(...) gosto da duplicata e a entendo. A cópia é sempre bonita. (...)

sempre pareci preferir a paródia, ela me servia.”, (id., p. 21). “(...) sempre conservei uma aspa

à esquerda e outra à direita de mim (...) “como se não fosse eu” (...) uma vida inexistente me

possuía toda e me ocupava como uma invenção.”, (id., p. 21-2); “(...) eu mesma era (...) uma

réplica bonita.”, (id., p. 22); “Essa imagem de mim entre aspas me satisfazia (...). Eu era a

imagem do que eu não era, e essa imagem do não ser me cumulava toda: um dos modos mais

fortes é ser negativamente.”, (ib.). Não coincidentemente, Sant‟Anna pergunta se não seria a

paródia uma espécie de “estilização negativa” (op. cit., p. 34) já que nega o texto que lhe deu

origem. G.H. se parodia a si mesma enquanto ser, porque ao não ser ela mesma, ela se nega;

ao, aparentemente, parafrasear o mundo colocando sua casa, sua vida e a si mesma entre aspas

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como uma citação, ela, paradoxal e ironicamente, se nega, portanto se parodia e instaura

também um jogo ficcional, aliás genial (isto é, finge que parafraseia quando, em verdade,

parodia pela ironia da paráfrase, conforme os fragmentos supracitados comprovam).

“A espirituosa elegância de minha casa vem de que tudo aqui está entre aspas. Por

honestidade com uma verdadeira autoria, eu cito o mundo, eu o citava, já que ele não era nem

eu nem meu.”, (id., p. 21). Confronte-se com Sant‟Anna quando este diz que a paródia é o

gesto inaugural da autoria e da individualidade (op. cit., p. 32). G.H. era uma paráfrase,

superficialmente reconhecível por si, reconhecimento mediatizado por outrem (PSGH, 1988,

p. 112), porém na busca pela sua identidade por meio da linguagem, ela inaugura a autoria: o

encontro com suas raízes identitárias desconhecidas (PSGH, p. 57), com sua vida mais

profunda (PSGH, p. 38), lançando mão, nesse percurso, da paródia.

G.H. subverte o sentido de Mateus 5, 21 em que Jesus fala do “não matarás”: “Eu me

embriagava pela primeira vez de um ódio tão límpido como de uma fonte, eu me embriagava

com o desejo, justificado ou não, de matar”, (PSGH, 1988, p. 35). Resta questionar se o “não

matarás” de Jesus refere-se somente a pessoas ou aos seres vivos em geral, pois para GH as

coisas só diferem entre si em movimento, repouso, velocidade e lentidão, mas não em relação

à substância.

G.H. parodia também a Ave-Maria ao aproximar a massa branca que saía do inseto

do “bendito fruto” de que fala a oração: “Santa Maria, mãe de Deus, ofereço-vos a minha vida

em troca de não ser verdade aquele momento de ontem.” , (id., p. 50); “(...) o que sai da barata

é: “hoje”, bendito o fruto de teu ventre (...)”, (id., p. 55); “Mãe: matei uma vida, e não há

braços que me recebam agora e na hora do nosso deserto, amém.”, (id., p. 61). A oração da

Ave-Maria consiste em: “Ave Maria, (...), bendito o fruto do teu ventre, (...). Santa Maria,

mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém.” (BÍBLIA

SAGRADA, 2000, p. 2 das Orações Diárias do Cristão).

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“De dentro do invólucro está saindo um coração grosso e branco e vivo com puz

[sic], mãe, bendita sois entre as baratas, agora e na hora desta tua minha morte, barata e jóia.”,

(PSGH, 1988, p. 61). Neste último fragmento nota-se, além da paródia, a ambigüidade com

efeito cômico de que G.H. lança mão, em que barata como adjetivo feminino pode significar

“de baixo preço” em oposição a jóia, mas pode denotar também a barata como substantivo

feminino, sinônimo de inseto blatídeo, achatado, oval, de hábitos noturnos.

Identificamos a paródia bíblica em PSGH no trecho: “Ah, envio meu anjo para

aparelhar o caminho diante de mim. Não, não o meu anjo: mas a minha humanidade e sua

misericórdia.”, (id., p. 90); “Enviei o meu anjo para aparelhar o caminho diante de mim e para

avisar às pedras que eu ia chegar e que se adoçassem à minha incompreensão.”, (ib.),

compare-se com Malaquias 3, 1 e Mateus 11, 10 nos quais se diz que um mensageiro será

mandado para preparar o caminho do Messias.

“(...) por que teria eu medo de comer o bem e o mal? (...).”, (id., p. 93), esta pergunta

de G.H. consiste numa paródia do Gênesis 3, 5 em que Deus proíbe que se coma do fruto do

bem e do mal; “(...) me salvarei ainda mais do que eu me salvaria se não tivesse comido da

vida...”, (ib.), paródia do Gênesis 3, 3 em há a ameaça de morte caso se coma do fruto

proibido.

O texto: “(...) eu comi do fruto proibido e no entanto não fui fulminada pela orgia de

ser.”, (ib.) reverte o sentido do Gênesis: G.H., ao contrário de Adão e Eva, come do fruto da

árvore da vida e não deseja ser como Deus, conforme observa Nunes (1988).

“(...) o Deus é hoje: seu reino já começou.”, (PSGH, 1988, p. 95) é uma paródia do

sermão da montanha proferido por Jesus (q. v. Mateus 5, 4-11, Lucas 6, 21- 22) em que as

promessas de bem-aventurança são postas no futuro.

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“(...) bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o dilacerante reino da

vida.” (id., p. 97) é uma paródia do texto bíblico de Lucas 6, 20 ou Mateus 5, 3 no qual se diz

que são bem-aventurados os que têm um coração de pobre porque deles é o Reino dos céus.

“E seu reino, meu amor, também é deste mundo.”, (id., p. 77, 95) consiste numa paródia do

texto de João 18, 36 em que se diz que o reino de Deus não é deste mundo ou 2 Timóteo 4,

18.

G.H. fala de “ter nojo de beijar o leproso (...).”, (id., p. 105), o subtexto parodiado,

conforme observa Nunes (1988) é a vida dos Santos como São Francisco de Assis, que beijou

o leproso.

Há a paródia do conceito de redenção: “(...) a redenção devia ser na própria coisa. E

a redenção na própria coisa seria eu botar na boca a massa branca da barata.”, (PSGH, 1988,

p. 105), contrariamente ao sentido de redenção e salvação que se dá à santidade, como nota

Nunes(1988), em que a redenção está no plano da transcendência; ao passo que G.H. a

enxerga no plano da imanência, a glória não é sobrenatural: “(...) vê, eu sabia que estava

entrando na bruta e crua glória [paradoxo] da natureza. Seduzida (...).”, (id., p. 42).

Os fragmentos que se seguem reforçam a demonstração da subversão do conceito de

redenção: “(...) quero encontrar a redenção no hoje, no já, na realidade que está sendo, e não

na promessa, quero encontrar a alegria neste instante – quero o Deus naquilo que sai do ventre

da barata (...)”, (id., p. 55); “Foi assim que fui dando os primeiros passos no nada. Meus

primeiros passos hesitantes em direção à vida, e abandonando a minha vida. O pé pisou no ar,

e entrei no paraíso ou no inferno: no núcleo.”, (id., p. 54). Não há transcendência: “(...) mas

vamos para nós. Em vez de superar-nos.”, (id., p. 76); “(...) toda uma vida (...) reunia-se agora

em mim, batia como um sino mudo, cujas vibrações eu não precisava ouvir, eu as reconhecia.

Como se pela primeira vez enfim eu estivesse ao nível da Natureza”, (id., p.35); “Eu passara a

um primeiro plano primário, estava no silêncio dos ventos e na era de estanho e cobre – na era

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primeira da vida.”, (id., p. 45); “(...) no mundo primário onde eu entrara, os seres existem os

outros como modo de se verem”, (id., p. 50); “A natureza muito maior da barata fazia com

que qualquer coisa, ali entrando – nome ou pessoa – perdesse a falsa transcendência.”, (id., p.

63), “Mas por que não ficar dentro sem tentar atravessar até a margem oposta? Ficar dentro da

coisa é loucura.”, (id., p. 92), “Eu estava habituada somente a transcender”, (id., p. 94); “(...)

eu não devia mais transcender (...).”, (id., p. 105); “A transcendência era em mim o único

modo como eu podia alcançar a coisa? Pois mesmo ao ter comido da barata, eu fizera por

transcender o próprio ato de comê-la.”, (id., p. 107).

A inversão de certas expressões bíblicas, ou o uso delas sob forma de paradoxo,

constitui, como viemos demonstramos, um dos mais fundamentais recursos retóricos do texto.

No trecho que se segue, além de haver o tom paródico, é expressa a crise do sagrado (entenda-

se por “crise do sagrado” a negação de conceitos bíblicos ou cristãos): “Oh Deus, eu estava

começando a entender com enorme surpresa: que minha orgia infernal era o próprio martírio

humano.”, (id., p. 85), nota-se que o inferno de G.H. tal qual a redenção, conforme já foi

demonstrado, não é transcendental, não está no além como o inferno cristão (q. v., Apocalipse

2, 10-11 em que se fala do inferno após a morte, e. g.), é no hic et nunc (aqui e agora).

“O meu anjo me deixa ser adoradora de um pedaço de ferro ou vidro.”, (id., p. 90)

compare-se com Lucas 4, 8 em que se diz que se deve adorar somente a Deus, ou Apocalipse

7, 11 no qual se diz que os anjos adoram a Deus.

O divino e o demoníaco coexistem na experiência de G.H.: “(...) se eu não puder sair

(...) o plasma do Deus estará na minha vida.”, (id., p. 65), e mais adiante: “Eu estava sendo

levada pelo demoníaco.”, (id., p. 65). Para G.H. o demoníaco não é revestido da idéia cristã,

mas constitui vida ampla tal qual a dos astros, dos bichos, dos homens. Em seguida, a

escultora diz que “se a pessoa tiver coragem de largar os sentimentos, descobre a ampla vida

de um silêncio extremamente ocupado, o mesmo que existe na barata, o mesmo nos astros, o

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mesmo em si próprio – o demoníaco é “antes” do humano.”, (id., p. 65). Nota-se a

ressonância do texto bíblico de Mateus 19, 29 em que se diz que aquele que deixar tudo

receberá muito mais e também a vida eterna; porém, contrariamente à idéia cristã, G.H. vê a

redenção e o inferno no aqui, não no além, na matéria viva, não no sobrenatural: “(...) se eu

tivesse coragem de abandonar...de abandonar meus sentimentos? Se eu tivesse coragem de

abandonar a esperança”, (id., p. 39).

O paradoxo que se segue inverte a crença cristã: “O pecado renovadamente original é

este: tenho que cumprir a minha lei que ignoro, e se eu não cumprir a minha lei que ignoro,

estarei pecando originalmente contra a vida.”, (id., p. 63), compare-se, e. g., com Romanos 3,

23 em que se diz que aqueles que pecaram estão afastados da presença de Deus. Mas segundo

a cosmovisão de G.H. “tudo está vivo e é feito do mesmo”, (id., p. 47), e é pela comunhão

com o vivo que se entra na “bruta e crua glória da natureza”, (id., p. 42).

O paradoxo, este recurso retórico que diz respeito à questão da credibilidade dos

discursos, inclinando os textos bíblicos para o sentido paródico, causa um efeito de

perplexidade e estranhamento, que tanto a paródia, como o paradoxo veiculam (SÁ, 1993, p.

89). Além disso, o paradoxo serve para caracterizar os limites da linguagem, e, pari passu, a

necessidade de tentar dizê-lo a despeito desse alcance adstrito, sugerindo o que está além da

fronteira, isto é, o indizível da coisa. O uso do paradoxo constitui a tentativa de “transformar o

atonal em tonal” (PSGH, 1988, p. 90), indicando-se a “linha sub-reptícia” (id., p. 64) que

separa as duas margens opostas, as quais não chegam a tocar o ser porque este está no espaço

em que escorre o “interstício da matéria primordial” (id., p. 64) e não nas margens opostas:

“entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos

de areia (...), um intervalo de espaço” (id., p. 64). O paradoxo, portanto, visa a conduzir o ser

pela via da linguagem de uma orla à outra, beirando o abismo do silêncio – “Mas que abismo

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entre a palavra e o que ela tentava (...).” (id., p.44) – , de modo a sugerir, insinuar aquilo que

fica entre os dois extremos; mas sempre na tentativa de tentar captar esse indizível.

Retomemos o exame do contorno paródico do texto, no qual consta: “(...) a lei manda

que, quem comer do imundo, que o coma sem saber. Pois quem comer do imundo sabendo

que é imundo – também saberá que o imundo não é imundo. É isso?”, (PSGH, 1988, p. 47),

compare-se com Levítico 11 em que há a prescrição do que se deve e do que não se deve

comer, e quem não obedecer à lei de Deus torna-se impuro segundo Isaías 64, 6. G.H.

subverte o sentido do texto bíblico ao afirmar que o imundo não é imundo, exprimindo,

destarte, a crise do sagrado institucionalizado.

O próprio ato de “comer o imundo” transmuda-se em PSGH como na bíblia do

antigo para o novo testamento. Neste, nenhum alimento é imundo aos olhos de Deus, pois em

Romanos 14, 17 é dito que o Reino de Deus não é questão de comida ou de bebida, mas de

justiça, paz e alegria e em Mateus 15, 10 diz-se que não é o que entra pela boca que torna o

homem impuro, mas o que sai dela. Em PSGH, tal qual na bíblia, o sentido de comer o

imundo também se altera: o imundo não é mais imundo, é a raiz (ib.) e, por ser a raiz, não se

podia comê-la.

A barata doméstica não está relacionada na bíblia entre os animais impuros, mas

entende-se que esteja incluída entre os insetos alados repugnantes relacionados no Levítico

(SÁ, 1993, p. 148). A escolha da autora, porém, deveu-se, possivelmente, pela ligação do

inseto com a aurora do mundo, por sua qualidade de supérstite, tendo sobrevivido até hoje,

por meio de sucessivas adaptações: “(...) elas já estavam na Terra, e iguais a hoje, antes

mesmo que tivessem aparecido os primeiros dinossauros...”, (id., p. 32).

Ao esmagar a barata G.H. fechara os olhos: “É que nesses instantes, de olhos

fechados, eu tomava consciência de mim assim como se toma consciência de um sabor (...) .”,

(id., p. 36). Tomar consciência de si é saber (do latim sapere, „ter gosto‟); “(...) nós sabemos

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Deus.”, (id., p. 96). Nessa construção sintática o verbo “saber” como transitivo direto adquire

especial expressividade, pois assim participa mais do seu sentido etimológico (sabor),

comenta Nunes (1988, p. 96) e acrescenta que o verbo, na expressão „saber a‟ significa „ter o

sabor de‟; G.H. explora o valor semântico de certos radicais: “ (...) neste deserto as coisas

sabem as coisas. As coisas sabem tanto as coisas que a isto... a isto chamarei de perdão (...).”,

(PSGH, 1988, p. 43). O texto ao explorar o valor semântico desses radicais faz

intertextualidade com o Gênesis 2, 17 e 3, 1-6 em que no paraíso, a queda do homem se deu

por um ato de transgressão no qual se mesclam o saber e o sabor, sc.: a provação do fruto da

árvore da vida, da ciência do bem e do mal.

Sobre a ambigüidade dessas e de outras palavras – como provar e provação – que

tanto se referem ao ato de “provar pelo gosto” como “passar pelo sofrimento”, se articulam os

eixos semânticos de PSGH: “Provação. Agora entendo o que é provação. Provação: significa

que a vida está me provando. Mas provação: significa que eu também estou provando. E

provar pode se transformar numa sede cada vez mais insaciável.” , (id., p. 84).

G.H. afirma que a prece verdadeira é a cabala de uma magia negra, (id., p. 86); em

Lucas 11, 1-4 Jesus ensina aos seus discípulos como devem rezar, orar. G.H. subverte a

oração ao associá-la à magia negra, tida como bruxaria, ritual satânico, arte diabólica.

G.H. descreve o inferno por meio de uma série de paradoxos que enfatizam-no como

um sítio de prazer e gozo:

O inferno é a boca que morde e come a carne viva que tem sangue, e quem é comido

uiva com regozijo no olho: o inferno é a dor como gozo da matéria, e com o riso do

gozo, as lágrimas escorrem de dor. E a lágrima que vem do riso de dor é o contrário

da redenção (id., p. 78).

Em seguida, ela afirma que “estava no inferno atravessada de prazer”, (ib.),

contradizendo a idéia cristã de inferno, é suficiente conferir em Mateus 10, 28 e 25, 41 em

que se diz que o inferno é um lugar de destruição e morte da alma e em que há fogo eterno.

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O trecho que se segue, além de parodiar a idéia cristã de inferno, exprime a crise do

sagrado: “Eis o inferno: não há punição (...).”, (id., p. 78-9), afinal o senso comum acredita

que o inferno é lugar de sofrimento, dor, punição e castigo, queira ver em Marcos 9, 48

(podridão e fogo intermináveis), Apocalipse 14, 10-11 (tormento no fogo e no enxofre, não há

alívio dia e noite), Mateus 25, 41 (fogo eterno para punir os que estiverem debaixo da

maldição de Deus). Ao passo que G.H. diz: “O inferno me era bom, eu estava fruindo daquele

sangue branco que eu derramara.”, (id., p. 61).

“(...) pela porta da danação, eu comi a vida e fui comida pela vida.”, (id., p. 77), neste

excerto de PSGH vê-se a subversão da idéia cristã de que terá a vida eterna quem passar pela

porta da fé (vid. Atos 14, 27).

“Escuta, diante da barata viva, a pior descoberta foi a de que o mundo não é humano,

e de que não somos humanos.”, (PSGH, 1988, p. 45). E não somos humanos, segundo G.H.,

não porque sejamos divinos, mas porque estamos no nível da barata, do pedaço de ferro ou de

vidro. G.H. subverte a idéia cristã de que o homem é semelhante a Deus (Gênesis 1, 26), ou

de que o homem é um ser espiritual ou alma vivente (1 Coríntios 15, 44, Gênesis 2, 7, Salmo

145, 4 etc): “(...) o inumano é o melhor nosso, é a coisa, a parte coisa da gente.”, (PSGH,

1988, p. 45).

“o Deus”, (id., p. 63, 65, 81), “a matéria do Deus” (id., p. 45): o artigo definido

precede o nome de Deus, porque, como observa Nunes, o Deus é concreto, vivo, não é uma

abstração (1988), compare-se com João 4, 24 e 2 Coríntios 3, 17 no qual se diz que Deus é

espírito. G.H., em seu itinerário da paixão, nega a idéia cristã de um Deus em espírito, bem

como a idéia de redenção e inferno bíblicos; donde deriva a crise do sagrado, em que as

verdades comumente aceitas, tidas como inquestionáveis, são postas em cheque (por meio do

paradoxo, da paródia, da ironia) ou relativizadas.

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Enquanto, segundo o cristianismo, é pelo amor que os homens podem realizar o

melhor de si mesmo (1 Coríntios 13, 3; 13, 13), para G.H., é pela ausência de sentimentos

(PSGH, 1988, p. 65), pela redução da vida humana à sensação, à vida física e material, ao

“mundo da coisa”, que o homem alcança a plenitude. Sem beleza, sem amor. “Do germe que

sou, também é feita esta matéria alegre: a coisa. Que é uma existência satisfeita em se

processar, profundamente ocupada em apenas se processar, e o processo vibra todo (...).”, (id.,

p. 90). Apenas a monotonia do ser, a ausência do gosto, a violência do neutro: “o neutro era a

vida. O neutro era o inferno”, (id., p. 56).

“A passagem estreita fora pela barata difícil (...)”, (id., p. 43); “A entrada para este

quarto só tinha uma passagem, e estreita; pela barata.”, (id., p. 39), compare-se com Mateus 7,

14 em que se diz que estreita é a porta que conduz à vida. G.H. subverte o sentido do texto

bíblico interpondo um inseto “feio e brilhante”, (PSGH, 1988, p. 50).

G.H. procurava a danação (id., p. 83). “Eu tinha que cair na danação de minha alma,

a curiosidade me consumia.”, (id., p. 39). A curiosidade, o querer saber associado à danação, à

queda, remete ao Gênesis 3, 6 bem como ao mito fáustico em que há a negociação da alma em

troca do conhecimento, da “máquina do mundo”.

“ – Mas é que o inferno já me tomara, meu amor, o inferno da curiosidade malsã. Eu

já estava vendendo a minha alma humana, porque ver já começara a me consumir em prazer,

eu vendia o meu futuro, eu vendia a minha salvação, eu nos vendia.”, (id., p. 51). Na tradição

cristã a alma não se negocia, q. v. Lucas 16, 19-31 (o rico e Lázaro). G.H. vai subvertendo os

valores cristãos ao decalcar seu itinerário.

Sá (1993, p. 148) e Nunes (1988, p. 39) observam ainda que o pano de fundo, que

serve de referência aos trechos supracitados nos dois parágrafos anteriores é o mito fáustico,

no qual a curiosidade, o querer saber ocasiona a danação.

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“A barata é pura sedução. Cílios, cílios pestanejando que chamam.”. Nunes

comenta (1988, p. 40) que nesse Éden às avessas, parodiado, inferno não paraíso, a barata é a

serpente que seduz, não com palavras, mas com os cílios, que chamam. Aqui é oportuno

abrirmos um parêntese para observar que G.H cogita pôr na boca a barata: “Seriam salgados

os seus olhos? Se eu os tocasse – já que cada vez mais imunda eu gradualmente ficava – se eu

os tocasse com a boca, eu os sentiria salgados?”, (PSGH, 1988, p. 50). O sal nos olhos está

presente em ambos os textos. Nunes (1988, p. 51) observa que Joana de PCS sente os olhos

molhados e salgados do amante; G.H., parecidamente, “já havia experimentado na boca os

olhos de um homem e, pelo sal na boca, soubera que ele chorava.”, (PSGH, 1988, p. 51). Não

é por acaso que G.H. põe na boca os olhos salgados do amante e cogita colocar os da barata.

O sal figura com freqüência nos rituais religiosos desde a antiguidade. Para os judeus, o sal

simboliza a eterna aliança de Deus com o povo de Israel (vid. Números 18, 19 em que se diz

que de tudo o que é tomado das coisas santas oferecidas a Deus far-se-á uma aliança de sal,

que vale perpetuamente diante de Deus; em Levítico 2, 13 diz-se que o sal da aliança é

indispensável nas ofertas feitas a Deus, afinal o sal preserva da corrupção e, por isso,

simboliza a fidelidade). Os seguidores do Judaísmo, na sexta-feira à noite, molham o pão do

sabá em sal. Na liturgia católica, o sal do batismo é associado à longevidade e à vida eterna.

Dentro do contexto bíblico-paródico de PSGH, vimos que pôr na boca os olhos salgados do

amante (não do marido, note-se; do amante, para dar a idéia de proibição ou de

clandestinidade e, por conseguinte, de transgressão) e da barata (para dar a idéia de imundo) –

haja vista a simbologia do sal na tradição judaico-cristã – conota a comunhão com o sagrado,

porém às avessas, isto é, dessacralizando o ritual.

“A tentação do prazer. A tentação é comer direto na fonte. A tentação é comer direto

na lei. E o castigo é não querer mais parar de comer (...). E eu procurava a danação como uma

alegria. Eu procurava o mais orgíaco de mim mesma.”, (PSGH, 1988, p. 83). Para G.H. a

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tentação tem uma conotação positiva, contrariamente à visão cristã na qual recomenda-se que

se deve vencer as tentações, evitar o pecado (Efésios 4, 26, Mateus 26, 41; 6, 13 etc).

G.H. tira do sexo a idéia de pecado (PSGH, 1988, p. 86) e afirma que sexo é o susto de uma

criança, contrariamente à idéia cristã de que os apetites do corpo afastam do céu, provocam a

ira de Deus e que, por conseguinte, devem ser evitados (vid. Colossenses 3, 5; 1 Timóteo 5,

11).

“só a perdição me guiando, só o descaminho.”, (PSGH, 1988, p. 88) compare-se com

João 14, 6 em que Jesus diz ser o caminho, a verdade e a vida. G.H. quer alcançar a vida, mas

é a vida imanente, não transcendente, ao nível da natureza e não do sobrenatural,

contrariamente à idéia cristã. O descaminho da escultora é o seu itinerário às avessas.

G.H. pratica o ritual da manducação da barata, por analogia com a comunhão dos cristãos

(SÁ, 1993 , p. 136). “Ah, as tentativas de experimentar a hóstia.”, (id., p. 99); a massa branca

da barata na boca “pareceu [a G.H.] que seria o antipecado”, (id., p. 106); “Por que teria eu

nojo da massa que saía da barata? Não bebera eu do branco leite que é liquida massa materna?

e ao beber a coisa de que era feita a minha mãe, não havia eu chamado, sem nome, de amor?”,

(id., p. 105) . O cristão, ao comungar, acredita que participa do Corpo de Cristo; a comunhão

planta na carne do homem corrompido a semente da ressurreição e da vida, segundo a

promessa do filho de Deus, conforme a qual quem comer de sua carne e beber do seu sangue

terá a vida em si e viverá eternamente (João 6, 53-54). O cristão é assimilado pelo corpo de

Cristo e nele se transforma. Consoante observa Sá, na experiência de G.H., a manducação da

barata – protótipo da matéria-prima do mundo, ícone da matéria primordial da vida – produz

pelo mesmo efeito de transformação, mas invertido, a redução da personalidade de G.H. ao

nível da pura matéria viva (SÁ, 1993, p.137). Há a “despersonalização”, isto é, G.H. se perde

como pessoa, para alcançar-se como ser e encontrar sua identidade, ao nível do puramente

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vivo: “(...) através de meu mais difícil espanto – estou enfim caminhando em direção à

destruição do que construí, caminho para a despersonalização.”, (PSGH, 1988, p. 111).

Sá vê na barata a paródia da escrava negra, simbolizada por Janair (1993, p. 145). É com

dificuldade que G.H. rememora o rosto preto e quieto de Janair que ali morara por seis meses

(PSGH, 1988, p. 26), de pele inteiramente opaca, calada, traços delicados, traços de rainha, de

quem G.H. mal percebia a presença (id., p. 28). Já a barata, descrita com barroquismo, “é um

objeto de grande luxo. Uma noiva de pretas jóias. É toda rara, parece um único exemplar”

(id., p. 46) contrastando com a nudez do quarto que era o “retrato de um estômago vazio” (id.,

p. 29) e com Janair, sem ancas nem seios, corpo ereto, delgado, duro, liso, quase sem carne

(id., p. 28).

A barata possui alguns traços que remetem a Janair: “uma cara sem contorno. As

antenas saíam em bigodes dos lados da boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e

longos bigodes mexiam-se lentos e secos. Seus olhos pretos facetados olhavam”, (id., p. 37),

no entanto a barata é descrita com mais requinte que a empregada: “(...) Era uma barata tão

velha como um peixe fossilizado. Era uma barata tão velha como salamandras e quimeras e

grifos e leviatãs. Ela era antiga como uma lenda. Olhei a boca: lá estava a boca real” (ib.); o

requinte na descrição de um ser tão “repugnante” (vid. p. 56-7 de PSGH, op. cit.) continua:

(...) ela é formada de cascas e cascas pardas, finas como uma cebola, como se cada

uma pudesse ser levantada pela unha e no entanto sempre aparecer mais uma casca,

e mais uma. Talvez as cascas fossem as asas, mas então ela devia ser feita de

camadas e camadas finas de asas comprimidas até formar aquele corpo compacto

(id., p. 37).

E mais: a barata era arruivada “e toda cheia de cílios. Os cílios seriam talvez as

múltiplas pernas. Os fios de antena estavam agora quietos, fiapos secos e empoeirados”, (ib.).

G.H. ainda acrescenta que:

A barata não tem nariz. Olhei-a, com aquela sua boca e seus olhos: parecia uma

mulata à morte. Mas os olhos eram radiosos e negros. Olhos de noiva. Cada olho em

si mesmo parecia uma barata. O olho franjado, escuro, vivo e desempoeirado. E o

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outro olho igual. Duas baratas incrustadas na barata, e cada olho reproduzia a barata

inteira (ib.).

Assim como Janair fora, para G.H., menos que um inseto, e a ex-patroa esperava

encontrar o quarto da ex-empregada sujo e desarranjado (id., p. 23 e 26), a barata, paródia da

escrava negra, ironicamente, é que é a porta estreita, pela qual G.H. terá de passar, em seu

itinerário místico para “o Deus” (id., p. 63), itinerário no qual ela constata que tudo o que está

vivo é feito do mesmo (id., p. 47) e é por meio do inseto que G.H. entende que também ela

mesma é o que está vivo (id., p. 110).

Em PSGH também ocorre a paródia da visão dos profetas, os quais contemplam o

que lhes é revelado (Ezequiel 1, 15): “O que vi não é organizável.”, (PSGH, 1988, p. 44), “E

eu – eu via.”, (id., p. 50), “(...) nesse mundo que eu estava conhecendo, há vários modos que

significam ver: um olhar o outro sem vê-lo, um possuir o outro, um comer o outro, um apenas

estar num canto e o outro estar ali também: tudo isso significa ver” (ib.), e a barata “não me

via com os olhos mas com o corpo.”, (ib.), “(...) meu olhar via nela (...)”, (id., p. 61). Como

nas visões dos profetas G.H. tem uma “meditação visual”, (id., p. 73) tal qual em Habacuc 1,

1, Ezequiel 1, 1, Apocalipse 1, 2 etc. Porém a reversão paródica da visão de G.H. está em que

ela vê um repugnante corpo de barata ao passo que os profetas sobreditos vêem o futuro de

sua nação. Comente-se aqui, de passagem, que o profeta Ezequiel comeu fezes (Ezequiel 4,

12 e 4, 15), o que lhe era interdito porque excremento de homem ou animal era considerado

impuro pela lei à qual o profeta submetia-se; G.H., parecidamente, come algo que lhe era

interdito conforme já pontuamos. Mas se em Ezequiel esse ato é de expiação, em G.H., ao

contrário, conota redenção.

A paródia da visão dos profetas em PSGH está em que G.H descortina presente,

passado e futuro por meio não de Deus – ser sublime; mas de um ser grotesco – a barata.

Nessa narrativa o apelo ao sentido da visão é forte, pois o ver prescinde de palavras, por isso a

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busca até o silêncio final de G.H. passa pelo olhar: “O menos perigoso é, na meditação, “ver”,

o que prescinde de palavras de pensamento.”, (PSGH, 1988, p. 73).

O anacoluto “Olhei-a, à barata (...)”, (id., p. 38), visa acentuar a epifania pelo olhar.

No sentido místico-religioso, a epifania é o aparecimento de uma divindade e uma

manifestação espiritual como em Mateus 17, 1-13, Gênesis 32, 24. Sá (1979, p. 168) afirma

que a epifania constitui uma realidade complexa, perceptível aos sentidos, sobretudo aos alhos

(visões), ouvidos (vozes) e até ao tato.

No contexto paródico-parafrásico de PSGH, o termo epifania significa o relato de

uma experiência que a princípio se mostra corriqueira (o contato com a barata), mas acaba por

mostrar toda a força de uma inusitada revelação. “Sei que me horrorizarei como uma pessoa

que fosse cega e enfim abrisse os olhos e enxergasse” (id., p. 15), “Estou mais cega do que

antes. Vi, sim. Vi, e me assustei com a verdade bruta de um mundo cujo maior horror é que

ele é tão vivo (...).”, (ib.). A relação entre cegueira e visão epifânica reitera, segundo Nunes, o

sentido da cegueira dos videntes gregos como Tirésias.

G.H. vai aos poucos subvertendo o sentido dos mandamentos cristãos. Exôdo 20, 3

diz “não terás outros deuses”, ao passo que G.H afirma poder ser adoradora de um pedaço de

ferro ou vidro (PSGH, 1988, p. 90); ela se embriaga com o desejo de matar a barata (id., p.

35) e cometera um aborto (id., p. 60) ao passo que o mandamento diz “não matarás (Êxodo

20, 13); não honra seu pai e sua mãe (id., p. 103) enquanto o mandamento diz “honra teu pai e

tua mãe” (Exôdo 20, 12).

G.H. ao entrar no quarto vê um “inesperado mural” (PSGH, 1988, p. 27) feito por

Janair: um homem e uma mulher nus que mantinham expostas e abertas as palmas das mãos

(id., p. 28) e um cão que era mais nu do que um cão (id., p. 27) desenhados na parede quase

em tamanho natural, a carvão como uma “mensagem bruta” (id., p. 28). A patroa constata que

“o desenho não era um ornamento: era uma escrita” (id., p. 27) que a fazia lembrar de si

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mesma (id., p. 28): eram os contornos de uma nudez vazia (id., p. 27). A rigidez das linhas

incrustava as figuras agigantadas e atoleimadas como três autômatos, pareciam aparições de

múmias (ib.). Podemos considerar o “desenho hierático” (id., p. 28) uma representação

pictórica paródica (charge) de G.H. na visão de Janair: seria o cachorro o epíteto que Janair

dava a G.H?, esta se pergunta (ib.) e acrescenta que até então só fôra julgada pelos seus pares

e pelo seu próprio ambiente que eram feitos dela mesma e para ela mesma: “Janair era a

primeira pessoa realmente exterior de cujo olhar eu tomava consciência.”, (ib.).

G.H., quando vê o desenho, a princípio é tomada por uma surpresa divertida, depois

se sente constrangida (cada figura olhava para frente como se nunca soubesse que ao lado

existia alguém (id., p. 27), como se fosse uma censura, uma crítica de Janair) e, por último, a

patroa sente um “silencioso ódio daquela mulher” (id., p. 28). Se Janair sabia escrever não

sabemos, porém sua mensagem pictórica para a patroa tem notoriamente um tom

irônico/paródico.

A paródia, diz Sant‟anna (2006), é um espelho, mas invertido. Ao invés de espelho, é

melhor dizer que a paródia é como uma “lente”: exagera os detalhes de tal modo que pode

converter uma parte do elemento focado num elemento dominante, invertendo, portanto, a

parte pelo todo, como se faz na charge e na caricatura, (id., p. 32).

Observemos, agora que Auerbach (1971) afirma que nos relatos do Velho

Testamento o sublime, trágico e problemático formam-se justamente no caseiro e quotidiano,

de modo que os dois campos, isto é, o do insigne e o do insignificante não só estejam, de fato,

inseparados, mas sejam, fundamentalmente, inseparáveis (id., p. 19). Em PSGH, num dia

comum em seu apartamento, a protagonista vai limpar o bas-fond e passa por uma experiência

incomum, de maneira que no trato do sublime e do trágico, que se formam a partir do caseiro

e do quotidiano, a narrativa seja carregada de substância conflitiva, decalcando outrossim o

itinerário bíblico.

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Auerbach (1971, p. 62) ainda observa que o relato da paixão de Jesus nos evangelhos

(Novo Testamento) aniquila totalmente a separação dos estilos – que, diga-se de passagem,

Aristóteles preconizava (1992, p. 20) – pois o Cristo, filho de Deus (Mateus 16, 16),

reconhecido como o Senhor (Filipenses 2, 11), o Messias (João 1, 41), cheio de graça e de

verdade (João 1, 14) é cuspido, açoitado e pregado na cruz, como um criminoso comum. A

não observação da estética da separação dos estilos, produz, segundo o teórico citado:

um novo estilo elevado, que não despreza absolutamente o quotidiano, e que

incorpora em si o realismo sensorial, até o feio, o indigno, o fisicamente baixo; ou,

se se preferir exprimir isto de maneira contrária, surge um novo “sermo humilis”,

um estilo baixo, mas que ora se estende muito além do seu território original,

atingindo o mais elevado e o mais profundo até o sublime e o eterno. (1971, p. 62).

Em PSGH, similarmente, são tratados o grotesco, o feio e o banal, junto com o

sublime, o sagrado e o elevado parodiando textos bíblicos. Destarte, também no tratamento do

sublime unido ao quotidiano ou grotesco, PSGH segue no decalque bíblico, sendo que a

paródia é adequada para essa “mistura de estilos” já que ela, comumente, reconstrói ou

desconstrói textos aceitos pela tradição, de maneira a deslocá-los, originando assim um texto

híbrido, uma mistura.

3.1.2.3 Tratamento paródico dado ao “tópos”

“(...) voltou Jesus do Jordão e foi levado pelo espírito ao deserto, onde foi tentado

pelo demônio durante quarentas dias (...) [nos quais] ele nada comeu e, terminados

estes dias, teve fome.” (Lucas 4, 1-2)

O lugar também recebe marcas muito diferentes dos “topoi” das experiências

místicas, afirma Sá (1993, p. 140). Não é um bosque, nem a noite escura da alma, nem uma

selva tenebrosa como em Dante: “Era um deserto que me chamava como um cântico

monótono e remoto chama (...).”, (PSGH, 1988, p. 40).

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É um lugar nu e esturricado de sol (id., p. 32), quarto seco (id., p. 63) e morto (id., p.

32) de uma empregada que tinha ares de princesa negra e se chamava Janair (id., p. 28), a

qual, pelo nome (Janair/Janaína, outro nome de Iemanjá) e por seus traços, leva o leitor a

associá-la a ritos africanos em contraposição às referências bíblico-cristãs.

Por outro lado, nomeando as múmias do Egito, os hieróglifos, os sarcófagos, o

deserto, a câmara ardente (id., p. 33), as salamandras e os grifos, reis, esfinges e leões (id., p.

69) o texto fornece-nos elementos de ambiência oriental:

(...) sinto no hieróglifo da barata lenta a grafia do Extremo Oriente. E neste deserto

de grandes seduções, as criaturas: eu e a barata viva. A vida, meu amor, é uma

grande sedução onde tudo o que existe se seduz. Aquele quarto que estava deserto e

por isso primariamente vivo. Eu chegava ao nada, e o nada era vivo e úmido (id., p.

40).

O acúmulo desses aspectos, chamados a compor o clima da experiência mística dessa

mulher que reside, confortavelmente, num apartamento de cobertura, não desmente, antes

confirma, sua entonação irônica. Lúcida em relação a si mesma, G.H. não representará a

paródia de seus próprios limites?, indaga Sá (1993, p. 140).

Vimos que o recurso da paródia, assaz utilizado em PSGH, subverte o tradicional

conceito de mímesis, haja vista que o texto se compraz num exercício de linguagem, no qual

esta se desdobra sobre si mesma num jogo de espelhos em que a matéria-prima ficcional não é

a realidade, é antes a linguagem. A narradora refaz o sentido das palavras, desautomatizando a

leitura, por meio do uso de paradoxos ou do emprego de conceitos e palavras que adquirem

um novo sentido que não o do senso comum: redenção e inferno, e. g. – o que exige do leitor

uma leitura consciente e atenta, de modo a percorrer, com a protagonista, o itinerário da

linguagem. É Leyla Perrone quem diz que: “As palavras devem ser revisitadas, reexaminadas

e exploradas, elas nos ajudam na aproximação do saber que buscamos na medida mesma em

que conhecemos seus pressupostos e seus limites.” (1984, p. 102).

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3.1.2.3.4 Espaço, tempo e enredo na narrativa

“(...)

Vou abrir uma via pelo deserto,

e fazer correr arroios pela estepe.” (Isaías 43, 19)

A narrativa de PSGH passa-se predominantemente em um quarto de apartamento, o

último andar de um edifício de treze andares (PSGH, 1988, p. 24), sito na cidade do Rio de

Janeiro (id., p. 70).

O quarto é simples, de pequenas proporções, com uma cama e um guarda-roupa.

Porém este pequeno aposento, ao longo da narrativa, vai ganhando contornos, no mínimo,

interessantes.

O quarto que é o retrato de um estômago vazio contrasta com o restante do

apartamento que tem penumbras e luzes úmidas, e em que um aposento precede e promete o

outro elegantemente (id., p. 21).

Quando a proprietária do apartamento se dirige ao corredor escuro (id., p. 25) que

leva ao quarto em que se passará o que há de relevante na narrativa, G.H. “em vez da

penumbra confusa que esperara, esbarrava na visão de um quarto que era um quadrilátero de

branca luz (...)” (id., p. 26). Tratava-se de um aposento todo limpo e vibrante como num

hospital de loucos (ib.), o quarto parecia estar em nível incomparavelmente acima do próprio

apartamento, dava a impressão de minarete, solto acima de uma extensão ilimitada (ib.):

O quarto não era um quadrilátero regular: dois de seus ângulos eram ligeiramente

mais abertos. E embora esta fosse a sua realidade material, ela me vinha como se

fosse minha visão que o deformasse. Parecia a representação, num papel, do modo

como eu poderia ver um quadrilátero: já deformado nas suas linhas de perspectivas.

A solidificação de um erro de visão, a concretização de um ilusão de ótica. Não ser

inteiramente regular nos seus ângulos dava-lhe uma impressão de fragilidade de base como se o quarto-minarete não estivesse incrustado no apartamento nem no edifício

(id., p. 27)

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O sol era fixo e desnudava em mais brancas ainda as paredes caiadas do aposento

(ib.). Parecia uma profunda incisão na parede (id., p. 40). O quarto vibrava em silêncio,

“laboratório de inferno”, (id., p. 39).

A alusão a vários espaços e civilizações dão à dimensão espacial e temporal um

tratamento polissêmico: “(...) quarto escavado na rocha de um edifício, da janela do meu

minarete (...)”, (id., p. 69), conforme ficará mais claro adiante.

Como o branco mármore exterior do edifício, o quarto escondia atrás de si o

labirinto de fundos, feito de canos retorcidos, canyons e despenhadeiros cinzentos. Da janela

de seu minarete, G.H. descortina, num só momento, toda a extensão “além das gargantas

rochosas, entre os cimentos dos edifícios, (...) a favela sobre o morro (...). Mais além

estendiam-se os planaltos da Ásia Menor. (...). Aquele era o estreito de Dardanelos. Mais

além as escabrosas cristas”, (ib.). Aqui abrimos um parêntese para observar que este

fragmento apresenta, outrossim, a ressonância do texto bíblico referente à tentação de Jesus

no deserto, onde este é levado pelo “demônio” ao alto de um monte (G.H. está no último

andar de seu edifício e o quarto é aproximado do deserto pelas adjetivações), no qual o

príncipe do inferno mostra-lhe “num só momento todos os reinos da terra”, assegurando que

todos seriam de Jesus, se este o adorasse, ao que o tentado responde ao tentador que só

adoraria e serviria a Deus (Lucas 4, 1-8). G.H., em contrapartida, diz que já estava vendendo

sua alma humana, seu futuro e sua salvação (PSGH, 1988, p. 51).

A adjetivação aproxima o quarto do deserto: seco, árido, sarcófago, câmara ardente,

(id., p. 33), morto, nu e esturricado (id., p. 32). De repente, porém, o deserto fica verde, como

na epígrafe com que abrimos este subtópico (: “Acordei de súbito do inesperado oásis verde

onde por um momento eu me refugiava toda plena.”, (PSGH, 1988, p. 53).

O espaço é plástico: “Com o jogo de feixes de luz, o teto se arredondara e

transformara-se no que me lembrava uma abóbada.”, (id., p. 54). O cômodo vai ganhando

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proporções insólitas: “O quarto não tinha um ponto que se pudesse chamar de seu começo,

nem um ponto que pudesse ser considerado o fim. Era de um igual que o tornava

indelimitado.”, (id., p. 30-1).

Enfim, pudemos constatar que o espaço representado na narrativa não é linear.

Tratado com plasticidade, esse espaço, a despeito de ser constituído por quatro paredes, vai

ganhando contornos de indefinido, de sem limites.

O tempo de PSGH, tal qual o espaço, recebe um tratamento polissêmico. G.H. narra

no dia seguinte à experiência-limite pela qual passou e que durou algumas horas.

A referência temporal que se segue situa o leitor e o tempo da narrativa: “Ontem no

entanto perdi durante horas e horas a minha montagem humana.” (id., p. 10); “ontem de

manhã”, (id., p. 17); “ontem à mesa do café”, (id., p. 20); “ontem de manhã”, (id., p. 21);

“naquela manhã, antes de entrar no quarto, o que era eu? Era o que os outros sempre me

haviam visto ser, e assim eu me conhecia”, (id., p. 17); “eram quase onze horas da manhã”,

(ib.). “deviam ser dez e pouco da manhã”, (id., p. 34); “(...) as próximas vindouras onze horas

da manhã me pareceram um elemento de terror – como o lugar, também o tempo se tornara

palpável, eu queria fugir como de dentro de um relógio, e apressei-me desordenadamente”,

(ib.); “O que foi que sucedeu ontem? e agora?”, (id., p. 44); “desde ontem já saí daquele

quarto, eu já saí, estou livre!”, (ib.).

Ocorrem algumas referências temporais que inserem G.H. no tempo histórico,

conferindo realismo e verossimilhança à narrativa, na medida em que se mostra que a

personagem não está recortada da realidade e que ela não nasceu por geração espontânea

naquele apartamento: G.H. lembra-se de sua pobreza em criança, com percevejos, goteiras,

baratas e ratos, (id., p. 33); ela havia comprado uma blusa (id., p. 59), o que a insere num

mundo mais amplo que o do espaço do apartamento; diz que irá, se chegar ao fim do relato,

comer e dançar no “Top Bambino”, que irá se divertir e se divergir, usará o vestido azul novo,

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telefonará para Carlos, Josefina, Antônio, comerá “crevettes”, “hoje de noite, hoje de noite vai

ser a minha vida diária retomada”, (id., p. 104); e a lembrança do aborto que praticara (id., p.

60).

O tempo verbal usado predominantemente na narrativa é o pretérito imperfeito do

indicativo, ou o imperfeito do indicativo com o gerúndio, o que enfatiza o aspecto durativo da

ação: “abria-se em mim a larga vida do silêncio”, (id., p. 39); “eu estava saindo do meu

mundo e entrando no mundo”, (id., p. 42); “é que eu não estava mais me vendo, estava era

vendo”, (ib.); “(...), ontem, num dia tão cheio de sol como estes dias do ápice do verão, com

os homens trabalhando e as cozinhas fumegando e a broca britando as pedras e as crianças

rindo e um padre lutando”, (id., p. 45), aqui se subentende a elipse do verbo “estar” no

pretérito imperfeito do indicativo; “estava me despedindo”, “estou pedindo socorro”, (id., p.

48); “A barata com a matéria branca me olhava.”, (id., p. 50); “Sentada, eu estava

consistindo”, (id., p. 56); “Estava me libertando de minha moralidade”, (id., p. 57); “A barata

me tocava toda com seu olhar negro, facetado, brilhante, neutro”, “e agora eu começava a

deixá-la me tocar”, (id., p. 58); “como ontem eu estava, e ontem eu só rezava”, (id., p. 64);

“sentir esse gosto do nada estava sendo a minha danação e o meu alegre terror”, (id., p. 67);

“Eu estava vivendo a pré-história de um futuro”, (id., p. 70); “Eu estava atingindo o que havia

procurado a vida toda; aquilo que é a identidade mais última e que eu havia chamado de

inexpressivo”, (id., p. 85-6).

A narrativa, a despeito de dar-se no passado, presentifica-se, porque ao

reinventar, narrando, G.H. revive o que lhe aconteceu e dá ênfase à dimensão performativa da

linguagem, uma vez que esta é ação, é uma forma de agir no mundo, porquanto os verbos

performáticos descritos pela lingüística são verbos tais como „eu prometo‟, „eu juro‟, „eu (te)

batizo‟, „eu ordeno‟, „eu suplico‟ etc. Tais verbos, pelo simples fato de serem pronunciados,

realizam a ação que nomeiam. Os verbos performáticos têm, portanto, como condição de

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realização, a fato de estarem na primeira pessoa do singular do presente do modo indicativo.

G.H. parece ter consciência dessa dimensão da linguagem: “ – Eu me prometo para um dia

este mesmo silêncio (...).”, (PSGH, 1988, p. 74); “juro, farei tudo o que quiserem! Mas não

me deixem presa no quarto da barata porque uma coisa enorme vai me acontecer (...).” (id., p.

62).

A presentificação da narrativa continua: “agora sim, eu estava realmente no

quarto”, (id., p. 43, grifo nosso); “Agora era com os olhos erguidos que eu a via [à barata]. Ela

me olhava de cima para baixo”, (id., p. 49); “(...) estou perdendo a coragem de achar o que

quer que eu tiver de achar”, (id., p. 48); “entre a atualidade e eu não há intervalo: é agora, em

mim”, (id., p. 51); “o que eu nunca havia experimentado era o choque com o momento

chamado “já”. Hoje me exige hoje mesmo”, (ib.).

G.H. diz que finalmente sucumbiu. E tornou-se um agora, (id., p. 52). Era já. Pela

primeira vez em sua vida tratava-se plenamente de agora, (id., p. 53): “Era finalmente agora.

Era simplesmente agora. Era assim: o país estava em onze horas da manhã”, (ib.);

São onze horas da manhã no Brasil. É agora. Trata-se exatamente de agora. Agora é

o tempo inchado até os limites. Onze horas não têm profundidade. Onze horas está

cheio das onze horas até as bordas do corpo verde. O tempo freme como um balão

parado. (ib.).

A narradora quer o tempo presente que não tem promessa, que é, que está sendo, (id.,

p. 57). Ela pede para não ser abandonada nesta hora, “não me deixes tomar sozinha esta

decisão”, (id., p. 63); “por enquanto, hoje, eu vivia no silêncio”, (id., p. 70); “Mas agora,

olhando a barata (...)”, (id., p. 73); “E agora – agora estou vendo outra barata avançando”,

(id., p. 74); “Estou somente amando a barata. E é um amor infernal”, (id., p. 75); “E tudo isto

é neste próprio instante, é no já. Mas ao mesmo tempo o instante atual é todo remoto”, (id., p.

79); “o Deus me ocupava toda agora”, (id., p. 85); “Através da barata viva estou entendendo

que também eu sou o que é vivo”, (id., p. 110).

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O tempo vai passando e é indicado pelas mudanças de luz no quarto: “Ao sol a massa

branca da barata estava ficando mais seca e ligeiramente amarelada. Isso me informava que se

passara mais tempo do que eu imaginara.”, (id., p. 59).

O uso do pormenor tem uma função referencial (reforçar a aparência de realidade –

verossimilhança, e dar credibilidade ao objeto ficcional) (...).

A visão realista só se completa graças ao registro das alterações trazidas ao

pormenor pelo tempo, pois ao introduzir a duração introduz a história no cerne da

representação da realidade. O efeito do tempo sobre o detalhe. As coisas, os seres, as

relações existem na medida em que duram. (CÂNDIDO, s. d., p . 124)

A título de esclarecimento, lembramos que visão realista, para Cândido,

pressupõe a multiplicação do pormenor, a sua especificação progressiva e o registro de suas

alterações no tempo (id., p. 123). Não se trata do realismo estritamente concebido enquanto

escola literária correspondente ao final do século XIX, mas à observação ao princípio da

verossimilhança e da necessidade de que fala Aristóteles, (Poética online, p. 14), isto é, de

maneira que o dado exposto pareça resultar, necessariamente ou por verossimilhança, dos

fatos anteriores, (id. p. 17).

Outro detalhe relativo à alteração de luz no quarto indica a passagem do tempo:

“quando acordei, o quarto tinha um sol ainda mais branco e mais fervidamente parado”, (id.,

p. 67). Aqui abrimos um parêntese para comparar o último excerto citado com o trecho

bíblico de Josué 10, 13 no qual se diz que o sol ficou parado e a lua não se moveu: “O sol

parou no meio do céu, e não se apressou a pôr-se pelo espaço de quase um dia inteiro” devido

às preces de Josué, o tempo se dilatou, por assim dizer. Não parece ser coincidência que em

PSGH o sol fique fervidamente parado no meio do céu: “devia ser mais de meio-dia” (PSGH,

1988, p. 68), sobretudo se já é evidente a intertextualidade de “A Paixão...” com a bíblia.

Enfim, pudemos constatar que o tempo representado na narrativa não é logicamente

constituído, a saber, é alinear. Tratado com plasticidade, esse tempo – a despeito de ser

marcado entre aproximadamente onze horas da manhã até pouco depois do meio-dia – vai

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inchando até os limites e, no choque com o momento chamado “já”, o passado culmina no

“agora” quando rememorado.

Sá (1979, p. 99) observa que o tempo experimentado pela mente humana tem a

qualidade de fluir, e embora os momentos sucessivos se escoem constantemente, o fluir

perdura, no seio da própria mudança. G.H. conta, rememorando sua experiência que perdura

apesar de finda, o que ressalta o aspecto psicológico da memória como instrumento de

registro dinâmico dos acontecimentos.

A reescritura da memória, acrescenta Sá (ib., p. 99-100), tem seus pontos de

condensação, seus saltos, ubiqüidades e deslocamentos, de modo a fundir passado, presente e

futuro; a chamada “lógica das imagens” é regida por associações significativas para o sujeito:

“o meu passado que era o meu contínuo presente e o meu futuro contínuo (...)”, (PSGH, 1988,

p. 43), “Eu estava vivendo a pré-história de um futuro”, (id., p. 70); alude a tempos remotos

da civilização, bem como a tempos vindouros e segue mesclando-os com o presente, bem

como associa o quarto à imagem do minarete, do estômago vazio, ou estabelece relação da

imagem da barata com a de uma mulata à morte ou com a imagem de uma noiva de pretas

jóias etc..

Passado e presente caminham em ondas concêntricas, reforçando a estrutura

cíclica da narrativa.

A fabulação constitui o conjunto das ações, segundo Aristóteles; equivaleria,

portanto, ao enredo, que se compõe do conjunto dos incidentes que formam a ação de uma

narrativa. Porém conforme apontamos, em PSGH a dramaticidade está no discurso e não nas

ações. G.H. inicia seu relato com interrogações contínuas que além de exprimirem suas

dúvidas, dinamizam a narrativa, estabelecendo um diálogo implícito com o leitor, conforme

observa Nunes (1988, p. 10).

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O enredo de PSGH está no monólogo de que se vale a narradora a fim de realizar seu

“relato”, que, grosso modo, poderíamos abreviar em seis palavras: mulher come uma barata

no quarto. Não fosse a performance do relato, a qual sobressai diante do enredo, isto é, em

vez da narrativa em sua seqüência de acontecimentos (fábula), revela-se a construção desses

mesmos acontecimentos (trama): intertextualidade, repetição, metalinguagem, fragmentação

etc configurados em monólogo e fluxo de consciência, nos quais sobressai a voz e a

consciência da personagem na construção da narrativa.

Desta sorte, PSGH exprime a crise do romanesco, abandonando enredo, tempo,

espaço ficcional e personagem; exprime também, a crise do sagrado no mundo moderno

(NUNES, 1988, p. 82).

3.1.2.3.4.5 Um comentário sobre espaço e tempo na narrativa

Por ora, apontamos o real e a representação em PSGH no que diz respeito ao ser e à

linguagem; agora, apontaremos os mesmos itens, porém no plano da imagem propriamente

dita, correlacionando a representação ou organização do tempo e do espaço na narrativa em

questão com as técnicas introduzidas pelos novos modos de produção e reprodução de cultura,

baseados sobretudo na imagem; para tanto tomaremos por base Tânia Pellegrini (2003),

segundo a qual, o texto literário vem sofrendo transformações sensíveis – ocasionadas pela

emergência do universo cultural colorido e cambiante do cinema, telenovela, propaganda,

história em quadrinhos etc – expressas numa espécie de diálogo com esse universo, cujas

marcas estão claras na própria tessitura do texto.

Há sempre um horizonte técnico a considerar, influindo diretamente nas formas de

percepção e de representação literárias, afirma Pellegrini; por isso a representação do tempo

nas narrativas surgidas no bojo das transformações estéticas das vanguardas no início do

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século XX e após a Segunda Guerra Mundial está mediada pelos recursos tecnovisuais de sua

época correspondente. Esclareça-se que em Laurence Sterne no Tristram Shandy, século

XVIII – conforme aponta Sá (1979, p. 91 et. seq.) – observa-se, e. g., uma ruptura temporal na

ficção, prenunciando, portanto, o fenômeno da crise da representação. No entanto, o

recrudescimento das transformações apontadas por Pellegrini dá-se, mormente, partir do

início do século XX.

O abandono do enredo e a relativização do papel do herói, segundo Pellegrini,

convergem para um novo conceito de tempo que acentua a inadequação do relógio como

único mensurador do escoamento das horas, e a simultaneidade dos conteúdos da consciência

– a qual engloba presente, passado e futuro num amálgama que flui ininterruptamente – passa

a constituir dado essencial. “Trata-se do tempo entendido como duração, o „tempo da mente‟,

que não coincide com as medidas temporais objetivas. A radicalização desse aspecto vai

desembocar no fluxo de consciência.”, (PELLEGRINI, 2003, p. 21) Comparemos com um

fragmento de PSGH: “(...) como o lugar, também o tempo se tornara palpável, eu queria fugir

como de dentro de um relógio, e apressei-me desordenadamente”, (1988, p. 34). O tempo

nessa narrativa freme como um balão parado (id., p. 53) e o espaço é plástico (id., p.54), a

heroína é fútil e superficial (id., p. 18 e 22), o fluxo de consciência permeia todo o texto (id.,

p. 10 em que ocorrem contínuas interrogações feitas pela narradora), o enredo é relativizado:

em vez da fábula, predomina a trama, conforme já foi pontuado. Enfim todos esses elementos

que apontamos demonstram à farta o que Pellegrini teoriza, isto é, a concepção de tempo,

espaço, narrativa, narrador, enredo, herói etc na narrativa surgida no bojo das transformações

estéticas das vanguardas no início do século XX e após a Segunda Guerra tem enorme

afinidade com os novos recursos tecnovisuais então nascentes, entre eles: a técnica

cinematográfica. Abra-se um parêntese a fim de pontuar a questão da multiplicação da

imagem em várias cópias, possibilitada pelos novos modos de produção e reprodução de

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cultura, fato que está presente em PSGH na maneira como a narradora diz que “cada olho em

si mesmo parecia uma barata. (...). E o outro olho igual. Duas baratas incrustadas na barata, e

cada olho reproduzia a barata inteira”, (id., p. 37).

Conforme apontamos no tópico anterior, em PSGH, a representação do espaço e do

tempo é alinear, havendo, sem embargo, a questão do tempo mítico e circular (do qual

falaremos em momento azado) presente na própria disposição dos capítulos que se iniciam

iterando a última frase do capítulo precedente; a explicação para esse fenômeno que

identificamos na narrativa de Clarice Lispector poderia estar, portanto, na intercorrência dos

procedimentos de representação por meio da imagem (no cinema, e. g.) com a narrativa

literária:

Todavia, não se deve atribuir apenas à influência dessa nova técnica à alteração da

dimensão espaço-temporal do romance moderno, pois ela também coincide com

outros elementos relacionados ao desenvolvimento das artes plásticas, como, por

exemplo, o sistema cubista das perspectivas múltiplas, o que demonstra como as

diversas linguagens artísticas mantêm entre si um constante e frutífero diálogo. Mas

é inegável que há entre o desenvolvimento do romance – relacionado sobretudo

com a subversão da ordem cronológica da narrativa – e a conquista pelo cinema de

uma linguagem própria (cortes, planos, angulações) uma convergência bastante

acentuada. (PELLEGRINI, 2003, p. 23)

A alteração da dimensão espaço-temporal da narrativa literária moderna é atribuída,

segundo a autora supracitada, não apenas ao cinema, telenovela, propaganda ou história em

quadrinhos; mas também ao sistema cubista de perspectivas múltiplas, este está relacionado à

fragmentação da imagem – fenômeno que observamos em PSGH, em que por meio do

processo metonímico, a coisa é substituída por um pedaço de coisa – a barata: por sua antena,

a parede: pela caliça (PSGH, 1988, p. 88), o interlocutor imaginário é substituído pela mão

(id., p. 42). Oportunamente, refletiremos de modo mais amiudado acerca desse processo de

fragmentação. Por ora, é suficiente notar, a tentativa (no plano discursivo) da narrativa

literária de fazer com palavras o que o cinema faz com as imagens.

A narrativa literária inventa uma série de artifícios e convenções, destinados a criar a

ilusão do simultâneo, buscando fazer com palavras o que o cinema faz com as imagens; a

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tentativa de capturar o tempo fez com que ele viesse a se tornar a principal personagem das

narrativas do século XX, afirma Pellegrini e acrescenta:

“Tempo fluente”, “tempo intemporal”, “tempo em estado puro”, “sinfonias

temporais”, “tempo ritual e cíclico” e “eterno retorno” são denominações usadas

para as múltiplas possibilidades de representação temporal que a narrativa [surgidas

no bojo das transformações estéticas das vanguardas no início do século XX]

desenvolveu, num maior ou menor, porém inquestionável, vinculo com a imagem

em movimento. (PELLEGRINI, 2003, p. 23)

As mudanças que se vieram processando na narrativa literária ao longo do tempo,

refletidas numa crescente sofisticação das técnicas de representação (monólogo interior, fluxo

de consciência, descontinuidade, desaparecimento do narrador etc), deveram-se à

incorporação das técnicas visuais pela narrativa literária (PELLEGRINI, 2003, p. 28). De fato,

em PSGH, como vimos, o tempo é fluente, a tentativa de corporificá-lo textualmente, de

representá-lo em sua fluidez, revela-se na técnica do monólogo interior, do fluxo de

consciência, na descontinuidade, em que o passado narrado e rememorado pela protagonista

culmina num “agora” inchado até os limites (PSGH, 1988, p. 53); na relativização do papel do

herói (G.H. se “deseroíza”, vid.: id., p. 115) e do enredo.

Desta sorte, Pellegrini conclui que a natureza da literatura não passou incólume pelas

gradativas e profundas transformações que se efetivaram, como resultado das novas técnicas

introduzidas pelos novos modos de produção e reprodução de cultura, baseados sobretudo na

imagem. E PSGH não foi exceção, nesse sentido. A tentativa de apreender o espaço e o tempo

na narrativa em questão desencadeia os processos que apontamos: fluxo de consciência, herói

relativizado etc, esses recursos entram a serviço da representação.

3.2 Paráfrase: origem e definições

“Comer-se-ão coisas insípidas sem sal, ou há sabor na seiva

viscosa da alteia?” (Jó 6, 6)

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Ao contrário do termo paródia, não se encontra uma história do termo para-phrasis

(que já no grego significava: continuidade ou repetição de uma sentença), afirma Sant‟Anna

(2006, p. 17).

A paráfrase está do lado da imitação e da cópia, não provoca corte, tampouco

ruptura, invenção ou descontinuidade, surge como um “desvio mínimo” em que repousando

sobre o idêntico e o semelhante, pouco faz evoluir a linguagem – constitui um discurso em

repouso – ocultando-se atrás de algo já estabelecido, de um velho paradigma (id., p. 28). A

ideologia tende a falar sempre do “mesmo” e do “idêntico”, a repetir suas afirmações

tautologicamente diante de um espelho (id., p. 29).

Mais do que um efeito retórico e estilístico, a paráfrase é um texto ideológico de

continuidade de um pensamento, fé ou procedimento estético, observa Sant‟Anna (id., p. 22).

É um discurso sem voz, pois quem está falando está falando o que o outro já disse. É uma

máscara que se identifica totalmente com a voz que fala atrás de si. Nesse sentido, ela difere

da paródia, pois, nesta, a máscara denuncia a duplicidade, a ambigüidade e a contradição (id.,

p. 29-30).

A paráfrase é um espelho em que há a dificuldade de saber, afinal, de quem é

determinado discurso, qual o verdadeiro autor, pois os textos se confundem num jogo de

espelhos. É como se o texto passasse de pai (ou mãe) para filho, como se houvesse uma

mistura indiferenciada do corpo da mãe e do corpo do filho. O filho-texto olhando-se

indiferenciadamente nos olhos da mãe (id., p. 32); em contrapartida a paródia é o texto ou

filho rebelde, que quer negar sua paternidade e quer autonomia e maioridade num gesto

inaugural da autoria e da individualidade, conforme já apontamos.

O mecanismo da paráfrase é semelhante ao da paródia no que diz respeito a haver um

diálogo não com a realidade aparente das coisas, mas com a realidade da própria linguagem.

Apontaremos a seguir alguns excertos do texto PSGH em que ocorram a paráfrase.

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G.H. afirma que soube o que não pôde entender e que, por conseguinte, sua boca

ficou selada (PSGH, 1988, p. 12). Em Isaías 6, 6-7, o profeta, durante sua visão, tem a boca

selada por uma brasa viva com uma tenaz.

G.H. parafraseia o texto bíblico a fim de dizer que por ter visto o que não entendia,

não teria como dizer já que a nossa cognição, segundo Blikstein (1995), estaria sujeita a um

processo ininterrupto de estereotipação (ou reconhecimento), a ponto de considerarmos real e

natural todo um universo de referentes e realidades fabricadas. Daí a função fascista da

linguagem de que fala Barthes (1978, p. 14). A língua amarra a percepção/cognição,

impedindo o individuo de ver a realidade de um modo não programado pelos corredores de

estereotipação (BLIKSTEIN, 1995, p. 82): “Mas como faço agora? Devo ficar com a visão

toda, mesmo que isso signifique ter uma verdade incompreensível? ou dou uma forma ao

nada, e este será o meu modo de integrar em mim a minha própria desintegração?”, (PSGH,

1988, p. 11).

Todo esse processo – da práxis (experiência) ao referente – desenvolve-se, em

princípio, numa dimensão não-verbal, sem a intervenção obrigatória da língua (G.H. teve uma

experiência que por ser inédita não pôde ser enquadrada num esquema de percepção

estereotipado, por isso sua boca ficou selada). A práxis opera em nosso sistema perceptual,

ensinando-nos a “ver” o mundo com os “óculos sociais” ou estereótipos e gerando conteúdos

visuais, tácteis, olfativos, gustativos, na dimensão cinésica e proxêmica (gestos, movimentos,

espaços, distâncias, tempos etc), independentemente da ação e do recorte da linguagem linear,

afirma Blikstein (1995, p. 65-66). E como para G.H. aquela experiência fôra inédita, ela não

soube que forma dar ao que lhe aconteceu. A linguagem pode servir, segundo Blikstein (id., p.

83) para preencher o vazio por uma situação nova:

Já que tenho de salvar o dia de amanhã, já que tenho que ter uma forma porque não

sinto força de ficar desorganizada, já que fatalmente precisarei enquadrar a

monstruosa carne infinita e cortá-la em pedaços assimiláveis pelo tamanho de minha

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boca e pelo tamanho da visão de meus olhos, já que fatalmente sucumbirei à

necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar indelimitada – então que pelo

menos eu tenha a grande coragem de deixar que essa forma se forme sozinha como

uma crosta que por si mesma endurece, e nebulosa de fogo que se esfria em terra. E

que tenha essa grande coragem de resistir à tentação de inventar uma forma (PSGH,

1988, p. 11).

Blikstein afirma (1995, p. 80) que a impossibilidade de capturar a semiose não-

verbal, que se desencadeia na dimensão oculta entre a práxis e o referente, compele o

individuo a recorrer ao sistema verbal para materializar e compreender a significação

escondida: “Mas é que também não sei que forma dar ao que me aconteceu. E sem dar uma

forma, nada me existe. E – e se a realidade é mesmo que nada existiu?!”, (PSGH, 1988, p.

11).

Mas como bem notou Schaff (apud BLIKSTEIN, 1995, p. 84-85), a linguagem não é

só reflexo, reprodução ou reiteração da práxis. Ela poderá também desenvolver uma ação

dialética e criativa na medida em que desarranjar a práxis e os corredores isotópicos e

desmontar os estereótipos perceptuais. A linguagem deixa de ser inquestionavelmente

ditatória quando, subvertendo a si mesma, subverte a percepção/cognição:

(...) Quem sabe me aconteceu apenas uma lenta e grande dissolução? E que minha

luta contra essa desintegração está sendo esta: a de tentar agora dar-lhe uma forma?

Uma forma contorna o caos, uma forma dá construção à substância amorfa – a visão de uma carne infinita é a visão dos loucos, mas se eu cortar a carne em pedaços e

distribuí-las pelos dias e pelas fomes – então ela não será mais a perdição e a

loucura: será de novo a vida humanizada (PSGH, 1988, p. 11).

Há a citação explícita da bíblia, capítulo 11, versículos 13-19 de Levítico ou

Deuteronômio 14, 11-19 em que se diz: “Mas não comereis das impuras: quais a águia, e o

grifo, e o esmerilhão.”. G.H. no subsolo do texto bíblico diz: “E tudo o que anda de rastos e

tem asas será impuro, e não se comerá.” (PSGH, 1988, p. 47). A razão do interdito, para G.H.,

é que o imundo é o núcleo do vivo, o neutro, o sem adornos, a raiz, (id., p. 47). E afirma que

se sentia imunda como a bíblia fala dos imundos (id., p. 46), reiterando a referência a que faz

ao texto bíblico.

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Já apontamos que a alteração de sentido do “comer o imundo” processa-se em PSGH

como na bíblia – do antigo (restrições com relação ao comer) para o novo testamento (Mateus

15, 10: não é o que entra pela boca que torna impuro, Romanos 14, 17: o reino de Deus não é

questão de comida ou bebida), ou seja, o imundo deixa de ser considerado imundo na bíblia

como em G.H., para quem “na experiência de vida tudo é licito” (PSGH, 1988, p. 97).

A questão que consta no Gênesis de comer o fruto do bem e do mal relacionado à

expulsão do paraíso também serve de referência a G.H.:

Eu estava sabendo que o animal imundo da Bíblia é proibido porque o imundo é a

raiz – pois há coisas criadas que nunca se enfeitaram, e conservaram-se iguais ao

momento em que foram criadas, e somente elas continuaram a ser a raiz ainda toda

completa. E porque são a raiz é que não se podia comê-las, o fruto do bem e do mal

– comer a matéria viva me expulsaria de um paraíso de adornos (...) (id., p. 47).

No paradoxo segundo o qual G.H. afirma ter experimentado a “vivificadora morte”,

(id., p. 12), coloca-se um dos temas de PSGH, a saber: a falsa oposição entre Eros e Thánatos,

em que se recapitula o paradoxo bíblico segundo o qual quem perder sua vida há de ganhá-la

(Mateus 16, 25; Marcos 8, 35; Lucas 9, 24).

G.H cita Lucas 17, 1: “O escândalo ainda é necessário, mas ai daquele por quem vem

o escândalo”, (PSGH, 1988, p. 57). Vimos que a paráfrase é a reafirmação, em palavras

diferentes, do mesmo sentido de um texto, ou pode ser a afirmação geral da idéia de uma

obra, aproximando-se do original em extensão (BECKSON e GANZ apud SANT‟ANNA,

2006, p. 17). No trecho sobredito há, no entanto, uma citação explícita que houvemos por bem

considerar indiferenciadamente paráfrase, haja vista que há em ambas (citação e paráfrase) a

intenção tautológica, de caráter especular, isto é, de repetir conceitos ou idéias.

G.H. cita explicitamente o trecho, que provavelmente lera em alguma mídia,

“Perdida no inferno abrasador de um canyon uma mulher luta desesperadamente pela vida”,

(PSGH, 1988, p. 54), a fim de dar a conhecer o estado psíquico em se encontrava. Cita a si

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mesma a fim de se ironizar, imitando-se: “(...) ah, não quero dizer que é o contrário da beleza,

“contrário de beleza” nem faz sentido (...).”, (id., p. 55).

No fragmento que se segue referente à ocasião em que G.H. fora praticar um aborto:

“(...) eu bem disse ao senhor: „o que mais me incomoda, doutor, é que estou respirando

mal‟.”, (id., p. 60), G.H. novamente cita-se, aqui com o intuito de desdobrar a si mesma

(“como se não fosse eu”, p. 22) e atualizar sua fala (“E tudo isto é neste próprio instante, é no

já. Mas ao mesmo tempo o instante atual é todo remoto (...).”, p. 79), pois ela poderia ter

usado o discurso indireto introduzido pelo pronome relativo „que‟, mas optou pelo discurso

direto.

Neste outro trecho, ela põe sua fala entre aspas como se houvesse um desdobramento

de si para a 3ª pessoa: “ „juro, farei tudo o que quiserem! Mas não me deixem presa no quarto

da barata porque uma coisa enorme vai me acontecer, eu não quero as outras espécies! Só

quero as pessoas‟.”, (id., p. 62). Aliás, é de se observar que em algumas construções sintáticas

anômalas G.H. se desdobra em outras pessoas do discurso, as quais se mesclam e se fundem:

(...) não consigo dar o passo para mim, mim que és Coisa e Tu. Dá-me o que és em

mim. Dá-me o que és nos outros, Tu és o ele, eu sei, eu sei porque quando toco eu

vejo o ele. Mas o ele, o homem, cuida do que lhe deste e envolve-se num invólucro

feito especialmente para eu tocar e ver. E eu quero mais do que o invólucro que

também amo. Eu quero o que eu Te amo (id., p. 89)

G.H. diz ainda: “(...) mim – que és Tu, Tu fulgor do silêncio. Eu não sou Tu, mas

mim és Tu. Só por isso jamais poderei Te sentir direto: porque és mim.”, (id., p. 85). As

equações: Mim = tu; eu não sou tu; Tu = mim, exprimem excluindo o „eu‟ (pronome do caso

reto, indicando a vida pessoal) de qualquer identificação com o „Tu‟ divino e afirmando essa

mesma identificação com o „mim‟ de G.H. (pronome do caso oblíquo, indicando a eliminação

da vida pessoal, no despojamento total de sua humanidade ou despersonalização), conforme

observa Nunes (1988, p. 84).

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“Essa mulher calma que eu sempre fora, ela enlouquecera de prazer?”, (PSGH, 1988,

p. 36), neste último excerto a construção sintática não é anômala, porém ocorre o mesmo

fenômeno já apontado, isto é, o desdobramento em outras pessoas do discurso (3ª pessoa, 1ª

pessoa, 3ª pessoa, respectivamente).

Novamente G.H. põe sua fala entre aspas se imitando: “ „Ah, quero voltar para a

minha casa‟, pedi-me de súbito, pois a lua úmida me dera saudade da minha vida.”, (id., p.

70), com o intuito de desdobrar-se e atualizar sua fala como já apontamos.

A narradora de PSGH parafraseia a outros textos: “(...) os geólogos já sabem que no

subsolo do Saara há um imenso lago de água potável, lembro-me de que li isso; (...) eu havia

lido (...).”, (id., p. 71); “(...) disso eu também me lembrava das leituras de antes de dormir

(...).”, (id., p. 72).

O trecho em que G.H. diz que caíra na tentação de ver, na tentação de saber e de

sentir, (id., p. 82) faz ressonância com o texto bíblico de Lucas 11, 4 (ou Mateus 6, 13) em

que se roga para não se cair em tentação, e com Mateus 18, 8-9, o qual diz que se a mão, o pé

ou o olho fazem cair em pecado, deve-se cortá-los e lançá-los longe de si.

A fala de G.H. segundo a qual a curiosidade a expulsara do aconchego, (PSGH,

1988, p. 82), alude ao Gênesis 3, 6, embora neste versículo do Gênesis a curiosidade não

esteja escrita, mas está inscrita nas entrelinhas do texto.

Novamente G.H. cita explicitamente a bíblia: “Se fizeram isto com o ramo verde, o

que farão com os secos?”, (PSGH, 1988, p. 84), conforme João 15, 2, no qual se diz que todo

ramo que não der fruto será cortado e será podado todo o que der fruto, ou Romanos 11, 21

em que se diz que se Deus não poupou os ramos naturais, não haverá de poupar os demais.

Outra citação explícita: “ „Que não se dê aos cães a coisa santa.‟ ”, confira-se em Mateus 7, 6,

no qual se diz que não se deve lançar aos cães a coisa santa.

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Há ainda a citação de Apocalipse 3, 16: “---porque não és nem frio nem quente,

porque és morno, eu te vomitarei da minha boca”, era o Apocalipse segundo São João (...).”,

(PSGH, 1988, p. 107).

G.H. diz que “com Deus a gente também pode abrir caminho pela violência.”, (id., p.

97), interpretando Mateus 11, 12, no qual se diz que o Reino dos céus é arrebatado à força e

são os violentos que o conquistam.

A construção com o verbo “ser” usado no sentido absoluto, ou seja, como

intransitivo tem uma semântica particular, isto é, bíblica: “O que És? e a resposta é: És. O que

existes? e a resposta é: o que existes.”, (PSGH, , 1988, p. 86) faz ressonância com o Êxodo 3,

14 em que Deus responde a Moisés “EU SOU AQUELE QUE SOU” e acrescenta que aos

israelitas deve ser dito “Aquele que se chama EU SOU envia-me junto de vós”. “[o Deus] Ele

é, e nunca pára de ser.” (PSGH, 1988, p. 94).

G.H. diz: “Muitos foram os que abandonaram tudo o que tinham, e foram em busca

da fome maior.”, (id., p. 98) parafraseando Mateus 19, 16-29 em que os discípulos de Jesus

deixaram tudo para segui-lo confiando na promessa de que receberiam o cêntuplo e

possuiriam a vida eterna.

Sá (1993, p. 149) observa que PSGH estrutura-se sobre o paradoxo de perder/ganhar

que tem fundamento bíblico: “Porque, quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á” (Lucas 9,

24), “...se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica só; se morrer, produz muito fruto.

Quem ama a sua vida, perdê-la-á. (João 12, 24-5). G.H. quer destituir-se do individual inútil,

“com um esforço tão atento que não se sente a dor, tirar de si, como quem se livra da própria

pele”, “a perda de tudo o que se possa perder e, ainda assim, ser”, (PSGH, 1988, p. 112),

“Quero saber o que mais, ao perder, eu ganhei.”, (id., p. 15).

Por fim, vimos que paródia e paráfrase são dois elementos que se polarizam a ponto

de constituírem dois eixos: um eixo parafrásico e um eixo parodístico, (SANT‟ANNA, 2006,

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p. 27). Em PSGH esses dois recursos retóricos são axiais, pois tornam o texto a arena onde se

encena e onde se combate a língua.

Barthes (1978, p.17) afirma que é no interior da língua que a língua deve ser

combatida, desviada: não pela mensagem de que ela é o instrumento, mas pelo jogo de

palavras de que ela é o teatro.

É pertinente relembrar a fala de Sant‟Anna (20030, a qual já pontuamos, de que a

paródia, ética e misticamente, está do lado do demoníaco e do inferno, porque, instaurando o

conflito e subvertendo os sentidos, marca a expulsão da linguagem de seu espaço celeste;

contrariamente à paráfrase que, se oculta atrás de algo já estabelecido, macaqueando velhos

paradigmas e, por isso, constitui um discurso em repouso.

Em PSGH, é feito o uso da paródia, que de avanço em avanço constrói a evolução de

um discurso, de uma linguagem para inaugurar novos paradigmas por isso está do lado do

demoníaco. G.H. inaugura uma nova cosmovisão diferente da mundividência daquela mulher

que era refém de um olho que vigiava sua vida. “A esse olho (...) eu chamava de verdade, ora

de moral, ora de lei humana, ora de Deus, ora de mim. Eu vivia mais dentro de um espelho”,

(PSGH, 1988, p. 20). Ao passo que também é feito em PSGH o uso da paráfrase, a qual

resguarda velhos paradigmas, o que está do lado do celestial. “Os regulamentos e as leis, era

preciso não esquecê-los, é preciso não esquecer que sem os regulamentos e as leis também

não haverá ordem, era preciso não esquecê-los e defendê-los para me defender.”, (id., p. 39).

É por isso que a narrativa, ao se polarizar nos eixos parafrásico e paródico, instaura no texto o

espaço da tensão da linguagem. Não é mais a realidade exterior que é representada, mas a

realidade da linguagem no texto. E nessa tensão, G.H. segue em sua via-crúcis pelo itinerário

da linguagem.

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Examinemos, agora, a intratextualidade presente em PSGH, a qual consiste na

ligação interna de textos, isto é, constitui a ligação de um texto a outro de modo que o texto

referente e o texto referido façam parte da produção do mesmo autor.

Apontaremos a intratextualidade existente em PSGH referente a Perto do Coração

Selvagem, doravante PCS, publicado em 1944.

G.H., como o pai de Joana (PCS, 1990, p. 33) estava à mesa amassando bolinhas de

miolo de pão (PSGH, 1988, p. 17). O gesto de ambos é notoriamente parecido.

Joana pergunta o que se consegue depois que se é feliz, isto é, ser feliz é para

conseguir o quê? (PCS, 1990, p. 38); G.H afirma que a vida não é um estado de felicidade,

mas é um estado de contato (PSGH, 1988, p. 111). Em ambos vê-se que viver não é sinônimo

de felicidade, por conseguinte, a visão das duas protagonistas é parecida.

Joana tomara o café com um bolo esquisito, escuro com gosto de vinho e de barata

(PCS, 1990, p. 44). G.H. prova o gosto da matéria fofa e branca (PSGH, 1988, p. 55), o

plasma seco, horrível e cru (id., p. 38) da barata. Nos dois textos há a referência explícita à

barata e à provação.

Joana sabia que a verdade poderia estar no contrário do que pensara, (PCS, 1990, p.

126). Na epígrafe de PSGH, Clarice Lispector diz que a aproximação do que quer que seja se

faz gradual e penosamente, atravessando inclusive o oposto daquilo de que se vai aproximar.

É dito em PCS que os corpos se diferem uns dos outros em relação ao movimento e ao

repouso, à velocidade e à lentidão e não em relação à substância, (PCS, 1990, p. 139). G.H.

afirma que tudo o que é vivo é feito do mesmo (PSGH, 1988, p. 47). Vemos a retomada de

idéias semelhantes, a saber, a de que tudo é composto da mesma substância material.

Enfim, apontamos, sumariamente, os possíveis diálogos internos de PSGH com PCS;

assinalaremos, agora, a intratextualidade de A Paixão... com o conto A Quinta História,

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publicado inicialmente em A Legião Estrangeira de 1964 e depois reeditado no livro

Felicidade Clandestina de 1971.

N‟A Quinta História (Felicidade Clandestina, 1991, p.162-5, doravante FC) aparece

uma técnica narrativa concêntrica em que cinco histórias com o mesmo tema – a barata – são

contadas sumariamente, em parágrafos sintéticos, sendo que a última história, isto é, a quinta,

começa justamente com a mesma frase da primeira: “queixei-me de baratas”.

A estrutura desse conto tem muito a ver com a estrutura concêntrica e também

espiralada de PSGH em que um capítulo começa com a última frase do anterior como um

tecido, cuja textura se recamasse, em alguns pontos; os seis travessões que iniciam a narrativa

não obstante também a finalizam; ressaltemos que não há a marcação numérica dos capítulos

(q. v. o gráfico da estrutura circular dos capítulos ou fragmentos de PSGH nos anexos I e II).

Sá (1979, p.120) afirma que a repetição (“estou procurando, estou procurando”, a

qual inicia a narrativa) e os seis travessões que lhe antecedem, os quais serão retomados ao

final do relato, reforçam o caráter “aberto” da procura de G.H., sempre recomeçada, jamais

encerrada. Diga-se de passagem que algo semelhante ocorrerá em Uma Aprendizagem Ou

Livro Dos Prazeres (publicado em 1969) cujo final da narrativa se dá com dois pontos, isto é,

observa-se o uso inusitado da pontuação no arremate dos referidos textos, a saber PSGH e

Uma Aprendizagem...

A estrutura de A Quinta História é o modelo reduzido de um processo que se repete

em PSGH. Os textos se remetem a si mesmos num jogo de espelhos e retomam algumas

obsessões temáticas (barata) e estruturais (circularidade narrativa ou paralelismo): “De dia as

baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranqüila.”,

(FC, 1991, p. 163); “É que eu não esperara que, numa casa minuciosamente desinfetada

contra meu nojo por baratas, eu não esperava que o quarto tivesse escapado.”, (PSGH, 1988,

p. 32).

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3.3 O desgaste da linguagem em PSGH

“(...) três vezes me negarás.” (Mateus 26, 34)

Aproveitemos as ensanchas da estrutura cíclica de PSGH, em que há a iteração da

última frase da seção no início da seção seguinte, para falarmos da técnica da repetição

desgastante, usada à larga na narrativa em questão. Vejamos alguns exemplos:

Repetição da conjunção aditiva (polissíndeto) na procura de um efeito de desgaste da palavra

e da frase (Sá, 1979, p. 149): “Ali estava eu boquiaberta e ofendida e recuada (...). [A barata]

que eu via com um constrangimento tão penoso e tão espantado e tão inocente (...)”, (PSGH,

1988, p. 38); “(...) e perdera também as florestas, e perdera o ar, e perdera o embrião (...).”,

(id., p. 60); “[a barata] com seu corpo rebentado que é todo feito de canos e de antenas e de

mole cimento (...).”, (id., p. 77); “O segredo de minha trajetória milenar de orgia e morte e

glória e sede (...).”, (id., p. 88).

Sá (1979, p. 151) afirma que no caso de Clarice Lispector, a repetição é assumida como som e

ritmo, produzidos pelo significante, para dizer o que pode dizer a monotonia, a uniformidade

fastidiosa de tom, provocando uma certa sedução pelo verbal. Essa cantilena do significante

gera no texto o desgaste da palavra, acrescenta Sá.

Verifiquemos, pois, no texto o fenômeno identificado acima: “Eu estava atenta, eu estava

atenta”, (PSGH, 1988, p. 34); “Os regulamentos e as leis, era preciso não esquecê-los, é

preciso não esquecer que sem os regulamentos e as leis também não haverá ordem, era

preciso não esquecê-los e defendê-los para me defender.”, (id., p. 39); “E eis que eu cabia

dentro de mim, eis que eu estava em mim mesma gravada na parede.”, (id., p. 43); “(...) G.H.

era uma mulher que vivia bem, vivia bem, vivia bem, vivia (...)”, (id., p. 44); “Mas por que

eu? Mas por que eu?”, (id., p. 46); “(...) mão dolorosa como perder tudo, como perder tudo,

meu amor.”, (id., p. 48); “(...) me agarrar aos últimos restos de minha civilização antiga,

agarrar-me para não me deixar ser arrastada pelo que agora me reivindicava.”, (id., p. 48);

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“amém, amém”, (id., p. 54); “(...) sei o que é precisar, precisar, precisar.”, (id., p. 57);

“Quando eu caminhava, quando eu caminhava eu o carregava.”, (id., p. 60); “(...) sem pensar,

sem pensar, resolvendo, resolvendo (...).”, (id., p. 60).

Segundo Sá a repetição de um pensamento idêntico com palavras idênticas, como acontece no

texto de PSGH, cria uma figura de acumulação intensa e sistemática, que, além dos efeitos

sonoros, desenha um esquema de argumentação em que um pensamento nuclear que está na

base da acumulação é exprimível numa frase como “suma”, donde se originam as seqüências

homocêntricas, como um revérbero, causando o efeito do alargamento da expressão (SÁ,

1993, p. 143).

O dado da repetição pode ter relação também – dentro do contexto da obra, PSGH, que

parodia e parafraseia sobretudo a bíblia e conceitos cristãos – com a ladainha cristã que

consiste numa oração formada por uma série de invocações curtas e respostas repetidas como,

por exemplo, a fórmula do ato penitencial (“Senhor, tende piedade de nós.”) ou “As Litanias

de Satã” de Baudelaire (O Satan, prends pitié de ma longue misère!).

Aspirando a que a palavra diga o “ser” e concluindo que isso é impossível (“a vida em mim

não tem nome”, p. 112), G.H. vislumbra o silêncio, como única possibilidade de alcançar o

indizível (PSGH, 1988, p. 113). No nível do discurso, o que para ela mais se aproxima desse

silêncio é a repetição, como corrosão do próprio significante, afirma Sá (1979, p. 151-2).

Assim, por uma espécie de paradoxo, aquilo que é normalmente redundante acaba por abrir-se

em sentido inovador.

Clarice Lispector usa a repetição e o desgaste dos registros interjeitivos para fazer minguar a

linguagem. Entretanto, pela própria lógica dos significantes ela não pode impedir-se de

provocar assim, paradoxalmente, a geração de novos significados, diz-nos Sá (1979, p.152).

É G.H. quem diz que só havia encontrado além do invólucro [isto é, além do nome, da palavra

que é uma exterioridade da coisa] o próprio enigma (PSGH, 1988, p. 89), e que a explicação

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para o enigma é a repetição do enigma (id., p. 86), donde explica-se o uso amiudado da

técnica da repetição desgastante.

Por “(...) ter passado a experiência de desgastar pacientemente a matéria até gradativamente

encontrar sua escultura imanente (...)”, (id., p. 19), G.H. tem também a pachorra de desgastar

com paciência, pela repetição, o signo, a palavra enquanto relata sua “experiência de glória”

(id., p. 111).

A técnica da repetição está ligada à da epifania, pois aquela causa o efeito do estranhamento,

em que a expressão vazia e automatizada aufere nova dimensão – dilata-se, alarga-se,

expande-se – desautomatizando a percepção; e, similarmente, a epifania consiste num

procedimento de estranhamento, é expressão de um momento excepcional, em que o ramerrão

adquire nova dimensão.

3.4 Metalinguagem em PSGH

A metalinguagem consiste na elaboração discursiva em que o código lingüístico é

tratado pelo próprio código lingüístico, especularmente.

Em PSGH há a utilização da metalinguagem; há também a perspectiva metalingüística do

narrador, o qual questiona o código e questiona continuamente a própria narrativa, a essência

do ato de escrever, em que é preciso usar palavras. Veremos alguns excertos que

exemplifiquem as sobreditas assertivas.

G.H. assume-se como uma narradora ficcionista, pois finge a presença de alguém, inventando

metonimicamente um interlocutor imaginário que é a mão na qual ela segura; desse modo,

desventra o processo narrativo, no qual a narradora tem consciência de que escreve supondo

um interlocutor hipotético para manter o circuito comunicativo: “Esse esforço que farei agora

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por deixar subir à tona um sentido, qualquer que seja, esse esforço seria facilitado se eu

fingisse escrever para alguém.”, (PSGH, 1988, p. 11).

O interlocutor imaginário surge como defesa e como ameaça: “Mas receio começar a compor

para poder ser entendida pelo alguém imaginário, receio começar a “fazer” um sentido, com a

mesma mansa loucura que até ontem era o meu modo sadio de caber num sistema.”, (id., p.

11-12)

G.H. continuamente dialoga com o interlocutor imaginário: “Desculpa eu te dar isto”, “Estou

tão assustada que só poderei aceitar que me perdi se imaginar que alguém me está dando a

mão”, “Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está segurando a minha mão”,

(id., p. 13).

A narradora demonstra reconhecer a simulação ou o artifício de que lança mão a fim de que se

torne exeqüível, praticável seu relato: “Por enquanto estou inventando a tua presença (...)”,

(id., p. 14). Ela dirige-se à mão que a sustenta e que serve de contraponto ao longo monólogo:

“(...) mão que me sustenta (...)”, (id., p. 42), “O que me acontecia? Nunca saberei entender

mas há de haver quem entenda. E é em mim que tenho de criar esse alguém que entenderá.”,

(id., p. 30), “Ah, não retires de mim a tua mão (...)”, (id., p. 48), “(...) não me havia ocorrido

inventar esta mão que agora inventei para segurar a minha.”, (ib.), “E eis que a mão que eu

segurava me abandonou. Não, não. Eu é que larguei a mão porque agora tenho que ir

sozinha.”, (id., p. 80).

Além disso, o “dar a mão” traz a ressonância do texto bíblico, no qual se diz: “Dá-me a tua

mão” conforme II Reis 10, 15; a mão de Deus sustenta e dá vitória (Salmo 97, 1); Deus cobre

com a mão e protege (Êxodo 33, 22); não é a mão do Senhor que é incapaz de salvar (Isaías

59, 1); Jó, dirigindo-se a Deus, diz “[quem me dera] (...) que soltasse a sua mão e desse cabo

de mim!” (Jó 6, 9); a própria G.H faz menção à “mão mal assombrada do Deus” (PSGH,

1988, p. 13).

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A narradora pede continuamente a mão de seu interlocutor imaginário (id., p. 64)

introduzindo a função conativa da linguagem e causando o efeito de proximidade entre a

narradora e os possíveis leitores e leitoras. Talvez por ser escultora, arte que se faz por meio

das mãos, o apelo de G.H. a essa mão incerta seja tão incisivo. Ela precisa da mão.

Para dar forma e limites exteriores à matéria, é mister que a escultora lute contra a

“desintegração”, conforme palavras suas; ela necessita tentar dar uma forma que contorne o

caos, pois uma forma dá construção à substância amorfa (id., p. 11) e a linguagem, que é seu

esforço humano, é o meio pelo qual G.H vai buscar a realidade e “por destino volt[a] com as

mãos vazias” (id., p. 113; grifo nosso).

Leyla Perrone diz-nos que o trabalho da forma é indispensável, pois ao selecionar, valores são

atribuídos, e ao se fazer um arranjo novo sugere-se uma reordenação do mundo e é por esse

artifício da forma que a literatura atinge uma verdade do real (1984, p. 106). G.H. tem

consciência disso, sabe que terá que criar a verdade do que lhe aconteceu (PSGH, 1988, p.

15). Pela forma de narrar, G.H. dá a ver o real, o qual é uma construção da narradora que o

inventa (id., p. 11, 48 e 63), em consonância com a afirmativa da teórica supramencionada,

segundo a qual “o que se conquista pela forma não é um mero objeto ornamental, mas um

objeto em que o real se dá a ver” (PERRONE-MOISÉS, 1984, p. 107).

G.H, digressivamente, ao escrever (PSGH, 1988, p. 11 e 13) e/ou narrar (id., p. 88) põe em

pauta seu estilo – entenda-se o termo por características individuais que incluem escolhas,

desvios da norma ou elaboração (MARTINS, 1997, p. 2) –, indagando se é de mau gosto, se é

feio, receando a falta de estética:

Pois nunca até hoje temi tão pouco a falta de bom gosto: escrevi “vagalhões de

mudez”, o que antes eu não diria porque sempre respeitei a beleza e a sua moderação

intrínseca. Disse “vagalhões de mudez”, meu coração se inclina humilde, e eu

aceito. Terei enfim perdido todo um sistema de bom gosto? (...) Quanto eu deveria

ter vivido presa para sentir-me agora mais livre somente por não recear mais a falta

de estética (...). Por enquanto o primeiro prazer tímido que estou tendo é o de

constatar que perdi o medo do feio (id., p. 14-5).

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Para G.H. a beleza é um engodo, constitui um acréscimo, e como tal obscurece a identidade, é

um invólucro que enfeita a coisa para que se possa tolerar-lhe o núcleo (id., p. 100). O excerto

evidencia o perfil metalingüístico da narrativa e dialoga com a fala de Leyla Perrone no que

diz respeito à reordenação do mundo por meio da seleção da forma, a qual atingirá uma

verdade do real, isto é, construção erigida pelas escolhas do narrador por meio da qual o real

dar-se-á a ver.

A forma buscada pelo escritor, afirma Leyla Perrone,

é não apenas a forma sensível na materialidade do discurso mas, ao mesmo tempo, a

forma do sentido, no arranjo justo das referências, na exploração das conotações. A

forma é, assim, uma espécie de rede ardilosamente tramada para colher, no real,

verdades que não se vêem a olho nu, e que, vistas, obrigam a reformular o próprio

real. (PERRONE-MOISÉS, 1984, p. 107)

Donde decorre a fala de G.H., conforme a qual terá que criar a verdade do que lhe aconteceu e

que será mais um grafismo que uma escrita “pois tento mais uma reprodução do que uma

expressão. Cada vez preciso menos me exprimir. (...). Mesmo quando eu fazia esculturas eu já

tentava apenas reproduzir, e apenas com as mãos.”, (PSGH, 1988, p. 15). Vê-se que a

escultora quer reproduzir o real na rede ardilosamente tramada do discurso, explorando as

soluções de que dispõe (“vagalhões de mudez”) ainda que pareçam de mau gosto ou feias.

Mas ao tentar reproduzir, G.H. cria, pois a reprodução está embasada na maneira de entender

aquilo que se reproduz, e “entender é uma criação, meu único modo”, segundo G.H (ib.):

“Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é

correr o grande risco de se ter a realidade” (ib.).

Leyla Perrone afirma que narrar uma história é reinventá-la; a simples escolha dos

pormenores a serem narrados, a ordenação dos fatos e o ângulo de que eles são encarados

criam a possibilidade de mil e uma histórias, das quais nenhuma será, efetivamente, a real,

pois ao omitir-se algo que havia ou reproduzir-se algo que faltava na história, revela-se uma

imperdoável falha no real (1984, p. 105). G.H., em conformidade com Leyla Perrone, afirma:

“Mas como me reviver? Se não tenho uma palavra natural a dizer. Terei que fazer a palavra

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como se fosse criar o que me aconteceu?”, (PSGH, 1988, p. 15). Comente-se de passagem que

n‟A Quinta História, a narradora conta uma história em cinco, isto é, a narração é a mesma,

porém as perspectivas e escolhas de pormenores diferem entre elas, de modo que são feitas

“então pelo menos três histórias, verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora

uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.” (FC, 1991, p. 162).

Vê-se que G.H. conscienciosamente narra tendo em vista os horizontes da narrativa:

O que vi não é organizável. Mas (...) ainda poderei traduzir o que eu soube em

termos mais nossos, em termos humanos, e ainda poderei deixar desapercebidas [a

imperdoável falha no real de que fala Leyla Perrone, grifo nosso] as horas de ontem.

se eu ainda quiser poderei, dentro de nossa linguagem, me perguntar de outro modo

[a escolha dos pormenores a serem narrados de que fala Leyla Perrone, grifo nosso]

o que me aconteceu (PSGH, 1988, p. 44).

A linguagem é obstáculo no caminho do real, mas é, ao mesmo tempo, possibilidade de

fundá-lo, diz Leyla Perrone, pois a palavra não só diz o mundo, como também o funda ou o

transforma. “Tanto a fuga como o mergulho no real obrigam-nos a ver esse real, a questioná-

lo e a reinventá-lo” (1984, p. 109). É o que nossa protagonista faz: vê a linguagem como

obstáculo na busca do real – “a linguagem é o modo como vou buscá-la [à realidade] e como

não acho” (PSGH, 1988, p. 113); mas a vê outrossim como molde do pensamento,

instrumento de recorte e análise da realidade, com o qual G.H. “corta a carne infinita em

pedaços e os distribui pelos dias e pelas fomes”, contornando o caos (PSGH, 1988, p. 11) e

com que obtém algo por meio do fracasso dessa mesma linguagem (ib.).

A palavra mente à coisa, daí o desprezo de G.H. pela palavra: “Estou adiando. (...) sabendo

que nada mais me resta a dizer. Estou adiando o meu silêncio. A vida toda adiei o silêncio?

Mas agora, por desprezo pela palavra, talvez enfim eu possa começar a falar.”, (id., p. 15).

Os signos verbais, consoante Leyla Perrone, são substitutos das coisas, seu uso repousa numa

mera convenção de correspondência:

Assim, dizer as coisas é aceitar perdê-las, distanciá-las e até mesmo anulá-las. A

linguagem não pode substituir o mundo, nem ao menos representá-lo fielmente. Pode apenas evocá-lo, aludir a ele através de um pacto que implica a perda do real

concreto (1984, p. 105).

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A linguagem tem uma função referencial e uma pretensão representativa; entretanto, o mundo

criado pela linguagem nunca está totalmente adequado ao real, talvez por isso G.H. chame sua

narrativa de “relato impossível” (PSGH, 1988, p. 48) ou manifeste não saber como falar: “(...)

não sei como falar – a realidade é delicada demais, só a realidade é delicada, minha

irrealidade e minha imaginação são mais pesadas.”, (id., p. 24).

3.5 A fenda entre o real e a representação em PSGH

“Porque a palavra de Deus é viva, eficaz, mais penetrante do

que uma espada de dois gumes e atinge até a divisão da alma

e do corpo, das juntas e medulas (...).” (Hebreus 4, 12)

“(...) recebestes a palavra de Deus (...) não como palavra de

homens, mas como aquilo que realmente é, como palavra de

Deus, que age eficazmente (...).” (I Tessalonicenses 2, 13)

O signo é uma coisa que representa outra coisa: seu objeto, afirma Lúcia Santaella, e

acrescenta que:

Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de representar, substituir uma outra coisa diferente dele. Ora, o signo não é o objeto. Ele está apenas no lugar

do objeto. Portanto, ele só pode representar esse objeto de um certo modo e numa

certa capacidade (2001, p. 58).

G.H. demonstra ter lúcida consciência das limitações do signo, apontadas acima. Ela sabe que

há entre a coisa e sua designação um intervalo que a palavra não pode preencher, nesse

intervalo há um silêncio, o qual não trai, nem diz de menos:

Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre

dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe

um sentir que é entre o sentir – nos interstícios da matéria primordial está a linha de

mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é

aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio (PSGH, 1988, p. 64).

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Por saber que a palavra é falha, só podendo representar em certa capacidade, G.H tem em

mira o silêncio, a mudez: “Ah, mas para se chegar à mudez, que grande esforço de voz. Minha

linguagem existe como um pensamento que não se pensa, mas por fatalidade fui e sou

impelida a precisar saber o que o pensamento pensa.” (PSGH, 1988, p. 113); da linguagem

emerge o silêncio:

A realidade antecede a voz que a procura, mas como a terra antecede a árvore, (...)

como o mundo antecede o homem, (...) o mar (...), a visão do mar; a vida, o amor, a

matéria do corpo antecede o corpo; (...) por sua vez a linguagem um dia terá

antecedido a posse do silêncio (ib.).

Entre realidade, terra, mundo, mar, matéria corporal e linguagem, há um traço semântico

comum, eles são o chão do qual emerge um fruto: da realidade nasce a voz (linguagem); da

terra germina a árvore; do mundo surge o homem; do mar, a visão do mar; da vida, o amor; da

matéria corporal, o corpo humano individual; e da linguagem, o silêncio. A linguagem é a

única noção que pertence aos dois semas: ela é chão e fruto, voz e silêncio; a plenitude da

linguagem seria, pois, o silêncio (SÁ, 1993, p. 158), como único capaz de permitir a adesão

ao ser (SÁ, 1979, p. 153), como única possibilidade de alcançar o indizível (id., p. 151), o

“grau zero” (BARTHES, 1978, p. 19; SÁ, 1979, p. 151), a “linguagem-limite” (BARTHES,

loc. cit.).

Da realidade surge a voz que procura e da linguagem surge o silêncio – “A realidade é a

matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho”, (PSGH, 1988,

p. 113), passando, porém, necessariamente, pela mediação da linguagem – “Mas é do buscar e

não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço”, (ib.).

Designar as coisas, nomeá-las, é privilégio da linguagem e da posse da realidade, porque,

conforme palavras de G.H. “eu tenho à medida que designo”, todavia “tenho muito mais à

medida que não consigo designar”.

A linguagem, observa Leyla Perrone, parte de um real que pretende dizer; ao dizê-lo: falha;

mas ao falhar diz outra coisa, porque desvenda um mundo mais real do que aquele que

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pretendia dizer (1984, p. 102) – o que está em consonância com a observação de G.H.,

conforme a qual: volta com o indizível depois de seu esforço humano que é a linguagem, pois

“o indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha

a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu” (PSGH, 1988, p. 113).

Não obstante o fracasso de sua linguagem, G.H. não recusa – pelo contrário, se entrega ao

trabalho de arriscar a passagem de reduzir-se à descrição dos objetos na tentativa de sitiar a

coisa conforme veremos no tópico “A coisa cerceada...”, conquanto ela queira a coisa não pelo

exterior.

Na condição humana e na condição de quem narra, G.H. vive a tentação de saber, de designar

a coisa – “Eu, que tinha como meu tema secreto o inexprimível.”, (PSGH, 1988, p. 91) –

simbolizando-a ou indicando-a de fora: “Ou tudo isso é ainda eu estar querendo o gozo das

palavras das coisas?”, (id., p. 92), porém G.H. a perde.

Mas é a mim que caberá impedir-me de dar nome à coisa. O nome é um acréscimo, e

impede o contato com a coisa. O nome da coisa é um intervalo para a coisa [a fenda

de que fala o título deste tópico; grifo nosso]. A vontade de acréscimo é grande –

porque a coisa nua é tediosa (id., p. 90).

Mas, em PSGH, sua experiência-limite é percorrer o itinerário, a via-crúcis da linguagem até

o silêncio: “É exatamente através do malogro da voz que se vai pela primeira vez ouvir a

própria mudez e a dos outros e a das coisas, e aceitá-la como possível linguagem.”, (id., p.

112).

A maneira mais direta de fazer conhecer um objeto a outrem, consiste em apresentar aquele a

este, de modo que se possa perceber pela visão, audição, olfato, paladar e tato, tudo o que

constitui a natureza do objeto. À falta deste, pode-se apresentar uma imagem vicária e

menecma, isto é, outro objeto que se pareça tanto quanto possível com o primeiro e que atinja

os sentidos da mesma maneira. G.H. anseia tocar, capturar a essência e a raiz identitária da

coisa, e por isso come a barata; pois esta não representa (como o nome), mas se apresenta sem

nome “e por não ter nome só a mudez pronuncia” (PSGH, 1988, p. 112); em suas qualidades

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sensíveis dá-se à contemplação; não relata mas participa; não nomeia, mas revela. O ato de

comer o inseto, portanto, representa o contato direto com a coisa não mediatizado pela

palavra.

Ver por dentro é o destino mais alto da voz de G.H., por isso ela come o ícone vivo, isto é, a

barata. Lúcia Santaella afirma que quando o signo apresenta-se como simples qualidade, na

sua relação com seu objeto, ele só pode ser um ícone, isto porque, segundo a referida:

(...) qualidades não representam nada, elas se apresentam. Ora, se não representam,

não podem funcionar como signo. Daí que o ícone seja sempre um quase-signo: algo

que se dá à contemplação (2001, p. 63-4).

Não é por acaso que na descrição da barata, G.H. recorra a imagens múltiplas que roçam os

sentidos do leitor (tamanho, cor, movimento), buscando alcançar a face sensorial do ser.

G.H. acha que a palavra trai e diz de menos – todas as informações são terrivelmente

incompletas (PSGH, 1988, p. 14), apesar disso, a narradora verbaliza – se perguntando por

que não se cala já que não tem nada a dizer (ib.); mas o caso é que se ela não forçar a palavra,

a mudez a engolfará. “Mas se eu não forçar a palavra a mudez me engolfará para sempre em

ondas. A palavra e a forma serão as tábuas onde boiarei sobre vagalhões de mudez.”, (ib.).

Então, G.H. não nomeia o inominável, não designa o indeterminável como se fosse um objeto

do mundo, um fato determinado, ao contrário: por meio do esforço e do malogro de sua

linguagem, ela faz sentir que algo escapa e resta não determinado, não apresentando, ela

inscreve uma ausência, alude ao que se evola: “A coisa para mim terá que se reduzir a ser

apenas aquilo que rodeia o intocável da coisa?”, (id., p. 89).

Esse esforço de linguagem constitui o “trabalho de procura” (id., p. 71) de G.H., a qual em sua

errância (esforço e malogro) vai tentando acercar-se da coisa:

E não me esquecer, ao começar o trabalho [de procura], de me preparar para errar.

Não esquecer que o erro muitas vezes se havia tornado o meu caminho. Todas as

vezes em que não dava certo o que eu pensava ou sentia – é que se fazia enfim uma

brecha (...). Meu erro, no entanto, devia ser o caminho de uma verdade: pois só quando erro é que saio do que conheço e do que entendo (id., p. 71).

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G.H só fica eloqüente quando erra, o erro a leva a discutir e a pensar. “Mas como te falar, se há

um silêncio quando acerto? Como te falar do inexpressivo?”, (id., p. 91).

É por tudo isso que a dramaticidade de PSGH está muito mais no discurso do que nas ações.

Vejamos alguns outros excertos que reforcem nosso argumento: tudo o que caracterizava

G.H. era apenas o modo como era mais facilmente visível aos outros e como terminava sendo

superficialmente reconhecível por si mesma, (id., p. 112). Ela afirma que pouco a pouco havia

se transformado na pessoa que tem o seu nome. “E acabei sendo o meu nome. É suficiente ver

no couro de minhas valises as iniciais G.H., e eis-me.” (id., p. 18). Nota-se que neste excerto,

G.H. ainda está sob “o gozo das palavras das coisas” (id., p. 92).

A relação entre significado e significante não é natural, mas se estabelece por um consenso

social. Os pares de G.H. a reconheciam como tal, então ela se reconhecia também, mas as

iniciais de seu nome acabaram sendo apenas uma imagem acústica esvaziada de sentido, que

não carregava no seu bojo o radical de G.H., isto é, sua raiz identitária, e por isso ela afirma

ser remota a si mesma (id., p. 79), apenas um nome. E o nome, um acréscimo à matéria

primordial (id., p. 90).

“Essa coisa cujo nome desconheço, era essa coisa que, olhando a barata, eu já estava

conseguindo chamar sem nome. Era-me nojento o contato com essa coisa sem qualidades nem

atributos, era repugnante a coisa viva que não tem nome, nem gosto, nem cheiro.”, (id., p. 56-

7). Neste trecho G.H. revela a impossibilidade de alcançar a núcleo da coisa pela palavra, pois

para ela o nome da coisa é só um invólucro, uma exterioridade, um acréscimo, é arbitrário,

sendo assim impede o contato com a coisa em si porque não constitui sua identidade.

“(...) não sei mais o sentido de amor como antes eu pensava que sabia.”, (id., p. 57). G.H., por

conhecer a palavra amor, achou que conhecesse o amor, porém ela conhecia o invólucro, o

rótulo e não o núcleo ou o conteúdo: “amor era então o que eu entendesse de uma palavra”

(PSGH, 1988, p. 75). Isso porque conhecer a palavra não quer dizer conhecer a coisa. O

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poema de Emily Dickinson “I Never Saw A Moor” (“Eu Nunca Vi O Urzal”), cujo eu-lírico

diz nunca ter visto o urzal, nem o mar, mas sabe o que é a urze, e onde a onda deve estar,

mostra experiência semelhante à de G.H., isto é, conhece o nome, mas não o objeto a que o

nome designa: “Fiz tal esforço em me falar de um inferno que não tem palavras. Agora como

falarei de um amor que não tem senão aquilo que se sente, e diante do qual a palavra “amor” é

um objeto empoeirado?”, (id., p. 86).

“Talvez eu ache um outro nome, tão mais cruel a princípio, e tão mais ele-mesmo. Ou talvez

não ache. Amor é quando não se dá nome à identidade das coisas?”, (id., p. 57). A fenda que

existe entre o nome e o objeto, não é transponível, tanto que conhecer o nome não é conhecer

a coisa, porque o nome não é a identidade da coisa, é algo que, além de arbitrário, se agrega

pelo exterior sem, no entanto, alterar essencialmente o objeto, por isso G.H. quer saber o amor

(ib.) efetivamente, de modo que sua identidade toque na identidade das coisas (id., p. 86).

“(...) vejo que há alguma coisa mais séria e mais fatal e mais núcleo do que tudo o que eu

costumava chamar por nomes. Eu, que chamava de amor a minha esperança de amor.”, (id., p.

57). G.H revisita, reexamina e explora as palavras, pois, como observa Leyla Perrone, elas

nos ajudam na aproximação do saber que buscamos na medida mesma em que conhecemos

seus pressupostos e seus limites (1984, p. 102).

“(...) daquilo a que eu chamava de minha bondade (...). Tinha que existir uma bondade tão

outra que não se pareceria com bondade.”, (PSGH, 1988, p. 58). Aqui se nota que o nome da

coisa, às vezes, parece-lhe estranho, não designa sua identidade, de modo que sua imagem

acústica pareça alheia ao seu sentido: é a “bondade-coisa” que não se parece com a “bondade-

palavra”. Ou a dor que, segundo G.H., não é o nome verdadeiro disso que a gente chama de

dor (id., p. 76).

G.H. afirma que a balança tinha agora um prato único: “Nesse prato estava a minha profunda

recusa de baratas. Mas agora “recusa de baratas” eram meras palavras, e eu também sabia que

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na hora de minha morte eu também não seria traduzível por palavra.”, (id., p. 51), em seguida

acrescenta que nunca antes soubera que a hora de viver também não tem palavra. G.H.

reconhece, portanto, que há realidades que a linguagem não alcança.

Por fim, a narradora afiança que “de agora em diante eu poderia chamar qualquer coisa pelo

nome que eu inventasse (...), pois qualquer nome serviria, já que nenhum serviria.”, (id., p.

63), pois, para G.H., há uma “linha de mistério e fogo” entre a coisa e sua designação: “(...)

nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do

mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.”,

(id., p. 64).

G.H. estava “atingindo o misterioso fogo manso daquilo que é um plasma” e indo apenas com

suas “entranhas vivas”, abandonando sua organização humana para entrar naquela coisa

monstruosa que era a sua neutralidade viva, alcançando a identidade das coisas, ela não

precisaria mais de palavras (ib.).

A narradora vê a palavra como um vazio que tenta preencher, mas não preenche; como ruído

de geleira liquefeita que não faz nenhum sentido: “Cada palavra nossa – no tempo que

chamávamos de vazio – cada palavra era tão leve e vazia como uma borboleta: a palavra de

dentro esvoaçava de encontro à boca, as palavras eram ditas mas nem as ouvíamos porque as

geleiras liquefeitas faziam muito barulho enquanto corriam.”, (id., p. 77).

A roupagem (palavra, nome) que as coisas vestem é, muitas vezes, inadequada, reconhece

G.H.: “É que não sabia que se sofria assim. Então havia chamado de alegria o meu mais

profundo sofrimento.”, (id., p. 85).

Para a narradora nunca se toca no nó vital de uma coisa, “o nó vital é um dedo apontando a

coisa” (id., p. 89), isto é, a palavra aponta a coisa, mas não a toca. A maneira de tocar na

identidade das coisas não é as nomeando, é, antes, um murmúrio sem nenhum sentido

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humano: “Esse murmúrio, sem nenhum sentido humano, seria a minha identidade tocando na

identidade das coisas.”, (id., p. 86).

G.H. usa uma metáfora bastante cabível para designar a impossibilidade de tocar a identidade

das coisas com a palavra: “Esse pedaço de coisa dentro do escrínio é o segredo do cofre. E o

próprio cofre também é feito do mesmo segredo, o escrínio onde se encontra a jóia do mundo,

também o escrínio é feito do mesmo segredo.”, (id., p. 90). Isto é, além da retomada da fala

segundo a qual tudo o que é vivo é feito do mesmo (id., p. 47), manifesta-se a fenda

impossível: como se o nome da coisa fosse o segredo do cofre (o qual contém a coisa ou o

pedaço de coisa) e impedisse o contato efetivo com a coisa, ou o nome fosse o escrínio que é

o invólucro que impede o contato direto com a coisa.

G.H. aspira pelo nome sem palavra, isto é, pela nomeação adâmica, o signo primeiro, icônico,

o nome como coisa, conforme observa Nunes (1988, p. 93), parecidamente Alice no País do

Espelho, ao penetrar na floresta fria e escura, território em que as coisas não têm nome,

exclama atônita: “Então é mesmo verdade que nada aqui tem nome!” e para designar uma

árvore naquele sítio, a menina bate no troco indicando-a. G.H., não diferentemente, aspira

alcançar esse território em que as coisas não precisam de nome, ou em que as próprias coisas

se autodesignam de modo a dispensar a mediatização da palavra: “Disto tudo, quem sabe,

poderá nascer um nome! um nome sem palavra, mas que talvez enraíze a verdade na minha

formação humana”, (PSGH, 1988, p. 93). G.H. quer, numa transubstanciação, que a palavra

vire coisa, porque, indefessa, ela tenta transpor a fenda, ainda que, a priori, saiba que jamais

alcançará sua raiz, “eu não alcançaria jamais minha raiz, mas minha raiz existia” (id., p. 114).

É, justamente, nessa tentativa incansável de transpor a fenda que a narradora resgata o poder

originário da linguagem de nomear, de compreender a natureza e, nesse ato mágico, resgata o

ser (q.v. Gênesis 2, 19 em que se diz que tendo Deus formado da terra todos os animais dos

campos, e todas as aves dos céus – talvez daí decorra G.H. dizer que “tudo o que é vivo é feito

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do mesmo” (PSGH, 1988, p. 47) – levou-os ao homem, para ver como ele os havia de chamar;

“e todo o nome que o homem pôs aos animais vivos, esse é o seu verdadeiro nome.”).

A coisa nua para a narradora é “tão tediosa” (PSGH, 1988, p. 90) e por isso ela enfeitava a

coisa com palavras: para poder tolerar-lhe o núcleo (id., p. 100), então se pergunta se “tudo

isso é ainda eu estar querendo o gozo das palavras das coisas?”, (id., p. 92), donde G.H.

conclui que não quer o bonito, não quer a meia-luz, nem a cara bem-feita, tampouco o

expressivo. “Quero o inexpressivo”, (id., p. 101). G.H. quer a identidade das coisas, a raiz

grossa dos astros, a matéria primordial; não quer a beleza, quer a identidade, porque a beleza

seria um acréscimo, “e agora vou ter que dispensá-la. O mundo não tem intenção de beleza

(...): no mundo não existe nenhum plano estético, nem mesmo o plano estético da bondade

(...). A coisa é muito mais que isto.”, (id., p. 102).

G.H., por causa da fenda que observa entre a coisa e sua designação, usa as palavras, porém

com muitas ressalvas: “Não tenho palavras para exprimir, e falo então em neutro. Tenho

apenas esse êxtase, que também não é mais o que chamávamos de êxtase, pois não é

culminância.”, (id., p. 103), refazendo, assim, o sentido das palavras.

Falar com as coisas é mudo, o contato com a coisa tem que ser um murmúrio, diz G.H., porém

ela está viciada pelo condimento da palavra (ib.), por isso a narradora nomeia, designa e

procura, ainda que saiba que a palavra é falha e falseia a realidade e a coisa.

G.H. afirma que aquilo de que se vive, e por não ter nome só a mudez pronuncia, “é disso que

me aproximo através da grande largueza de deixar de me ser”, (id., p. 112), isto é, de deixar

de ser as iniciais de seu nome, de deixar de ser aquilo que a caracterizava de um modo mais

facilmente visível aos outros e a tornava reconhecível por si mesma. Então ela perde as

valises (id., p. 75) com seu nome: “E eu também não tenho nome, e este é o meu nome. E

porque me despersonalizo a ponto de não ter o meu nome, respondo cada vez que alguém

disser: eu.”, (id., p. 112). “(...) quanto mais perco o meu nome mais me chamam (...).”, (id., p.

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114). Nossa narradora vai se acercando da identidade das coisas e da sua própria e, por isso,

dispensa a beleza e o nome e vai se aproximando daquilo de que se vive, que não tem nome,

tampouco beleza e só a mudez pronuncia.

G.H. afirma, quase ao término da narrativa, que se aproximava da “confiança” e acrescenta:

“Talvez seja este o nome. Ou não importa: também poderia dar outro.”, (ib.), ela poderia

chamar qualquer coisa pelo nome que ela inventasse, pois qualquer nome serviria, já que

nenhum serviria ! Afinal “como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim?”, (id.,

p. 115), diz G.H.

Vimos que a matéria-prima ficcional em PSGH não é a realidade, o questionamento é o da

própria linguagem, capaz de denotar o ser (SÁ, 1979, 153).

3.6 A coisa cerceada, vista por fora

“E o Verbo se fez carne (...).” (João 1, 14)

Agostinho já dizia que é grande resultado se por meio da palavra transmite-se um

pouco do pensamento de quem fala (2002, p. 409). G.H. parecidamente diz que antes vivera

de palavras de caridade ou orgulho ou de qualquer coisa. “Mas que abismo entre a palavra e o

que ela tentava, que abismo entre a palavra amor e o amor que não tem sequer sentido

humano – porque – porque amor é a matéria viva.”, (PSGH, 1988, p. 44).

Já foi apontado que a “linha de mistério e fogo” (id., p. 64) que separa a coisa e o nome, o real

e a representação é intransponível para G.H. e por isso “o erro é um dos seus modos fatais de

trabalho” (id., p. 73), porque em sua contínua procura (id., p. 9) por achar a forma é preciso

arriscar-se, daí G.H. dizer que será preciso coragem para fazer o que vai fazer, isto é, dizer, e

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se arriscar à enorme surpresa que sentirá com a pobreza da coisa dita. “Mal a direi, e terei que

acrescentar: não é isso, não é isso!(...) Adio a hora de me falar.”, (id., p. 14).

É por causa dessa intransponibilidade que G.H. usa tantas metáforas e símiles ou

comparações, trabalhando demasiado na clave do “como” e do “como se” na tentativa de se

acercar, de sitiar a coisa já que não consegue tocá-la, apresentando “uma face visível,

sensorial, capaz de ser colhida pela linguagem, uma face concreta, alcançável, a serviço da

qual se cria imagens estranhas, símbolos, recursos desdobráveis e múltiplos, expressivos”

(SÁ, 1993, p. 21). Há também no estilo de G.H uma espécie de talento visual e plástico,

também pudera, ela é escultora e seus “olhos tanto haviam manuseado a forma das coisas”

(PSGH, 1988, p. 20).

Vejamos, portanto, algumas comparações presentes no texto: o quarto, retrato de um

estômago vazio, a luz do sol era fixa e imóvel “como se nem de noite o quarto fechasse a

pálpebra”; seu “som inaudível era como o de uma agulha rodando no disco quando a faixa da

música acabou”, (id., p. 29); quando G.H. abriu a porta do guarda-roupa desprendeu-se dele

“um cheiro quente como o de uma galinha viva”, (id., p. 31); e o coração dela “embranqueceu

como cabelos embranquecem” (ib.) ao ver emergir a barata, “foi preciso a barata me doer

tanto como se me arrancassem unhas”, (id., p. 74); naquele aposento onde entrara, G.H. sente

“como se já tivesse morrido e desse sozinha os primeiros passos em outra vida”, (id., p. 42); a

mulher sente sua “tensão de súbito quebrar-se como um ruído que se interrompe”, (ib.). Os

grifos são nossos, com o fito de evidenciar as inúmeras comparações de lança mão a

narradora.

G.H. fala que o que a aliviava como a uma sede, aliviava-a como se durante toda a vida ela

tivesse esperado por uma água tão necessária para o corpo eriçado como é a cocaína para

quem a implora, (ib.). Temos aqui uma comparação dentro de outra comparação como cascas

imbricadas – as cascas da barata que se sobrepõem como as cascas de uma cebola: “(...) ela [a

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barata] é formada de cascas e cascas pardas, finas como as de uma cebola, como se cada uma

pudesse ser levantada pela unha e no entanto sempre aparecer mais uma casca, e mais uma.

(...) ela devia ser feita de camadas e camadas finas de asas comprimidas até formar aquele

corpo compacto.”, (id., p. 37). Depois acrescenta que a barata parecia uma mulata à morte.

G.H. diz que estava tão dentro do quarto como um desenho há 300 mil anos numa caverna,

(id., p. 43) e ao imaginar a noite enluarada daquele aposento, ela respira profundamente como

se entrasse num açude calmo, (id., p. 59); para G.H. a hora de viver é [como] um ininterrupto

lento rangido de portas que se abrem continuamente de par em par, (id., p. 51).

Ao experimentar o gosto da identidade real, G.H. diz que esta “parecia tão sem gosto como o

gosto que tem na boca uma gota de chuva”, (id., p. 67) e acrescenta que estava limpa para

entrar numa vida tão primária “como se fosse um maná caindo do céu e que não tem gosto de

nada”, (ib.)

Aos poucos o quarto se torna “igual ao familiar verídico do sonho. E, como do sonho, a

“lógica” era outra, era uma que não faz sentido quando se acorda, pois a verdade maior do

sonho se perde”, (ib.) e “tudo tremeluzia como quando lágrimas grossas não se desprendem

dos olhos”, (id., p. 77).

G.H diz que passa a ver “como a natureza de uma lagartixa vê: sem ter depois sequer que

lembrar. A lagartixa vê – como um olho solto vê”, (id., p. 70).

Vimos comparações plásticas, múltiplas e inusitadas. Vejamos agora algumas metáforas nas

quais G.H. se arrisca na tentativa de aproximar-se da coisa: a narradora diz que “bem sentia

uma ressonância enfática que era a do silêncio roçando o silêncio”, (id., p. 33); e afirma que

tem “horror do silêncio cheio de escamas estratificadas do crocodilo.”, (id., p. 73). Essas

imagens forjadas pela narradora roçam os sentidos (visão, audição, tato).

A barata era um tamanho escuro andando (id., p. 74), era arruivada, toda cheia de cílios e com

olhos de noiva, diz G.H., “os cílios seriam talvez as múltiplas pernas”, (id., p. 37). “Cada olho

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em si mesmo parecia uma barata. (...). duas baratas incrustadas na barata, e cada olho

reproduzia a barata inteira”, (ib.); “Seus olhos continuavam monotonamente a me olhar, os

dois ovários neutros e férteis. Neles eu reconhecia meus dois anônimos ovários neutros”, (id.,

p. 59);

A barata é um ser feio e brilhante. A barata é pelo avesso. (...) ela é aquilo. O que

nela é exposto é o que em mim eu escondo: de meu lado a ser exposto fiz o meu

avesso ignorado. Ela me olhava. E não era um rosto. Era uma máscara. Uma

máscara de escafandrista. Aquela gema preciosa ferruginosa. Os dois olhos eram

vistos como dois ovários. Ela me olhava com a fertilidade cega de seu olhar. Ela

fertilizava a minha fertilidade morta, (id., p. 50);

Vimos pelos excertos que a descrição da barata é um tanto apurada, muito provavelmente para

ressaltar a epifania pelo olhar.

“(...) com meus cílios eu avanço, eu protozoário, proteína pura.”, (id., p. 40); “meu coração

que se cobriu com mil mantos”, (id., p. 65); “E via, com fascínio e horror, os pedaços de

minhas podres roupas de múmia caírem secas no chão, eu assisti à minha transformação de

crisálida em larva úmida, as asas aos poucos encolhiam-se crestadas. E um ventre todo novo e

feito para o chão, um ventre novo renascia”, (id., p. 48); “A esperança é um filho ainda não

nascido, só prometido, e isso machuca”, (id., p. 94);

[o não acontecer nada que G.H. chamava de intervalo] Era a enorme flor se abrindo,

tudo inchado de si mesmo, minha visão toda grande e trêmula. O que eu olhava, logo se coagulava ao meu olhar e se tornava meu – mas não um coágulo

permanente: se eu o apertasse nas mãos, como a um pedaço de sangue coagulado, a

solidificação se liquefazia de novo em sangue por entre os dedos, (id., p. 76-77).

Vimos que G.H. tenta colher pela linguagem a face sensorial do ser, sobretudo com metáforas

e comparações, descrições que muitas vezes se desdobram poliédrica ou concentricamente

repercutindo a técnica narrativa concêntrica já apontada no tópico sobre a intratextualidade

em PSGH .

3.7 O sagrado e o profano em PSGH

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Abramos um parêntese a fim de pontuar a questão do sagrado na narrativa de “A

Paixão...”. Temos por intuito, aqui, outrossim, diferenciar o sagrado relacionado à realidade

antropológica, que é algo especificamente humano, do sagrado ligado ao campo religioso

institucionalizado, que é algo ligado ao divino (BASEIO, 2007, p. 1). Isto nos ajudará a

entender também porque G.H. usa conceitos sacro-religiosos, isto é, ligados ao divino, e os

humaniza parodicamente, de modo a reverter seu sentido, dando, por exemplo, para a

redenção um significado humano, ao nível da natureza e não do sobrenatural conforme já

pontuamos.

“Vale ressaltar que, no mundo atual, em que se valoriza excessivamente a razão e o modo

material de existência, a sacralidade esconde-se, camufla-se nas dobras do profano.”

(BASEIO, 2007, p. 2). Em PSGH, vemos que a experiência fora do comum da protagonista, a

qual gosta do conforto material – “De mim irradiava-se a espécie de bondade que vem da

indulgência pelos próprios prazeres e pelos prazeres dos outros. Eu comia delicadamente o

meu, e delicadamente enxugava a boca com o guardanapo.” (PSGH, 1988, p. 22) – ocorre

num quarto modesto, num dia ordinário, com um inseto comum, isto é, a experiência com o

sagrado dá-se nas dobras do profano, do corriqueiro, já que “ao profano pertence o ordinário,

ao sagrado pertence o extraordinário” (BASEIO, 2007, p. 2). Poderíamos, outrossim,

relacionar a experiência com o sagrado, de que fala a autora citada, com a epifania, pois nesta

o contato com o excepcional também ocorre a partir do ordinário.

Na passagem para o quarto da empregada, G.H. cruza as fronteiras do mundo ordinário e

penetra no reino do extraordinário – percurso sagrado por excelência (BASEIO, 2007, p. 2).

Ela passa pelo “corredor escuro” (PSGH, 1988, p. 25) até chegar ao quarto, sítio onde dar-se-á

a terrível experiência; então a protagonista sai do espaço vulgar, do ordinário e adentra no

espaço do extraordinário que, paradoxalmente, é onde ela menos esperava que poderia passar

por uma experiência mística, afinal sua casa era “fresca, aconchegada e úmida” (id., p. 26), de

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“espirituosa elegância” (id., p. 21), ao passo que o quarto “divergia tanto do resto do

apartamento que para entrar nele era como se [G.H] tivesse saído de [sua] casa e batido a

porta” (id., p. 29), fôra “depósito de trapos, malas velhas, jornais antigos, papéis de embrulho

e barbantes inúteis” (id., p. 23); na qualificação, o apartamento recebe adjetivações

meliorativas, e pejorativas o quarto. Quando atravessa o corredor escuro e adentra no cômodo

da ex-empregada, G.H. tem a impressão de que ele “parecia estar em nível

incomparavelmente acima do próprio apartamento”, (id., p. 26), como se estivesse “solto

acima de uma extensão ilimitada” (id., p. 26).

O espaço da narrativa é sagrado porque não apresenta homogeneidade conforme afirma Maria

Auxiliadora Fontana Baseio citando Mircea Eliade:

“Mircea Eliade apresenta o espaço sagrado como forte, significativo, não

homogêneo, como aquele que aponta quebras, rupturas, manifesta uma realidade

absoluta capaz de fundar ontologicamente o mundo. Para o autor: “Todo espaço

sagrado implica uma hierofania, uma irrupção do sagrado que tem por resultado

destacar um território do meio cósmico envolvente e torná-lo qualitativamente

diferente.” (ELIADE, s.d., p.40).” (ELIADE apud BASEIO, 2007, p. 2).

Qualitativamente o quarto diverge do restante do apartamento; o espaço em geral apresenta

rupturas e quebras: de pé à janela, a protagonista vê a enorme extensão de telhados, além

gargantas rochosas, a favela sobre o morro (PSGH, 1988, p. 69), o deserto nu e ardente, de

onde jorrará petróleo daí a três milênios, as brechas no cascalho, elevações escarpadas, semi-

ruínas (id., p.70) e todo um mundo que acaba e recomeça:

Há cinco milhões de anos talvez o último troglodita tivesse olhado deste mesmo

ponto, onde outrora devia ter existido uma montanha. E que depois, erosada, se

tornara uma área vazia onde depois de novo se tinham erguido as cidades que por

sua vez se tinham erosado. Hoje o chão é amplamente povoado por diversas raças.

(ib.)

O universo apresentado como plástico e fluido, pondo em relevo as qualidades do sentir: a

intuição, a emoção, a sensibilidade, a experiência concreta, caracteriza o pensamento mágico

e um estar no mundo concebido como sagrado (BASEIO, 2007, p. 3). Conforme vimos, o

espaço em PSGH se forma e se deforma, figura e se desfigura, é apresentado pela

sensibilidade: tocar, ver, ouvir, sensação espacial etc (G.H sente um desagrado físico ao ver o

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quarto, o qual tinha uma ordem calma e vazia, p. 26, e um som inaudível como o de uma

agulha rodando no disco quando a faixa da música acabou, p.29; a superfície da cal era

áspera, p. 27).

A estrutura circular que marca PSGH também está coesa com “a dimensão ritual e sagrada,

em que o tempo é circular, a-histórico, reversível e que possibilita o eterno retorno, no dizer

de Mircea Eliade (1992).” (apud BASEIO, 2007, p. 4). Maria Auxiliadora Fontana Baseio

afirma que o ritmo cíclico da natureza, pela escolha do sol e da lua, são representativos do dia

e da noite – espaço da travessia. “É um rito natural que se mostra. Simbolicamente, com a

noite, rememoram-se as trevas pré-natais, a escatologia, e, com o dia, o nascer do sol, a

cosmogonia – para Eliade, movimento sagrado por excelência.” (apud BASEIO, 2007, p. 5).

Em PSGH, esse movimento cíclico revela-se: “hoje de noite ainda seria lua cheia (...) eu veria

a lua cheia nascer sobre o deserto” (PSGH, 1988, p. 70), mas “por enquanto o sol me abrasava

à janela” (id., p. 71).

Sagrado, também, é o ato criador de G.H.: ela escreve, conta/relata/narra (id., p. 13, 88, 54);

sagrado é o ato recriador de contar e escrever, por serem cosmogônicos por princípio, pois

repetem, ritualmente, a criação primeira (BASEIO, 2007, p. 2).

Podemos concluir, destarte, que ao exprimir, pela paródia, a crise do sagrado no mundo

moderno, a expressão dessa tensão, em PSGH, relaciona-se ao esgotamento do sagrado

instituicionalizado, inversamente à culminância do sagrado ligado à realidade antropológica.

Outros elementos pertinentes ao sagrado, possivelmente, poderiam ser apontados em PSGH,

entrementes o exame esmiuçado escapa à alçada dos objetivos de nossa pesquisa. O aparte

efetivado neste subcapítulo fez-se exclusivamente com o fito de elucidar no que consiste a

crise do sagrado na obra – decorrente da reversão paródica de que faz uso, e em que medida a

presença do sagrado antropológico interfere na representação. Feche-se o parêntese.

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3.8 Acerca do nome da protagonista

“E eu costumava aparecer a Abraão, a Isaque e a Jacó (...), mas com respeito ao meu

nome Jeová não me dei a conhecer a eles” (Êxodo 6, 3)

É evidente que ter valises de couro com as iniciais gravadas (PSGH, 1988, p. 18) e

nos lençóis tê-las bordadas (id., p. 30) denota status social; outros elementos nos remetem ao

abastamento financeiro de nossa protagonista, como, por exemplo, morar na cobertura e poder

ter empregada. Porém isso se depreende de uma primeira leitura, pois identificado o cunho

bíblico-paródico e sua relevância dentro da obra, é lícito que reconheçamos serem as iniciais

do nome de G.H., sonoramente, próximas do nome “Javé” ou “Jeová”, “aquele que é” (Êxodo

3, 14-5).

Em G.H. /Зeαgα/ temos a constritiva fricativa palatal sonora /З/ bem como em Jeová

/Зeoνα/; temos ainda a sonora oral /ν/ neste e a sonora oral /g/ naquele; em ambos temos a

vogal central baixa tônica /α/ e a anterior /e/ na mesma posição. Sonoramente é notória a

aproximação entre os dois nomes. Localizamos em G.H. e em Jeová (ou Javé) apenas

consoantes (/З/, /ν/, /g/) e vogais orais (/e/, /α/, /o/).

Parece haver uma intenção paródica no cunho do “nome” misterioso da protagonista, pois esta

não se revela totalmente tal qual o dono do nome que supostamente inspirou o seu: Jeová

(Êxodo 25, 10-7), aquele que se faz conhecer pelo nome (Êxodo 33, 12 e 33, 17) e do qual

não se pode ver a face e continuar a viver (Êxodo 33, 20) e cujo nome não deve ser

pronunciado em vão (Êxodo 20, 7).

Parecidamente, /Зeαgα/ não publiciza seu nome, mantém-no, de certa maneira, secreto, tabu

(porque nefando ou porque inefável?), por conseguinte dá-nos uma identificação de si menos

individualizada e mais genérica (sua classe social, profissão etc), criando ao seu redor uma

atmosfera enigmática como Jeová faz pairar uma nuvem no monte Sinai, no topo do qual se

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encontra (Êxodo 24, 16), lembremos, de passagem, que /Зeαgα/ está no último andar de seu

edifício e no topo da pirâmide social.

A intenção paródica estaria na aproximação sonora das iniciais da protagonista com o nome

de Deus e, pari passu, na possível sigla a que o nome de G.H., presumivelmente, faz alusão,

conforme observa Antonio Maura (1997, p. 287): “G. H. — siglas que, con toda probabilidad,

se refieren a las palabras género humano (…).” – o que faria o contraponto ao divino. A

narrativa toda oscila entre dois pólos (transcendente – imanente; natural – sobrenatural;

humano – divino; sublime – grotesco etc), usando para tanto, sobretudo, o recurso do

paradoxo e da paródia, destarte; o nome G.H. reforçaria esse movimento de oscilação, pois

estaria ligado ao divino (sonoramente) e ao humano (semanticamente).

“É proibido dizer o nome da vida” (PSGH, 1988, p. 12), será por isso que de G.H só

conhecemos as iniciais? Ou será por isso que não se recomenda pronunciar em vão o nome

daquele que é (Êxodo 3, 14)?

Dentro do contexto da narrativa PSGH, a aproximação sonora dos dois nomes parece reforçar

a hipótese que mencionamos e descarta a probabilidade de coincidência.

G.H constrói seu itinerário até a perda das valises com suas iniciais gravadas (PSGH, 1988, p.

75), até não ter mais nome: “(...) não tenho nome, e este é o meu nome. E porque me

despersonalizo a ponto de não ter o meu nome, respondo cada vez que alguém disser: eu.”,

(id., p. 112), “(...) a vida em mim não tem o meu nome.”, (ib.).

4 EPÍLOGO

“Eu sou o Alfa e o Ômega (...).” (Apocalipse 1, 8)

Esclareçamos que preterimos „conclusão‟ a „epílogo‟ devido a que conclusão

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remete a acabamento, fim e, de modo algum, tivemos a pretensão de esgotar o tema desta

pesquisa; não por outro, epílogo atende mais à nossa intenção.

Nesse comenos, procuramos, fundamentalmente, como procedimento ético, manter

as citações corretas de trechos, títulos e autores; atribuições dos créditos intelectuais a quem

de direito; transparências dos conceitos e da metodologia utilizados; exposições das lacunas,

dúvidas e incertezas da pesquisa.

4.1 A manducação e o esputo

“E aquilo que foi uma provação para vós na minha

carne, vós não tratastes com desdém, nem cuspistes

em repugnância (...).” (Gálatas 4, 14)

A disjunção inevitável entre a palavra e a coisa, em PSGH, desencadeia a

manducação, pois o ato de comer a barata representa o contato direto com o ser, sem a

intermediação da palavra. Porém, “ficar dentro da coisa é loucura” (PSGH, 1988, p. 92),

porque a coisa é “monstruosa carne infinita” (id., p. 11), e o “pavor de ficar indelimitada”

(ib.), faz com que G.H. “fatalmente sucumb[a] à necessidade de forma” (ib.), resultando,

destarte, na cuspidura, que reinstaura a divisão, o corte, porque se sai do ser, da carne infinita.

“Ah, e tudo isso eu não quero! (...). Não quero esse mundo feito de coisa!” (90).

Em contrapartida, a palavra segmenta, porque esta dá forma e, dar forma, é cortar a

carne em “pedaços assimiláveis” (ib.), é fraturar a continuidade ininterrupta (id., p. 12),

gerando a cisão entre o ser e o signo. Deriva daí, então, a solução de descontinuidade

realizada pelo processo metonímico, o qual é usado como artifício ou expediente pela

narradora a fim de representar o ser espedaçado, fraturado, porque é dilacerado que o vivo

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participa do reino da palavra, segundo G.H., e se torna assimilável pela sua incompreensão

(id., p. 12 e 90).

Vejamos alguns fragmentos em que se evidencie a cirurgia de fragmentação operada

no ser com o instrumento da linguagem: a barata é designada por intermédio de sua divisão:

“metade do corpo da barata para fora da porta” (id., p. 36), “foi tomada pela cintura”, “a

matéria da barata amarelecia”, “barata presa pela cintura”, (id., p. 60), “seu corpo rebentado”

(id., p. 77), “prendendo-a pelo meio do corpo” (id., p. 46), “a barata bipartida” (id., p. 56), “o

corpo meio emergido da barata” (id., p. 36), o inseto é cheio de cílios, os quais “seriam talvez

as múltiplas pernas. Os fios de antena estavam agora quietos” (id., p. 37), “cílios, cílios

pestanejando que chamam” (id., p. 40). G.H. revê o rosto preto e quieto, o corpo ereto, quase

sem carne, a ausência de seios e de ancas de Janair (id., p. 28); a narradora passa “os dedos

pelo arrepiado do colchão”, passa os “olhos pelo guarda-roupa”, dentro da brecha da porta,

põe o quanto cabe de seu rosto (id., p. 31), “rosto limpo e bem esculpido”, “corpo simples”

(id., p. 22), “lábios ressecados” (id., p. 60), e “com o coração batendo, as têmporas pulsando”

(id., p. 36), ela afirma que “não passava de milhares de cílios de protozoário”, com “milhares

de olhos facetados” (id., p. 60), diz ainda: “sou minha perna, sou meus cabelos, sou o trecho

de luz mais branca no reboco da parede – sou cada pedaço infernal de mim – (...) se me

partirem, (...), os pedaços continuarão estremecendo e se mexendo” (id., p. 43).

E é somente às custas da errância da palavra: da fragmentação, das repetições, das

associações, das substituições, que o indizível encontra uma possível e parcial dizibilidade.

A barata de PSGH é algo que se apresenta, aparece como simples qualidade e não como o

signo que representa (SÁ, 1979, p. 35), resiste à captura pela palavra (TROCOLI, 2004, p.

42), não cede ao encerramento pelo signo:

Em A PSGH, a barata e outros ícones nos “falam” em lugar das palavras, que

pouco a pouco silenciam. As fotografias de GH, o sorriso de Mona Lisa, os

hieróglifos, o rito da manducação, o desenho a carvão na parede. A ocupação de

GH é a escultura, essa arte geradora de ícones. (SÁ, 1979, p. 336)

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A experiência de ingerir o ícone aponta para o literal, segundo Trocoli (2004, p. 35),

pois dispensa a metaforização, já que constitui a relação direta com a coisa, da qual resulta o

desaparecimento do descontínuo, a cicatrização da fratura, a obturação da fenda, daí o medo

da carne infinita. Em contraposição às antigas construções de G.H., que haviam consistido em

unicamente dividir o infinito numa série de finitos (PSGH, 1988, p. 91).

“Em PSGH., a narradora-protagonista depara-se com a impossibilidade de

representação. Impossibilidade que, através da configuração de uma verdadeira poética da

fragmentação, ganha uma dimensão de revelação e libertação.” (TROCOLI, 2004, p. 42). O

interstício entre o ser e o signo, o qual a palavra não cessa de tentar apreender, porém

baldadamente, acarreta o gozo da barata, o qual seria o vínculo sem rodeios, desvios,

afastamentos ou falhas que o uso da palavra custa e engendra, porém a visão de uma carne

infinita é perdição e loucura (PSGH, 1988, p. 11). Nesse ínterim, o esputo é a recuperação da

possibilidade de configurar, é a desistência porque:

A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando

se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a

desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais

sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta, é a glória

própria de minha condição (id., p. 113).

Expelir o inseto grotesco, com “gosto de coisa alguma” e “que parecia quase

adocicado como o de certas pétalas de flor” (id., p. 107) simboliza a desistência – abra-se um

pequeno parêntese a fim de observar uma possível intertextualidade com Jó 6, 6: “Comer-se-

ão coisas insípidas sem sal, ou há sabor na seiva viscosa da altéia?”, pergunta-se o homem

inculpe e reto da terra de Uz, o qual estava sendo provado por Deus e por Satanás (Jó 1, 9-12)

– q. v. também menção à provação em PSGH (1988, p. 84); a altéia ou malvavisco, de que

fala Jó, é uma flor cuja raiz tem sabor adocicado, de maneira que a referência de G.H. ao

sabor adocicado de certas pétalas de flor parece aludir a Jó. Feche-se o parêntese. No entanto,

só houve a desistência depois da tentativa, isto é, colocar a barata na boca. Sem embargo, a

“desistência é uma revelação” (id., p. 113), porque ao tentar, ou insistir: falha-se, volta-se com

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as mãos vazias (id., p. 113), entretanto volta-se com o indizível, o qual só poderá ser dado

“através do fracasso de [sua] linguagem” (ib.), diz G.H.; “só posso alcançar a

despersonalidade da mudez se eu antes tiver construído toda uma voz” (id., p. 112). Mas, para

tanto, a passagem estreita será pela barata difícil (id., p. 43), pois a porta estreita e o caminho

difícil levam para a vida, e poucas pessoas encontram esse caminho (Mateus 7, 14)

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ANEXOS

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ANEXO I – Estrutura cíclica da narrativa PSGH (extraído de SÁ, 1993, p. 166 et. seq.).

(I)----- estou procurando, estou procurando.

É que um mundo todo vivo tem a força de um Inferno.

(II) É QUE um mundo todo vivo tem a força de um Inferno.

Só eu que saberei se foi a falha necessária.

(III) SÓ EU que saberei se foi a falha necessária.

Depois dirigi-me ao corredor escuro que se segue à área.

(IV) DEPOIS dirigi-me ao corredor escuro que se segue à área.

Então, antes de entender, meu coração embranqueceu como cabelos embranquecem.

(V) ENTÃO, antes de entender, meu coração embranqueceu como cabelos embranquecem.

Foi então que a barata começou a emergir do fundo.

(VI) FOI ENTÃO que a barata começou a emergir do fundo.

Cada olho reproduzia a barata inteira.

(VII) CADA olho reproduzia a barata inteira.

Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido.

(VIII) EU CHEGARA ao nada, e o nada era vivo e úmido.

Perdão é um atributo da matéria viva.

(IX) PERDÃO é um atributo da matéria viva.

Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo.

(X) EU FIZERA o ato proibido de tocar no que é imundo.

Então, de novo, mais um milímetro grosso de matéria branca espremeu-se para fora.

(XI) ENTÃO, de novo, mais um milímetro grosso de matéria branca espremeu-se para fora.

Finalmente, meu amor, sucumbi. E tornou-se um agora.

(XII) FINALMENTE, meu amor, sucumbi. E tornou-se um agora.

Pois o que eu estava vendo era ainda anterior ao humano.

(XIII) POIS o que eu estava vendo era ainda anterior ao humano.

Neutro artesanato de vida.

(XIV) NEUTRO artesanato de vida.

Nem mesmo o medo mais, nem mesmo o susto mais.

(XV) NEM MESMO o medo mais, nem mesmo o susto mais.

Dá-me a tua mão:

(XVI) DÁ-ME a tua mão:

A vida pré-humana divina é de uma atualidade que queima.

(XVII) A VIDA pré-humana divina é de uma atualidade que queima.

Eu procurava uma amplidão.

(XVIII) EU PTROCURAVA uma amplidão.

Voltei-me de chofre para o interior do quarto que, na sua ardência, pelo menos não era

povoado.

(XIX) VOLTEI-me de chofre para o interior do quarto que, na sua ardência, pelo menos não

era povoado.

Mas há alguma coisa que é preciso ser dita, é preciso ser dita.

(XX) MAS HÁ alguma coisa que é preciso ser dita, é preciso ser dita.

Pois em mim mesma eu vi como é o inferno.

(XXI) POIS EM mim mesma eu vi como é o inferno.

O inferno é o meu máximo.

(XXII) O INFERNO é o meu máximo.

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Eu estava comendo a mim mesma, que também sou matéria viva do sabath.

(XXIII) EU ESTAVA comendo a mim mesma, que também sou matéria viva do sabath.

Ela sentiria falta do que deveria ser seu.

(XXIV) ELA SENTIRIA falta do que deveria ser seu.

Porque a coisa nua é tão tediosa.

(XXV) PORQUE a coisa nua é tão tediosa.

Não devo ter medo de ver a humanização por dentro.

(XXVI) NÃO devo ter medo de ver a humanização por dentro.

Aumentar infinitamente o pedido que nasce da carência.

(XXVII) AUMENTAR infinitamente o pedido que nasce da carência.

O gosto do vivo.

(XXVIII) O GOSTO do vivo.

Nossas mãos que são grossas e cheias de palavras.

(XXIX) NOSSAS mãos que são grossas e cheias de palavras.

É que não contei tudo.

(XXX) É QUE não contei tudo.

O divino para mim é o real.

(XXXI) O DIVINO para mim é o real.

Falta apenas o golpe da graça – que se chama paixão.

(XXXII) FALTA apenas o golpe da graça – que se chama paixão.

A desistência é uma revelação.

(XXXIII) A DESISTÊNCIA é uma revelação.

E então adoro. -------

(I) ------

ANEXO II – Gráfico da estrutura circular dos capítulos de PSGH (extraído de SÁ, 1993,

p. 169).

I Início

I Fim

II Início

II Fim

III Início

III Fim

IV Início

IV Fim

VI Início

VI Fim

VII Início

VII Fim

VIII Início

VIII Fim

IX Início

IX Fim

X Início

X Fim

XI Início

XI Fim

XII Início

XII Fim

XIII Início

XIII Fim

XIV Início

XIV Fim

XV Início

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XV Fim

XVI Início

XVI Fim

XVII Início

XVII Fim

XVIII Início

XVIII Fim

XIX Início

XIX Fim

XX Início

XX Fim

XXI Início

XXI Fim

XXII Início

XXII Fim

XXIII Início

XXIII Fim

XXIV Início

XXIV Fim

XXV Início

XXV Fim

XXVI Início

XXVI Fim

XXVII Início

XXVII Fim

XXVIII Início

XXVIII Fim

XXIX Início

XXIX Fim

XXX Início

XXX Fim

XXXI Início

XXXI Fim

XXXII Início

XXXII Fim

XXXIII Início

XXXIII Fim

XXXIV Início

XXXIV Fim

ANEXO III – Vida e obra de Clarice Lispector

Há autores em relação aos quais os dados da vida entremeiam com a obra, compondo um

único objeto. Para Clarice Lispector, no entanto, o fato importante, o acontecimento maior foi

certamente o texto (WALDMAN, 1992, p. 14).

“A PSGH foi escrito em 1963 e publicado em 64. É curioso, porque eu estava na pior das

situações, tanto sentimental, quanto familiar, tudo complicado. E escrevi „A Paixão...‟ que não

tem nada a ver com isso. E não reflete a minha vida por que eu não escrevo como catarse,

para desabafar, não. Eu nunca desabafo num livro. Pra isso servem os amigos. Eu quero a

coisa em si” (NUNES, 1988, p. 301, em entrevista a J. Salgueiro, A. R. de Sant‟Anna e M.

Colasanti para o Museu da Imagem e do Som (Rio), em 20 de outubro de 1976).

Nasceu em Tchetchelnik, uma aldeia na Ucrânia em 1920, vindo aos três meses de idade com

a família para o Brasil. Trabalhou como jornalista, inicialmente, no jornal A Noite, indo

depois para o Diário da Tarde. Faleceu em dezembro de 1977, no Rio de Janeiro. Publicou:

Perto do coração selvagem (romance), Rio de Janeiro, A Noite, 1944; O lustre (romance), Rio

de Janeiro, Agir, 1946; A cidade sitiada (romance), Rio de Janeiro, A Noite, 1949; Laços de

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95

família (contos), Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1960; A maçã no escuro (romance),

Francisco Alves, 1961; A legião estrangeira (contos e crônicas), Rio de Janeiro, Ed. do Autor,

1964; A paixão segundo G.H. (romance), Rio de Janeiro, Ed. do Autor, 1964; Uma

aprendizagem ou O livro dos prazeres (romance), Rio de Janeiro, Sabiá, 1969; Felicidade

clandestina (contos), Rio de Janeiro, Sabiá, 1971; A imitação da rosa (contos), Rio de Janeiro,

Artenova, 1973; Água viva (“ficção”), Rio de Janeiro, Artenova, 1973; A via-crucis do corpo

(contos), Rio de Janeiro, Artenova, 1974; Onde estivestes de noite (contos), Rio de Janeiro,

Artenova , 1974; De corpo inteiro (entrevistas), Rio de Janeiro, Artenova, 1975; Visão do

esplendor (crônicas), Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1975; A hora da estrela (romance), Rio

de Janeiro, José Olympio, 1977; Para não esquecer (crônicas), São Paulo, Ática, 1978; Um

sopro de vida (“pulsações” – prosa), Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1978; A bela e a fera

(contos), Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979; A descoberta do mundo (crônicas), Rio de

Janeiro, Nova Fronteira, 1984. Dentre livros infantis: O mistério do coelhinho pensante, 1967;

A mulher que matou os peixes, 1969; A vida íntima de Laura, 1974; Quase de verdade, 1978;

Como nasceram as estrelas, 1984.

ANEXO IV – Resumo biográfico por ordem cronológica (extraído do sítio

<http://groups.msn.com/ObraeVidadeClariceLispector/adescobertadomundobiografia.msnw>)

· 1920 Nasce Clarice Lispector a 10 de dezembro em Tchetcheknik, aldeia da Ucrânia,

filha de Marieta e Pedro Lispector.

· 1921 Clarice Lispector chega ao Brasil com dois meses de idade, razão pela qual se

considera muito mais brasileira do que russa, e vai residir em Maceió.

· 1924 A família se transfere para Recife, onde Clarice passa a sua infância, em um

prédio da Praça Maciel Pinheiro. Estuda no Grupo Escolar João Barbalho, passando daí a para

o Ginásio Pernambucano.

· 1930 Falece sua mãe.

· 1933 Pedro Lispector transfere-se com a família para o Rio de Janeiro, passando

Clarice a estudar no Colégio Sílvio Leite. Nesse período lê bastante, não só a literatura

romântica de Delly, como também as obras de escritores consagrados como Júlio Dinis, Eça

de Queirós, José de Alencar e Dostoiéviski.

· 1938 Prepara-se, no Colégio Andrews, para ingressar na Faculdade de Direito. Nessa

época, freqüenta uma pequena biblioteca de aluguel na Rua Rodrigo Silva, onde escolhe os

livros pelo título. Descobre, ocasionalmente, a obra de Katherine Mansfield.

· 1940 Entra para a Faculdade Nacional de Direito. Falece o seu pai.

· 1941 Redatora da Agência nacional, trabalha ao lado de Lúcio Cardoso, que se tornaria

um de seus melhores amigos.

· 1942 Enquanto cursa a faculdade, começa a escrever seu primeiro romance Perto do

Coração Selvagem.

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· 1943 Trabalha em A Noite como redatora, indo depois para o Diário da Tarde, onde

faz uma página feminina assinando por Ilka Soares. Naturaliza-se brasileira. Casa-se com o

diplomata Mauri Gurgel Valente em 23 de janeiro. Acompanha o marido a Nápoles. Nessa

cidade presta ajuda a um hospital de soldados brasileiros. Começa a escrever O Lustre.Publica

o primeiro livro Perto do Coração Selvagem, pela editora A Noite. Neste mesmo ano o

romance é laureado com o Prêmio Graça Aranha.

· 1946 Publica pela Agir O Lustre. Reside em Berna de onde viaja para a Espanha.

· 1949 França e Itália. Conhece Ungaretti e De Chirico. Em 10 de setembro nasce, em

Berna, seu primeiro filho, Pedro.

· 1950 Regressa ao Rio de Janeiro.

· 1951 Passa seis meses em Torkway, na Inglaterra, onde faz as primeiras anotações

para A maçã no Escuro.

· 1952 Publica Alguns Contos. Escreve a crônica “Entre Mulheres” para a revista

Comício, sob o pseudônimo de Teresa Quadros. Reside em Washington.

· 1953 Em 10 de fevereiro, nasce o segundo filho, Paulo.

· 1958 Colabora para a revista Senhor.

· 1959 Assina, sob o pseudônimo de Helen Palmer, a coluna “Feira de Utilidades”,

publicada no Correio da Manhã.

· 1962 Recebe o prêmio Carmem Dolores pelo romance A maçã no Escuro.

· 1963 Pronuncia, no Texas, a conferência “Literatura Atual no Brasil”.

· 1967 Fica gravemente ferida por causa de um incêndio em seu apartamento. Escreve

crônica semanal, aos sábados, para o Jornal do Brasil.

· 1968 Passa a integrar a Ordem da Calunga, da Campanha Nacional da Criança.

· 1969 Recebe o prêmio Golfinho de Ouro.

· 1975 Participa do 1º Congresso Mundial de Bruxaria, em Bogotá, com o texto

“Literature and Magic”.

· 1977 Publica uma série de entrevistas em Fatos e Fotos, sob o título de “Diálogos

Possíveis com Clarice Lispector”. Falece em 9 de dezembro de câncer.

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ANEXO V – Uma fotografia da autora de A Paixão Segundo G.H. (extraída do sítio

<http://groups.msn.com/ObraeVidadeClariceLispector/paranoesquecerfotos.msnw>).

É raro encontrar alguma fotografia de Clarice Lispector, na qual ela não esteja muito bem

aprumada ou revelando todo seu glamour, já que era uma mulher vaidosa; essa, porém, parece

ser uma deliciosa exceção [197-?].

ANEXO VI – Fac-símile da assinatura de Clarice Lispector (extraída do sítio

<http://groups.msn.com/ObraeVidadeClariceLispector>).

A assinatura da autora de PSGH [19--]