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Joanice Barbosa Parmigiani O SENTIDO DA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL NA PRÁTICA DA EDUCAÇÃO SÓCIO-COMUNITÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA NA VISÃO FREIREANA Centro Universitário Salesiano de São Paulo Americana/SP 2007

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Joanice Barbosa Parmigiani

O SENTIDO DA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL NA PRÁTICA DA EDUCAÇÃO

SÓCIO-COMUNITÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA NA VISÃO FREIREANA

Centro Universitário Salesiano de São Paulo

Americana/SP

2007

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Joanice Barbosa Parmigiani

O SENTIDO DA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL NA PRÁTICA DA EDUCAÇÃO

SÓCIO-COMUNITÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA NA VISÃO FREIREANA

Dissertação apresentada como exigência parcial para qualificação no Programa de Pós-Graduação stricto sensu – de Mestrado em educação, do Centro Universitário Salesiano de São Paulo.

Centro Universitário Salesiano de São Paulo

Americana/SP

2007

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Comissão Julgadora

__________________________________________

Professor Dr. Luís Antonio Groppo

__________________________________________

Prof. Dra. Margarete May Berkenbrok Rosito

__________________________________________

Prof. Dra.Sueli Maria Pessagno Caro

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Aos amores da minha vida, Luiz Carlos,

Renato, Gabriel e Lucas, pela cumplicidade e

carinho em mais esta etapa da minha trajetória

acadêmica.

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AGRADECIMENTOS

No caminho que trilhei para chegar até aqui encontrei pessoas cuja

generosidade tornou possível esta realização. A todas estas pessoas meu

agradecimento.

Agradeço ao professor Luís Antonio Groppo, meu orientador, com quem tanto

aprendi, pela disponibilidade e generosidade intelectual com as quais orientou

meus estudos, compartilhando minhas ansiedades.

Em especial, ao querido professor Augusto Novaski, pelo apoio e incentivo.

Aos professores Severino Antonio, José Luiz Sigrist, Pe. Manuel Isaú (in

memoriun), Mara Regina Jacomeli, Paulo de Tarso Gomes, Marcos Francisco

Martins e Régis de Morais, que muito contribuíram para o meu enriquecimento

intelectual.

A professora Sueli Maria P. Caro, por suas contribuições na minha banca de

qualificação.

A professora Margaréte May Berkenbrok Rosito, pelas preciosas sugestões

que ajudaram a iluminar meu trabalho.

Aos educandos e educandas do Formação Carapicuíba, que tornaram possível

a concretização deste trabalho.

À minha mãe, Florinda Garcia Barbosa, pelo apoio.

Ao TODO, essência criadora, que está em todas as partes iluminando os

nossos caminhos.

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RESUMO

Este trabalho não se apresenta apenas como resultado de formalidade

burocrática – o preparo da dissertação para o grau acadêmico - mas que isso,

trata-se de um trabalho que decorre da prática diária da pesquisadora e

origina-se em sua própria história de vida. Apresenta o relato, análise e

sistematização de uma experiência intensamente vivenciada, e embasada num

sólido referencial teórico. Num país que é campeão das desigualdades e

injustiças sociais, como o Brasil, procurar entender o sentido da transformação

social passa, necessariamente pelo desvelamento de sua estrutura social. A

bibliografia estudada proporcionou-nos algumas constatações, ajudando-nos a

perceber que a práxis educativa pode levar o educador a transpor a concepção

ingênua de educação e alçar-se à concepção crítica, reconhecendo a si mesmo

e ao educando como sujeitos históricos e, portanto, fazedores da história. A

pesquisa aponta a dimensão do currículo da educação sócio-comunitária,

informal ou não-formal, com práticas tais como o uso da arte em suas diversas

linguagens, a co-gestão constituindo o sentimento de pertença entre outras,

como estratégias para romper o processo de alienação e embrutecimento do

ser humano conduzindo-o à re-humanização.

Palavras-chave: Educação social; Educação não-formal; Educação sócio-

comunitária; Re-humanização; Práxis educativa.

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ABSTRACT

More than a result of a bureaucratic formality – preparing a thesis to get a

degree -, this research is a work that comes from the researcher daily praxis

and her own life history. It presents a report, an analysis and a systematization

of an intensively lived experience based on a solid theory. In a country that is a

champion in social injustices and inequality, as Brazil, trying to understand the

importance of social transformation passes necessarily though its social

structure review. The studied bibliography made possible some important

conclusions. First, the social-communitarian educational praxis may take the

educator to transpose from a naïf to a critical education by recognizing him/her

self and his/her students as historical individuals and, therefore, history makers.

This research reveals the pedagogical planning dimension of the social

communitarian education, informal or non-formal. It embraces activities such as

the use of all forms of Art and the joint-management constituting a feeling of

belonging, among others. They are strategies to overcome the alienation and

rudeness in order to lead him/her to a re-humanization process.

Key words: Social education; Non- formal education; Social-communitarian

education; Re-humanization; Educational praxis.

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SUMARIO

I INTRODUÇÃO.................................................................................................09

1. CAPITULO I SENTIDOS DA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL NA VISÃO

FREIREANA......................................................................................................26

1.1 DO DESCONFORTO ÍNTIMO AO ENCONTRO COM PAULO FREIRE ..........................26 1.2 A complexidade humana e a estrutura social .............................................34 1.3 O papel da escola na sociedade contemporânea.......................................37 1.4 O surgimento da Pedagogia Libertadora.....................................................41 1.5 Ciclos de ensino e as experiências educativas inovadoras.........................45 1.6 A transformação percebida..........................................................................50

2. CAPITULO II CO-GESTÃO: DESAFIOS DA PRÁTICA ...............................56

2.1 COMO NASCEU O FORMAÇÃO CARAPICUÍBA ......................................................57 2.2 A organização da Educação Sócio-Comunitária no projeto....................... 62 2.3 O perfil da comunidade...............................................................................67 2.4 Os desafios da prática da Educação Sócio-Comunitária............................72 2.5 A roda de diálogo: derrubando barreiras.....................................................76 2.6 Co-gestão: vivenciando a formação política com a Prefeitura Mirim...........78 2.7 Rodas de diálogo: construindo regras de convivência.................................90

3. CAPITULO III CAMINHOS PARA A TRANSFORMAÇÃO ..........................94

3.1 DA RIGIDEZ DAS REGRAS À SENSIBILIDADE DA ARTE ...........................................94 3.2 A formação humana - o grupo de ducadores............................................108 3.3 Educador - uma visão sobre o ser e o fazer a educação..........................112 3.4 Pedagogia da hegemonia ou Pedagogia da Autonomia?..........................118 3.5 As possibilidades de uma educação contra-hegemônica..........................121 3.6 Intervir para transformação a realidade.....................................................126 3.7 Quando o espetáculo se encerra ...............................................................129

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................132

5. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................137

6. ANEXOS......................................................................................................145

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INTRODUÇÃO

No imaginário popular habita um sonho comum. O sonho de uma nova

sociedade na qual prevaleça a justiça social, com igualdade de oportunidades e

liberdade para que todo homem e toda mulher possa viver com dignidade.

Na busca por este sonho, tentamos compreender o fenômeno: transformação

social, e a primeira constatação que fazemos é a de que não é possível uma

sociedade nova sem que tenhamos antes construído um novo homem.

A proposta de pesquisa deste mestrado em educação, com área de

concentração em educação sócio-comunitária, tornou possível o

desenvolvimento desta pesquisa, que investiga os processos que podem tornar

realidade a construção do novo homem, como sujeito histórico, capaz de

alcançar sua própria emancipação e autonomia num processo de formação

educativa e humana.

Neste trabalho, buscamos analisar e compreender as formas de

intervenção educativa sócio-comunitária em suas diversas linguagens.

Nosso campo de pesquisa é um projeto social localizado no município de

Carapicuíba, periferia da capital paulista, que realiza atendimento sócio-

educativo a crianças, adolescentes e jovens oriundos de famílias em situação

de vulnerabilidade social.

No primeiro capítulo procuramos perceber os sentidos da transformação

social dentro de uma visão libertadora, que possibilite ao oprimido, libertar-se

da opressão introjetada em seu íntimo (Paulo Freire, 1979). No

desenvolvimento deste capítulo, retomamos nossa história de vida,

encontrando nela a justificativa do próprio trabalho. Ao emergirmos em nossa

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história de vida, num processo arqueológico de busca de sentidos, analisamos

nosso encontro com o autor Paulo Freire e a identificação com o desejo latente

por justiça social e por uma educação como prática de liberdade que possibilite

ao homem “ser mais”.

No segundo capítulo, apresentamos nosso campo de pesquisa, o projeto

Formação Carapicuíba, analisando sua história, sua organização, seus atores e

a prática pedagógica desenvolvida em seu interior.

No último capítulo, apontamos alguns caminhos utilizados pelos

educadores sociais do projeto investigado, como instrumento de

transformação. Identificando dentre estes caminhos, o processo dialógico e a

arte como possibilidades de humanizar os processos de intervenção educativa.

Nasci às 15 horas de uma segunda-feira, dia 22 de junho de 1959, na

Fazenda Nova Esperança, situada na cidade de Cornélio Procópio, norte do

Paraná, pelas mãos da Dona Irene, parteira da redondeza. Sou a segunda

filha, de duas, do casal João de Oliveira Barbosa e Florinda Garcia Barbosa.

Ele carpinteiro, e ela dona de casa.

Em 1965 uma crise afetou a agricultura e meu pai começou a ter

dificuldades para manter-se empregado, razão pela qual nos mudamos para o

Estado de São Paulo.

Fomos então, residir em São Bernardo do Campo, na grande São Paulo

num “barraco” de madeira com três cômodos e banheiro no quintal, que ficava

no terreno do irmão mais velho de meu pai, o “tio Justo”. Para chegarmos da

rua à nossa casa, escalávamos cerca de 80 degraus de uma escada íngreme e

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de terra, e com muita freqüência em época de chuvas, acabávamos caindo nas

escadas e sujando toda a roupa de barro.

Nesta fase de nossa vida, raramente ficávamos em casa aos domingos.

Lembro-me que nas noites de sábado, minha mãe recheava frango com farofa,

assava e no domingo levantava bem cedo, colocava tudo em uma lata, juntava

toalhas, refrigerante e pães e saíamos os quatro, para passear. Fomos ao

Zoológico, ao Museu do Ipiranga, à Praia Grande, Santos, Itanhaem, entre

outros locais. Que coisa boa e que inteligentes meus pais, não somente

cuidavam da qualidade do tempo que nos ofereciam como nos proporcionavam

conhecer coisas novas, ampliando nossa visão de mundo. E na hora do almoço

sentávamos à sombra de uma árvore, minha mãe estendia a toalha no chão e

colocava os alimentos. Percebo hoje que não custa caro proporcionar prazer

para as crianças, pois o dinheiro era sempre contado para o mês, o que não

impediu meus pais de nos oferecer momentos prazerosos na infância.

Reviver esses fatos, percebendo-os em sua importância para minha

formação, remeteu-me à experiência trazida por Paulo Freire (1992) ao contar

sua vivência como educador progressista que ante a dificuldade em

estabelecer uma relação dialógica com seus alunos, que eram adultos em

alfabetização, propôs um jogo em que cada jogador (aluno/professor) lançava

um saber ao qual o outro diria sim ou não (sabe ou não sabe), provando para

os alunos que não somente ele, o doutor, tinha conhecimento, mas eles

também o possuíam e poderiam compartilhar. É que meu pai, João Barbosa,

freqüentou a escola por apenas três meses, entretanto, seu saber próprio,

construído em sua história de vida, ensinou-me muito. Sua leitura de mundo

levou-o a superar as dificuldades enfrentando-as. Penso que é preciso

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coragem para recomeçar uma vida com base em sonhos e que é preciso e

imperioso agir, fazer e mergulhar nessa luta por uma transformação que é

política antes de tudo. Sonhar é também um ato político, um motor da própria

história, pois não há mudança sem sonhos, assim como não existe sonho sem

esperança, esperança que não está na pura espera vazia e ociosa, está na

prática transformadora.

Durante meu curso de pedagogia, impactei-me com uma das questões

que marcam toda a obra de Paulo Freire, de que é preciso que o sujeito tome

nas mãos seu próprio destino, tornando-se o autor de sua própria história, ou

seja, aponta para a importância e a necessidade de desvelarmos nosso íntimo

e nesse desvelar redescobrirmos nossa capacidade de sujeitos da nossa

própria história.

A perda da memória é considerada como um ato escravizador por Alves

(2001), para ele o primeiro ato de domínio é fazer com que o dominado

esqueça seu próprio nome e seu passado.

É por isso mesmo que a mais antiga tradição filosófica do mundo ocidental afirma que o nosso destino depende de nossa capacidade e vontade de recuperar memórias perdidas. Na linha que vai de Platão a Freud, o evento libertador exige que sejamos capazes de dar nomes ao nosso passado. A lembrança é uma experiência transfiguradora e revolucionária. (Alves, 2001, p. 36)

Ao refletir sobre nossa história de vida, e o nosso processo de formação

na escola e fora dela, temos a oportunidade de rever os valores e as crenças

que nos marcaram e carregamos, e percebemos o reflexo que têm em nossa

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prática pedagógica, assim, notamos as influências do meio social e político

forjando nossa personalidade e, então, podemos entender-nos como

responsáveis por nossa própria formação.

A identidade pessoal é constituída por meio de um processo de tomada

de consciência das próprias capacidades individuais, entretanto, não se separa

do contexto social e histórico do sujeito. Quando nos mudamos do Paraná para

São Paulo encontramos diferentes culturas, e fomos aos poucos nos

identificando com a vida na metrópole. Meu pai passou a trabalhar em fábrica e

minha mãe saiu de casa para trabalhar fora. Agora, a vida transformara-se,

minha irmã e eu, experimentávamos a responsabilidade do autocuidado. A

região do grande ABC vivia a efervescência política com os movimentos

sindicais e o Partido dos Trabalhadores, um contexto sociocultural cujas

marcas posso perceber em minha personalidade.

Minha inserção num mundo diferente deu-me condições para lidar com a

diversidade cultural da sala de aula, possibilitando uma maior consciência das

implicações do processo e do quanto o educando é afetado pela nova

realidade. Reconheço, entretanto, por experiências pessoais, que a

oportunidade de relação com culturas diferentes é extremamente

enriquecedora para a construção do conhecimento.

Do período em que fui alfabetizada, entre 1967 e 1970, trago a

lembrança de minha avó materna, pois ela morava com minha família, após ter

ficado viúva. Analfabeta das letras, ela esperava ansiosa, todos os dias, o

momento em que eu chegava da escola, para que lesse-lhe a Bíblia. Sua

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preferência era pelo livro dos Salmos, que eu lia com carinho e grande prazer.

Lembro-me do quanto ela ficava feliz e emocionada com as leituras.

Só agora, ao re-visitar aqueles dias, dou conta de perceber que

naqueles momentos eu estava saciando uma fome que minha avó sentia, a

fome de conhecimento. Reconheço o quanto era prazeroso poder alimentar

esse seu desejo e percebo o quanto me esforçava para isso.

Nos momentos de trocas com minha saudosa avó, percebo-me sendo

Interdisciplinar no sentido da atitude que para Fazenda (1994) é estar aberto ao

conhecimento, mais é também ajudar o outro a abrir-se para o conhecer, numa

parceria recíproca. Sei o quanto aprendi com minha avó e reconheço, hoje, que

também a ajudei a aprender.

Ao ser alfabetizada eu encontrava uma utilização imediata para a leitura

e a escrita: contribuir com minha avó, atendendo seu desejo de saber, o que

dava um sentido e um significado para tudo o que via na escola e levava-me a

querer aprender sempre mais. Deste modo, ao mergulhar no passado, noto as

emoções, a afetividade vivida como ponto de apoio para meu desenvolvimento

cognitivo.

Freire (1996) busca o caminho da autonomia e emancipação do sujeito

epistêmico. Para ele, educar é ato político e todo professor em exercício está

desempenhando um papel político na sociedade e, portanto, todo aluno ao

aprender está sendo politizado.

Em 1981, quando meu primeiro filho, Renato, estava com três meses de

vida, assumi a coordenação de uma creche e pré-escola da Legião da Boa

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Vontade (LBV), uma Organização Não Governamental com atuação em todo o

território nacional além de diversos países. A creche atendia àquela altura, cem

crianças de três a seis anos de idade. Durante três anos trabalhei com uma

equipe de educadores, contando com a colaboração de uma professora

voluntária na coordenação pedagógica.

Neste período, entre os anos de 1981 a 1984, em que estive

coordenando o trabalho da creche, realizava reuniões de equipe, encontro de

pais, planejamento, festas beneficentes para angariar fundos, sempre contando

muito com a participação de todos que compunham o grupo de trabalhadores

da unidade.

Como não tinha formação pedagógica, dedicava-me a ler muito sobre o

assunto, e procurava informar-me sobre o trabalho com educação infantil,

sempre trazendo materiais como livros e revistas, para colaborar com o

trabalho da equipe.

Durante estes anos participei de vários cursos com a Crecheplan, uma

empresa de assessoria para creches e escolas de educação infantil que existia

àquela altura na cidade de São Paulo, além disso, foi possível viabilizar alguns

cursos para o grupo todo, o que foi imprescindível para o resultado que

alcançamos no nosso trabalho.

Em meados do ano de 1984, o movimento financeiro da instituição em

que trabalhava precisava crescer, segundo seus dirigentes, e acreditavam que

meu perfil se encaixava para uma nova função que havia surgido no setor de

arrecadação, como coordenadora de telemarketing, fui então, coordenar

equipes de operadoras.

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Nesta altura estava entrando no Brasil uma tendência administrativa de

descentralização e os administradores da Instituição apostaram nisso, assim,

nos próximos anos eu estaria abrindo núcleos e preparando novas equipes.

Ao re-visitar aqueles dias, vejo-me como educadora, vivendo

intensamente a arte de ensinar e aprender, numa relação em que a

amorosidade está presente. Ao lembrar-me dessas experiências de vida vou

percebendo como fui vencendo meus temores e construindo-me como

educadora.

Essas lembranças remetem-me a Freire (1996) e identifico-me com sua

afirmação de que ensinar exige querer bem aos educandos, pois o respeito e a

amorosidade fazem parte fundamental da prática educativa e que ensinar exige

disponibilidade para o diálogo e clareza de que tanto quem se forma pode

formar ao ser formado, quanto àquele que forma se re-forma e se forma ao

formar. Reconheço o quanto aprendi com todas as pessoas com as quais

trabalhei neste período, uma vivência que muito contribuiu para o meu

amadurecimento profissional e humano.

Em 1986 inaugurei uma fase nova em minha vida, trabalhando como

supervisora de telemarketing. Viajei pelo Brasil inteiro ministrando cursos,

palestras, treinamentos, seminários. Para isso prepara-me fazendo diversos

cursos de vendas, de administração de recursos humanos, administração de

tempo, de mudanças, sempre objetivando contribuir e desenvolver meu

trabalho de forma mais eficaz.

Nesta época conheci muitos lugares e muitas pessoas. Viajei de carro,

de avião, de ônibus, em cada cidade um modo de ser próprio, impondo um

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ritmo diferente de vida e de trabalho. Notava que, embora as diretrizes da

instituição fossem as mesmas, a prática diferenciava-se segundo a cultura de

cada local e com isso, aprendi muito.

A complexidade do ser humano além de passar pelos aspectos

biológico, cultural, social e histórico, passa também pelo aspecto espiritual ou

psíquico, por isso as emoções que emergem das relações humanas são

decisivas em qualquer atividade que envolva mais do que uma pessoa.

Fazenda (1979) afirma e eu acredito profundamente, que num projeto

interdisciplinar o professor deve conquistar a autoridade, transformando o rigor

e a ordem necessários à prática educacional, e que a afetividade, o amor, o

respeito, a coerência, a cooperação, devem estar presentes no ritual do

professor permeando suas relações e contagiando os alunos.

Conviver com pessoas, sejam pequeninas ou adultas, é a mais

enriquecedora oportunidade que o homem e a mulher têm para tornarem-se

melhores, mais sensíveis. Nessa releitura que faço das experiências vividas

reconheço a alegria do convívio e as marcas deixadas em meu ser.

Ao passar a limpo minha história de vida, vou reconhecendo que as

viagens nutriam minha alma, sedenta de novos conhecimentos. Os conflitos

íntimos instalavam-se por vezes, pois tinha que deixar meus meninos, (além do

Renato, tenho também o Gabriel que nasceu em 1982 e o Lucas, meu caçula,

que nasceu em 1985) ainda pequenos, por dias seguidos, o que gerava um

grande sentimento de culpa. Em 1988, devido à fase escolar dos meninos, pedi

transferência para outro trabalho, pois, precisaria estar mais junto deles. Assim,

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deixei de viajar por um tempo e voltei a coordenar equipes centralizadas em

São Paulo.

Foi em abril de 1992, depois de sete anos, que voltei a trabalhar na área

educacional, algumas mudanças organizacionais haviam ocorrido na

instituição, assim, assumi a pasta da assessoria de promoção humana e social

na região Grande São Paulo, que compreendia 13 núcleos circunvizinhos à

capital: Santos, São Bernardo do Campo, Santo André, Osasco, Guarulhos,

Mogi das Cruzes, São José dos Campos, Taubaté, Sorocaba, Americana,

Campinas, Jundiaí e Itu.

Durante três anos, entre 1992 e 1995, trabalhei arduamente nesta

assessoria, junto a outros seis colegas, cada qual cuidando de uma área

específica.

Nesta época a instituição possuía, na região da grande São Paulo, 11

creches e pré-escolas, uma escola profissionalizante para adolescentes e um

lar para idosos. Recordo-me que contratei uma equipe com profissionais de

pedagogia, serviço social, nutricionista e auxiliar de escritório. Conseguimos

verbas para cursos de atualização profissional das 13 unidades sócio-

educacionais, desenvolvemos jornadas pedagógicas, treinamentos que

envolviam todas as pessoas que atuavam nas unidades, desde os técnicos até

o pessoal dos serviços de apoio.

Todo o mês visitava os locais buscando auxiliar a todos para melhorar o

trabalho, procurando defender com muito afinco aquilo que acreditava ser o

melhor para o desenvolvimento de cada unidade. Um período fértil que traz

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lembranças felizes, durante o qual ajudei e recebi ajuda, ensinei e aprendi com

muita gente, e construí verdadeiras amizades.

Em 1995, passei a atuar como assessora da Superintendência de

Educação e Promoção Social da LBV, tendo a oportunidade de conhecer o

país inteiro e algumas localidades da América Latina nas quais eram mantidas

obras sócio educacionais.

Foi também no ano de 1995 que realizei um curso de extensão

universitária em administração de organizações sem fins lucrativos, pela

universidade de Berkeley, Califórnia, concluído com destaque.

Somente em 2001, tardiamente como costumo dizer, é que decidi fazer

uma graduação. Na realidade esta atitude não partiu de nenhuma proposta

externa, partiu de um desejo pessoal de melhorar meus conhecimentos para

poder atuar melhor em minhas atividades profissionais. A princípio fiquei

indecisa entre serviço social ou pedagogia acabando por me decidir pela

segunda principalmente por considerar que não existem soluções para a

sociedade e para o ser que não devam ser edificadas sobre fortes bases

educacionais, e considerando educação como a própria vida.

A partir de 2002 inicio então meu primeiro curso superior, no Centro

Universitário São Camilo. Durante os três anos de curso convivi com grandes

mestres, dentre os quais, ex-alunos, assessores e amigos de Paulo Freire.

Foram muitas as experiências trocadas, ultrapassando a sala de aula e vale

destacar também que o grupo de alunos era formado por 42 mulheres, muitas

das quais já lecionando na rede pública e particular, trazendo experiências

fantásticas para nossas discussões.

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O curso de pedagogia, além da formação acadêmica, proporcionou-me

um momento de encontro pessoal. Posso afirmar sem medo de errar, que o

meu processo de formação permitiu o resgate de minha identidade no sentido

de conhecer, reconhecer e perceber meu papel existencial.

Josso (2007, p.15) compreende que “Não há projeto de formação que

não cruze, à sua maneira, com a questão da identidade”, e o projeto de

formação de professores do meu curso proporcionou, de forma interdisciplinar,

este encontro.

Percebo hoje a bagagem com a qual cheguei à faculdade, grávida de

experiências do contato direto com situações de grande vulnerabilidade social

e mais que social, existencial, marcando minha forma de ver o mundo e de me

relacionar com o conhecimento e com o outro. Tinha uma grande busca

pessoal, algo cuja origem não conseguia ainda identificar. Uma grande

preocupação com as questões político-sociais do país, com as privações

socioeconômicas que envolvem grande parte da população, configurando

nosso país como o país das desigualdades e injustiças sociais. Talvez por isso,

logo no segundo semestre do curso de pedagogia, levei o filme “Ilha das

Flores” para um trabalho de grupo cuja proposta era o uso de vídeo para

sensibilização. O filme tocou muito minhas colegas e foi a partir disso que,

muito despretensiosamente, apresentamos nosso trabalho para sensibilizar as

futuras professoras do curso de pedagogia proporcionando-lhes uma

experiência de contato direto com comunidades em situação de

vulnerabilidade.

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O fato foi que esse trabalho repercutiu e no semestre seguinte foi

retomado pela professora Margarete May, que propôs às alunas trabalharmos

os projetos escritos no período anterior, tendo o “Projeto do Lixão”, como ficou

batizado nosso projeto, como articulador das demais propostas apresentadas

pelos grupos.

Embora por razões diversas não tenhamos concretizado esse projeto,

tivemos a possibilidade de trabalhar conceitualmente com ele dentro da

disciplina de princípios de elaboração de projetos interdisciplinares.

No movimento proporcionado pela interdisciplinaridade durante nossas

aulas, fui pouco a pouco encontrando-me interiormente, por vezes uma

resistência me fazia parar, recuar, entretanto as leituras, as discussões em sala

de aula, o diálogo com a professora, me levavam a avançar, até que em

determinado momento reencontrei adormecido em meu íntimo o Palhaço de

minha infância: Passa-Fome.

Para conseguir desvendar seu sentido em minha formação humana,

busquei estudar a fome em suas muitas dimensões. Por que a preocupação

com o palhaço? (será que o “Passa-fome” passa fome mesmo?) uma incógnita

que se desvelou como uma flor que se abre, quando a professora Margarete

perguntou-me “que fome você acha que o palhaço sente? Fome de quê?”

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Figura 1: Palhaço Passa-forme, durante Jornada Científica do Centro Universitário São Camilo, outubro/2002.

Assim, compreendi que a face mais cruel da fome que me inquietava,

era a fome de justiça social e no meu trabalho de conclusão do curso de

pedagogia, orientado pela professora Margarete, busquei encontrar o sentido

da fome e de percebê-la em minha trajetória de vida e em minha prática

pedagógica, um movimento de descoberta que tornou-se o divisor de águas em

minha trajetória formativa, levando-me a perceber-me como ser histórico,

sujeito de minha própria formação

Durante minhas descobertas, em que fui desvelando o meu eu, comecei

a trabalhar como educadora social na Fundação Orsa, tendo a oportunidade de

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vivenciar uma educação para a prática de liberdade, uma educação que ao

politizar o ser, lhe oferece condições para libertar-se.

Como uma pessoa curiosa, de espírito investigativo, sempre gostei de

ler e de escrever, e se o reencontro com o palhaço “Passa-fome” trouxe, por

um lado respostas para algumas de minhas indagações, por outro, aguçou

minha fome de compreender o sentido de justiça social, levando-me a novos

questionamentos, incentivando-me a continuar buscando respostas.

É por isto que minha pesquisa percorre caminhos que possam desvelar

o sentido da transformação social.

Muito se fala sobre a transformação social, sonhando com um mundo

justo no qual todos os indivíduos tenham igualdade de oportunidades para seu

desenvolvimento, entretanto, as discussões sobre esse tema ainda procuram

por respostas que apontem os caminhos que devemos percorrer, e é nesta

procura que podemos encontrar-nos, descobrindo em nós a chave para a

transformação pelo caminho da nossa própria humanização.

Diante do exposto, a pergunta que norteia esta pesquisa é a seguinte:

Que tipo de conhecimento é possível construir na prática da educação sócio-

comunitária e quais as contribuições dessa prática na construção da autonomia

e da emancipação dos educandos?

A pergunta contempla outras questões: Como articular a construção da

identidade individual e da identidade coletiva? É possível autonomia social sem

a autonomia individual? Que papel cabe ao educador e quais os princípios que

podem nortear esse processo?

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A hipótese do objeto da pesquisa é a de que a educação sócio-

comunitária tem a seu favor a possibilidade de trabalhar com um currículo

formativo que traz como objetivo maior educar para a vida, resgatar a

humanidade perdida no embrutecimento da sociedade individualista de nossos

tempos.

Para o desenvolvimento deste trabalho escolhemos investigar um

Projeto de Educação Social localizado na cidade de Carapicuíba, periferia da

capital paulista. Analisaremos o trabalho pedagógico e social desenvolvido na

unidade, no período de junho de 2003 a junho de 2006, época em que atuamos

neste projeto como educadora social e coordenadora pedagógica.

O objetivo geral da pesquisa é analisar as práticas pedagógicas

utilizadas na educação sócio-comunitária do Projeto Formação Carapicuíba, à

luz das idéias de Paulo Freire, verificando a possibilidade de construir

conhecimentos que possam iluminar os possíveis caminhos para a

transformação social.

Como objetivos específicos destacamos a revisão de literatura sobre

conceito de sociedade e comunidade; revisão de literatura sobre educação

não-formal, social, comunitária e sócio-comunitária; análise do papel do

educador na formação do educando, o tecer das relações, as tramas tecidas na

mediação educativa, a partir de pesquisa bibliográfica e reflexões; revisão de

literatura sobre o conceito de transformação e auto-transformação;

levantamento das intervenções de educação sócio-comunitária utilizadas e

quais as mudanças que ocorreram no grupo individual e coletivamente; análise

dos dados levantados a partir das observações realizadas; apresentação dos

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dados analisados entrelaçando com as observações sobre a prática e a

reflexão dos momentos significativos da própria prática e apresentação do

conhecimento construído a partir desta experiência pessoal na articulação da

trajetória pessoal e profissional.

A metodologia adotada para pesquisa é de história de vida e análise

documental. Serão utilizados documentos do projeto do período: junho/03 a

junho/06: diário de bordo, relatórios trimestrais das atividades pedagógicas de

seis educadores, planos de aula, projetos interdisciplinares e planejamento

pedagógico.

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CAPÍTULO 1

SENTIDOS DA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL NA VISÃO FREIREANA

O objetivo deste capítulo é analisar o sentido do termo Transformação

social, iniciando um caminho que poderá nos levar a entendê-lo na

contemporaneidade e o papel que é desempenhado para tanto pela educação.

Para isto buscaremos compreender o contexto político e social no qual nos

situamos e dentro dele perceber a educação e sua função social.

1.1 Do desconforto íntimo ao encontro com Paulo Freire

Desde minha adolescência tenho trabalhado em projetos sociais,

mantendo inquieta uma alma inconformada pela desumanidade a que estão

submetidas as pessoas que sobrevivem em situação de extrema pobreza e,

numa visão “messiânica”, sempre busquei ações que pudessem, em alguma

medida, contribuir para transformar o quadro que violentava minha alma.

Conheci de perto situações de miséria em diversas regiões do Brasil e a

cada novo contato retornava para casa fragilizada pelo sentimento de

impotência e pela omissão da sociedade em face de casos tão tremendos

como algumas regiões do nordeste e do Centro Oeste, onde em certa ocasião

soubemos que algumas mães davam pinga na mamadeira para que os bebês

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dormissem durante a noite e elas pudessem descansar para enfrentar a fadiga

de um novo dia, dia que breve chegaria ao raiar do sol, sol que ao chegar

iluminaria e aqueceria igualmente a “Casa Planetária” sem, contudo garantir

que todos pudessem ter o benefício da mesma “luz”.

Havia, ou talvez ainda haja aquelas que aproveitam a pinga e,

utilizando-se de um recurso natural – a terra, faziam bolachinhas de barro para

saciar a fome das crianças, uma receita que pode traduzir aqui minha profunda

indignação pela desigualdade social na qual estamos imersos. Outro caso

ocorrido e que provavelmente ainda ocorra em situações similares ou idênticas,

foi saber que mulheres de certa região do Brasil estavam engravidando,

mesmo em casos de já terem 7, 8 filhos, para receberem o benefício auxílio-

natalidade, dinheiro com o qual ficavam felizes por poder adquirir alguns

mobiliários para suas casas encontrando assim um “cadinho” de conforto.

Todo esse desconforto íntimo me fez desejar ser educadora, lutar pela

possibilidade de estudar e dedicar-me a entender o ser humano em suas

muitas dimensões, buscando desvelar o caminho que pode conduzi-lo a uma

transformação que o leve a alcançar o que Freire (1987) chama de “ser mais”.

Assim, identifiquei-me com o pensamento de Paulo Freire, identificando-

me com seu ser professor, que enxerga e respeita o ser do educando em toda

sua complexidade, considerando-o por inteiro, não separando o cognitivo do

afetivo, o racional do emocional.

Como Paulo Freire, eu também não nasci professora, tornei-me pelo

esforço e pela vontade de participar do processo de emancipação do humano,

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na verdade, fui tornando-me educadora em minha prática social, em minha

não-acomodação diante das injustiças sociais às quais uma enorme parte da

população está acometida. É por isso que concordo com as seguintes palavras

de Freire:

Ninguém nasce feito, é experimentando-nos no mundo que nós nos fazemos. Vamos nos fazendo aos poucos, na prática social de que tomamos parte. Não nasci professor, ou marcado para sê-lo. Eu tinha na verdade, desde menino, um certo gosto de ensinar e aprender que me empurrava à prática de ensinar que, por sua vez, veio dando forma e sentido àquele gosto. Umas dúvidas, umas inquietações, uma certeza de que as coisas estão sempre se fazendo e se refazendo e em lugar de inseguro me sentia firme na compreensão que, em mim, crescia, de que a gente não é, de que a gente está sendo. (FREIRE, 2000, p.79)

Desta forma, fui desvelando meu próprio desconforto e compreendendo

na perspectiva de educação freireana, que somente o próprio oprimido é que

pode libertar-se da sua opressão, portanto, não se pode transformar estando

de fora, mas a transformação social há que emanar de dentro, da formação das

próprias consciências oprimidas, num movimento que parte de dentro para fora

do próprio sujeito.

Perceber a politicidade da educação, talvez tenha sido o ponto que mais

chamou minha atenção neste encontro com as idéias freireanas. Desnudar a

prática pedagógica que se quer neutra e assumi-la como ato político, carregada

de intenção e influenciada pela visão de mundo do educador é um caminho

necessário para uma prática pedagógica coerente com o desejo de uma

sociedade mais justa.

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Foi assim, envolvida nesta perspectiva de educação como ato político e

de libertação, que em junho de 2003, fui trabalhar como educadora social num

projeto de inclusão social localizado no município de Carapicuíba, periferia da

cidade de São Paulo. A primeira lição que aprendi: nas grandes metrópoles

encontram-se as mesmas misérias e o mesmo estado de abandono que

existem nas regiões mais pobres e distantes do nosso país e, talvez a

diferença da infra-estrutura da cidade grande minimize a falta de alimento, ao

mesmo tempo em que maximiza a fome ampliando-a para além do sentido

biológico.

Em minha experiência profissional, atravessei a “ponte” diariamente, e

do outro lado encontrava-me com os meninos e meninas que integram o

projeto de inclusão social, e neste contato experimentei sentimentos diversos,

inquietações oriundas de incertezas e indignações.

No contato direto com a negação de humanidade a que está sujeita essa

população excluída, que sobrevive na periferia da metrópole, pude confirmar o

que Paulo Freire (1979, p.30) afirmara: ”Não há outro caminho para a

humanização – a sua própria e a dos outros – a não ser uma autêntica

transformação da estrutura desumanizante”.

Esse trabalho de educação social nos colocou em contato direto com

toda a comunidade. Conhecemos suas casas, suas escolas, seus espaços de

ser criança (ou a inexistência deles), estabelecendo um contínuo diálogo entre

educadores-educandos-comunidade.

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Neste estreito relacionamento confirmamos no dia-a-dia a negação da

condição humana e vimos face-a-face o processo de desumanização, de

embrutecimento do ser que ocorre orquestrado pela violação de direitos

gerando um imenso “apartheid social”, favelizando corpos e almas.

O cotidiano dessas populações de baixa renda é carregado de tristeza

pela situação vivenciada, marcada pela ausência de condições habitacionais

dignas, pela ausência ou precariedade de serviços públicos básicos, pela

inexistência de espaços de convivência coletiva de lazer e cultura. Assim, o

desenvolvimento do senso estético, fundamental à condição humana, fica

relegado ao mais profundo desprezo e esquecimento.

Minha relação com os educandos foi uma conquista que se construiu de

forma tão simples quanto forte, fundamentando-se numa metodologia de

educação a partir da apropriação crítica da realidade para poder transformá-la.

Na realidade, o trabalho com educação social ou educação popular,

respeita o tempo, permitindo ao educador penetrar no mundo do educando,

conhecer seu comportamento, reconhecer sua forma de existir e assim,

conquistar sua confiança e amizade. (Graciani, 2001).

Edgar Morin (2001), em seu livro “Os Sete Saberes necessários à

Educação do Futuro”, nos fala sobre a necessidade de se ensinar a condição

humana, nos remetendo à reflexão de que o ser humano é um ser complexo,

sendo ao mesmo tempo um ser físico, biológico, psíquico, cultural, social,

histórico e espiritual, o que nos leva a pensar sobre a garantia das

necessidades básicas que dão sustentação a essa dignidade e a essa

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complexidade e que estão sendo negadas a essas populações. Volto a Paulo

Freire (1979) para tentar compreender que é preciso uma educação como

prática de liberdade, libertação como um processo endógeno que leve o ser ao

encontro dessa liberdade. Nossa cultura, forjada num processo histórico de

exploração, mantém os homens e as mulheres subjugados e impotentes diante

da dominação que sofrem, vivendo apenas para sobreviver como seres

dependentes a quem não é legada a alegria de viver, a autonomia e a

liberdade, mas apenas a servidão.

Ao pensar nesta complexidade do humano, percebemos a

desumanização como realidade histórica e entendemos que, como seres

inconclusos, convivemos com as duas possibilidades – humanização e

desumanização – separadas por tênues fios de caminhos reais e possíveis em

dado contexto, assim, reconhecemos o relevante papel da educação e a

grandeza da tarefa que compete ao educador.

Em uma de suas grandes obras, embora publicada como livro de bolso,

Paulo Freire (1996) nos lembra acerca “dos saberes necessários à prática

educativa”. Afirma que é preciso ter coragem para assumir-se como seres

incompletos, seres em construção, e nos fala da ética universal do ser humano

como algo da própria natureza humana e do valor de se reconhecer que

somos, sim, seres condicionados, porém não somos seres determinados e

podemos ver a História como tempo de possibilidade e não de determinismo.

Uma reflexão prenhe de esperança e de confiança numa possível

transformação que nos leve a um mundo novo e mais feliz porque mais

humano.

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Na construção da relação educador - educando, desenvolvida no nosso

trabalho, fomos refletindo acerca de que a prática de ensinar não é meramente

transmitir conhecimento, mas, muito, além disso, é tornar possível a produção,

a construção desse saber, e que o educando não pode ser tido ou considerar-

se objeto de um determinado sujeito, mas que deve ser ele próprio, o sujeito da

sua própria formação, construindo-a passo a passo. Embora tendo clareza do

papel do educador, é igualmente necessário ter, educador e educando, a

clareza de que tanto quem se forma pode formar ao ser formado, quanto

aquele que forma se re-forma e se forma ao formar, pois quem ensina aprende

ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender (Freire, 1996).

A Pedagogia da Autonomia nos fala da ética, da estética, do exemplo,

da abertura para o novo, nos levando a concluir, já que a tarefa mais nobre da

educação é humanizar, que é necessário que o educador seja humano para

ser capaz de conduzir o educando à humanização, lembrando que a ação mais

humanizadora é aquela que pode levar ao caminho da libertação, um caminho

que é percorrido a partir do diálogo, da curiosidade, do “falar com” para em

seguida refletir junto.

E é neste contexto, do “falar com”, do diálogo como metodologia que

este autor apresenta as categorias basilares para o educador que deseja ter

uma prática educativa humanizante.

Como primeira categoria, Paulo Freire (1979) fala do Amor. Se o

compromisso da educação é dialógico, só é possível dialogicidade se esta

estiver banhada de amor, que é o ato de importar-se com, comprometer-se

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verdadeiramente com a tarefa de educar para transpor as barreiras do não

conhecimento.

É preciso exercitar a humildade para reconhecer a visão e compreensão

de mundo do outro, e só posso refletir sobre minha prática como educadora, se

estou revestida da necessária humildade para reconhecer-me como ser

inacabado, portanto sujeito a erros e falhas que requerem reflexão-ação-

reflexão. Portanto, a segunda categoria da educação libertadora é a humildade.

Como terceira categoria da prática educativa que visa humanizar pela

via do diálogo, Freire (1979) nos fala da Fé. Não fé em Deus ou em deuses,

mas a fé na capacidade que o próprio homem tem de criar e recriar pela

vocação do “Ser Mais”. Essa fé está presente antes mesmo do diálogo, porque

se percorro o caminho do diálogo é porque acredito que a vocação humana é o

“Ser Mais” e, portanto, tenho Confiança na capacidade do homem. Confiança

que é a quarta categoria freireana.

A Confiança na capacidade humana de transformar-se gera a Esperança

e a Solidariedade. Esperança que não é inerte, parada, mas que é

esperançosa por perseverar sempre acreditando no poder transformador do

diálogo.

Amor, Humildade, Fé, Confiança, Esperança, Solidariedade,

ingredientes necessários para uma prática educativa dialógica, categorias

fundantes da educação como prática de liberdade que devem iluminar as

ações dos educadores.

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Ao exercitar essas categorias, essa educação dialógica, tornou-se

possível construirmos com os educandos do Projeto Formação Carapicuíba,

um forte vínculo e esse vínculo tornou-se fundamental para nossa prática

pedagógica. Uma prática que buscou trilhar caminhos da dialogicidade ouvindo

antes de decidir, envolvendo os educandos no planejamento das atividades.

A escuta sensível não aflorou imediatamente, não surgiu como um dom.

Ela exigiu um exercício no qual dois elementos foram imprescindíveis, o amor e

a humildade, além de ser necessário também um grande comprometimento de

todos os educadores.

No desenvolvimento da escuta sensível, o saber ouvir, reconhecemos

também a necessidade do espaço de diálogo entre os educadores, percebendo

que não é possível uma educação como prática de liberdade, emancipadora,

se não houver o espaço para o diálogo entre aqueles que educam.

1.2 A complexidade humana e a estrutura social

Ao trilharmos caminhos de uma educação dialógica junto aos educandos

do Formação Carapicuíba, fomos percebendo que o processo de construção

do conhecimento envolve muito mais que os aspectos intelectual, racional e

motor. Ele depende também das emoções, da afetividade e da relação do outro

para a formação do eu como pessoa.

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A educação é um ato político e de libertação, pois todo educador

desempenha um papel político na sociedade conforme preceitua o educador

Paulo Freire, ela requer construção pessoal e coletiva do saber, para o que é

preciso que a educação seja capaz de desenvolver no indivíduo o prazer, a

curiosidade, o desejo de buscar e se inteirar do conhecimento, buscando o

caminho da autonomia e da emancipação do sujeito epistêmico.

Os fundamentos da alienação do homem refletem-se pelo uso da

linguagem explorada apenas na dimensão informativa, instrumental, racional e

reprodutora, porque essa prática impossibilita que o indivíduo acesse a

linguagem mais sensível, capaz de reconstruír-se.

Na fundamentação da educação enquanto ato de libertação, o ser e o

fazer representam uma única atitude ou único conceito, o que, uma vez mais

nos remete aos “Sete Saberes necessários à Educação do Futuro”, nos quais

Morin (2001) afirma ser a educação do Futuro alicerçada pela questão da

identidade do ser, sua consciência ecossistêmica e a inter-relação do todo com

as partes e das partes com o todo, levando-nos a novas formas de pensar e

construir o conhecimento, possibilitando a mudança do paradigma da educação

centrado na transmissão de conhecimento e informação para um paradigma

que recupere sua capacidade de humanização.

A resistência às condições sociais expressa no comportamento dos

meninos e meninas do projeto Formação Carapicuíba, nos conduz a refletir

acerca da estrutura da nossa sociedade burguesa capitalista, sua forma de

organização, seus valores, levando-nos a um profundo estado de indignação

que gera angústias e, ao mesmo tempo, nos provoca, alimenta nossos sonhos

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de, como educadores, seguir em frente, acreditando que é possível uma

sociedade diferente.

Enfrentar a hostilidade que esses meninos e as meninas têm consigo

mesmos configura-se em um dos maiores desafios do trabalho educativo.

Dentre os muitos casos, citaremos o caso de três irmãos, de treze, onze e oito

anos de idade, cuja revolta manifestavam pela falta de higiene pessoal. Na

verdade o não cuidado de si mesmos é apenas uma das faces da revolta

contra a sociedade e contra o mundo. O fato é que isso refletia em todo grupo

levando os colegas a discriminá-los. Eles vendiam no trem e freqüentavam

fliperama, motivo pelo qual o Conselho Tutelar os encaminhou ao projeto1.

Depois de visitar a residência, juntamente com o serviço social,

verificando as reais condições de sua moradia, fizemos um trabalho com a mãe

e com os meninos, um trabalho que envolveu toda equipe do projeto e por

breves dias eles adotaram o banho diário e a escovação dos dentes, o que nos

deixou muito felizes, sentindo-nos vitoriosos por acreditar que havíamos

conquistado a auto-estima para os meninos fazendo-os incorporarem novos

hábitos de higiene. Entretanto, refletindo em conjunto com o grupo de

educadores durante uma capacitação em violência infantil, nos indagamos se

ao desejarmos esse resultado estaríamos trabalhando a emancipação ou

apenas enquadrando-os no modelo que a sociedade burguesa impõe2. A

revolta fora resolvida porque os meninos entenderam que a higiene é

importante para a manutenção da vida e da saúde ou a revolta fora apenas

sufocada para sentirem-se aceitos pelo grupo e por nós, os educadores? E 1 No Capítulo 2 apresentaremos uma análise do perfil dos meninos e meninas que freqüentam o Projeto

Formação Carapicuíba 2 Este dilema várias vezes se apresenta no trabalho da educação social.

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essa revolta reprimida não se manifestará no futuro de forma mais nociva?

Sobre este assunto retornaremos no capítulo 3 ao analisarmos criticamente a

formação educativa ocorrida e se os resultados alçados são apenas

superficiais ou se são profícuos.

Muito sobre o caso desses meninos levou-nos a perceber que é preciso

lidar com a verdade superando a compreensão cristalizada que temos da vida,

num exercício permanente de observar e refletir sobre as condições objetivas

da realidade para não cair em ilusões criadas para nós mesmos e para nossos

educandos. No entanto, acreditamos que o sonho precisa ser mantido porque

sonhar é ter esperança e força para continuar caminhando. Se trabalhar a auto-

estima da criança é, por um lado, deixar-se ser utilizado pelo sistema burguês,

não fazê-lo, por outro lado, pode ser contribuir para o silencioso discurso que

faz com que os pobres, os excluídos, acreditem que não aprendem porque são

burros ou que moram na favela porque não merecem outra coisa.

Quando trabalhamos a auto-estima estamos trabalhando a dignidade do

ser, criticando a condição humana que é dada às pessoas que vivem abaixo da

linha da pobreza, numa condição inclassificável.

Pensar sobre esse caso nos faz refletir sobre nosso próprio trabalho em

projeto de inclusão social. Incluir em que sociedade? Na sociedade burguesa

capitalista? Essa sociedade que requer pessoas que se adaptem e desejem

consumir, que precisa de homens que se sintam livres ao mesmo tempo em

que se condicionam a fazer aquilo que se espera deles, como o que a

educação promove quando obriga a criança a engolir a “pílula”? É isso que

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queremos para nossos educandos ou queremos transformar essa sociedade?

Transformação ou adaptação?

1.3 O papel da escola na sociedade contemporânea

Como pesquisadora participante, falarei um pouco neste item acerca de

minha formação inicial (da 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental) que ocorreu

no final da década de 1960 e início da década de 70, na cidade de São

Bernardo do Campo, berço de lutas dos operários de fábricas, justamente no

período da efervescência das greves que marcaram também o surgimento de

novos partidos políticos no país.

Neste período, segundo Cambi (1999):

Os movimentos estudantis, políticos, culturais, ativaram um processo que foi, ao mesmo tempo, uma ”revolução cultural “e uma” revolta juvenil “, que invadiram a sociedade, atravessaram as ideologias, envolveram as instituições, bem como os saberes e, sobretudo, os lugares onde estes elaboram e se aprendem. (CAMBI,1999, p. 617)

Neste período, o espaço escolar era sério, com cores cinzentas e pálidas.

O comportamento das crianças era bastante contido e na escola não havia

atrativos infantis. Os movimentos de locomoção aconteciam sempre em fila,

por ordem de tamanho, uma contenção constante do movimento livre do corpo.

Mesmo durante o recreio, havia certa vigilância o tempo todo e as relações

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sociais que ocorriam no interior da escola eram de autoritarismo, de medo e

distanciamento entre a criança e o adulto.

Outra coisa muito marcante das lembranças dessa fase trata-se do

patriotismo imposto pela organização escolar, com exaltação aos símbolos

nacionais.

Ao refletir e pesquisar sobre aquele período percebemos como foram se

definindo as relações de dependência que ainda perduram no país e continuam

ditando as regras da educação, sendo possível enxergar o domínio capitalista

perpassando todos os setores nacionais a partir do modo de trabalho e

organização da sociedade em classes. Dominação e dependência reforçada

pela dominação cultural e ideológica do setor econômico sobre a sociedade

criando hábitos de consumo que se internalizaram nas ações e nos

pensamentos dos indivíduos, contando para tal com diversas estratégias dentre

as quais identificamos o papel da escola. Portanto, a expansão do ensino com

as reformas que tiveram início em 1968 atenderam, em primeiro plano, à

pressão econômica.

A entrada do capital internacional para a expansão industrial levou a

uma mudança nos padrões de consumo da população criando ou

intensificando o surgimento de diferentes categorias mesmo entre os

trabalhadores, pois as fábricas precisavam de chefias e isso significava

aumento de poder de consumo, o que forçou a reforma do sistema de ensino

do país, uma vez que as demandas geradas requeriam mão de obra mais

qualificada para ocupar os cargos que foram emergindo.

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Segundo Romanelli (1985), foi a partir de 1968 que este novo significado

da educação começou a ser percebido, ano que também, afirma a autora,

assinala o início de mudanças mais profundas na vida da sociedade e da

economia. É aqui que surge na história da educação no Brasil os primeiros

acordos de cooperação entre o MEC (Ministério da Educação e Cultura) e a

Agency for International Development (AID) para assistência técnica e

cooperação financeira dessa Agência à organização do sistema educacional

brasileiro, é o período dos “acordos MEC-USAID”. (na verdade, os acordos

vêm de anos anteriores, mas sua influência se faz mesmo mais forte a partir da

lei abaixo citada).

Do trabalho das comissões para a reorganização do nosso sistema

educacional, resultou a reforma geral do ensino, criada pelas Leis 5.540 de 28

de novembro de 1968, fixando as normas para a organização e o

funcionamento do ensino superior e em seguida em 11 de agosto de 1971, a

Lei 5.692 que reformou o ensino de 1º e 2º graus. Leis que cumpriram seus

papéis ideológicos e econômicos de acordo com o projeto dos militares,

alcançando de maneira astuta os objetivos implícitos em cada uma. Os

militares pretendiam o desenvolvimento econômico com apoio do capital

internacional e o fortalecimento da aversão pelo comunismo.

Os acordos MEC-USAID, afirma Romanelli (1985), tiveram também o

efeito de agravar a crise educacional, levando a Comissão Meira Matos

(constituída nesse período pelo Governo para estudar os problemas relativos à

crise estudantil e propor soluções) a assumir o papel de interventora nos focos

de agitação estudantil e estudar a própria crise para buscar soluções. Estudos

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que culminaram na implantação de Leis (Decreto Lei 405, de 31 de dezembro

de 1968, e 574, de 8 de maio de 1969) visando conter o protesto estudantil que

era forte naquele momento, cerceando sua liberdade de expressão e tornando

ilegais suas manifestações.

A imersão nestas lembranças traz sensações de distanciamento entre a

vida e a escola e percebemos que a participação da família quase não existia,

que os vínculos escola-família eram tênues.

Neste movimento reflexivo, percebemos que atravessávamos uma fase de

transição entre a pedagogia tradicional, centrada no professor como “dono” do

saber, e a pedagogia tecnicista que trazia uma prática pedagógica com

atividades extremamente mecânicas, dando supervalor às técnicas e

cerceando toda capacidade de criação e inovação quer seja do educador ou do

educando, uma educação preocupada unicamente com a adaptação do

indivíduo para atender aos interesses burgueses.

Neste modelo educacional, todo processo de desenvolvimento das

relações interpessoais, de interação e integração social fica prejudicado, já que

as ações pedagógicas não oportunizam momentos que levem a esse

desenvolvimento. Assim, a vida escolar não proporcionava experiências de

trabalhos em grupos com chances de avançar juntos, de compartilhar e

aprender na percepção das descobertas do outro.

Ao estudarmos esta fase da educação, identificamos o Currículo planejado

por meio de uma lista de conteúdos escolhidos segundo a concepção de aluno

como ser passivo, vaso vazio a ser preenchido com os depósitos feitos pelo

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professor, e a concepção de educação como instrumento para a manutenção

da dominação e dependência, fato que nos remete a Bourdieu em sua Teoria

da Reprodução, denunciando a escola como instrumento para manter as

massas sob controle para perpetuação da divisão social, fazendo com que ao

chegar à escola, a criança já encontre definido o caminho que percorrerá,

mantendo a separação entre o filho do burguês e o filho de trabalhador.

(Bourdieu, 1968)

Ao analisar com Romanelli (1985) “A história da educação no Brasil”,

percebendo a sutileza com que fomos sendo dominados e “vendidos” como

mercadoria para o capitalismo, podemos entender que ir além da formação

escolar básica e depois técnica, àquela altura da história do nosso país, era

possibilidade praticamente nula para as classes populares.

1.4 O surgimento da Pedagogia Libertadora

Entre os anos de 1945 e 1964, o Brasil teve seis governos, sendo que o

país que era de vocação agrária, passou a ser de vocação industrial, inclusive

pela força do desejo do próprio povo.

A burguesia se dividia entre aqueles que acreditavam na

industrialização somente sob o controle do capital nacional e outros insistindo

em que o capital estrangeiro entrasse no cenário nacional, um embate que

ocorria nos bastidores do país, distante do conhecimento da massa.

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Os operários e os grupos de esquerda apoiavam a industrialização

porque acreditavam no suprimento das condições materiais necessárias.

Nestes anos e mais em especial durante o governo Juscelino Kubitscheck, a

ideologia oficial foi o nacionalismo desenvolvimentista que possuía uma

fundamentação teórica nos estudos do Instituto Superior de Estudos Brasileiros

(ISEB).

A partir dos anos 1960 o Brasil deixou de ser definitivamente um país

agrícola e a população urbana ultrapassou a população rural. A bandeira da

industrialização deixou de unir forças sociais e entrou em cena à disputa pelo

controle da divisão dos lucros.

Nos quatro primeiros anos dessa década cresceram organizações que

trabalharam com a “promoção da cultura popular, a educação popular, a

desanalfabetização e a conscientização da população sobre a realidade dos

problemas nacionais.” (Ghiraldelli, 1990, p. 123), e surgiram os Centros

Populares de Cultura (CPCs), os Movimentos de Cultura Popular (MCPs) e o

Movimento de Educação de Base (MEB) como protagonistas preocupados com

a cultura das classes trabalhadoras.

No seio desses movimentos surge a Pedagogia Libertadora, diretamente

associada ao método Paulo Freire de educação de jovens e adultos.

Os escritos de Paulo Freire dos anos 1950 e 60 serviram de base para a

Pedagogia Libertadora. Afirmava que o “homem tem vocação para sujeito da

história” (Freire, 1979, p. 60), não para objeto e que era preciso romper com a

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opressão do homem, forjando uma mentalidade nova que o conscientizasse

frente aos problemas nacionais e o engajasse na luta política.

Freire buscava uma educação comprometida com a vida real do sujeito,

a comunidade deveria então ser o ponto de partida da educação. Contra a

manipulação propunha a desalienação do povo e criticava a educação

“bancária” que era praticada no país.

E, ao criticar a educação bancária, como ele chama a educação

tradicional, Paulo Freire (1979) aponta seus dez princípios, nos quais

percebemos um projeto de opressão e alienação do homem:

a) o educador é o que educa; os educandos os que são educados;

b) o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem;

c) o educador é o que pensa; os educandos, os pensados;

d) o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que escutam docilmente;

e) o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados;

f) o educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos que seguem a prescrição;

g) o educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na atuação do educador;

h) o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele;

i) o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, que opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às determinações daquele;

j) o educador finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros objetos. (Freire, 1979, p. 67-68).

Em sua contribuição propunha o processo educativo por meio da

problematização levando o educando a participar ativamente desde a

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elaboração do programa de ensino e por todas as suas etapas. Para Freire

todo ato educativo era, e é necessariamente um ato político. Entretanto, o

golpe de março de 1964 interrompeu esse “processo de construção de um

novo país”.

A escola nesta fase da história da educação no Brasil, a partir do golpe de

1964, estava organizada como uma fábrica na qual cada aluno era formado de

acordo com a “forma”, portanto, não precisava pensar, não devia criticar ou

questionar, apenas deveria aceitar. Entretanto, a vida além dos muros da

escola poderia proporcionar e nos proporcionou outras vivências formativas.

Entre a aceitação muda a que a escola nos condicionou nesta época e as

possibilidades desenvolvidas nas interações sociais, identificamos o

desenvolvimento da capacidade de transformar. Muitas vezes em situações

extremamente adversas, quer na vida pessoal, quer na vida profissional,

conseguimos com lucidez, enxergar caminhos, modos de fazer e resolver,

tornando situações desafiadoras em possibilidades de conquistas.

É neste sentido que identificamos também o currículo oculto, que estava

presente na escola deste tempo, reconhecendo sua influência em nossa

formação. Como educadora, temos a consciência de que não passamos aos

educandos o discurso que proferimos, mas sim o que verdadeiramente somos

e em que acreditamos, ou seja, nossa concepção filosófico-política.

Segundo Moreira (2001) o conceito de currículo oculto pode contribuir

mais para o aprendizado do estudante que o próprio conteúdo de um

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determinado curso, e a isso chama de ”aprendizado incidental“. E Luckesi

afirma:

As visões de mundo que estão contidas nos conteúdos são assimiladas pelos educandos, na medida mesma em que assimilam os conteúdos. Os livros didáticos, as lições, os textos contêm em si determinados valores, ou modos de ver o mundo, que são assimilados junto com os conteúdos. (Luckesi, 1996, p.128)

Isto nos leva a considerar que a criança assimila as visões de mundo nas

formas de organização, na hierarquia e nas relações humanas que ocorrem no

interior da escola.

1.5 Ciclos de ensino e as experiências educativas inovadoras

Avaliar para classificar era o sistema adotado pela escola do tempo de

minha formação inicial. Nela cada educando era “medido” pela nota que tirava

nas provas. A preocupação dos educadores estava centrada nos conteúdos a

serem memorizados pelos educandos. Havia certa solidão do percurso

primário, pois não havia possibilidades dos trabalhos em grupo e da construção

coletiva do conhecimento. Cada educando encontrava-se isolado numa ilha

que podia ser representada pela carteira em que se sentava.

O alto grau de seletividade do nosso sistema de ensino aprofundou as

diferenças e levou à marginalização de grande parte da população. Segundo

Romanelli (1985), apenas 56 de cada 1.000 alunos ingressados na 1ª série

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primária em 1960 conseguiram ingressar no ensino superior em 1971, levando-

nos a refletir sobre o modelo de educação que prepara o aluno para a seleção,

tônica do processo educacional deste período, tendo a avaliação classificatória

como principal instrumento.

Perrenoud (2002) coloca a avaliação no centro de todo processo de

ensino, apontando a complexidade que envolve o tema e a necessidade de se

buscar uma avaliação formativa. Entretanto, segundo este autor:

Para mudar as práticas no sentido de uma avaliação mais formativa, menos seletiva, talvez se deva mudar a escola, pois a avaliação está no centro do sistema didático e do sistema de ensino. Transformá-la radicalmente é questionar um conjunto de equilíbrios frágeis. Os agentes o pressentem, advinham que, propondo-lhes modificar seu modo de avaliar, podem-se desestabilizar suas práticas e o funcionamento da escola. Entendendo que basta puxar o fio da avaliação para que toda a confusão pedagógica se desenrole, gritam: “Não mexa na minha avaliação!” (Perrenoud, 2002, p. 145).

A avaliação pressupõe ações diagnósticas e sua concepção sempre

acompanha a concepção de educação e de sujeito que a sociedade possui e

com a qual a escola trabalha, é por isso que a avaliação formativa, que respeita

e considera os caminhos percorridos pelo sujeito, somente agora começa a ser

possível, via concepções de educação em que o homem finalmente começa a

ser concebido como sujeito de sua própria formação.

Para trabalhar com o conceito de avaliação formativa se faz necessária

uma mudança estrutural da escola, envolvendo todos os seus atores e a

comunidade, pois ela passa por um processo de desconstrução de uma

compreensão cristalizada do que é aprendizagem e de como ela ocorre,

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devendo o professor não somente partir dos conhecimentos prévios de seus

alunos, como acompanhar o desenvolvimento de cada um, percebendo as

subjetividades as quais subjazem as mediações necessárias para ajudar-lhes a

avançar. O que requer um exercício de reflexão sobre a própria prática que

será mais eficaz quanto mais for coletivamente construído, pois este novo

modelo de educação requer um trabalho no coletivo, integrado e

interdisciplinar.

No contexto dos ciclos de ensino as discussões sobre a avaliação nos

levam à experiência da Escola da Ponte, de Portugal, na qual identificamos as

idéias freireanas de educação, e a experiência da Escola de Summerhill, que

buscam a não fragmentação escolar, fazendo surgir de suas experiências a

idéia dos ciclos de ensino. Nelas são projetados objetivos para cada ciclo, os

professores são professores de todos os alunos e os alunos são alunos de

todos os professores e existe um respeito e uma espera pelo tempo de

maturação do aluno.

Na ponte, todos os professores podem interagir com todos os alunos, em qualquer momento. Aceitam o questionamento das suas práticas porque se apóiam mutuamente. E não se trata apenas da consideração de uma intensa relação interindividual, trata-se da recriação de uma memória coletiva que se estrutura, reformula e afirma. A descoberta de valores comuns permite percorrer um itinerário comum, que reforça vínculos afetivos e é gerador de um intenso sentimento de pertença. A formação pessoal e social também passa por aqui. (José Pacheco apud ALVES, 2001, p. 119).

Com isso, podemos considerar que a fragmentação da escola em séries

e turmas é uma questão que precisa ser superada para que o processo dos

ciclos de ensino e a avaliação formativa, legalmente introduzidos pela Lei de

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Diretrizes e Bases da Educação, LDB 9394/96 e orientados pelos PCNs

(Parâmetros Curriculares Nacional) possam se tornar uma realidade. Um

processo extremamente complexo que envolve profundas mudanças

implicando numa transformação da escola, desde sua estrutura organizacional

e de gestão. Mudanças que já estão legalmente garantidas conferindo

autonomia à escola, mas que para alcançar concretude requerem a superação

de alguns fatores que a impedem, como regras, espaços, horários, programas,

organização de turmas, fragmentação do trabalho e formação do educador.

Para Perrenoud (2002) a avaliação formativa confronta-se com as

estruturas do nosso sistema escolar:

Não apenas com o sistema de seleção e de orientação, com a rede de possibilidades e de opções, mas com a organização das turmas: os espaços, os horários, os modos de agrupamento dos alunos. Quando se trata de diferenciação do ensino, incriminam-se geralmente os efetivos das turmas, Eles têm sua importância, mas pensar apenas em termos de número de alunos é negligenciar muitos outros parâmetros. (Perrenoud, 2002, p. 148)

Todas as questões que bloqueiam essa transformação escolar

aparecem na prática educacional da Escola da Ponte e de Summerhill,

experiências que podem contribuir não como modelo e sim como exemplo, dos

conhecimentos construídos a partir dos erros, das idas e vindas de percursos.

Os ciclos de ensino podem se tornar uma realidade a partir do momento em

que os gestores tiverem a clareza de entendimento do que eles significam e a

lucidez de como desenvolver o processo dentro de sua realidade, o que pode

ser elucidado pelas experiências das escolas mencionadas e de tantas outras.

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A avaliação está na alma da educação objetivamente desenvolvida, ou

seja, a educação que têm uma intencionalidade requer ser avaliada e não pode

ser avaliada apenas ao final do trajeto, tem que ser avaliada periodicamente

para que as evoluções e o processo sejam percebidos e isso só é possível se o

objetivo estiver claro, as intervenções forem adequadas e diferenciadas

conforme o momento do educando, houver o uso sistemático do registro e da

reflexão sobre a prática para acompanhamento, houver um trabalho

pedagógico solidário e não solitário, o professor fizer relatório individual do

desenvolvimento de cada educando, a escola proporcionar trabalhos de grupos

com participação ativa e dinâmica dos educandos oportunizando-lhes

experienciar a aprendizagem e, enfim, se toda a Escola estiver embuida da

mesma intencionalidade, incluindo desde seu gestor até seu porteiro,

envolvendo a compreensão e o comprometimento da comunidade.

Numa perspectiva formativa, dentro do contexto dos ciclos só se pode

conceber a avaliação como instrumento para potencializar o processo de

construção de conhecimento do educando, não medindo o que ele sabe ou não

sabe, e sim o seu desenvolvimento.

Ao avaliar é preciso perceber as nuances do sujeito, seu modo próprio

de comunicar-se com o universo exterior. Não é tarefa fácil, é complexa e

requer uma postura equilibrada e reflexiva daquele que avalia.

Os princípios interdisciplinares como a humildade, a coerência e a

espera devem entrar em ação evitando sentimentos de vingança e

autoritarismo, pois a avaliação pode ser utilizada para oprimir e subestimar a

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criança e isso será uma marca que ela carregará ao percorrer seu caminho na

construção da aprendizagem. (Fazenda, 2002.).

Na prática da educação sócio-comunitária, atuando em projeto social,

tivemos a oportunidade de exercitar uma avaliação formativa, conforme

identificaremos no próximo capítulo.

1.6 – A transformação percebida

As reflexões que nos trouxeram até aqui, tiveram a intenção de buscar

entender o sentido da transformação social. Diante do trágico quadro das

mazelas da nossa sociedade, vamos percebendo ações de resistência

produzindo possibilidades de mudanças no quadro que se apresenta. Na busca

das causas geradoras do fenômeno social – marginalização e miséria material

e cultural - percebemos que as injustiças sociais são o reflexo da organização

da nossa sociedade burguesa capitalista.

Percebemos que as reivindicações, os questionamentos e a não

aceitação de determinações, manifestações freqüentes dos educandos do

Formação Carapicuíba, são os embriões de uma possível mudança social. No

segundo capítulo voltaremos a este assunto e analisaremos mais

profundamente, apresentando e discutindo fatos concretos.

É com satisfação que assistimos a certas “rebeldias” dos educandos e

identificamos nisto a manifestação de busca por justiça em qualquer situação.

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Na organização Pedagógica do Formação Carapicuíba, identificamos um

currículo que emancipa pelo viés da politicidade, um currículo:

[...] voltado para a construção de uma subjetividade livre, para a eliminação dos contextos de dominação introduzidos nas estruturas de comunicação (Mazzi, 1992). Em outras palavras, apoiando-me em Giroux (1992), posiciono-me a favor de um discurso de emancipação no qual a luta contra a dominação constitui parte de um projeto educacional de cunho político. (Moreira, 2001, p. 11).

Neste modelo de educação, ao sentir com todos os sentidos o processo

individual de cada educando, vamos resolvendo as questões dinamicamente,

nos surpreendendo muitas vezes pela força de uma palavra de atenção, que

faz com que a criança perceba que não está sozinha, que o educador está com

ela. As mudanças são provocadas por formas muito simples como o diálogo, a

atenção, a avaliação formativa.

A educação requer coerência e a idéia da coerência exige um

comprometimento existencial do educador que, não sendo ingênuo, percebe a

grande diferença entre a prática pedagógica autoritária, que considera o

educando como um paciente, a receber palavras distanciadas de seu

significado, e a prática pedagógica crítica como ato político e criador de leitura

de mundo. (Freire, 1992)

O ser humano é em si mesmo um universo de sentimentos ambíguos e

contraditórios. No tempo de convivência com as crianças e adolescentes de

Carapicuíba, observamos que todos têm o desejo latente de transformar-se. Na

verdade, por maior que seja a resistência, todo ser humano busca a felicidade,

e deseja encontrá-la transformando tudo o que está à sua volta.

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O comportamento violento e de rebeldia apresentado nesses meninos e

meninas, nada mais é do que a denúncia da existência de uma realidade

história de desigualdade e injustiça.

É por isso que no trabalho individual com os educandos, insistimos em

levar cada um a controlar suas emoções mais irracionais e vamos percebendo

que essa prática os acalma e contribui para melhorar o convívio social.

O senso comum pode considerar a idéia de que a violência cometida

pela criança e pelo adolescente é uma questão de princípios e valores,

culpando principalmente a desestruturação familiar, porém em nosso trabalho

constatamos o que Graciani (2001) aponta: que a raiz do problema está na

própria sociedade e sua organização estrutural.

Graciani (2001), ao analisar o comportamento hostil e violento das

crianças e jovens excluídos socialmente, considera que para poder viver eles

recorrem a caminhos que estão fora das regras sociais, tornando-se facilmente

vítimas da violência assim como seus próprios autores. È preciso então, que o

educador adentre o mundo do educando para compreender e quebrar sua

cultura de resistência. (Freire, 1992).

Quando conseguimos entrar no mundo da compreensão da criança

temos mais condições de auxiliá-la a avançar na construção de conhecimento

e no seu desenvolvimento humano, pois percebemos como e quando intervir.

Na realidade, o educador precisa estar atento ao educando, pois é o próprio

educando que, pelas suas manifestações, aponta o caminho a ser percorrido

para a construção de sua aprendizagem.

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Ao mergulharmos nas histórias de vida buscando conhecer o contexto

social vivido por nossos educandos, temos a oportunidade de conhecer e

reconhecer seus sonhos, muitas vezes nos identificando nesses sonhos. Um

exercício de autoconhecimento que nos faz crescer, passando por um

processo de desbloqueio interno. Como afirma Vasconcellos:

O educador deve cultivar a alma, conhecer-se, se reconhecer: no trabalho arqueológico, poder perceber suas várias camadas de discursos, sentimentos, percepções; ter coragem de investigar, ver as representações (idéias, conceitos, mitos, informações, imagens, fantasmas) que o habitam. (Vasconcellos, 2001, p. 114)

Ao adentrarmos nossa intimidade, ficamos frente a frente com nossas

verdades, reconhecendo além das nossas ações, nossas intenções, dando-nos

a chance de romper com velhos e cristalizados paradigmas. Libertando-nos de

preconceitos, mitos e tabus que marcam nossa existência, um movimento que

parte do nosso eu, toca-o no seu mais profundo, no real e total, e ao tocá-lo re-

significa-o, transforma-o para em seguida tocar e transformar o outro, num

processo de transformação que ocorre dinamicamente e passa por uma trilogia

em que vou compreendendo a mim mesma, a como relaciono-me com o outro

e ao contexto em que estou inserida.

Concordo com Paulo Freire (1992) de que somente um homem

transformado pode contribuir na transformação de outros homens, sendo

preciso que primeiro desenvolvamos em nós os atributos que sonhamos, que

almejamos para o outro. É preciso que antes tenhamos coerência, amor,

humildade, afetividade, ética, estética. Que antes de desejar ver essas

qualidades em nossos educandos, as tenhamos nós próprios, porque

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passamos ao outro aquilo que somos e em que acreditamos, não apenas o

discurso que proferimos.

Quando nos transformamos desconstruímos os velhos paradigmas e

passamos a duvidar daquilo que até então nos parecia certo, colocando-nos

numa atitude de abertura frente ao conhecimento que é renovável e dinâmico,

por isso mesmo, inacabado tal qual nós, seres humanos. Uma atitude que

desenvolve em nós a capacidade de questionar e percorrer o caminho da

autonomia.

Warschauer (2001) fala sobre a importância da reflexão de nossas

próprias ações para a formação de uma consciência crítica do educador:

Na perspectiva da autoformação [...], que tem o objetivo emancipatório de conscientização e de autonomização, trata-se de um engajamento mais ativo do sujeito em sua formação, o que se dá justamente ao associar pesquisa e formação, num suporte epistemológico que inclui o pesquisador na própria pesquisa, ao mesmo tempo em que o sujeito se investe, ele próprio, no poder sobre sua formação (Warschauer, 2001, p. 197).

Ao refletir sobre nosso processo de formação temos a oportunidade de

rever os valores e crenças que carregamos e percebemos o reflexo que têm

em nossa ação concreta e educativa.

Em suma, nosso entendimento acerca do sentido da transformação

social passa pela essência do ser humano. A este ser humano é preciso que se

possibilitem as condições, não mínimas, mais suficientes de existência digna

para que ele desenvolva os atributos de humanização, ou seja, que ele possa

alcançar o que Paulo Freire (1979) chama de “Ser Mais”.

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E o caminho que vislumbramos para uma efetiva transformação da

sociedade, é o caminho da humanização, é o resgatar da sensibilidade

humana, capaz de sobrepujar-se à insensibilidade social, é preciso que

educação e educadores resgatem a capacidade de afetar em seu sentido

etimológico, de “afetar” o outro.

Em Pedagogia do Oprimido, escrita pelo educador Paulo Freire há mais

de duas décadas, compreendemos que é preciso arrancar a opressão de

dentro do oprimido, compreendendo que oprimido é toda pessoa cuja liberdade

esteja sendo coagida impedindo sua realização enquanto sujeito, arrancando-a

ao mesmo tempo de dentro do opressor, ou seja, é tão necessário humanizar o

oprimido quanto o opressor, pois ambos possuem a mesma essência de

humanidade.

Os homens, violentando e proibindo que os outros sejam, não podem igualmente ser; os oprimidos, lutando por ser, ao retirar-lhes o poder de oprimir e de esmagar, lhes restauram a humanidade que haviam perdido no uso da opressão. Por isto é que, somente os oprimidos, libertando-se, podem libertar os opressores. Estes, enquanto classe que oprime, nem libertam, nem se libertam (Freire, 1979, p. 46).

Tendo em mente estas metas e ideais, no próximo capítulo

apresentaremos a experiência do Projeto Formação Carapicuíba, sua

organização pedagógica e humana, sua práxis, a constituição de seu grupo de

educadores e a relação destes com os educandos e com a comunidade.

Vamos juntos conhecer a práxis dos educadores que realizam esse trabalho de

educação sócio-comunitária e mergulharemos na visão de mundo dos

educandos, buscando compreender o processo formativo que pode ocorrer ao

desenvolvermos uma prática pedagógica libertadora.

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CAPÍTULO 2

CO-GESTÃO: DESAFIOS DA PRÁTICA

Neste capítulo apresentaremos a prática de Educação Sócio-

Comunitária desenvolvida no Projeto Formação Carapicuíba. Faremos uma

viagem em seu interior, percorrendo suas entranhas e conheceremos seus

integrantes, os atores sociais que dão vida e alma ao espaço.

Groppo (2006), analisando a prática da educação sócio-comunitária traz

sua contribuição ao nosso entendimento:

A educação sócio-comunitária também é utópica, ou melhor, é em parte uma possibilidade. Trata-se da possibilidade de construção de novas experiências e ações educacionais fundadas nos princípios societário e comunitário, atentas à necessidade de produção de sociabilidades comunitárias tanto quanto de liberdades individuais capazes de viver à margem ou resistir às lógicas sistêmicas (Groppo, 2006, p.147).

Tendo como base esta afirmação, e acreditando que a prática analisada

representa uma forma de resistir aos modelos hegemônicos impostos pelo

sistema capitalista, que pretende ditar um modo de vida e de estar no mundo,

vamos em busca de compreender a estrutura de vida dos educandos e da

comunidade em questão, porque acreditamos ser importante para o nosso

trabalho analisar a estrutura social que determina as condições de vida e está

presente na forma como os meninos e as meninas que formam o projeto

pesquisado interagem entre si e em sociedade.

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2.1 Como nasceu o Formação Carapicuíba

O Município de Carapicuíba fica situado nas proximidades da Capital do

Estado de São Paulo, a aproximadamente 23 km da Praça da Sé – Marco Zero

– e pertence à primeira Região Administrativa da Grande São Paulo, numa

área de 34 quilômetros quadrados.

Tendo características de cidade dormitório, a cidade possui poucas

indústrias e um pequeno centro comercial. Sua localização é favorecida tendo

como acessos principais as rodovias Presidente Castelo Branco ao norte,

Raposo Tavares ao sul e a Avenida dos Autonomistas a leste (Osasco). A nova

obra do Governo do Estado, o Rodoanel Mário Covas interliga a cidade a

quase todas as demais rodovias que cortam o Estado, bem como às marginais

Tietê e Pinheiros.

Segundo o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,

conforme consta no site www.carapicuiba.sp.gov.br, Carapicuíba possui uma

população de aproximadamente 550.000 habitantes, sendo que dentre esta

população 17.659 recebem menos de um salário mínimo, 17.862 recebem até

01 salário mínimo e 31.296 recebem de 01 a 02 salários mínimos. Grande

parte desta população encontra-se em situação de pauperização, com

significativo índice de desemprego e é demandatária de assistência social em

um patamar acima do que a rede instalada pode absorver. A cidade, deste

modo, possui entre os seus indicadores sociais, crianças e adolescentes em

situação de vulnerabilidade, vivendo em risco pessoal e social necessitando de

atenção em seu cotidiano. No que tange à educação, a taxa de analfabetismo é

de 1,75%, e 84,3% dos adolescentes de 15 a 17 anos estão freqüentando a

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escola, apontando que 13,98% estão fora da escola. A população jovem na

faixa etária de 15 a 24 anos representa 21,7% da população total. Chama a

atenção, a taxa de mortalidade por causas externas de jovens, que é de

27,55%.

O quadro da mortalidade de jovens, no município de Carapicuíba,

aponta para o problema da violência na periferia, mostrando uma das faces da

desumanização do ser, tratada neste trabalho.

Com relação à oportunidade de trabalho, segundo a Secretaria Municipal

do Trabalho, o município tem em torno de 39 indústrias e 400 comércios

inscritos na Associação Comercial, identificando maior vocação para o setor

secundário.

Dentro desta realidade, nasceu o Formação Carapicuíba, a princípio

como um trabalho “caritativo”, assistencialista, organizado por voluntárias que,

três vezes por semana desenvolviam atividades lúdicas e serviam alimentação

para a criançada nas proximidades do lixão da cidade. Estas informações

foram levantadas a partir de análise de documentos antigos, do Formação

Carapicuíba, tais como: relatórios de eventos e álbuns de fotografia.

Analisando os documentos mencionados, percebemos que as pessoas

que iniciaram as atividades eram senhoras acima de 40 anos de idade,

pertencentes à elite social, residentes no condomínio residencial AlphaVille, um

condomínio de luxo no qual residem artistas, empresários, entre outros, e na

grande maioria professavam o espiritismo como fé religiosa, levando-nos a

perceber uma motivação de ordem interna.

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Dentre essas pessoas identificamos a esposa do presidente do Grupo

Orsa, o principal instituidor da Fundação Orsa, e a esposa do presidente da

Fundação. Durante nossa permanência na instituição, fomos percebendo que a

sensibilidade para com os problemas da comunidade local, associada ao fato

de estar a Fundação sediada no município, foram os fatores decisivos que

levaram à implantação do Formação Carapicuíba.

A Fundação Orsa foi criada em 1994 e possui sede em Carapicuíba/SP

e em Monte Dourado/PA, realizando ações de abrangência nacional, avalizado

pelas empresas do Grupo Orsa que investem 1% de seu faturamento bruto

anual na Fundação. Pertence ao Grupo Orsa, um conglomerado empresarial

com capital 100% brasileiro e presença nos estados de São Paulo, Goiás, Pará

e Amazonas. Com sede no Alphaville/SP, o Grupo controla as organizações

atuantes em diversos setores: a Orsa Celulose Papel e Embalagens, a Jarí

Celulose e a Fundação Orsa - além da Orsa Florestal (dedicada à investigação

de novas atividades visando ao desenvolvimento sustentável na Amazônia,

operando em sinergia com a Jarí e a Fundação). O grupo registra um

faturamento anual de U$$ 350 milhões, responde por seis mil empregos diretos

e indiretos e tem atuação destacada no setor de celulose, papel para

embalagens, chapas e embalagens de papelão ondulado, como o terceiro

maior produtor integrado do mercado. (Balanço Social, 2002)

Trabalha com diversos projetos abrengendo as áreas social, educacional

e de saúde, dentre os quais encontra-se o Formação que possui onze unidades

estrategicamente localizadas nas regiões em que estão as fábricas do Grupo e

a sede da Fundação, além de uma unidade no bairro do Glicério em São Paulo.

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Identificamos como marco histórico do Formação Carapicuíba o

fechamento do Lixão da cidade, ocorrido após negociações da Fundação Orsa

com a Prefeitura Municipal, em 1999, no qual dezenas de crianças e

adolescentes escavavam as migalhas para saciar suas fomes e sobreviver.

Uma população pauperizada pelo descaso gerado pela ascensão do

capitalismo global que aumenta dia-a-dia a geografia da exclusão.

A partir de então, a Fundação Orsa investe no atendimento dessa

população, instalando uma unidade de educação não-formal, o Formação

Carapicuíba, no município. Localizada à Avenida Deputado Emílio Carlos, 620,

bairro Santa Terezinha, a unidade que ocupa o mesmo terreno (chácara) no

qual estão instaladas as dependências da sede, conta com um prédio com

quatro salas (sendo duas medindo cerca de 30 metros quadrados cada, e duas

medindo cerca de 15 metros quadrados), possui ainda um galpão coberto com

aproximadamente 100 metros quadrados e um prédio menor com uma sala na

qual funciona o laboratório de informática. O espaço externo da unidade conta

com um pequeno campo de futebol que foi conquistado com a participação

muito ativa dos próprios educandos.

Com referência à manutenção da unidade, constatamos que nos

primeiros anos de fundação, praticamente 100% dos recursos aplicados

vinham da própria Fundação Orsa, contando com uma carteira muito pequena

de doadores. Somente a partir de 2004 é que a unidade passa a contar com

diversos parceiros entre os quais voluntários e financiadores e passa então a

buscar sua autonomia financeira, embora continuasse contando com o recurso

semente, como se denomina o montante aplicado pela sede.

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O orçamento financeiro da unidade, somente para o exercício de 2006,

foi estimado em R$550.000,00 (quinhentos e cinqüenta mil reais). O trabalho

passou então a contar com uma sistematização e organização pedagógica,

contando com educadores e pessoal de apoio e administrativo.

Um rápido olhar sobre o histórico do Formação Carapicuíba nos leva a

perceber seu crescimento, tanto quantitativo como qualitativo, segundo os

registros mais antigos encontrados verificamos que no início, quando o trabalho

era realizado apenas por pessoas voluntárias, eram atendidos cerca de 30

crianças entre sete e 10 anos, sendo que esses primeiros participantes eram

trazidos do lixão até à sede da fundação, na qual aconteciam as atividades. A

partir daí houve uma grande procura por vagas e tão logo o projeto se constitui

como uma unidade de atendimento em educação não-formal, passou a receber

também, encaminhamentos do Conselho Tutelar do Município, de crianças e

adolescentes em situação de risco. Vale ressaltar que em 2001 eram 60

crianças, entre sete e 12 anos, matriculadas, evoluindo para 80 em 2002, ano

em que tiveram início as atividades com os adolescentes de 13 a 18 anos.

Em 2002 já havia uma lista de espera por vaga para entrar no projeto

com mais de 200 inscritos, sendo que o tempo de espera era estimado em dois

anos.

Os educandos somente se desligavam do projeto ao completar a idade

de 18 anos e muito raramente aconteciam desligamentos por mudança da

família, quadro que sofre uma alteração a partir de 2005 quando se dá início ao

Grupo Geração Aprendiz que encaminha jovens a partir de 16 anos de idade

para o primeiro emprego, quando então passa a haver uma maior rotatividade

no grupo dos mais velhos.

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Assim, o trabalho educativo deste projeto acredita num aprendizado

construído de forma coletiva e interativa, no qual a prática e a teoria caminham

de mãos dadas, incentivando o desenvolvimento da solidariedade, da

transparência, da co-responsabilidade, ao encontro da autonomia e da

emancipação de seus sujeitos.

Longe de atingir a plenitude de sua realização, o trabalho em questão

apresenta uma série de problemáticas e o exercício complexo, não linear, na

busca de soluções e de avanços.

2.2 A organização da educação sócio-comunitária no projeto

A princípio, como já mencionamos anteriormente, o atendimento

oferecido tinha o intuito de levar recreação e alimentação a crianças de sete a

dez anos. Com o passar do tempo e o aumento da qualidade do trabalho,

passou-se a atender a faixa etária de seis a dezoito anos, e os grupos

passaram a ser organizados de acordo com as idades.

A organização do trabalho pedagógico foi uma construção coletiva dos

diversos educadores sociais que atuam nas unidades de educação não-formal

da Fundação mantenedora. Desde os nomes das ações, até as metodologias e

práticas, tudo foi exaustivamente discutido no coletivo dos educadores antes de

ser implantado, como veremos nos próximos parágrafos.

Assim, foram organizados três grupos ou subprojetos. O primeiro,

denominado Criança Ativa, voltado para o atendimento de crianças de 6 a 11

anos, o segundo, atendendo pré-adolescente de 12 a 14 anos, denominado

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Estação Adolescer e o terceiro, Jovens Ideais, voltado para o atendimento de

adolescentes e jovens de 14 a 18 anos de idade. No resumo do projeto político

pedagógico da Unidade, vamos encontrar a síntese da proposta pedagógica

para cada grupo:

O Grupo Criança Ativa vem ao encontro das necessidades pré-diagnosticadas na Cidade de Carapicuíba, que compreende crianças que não possuem espaços para desenvolvimento de cultura e ludicidade, por isso permanecem nas ruas e consequentemente diretamente expostos à marginalidade. Direcionado para crianças na faixa de 07 a 11 anos, esse grupo desenvolve atividades nas áreas de arte educação, saúde coletiva, meio ambiente e defesa de direitos, oferecidas de segunda a sexta-feira no período complementar a escola. (Projeto Político Pedagógico – Criança Ativa: 2004 p.3).

Este Grupo (o Estação Adolescer) visa o atendimento de 40 pré-adolescentes em situação de risco social, com idade entre 12 e 14 anos, moradores do município de Carapicuíba – SP. Propõe-se a oferecer diariamente, em horário alternado ao período escolar oficinas de: Artes, Educação Ambiental, Leitura e escrita, Defesa de direitos, visando à promoção de competências e habilidades.

(Projeto Político Pedagógico – Estação Adolescer: 2004, p. 3).

O Grupo “Jovens Ideais” objetiva contribuir para a ampliação do repertório social, num processo de desenvolvimento dos adolescentes abordando as seguintes temáticas: Empreendedorismo, Protagonismo, Formação para o mundo do trabalho por meio de oficinas pedagógicas, Participação em eventos culturais, Cursos específicos, Participação em eventos municipais e estaduais sobre Garantia de direitos.

(Projeto Político Pedagógico – Jovens Ideais, 2004, p. 3).

Além do resumo da proposta, o Projeto Político Pedagógico apresenta

os objetivos, geral e específicos, referentes ao trabalho de educação sócio-

comunitária desenvolvido com cada grupo etário. Ao analisá-los podemos

perceber que existe uma ampliação das formas de atuação em relação à

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educação formal. Nesses objetivos vamos encontrar o currículo da educação

desenvolvida por este projeto, daí a relevância de apresentá-los aqui em sua

íntegra. Assim, transcrevemos do Projeto Político Pedagógico da Unidade:

Os objetivos do trabalho com o Grupo Criança Ativa:

Geral

Promover o desenvolvimento de competências intelectuais, sociais e físicas por meio do brincar.

Específicos

� Atender 40 crianças na faixa etária de 7 a 11 anos � Resgatar e valorizar a identidade cultural estimulando a

criatividade, as potencialidades e as habilidades individuais num processo de sensibilização artísticas.

� Promover ações educativas relacionadas à saúde individual e coletiva, favorecendo a utilização dos serviços voltados para prevenção e recuperação da saúde.

� Contribuir com o desenvolvimento sadio e harmonioso em condições dignas de existência.

� Otimizar o sentido das coisas a partir da vida cotidiana, promovendo a consciência e a cultura da paz. (Projeto Político Pedagógico – Criança Ativa, 2004, p. 4).

Os objetivos do trabalho com o Grupo Estação Adolescer:

Geral

Promover competências e habilidades intelectuais, sociais e físicas articulando formas de atuação local.

Específicos

� Resgatar e valorizar a identidade cultural ampliando sua concepção de arte, por meio de produção cultural.

� Basear as ações de estimulo a leitura pelo viés do prazer, da curiosidade, da criticidade e da significação.

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� Informar e promover condições de acesso à rede de serviços de proteção integral a criança e ao adolescente.

� Promover e incentivar o engajamento de crianças e adolescentes, resgatando o sentimento de pertencer à comunidade.

(Projeto Político Pedagógico – Estação Adolescer, 2004, p.4).

E os objetivos do trabalho com o Grupo Jovens Ideais:

Geral

Contribuir para a ampliação do repertório social, estimulando o protagonismo, o empreendedorismo e a compreensão do mundo do trabalho, com ênfase no desenvolvimento humano sustentável.

Específicos

� Estimular a consciência e o reconhecimento do valor da comunicação social, através da análise do impacto na vida cotidiana, oportunizando o acesso e a utilização de ferramentas tecnológicas.

� Promover a compreensão sobre fatores relacionados à saúde individual e coletiva, proporcionando a disseminação da informação de cunho interativo.

� Identificar e potencializar talentos, oportunizando o desenvolvimento de competências e habilidades, visando à inserção e ascensão do jovem no mundo do trabalho.

� Contribuir para que os adolescentes exerçam a sua cidadania, assumindo o papel de agente transformador do meio, garantindo sua participação social.

(Projeto Político Pedagógico – Jovens Ideais, 2004, p. 4).

A práxis desenvolvida na educação sócio-comunitária analisada, conta

também com uma proposta voltada especificamente para a comunidade

envolvida. Um projeto pensado e executado buscando garantir às famílias a

possibilidade de acompanhar o desenvolvimento de seus filhos.

O Projeto Família Cidadã, como é denominado este trabalho, possui a

proposta de contribuir para o fortalecimento social, econômico e político das

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famílias das crianças e adolescentes que integram o Formação Carapicuíba. É

um trabalho desenvolvido por meio de oficinas, palestras e cursos, visando não

somente capacitar as famílias para o empreendedorismo na busca por

conseguir melhores rendas financeiras, como também a realização de reuniões

para discussão de questões do cotidiano da própria comunidade, com o

objetivo de construir propostas para um projeto coletivo de desenvolvimento

local. São realizados encontros temáticos sobre saúde, trabalho, direitos e

políticas públicas. Também são oferecidos atendimentos de orientação ás

famílias para encaminhamento de suas necessidades específicas.

No Projeto Político Pedagógico da Unidade, encontramos descrito o

trabalho com a comunidade, definindo como objetivos a serem alcançados:

Geral

Implementar ações que proporcionem oportunidades de desenvolvimento humano sustentável das famílias e comunidade, favorecendo a participação social, a conquista de autonomias para atuar no processo de transformação do meio em que vivem.

Específicos

� Promover ações continuadas de garantia de direitos na comunidade, estimulando o fortalecimento dos vínculos familiares, sociais e a participação em projetos coletivos.

� Promover ações que contribua com o processo de desenvolvimento das potencialidades, estimulando o empreendedorismo e o envolvimento dos familiares em atividades sócio-educativos.

� Estimular e apoiar ações educativas de promoção, manutenção e recuperação da saúde, considerando a realidade local do público-sujeito.

� Estimular e promover ações que apoiem o protagonismo comunitário e o desenvolvimento sustentável estabelecendo sinergia entre os projetos da Fundação Orsa e a rede social local. (Projeto Político Pedagógico – Família Cidadã, 2004, p. 4).

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Ao apresentarmos as citações acima, transcritas do Projeto Político

Pedagógico da unidade de educação sócio-comunitária pesquisada,

percebemos no vocabulário utilizado, a presença da ideologia neoliberal. Como

educador crítico, que ao aprender a ler o mundo e escrever sua leitura de

mundo, rompendo com a visão ingênua e assumindo um papel transformador

na sua prática, reconhecemos que as palavras que aparecem, são grávidas de

significado, passando uma visão de sociedade e de homem. Entretanto,

identificamos que a práxis libertadora, cujas concepções encontradas em Paulo

Freire embasam este trabalho, podem ser reconhecidas na prática dos

educadores.

2.3 O perfil da comunidade

A periferização de comunidades excluídas socialmente dos grandes

centros urbanos expõe os indivíduos que as formam a um comprometimento de

sua integridade bio-psico-social. Neste sentido busco Graciani (2001), que

corrobora com esta afirmação ao apontar que:

O que se vê é uma “espoliação urbana, definida como a somatória de extorsões que se operam através da inexistência ou precariedade dos serviços coletivos, que aliada aos problemas do acesso à terra e habitação, se apresenta como elemento vital para a sobrevivência na cidade; reproduzindo uma herança social e econômica que perpetua as desigualdades” (Graciani, 2001, p. 21).

Os educandos do projeto estudado são oriundos de famílias que residem

nas vielas e área livre dos Bairros Santa Terezinha, Vila Caldas, Vila Gustavo

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Correia e Jd. Veloso, no município de Carapicuíba. Vivem com condições

precárias de saneamento e de acesso a serviços de saúde. Um Estudo de

Viabilidade Social desenvolvido pelo Formação, demonstra que a maioria das

famílias é proveniente dos estados do Nordeste e Sudeste, com média de

renda de um a dois salários mínimos e grande parte não terminou o ensino

fundamental3. Geograficamente estas famílias, em grande parte, residem em

casas construídas entre a linha do trem da CPTM (Companhia Paulista de

Trens Metropolitanos) e a Avenida dos Autonomistas, uma autopista bastante

movimentada, dado considerado relevante se levarmos em conta que as

crianças e jovens ficam sem espaço de lazer, sendo que as brincadeiras como

andar de bicicleta e patins, soltar pipa, jogar bola, geralmente acontecem na

passarela da estação do trem.

Das famílias atendidas, observamos em gráficos da pesquisa acima

citada que 28% residem em área livre, 16% dos endereços residenciais são

ocupados por média de três famílias e 20% das residências possuem entre um

e dois cômodos. Quanto à renda familiar, a pesquisa aponta que 22% das

famílias vivem com um salário mínimo, 5% com menos de um salário mínimo,

19% com dois salários mínimos e apenas 2% com cerca de três salários

mínimos. Dados sobre a composição familiar mostram que 28% dessas

famílias têm de quatro a cinco membros, 14% de seis a sete membros, e 11%

de dois a três componentes.

A seguir anexamos os gráficos, resultado da Pesquisa de Viabilidade

Social realizada junto à população atendida pelo Formação Carapicuíba.

3 Dados extraídos do Projeto Político Cultural do Formação Carapicuíba

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FUNDAÇÃO ORSA

PERFIL DAS FAMÍLIAS DO FORMAÇÃO CARAPICUÍBAComposição Familiar59 famílias entrevistadas

11

28

14

42

0

5

10

15

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2 a 3 4 a 5 6 a 7 8 a 9 +10

Nº de Pessoas na família

Qtd

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Fam

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2 a 3

4 a 5

6 a 7

8 a 9

+10

Gráfico 1 – Número de pessoas por família Fonte: Estudo de Viabilidade Social - Projeto Político Pedagógico 2005

FUNDAÇÃO ORSA

PERFIL DAS FAMÍLIAS DO FORMAÇÃO CARAPICUÍBAComposição Familiar

59 famílias entrevistadas - 282 Pessoas

92 93

25

54

30

8

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

100

0 a 10 11 a 20 21 a 30 31 a 40 41 a 50 + 50

Faixa Etária

Nº d

e P

esso

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0 a 10

11 a 20

21 a 30

31 a 40

41 a 50

+ 50

Gráfico 2 – Faixa etária dos componentes das famílias Fonte: Estudo de Viabilidade Social - Projeto Político Pedagógico 2005

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FUNDAÇÃO ORSA

PERFIL DAS FAMÍLIAS DO FORMAÇÃO CARAPICUÍBARenda Familiar

59 famílias entrevistas

5

2219

2 3

31 32

0

5

10

15

20

25

30

35

- 1 sa

lário

m

ínim

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1 sal

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2 sal

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+ 3 sa

lário

s m

ínim

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Form

al

Info

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SalárioSituação de Trabalho

8 famílias não possue renda10 famílias onde 1 pessoa tem trabalho formal e 1 pessoa trabalho informal

Qtd

e de

fam

ília

s

- 1 salário mínimo

1 salário mínimo

2 salários mínimo

3 salários mínimo

+ 3 salários mínimo

Formal

Informal

Gráfico 3 – Composição da renda familiar Fonte: Estudo de Viabilidade Social – Projeto Político Pedagógico 2005

FUNDAÇÃO ORSA

PERFIL DAS FAMÍLIAS DO FORMAÇÃO CARAPICUÍBA

Habitação - Situação de Moradia 59 famílias entrevistadas

28

17

86

52

7

20

27

11

16

8

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10

20

30

40

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60

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1 a 2

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3 a 4

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.

5 a 6

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.

2 a 3

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.

4 a 5

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.

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.

84

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.

Situação de moradiaTipo de construçãoQ tde de cômodos

Nº de famílias residentes no mesmo endereço

Nº d

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área l ivre

imóvel próprio

imóvelalugado

imóvelcedido

Alvenaria

Madeira

1 a 2 côm.

3 a 4 côm.

5 a 6 côm.

2 a 3 fam.

4 a 5 fam.

6 a 7 fam.

84 fam.

Gráfico 4 – Situação de Moradia Fonte: Estudo de Viabilidade Social – Projeto Político Pedagógico 2005

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72

Como metodologia do trabalho com as famílias, destacamos o

atendimento individual com orientações, visitas domiciliares realizadas pelo

serviço social e várias vezes pelos educadores sociais, além de

encaminhamentos a recursos do município como conselhos tutelares e de

direitos, postos de saúde, centro de formação, entre outros. Mensalmente eram

realizadas reuniões em grupo, geralmente organizados conforme o bairro em

que residem, e nestas reuniões priorizava-se temas como cidadania, direitos

humanos, violência, entre outros, sendo que muitos destes temas foram

levantados durante as palestras realizadas. Um outro ponto forte que podemos

apontar no trabalho com a comunidade do Formação Carapicuíba, trata-se das

oficinas de geração de renda e trabalhabilidade4, desenvolvidas

periodicamente de acordo com os interesses e as condições locais.

Ainda dentro da metodologia do trabalho voltado para adultos e jovens

da comunidade, destacamos o “Alfabetizar”. Iniciado em 2005 e desenvolvido

com o voluntariado corporativo, esta atividade acontecia três vezes por

semana, durante duas horas. Nos dois primeiros anos, 24 educandos

participaram e, além das aulas de alfabetização, participaram também de

palestras com temas como orçamento familiar, meio ambiente e violência

doméstica. Vale a pena destacar que os educandos do “Alfabetizar” eram avós,

tios, mães e pais de muitos dos educandos e o espaço utilizado era o mesmo

das crianças e jovens, só que no horário noturno.

O voluntariado corporativo faz parte das estratégias da chamada

Responsabilidade Social, retomaremos este assunto no próximo capítulo.

4 O termo trabalhabilidade faz parte dos termos utilizados pela política neoliberal para projetos de geração

de renda em atividades informais

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73

2.4 Os desafios da prática da Educação Sócio-comunitária

O objetivo deste item do nosso trabalho é retornando aos primeiros

contatos que tivemos com o projeto estudado, em junho de 2003, percebermos

e analisarmos o percurso feito, identificando avanços, obstáculos, retrocessos.

Importante e oportuno salientarmos que nosso trabalho apresenta um

recorte espaço-temporal e nos coloca como pesquisadora-participante ao

apresentar a experiência vivida.

Voltando aos primeiros dias em que atuamos no Formação

Carapicuíba, vamos encontrar três educadores sociais, um de artes plásticas,

um de teatro e um generalista, com formação em pedagogia. Os educadores

de artes atuavam duas vezes por semana cada um, sendo que apenas o

pedagogo vinha de segunda a sexta-feira no período integral.

Todos os espaços da unidade eram fechados com chaves, incluindo

armários, e o “molho” das chaves ficava pendurado por uma corrente no

pescoço da educadora durante todo o tempo da permanência dos educandos.

Os educandos faziam duas refeições por dia no projeto, e nestes

horários, para irem do prédio no qual funcionavam as salas das oficinas5 até o

refeitório, andavam em filas por ordem de idade. No refeitório todos

continuavam em fila seguindo a mesma seqüência com que haviam feito o

percurso e eram servidos pelas funcionárias da cozinha.

Durante o tempo utilizado para as refeições, os educadores que

estivessem presentes naquele dia, ficavam em pé, andando de um lado para o

outro do refeitório, observando o movimento. Caso os educandos desejassem,

5 Oficinas é como denominamos as aulas, na educação sócio-comunitária ou não-formal, por terem forte

caráter prático.

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era permitido repetição, sendo que a funcionária ficava aguardando até que

todos terminassem de comer.

Conforme os educandos iam terminando, levavam os pratos e os

talheres para os locais devidamente dispostos para isso e retornavam aos seus

lugares aguardando a autorização dos educadores para, novamente em fila,

retornarem ao espaço das atividades.

Em Foucault (1987) identificamos algumas características encontradas

nos nossos primeiros contatos com o projeto. Embora trabalhando na

educação não-formal, a disciplina do corpo estava presente nas atitudes

concretas dentre as quais destacamos a “fila”, levando-nos a perceber que o

micro-poder fora estabelecido como forma de manter a disciplina,

condicionando e segmentando os educandos.

As disciplinas, organizando as “celas”, os “lugares” e as “fileiras” criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais, pois que regem a disposição de edifícios, de salas, de móveis, mas ideais, pois projetam-se sobre essa organização, caracterizações, estimativas, hierarquias. (Foucault, 1987, p.135)

Percebemos assim, que a transposição da educação bancária para a

educação libertadora é um processo que não ocorre sem esforço e para o qual

é imprescindível o comprometimento dos educadores, o que nos remete a

Freire (1996) ao afirmar que a prática pedagógica necessita de uma formação

e de uma prática crítica, a qual não é possível chegar sem a necessária

reflexão sobre a ação.

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É este mesmo autor que nos fala da coerência da prática educativa, para

a qual o educando não pode ser tido ou considerar-se objeto de um

determinado sujeito, mas que deve ser o sujeito da sua própria formação,

construindo-a passo a passo, pois embora haja uma diferença entre o

educador e o educando, é preciso que ambos tenham ciência e clareza de que

tanto quem se forma pode formar o ser formado, quanto aquele que forma se

re-forma e se forma ao formar (Freire, 1996).

Ao retornarem ao espaço e após fazerem a higiene pessoal, os

educandos sentavam-se em círculo num grande galpão, no qual realizavam a

roda, por meio da qual eram passados os informes do dia, e em seguida cada

grupo seguia com o educador para a oficina.

A metodologia da roda é uma prática pedagógica extremamente

enriquecedora e imprescindível para consolidação da educação como prática

de liberdade, pois a palavra dita rompe o silencio opressor. No trabalho

educativo pesquisado, a roda ainda era realizada apenas de modo informativo,

não havendo atingido ainda seu ápice como roda formativa, estratégia para a

vivência da democracia. Sim, porque na fundamentação desse exercício, a

roda, não existe hierarquias, todos se encontram na mesma posição, todos

podem se ver, e o grupo vai, pouco a pouco, se apropriando desse espaço

como espaço de construção de conhecimento.

Warschauer corrobora com essa reflexão ao afirmar que:

A roda é uma construção própria de cada grupo. Porém, isso não impede de refletirmos sobre algumas de suas características e implicações. Constitui-se num momento de diálogo, por excelência, em que ocorre a interação entre os

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participantes do grupo, sob a organização do coordenador, o professor, por exemplo. (Warschauer, 1993, 47)

A figura 2 ilustra a roda de conversa realizada como exercício diário na

unidade de educação estudada.

Figura 2: A Roda de conversa Fonte: Acervo pessoal – abril/2006

É pela democracia presente no próprio símbolo, na própria imagem,

que esse exercício possibilita ao educando dizer sua palavra, sua visão de

mundo, abrindo ao educador o caminho para, entendendo essa visão, levá-lo a

ampliá-la. A roda foi a primeira formação que o ser humano adotou para seu

desenvolvimento na vida grupal e social de modo que as culturas antigas,

culturas ligadas à terra, perceberam a especialidade da forma circular, pois

elas representam ciclos da natureza: o ritmo das estações; o tempo dos

cultivos; o pulsar dos movimentos do Sol, da Lua, das estrelas e dos Planetas

no céu; o ritmo da respiração e dos batimentos cardíacos; a vida e a morte.

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O diálogo como fenômeno humano (Freire, 1987), que ocorre nesta

atividade, abre a oportunidade da palavra, remetendo-nos à ação, à práxis.

Recorremos às palavras desse autor para reforçar o valor dessa atividade:

“Se é dizendo a palavra com que, pronunciando o mundo, os homens o transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens” (Freire: 1987, p.79).

2.5 A Roda de diálogo: derrubando barreiras

Cerca de quinze dias após iniciarmos nossas atividades no

Formação Carapicuíba entramos em uma fase de profundas transformações na

prática educativa.

Naquele momento a unidade não contava com gestores, contando em

seu quadro apenas com os educadores e o pessoal de apoio. Assim, o grupo

era formado pelos seguintes profissionais: dois arte-educadores, sendo um de

artes plásticas e um de teatro; duas pedagogas, o motorista e uma pessoa de

serviços de apoio.

Logo nas primeiras semanas de trabalho fomos convidados para uma

reunião com o presidente da Fundação, que nos falou sobre as propostas do

trabalho educativo e sobre as atividades que aconteciam em outras unidades,

destacando um trabalho denominado “Prefeitura Mirim” que ocorria na região

do Jarí, no norte do país, apresentando seu desejo de que desenvolvêssemos

em Carapicuíba um trabalho semelhante.

Embora tivéssemos entrado em contato com a equipe de técnicos da

sede e fizéssemos contato com as unidades mencionadas, não conseguimos

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nenhum material teórico que embasasse essa atividade. Na verdade era uma

experiência concreta que ainda não fora sistematizada pedagogicamente.

Nesse ínterim, ainda sem gestores na unidade, nos reunimos em

equipe e iniciamos os primeiros passos, com mudanças que considerávamos

necessárias para a coerência da proposta educativa, sendo que, como primeira

atitude de transformação, abou-se a prática da fila. A partir de então, passamos

a circular entre os prédios, lado a lado, educadores e educandos, conversando

em momentos de informalidade e fortalecimento de vínculos. Como um

processo natural, alguns desciam correndo, faziam piruetas, enfim, soltavam

seus corpos das mais diversas formas, correndo, pulando, saltando. Muitos

concorriam para dar as mãos aos educadores e até mesmo andar abraçados

com eles, colocando as mãos nos ombros ou na cintura do educador.

Essa não foi uma transição tranqüila. A alegria dos educandos era

criticada por funcionários da sede que consideravam absurda a falta de

“organização” e também achavam desrespeito o educando abraçar-se ao

educador, enfim, a transição foi mais difícil porque a diferença podia ser vista

por todos e a alegria dos meninos e das meninas chegava a “incomodar”

algumas pessoas, evidentemente por não entenderem o processo educativo

que estava em implantação.

Em seguida ao fim das filas, iniciamos a mudança na dinâmica do

refeitório. Agora os educandos passavam a servir-se, escolhendo o que e o

quanto colocarem em seus pratos e escolhendo ao lado de quem sentariam.

Uma mudança que chocou algumas pessoas da área administrativa, mais que

causou um tremendo crescimento na auto-estima de todos os educandos.

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Começávamos assim, neste processo, o caminho para a construção da

autonomia de cada educando.

Entre o prédio do Formação e a sede da Fundação havia uma

espécie de “apartheid” explicitado, uma cerca de arame e alambrado definindo

o espaço dos educandos, pelo qual poderiam transitar e brincar, e o espaço do

pessoal administrativo.

Sentindo-se incomodados pela imagem que a cerca passava a

respeito do processo educativo que ocorria na unidade, os educadores

solicitaram para a administração central que fosse retirado o alambrado, o que

foi prontamente atendido sem nenhum problema.

E, numa segunda-feira, ao chegarem ao projeto, os educandos não

encontraram mais a cerca, e isso foi motivo de celebração e sentimento de

liberdade, assunto tratado na roda que, a essa altura, já começava a buscar a

prática formativa.

2.6 Co-Gestão: vivenciando a Formação Política com a Prefeitura Mirim

A participação social e a formação política são dois aspectos que cada

vez mais vêm se revelando como estratégias de emancipação e autonomia do

cidadão que deseja compreender a sociedade e perceber-se como agente

constituidor e transformador de realidades. A consciência sobre tão poderosa

capacidade individual torna-se ainda mais eficiente quando despertada ainda

na infância e na adolescência.

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Sentindo a necessidade de trabalhar a dimensão político-social da

educação junto às essas crianças e jovens, iniciamos o desenvolvimento do

projeto “Participação Social e Formação Política”, levando em consideração a

necessidade de transformação das práticas educacionais, valorizando o

exercício da cidadania e a preparação do educando para a vida.

Desta forma, abriu-se a possibilidade de efetivar a participação dos

educandos como co-responsáveis do processo educativo da unidade, para o

que criamos uma coordenação mirim que co-participa de toda a gestão da

unidade por meio da “Prefeitura Mirim”. Anualmente, há num processo de

eleições no qual cada sujeito (criança ou adulto) tem direito a um voto nas

urnas. Num processo similar às eleições brasileiras, cada participante da

unidade (educando, educador e pessoal de apoio) faz sua escolha entre

aqueles que foram lançados como candidatos pelo próprio grupo.

Figura 3: O Educando-eleitor em momento de votação Fonte: Acervo Pessoal – abril/2004

Os eleitos têm um mandato de um ano para trabalhar nos cargos e são

avaliados e acompanhados, pelos próprios colegas e pelos educadores, por

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meio de assembléias de prestação de contas e levantamento de propostas.

Essas assembléias proporcionam aos educandos o desenvolvimento de

habilidades de comunicação, trabalho em grupo, relação interpessoal, decisão,

responsabilidade, entre outras não menos importantes.

Figura 4: Prefeita-mirim e secretários realizam oficina sobre ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente Fonte: Acervo Pessoal/2005

Após três anos de desenvolvimento, esse projeto tornou-se uma das

mais importantes práticas pedagógicas utilizadas pelos educadores, possuindo

uma intencionalidade bastante clara: a formação política e o desenvolvimento

do espírito de participação. A experiência democrática é vivenciada em

plenitude, pois todos os assuntos são decididos coletivamente pelo voto, de

igual valor tanto para educadores quanto para educandos.

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Figura 5: Secretários-mirins e Suplentes participam De reunião na Câmara Municipal de Carapicuíba Fonte: Acervo Pessoa – 2006

Como fonte fomentadora podemos citar as experiências educativas que

ocorrem em algumas escolas não-diretivas estudadas, destacando, em

particular, a Escola de Summerhill e a Escola da Ponte, já mencionadas no

primeiro capítulo dessa dissertação.

Para que ocorram as transformações necessárias à educação é preciso

trabalhar, com igualdade de importância, duas dimensões: as idéias e as

ferramentas para torná-las realidade. Neste sentido, o desenvolvimento deste

projeto proporcionou a toda equipe envolvida um desenvolvimento harmonioso

dessas duas dimensões, além de potencializar a concretização dos princípios

metodológicos do Programa Formação:

� Da relação dialogal entre o educador e o educando. Uma relação democrática, crítica e autêntica no diálogo e compromisso mútuo entre educador e educando, eixo de sustentação do processo educativo, o método de trabalho e a própria reflexão.

� Da atividade planejada, na qual a ação é estratégia para se alcançar o resultado.

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� Da otimização dos recursos, onde todos os espaços e atividades constituem-se momentos e oportunidades de formação integral do educando.

� Do educador coletivo que compreende a aprendizagem como um processo que ocorre na relação de todos os sujeitos envolvidos. (Extraído do Projeto Político Pedagógico da Unidade)

Acreditamos e buscamos um aprendizado construído de forma coletiva e

interativa, no qual a prática e a teoria caminhem de mãos dadas, incentivando

o desenvolvimento da solidariedade, da transparência, da co-responsabilidade,

da autonomia e a organização de estratégias e políticas que possibilitem ao

educando ser o sujeito de sua própria formação.

O projeto “Participação Social e Formação Política” privilegia o resgate

da identidade dos sujeitos nele envolvidos. Nele, cada educador tem claro no

plano pessoal e institucional os objetivos a serem alcançados e, por terem

engendrado o projeto em comum, compreendem e comungam da idéia. Por

conseguinte, percebem a relação ação-resultado, o que mantém a motivação.

O objetivo central da proposta é oportunizar aos educandos a vivência

da democracia e o exercício da cidadania, garantindo uma formação política e

educacional que os levem a transformar sua própria realidade.

E dentre os objetivos específicos podemos destacar: promover a

consciência para a participação social, criando um sentido de comunidade

entre os integrantes do grupo e levando-os a perceber que não existirão

resultados ou mudanças sociais sem a participação da própria comunidade;

potencializar talentos, oportunizando o desenvolvimento de lideranças como

ferramenta para a formação da responsabilidade individual e coletiva;

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desenvolver a criatividade e a auto-estima dos educandos, possibilitando que

desenvolvam as assembléias gerais com a representação de todos os grupos,

podendo propor e assumir a realização de eventos culturais, programação de

festas e projetos de férias, organização do tempo livre e exercício de escolhas.

O procedimento metodológico adotado neste trabalho é o de

participação democrática, utilizando-se de recursos práticos como a co-gestão

do Formação Carapicuíba, num processo em que o educando é levado a

desenvolver suas habilidades pessoais de liderança, tomada de decisões,

responsabilidade, relacionamento interpessoal e coletivo, apropriando-se

dessas competências de forma a tornarem-se seres autônomos, críticos e

reflexivos.

A metodologia do projeto utiliza-se ainda da observação e do registro

das oficinas pedagógicas desenvolvidas pelos vários educadores que atuam no

Formação, das assembléias de grupos e assembléia geral e do registro das

reuniões pedagógicas realizadas mensalmente com o grupo de educadores e

coordenação. Em todos estes fazeres pedagógicos, há o compartilhar do

processo e da percepção sobre os avanços conseguidos pelos educandos e

pelos educadores, refletindo sobre a própria prática num exercício de reflexão

da ação para a formação de uma consciência mais crítica do trabalho

educacional.

Falando especificamente da metodologia das assembléias, nos

reportamos a Araújo (2004) que destaca a “Assembléia Escolar” como um

exercício do fazer a educação democrática, ressaltando que aprender a

dialogar, a construir coletivamente as regras de convívio e a fortalecer o

protagonismo das pessoas e dos grupos sociais, na busca pela justiça social e

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pela construção da democracia, são ações possíveis a espaços nos quais se

faz a educação. Este autor elucida-nos quanto à atuação das assembléias na

resolução de conflitos e as define como o momento institucional da palavra e

do diálogo, o momento de reunir-se o coletivo para tomar consciência, refletir e

transformar. A disciplina e a indisciplina deixam de ser obrigação somente do

educador e passam a ser questões compartilhadas por todo o grupo,

responsável pelas regras e pela cobrança de seu exercício.

Figura 6: Assembléia Mirim Fonte: Acervo Pessoal – 2005

Como parte fundamental do trabalho, como já discutido, temos a

realização da roda, que traz em seu exercício contínuo, o sentido do

pertencimento, pois todos se apropriam do espaço oferecido, ouvindo e sendo

ouvidos. O processo de ensino-aprendizagem vivenciado na roda está voltado

para a formação integral de cada indivíduo, ao vincular educação e prática

social, por meio da qual valores, atitudes e conhecimentos compõem a

formação integral de cada educando enquanto cidadão pleno, levando-o a

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compreender criticamente o conceito embutido por trás de cada proposta

pedagógica apresentada.

Para Freire (1992), o caminho para superar as práticas incoerentes está

na superação da ideologia autoritária e elitista, o que demanda sintonia entre o

fazer e o falar da educação. Ao envolvermos os educandos na gestão do

trabalho, podemos exercitar a superação da autoridade buscando uma prática

democrática. Conviver constantemente com os opostos é um grande desafio

instaurado na cotidianidade da educação, e é neste embate, nesta luta que

surge o caminho para a liberdade e para uma prática que possa responder aos

anseios dos educandos.

A prática da “Prefeitura Mirim” oportuniza a todos vivenciarem momentos

concretos de formação política. Os educandos organizam-se em equipes às

quais chamamos de comissões. Cada equipe reúne-se para levantar propostas

e estudar seus possíveis candidatos, analisando o perfil daqueles que desejam

concorrer aos cargos eletivos. Ao final do período de organização do processo

eleitoral temos a apresentação dos candidatos de cada comissão que

comunica, sempre na roda, seus planos de gestão e, finalmente, no dia das

eleições todos vão à urna (que é eletrônica), para decidirmos quem será o

Prefeito.

A figura 7 registra a cerimônia de posse dos candidatos eleitos para o

mandato da Prefeitura Mirim no ano de 2004, ocorrido na Câmara Municipal da

cidade de Carapicuíba.

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Figura 7: Cerimônia de Posse da Prefeitura Mirim 2004 Fonte: Acervo Pessoal/2004

Uma vez eleito, cabe ao Prefeito nomear seus secretários e suplentes e

então temos a Prefeitura Mirim formada com os seguintes elementos: Prefeito

eleito nas urnas, secretário (a) e suplente da educação e cultura, secretário (a)

e suplente de esporte e lazer, secretário (a) e suplente de meio ambiente,

secretário (a) e suplente de saúde.

Neste período em que a Prefeitura Mirim aconteceu, entre março de 2003 e

junho de 2006, podemos destacar alguns resultados alcançados que foram

transformadores na prática educacional: 1) As Secretarias de saúde e esporte

realizaram reuniões com Coordenadores da Fundação Orsa (Sede), nas quais

trataram assuntos relevantes ao bom andamento das atividades do nosso

projeto. Dessas reuniões resultou uma pesquisa realizada pela Secretaria de

Saúde sobre a alimentação oferecida aos educandos. Cada educando pôde

opinar sobre o cardápio apontando o que gosta ou não, e sugerindo novidades.

Destacamos aqui a resposta dada por um educando à questão “que sugestão

você tem para melhorar a alimentação”; a resposta do menino de sete anos foi

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“de todos pegar a comida que gosta e não pegar o que não gosta para não

jogar fora”. Essa resposta registra o processo de participação sendo

interiorizado pelos educandos, levando-os a perceberem o direito de não

querer algo, de não aceitar imposições e levando-os a assumir suas posições

manifestando-as sempre que surgem as oportunidades. 2) Logo no primeiro

mandato, o Secretário de esportes entregou um memorando à coordenação

solicitando a compra de novas bolas de futebol e de vôlei. Ele fez pesquisa de

preços e a apresentou junto à sua solicitação. Essa atitude do educando nos

leva a perceber que quando o sujeito sente-se respeitado e valorizado, é capaz

de tomar iniciativas. 3) Os novos colegas que chegam ao Formação

Carapicuíba são recebidos pelos próprios educandos que os acolhem,

apresentam todas as dependências da unidade, orientam sobre as regras de

convivência e ensinam os procedimentos do refeitório. Estas atitudes

demonstram que o respeito recebido é o mesmo transmitido ao outro e

evidencia o sentido de pertencer, o prazer de apresentar ao outro o que é

nosso inserindo-o no nosso espaço, mostrando que a proposta de reforçar o

pertencimento vem sendo amplamente alcançada. 4) O grupo da Prefeitura

Mirim do ano de 2005 criou um programa de rádio, veiculado internamente. O

Programa traz dicas de cidadania e é protagonizado pelos próprios autores.

Eles falam sobre direitos do cidadão, recursos da comunidade, sempre numa

linguagem que favoreça aos menores o entendimento. 5) Protagonismo de

oficina lúdica sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente realizada na

Conferência Lúdica da Subprefeitura de Pinheiros/SP. Neste evento tivemos

um grande envolvimento dos jovens que planejaram a ação, prepararam os

materiais e aplicaram a oficina para um grupo de trinta e dois estudantes da

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região. Uma atividade realizada com muita alegria pelo grupo e que trouxe uma

experiência muito satisfatória para a educadora que mediou a ação. 6)

Participação do grupo de educandos de 7 a 10 anos nas Palestras sobre saúde

oferecidas à comunidade e realizadas em espaço de parceiros, destacando-se

as intervenções adequadas feitas por alguns educandos interagindo com os

palestrantes. Foi uma surpresa para o grupo de educadores perceberem que,

mesmo os menores, estão desenvolvendo a habilidade de saber intervir

contribuindo com a discussão coletiva, reproduzindo assim o exercício que

acontece em cada momento de roda e de assembléias. 7) Organização do

Campeonato Esportivo de final de ano, com a proposta tendo sido feita pelos

educandos que também trouxeram contribuição em troféus e medalhas para

serem entregues aos vencedores. Uma vez mais, percebe-se a iniciativa, a

ousadia de propor e a responsabilidade pelo fazer. 8) Solicitação de reunião

com a coordenação pedagógica do projeto, feito pelos educandos maiores para

contestar mudanças não discutidas antes de serem anunciadas ao grupo geral.

Esta tem sido uma das melhores atitudes que temos percebido nos educandos,

a não aceitação da imposição de regras e normas não construídas de forma

democrática. Muitas vezes isso é difícil de ser conduzido, pois temos

determinações institucionais a serem seguidas, o que requer um grande

exercício por parte da coordenação para não desrespeitar as regras de

convivência elaboradas coletivamente. 9) Participação ativa dos integrantes da

Prefeitura Mirim na organização e realização dos eventos culturais: “Saraus e

Galeria”, proporcionando o crescimento do número de grupos de

apresentações culturais entre os educandos. Esse protagonismo tem

possibilitado um crescimento visível de auto-estima e auto-desenvolvimento

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dos educandos e a qualidade dos eventos tem sido diretamente proporcional a

esse crescimento. 10) Realização do I Fórum da Prefeitura Mirim, que reuniu

alunos de diversas escolas públicas de Carapicuíba, discutindo a questão

“Como o Estatuto da Criança e do Adolescente pode ser trabalho nas

escolas?”. O evento contou com a presença de representantes do CMDCA

(Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente) de Carapicuíba,

do RISOLIDARIO – USP (Rede Internacional Solidária), e de professores de

escolas públicas do município. Desse Fórum resultou uma série de jogos que

posteriormente seriam levados para as escolas públicas durante o ano de 2006

e surgiu a proposta de levar a prefeitura mirim para o município e também a

realização do primeiro Fórum em nível municipal.

Figura 7: Vice-prefeito E.A., prestando contas com a assembléia. Fonte: Acervo pessoal/2005

Na figura 7, o educando E.A., 17 anos, vice-prefeito eleito, prestando

contas com os educandos durante realização de assembléia mirim, no encontro

semanal. A liderança exercida pelo jovem durante o projeto, contribuiu para

melhorar sua participação nas demais atividades pedagógicas, ajudando-o a

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melhorar seus relacionamentos e controlar sua agressividade. Ao final deste

mandato, o jovem inseriu-se como aprendiz em uma grande empresa, na qual

permanece trabalhando. Sua história de vida é um dos exemplos de

transformação.

O registro imagético das atividades desenvolvidas nos ajuda a perceber

a dinâmica de participação e a autonomia dos educandos na realização de

suas atividades.

2.7 Rodas de diálogo: construindo regras de convivência

Construir as regras de convivência constituiu-se num dos passos mais

importantes do processo educativo que estamos estudando e nos permitiu

confirmar a importância do protagonismo dos educandos no processo de

construção de seu próprio conhecimento. Neste sentido, encontramos em

Groppo (2005), ao analisar as implicações pedagógicas da autogestão, idéias

que nos ajudam a compreender a relevância da co-gestão para a educação da

responsabilidade individual e nos leva a perceber que essa prática que

estamos explicitando proporcionou aos envolvidos, um exercício para o alcance

desta educação.

Retomando nossos primeiros dias trabalhando como educadora social no

Formação Carapicuíba, vamos encontrar no galpão onde realizávamos a roda,

uma velha cartolina na qual estava escrita uma lista de direitos e deveres dos

educandos. Partindo desta lista iniciamos a construção e implantação das

regras de convivência.

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Como já dissemos anteriormente, a cerca que delimitava o espaço, fora

retirada e agora o espaço estava aberto, o que demandaria um trabalho de

conscientização e construção dos limites necessários.

Primeiramente, levamos a questão para a discussão na roda, analisando a

velha lista dos direitos e dos deveres. Fomos indagando sobre as razões de

estarem mencionadas ali e a necessidade ou não de sua permanência como

regra. A espontaneidade presente nas crianças as conduzia a fazer a análise

muito melhor que qualquer um dos educadores. Muitas regras que havíamos,

nós educadores, considerado anteriormente como não sendo necessárias

acabaram sendo mantidas pela decisão do coletivo. Fato muito interessante

que fomos percebendo foi a dureza com que os educandos lidam com as faltas

dos colegas, sim, porque para cada regra organizamos uma comissão de

implantação e observação, e neste processo notamos que infrações pequenas

como, por exemplo, “pisar na grama”, era tratado com altas punições como

“ficar um mês sem futebol” ou “suspensão de três dias”. Foi preciso muita

habilidade para que os educadores fossem contornando as situações sem

perder a essência da prática democrática.

Depois dos primeiros meses desta prática, e quando os próprios educandos

que compunham as comissões e, portanto, aplicavam as sanções que haviam

decidido, começaram a “sofrer” as conseqüências, ou seja, cumprirem eles

mesmos as penalidades que tinham sido definidas para os infratores, foi que

conseguiram introjetar a essência do exercício da democracia. Eles foram

pouco a pouco percebendo a necessidade de flexibilidade e negociação para

administrar os conflitos. Contudo, é importante ressaltar que mesmo nestas

ocasiões, lição apreendida e aprendida, não havia displicência ou

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afrouxamento por parte das comissões de regras, o que demonstra a seriedade

com que os educandos vivenciam o espaço e a responsabilidade que lhes são

confiadas.

Para elucidar nosso trabalho, trazemos algumas regras construídas pelos

educandos:

Regra nº. 07: “Fica proibido falar palavrões no projeto e na topic (veículo

utilizado para o transporte de alguns educandos) – será anotado no livro de

ocorrências e a família será chamada para assinar e saberá os palavrões que

foram utilizados pela própria criança/adolescente”.

Nesta regra observa-se que os educandos percebem a diferença entre a

família ouvir deles próprios a “falta” que cometeram, no caso, ouso de palavra

vulgar, e ser comunicada pelos educadores ou pela coordenação. Neste caso,

assumem a responsabilidade individual.

Regra nº. 5 “Desrespeito aos educadores e entrar nas salas dos

educadores e da coordenação sem permissão – ficará suspenso do futebol por

um mês (30 dias)”

Esta regra mostra acentuadamente a rigidez dos educandos para com os

demais colegas e para consigo mesmos, inclusive a suspensão do futebol foi

uma punição muito freqüente dentre as regras construídas inicialmente.

Durante o período em que fizemos nossa pesquisa, observamos que eles

foram amadurecendo até porque os próprios envolvidos na criação das regras,

acabavam tendo que cumprir suas sanções, o que provocou a necessidade de

negociações entre eles próprios e entre eles e os educadores.

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Regra nº. 1: “Falta de educação – resolver conversando junto”. Quem

desrespeitar a regra após a conversa ficará sem jogar futebol durante 60 dias

(2 meses).

Observamos nesta regra que o exercício do diálogo é percebido e

vivenciado pelos educandos como o caminho para resolução dos conflitos e

novamente a privação de um dos maiores prazer, o futebol.

Neste capítulo conhecemos alguns aspectos da prática pedagógica

desenvolvida no Formação Carapicuíba, buscando compreender a estrutura

social que determina as condições de vida e influenciam o modo de ser e de

estar no mundo, dos seus educandos.

No capítulo a seguir, apresentamos outros aspectos desta prática e

avançamos nosso olhar sobre a subjetividade presente nas relações que são

proporcionadas pelo espaço educativo observado.

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CAPÍTULO 3

CAMINHOS PARA A TRANSFORMAÇÃO

No capítulo anterior verificamos a rigidez com que os educandos,

constroem suas próprias regras e nos parece certo pensar que isto reflete o

que ocorre na própria sociedade opressora em que vivemos, ou seja,

percebemos que ao pensarem sobre a necessidade de regras de convivência

social, impingem a si mesmos a privação dos mais caros objetos de prazer.

Este fato nos leva a pensar sobre a opressão enquanto um sentimento

introjetado nas classes populares e na necessidade de ser superado, pelo

próprio oprimido, lembrando a tese de Paulo Freire, para o resgate da auto-

estima e a construção de autonomia individual.

A partir daqui buscaremos perceber as experiências éticas e estéticas na

formação e no resgate da identidade humana.

3.1 Da rigidez das regras à sensibilidade da arte – a complexidade

humana

Na convivência diária com os meninos e meninas de Carapicuíba, fomos

percebendo os benefícios que o contato com a arte e a cultura traz para suas

vidas, observando durante as oficinas de artes plásticas, de teatro, de dança,

de música, que eles desenvolvem uma expressão diferente, expressam-se

mais, são mais felizes, já que, fora dali, a falta das condições necessárias para

uma vida digna rouba-lhes a alegria de viver e, pouco a pouco, envolve suas

almas, fazendo-os imergir num pântano de contrariedades e desilusões, e,

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passo a passo, vai embrutecendo-lhes o ser, levando-os a um estado de

rebeldia sem objetivos. Esse embrutecimento que ocorre desumaniza-os e

dificulta suas relações sociais, corporificando assim o processo de exclusão

social.

Freire (1987) referenda o que estou afirmando ao apontar a

desumanização como a negação do humano, pois a vocação do ser humano é

justamente sua humanização:

Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como “seres para si”, não teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma “ordem” injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos (Freire, 1987, p. 30).

Na busca pelo caminho da re-humanização e para garantir o movimento

da arte e o contato dos educandos com ela, elaboramos o Projeto Político

Cultural que surgiu também como uma forma de concretizar o espaço de

protagonismo para as ações da prefeitura mirim.

O Projeto Político Cultural consolidou-se na prática pedagógica de

educação sócio-comunitária desenvolvida no Formação Carapicuíba,

alcançando os objetivos traçadas em sua idealização. Podemos verificar este

fato analisando trecho de sua redação:

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OBJETIVO GERAL

Promover a integração entre os atores sociais, proporcionando o desenvolvimento da coletividade e a socialização das mais diversas linguagens.

5 OBJETIVOS ESPECÍFICOS

• Oportunizar espaços de apresentações artísticas internas e externas performáticas, onde os educandos, familiares e comunidade possam exercitar o olhar crítico, a fruição e o olhar poético;

• Possibilitar espaço físico para tornar visíveis as produções plásticas dos educandos, famílias e comunidade, fomentando a discussão sobre as diferentes manifestações e expressões;

• Promover encontro anual entre os adolescentes, as crianças e os pré-adolescentes que compõem o Formação, tendo como princípio a integração e o lazer;

• Divulgar a Missão da Fundação Orsa e do Programa Formação para a Comunidade;

• Oportunizar a visibilidade das ações desenvolvidas no Formação, fortalecendo vínculos com a comunidade;

• Oportunizar o acesso a eventos culturais em espaços externos ao formação, para educandos e familiares;

• Oportunizar espetáculos, como síntese das ações desenvolvidas nos Projetos, objetivando a auto-sustentabilidade num processo de profissionalização.

Dentre as atividades deste projeto que foram desenvolvidas destacamos

a criação, nas dependências da unidade, de uma “Galeria de Arte”, na qual

trimestralmente inauguramos exposições, fazendo um revezamento entre os

trabalhos artísticos produzidos pelos próprios educandos durante as oficinas, e

obras de diferentes artistas, convidados a exporem seus trabalhos. Essa

prática educa o olhar, amplia a concepção da própria arte, do belo,

proporcionando uma educação estética que provocou transformações nos

educandos e nos educadores e em suas relações.

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Neste sentido, foi possível perceber que, ao expor seus trabalhos, os

educandos revelam seus sentimentos mais internos, e é nessa experiência

sensível que identificamos possibilidades de verificar a ação concreta da arte

levando-os ao encontro do seu lado mais humano, do seu “ser mais”, como

define Freire (1987).

Um outro movimento criado dentro do “Político Cultural” é a realização

de “Saraus”. Eles representam um espaço no qual os educandos têm a

oportunidade de apresentar suas performances de danças, poesias,

encenações teatrais, cantos, entre outros.

Durante os “Saraus”, os educandos vivenciam o protagonismo por meio

da arte. Experimentam a afirmação de suas potencialidades criadoras e estão

confirmando a si mesmos que possuem capacidade de ser e de criar, uma

experiência com sentido e significado para cada um. Os educadores, os pais, a

comunidade presente, os assistem e confirmam com aplausos, o que fica

gravado em suas almas: “Eu sou capaz!”.

Essa polifonia da arte, ao longo do tempo, tornou-se uma metáfora no

processo educativo da Unidade. A localização espacial da galeria permite que

a arte faça-se presente em todos os ambientes, e em todos os momentos

vividos pelos educandos e pelos educadores.

A metodologia de avaliação aplicada pelos educadores, na qual ao final da

atividade do dia, em roda de conversa, todos colocam seus trabalhos no centro

e cada educando tem a oportunidade de apresentar a sua produção e

comentar a de seus colegas, é um exercício que desenvolve o senso crítico,

tão essencial à formação humana. Ao colocarem-se acima das produções para

poder enxergar o conjunto, contemplam a própria capacidade criadora,

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podendo enxergar suas próprias potencialidades. A valorização do percurso

feito individualmente por cada educando é constantemente praticada e o

processo é colocado acima do produto, não deixando de considerar as

produções realizadas.

Percebemos então que no universo da educação não-formal, a arte

apresenta-se como uma das estratégias pedagógicas, podendo ser utilizada

como um meio de assimilação do mundo, um instrumento para conhecer e

desvendar o conhecimento, por meio da sensibilidade e da estética, dimensões

do desenvolvimento humano de grande importância para a plenitude da vida, e

nem sempre presentes na realidade da população de periferia.

Sabemos que muitos são os fatores que levam ao embrutecimento do

ser humano, fato mais visível em populações que vivem em situação de

extrema pobreza ou que são privadas da garantia dos direitos básicos de

saúde, lazer, moradia, alimentação e educação, como é o caso da comunidade

da qual são oriundos os educandos em questão.

Algumas famílias convivem com esgoto a céu aberto que passa na porta

das casas, e sofrem infestação de ratos e escorpiões constantemente,

principalmente em época de chuvas. Um dos casos extremos que pudemos

testemunhar foi de uma menina de doze anos que comparecia às atividades do

projeto com muito sono. Durante uma semana ela nos parecia doente e quando

fomos conversar com a mãe, soubemos que elas (mãe e filha) estavam

revezando-se durante as noites e madrugadas para vigiar as crianças menores,

dentre os quais havia um bebê de quatro meses, para que os ratos não

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subissem nas camas e mordessem os pequenos. Somente a sentinela estava

garantindo que isso fosse evitado. Esse fato ilustra o estado de violação de

direitos em que esta população vive. Daí que, para entender seus

comportamentos e atitudes, é preciso perceber e analisar profundamente as

relações de cultura e saber nas quais estão inseridos, e vamos então perceber

a carência de humanidade que existe no tratamento das classes populares

para as quais não estão garantidos sequer os direitos básicos. É preciso

garantir-lhes uma educação que proporcione sua formação como sujeitos

históricos e conscientes de que a história é resultado de ações humanas e que

a trama histórica está localizada no embate das relações sociais. É necessário

romper a relação de dependência e o estado de permanência levando-os a

perceberem as possibilidades de transformar.

Edgar Morin (2001) adverte-nos quanto à necessidade de trabalharmos

no desenvolvimento da consciência da natureza do ser humano em sua

inteireza, levando-o a conhecer e reconhecer sua complexa identidade que é

uma identidade comum a todos os outros seres humanos. Essa condição tem

relação direta com o processo de humanização do indivíduo e não apenas no

sentido da sensibilidade do ser, mas, principalmente, quanto à capacidade

humana de pensar, de agir e de sentir. Ao aprender a pensar, o ser humano

desenvolve diversos sentidos que são formadores e transformadores de seu

próprio existir. Assim, ele aumenta sua percepção e amplia seu olhar sobre as

coisas que o cercam e com as quais ele interage. Para humanizar-se é preciso

então, perceber o seu próprio mundo, sentir sua realidade e olhar além,

identificando as possibilidades e compreendendo as transformações que

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ocorrem e poderão ocorrer. E para alcançar essa percepção, o caminho inicial

é “conhecer-ser a si mesmo”, buscar sua identidade (Rosito, 2007).

Reconhecemos o papel da arte possibilitando ao educando desenvolver

sua capacidade criativa, ao mesmo tempo em que identificamos a necessidade

de espaço de criação para a prática educativa. Ao contrapor a educação

bancária com a educação como prática de liberdade, Paulo Freire (1980)

enfatiza a necessidade de desenvolver o potencial do educando levando-o a

perceber-se como ser criativo e capaz. Sabemos que a alienação impossibilita

o processo de criação da mente, e percebemos que o currículo da educação

formal do nosso país pouco espaço oferece para que o educando desenvolva

sua criatividade, reconhecendo neste fato uma das estratégias de dominação

das classes populares utilizada ideologicamente pela classe dominante.

Neste sentido, buscamos as palavras de Antônio (2002) que são

incisivas e esse respeito:

O diálogo com a poesia pode representar antídoto: contra a perda de identidade, de sentido, de compreensão e expressão. A convivência com a criação poética, com a linguagem e o pensamento poético, pode ajudar no reencantamento da aprendizagem. A poesia, enquanto poesia, representa uma possibilidade de educação dos sentidos, tanto no sentido de educar a percepção, como no de educar os sentimentos. Pode, também, participar da educação da imaginação, para que a atividade imaginativa se liberte dos estereótipos produzidos incessantemente pelas mídias-máquinas de uniformização e manipulação de imagens (Antônio, 2002, p. 116).

Ora, a arte tem papel efetivo na construção do indivíduo, pois possibilita o

desenvolvimento do olhar que é capaz de perceber as nuances em tudo o que

o cerca e o envolve, contribuindo para que possa se conhecer e perceber-se,

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para poder perceber o outro e transformar suas relações. Para isto é

necessário um exercício de auto-conhecimento e de reflexão de suas próprias

ações, abrindo caminhos para a recomposição de uma personalidade mais

sensível e humanizada.

Na prática da educação sócio-comunitária ora apresentada, a arte

caminhou com o protagonismo dos educandos, pois além de terem o espaço

para criação artística, também atuavam efetivamente na organização e

realização dos eventos.

E durante esse caminhar confirmamos em nossa prática a afirmação de

Herbert Read (1986, p.95): “a arte é o ator ideal para o papel do redentor,

daquele que resgata”. Percebemos que é possível a superação do estágio de

embrutecimento humano e o rompimento do paradigma da exclusão social, no

qual se encontram os homens e mulheres que vivem em situação de miséria,

entre os quais se encontram os educandos do Formação Carapicuíba,

proporcionando-lhes um diálogo com a arte e a cultura a fim de garantir

experiências estéticas e sensíveis que ampliem seu repertório cultural, ao

mesmo tempo em que transformam seu olhar e sua compreensão de mundo.

Este trabalho desenvolvido com o Projeto Político Cultural incorporou um

desejo latente de alimentar os sonhos, sonhados pelos educandos, sonhados

pelos educadores, sonhados por todos os atores envolvidos na unidade

educacional. Podemos ressaltar isso com as palavras de Boff (2001):

Morrem as ideologias e envelhecem as filosofias. Mas os sonhos permanecem. São eles o húmus que permite continuamente projetar novas formas de convivência social e de relação para com a natureza (Boff, 2001, p.79).

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E é justamente no caminho dos sonhos, na necessidade de construir

vínculos afetivos entre educadores e educandos, que este trabalho proporciona

mudanças no comportamento e nas relações entre os educandos e deles com

o espaço, com o outro e consigo mesmo, uma vez que as ações pedagógicas

ocorrem de forma a possibilitar o desenvolvimento de ações interpessoais, de

interação e integração social, levando-os a avançar juntos, a compartilhar e a

aprender na percepção das descobertas do outro. Há uma perceptível elevação

da auto-estima, do comprometimento dos grupos, da socialização dos

conhecimentos e das competências, resultando no compartilhamento das

experiências e vivências de cada um com todos e de todos com cada um.

Distante que estamos do rigor burocrático com que a escola formal está

muitas vezes organizada, na educação não-formal é possível ter a nosso favor

o sentido coletivo do trabalho educativo em que todos os educadores são

educadores de todos os educandos e os educandos são educandos de todos

os educadores, levando-nos a trabalhar com um currículo formativo que traz

como objetivo maior educar para a sensibilidade, para a humanização do ser,

oportunizando ao educando desenvolver a autonomia e o sentimento de

pertença, por meio do contato efetivo e humanizado da relação educador-

educando-conhecimento. Os indicadores avaliativos do trabalho pedagógico

consideram todas as produções, os registros, textos e pesquisas nas diversas

linguagens. Consideram também o envolvimento, o interesse e a participação

nas propostas que são lançadas.

Diversos grupos artísticos foram surgindo no decorrer do tempo,

oportunizando que diferentes educandos se encontrassem em diferentes

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propostas, assim, quem não tinha coordenação motora para a dança podia

participar do grupo de percussão ou do grupo de capoeira, enfim, todas as

modalidades artísticas proporcionam a viagem dos sentidos que eleva a auto-

estima, dá leveza aos movimentos ao mesmo tempo em que melhora as

relações.

Ao perceber a evolução dos educandos e educandas no envolvimento

com as atividades artísticas, verificamos a formação da identidade humana dos

sujeitos, e neste sentido observamos os educadores e especialmente

percebemos as transformações que ocorreram com a pesquisadora durante

sua formação, enquanto realizava esta pesquisa, reconhecendo o

amadurecimento e a sensibilidade dos envolvidos, como partes deste

processo.

Figura 8: Apresentação do grupo de dança “as dez bailarinas do sol” Projeto Político Cutural Acervo Pessoal: outubro/2005

A figura oito apresenta um grupo de meninas entre sete e dez anos de

idade que formaram o grupo “As dez bailarinas do sol”. Uma das questões que

apareciam de forma muito forte neste grupo, era a falta do autocuidado.

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Durante o período em que estiveram envolvidas neste projeto educativo, houve

uma grande transformação na forma como elas se relacionavam com os outros

e consigo mesmas.

Neste trabalho de resgate de auto-estima, foram percebendo-se mais

belas, melhorando a postura, erguendo o olhar, interessando-se mais por

participar das atividades educativas e contribuindo com os educadores e os

colegas menores.

Como num espelho mágico, a mudança afetou outros educandos, pois

durante os eventos, nas apresentações do grupo, e mesmo no dia-a-dia, todos

sentiam a diferença no comportamento das meninas.

Figura 9: A auto-estima e a leveza dos movimentos das “bailarinas do sol” Acervo pessoal: outubro/2005

Ao assistirem a performance das bailarinas, os educandos bebiam a

beleza da arte, deixando-se banhar pela harmonia da música e pelos

movimentos da dança.

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Os educadores envolvidos no processo de reflexão-ação-reflexão, vão

percebendo de que forma, quando e como intervir para que os educandos

avancem na sua aprendizagem e, assim, construindo na práxis educativa um

currículo que emancipa pelo viés da humanização, um currículo que é

construído a partir da realidade social de seus atores e que leva em conta a

participação ativa e dinâmica de todos para que o conjunto de aprendizagens,

atitudes e valores possam ser desenvolvidos de forma integral e harmônica,

considerando o educando em toda sua complexidade.

Esse exercício nos leva a sentir com todos os sentidos o processo

individual pelo qual cada educando passa e vai percorrendo um caminho que o

leva ao reencontro de sua própria humanidade.

Figura 10: Grupo de Pagode Fonte: Acervo pessoal: outubro/2005

Nos eventos artísticos, os encontros humanos emprenham-se de vida,

de desejos, de sonhos. A cada apresentação, a cada ensaio, a criação e a

esperança, a alegria de ser e de fazer, de sentir-se aceito, de fazer parte.

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Figura 11: Apresentação do grupo de pagode durante Sarau Fonte: Acervo pessoal: outubro/2005 O grupo de pagode, nas figuras 10/11, foi uma iniciativa dos próprios

educandos, desejosos de participar ativamente dos encontros culturais. Cada

integrante, uma história de vida, matéria prima para o trabalho dos educadores

na formação dos educandos.

Alguns integrantes deste grupo superaram problemas de agressividade e

rebeldia após terem conquistado este espaço. Com o crescimento da amizade,

venceram alguns preconceitos e modificaram atitudes, como no caso de duas

das meninas deste grupo de pagode, que furtavam pequenos objetos do

Formação Carapicuíba. Constatamos com isto que o sentimento de pertença é

fator primordial não somente para a questão da auto-estima como também

para o cuidado e o respeito com o outro e com o espaço coletivo. Conquistas

como estas são facilmente identificáveis, porém elas mostram as

transformações mais íntimas que ocorrem no ser, mudanças que não podem

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ser catalogadas ou mensuradas, mais que podem ser sentidas com a mente e

com o coração. É o que afirma também Antônio (2002):

Entre mudanças vertiginosas e contradições que não cessam, fazemos nossas travessias de educar e educar-se. Precisamos sempre retomar os fios que nos ligam a nós mesmos e aos outros. É preciso retomar as perguntas-princípio, sempre recomeçadas. Que sociedade queremos construir? Que ser humano desejamos formar? Estas são perguntas imprescindíveis. Participam das origens, dos destinos, e atravessam a história cotidiana do trabalho com educação (Antônio, 2002, p. 34).

Figura 13: Grupo de Percussão Fonte: Acervo Pessoal – Setembro/2005

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3.2 – A formação humana – Grupo de Educadores

Um aspecto muito importante para se compreender como foi possível a

realização desta prática de educação sócio-comunitária, é conhecer e entender

os educadores que nele atuaram.

O processo desumanizador acarretado pelo modo de organização social

capitalista, utiliza-se de estratégias diversas que envolvem o sujeito ainda

sendo gestado, implicando numa vida servil e resignada. Esta realidade não é

apenas dos educandos do Formação Carapicuíba, é também dos seus

educadores. Como poderiam os educadores trabalhar na concepção de

educação como prática de liberdade se faltar a eles próprios essa liberdade?

Para melhor compreendermos este fato, lembramos as contribuições

notáveis de Paulo Freire (1979), compreendendo a educação como ato político

e reconhecendo na prática de cada educador sua visão de sociedade e de

homem, entendendo assim, o oprimido não somente do ponto de vista

econômico, mas também do ponto de vista ideológico.

Ao grupo de educadores inicial, citado anteriormente nesta dissertação,

foram se agregando outros mais, completando assim uma equipe de 11

pessoas que diariamente recebiam 180 educandos para atividades alternadas

ao horário escolar.

Um grupo heterogêneo, com diferentes formações acadêmicas e

diferentes experiências de vida que, no entanto, movia-se pelos mesmos ideais

de uma educação como prática de liberdade. Cada educador trazendo uma

bagagem diferente, especial, de vida e de experiências formadoras que

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somada às demais permitia uma visão ampla e uma maturidade necessária e

oportuna para lidar com os mais variados textos e contextos da prática

educativa.

As palavras de Antônio (2002) vêm ao encontro do que estamos

considerando:

É necessário religar aprendizagem e vida. Refazer a relação lúdica. Reeducar a sensibilidade, tanto a percepção quanto os sentimento. Motivar a imaginação inventiva. Seduzir a razão. Todas essas necessárias recriações de vida na aprendizagem, e com a aprendizagem, todas elas estão profundamente ligadas à experiência poética. O renascimento da convivência com a poesia é necessidade vital para as aprendizagens e para seu renascimento como atividade criadora, sensível e significativa. Não no sentido de ler ou escrever poemas, mas no sentido de desenvolver uma relação poética com o mundo, com os outros, com o conhecimento, com a própria existência. O tecido vivo da história de cada um, a cultura como palavra vivida, o texto da vida – que não está terminado, que precisamos sempre interpretar e escrever e reescrever (Antônio, 2002, p. 25).

Ao buscar reencantar a educação para proporcionar prazer aos

educandos, também os educadores experimentaram essa sedução da razão,

pois é necessário acessar antes o caminho que desejamos percorrer com os

nossos educandos. Ao percorrer este caminho encontramos a amorosidade por

vezes ressaltada por Freire (1996) como necessária ao ato de educar,

amorosidade entendida como a capacidade de redescobrir o íntimo do

humano, a essência da vida, o amor.

A presença dos conflitos e divergências de opiniões que no começo

perturbava, pouco a pouco foi sendo encarada como momento de crescimento

profissional e pessoal, momento de reflexão sobre a ação. Como em todo

grupo humano, também esse enfrentou problemas de ciúmes, invejas,

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sentimento de posse, competição, entretanto o que vale a pena destacar é que

a maturidade alcançada enquanto grupo, permitiu que todas essas turbulências

fossem superadas e as questões que tratavam do relacionamento e da

formação dos educandos eram sempre colocadas em primeiro plano, o que

levava todos a unirem-se no desenvolvimento do trabalho educativo.

Cada educador buscou dar o melhor de si na prática pedagógica e para

isto, o caminho percorrido foi o da entrega. Entregar-se ao ato pedagógico é

mergulhar profundamente na ação educativa, rompendo todas as barreiras de

espaço, de tempo, de lugar.

Desta forma, não superamos em cem por cento os conflitos

interpessoais do grupo, mas conseguimos fazer com que enquanto grupo,

alcançasse resultados concretos em sua tarefa educativa.

Nas atividades de formação continuada dos educadores, debatiam-se

textos de Paulo Freire e de tantos outros autores cujas contribuições

proporcionam um olhar mais aguçado sobre a realidade, refletiam sobre a

própria prática discutindo casos, compartilhando angústias e temores. Um

exercício que proporcionou uma maior percepção de que cada um não estava

numa ilha com suas próprias dificuldades, mas que todos estavam juntos e no

diálogo foram encontrando caminhos e construindo conhecimentos sobre a

própria prática e sobre os educandos, possibilitando um olhar analítico sobre as

contradições que ocorrem por vezes entre o que se propõem o que de fato se

faz.

As relações de poder entre educandos e educadores foram sendo

trabalhadas de forma a quebrar hierarquias castradoras, sem jamais perder de

vista o devido respeito e lugar do educador na tarefa de educar.

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Uma das questões facilitadoras de todo o processo é o fato de serem, os

educadores envolvidos, pessoas sensíveis e humanas, abertas e disponíveis

ao diálogo.

Tal afirmação tem como fundamento o fato de terem esses educadores,

como prática constante, a relação de diálogo para resolução de qualquer tipo

de conflito. Sabemos que para tal prática é preciso que o educador esteja

aberto e tenha disponibilidade, pois o diálogo só se estabelece em momentos

de conflito quando o educador tem a maturidade necessária para concretizá-lo.

Portanto, percebemos que a formação humana dos educadores é ponto

fundamental para que se possam alcançar os objetivos pautados para a

educação como prática de liberdade.

Figura 14: Grupo de Educadores (incompleto) Fonte: Acervo Pessoal – dezembro/2005

Em bem pouco tempo o Formação Carapicuíba já não precisava de trancas

nos armários e salas, pois no processo formativo, no diálogo contínuo, foi

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sendo construída uma confiança e, sobretudo um grande respeito entre todos e

de todos para com o espaço. O sentimento de pertença foi o grande diferencial

na relação construída entre educadores e educandos e certamente esta

construção carregada de valores e sentimentos, possibilitou um encontro dos

educandos com o conhecimento, isto é, proporcionou-lhes momentos de

verdadeiro aprendizado.

3.3 – Educador: uma visão sobre o ser e o fazer a educação

Dentre os procedimentos metodológicos utilizados em nossa pesquisa,

realizamos entrevista semi-estruturadas com educadores e educandos do

Formação Carapicuíba, a unidade de educação não-formal investigada. Neste

item trazemos uma análise do material levantado sempre norteando-nos pela

educação que tomamos como referência, a educação libertadora.

Desta forma, lembramo-nos uma vez mais que o educador cuja prática

está firmada nesta concepção de educação, é o facilitador do diálogo, pois

assumi compromisso em garantir o espaço formativo para os educandos

visando sua emancipação e seu desenvolvimento em todas as ações

propostas.

Esse educador não tem respostas prontas, desenvolve a escuta

sensível, sabe ouvir e sabe provocar o pensamento dos educandos, uma

provocação amorosa e possibilitadora de alimentar sonhos. Há uma

consideração de Rubem Alves que, parece-nos, corrobora com o que estamos

dizendo:

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Educadores, onde estarão? Em que covas terão se escondido? Professores, há aos milhares. Mas o professor é profissão, não é algo que se define por dentro, por amor. Educador, ao contrário, não é profissão; é vocação. E toda vocação nasce de um grande amor, de uma grande esperança (Alves, 2003, p. 16).

Na entrevista com os educadores, abrimos um espaço de comunicação

para que eles contassem-nos sobre sua prática pedagógica, desta forma

colhemos os seguintes depoimentos:

Trabalho com diversas linguagens artísticas dentre as quais a música, e o objetivo é que os educandos aprendam um pouco da música, se interessem um pouco pela música, mas o objetivo principal é que eles se interessem mais pela cultura popular brasileira, eu trabalho percussão e o trabalho de música envolve muito a cultura popular brasileira, então desejamos que eles se apropriem da cultura popular brasileira e consecutivamente a música está inserida dentro da cultura. Dentro do mosaico, eu trabalho oficina de mosaico, de arte também, queremos que eles aprendam a criar formas com pequenos pedaços de objetos, cacos, borracha, papel e aprendam a ter um outro olhar para a arte que não apenas a pintura e o desenho, mas que com formas pequenas eles venham a conseguir montar objetos. E com a fotografia (pinhole), queremos que eles aprendam também que a fotografia é uma forma de arte, que a maioria pensa que a fotografia não é uma arte, não é resgatar, todo o processo que foi feito pra chegar até hoje na câmara digital, eles conhecem os processos, as técnicas, e encararam a fotografia como uma linguagem artística (M.N.S. Arte-Educador). Eu trabalho aqui oficina de dança do ventre com meninas de sete a 12 anos, o objetivo maior é desenvolver nelas o resgate da auto-estima e eu percebi que é uma coisa difícil de lidar no cotidiano delas. Elas têm a auto-estima baixa e a dança do ventre é uma possibilidade, delas se sentirem mais bonitas, mais talentosas, porque diferente do que as pessoas pensam é uma dança fácil de ser aprendida. Porque o resgate da auto-estima é importante né? Tem um autor chamado Içami Tiba que ele diz que tudo nesta vida a gente pode comprar, conquistar e que a coisa mais difícil de se conquistar é a felicidade e que o presente maior que as pessoas que nos educam podem nos dar, pra gente conseguir conquistar a felicidade é atuando na nossa auto-estima, porque uma pessoa que tem uma boa auto-estima é uma pessoa feliz, porque nada vai abalar aquilo que ela acredita que sabe fazer e faz bem

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feito. Então eu acredito muito nisso e tenho resultados bem interessantes trabalhando nesse ponto, no desenvolvimento da auto-estima delas. Esse é o objetivo principal, mas a gente trabalha lateralidade, coordenação motora essas coisas mais físicas mesmo que também levam a esse objetivo maior (S.A.C. Pedagoga e educadora de dança).

Na fala destes educadores identificamos que as atividades

desenvolvidas proporcionam a ampliação do olhar dos educados, tanto pela

melhoria da auto estima quanto pelo acesso ao saber, buscando facilitar a

ligação entre o que se desenvolve na ação efetiva dos projetos pedagógicos e

a vida concretamente vivida por eles.

Os educadores entrevistados, quando questionados sobre o que ocorreu

entre os educandos a partir do desenvolvimento do Projeto Político Cultural, ou

seja, a partir do início das atividades artísticas, fizeram observações que nos

levam a confirmar que a arte pode de fato, desempenhar um papel redentor da

humanidade por vezes perdida no embrutecimento da vida humana.

Acho que se eu ficar falando das mudanças que ocorreram vai ser muita coisa, apesar de que eu não estava trabalhando ainda aqui quando o projeto começou. Não sei dizer como era antes, mas o que posso perceber é que, do primeiro sarau que participei até o último já tiveram muitas mudanças né. A principal é a cooperação. Os educandos ajudam entre eles, ajudam os educadores na organização, na decoração, coisas que a gente vê que não acontece num ambiente escolar (educação formal). Eventos como esse também não acontece num ambiente escolar e são distantes da realidade deles, crianças da classe social aqui da comunidade que a gente atua elas não teriam, acredito que, outras oportunidades de participar de sarau e galeria, de coisas tão ligadas à arte assim, visto que aqui no município eles não têm nem cinema que eles possam freqüentar e que é uma queixa que sempre aparece nas atividades de outras oficinas, que não tem cinema, que não tem teatro, que não tem área de lazer e que não tem essa possibilidade de apreciar a arte e a cultura. (S.A.C.Pedagoga e educadora de dança).

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As palavras dessa educadora nos ajudam a entender o que se

desencadeou com o desenvolvimento das atividades artísticas deste trabalho.

Ela ressalta o espírito de cooperação que antes não existia e passou a existir e

isso nos mostra que a criança ou o jovem quando está com baixa estima, sente

certo ódio pelo mundo e por si mesmo e isso o impossibilita de ser mais

sociável, de participar de um grupo de forma mais saudável, por isso essa

mudança no comportamento dos educandos aconteceu quando sentiram-se

mais queridos por si mesmos, valorizaram-se mais porque perceberam que

seus próprios talentos.

... outro exemplo, a Amanda, quando começamos trabalhar em outras oficinas antes da música, ela tem uma rejeição, tinha uma rejeição porque ela tinha uma dificuldade motora muito grande e quando foi montar o grupo de percussão, ela veio até mais pela minha pessoa, porque eu comecei a encarar, no começo nos tivemos uns atritos grandes, aí eu comecei a ouvi-la mais, prestar mais atenção, às vezes ela chegava chorando eu sentava do lado dela e ia conversar, ela era muito nervosa, eu sentava e conversava com ela, e ela veio pra oficina de percussão, acho que até mais pela minha pessoa, a conquista afetiva do jeito que eu tratava ela, ela veio e sentiu-se muito... ela se colocava assim: eu não consigo, e eu fui dando instrumentos pra ela, ela não conseguia um eu não deixava ela desanimar, eu falava tenta outro, tenta outro, até que ela conseguiu “ganzá”, o chocalho e ela foi se soltando, se soltando, é uma pessoa também que continuou no grupo e continuou tocando e a melhora dela foi assim surpreendente, deu pra ver que a arte, a música foi um fator de inserção, ela começou a se sentir mais aceita, pertencendo, ela viu que uma coisa que ela dizia: “não consigo, não consigo, não consigo”... quando ela se viu tocando em saraus, fazendo apresentações dentro e fora do Formação Carapicuíba, ela viu que ela era capaz e... tornou-se uma coisa marcante que ela, quando ela começou a se aceitar, ver que ela era capaz que poderia fazer e estar no meio de todo mundo, fazendo parte daquele grupo que ela mesma se sentia excluída, então foi muito gratificante (M.N.S. Arte-educador).

A história contada nestas palavras do arte-educador, comprova uma vez

mais que a arte pode nos levar ao pertencimento e a inclusão. A jovem

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Amanda, 13 anos, é uma adolescente com dificuldades de aprendizagem e de

coordenação motora, tem também um problema na fala que dificultava sua

comunicação com o grupo, e inclusive ajudava a deixá-la muito nervosa e

agressiva. Sua transformação ocorreu pela alegria que sentiu ao conseguir

participar do grupo de percussão, tocando o instrumento ganzá ou chocalho.

Ela ficou mais vaidosa, passou a cuidar melhor da higiene pessoal, sempre

com cabelos limpos, bem penteados, passou a usar batom, enfim, ela

encontrou sua essência feminina ao encontrar-se no grupo de percussão.

Nas entrevistas realizadas com os educandos pudemos confirmar o

sentimento que eles tem em relação as atividades artísticas. Eles destacaram

muito as oficinas de teatro, atribuindo à elas o fato de terem vencido a timidez e

aprendido a se apresentar em público. Relataram sobre as visitas que fizeram

a museus de arte, a seções de teatro e cinema, contando o quanto isso foi bom

e importante para suas vidas, mostraram enfim, que valorizam e gostam muito

do trabalho com as linguagens artísticas.

Verificamos que os educandos sentem-se estimulados ao verem outras

pessoas apreciando suas produções. Quando perguntamos a eles sobre a

exposição de seus trabalhos na galeria de arte uma adolescente afirmou que:

É uma experiência positiva porque eu pude apresentar o meu desenho e falar o significado, como um coraçãozinho que eu faço (grafiti), que representa o bem e o mal, acho que é isso que a sociedade vem mostrando que tem o lado do bem e do mal, mas afinal o coração estimula o amor. Achei legal, até reproduziram meu coraçãozinho, achei bacana, reproduziram na passarela (projeto de grafiti na passarela do trem), achei muito legal, porque muitas vezes as pessoas falam: ah! ta copiando, não! é o modo de uma pessoa falar que gostou, ta reproduzindo o que você fez, achei interessante. Acho que o trabalho é de artes com as crianças menores é bem desenvolvido, dá pra ver no olhar das crianças que elas gostam e que é o modo de incentivar elas a saberem o que é

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cultura, porque estimulando elas a dançar, elas se afastam um pouco das coisas ruins que a vida proporciona pra gente e começam a ver como a cultura é importante no nosso dia a dia. Espero que as pessoas dêm mais valor a cultura, a respeitar os museus, os teatros, que são importantes, é uma coisa que a população ta usando e muitas vezes são destruídos, porque não tão dando valor as coisas que nos mesmos usamos diariamente (J.C. 17 anos).

Figura 14: Máscara Coração feita pela educanda J.C. Fonte: Acervo Pessoal/2005

A seguir lançaremos nosso olhar sobre algumas das atividades

desenvolvidas no trabalho dos educadores, o planejamento da ação

pedagógica, a metodologia, o diário de bordo, os relatos sobre a ação,

percebendo a presença da ludicidade, da alegria e a relação dialógica

superando a resistência.

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3.4 – Pedagogia da hegemonia ou Pedagogia da autonomia?

Verificamos até aqui como são desenvolvidos os projetos pedagógicos

na unidade de educação que estamos pesquisando. Ao analisarmos o

documento do Projeto Político Pedagógico, percebemos uma série de palavras

ou termos utilizados pela política neoliberal nele incorporados e por

compreendermos que as palavras são sempre carregadas de significados e

sentidos que escondem ou revelam a intencionalidade da ação, esta

constatação gerou certa ansiedade em tentarmos compreender o

posicionamento da educação ali desenvolvida, considerando a visão de homem

e de mundo implícitas na laboriosidade de seus agentes e de que forma ou em

que medida essa prática educativa trabalha para a consolidação do projeto de

sociedade neoliberal, dito de outra forma, a atuação dos educadores nas ações

pedagógicas caminham em contribuição à consolidação da pedagogia da

hegemonia (Neves, 2005), ou resistem a ela?

Sabemos que os mecanismos de dominação utilizam-se de estratégias

sutis que vão convencendo ao passo que alienam o sujeito expropriando-o de

sua força de trabalho e principalmente de sua capacidade de pensar. Os

sujeitos tornam-se reféns de um modo de vida, de um projeto de sociedade

instalado pelo capitalismo. Como poderiam então, os educadores trabalharem

na concepção freireana de educação para emancipação sem enveredarem

para a ilusão da inclusão social vendida pelo ideário neoliberal? Como é

possível intervir numa realidade estruturada e estruturante como esta do

modelo de sociedade no qual vivemos?

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Estas reflexões nos remetem à “A nova pedagogia da hegemonia,

estratégias do capital para educar o consenso”, livro organizado pela autora

Lúcia Maria Wanderley Neves que discute o papel das organizações do terceiro

setor no contexto histórico contemporâneo, levando-nos a perceber que os

projetos sociais, tal como este pesquisado, correm o risco de contribuírem para

o conformismo da população excluída socialmente.

Em um dos capítulos desta obra, Lima e Martins (2005) afirmam que

Assim, temas antigos, como “cidadania”, “igualdade”, “participação”, “democracia”, e novos, como “empreendedorismo”, “voluntariado”, “responsabilidade”, dentre tantos outros, são tratados sob uma abordagem pedagógica que os distancia do conflitivo e antagônico processo de construção social que os define. Trata-se de uma ação orientada por uma concepção pedagógica que procura criar novas ancoragens teóricas e simbólicas responsáveis por estabelecer mediações entre sujeito e realidade social em uma perspectiva de conservação de relações sociais (Neves, 2005, p. 65).

Um olhar crítico sobre o trabalho educativo do Formação Carapicuíba

permite-nos reconhecer as estratégias de conformação que visam canalizar a

indignação e o sentimento de impotência do sujeito frente às injustiças sociais

que o envolvem. Percebemos que as ações educativas sócio-comunitárias

podem, em grande medida, serem usadas para evitar a formação de sujeitos

coletivos que se organizem e busquem soluções mais profundas para os

problemas sociais. Entretanto, continuamos a enxergar neste cenário as

possibilidades desta educação como fomentadora de sujeitos críticos, capazes

de alcançar sua emancipação pela via do reencontro com sua própria

humanidade expropriada pelo sistema que nos governa.

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Embora reconhecendo que a educação tem feito papel de conformar o

sujeito em seu apartheid social, nela também identificamos a origem do

processo formador capaz de libertar, e a busca da identidade, do

reconhecimento de si mesmo, de suas potencialidades e fragilidades, é o

caminho.

Lançamos aqui uma última indagação: Quais as possibilidades em

nosso trabalho, nas organizações do terceiro setor, de fazermos um trabalho

contra-hegemônico?

Em primeiro lugar vamos buscar a notável contribuição de Freire:

O necessário é que, subordinado, embora à prática “bancária”, o educando mantenha vivo em si o gosto da rebeldia que, aguçando sua curiosidade e estimulando sua capacidade de arriscar-se, de aventurar-se, de certa forma o “imuniza” contra o poder apassivador do “bancarismo”. Neste caso, é a força criadora do aprender de que fazem parte a comparação, a repetição, a constatação, a dúvida rebelde, a curiosidade não facilmente satisfeita, que supera os efeitos negativos do falso ensinar. Esta é uma das significativas vantagens dos seres humanos – a de se terem tornado capazes de ir mais além de seus condicionamentos. Isto não significa, porém, que nos seja indiferente ser educador “bancário” ou um educador “problematizador” (Freire, 2002, p. 28).

Neste sentido, podemos então afirmar que a prática de educação sócio-

comunitária analisada, pela sua organização e metodologia, é capaz de

proporcionar aos seus educandos o aprender de forma criativa e ativa, dando-

lhes estímulo para a consecução dos pressupostos apontados na citação

acima. Consideramos, portanto, a organização e a metodologia utilizadas na

educação sócio-comunitária uma das possibilidades do trabalho contra-

hegemônico.

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Em segundo lugar lembramos as categorias fundamentais apresentadas

por Freire (1979) para a educação como prática de liberdade, já discutidas no

primeiro capítulo. Amor, humildade, fé, confiança, esperança e solidariedade.

Categorias que se fundam na dialogicidade necessária para uma relação

educativa educador-educando, que pretenda a libertação de ambos,

possibilitando o rompimento com o processo de alienação, que na concepção

marxiana “é um processo humano, do homem que se desumaniza” (Martins,

2007, p. 60).

O que nos parece indiscutível é que, se pretendemos a libertação dos homens, não podemos começar por aliená-los ou mantê-los alienados. A libertação autêntica, que é humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo (Freire, 1979, p. 77).

3.5 – As possibilidades de uma educação contra-hegemônica

No item anterior nos questionamos acerca das possibilidades de ser a

nossa prática educativa uma forma de resistência à proposta hegemônica de

sociedade difundida e inculcada estrategicamente pela política neoliberal.

Neste sentido, vamos analisar alguns planos de oficinas elaborados pelos

educadores do Formação Carapicuíba, procurando reconhecer as intenções e

desvelar a concepção de homem e de mundo presente nestes documentos.

O primeiro plano de oficina que escolhemos para analisar é destinado ao

grupo Criança Ativa, que reúne crianças entre sete e 12 anos. Vejamos:

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PLANO PEDAGÓGICO Educador: S.A.C. Turma: Criança Ativa Horário: manhã e tarde Projeto: Centro de Pesquisa

Data: 11de agosto de 2005 Eixo: Criança ativa

Atividade: Centro de Pesquisa

Objetivo: Despertar o interesse pela pesquisa e pela leitura de diferentes fontes de informação escrita, de maneira prazerosa.

Estratégia: Propor a todos os educandos do Grupo Criança Ativa um trabalho de pesquisa; fazer um levantamento de quantos educandos têm interesse pelo trabalho. Reuni-los e explicar-lhes o que é um trabalho de pesquisa, qual sua importância e como fazê-lo. Em seguida propor para que se dividam em subgrupos e que cada subgrupo escolha um tema para pesquisar.

Meta: Despertar o interesse pela pesquisa de um tema escolhido pelo subgrupo.

Manhã: 10

Número de Educandos: Tarde:

Avaliação: Gostei muito do interesse mostrado pelos educados, dentre o Grupo CA, dez crianças desejaram participar do trabalho: JC, AA e LV- tema de pesquisa: esporte, enfoque em três modalidades: futebol, natação e tênis.RS, RAS, CVe RT – tema índios do Brasil. TS, GJ e DT, tema de pesquisa: horóscopo. Conversamos bastante sobre o que é um trabalho de pesquisa e como fazer um trabalho de qualidade, que não se trata de copiar o texto da fonte pesquisada e sim compreender o que foi lido e construir um texto acerca do que foi compreendido. Pouco antes do término da oficina solicitei que explorassem os livros da biblioteca para colher as primeiras informações sobre os temas escolhidos.

O que percebemos no plano acima observado, confirma que numa

proposta de uma educação sócio-comunitária, tendo como concepção a

educação como prática de liberdade que possibilite ao educando acessar sua

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autonomia e emancipação, o processo educativo consegue despertar na

criança o gosto pela pesquisa, aguçando sua curiosidade, e é capaz de

acender em sua alma a chama do prazer pelo ato de conhecer. Este fato

apresenta-se como um elemento capaz de se contrapor a uma educação do

consenso, da permissão, porque pode possibilitar a formação crítica do sujeito,

levando-o a situar-se de forma crítica na sociedade.

O registro da avaliação que é feito por esta educadora mostra como o

interesse é despertado nas crianças quando eles podem escolher coisas que

lhes agradam, como vimos: a escolha dos esportes feita pelos meninos e do

horóscopo pelas meninas.

Ao despertar este interesse de forma prazerosa para os educandos

surge a possibilidade de levá-los a amadurecer este interesse e quando

desafiados a pesquisar outros temas, certamente, eles estarão mais bem

preparados e terão uma melhor disposição para a atividade.

O segundo plano de oficina que analisamos também é voltado ao grupo

Criança Ativa:

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PLANO PEDAGÓGICO Educador: C.S.A. Turma: Criança Ativa Horário: manhã e tarde Projeto: Conhecendo o passado: reconstruindo uma história

Data: 11de outubro de 2005 Eixo: Criança ativa

Atividade: Conhecer as brincadeiras.

Objetivo: Brincar com as brincadeiras que os pais dos educandos brincavam quando eram pequenos.

Estratégia: Juntos, organizaremos um calendário para que cada educando fique responsável em organizar uma brincadeira que seus pais brincavam, para apresentar com grupo, sendo o recreacionista. Estas brincadeiras acontecerão sempre no final da oficina, toda as semanas.

Meta: Organizar o calendário das brincadeiras.

Manhã: 15

Número de Educandos: Tarde: 14

Avaliação: Manhã: organizamos as datas das brincadeiras e as pessoas que serão responsáveis pelas mesmas. Com o grupo da tarde a atividade também foi muito boa e a divisão das brincadeiras foi muito divertida. Todos participaram.

Identificamos neste plano, o valor que é atribuído ao conhecimento

vivido pelos educandos e seus familiares, com o espaço para que possam

trazer suas contribuições. Na prática da educação sócio-comunitária, na qual o

educador também vai aprendendo no processo de ensinar, percebemos a

metodologia desenvolvida de forma lúdica e atrativa.

Dentre os registros que analisamos, encontramos no relatório trimestral

dos educadores, a seguinte narrativa sobre o trabalho do Centro de Pesquisas:

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Conforme nossa proposta pedagógica, demos início neste período ao Centro de Pesquisa. Para esta fase, o objetivo primeiro é levar as crianças/adolescentes a sentirem o gosto pela pesquisa, desenvolvendo o espírito investigativo e questionador. Por isso, os temas foram escolhidos por lês. Fiquei com a pesquisa sobre Artesanato, com um grupo da manhã e Saúde Geral com um grupo da tarde. Os dois grupos formados somente por meninas, sendo que o de artesanato envolveu 11 meninas, entre sete e 17 anos, e o de Saúde Geral envolveu apenas quatro meninas, três de sete anos que recém iniciaram no projeto, a suplente da secretaria de saúde, de nove anos e a secretaria de saúde, de 11 anos. Foi uma experiência excelente! Tivemos oito encontros de 40 minutos, nos quais foi possível realizarmos pesquisa em livros, revistas e internet. Também realizamos pesquisa de campo (só a turma de artesanato), entrevistando artesões de Carapicuíba. Ao final os grupos elaboraram cartazes para apresentar os resultados das pesquisas e esses resultados serão apresentados no início do mês de julho, durante roda geral. No próximo semestre continuaremos com temas propostos por eles (Educadora J.S. Junho/2004).

O registro das atividades tanto nos planos pedagógicos, quanto nos

relatórios, mostram um trabalho desenvolvido dentro da concepção de uma

educação freireana, que valoriza a capacidade criadora de cada educando e os

leva ao encontro de seus próprios talentos, proporcionando-lhes em cada

atividade a permanente busca pela emancipação e autonomia.

Tal constatação nos ajuda a perceber as possibilidades de, em nossa

ação concreta, atuarmos na resistência à pedagogia da hegemonia,

confirmando a tese de Paulo Freire para quem a chave para a educação é o

educador consciente e crítico que sabe que a educação é instrumento de

inclusão social e mais que isso, é um caminho para a formação e para a

transformação da realidade vivida.

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3.6 – Intervir para transformar a realidade

Os educandos do Formação Carapicuíba, já dissemos anteriormente,

são oriundos de uma comunidade que vive em absoluta pobreza, são privados

de direitos básicos dentre os quais, espaço e condições para o ser criança.

Ente a avenida e a linha do trem, apenas uma passarela construída para

passagem de pedestres lhes serve como área para as brincadeiras da infância.

Volto a este assunto para destacar, entre os documentos do projeto

pesquisado, um relato que mostra uma forma concreta para transformar a

realidade vivida.

Durante o mês de agosto, realizamos a confecção de ‘máscaras’ de papel, que são matrizes utilizadas para reproduzir uma mesma imagem infinitas vezes. Antes de sair à rua, porém, exercitamos a técnica do graffiti nas paredes da Galeria, e o excelente resultado foi apresentado no Sarau que aconteceu no início de setembro. O trabalho coletivo foi realizado pelos grupos da manhã e da tarde, e primou pelo respeito que os jovens demonstraram pelo trabalho dos colegas. Essa mostra ficará em cartaz até o projeto Casa Aberta6, previsto para novembro, mas a ela serão agrupadas exposições dos trabalhos realizados pelos grupos Criança Ativa e Estação Adolescer, que serão apresentadas nos próximos saraus. A intervenção urbana propriamente dita, iniciou-se com um trabalho na passarela da estação Santa Terezinha (estação de trem). (...) começou a ser executado no dia 15 de setembro, com a construção dos graffitis no muro da passarela da estação. O tema do trabalho é a linguagem do graffiti, e por ser um trabalho coletivo, a heterogeneidade de estilos é determinante para a consistência da obra. Os jovens estão muito empolgados com esse trabalho e o seu envolvimento tem resultado num trabalho de qualidade artística muito boa, o que reflete na opinião dos usuários da passarela e dos trens, bem como dos funcionários da estação, e dos próprios jovens que reconhecem o valor de sua atuação e de seu trabalho.” (M.V.P. Arte-educador – outubro/2005).

6 Exposição realizada no encerramento do ano letivo, conhecido como Feira de Ciências nas escolas de

educação formal

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A empolgação dos jovens relatada pelo educador comprova o aumento

da auto-estima pela possibilidade de intervir na realidade de forma lúdica. É

interessante ressaltarmos que eles estavam intervindo dentro de sua própria

comunidade, num espaço antes pichado e mal conservado. Um dos fatores que

nos parece ter interferido para o resultado positivo da atividade foi o

reconhecimento da própria comunidade que reconheceu a mudança para

melhor e a efetiva contribuição do grupo.

A figura 15 flagra um dos momentos da atividade na passarela e chama

nossa atenção a concentração dos jovens durante o trabalho.

Figura 15: Oficina de Graffiti na passarela Fonte: Acervo Pessoal – 2005

Uma vez mais recorremos às contribuições de Paulo Freire que estamos

com os homens, deles jamais desacreditou, podendo por isso construir um

legado educacional banhado de esperança e amor.

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Uma das coisas mais significativas de que nos tornamos capazes, mulheres e homens ao longo da longa história que, feita por nós, a nós nos faz e refaz, é a possibilidade que temos de reinventar o mundo e não apenas de repeti-lo (Freire, 2000, p.121).

Figura 16: Grafitti na passarela Fonte: Acervo pessoal – 2005

Quando o jovem segura a máscara de graffiti, como vemos na figura 16,

para seu colega trabalhar, exercita a cooperação, a espera pelo outro e o

respeito ao colega. Neste trabalho não somente ocorre o crescimento pessoal

como também acontece o desenvolvimento da sensibilidade, permitindo

retomar a humanidade por vezes distante.

A guisa de considerações finais do nosso trabalho de pesquisa,

percebemos que a educação como exercício dialógico, respeitando e

envolvendo o educando em ações concretas planejadas para ajudá-lo a

avançar em seu desenvolvimento, atinge o íntimo de cada ser envolvido, tanto

o educador, quanto o educando e ao experienciar outro modo de se relacionar

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com o mundo e com o outro, cada sujeito vai se transformando num processo

de retomada da própria humanização.

Paulo Freire (2002) considera que a educação não pode tudo, mas pode

alguma coisa, assim, a experiência pesquisada mostrou-nos um pouco do que

é e educação pode realizar.

Assim como acontece quando o circo é desmontado e vai embora da

cidade na qual estava instalado, deixando na alma das crianças as marcas do

espetáculo vivido, também o Formação Carapicuíba, deixou de funcionar

dentro da proposta educativa que analisamos neste trabalho, mas, certamente

deixou suas marcas no coração e na mente de todos os que participaram de

sua existência.

Graciani (2001) afirma que

Essa pedagogia concebe o homem como ser capaz de assumir-se como sujeito de sua história e da História, como agente de transformação de si e do mundo e como fonte de criação, liberdade e construção dos projetos pessoais e sociais, numa dada sociedade, por uma prática crítica e participativa. Pressupõe-se que o mundo é, ao mesmo tempo, produtor e produto do homem, e que, ao transformá-lo, engendra em si mesmo sua própria transformação, num processo dialético contínuo e permanente (Graciani, 2002, p. 310).

A experiência vivida pelos educadores sociais que participaram deste

projeto, ainda poderá fornecer contribuições para as práticas educativas não

somente da educação não-formal, como para a educação formal, pois

acreditamos que os projetos pedagógicos desenvolvidos podem ser realizados

em qualquer espaço educativo, requerendo para isso o envolvimento e o

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comprometimento dos educadores numa proposta de educação que leve o

sujeito a tornar-se, de fato, sujeito de sua própria formação.

Quando Olhamos para nossa história, encontramos a situação da

infância pobre do nosso país relegada a viver nas periferias dos grandes

centros urbanos, sem condições para desenvolverem-se como seres humanos

em sua totalidade. E neste quadro histórico percebemos a total ausência de

políticas públicas que realmente transformem esta realidade.

Talvez todo trabalho desenvolvido no Formação Carapicuíba tenha sido

muito mais formador e transformador para os educadores. Talvez tenha

conseguido atingir significativamente algumas famílias, ou quem sabe, apenas

poucos educandos. De qualquer forma, acreditamos que a lição que fica é a

possibilidade de fazer diferente. Permitir que a criança e o jovem participem

ativamente de todo o processo e assim sintam-se pertencentes e também

comprometidos.

Por que chega ao fim um projeto como este? É um pergunta que insiste

em retornar à nossa mente e nos leva a pensar que iniciativas particulares

como esta, surgem e surgirão país afora, porém, serão sempre realizações

sazonais enquanto não forem assumidas como política pública.

Fica um gosto amargo de fim e uma imagem que vai se esvaindo na

dinâmica da vida.

As organizações e instituições sociais vêm ganhando espaço no cenário

nacional e esse crescimento chama a atenção do capital que nos parece ter

encontrado no chamado terceiro setor, um “nicho” de mercado muito

interessante. Assim, vemos surgir a “Responsabilidade Social” das empresas

como um colete salva-vidas no mar das concorrências de mercado.

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Groppo (set./2007, p. 143-145) afirma que "a Responsabilidade Social

empresarial” está articulada com um novo padrão de intervenção social

proposto por um suposto “Terceiro Setor” e que esta práxis do empresariado

realiza diversas "torções semânticas" na busca de legitimar sua atuação diante

dos problemas sociais das camadas populares. "Torções que acabam

transmutando o valor de uso da solidariedade no valor de troca da

Responsabilidade Social, mercantilizando e despolitizando o espaço público de

intervenção contra a desigualdade e a exclusão social".

E novamente nos perguntamos: Por que chega ao fim um trabalho de

educação sócio-comunitária, como ocorreu com a unidade pesquisada neste

trabalho de dissertação de mestrado? Será que esse “nicho” deixou de

interessar? A quem?

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na experiência educativa apresentada, tanto como educadora social,

quanto como pesquisadora, tivemos a oportunidade de acessar um amplo

panorama sobre a prática da educação sócio-comunitária, sua abertura, suas

limitações e suas possibilidades.

Sabemos que uma sociedade se forma pela existência de pessoas. A

história da humanidade mostra a evolução das sociedades que surgem no

homem primitivo e chega à era da tecnologia digital. A princípio o

desenvolvimento é lento, e no último século saímos da locomotiva, “maria-

fumaça”, e chegamos ao foguete supersônico, uma evolução que beneficiou o

ser humano com as conquistas das ciências de todas as áreas do

conhecimento. Entretanto, justamente neste panorama de grandes avanços e

transformações deslumbrantes, encontramos o grande paradoxo da negação

da humanidade a milhões de seres humanos excluídos deste desenho.

Muito sobre nossas primeiras indagações foi se confirmando ao longo da

retrospectiva feita neste trabalho, acerca da práxis educativa pesquisada.

Diante dos desafios do trabalho com os meninos e as meninas do

projeto analisado, observamos o comprometimento dos educadores, seu

empenho em buscar as melhores práticas e sua preocupação com a realidade

social, reconhecendo a busca por superar uma visão cristalizada que se tem

sobre a prática da educação não-formal. Busco as palavras de Caro para

contribuir com esta afirmação:

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Até há pouco tempo, também a Educação Social tinha compartilhado uma certa situação de marginalidade dentro da classe da Pedagogia. Era comum que quem trabalhasse com os marginalizados fosse, por sua vez, marginalizado pela pedagogia oficial e acadêmica. Mas continuam sendo os “parentes” pobres da pedagogia, pela sua forma “artesanal” de atuar e de produzir conhecimento (Caro, s/n).

Assim, reconhecemos o avanço ocorrido no trabalho educativo

observado que saindo do mundo assistencial, avançou para o mundo dos

direitos, buscando nele se firmar.

Entendemos que a práxis educativa, objeto de nossa pesquisa, esforça-

se por romper com a concepção ingênua da educação, levando os educadores

envolvidos a compreenderem sua atuação na dimensão social da formação

humana e levando-os a reconhecer o educando enquanto ser que pensa e que

possui uma identidade própria.

Ao iniciarmos nosso trabalho de pesquisa, fomos em busca de desvelar

o tipo de conhecimento que é possível construir na prática da educação sócio-

comunitária e quais as contribuições dessa prática na construção da autonomia

e emancipação dos sujeitos nela envolvidos. Investigando também como

articular a construção da identidade individual e da identidade coletiva e a

existência ou não da possibilidade de autonomia social sem a autonomia

individual, procurando ainda desvendar o papel do educador neste processo e

reconhecer os princípios norteadores.

Assim, chegamos aqui reconhecendo como lição que fica a de que o

conhecimento pode ser construído tendo como base o reconhecimento de que

somos sujeitos históricos e, portanto fazedores de nossa própria história.

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Identificamos os princípios norteadores de uma educação capaz de

conduzir o sujeito neste caminho, os princípios freireanos de Amor, Humildade,

Fé, Confiança, Esperança, Solidariedade, pressupostos indispensáveis ao

fazer a educação como prática de liberdade.

Iniciamos essa pesquisa com a hipótese de que a educação sócio-

comunitária tem a seu favor a possibilidade de trabalhar com um currículo

formativo que traz como objetivo maior educar para a vida, resgatar a

humanidade perdida no embrutecimento da sociedade individualista de nossos

tempos. Ao percorrermos as experiências do trabalho educativo desenvolvido

no período de 2003 a 2006, no Formação Carapicuíba, unidade de Educação

não-formal, ou social, ou ainda sócio-comunitária que investigamos, fomos

comprovando essa hipótese.

Pensar numa proposta curricular que eduque para a vida é pensar em

um currículo com dimensões imensuráveis. As palavras de Rosito (2002)

parecem dar um bom suporte ao que estou falando.

Essa é uma proposta que não tem fim em si mesma, deve ser uma luta constante, enquanto existir ser humano, que faz História, que tem uma historicidade e a capacidade de metamorfosear-se. Enquanto viver, há de lutar pela educação como um bem para todos. É precioso tocá-lo na sua interioridade (Rosito, 2002, p. 161).

Enquanto me debruçava sobre este trabalho, à medida das leituras, das

reflexões, fui percebendo o ganho pessoal para minha vida, para minha

formação humana. Na verdade, ao buscar respostas para as questões

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levantadas inicialmente, muitas outras foram aflorando, porque meus olhos

foram sendo iluminados por uma outra visão de mundo.

Neste percurso pudemos constatar que a construção da identidade

individual passa pelo regaste de história de vida e que, percorrer os caminhos

das histórias de vida torna-se um processo libertador do sujeito que ao se

reconhecer, descobre suas capacidades mais profundas e desenvolve um

sentimento de respeito e valorização de si mesmo.

Nossa constatação acerca do resgate da sensibilidade humana pelo

caminho da arte, indica igualmente a possibilidade de construção de uma

identidade coletiva a partir da identidade individual e mostra que a construção

do vínculo educador - educando é fator fundamental para a superação do

estado de alienação desumanizante.

Como um dos instrumentos para melhor a auto-estima e trabalhar a

responsabilidade das crianças e dos jovens envolvidos, a co-gestão do projeto

pesquisado, mostrou que quando convidado a fazer parte, quando convidado

ao diálogo, sentindo-se respeito e amado, é possível o comprometimento

individual e coletivo e quando existe este sentimento, também existe o cuidado

e o respeito ao outro e ao espaço, resultando na conservação de tudo quanto

envolve o lugar ao qual os educandos pertencem.

E é esse sentimento de pertença que também surge quando os

educandos constroem suas próprias regras de convivência, decidindo com os

educadores, fazendo parte das soluções.

Como outro aspecto extremamente relevante da pesquisa, o espaço de

formação e auto-formação dos educadores, tanto nas oportunidades de

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estudos, quanto nas discussões de casos específicos dos educandos,

procurando por soluções e ajudando-se mutuamente num processo dinâmico.

Toda prática educativa requer dedicação, comprometimento e entrega

total daqueles que se dispõe a desenvolvê-la. È um permanente exercício de

dar e receber, de afetar e ser afetado pelo outro. O educador é um ser que

deve ser coerente em sua prática, estando atento para pesquisar e estudar,

dedicando-se ao planejamento das atividades e, portando, sempre buscando

desafiar seus educandos provocando-os a crescerem descontruindo conceitos

e reconstruindo com base em novos paradigmas e horizontes mais amplos.

O educador social deve estimular e possibilitar o quanto possível a seus

educandos, o acesso à cultura, educando assim a sensibilidade, a estética do

olhar que enxerga além da superficialidade das coisas. Deve também, como

fizeram os educadores do projeto analisado, proporcionar aos educandos

chances de pesquisar para que, pouco a pouco, tomem gosto em trilhar

caminhos pela busca de conhecimentos.

O conhecimento tem diferentes caminhos e cada educando percorre o

seu, cabe então ao educador identificar os caminhos e auxiliá-lo a avançar

sempre percebendo o momento certo para intervir.

Nosso desejo é de que este trabalho não se esgote aqui, mas que possa

avançar somando a tantas outras experiências bem sucedidas da práxis da

educação sócio-comunitária que tem muito a dizer e muito pode contribuir para

transformar a realidade da educação brasileira.

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ANEXOS

1. Discurso da Coordenadora da Unidade Formação Carapicuíba durante

cerimônia de posse da Prefeitura Mirim – 2005

2. Discurso da Prefeita Mirim Eleita – 2005

3. Certificado entregue aos eleitos em abril de 2005

4. Carteirinha de Fiscal das eleições criado pelos educandos

5. Título de Eleitor Mirim – criado em processo de concurso entre os

educandos

6. Fotografias do processo eleitoral

7. Fotografias de apresentações artísticas e oficinas

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Assembléia Mirim

Comissão da Prefeitura Mirim

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Reunião de Comissão da Prefeitura Mirim

Secretário de Esporte e Suplente preparando pauta de Assembléia

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Comissão preparando discursos sob supervisão de educadores

Educadores com Prefeito Mirim e Vice após cerimônia de posse

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Candidata responde perguntas durante debate com educandos

O educando confere o título de eleitor antes do colega votar

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Os educandos-eleitores assinam e recebem comprovante da votação

Mesmo os grupos menores ganham a mesma atenção

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O grupo de Percussão formado pelos educandos apresenta-se na comunidade

Apresentação do Grupo de Capoeira durante Sarau

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Grupo de Jazz

Grupo de Balé Clássico ensaiado por profissionais voluntários

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As Bailarinas do Sol – Dança do Ventre

Adolescentes apresentam peça de teatro – Os sete anões

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Ateliê de Artes grafitado pelos educandos

Exposição de Graffiti na Galeria de Artes do Formação Carapicuiba

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Parte interna da Galeria

Intervenção na passarela da Estação Santa Terezinha da CPTM – Companhia

Paulista de Trens Metropolitanos

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