o sentido político da arte hoje

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Pedro Duarte* O sentido político da arte hoje * Professor adjunto de Filosofia da UniRio. Só quem é capaz de padecer a paixão de viver sob as condições do deserto pode reunir em si mesmo a coragem que está na base da ação, a coragem de se tornar um ser ativo. Hannah Arendt Resumo Tendo em vista a filosofia de Hannah Arendt, este artigo apresenta uma reflexão sobre a atual situação da política em nosso mundo quase cinqüenta anos depois. O objetivo é, em tal contexto, situar a pertinência do significado político pertencente à natureza da arte, tomando por base a estética de Kant e a interpretação que Hannah Arendt fez de seu sentido político. Palavras-chave: arte . política . sentido Abstract Considering Hannah Arendt’s philosophy, this article presents a reflection on the current state of politics in our world almost fifty years later. The aim is, in this context, to situate the relevance of the political significance that belongs to the nature of art, based on the aesthetics of Kant and on Hannah Arendt’s interpretation of its political meaning. Key-Words: art . politics . meaning

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Tendo em vista a filosofia de Hannah Arendt, este artigo apresenta uma reflexão sobre a atual situação da política em nosso mundo quase cinqüenta anos depois. O objetivo é, em tal contexto, situar a pertinência do significado político pertencente à natureza da arte, tomando por base a estética de Kant e a interpretação queHannah Arendt fez de seu sentido político.

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  • Pedro Dua

    rte*

    O sentido poltico da arte hoje

    * Professor adjunto de Filosofia da UniRio.

    S quem capaz de padecer a paixo de viver sob as condies do deserto pode reunir em si mesmo a coragem que est na base

    da ao, a coragem de se tornar um ser ativo.

    Hannah Arendt

    Resumo

    Tendo em vista a filosofia de Hannah Arendt, este artigo apresenta uma reflexo sobre a atual situao da poltica em nosso mundo quase cinqenta anos depois. O objetivo , em tal contexto, situar a pertinncia do significado poltico pertencente natureza da arte, tomando por base a esttica de Kant e a interpretao que Hannah Arendt fez de seu sentido poltico.

    Palavras-chave: arte . poltica . sentido

    Abstract

    Considering Hannah Arendts philosophy, this article presents a reflection on the current state of politics in our world almost fifty years later. The aim is, in this context, to situate the relevance of the political significance that belongs to the nature of art, based on the aesthetics of Kant and on Hannah Arendts interpretation of its political meaning.

    Key-Words: art . politics . meaning

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    Falar de sentido poltico da arte e de qualquer outra coisa atual j por si problemtico, pois testemunhamos o esvaziamento da dimenso pblica da existncia em que ele acontece. S que, antes at disso, o problema est em que o deserto de sentido poltico camuflado pela abundante oferta de sentidos para consumo privado, que podem ser comprados com qualquer produto. Junto com as coisas, so vendidos sentidos para a vida, que ficaria vazia se no fosse assim. Talvez, porm, essas duas questes sejam vinculadas, talvez no consigamos achar o sentido da poltica porque era justo ali que o sentido do mundo que temos em comum era produzido. Nesse caso, a polti-ca seria, antes de toda serventia social, o que permite ao sentido deixar de ser privado para se tornar comunicvel entre ns. Dessa tica, pensar o sentido poltico da arte seria sobretudo pensar como ocorre a produo poltica de sentido atravs da arte.

    Para tanto, precisamos de antemo, contrariando o hbito geral, des-prender a palavra sentido de outra tomada como seu sinnimo: a palavra funo. Nem todas as coisas ganham seu sentido por causa da funo que cumprem. Pensar e amar, por exemplo, so experincias cujo sentido est alm de qualquer funo pragmtica. comum aceitar que a arte algo desta ordem. J com a poltica, a situao complica-se. Tomada por suas expresses enquanto Estado e Governo, a poltica parece existir s para servir a outros fins: educao, sade, habitao o poder Executivo que a faz, justamen-te porque aquele que faz e executa, que produz ento. Legislar, porm, j adianta dimenses diferentes da poltica. Lembra-se, aqui, que discutir est em seu corao, que as palavras fazem pulsar a poltica como atividade que, envolvendo a fala, deve produzir sentido, e no s efeitos e consequncias pragmticas.

    Ns, hoje, esquecemos disso. Esquecemos do desejo de discutir assuntos fora do mbito confessional privado do subjetivismo. No s a discusso foi esquecida, mas o prprio desejo por ela. E isso talvez seja relativamente novo. Sem propenso a discutir, a poltica some, pois ela o que diz respeito aos muitos e, at onde sabemos, s a conversa permite que os muitos entrem em contato sem que haja subordinao a este ou quele. Ser, ento, que a poltica ainda tem algum sentido? Essa pergunta foi formulada vrias dcadas atrs pela filsofa alem Hannah Arendt.1 Respondemos com facilidade que a poltica tem sentido quando o que exigimos que ela somente cumpra o

    Hannah Arendt, Ser que a poltica ainda tem de algum modo um sentido?, in A dignidade da poltica (Rio de Janeiro, Relume Dumar, 1993).

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    papel de garantir para ns a possibilidade da felicidade privada embora preferssemos nem precisar dela para tal objetivo (s que, enquanto seres plurais, precisamos que ela ordene a convivncia conjunta, supostamente sempre ameaada pela guerra de todos contra todos). Mais difcil saber se a poltica tem algum significado pelo qual a desejamos por si, sem ser por ela cumprir sua funo de carter burocrtico, administrativo e tcnico.

    *No caso de Hannah Arendt, o grande problema com a poltica estava em que historicamente sua gerao a viu atrelada a duas guerras mundiais, ao totalitarismo e guerra fria. Em 1951, ela publica sua primeira grande obra, Origens do Totalitarismo. Tentava, a seu modo, uma espcie de ajuste de contas com a experincia que acabara de passar e testemunhar. Como judia alem, conviveu de perto com o regime nazista e foi obrigada, como tantos, a buscar exlio nos Estados Unidos. De l, escreveu o livro que a tornaria famosa. Em sua tentativa de compreender os estarrecedores eventos recm-acontecidos, Hannah Arendt os considerou surpreendentes, visto que nenhuma categoria do pensamento tradicional parecia dar conta deles. De outro lado, porm, ela os considerou nada acidentais, j que nasceram e foram sintoma da crise do nosso sculo que, por sua vez, no nenhuma ameaa de fora, nenhuma consequncia de alguma poltica exterior agressiva da Alemanha ou da Rs-sia, e que no desaparecer com a morte de Stlin, como no desapareceu com a queda da Alemanha nazista2.

    Por mais impressionada que estivesse com a singularidade do aconteci-mento totalitrio, Hannah Arendt no pde deixar de notar, em seu livro, a terrvel coerncia entre os pressupostos sobre os quais ele se apoiara ide-ologicamente e aqueles que sustentaram a (supostamente) venervel tradi-o intelectual ocidental, especialmente a moderna. Por mais pessoalmente envolvida com os fatos que fosse, Hannah Arendt nunca escondeu que era somente pelo empreendimento compreensivo e no tanto pela ao que poderamos, nas suas palavras, nos reconciliarmos com um mundo em que tais coisas so definitivamente possveis3. Para ela, apenas a compreenso poderia dar a chance de discernirmos filosoficamente o que estava em jogo

    Hannah Arendt, Ideologia e terror: uma nova forma de governo, in Origens do totalitarismo (So Paulo, Companhia das Letras, 1989), p. 512.

    Hannah Arendt, Compreenso e poltica, in A dignidade da poltica (Rio de Janeiro, Relume Du-mar, 1993), p. 39.

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    nos acontecimentos polticos que marcaram de forma indelvel o sculo XX, a ponto at de talvez percebermos que tais acontecimentos foram, sobretudo, anti-polticos. Eis a a grande originalidade do pensamento de Hannah Arendt ao tratar, quase que em cima da hora, dos regimes totalitrios de que foi contempornea.

    Tratava-se de entender como salvar a experincia poltica daquilo que dela foi feito por eventos que pareciam derivar de sua exacerbao desmedida e, pior ainda, ameaavam trazer a humanidade at seu fim, como a bomba atmica por exemplo. Hannah Arendt adota, ento, a estratgia de explicitar que a poltica, em vez de ser exacerbada por eventos como o totalitarismo, era antes aniquilada por eles. O que se atrofiava, em tais situaes, era a liberdade tanto de pensar quanto de agir que constitui a razo de ser da poltica. Invertia-se, aqui, o argumento habitual: no foi o excesso de po-ltica que permeou o totalitarismo, mas a falta de poltica, ela sim a grande ameaada dentro desse contexto. O terror totalitrio e mesmo o que no evidentemente totalitrio, como o que testemunha o incio do sculo XXI destri a pluralidade dos homens, pois os comprime atravs de um cinturo de ferro,4 como se fossem um bloco homogneo. No acaso que o nazismo, o fascismo e o stalinismo tivessem grande predileo por homens de unifor-me. Eles deveriam ter apenas uma nica forma. O problema que, em geral, identificou-se essa uniformizao com a poltica, o que, segundo a viso de Hannah Arendt, um equvoco, pois a poltica precisamente o contrrio disso. Essa situao experimentada durante o sculo XX, contudo, explica que o sentido da poltica ganhasse, com todo o direito, a forma de pergunta. No estava garantido o sentido de tal atividade.

    Para a pergunta sobre o sentido da poltica existe uma resposta to simples e to contundente em si que se poderia achar outras respostas dispensveis por completo. Tal resposta seria: o sentido da poltica a liberdade. Sua simplicidade e concludncia residem no fato de ser ela to antiga quanto a existncia da coisa poltica na verdade, no como a pergunta, que j nasce de uma dvida e inspirada por uma desconfiana. Essa resposta no , hoje, natural nem imediatamente bvia. Isso evidencia-se porque a pergunta de hoje no simples-mente sobre o sentido da poltica, como antes se fazia, em essncia, a partir de experincias no polticas ou at mesmo antipolticas. A

    Hannah Arendt, Ideologia e terror: uma nova forma de governo, in Origens do totalitarismo (So Paulo, Companhia das Letras, 1989), p. 518.

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    pergunta atual surge a partir de experincias bem reais que se teve com a poltica, ela se inflama com a desgraa que a poltica causou em nosso sculo, e na maior desgraa que ameaa resultar delas. Por conseguinte, a pergunta muito mais radical, muito mais agressiva, muito mais desesperada: tem a poltica algum sentido ainda?5

    Nossa situao atual, porm, j outra. No porque estamos certos do senti-do da poltica, e sim porque, sem eventos histricos capitais como aqueles, j acolhemos, como regra normal, que a poltica mal necessrio para organizar a sociedade de forma a favorecer as existncias privadas. No perguntamos pelo sentido da poltica pois ela nem sequer se apresenta hoje, como para Hannah Arendt, enquanto problema de primeira ordem, a no ser em sua funo administrativa. Poucos so aqueles que, atualmente, conseguem se reconhecer na carga de dramaticidade atrelada por Hannah Arendt questo do sentido da poltica, que se inflamava ento com agressividade e desespero. Mais do que os velhos preconceitos enraizados na tradio do pensamento ocidental que sempre dificultaram o acesso singularidade da experincia poltica, uma certa indiferena perante a poltica que aflige, ou melhor, nem mesmo aflige os nossos dias. No sei quem ainda hoje empregaria honesta-mente adjetivos to intensos quanto os de Hannah Arendt para perguntar se a poltica ainda tem algum sentido.

    *Para a gerao atual com menos de quarenta anos, a queda do Muro de Berlim foi vista, mas poucos sabiam bem o que significava aquele evento. Os pais precisaram explicar o que ocorria ali. Toda a origem daquelas imagens assis-tidas pela televiso residia em fatos histricos que, para essa gerao, foram matria de estudo na escola, no de vivncia concreta. Por mais que algum tipo de entusiasmo pudesse sem dvida atingir as almas, ele era difuso, pois poucos tinham a noo do que significara a partio da cidade de Berlim entre os Estados Unidos capitalistas e a Unio Sovitica comunista depois da Se-gunda Guerra Mundial. Os eventos que deram ao dito breve sculo XX a sua fisionomia j no faziam mais parte da vida corrente, a tal ponto que um fa-moso historiador demarcou seu fim antes mesmo que ele acabasse, em 1991.6

    Hannah Arendt, O que poltica? (Rio de Janeiro, Betrand Brasil, 1999), p. 38.

    Eric Hobsbawm, A era dos extremos: o breve sculo XX: 1914-1991 (So Paulo, Companhia das Letras, 1995).

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    No caso do Brasil, possvel, alis, que a gerao que agora est em torno dos seus trinta anos de idade qual perteno tenha experimentado pela primeira vez a poltica atravs dos pais. Infantes ainda, vimos a emergn-cia, saudada pela gerao precedente, da democracia sobre a ditadura militar. Partilhamos de uma felicidade que, a rigor, no era nossa. Pois aquela alegria pblica era movida pelo trmino da carncia de democracia sofrida antes. Foi tal privao da liberdade poltica, sentida no esprito e na carne, que fez a nova situao, a partir dos anos 1980, ser recebida com festa. Ns, mais jovens, no tnhamos vivido essa privao. J fomos formados na conquista democrtica, em meio a lenos vermelhos amarrados em torno do pescoo e caminhadas coletivas pelas ruas.

    Isso fez com que a experincia poltica mais evidente da gerao que hoje tem pouco mais de trinta anos tenha sido profundamente marcada pela da gerao que a precedeu, quase como se sentssemos saudade de alguma coisa que no foi vivida por ns mesmos, e sim por outros. Esta coisa, contudo, era um sonho. Sonhvamos por emprstimo, talvez por no encontrar o que sonhar diante de nossa realidade. Terrvel como foi, a privao de liberdade do perodo da ditadura, sobre a qual nossos pais tanto falavam, fez com que a poltica fosse sentida por eles como necessria, e ainda suscitou algo de he-roico. Ns, depois, jamais gostaramos de ver a ditadura de volta, claro. Nem sempre, entretanto, ficamos vontade com a falta de herosmo e sonho.

    H, contudo, outra coisa ainda. Embora o precoce envolvimento poltico da gerao de que falamos sustentasse eventualmente posies que no en-tendia bem, como, por exemplo, se melhor certas empresas serem estatais ou privadas, havia algo de crucial nele e que talvez fosse o que movia, se no muitas, pelo menos algumas pessoas ali. Era o desejo de discutir. Era a possibilidade de participar talvez no de processos decisrios de fato, mas de um mbito pblico em que, atravs da troca de vises e opinies, o sentido das coisas emergisse como algo no previamente dado. Era o que de mais prximo tnhamos para experimentar o sentido de uma existncia, e quem sabe at de uma liberdade, que era pblica, junto com os outros, plural, em que homens e mulheres sem laos amorosos e familiares estavam, sim, vin-culados. Era o cuidado com o mundo comum que os unia ali. Nesse sentido, s aparentemente o envolvimento era por esta e aquela opo poltica deter-minada. Para algumas pessoas, soubessem elas disso ou no, o envolvimento era pela prpria poltica.

    Naquela altura, alis, a diferena entre as opes polticas tornava-se j tnue, embora existisse. Inimigos j escasseavam, tornando fracas as dicoto-

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    mias tradicionais como forma de se situar politicamente no mundo. Foi as-sim que alguns perceberam. Perceberam que viemos depois. O mundo estava globalizado, o comunismo concreto acabara, ningum acreditava mais em revoluo, o Muro de Berlim cara, utopia era coisa do passado, declarava-se o fim da histria e at da modernidade. No estranho que tudo parecesse um museu de grandes novidades. Ns viemos tambm depois da poltica. Depois at daqueles que, pela falta da poltica, ainda concebiam por contraste que precisavam dela. Indiferena foi o que prevaleceu, s vezes. Surgia certa nostalgia desiludida, com seu quinho de verdade. Muitos viraram as costas para a poltica, de onde pouco alm da costumeira corrupo e das jogadas partidrias poderia vir.

    No entanto, houve tambm quem descortinasse, a partir da, outro sen-tido da poltica. Ele talvez tivesse certa fragilidade em comparao com as solues diretas e grandiosas para os problemas da vida social. Mas, em com-pensao, constatava-se que a deteriorao da esfera em comum partilhada de tal vida talvez fosse o primeiro grande problema. Em diferentes palavras: a falncia da crena no xito do sentido funcional da grande poltica abria a possibilidade de pensar outro sentido para ela. Tal sentido assumia que toda deciso poltica, se tomada somente com critrios tcnicos, acabava esvaziada de carter pblico, j que o saber tcnico sempre especializado e, por con-sequncia, particularizado, para poucos. Se haver talvez verdades que ficam alm da linguagem e que podem ser de grande relevncia para o homem no singular, isto , para o homem que, seja o que for, no um ser poltico, con-forme escreve Hannah Arendt, j os homens no plural, isto , os homens que vivem e se movem e agem neste mundo, s podem experimentar o significado das coisas por poderem falar e ser inteligveis entre si e consigo mesmos7. Eis a nova percepo para um j muito antigo sentido da poltica.

    *Institucionalmente, a poltica podia deixar de ser to central nesse contexto. Existencialmente, contudo, ela ascendia como parte da vida que v a pos-sibilidade de algo alm do deserto. No se tratava mais de usar a poltica como um meio para fins alheios a ela prpria, ou seja, como instrumento para alcanar certos objetivos que, se pudessem ser conquistados de outra forma, alis, tanto melhor. Inspirados pelo pensamento de Hannah Arendt, podemos compreender o sentido da poltica a partir de sua capacidade de

    Hannah Arendt, A condio humana (Rio de Janeiro, Forense Universitria, 1999), p. 12.7

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    fazer com que o sentido em geral deixe de ser privado e passe a ser compar-tilhado. Nesta frgil atividade humana de falar e ouvir, para alm das fofocas particulares, estaria o cerne da poltica. Esse outro sentido da poltica permite pens-la em conexo com a arte fora de expresses explicitamente engajadas, partidrias e panfletrias. Trata-se de pensar o sentido poltico que a arte, por si, coloca em jogo. No por acaso, Hannah Arendt recorreu esttica de Kant, formulada ainda no sculo XVIII, como matriz terica a partir da qual seria possvel pensar a poltica.

    Em sua esttica, Kant j sinalizara que o sentido da arte dependia do fato de que os homens existem sobre a terra de forma plural. No seu famoso exemplo sobre o que diramos quando perguntados se determinado palcio belo, ele afirma:

    se me encontrasse em uma ilha inabitada, sem esperana de algum dia retornar aos homens, e se pelo meu simples desejo pudesse pro-duzir por encanto um tal edifcio suntuoso, nem por isso dar-me-ia uma vez sequer esse trabalho se j tivesse uma cabana que me fosse suficientemente cmoda.8

    Kant est explicitando, em tal trecho, que, embora o sentimento esttico seja solitrio, ele existe sob a condio de que o sujeito a tocado pertena plura-lidade dos homens, e que este toque possa ser compartilhado com outros. Isso faz parte do sentimento esttico e, portanto, da arte. Ela tem sentido porque o homem existe no plural, ou seja, seu sentido , desde a partida, poltico.

    Por que, entretanto, a arte detonaria certa experincia poltica? Sem falar de poltica estritamente, Kant sugere, porm, que a caracterstica singular de todo juzo esttico que ele aspira validade geral embora seja subjetivo. Isso significa que, ao contrrio dos juzos sobre o conhecimento que devem provar objetivamente a sua validade geral, os juzos estticos precisam ser discutidos. Sempre que acho alguma coisa bela, pensava Kant, sei que jamais poderei provar tal opinio, j que ela possui carter subjetivo. Nem assim, contudo, desisto de comunic-la, pois espero que outras pessoas concordem comigo. Inaugura-se, finalmente, o mbito da poltica, em que os partici-pantes aceitam o debate pois acolhem, tacitamente, dois pressupostos. No h, primeiro, provas objetivas que encerrem a conversa, pois do contrrio bastaria exp-las, sem que se precisasse conversar sobre elas. Idiossincrasias,

    Immanuel Kant, Crtica da faculdade do juzo (Rio de Janeiro, Forense Universitria, 1995), p. 50 (B6).8

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    depois, devem ser postas de fora, pois, se predilees privadas dominarem por aqui, tambm deixar de existir o solo comum para, com o perdo do trocadilho, a comunicao.

    Resta entender, porm, como podemos querer que outros concordem co-nosco quando falamos de alguma coisa subjetiva. Kant explica que julgamos esteticamente sempre que deixamos de constranger as coisas por tudo o que queremos fazer com elas cognitiva, tica e pragmaticamente. Ele chama esta atitude de desinteresse. Ns deixamos as coisas serem o que so. Interes-ses so postos distncia para que, assim, as coisas sejam encontradas sem serem por eles constrangidas e foradas por o que queremos. Desarmados, tanto conceitual quanto pragmaticamente, julgamos a arte a partir do que sentimos subjetivamente; s que tal sentimento pretende estar despojado de tudo que poderia atrapalh-lo a achar a coisa como ela . Portanto, segundo Kant, pressupomos que outras pessoas, se tambm conseguissem aqui estar desinteressadas diante daquele coisa especfica, teriam tudo para concordar com o juzo feito.

    Muito cedo Kant tomou conscincia de que havia algo no subjetivo no que parece ser o mais privado e subjetivo dos sentidos,9 observou Hannah Arendt, com preciso. No entanto, temos aqui apenas pressuposio, expec-tativa e pretenso, pois sabemos que, ao fim, trata-se de algo subjetivo. Impor o gosto que temos a outro descabido. J cortej-lo exatamente o que tenta-mos fazer. Nunca podemos forar ningum a concordar com nossos juzos, observa Hannah Arendt tendo em vista a doutrina esttica de Kant: podemos apenas cortejar ou pretender a concordncia de todos.10 Sua concluso, que d arte profundo sentido poltico, que, quando julgamos, julgamos como membros de uma comunidade, ainda que esta possa ser s imaginada e representada, ou seja, ainda que estejamos ss ao fazer o julgamento.

    *Na oposio do que diz o famoso ditado, portanto, gosto justamente aquilo sobre o que podemos discutir, pois para ele esto ausentes os conceitos ob-jetivos e as predilees apenas privadas. Foi esta percepo que fez com que Hannah Arendt, ao tentar falar da filosofia poltica de Kant, tenha procurado seu pensamento esttico. Em sua bela expresso, tratava-se daquela filoso-

    Hannah Arendt, Lies sobre a filosofia poltica de Kant (Rio de Janeiro, Relume-Dumar, 1994), p. 67.

    Ibidem, p. 73.

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    fia poltica que Kant nunca escreveu.11 precisamente essa que desperta o interesse de Hannah Arendt. Mais at do que nas observaes de Kant sobre a Revoluo Francesa, era em sua esttica que estava a explicao de como surge o mbito pblico em que os homens aceitam discutir como seres que so ao mesmo tempo singulares e plurais. Ningum faz este e aquele juzo esttico para e por concordar com outros, pois somos singulares. Ningum, porm, deixa de desejar que os outros possam partilhar deste juzo, pois ele feito sob a condio de pluralidade em que vivem os homens. Mais uma vez, aparece aqui, ento, a defesa de uma comunidade poltica convocada pela experincia esttica.

    Dessa forma, o que acontece aqui que, visando o consenso, deixamos ocorrer o contrrio: o dissenso. Eis o ganho poltico crucial da experincia esttica despertada pela arte. Isso torna decisivo entender que, segundo Kant, a pretenso que os juzos deste tipo tm validade geral deve permanecer apenas subjetiva. Se passssemos a julgar as coisas pela avaliao objetiva do que os outros acham e ajustando assim o que pensamos a ela, deixaramos de estar desinteressados, perdendo o acesso s coisas que, por sua vez, permite esperar, somente subjetivamente, que os outros concordem. Reivindicamos validade geral porque ela subjetiva, seno a estaramos produzindo. Reivin-dicamos baseados sobre a convico de que existe algum sentido comum, pelo qual os homens pertencem, todos, humanidade, tambm ela comum ainda que esta comunidade tenha, e at deva ter, espao para o dissenso.

    Neste aspecto, o sentido poltico da arte est em ela obrigar cada homem a pensar por si prprio e, ao mesmo tempo, a fazer deste pensamento algo que deve ser partilhado. Hannah Arendt destaca esse impulso comunicabilidade12 que aparece, de forma surpreendente, na esttica de Kant, dando a ela seu ca-rter poltico jamais entrevisto por seu prprio autor, diga-se de passagem. Seria exigido, assim, o sentido da tolerncia, j que essa dinmica poltica do juzo esttico admite a ausncia da concordncia emprica entre os homens e, simultaneamente, exige que eles coloquem publicamente suas opinies. o contrrio da pseudotolerncia que, atualmente, tanto elogiada, e que consiste antes em que cada homem guarde para si a sua opinio sem jamais coloc-la para fora convenhamos que, assim, tolerncia nenhuma de fato exigida. Respeitar diferenas que jamais aparecem enquanto tais fcil. Para tolerar a di-ferena, preciso que ela exista. E a arte , sobretudo, produo de diferenas.

    Ibidem, p. 33.

    Ibidem, p. 74.

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    O sentido poltico da arte hoje

    Da que a vocao do juzo esttico sobre a arte tenha, desde a partida, sentido poltico. Esse sentido exige que a democracia em que vivemos seja algo alm da defesa bsica do direito de todos terem sua opinio. Ele estimula o dever de tambm colocar as opinies em jogo, para que elas possam ser transformadas. Se h sentido poltico da arte, ele est em suscitar, sobretudo, outras possibilidades de sentido para a existncia em que vivemos. Na arte, abre-se o espao de sentido comum onde a troca o encontro de opinies e vises fomenta a convivncia plural entre os homens como algo alm do sim-ples fardo que eles carregam para garantir o direito a seus objetivos privados. Por ser tanto subjetivo quanto desinteressado, o juzo esttico descortina para os homens o espao pblico como experincia prazerosa de discusso e troca, onde eles podem, falando entre si, transformar a si prprios.

    Novamente, eis por que a validade geral buscada pelo juzo esttico deve ser s subjetiva. Isso o que d a ela carter poltico, em vez de cognitivo. que o campo de ampliao do juzo, aqui, o das pessoas, e no o das coisas. Se declaro esta flor bela, sei que outras, porm, podem ser feias. Sei que a validade deste juzo esttico jamais englobar outros objetos, ainda que do mesmo tipo, o que era precisamente a pretenso do conhecimento. Estetica-mente, o alargamento de validade que o juzo busca sobre as pessoas. No se trata de achar vrios objetos adequados ao juzo feito, e sim de achar diversos sujeitos que o compartilhem. Resumidamente, trata-se de tecer, pouco a pou-co, a teia de relaes, certamente frgil, pela qual discutir ganha sentido e o sentido pode, ao mesmo tempo, ser discutido.

    *Na contramo do senso comum vulgar atual, vemos que julgar crucial para a experincia poltica. No julgar passa como tolerncia quando, em verdade, apenas abdica do envolvimento ativo com as coisas. Mesmo porque, a absten-o do juzo tem, vrias vezes, algo de falso: s deixamos de proferi-lo, e no faz-lo. Julgar aferir sentido ao que nos toca. Tal sentido jamais definitivo e conclusivo, a no ser que deixemos de julgar, julgar e julgar de novo. Esta atividade sem fim que permite ao sentido permanecer em movimento, so-bretudo se entramos em contato com outros juzos, com os juzos dos outros. Neste contato, que o cerne da discusso da poltica, o prprio mundo que entra em jogo como o que digno de ser transformado.

    Mundo. para a constituio dele que a arte contribui. Ela artifcio hu-mano. Ela tem papel crucial para fazer com que a terra que habitamos possa ganhar ares de casa e, assim, possa ser habitada embora no sejam esgotadas

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    em tal papel todas as suas possibilidades. Sem funo e sempre singulares, as obras de arte so coisas que se destacam das demais coisas por sua potncia potica. Tal potncia faz com que elas, ao contrrio das outras coisas, no estejam simplesmente dentro do mundo, mas constituam a prpria mundani-dade desse mundo. Foi essa caracterstica da arte que Hannah Arendt buscou descrever no breve captulo de A condio humana dedicado ao assunto.

    Nada como a obra de arte demonstra com tamanha clareza e pureza a simples durabilidade deste mundo de coisas; nada revela de forma to espetacular que este mundo feito de coisas o lar no mortal de seres mortais. como se a estabilidade humana transparecesse na permanncia da arte, de sorte que certo pressentimento de imortali-dade no a imortalidade da alma ou da vida, mas de algo imortal feito por mos mortais adquire presena tangvel para fulgurar e ser visto, soar e ser escutado, escrever e ser lido.13

    Mundo o espao que se constitui entre os homens, permitindo assim o seu encontro. ele que falta. Este o ponto em questo, pois a arte sente falta do mundo e o mundo sente falta da arte. Sem mundo, a arte dificilmente conse-gue potncia para o exerccio poltico de seu sentido. Sem arte, por sua vez, o mundo deixa de ser alimentado com a pergunta constante sobre seu sentido. E esta pergunta decisiva para que tal sentido jamais fique completamente enrijecido, sem poder ver acontecer novos comeos em si. Na prtica, vale dizer, se a arte ainda quiser exercer seu sentido poltico, ter tambm que abandonar toda a politicagem que a cerca. Negociaes privadas de elogios e de favorecimentos simplesmente acabam com a poltica. E com a arte.

    A histria conhece muitos perodos de tempos sombrios, em que o mbito pblico se obscureceu e o mundo se tornou to dbio que as pessoas deixaram de pedir qualquer coisa poltica alm de que mostre a devida considerao pelos seus interesses vitais e liberdade pessoal. Os que viveram em tempos tais, e neles se formaram, pro-vavelmente sempre se inclinaram a desprezar o mundo e o mbito pblico, a ignor-lo o mximo possvel ou mesmo a ultrapass-lo e, por assim dizer, procurar por trs deles como se o mundo fosse apenas uma fachada por trs da qual as pessoas pudessem se esconder

    Hannah Arendt, A condio humana (Rio de Janeiro, Forense Universitria, 1999), p. 181.13

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    O que nos faz pensar n29, maio de 2011

    O sentido poltico da arte hoje

    chegar a entendimentos mtuos com seus companheiros humanos, sem considerao pelo mundo que se encontra entre eles.14

    Pior do que deixar de pedir poltica deixar de pedir da poltica qualquer coi-sa alm de vantagens para a vida privada; no por algum tipo de solidariedade atvica e generosidade crist com o outro, e sim porque a que abdicamos do mundo, somos alienados da existncia plural que constitui os homens que somos. Deixamos de ser com os outros e entre os outros, pois somem o com e o entre. Ser que somos quem somos quando os outros esto de todo ausentes? No precisamos da existncia plural sobre a terra para que sejamos quem somos? Hannah Arendt gostava de dizer que o homem no existe; s existem os homens. S que a poca atual dificilmente encontra este mbito de pluralidade como sendo seu prprio. Pior, ela tende a fazer todos aqueles que sentem essa falta soarem passadistas e simples sonhado-res, como se sonhar fosse algo baixo. E assim oferece toda a sorte de ajuda para que cheguemos felicidade. Mas qual felicidade? Est claro: aquela que adapta a existncia ao deserto. Restam, fora disso, os preciosos osis que todo deserto oferece, sem que saiamos dele.

    Os osis so as esferas da vida que existem independentemente, ao menos em larga medida, das condies polticas. O que deu errado foi a poltica, a nossa existncia plural, no o que podemos fazer e criar em nossa experincia no singular: no isolamento do artista, na solido do filsofo, na relao intrinsecamente sem-mundo entre se-res humanos tal como existe no amor e s vezes na amizade quando um corao se abre diretamente para o outro, como na amizade, ou quando o interstcio, o mundo, se incendeia, como no amor. Sem a incolumidade desses osis no conseguiramos respirar ()15

    Nesse deserto paradoxalmente entupido de tantas coisas em que vivemos, a arte deixa as suas prprias coisas, com certa fragilidade delicada diversas vezes, com alguma contundncia em outras. Sempre que ela de fato aparece, como se algum osis surgisse. Sua gua deve ser bebida, pois precisamos experiment-la para que, ainda que habitando o deserto, jamais esqueamos. No pertencemos ao deserto.

    Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios (So Paulo, Companhia das Letras, 1987), p. 20.

    Hannah Arendt, A promessa da poltica (Rio de Janeiro, Difel, 2008), p. 267-268.

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  • 136 Pedro Duarte

    Referncias bibliogrficas

    ARENDT, Hannah. A condio humana. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1999.__________. A dignidade da poltica. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1993.__________. A promessa da poltica. Rio de Janeiro: Difel, 2008.__________. Homens em tempos sombrios. So Paulo: Companhia das Letras, 1987.__________. Lies sobre a filosofia poltica de Kant. Rio de Janeiro: Relume-Dumar,

    1994.__________. Origens do totalitarismo. So Paulo: Companhia das Letras, 1989.__________. O que poltica? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

    HOBSBAwM, Eric. A era dos extremos: o breve sculo XX: 1914-1991. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.

    KANT, Immanuel. Crtica da faculdade do juzo. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1995.