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O Senhor Bom Jesus de Barcelos: das origens do fenómeno religioso à construção do actual templo Artigo publicado na Barcelos Revista Joaquim Alves Vinhas Breve introdução Pensa-se que no dia 20 de Dezembro de 2004 se completaram quinhentos anos de culto ao Senhor Bom Jesus da Cruz. A casa que lhe serve de morada, pela sua qualidade arquitectónica e artística, ombreia com os melhores exemplares da arte sacra nacional. Razão suficiente para se reconhecer a sua importância na história local de Barcelos.

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Page 1: O senhor da cruz   das origens do fenómeno religioso à construção do actual templo - artigo para a br

O Senhor Bom Jesus de Barcelos: das origens do fenómeno religioso à

construção do actual templo

Artigo publicado na Barcelos Revista

Joaquim Alves Vinhas

Breve introdução

Pensa-se que no dia 20 de Dezembro de 2004 se completaram quinhentos anos de culto

ao Senhor Bom Jesus da Cruz. A casa que lhe serve de morada, pela sua qualidade

arquitectónica e artística, ombreia com os melhores exemplares da arte sacra nacional.

Razão suficiente para se reconhecer a sua importância na história local de Barcelos.

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Na verdade, ninguém poderia imaginar uma história de Barcelos das épocas Moderna e

Contemporânea, sem a significativa presença do Senhor da Cruz, isto em vários

domínios: o religioso em primeiríssimo lugar, certamente, mas também o artístico, o

sócio-económico, o cultural.

O templo que podemos observar junto ao Largo da Porta Nova apresenta-se aos olhos

de quem vem à cidade como um magnífico cartão de visitas, o ponto alto de uma

estadia enriquecedora, quer para o simples devoto e romeiro, quer para o forasteiro, o

curioso e o intelectual.

Classificado como imóvel de interesse público em 6 de Dezembro de 1958, o templo do

Senhor da Cruz foi concebido nos inícios do século XVIII, dando-se corpo à ideia que

se vinha a impor desde o século XVII. Inaugurado em 1710, esta igreja apresenta-se-nos

como um exemplar da arquitectura religiosa de excelente qualidade, não fosse o autor

da sua traça João Antunes, um arquitecto de relevo ao serviço do reino. Tem pois quase

trezentos anos esta igreja, este espaço de oração e de fruição estética, este emblema de

Barcelos!

Espaço religioso, onde a fé de muitos ali vai alimentar-se, qual alento das almas

piedosas, qual alívio das cruzes de tantas vidas desditosas e enegrecidas, o templo que

se nos apresenta aos olhos do corpo e da alma afirma-se igualmente como um lugar de

acolhimento e de abrigo de um interessante e valioso espólio cultural e artístico que

urge defender e preservar.

As pedras claras do granito acinzentado pelo uso e pelo tempo, as alfaias e paramentos

da liturgia, as sacras e crucifixos arrumados, as imagens dos santos e do Senhor da

Cruz, os altares e retábulos de talha dourada, os panos de azulejo azul e branco, as telas

de pinturas (algumas a clamar restauro), os castiçais e os anjos lampadários, os lustres e

os livros velhos… contam-nos a história, ainda que profundamente incompleta, dos

cerca de quinhentos anos que se comemoraram em 2004.

Inscrição do século XVIII, junto à entrada

principal, alusiva à primitiva edificação dos

finais de 1504.

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Origens da devoção ao Senhor da Cruz em Barcelos

Tudo começou em 20 de Dezembro de 1504, quando um humilde sapateiro da vila, João

Pires, foi bafejado pela dádiva divina: uma cruz dada aos seus olhos crédulos! Analisada

e ampliada a crença, por vontade do povo devoto devidamente enquadrado pela elite

local, o milagre do aparecimento da cruz não deixará de multiplicar-se e gerar

fenómenos de índole sociológica, económica e artística de apreciável envergadura.

Para assinalar a sua importância e autenticidade, o divino acontecimento terá mesmo

sido registado em escritura pública, a fazermos fé nas certidões de 1638 e 1662, sobre a

existência de um livro de notas muito antigo, onde o milagre se teria fixado.

É de notar que o referido livro existiria, na data de 1638, há mais de 130 anos, segundo

se depreende de um requerimento da confraria então elaborado, pelo que o instrumento

Escultura que se venera no templo do Senhor Bom

Jesus da Cruz, de provável oficina flamenga dos

inícios do século XVI.

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do milagre foi certamente concebido em data muito próxima do tão celebrado

acontecimento, cuja certificação decorreu, efectivamente, da vontade da confraria.

Dizem os mordomos da Confraria da Santa Cruz, desta vila de Barcelos,

sita no arrabalde dela, que em poder de Bartolomeu Machado de Miranda

da dita vila, está um livro de notas muito antigo, passa de cento e trinta

anos, no qual está escrito, e lançado na dita nota um milagre, que Nosso

Senhor obrou na ermida de Santa Cruz, onde está Sua imagem com a cruz

às costas; tem o dito livro em seu poder, por ficar de seus antepassados, por

razão de se não perder, e para a juntar a outros papéis de milagres, que

aconteceram na dita ermida, lhes é necessária uma certidão em público, e

modo, que faça fé, com o teor de verbo ad verbum dela, e para mais fé de

verdade, que seja vista a dita nota diante de dois tabeliães do público e

judicial, o mais autêntico, que possa ser. Pedem a vossa mercê lhes mande

passar a dita certidão, e receberão mercê, e justiça1.

Da certidão passada em 7 de Maio de 1638, pode ler-se a seguinte passagem:

Saibam os que este público instrumento de fé, e do testemunho do santo

milagre, virem, que no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo,

de mil, e quinhentos, e quatro, sexta-feira, vinte dias do mês de

Dezembro, à hora de nove horas, pouco mais, ou menos indo o muito

honrado Diogo da Costa, escudeiro de el-rei, e juiz ordinário em a dita

vila de Barcelos, pela Rua Direita da dita vila, e chegando comigo

tabelião ante as portas de Pedro Machado, outrossim escudeiro, vinha

João Pires sapateiro pela dita rua, que vinha da ermida do Salvador, em

que há pelo dito dia uma missa em reverência, e louvor das Chagas de

Nosso Senhor Jesus Cristo, e disse ao dito juiz e a mim tabelião, que

fossemos ver, e guardar uma cruz, que demonstrava um grande santo

milagre, que estava junto da cruz aos carvalhos do Campo da Feira2.

1 Documento transcrito por Frei Pedro de Poiares, publicado no seu Tratado Panegírico em Louvor da

Vila de Barcelos, pp. 60-61. 2 Idem, pág. 61.

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Em 22 de Junho de 1662 outra certidão foi emitida, desta vez pelo padre Manuel

Pinheiro Lobo, notário ligado à corte da arquidiocese de Braga e vigário da igreja

paroquial de S. Salvador de Quiraz. Mas pelo menos um terceiro documento foi

elaborado, em 2 de Setembro de 1872, certificando a veracidade da certidão de 1662,

parecendo tratar-se também da necessidade de dar crédito e consolidar a crença num

milagre que nem sempre colhia a unanimidade de opiniões.

De resto, neste esforço de provar a autenticidade não de um mas de múltiplos milagres,

participaram intelectuais e estudiosos católicos dos séculos XVII a XIX, como Frei

Pedro de Poiares, António de Vilas Boas e Sampaio, Joaquim Domingos Pereira,

Amaral Ribeiro, entre outros.

Na sequência do tão excelente e público milagre de 1504, os notáveis da vila, com o

povo atrás em procissão e em dádivas, trataram de imediato de celebrar o acontecimento

e de providenciar um abrigo para o Santo Cristo que aos barcelenses quinhentistas

resolveu bafejar com a sua divina cruz.

De facto, conforme pode ler-se nas certidões referentes à escritura do milagre, para além

de participarem na procissão solene que então se realizou, todos os fiéis cristãos e

devotos com muita devoção ofereceram o que lhes bem parecia de sua fazenda

prometendo todos dádivas de dinheiro para a dita casa.

Nascia o culto e a primeira capela em honra do Senhor Bom Jesus da Cruz de Barcelos!

É de salientar a legalização do acontecimento divino, que fora publicamente

testemunhado, em primeiro lugar por personalidades de relevo, nomeadamente pelo juiz

e escudeiro real Diogo da Costa, por Pedro Machado, também escudeiro, e ainda por

Pedro Álvares, contador, para além do tabelião responsável pela elaboração da escritura

Gravura do século XVIII, reproduzindo a

imagem que se venera no altar do Senhor

Bom Jesus da Cruz, segundo se crê, desde

1505.

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pública. No mesmo dia, porém, os moradores da vila e circunvizinhos terão participado

da visão do milagre.

Havia que sacralizar o sítio. Por isso, no mesmo dia à tarde, no desfecho de solene

procissão que contou com a participação de toda a sociedade local – clero, nobreza e

camadas populares –, ter-se-á plantado uma cruz de madeira de apreciáveis dimensões,

ali bem junto da vera cruz, entretanto rodeada por uma simples estrutura de pedras.

O culto ao Divino Salvador ganhava uma nova dimensão, em torno de uma moderna e

famosa cruz, miraculosa, ali junto ao antigo souto de carvalhos, nas imediações do

Campo da Feira.

O aparecimento da cruz ter-se-á repetido, não apenas nos dias e anos que se seguiram

mas no decurso de vários séculos.

Há depoimentos de personalidades de relevo dos séculos XVII a XIX que atestam a

veracidade do aparecimento, não de uma, mas de várias cruzes, em diversos momentos

ao longo do ano, com particular incidência pela Invenção da Santa Cruz, evocada a 3 de

Maio e pela Exaltação da Santa Cruz, que se festeja a 14 de Setembro.

Este assunto, porém, o das aparições, não era consensual. Assumindo o estatuto de

testemunha ocular e cronista imparcial, e recusando a tese do padre Carvalho da Costa

de que as cruzes miraculosas duravam apenas cinco ou seis dias, Amaral Ribeiro

sustentou, em 1867, que algumas das referidas cruzes térreas e enegrecidas, começavam

Templo do Senhor Bom Jesus da Cruz, visto do cimo da Avenida

da Liberdade.

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a aparecer em meados de Abril, vindo a desvanecer-se apenas nos finais de Setembro,

enquanto outras permaneceriam mais ou menos visíveis durante todo o ano3.

Os barcelenses assistiam assim a uma espécie de milagre da multiplicação de cruzes,

não apenas junto ao templo do Senhor Bom Jesus, que entretanto se fundou, mas em

vários espaços do arrabalde da vila, nomeadamente no Campo da Feira e no Campo de

S. José.

Aliás, na sua multiplicação, o fenómeno afastou-se do epicentro e, em pleno século XX,

atingiu várias freguesias de Barcelos, entre as quais as de Lijó, Góios, Remelhe e

Carvalhal, freguesias onde na sequência de milagres semelhantes se levantaram capelas

em louvor da Santa Cruz4.

Numa inscrição epigráfica, gravada na actual igreja na década de 1730 pode ler-se:

Em 20 de Dezembro de 1504, numa Sexta-feira, pelas 9 horas do dia,

apareceu neste lugar a primeira cruz, que, cercada com uma pequena

capela, veio a servir de solo ou altar do Senhor com a cruz às costas, em

honra do qual o mesmo século, para memória sempiterna, com esmolas e

expensas públicas, erigiu este templo.

3 RIBEIRO, A. M. do Amaral – Notícia Descritiva da Mui Nobre e Antiga Vila de Barcelos, pp. 68-69.

4 TRIGUEIROS, António Júlio Limpo e outros – Barcelos Histórico Monumental e Artístico, p. 28.

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Tornando ao século XVI, parece-nos incontornável que os milagres da Santa Cruz

seguiram o rumo da expansão marítima, comercial e colonial. E com ela viajou o culto

ao Senhor Bom Jesus de Barcelos.

Com as naus quinhentistas, o milagre de Barcelos ganhou fama e galgou as águas do

Atlântico… Ao longo de toda a Época Moderna, o Senhor Bom Jesus da Cruz não

cessou de se propagar, quer no território continental, quer ultramarino.

Inequívoca foi a sua presença na colónia portuguesa do Brasil, nomeadamente na Baía,

Pernambuco, Rio de Janeiro e S. Paulo, cidades onde se recrutaram como irmãos

centenas de crentes oriundos de muitas e desvairadas terras da metrópole.

Com a data de 15 de Junho de 1730, existia mesmo um rol das pessoas que se

assentaram por irmãos num livro da Irmandade implantada no Brasil, sob a

responsabilidade do irmão António Pereira Lopes.

Na sequência do milagroso aparecimento da cruz em 20 de Dezembro de 1504 emergiu

na vida dos barcelenses uma nova e poderosa invocação – a do Senhor Bom Jesus da

Cruz – e um culto absolutamente central no quadro histórico da devotio moderna, que

punha o acento na devoção cristológica.

O quadro histórico era no entanto verdadeiramente complexo. Tinha como pano de

fundo a extraordinária abertura ao mundo suscitada pela aventura marítima, comercial e

colonial de portugueses e castelhanos, ao longo dos séculos XV e XVI, bem depressa

alvos da cobiça e da rivalidade de holandeses, ingleses e franceses.

Os valores e práticas da cristandade ocidental eram discutidos e rebatidos, desde os

primórdios do Renascimento, tanto na sociedade em geral como no interior da Igreja,

dando origem a heresias, a perseguições e a depurações.

O Concílio de Trento (1545-1563), ao mesmo tempo que determinou uma Reforma no

interior da Igreja Católica, constituiu, igualmente, uma poderosa resposta da hierarquia

face a todas as heresias, particularmente às da Reforma Protestante, consideradas

ameaçadoras da boa cristandade. Foi uma reforma, sim, mas também uma Contra

Reforma, porquanto ela se dirigia fundamentalmente contra o reformismo protestante. O

Concílio de Trento não impediu, todavia, o aparecimento de mais três igrejas no seio da

cristandade ocidental: a Luterana, a Calvinista e a Anglicana.

É pois neste contexto denso e difícil que se vai acentuando a devoção ao Santo Cristo,

que sem dúvida ganha uma nova centralidade no advento reformista e contra-reformista.

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Afirmava-se o culto ao Bom Jesus! Justamente Aquele que sofreu e morreu na cruz por

pura redenção da humanidade pecadora.

Evidentemente que o fervor religioso frutificou no mundo cristão em geral e no católico

em particular, num ritmo controverso mas imparável e com óbvios reflexos no

panorama cultural e artístico de toda a Época Moderna.

Em Barcelos, quis a piedade popular, devidamente autorizada pela hierarquia

eclesiástica, que a nova invocação recebesse o nome de Senhor Bom Jesus da Cruz.

Estavam criadas as condições ideais para a acentuação fervorosa da Paixão, Morte e

Ressurreição de Cristo.

Aparentemente, na sequência dos milagres das cruzes, que se repetiam anualmente no

chão barcelense, a devoção ao Santo Cristo não cessava de crescer.

Tal crescimento raiava por vezes a excessos, pelo menos aos olhos da cúria de Braga

(para quem a situação parecia escandalosa, não pela fé em si, mas pelos

comportamentos a ela associados), e que por isso tenta impor limites horários ao

exercício piedoso. Pelo menos é o que se infere da visita pastoral de 15 de Julho de

1624, feita pelo arcebispo D. Afonso Furtado de Mendonça.

Considerando nós a muita devoção, que os moradores desta vila têm ao

Santo Crucifixo que está na capela de Vera Cruz no arrabalde da Porta

Nova, havemos por bem revogar quaisquer visitações, em que se mandava –

que não fossem homens ou mulheres fazer oração à dita ermida, ou capela,

Painel de azulejos azuis e brancos, alusivos ao tema da Paixão,

cerca de 1730.

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de certas horas em diante e levantamos quaisquer censuras nas ditas

visitações postas.

Encomendamos, muito especialmente, às mulheres, que fazem visitas à dita

ermida já de noite, se recolham cedo, e quando for possível, procurem

visitar o Santo Crucifixo antes de ser noite5.

Esta aparente compreensão e tolerância de D. Afonso Furtado de Mendonça será bem

depressa repensada pelo seu sucessor, D. Sebastião de Matos e Noronha (arcebispo em

1636-1641), que reafirma o inconveniente que já havia sido detectado no passado por D.

Agostinho de Castro.

Com efeito, no capítulo 25.º da sua visitação, realizada a 26 de Julho de 1637, D.

Sebastião de Matos e Noronha estabelece os limites horários apropriados para a devoção

pública ao Senhor da Cruz.

Por inconveniente, que havia foi proibido por visitação do senhor D.

Agostinho de Castro nosso antecessor, que de noite se não façam visitas à

igreja da Santa Cruz; e posto que o senhor D. Afonso Furtado de

Mendonça, movido da devoção fria, mudasse esta proibição, fomos bem

informados que se usava mal dela; pelo que ordenamos sob pena de

excomunhão maior, que nenhuma pessoa de qualquer qualidade, que seja,

não corra os Passos, nem vá em romaria à igreja da Santa Cruz, desde que

tangerem as Ave-Marias até ser manhã clara, que se possa dizer missa6.

Obviamente, era o carácter profano da devoção ao Santo Cristo que desagradava ao

prelado da arquidiocese. Podemos naturalmente intuir comportamentos inadequados,

quem sabe se exagerados uma vez colocados na boca do povo (e que chegavam aos

ouvidos do arcebispo), por parte de quem frequentava, de noite, a igreja da Santa Cruz e

os Santos Passos. Daí a rotunda proibição do culto nocturno, sem qualquer distinção

social, com a ameaça de excomunhão maior para os possíveis prevaricadores.

5 BMB, Manuscrito do tenente Francisco Cardoso e Silva – Apontamentos para a História de Barcelos,

vol. I, fl. 282. 6 Documento transcrito pelo tenente Francisco Cardoso e Silva, ob. cit., fl. 282v.

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Pretendia-se, e tão-só, evitar aquilo que a pretexto da devoção ao Bom Jesus poderia

acontecer, mormente à luz da escuridão da noite, que poderia propiciar o pecado (a

ocasião faz o ladrão), por isso havia que evitar ocasiões nocturnas e pecaminosas.

De resto, a devoção ao Santo Cristo ou ao Bom Jesus de Barcelos era não só

reconhecida como desejada e estimulada pela hierarquia católica, que desde cedo

instituiu o altar do Senhor da Cruz como privilegiado, concedeu indulgências à sua

irmandade, aos devotos que visitassem o templo e os seus altares, às almas dos irmãos

defuntos quando ali fossem sufragadas.

Datado da Santa Sé em 10 de Junho de 1721, e publicado pela Câmara Eclesiástica de

Braga em 1 de Outubro do mesmo ano, um breve papal destinava-se a que “o altar do

Bom Jesus de Barcelos seja privilegiado”, por um período de 7 anos, implicando que,

toda as vezes que qualquer sacerdote secular ou regular celebrasse missa pelos irmãos

defuntos, tanto nos dias da sua comemoração como em todas as Sextas-feiras, as suas

almas seriam beneficiadas pelas indulgências da salvação.

O Doutor Agostinho Marques do Couto cónego prebendado na Santa Sé

Primacial desembargador e vigário geral, e de presente provisor nesta

Frontal do altar do Senhor da Cruz, 1736.

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corte e arcebispado de Braga pelo ilustríssimo senhor arcebispo primaz

[…]. Faço saber a todo o povo fiel cristão que me foi apresentado um breve

de Sua Santidade concedido aos dez dias do mês de Junho do presente ano

[1721], pelo qual foi servido conceder que o altar do Bom Jesus da Cruz de

Barcelos seja privilegiado, e que todas as vezes que qualquer sacerdote

secular, ou regular nele celebrar missa de defuntos em dia de sua

comemoração ou de seu oitavário, e na Sexta-feira de cada semana pela

alma de qualquer confrade que desta vida passasse unida a Deus em sua

caridade que esta mesma alma alcance indulgência do tesouro da Igreja

pelos merecimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Virgem Maria

Senhora Nossa e de todos os santos, e santas da corte do céu, e seja livre

das penas do purgatório e vá logo gozar da glória de Deus cujas

indulgência concede por tempo de sete anos7.

Para além da dimensão religiosa e funerária – a alimentação da chama piedosa e o

combate às heresias, a salvação pela fé mas também pelas boas obras, que desde o

Concílio de Trento se reafirma e, por isso, havia que assegurar a vida eterna no reino do

céu –, estas indulgências serviam igualmente objectivos de ordem social e política, de

forma a manter coesa e em boa ordem a cristandade, não fosse a Igreja Católica a

principal responsável pela formação e educação de toda a sociedade, incluindo os seus

príncipes e governantes.

Desde as inúmeras obras de arte com um carácter profundamente pedagógico, existentes

em igrejas e conventos, nas capelas e alminhas e noutros espaços públicos, às homilias e

às pregações nos dias festivos e nas procissões; desde os livros e missais aos textos e

documentos dos Doutores da Igreja e dos cronistas, a Igreja Romana surge sempre

como o exemplo a seguir nos planos da vida pessoal, familiar e social.

Vários instrumentos legais, oriundos da cúria romana, atestam o interesse pelo Senhor

da Cruz de Barcelos. Significam, sem dúvida, o incitamento da hierarquia à devoção do

povo católico.

Um exemplo diz respeito ao breve do papa Clemente XII – publicado pela autoridade

eclesiástica de Braga em 30 de Setembro de 1737 –, pelo qual concedeu indulgências

7 AISC, Caixa de documentos diversos dos séculos XVIII e XIX, Edital de publicação de breve papal de

1721.

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plenárias a todos os cristãos católicos, homens e mulheres verdadeiramente confessados

e comungados que participassem na chamada oração das quarenta horas, organizada sob

licença do ordinário da corte arquiepiscopal e a ter lugar “no templo da Confraria de

Nosso Senhor Jesus Cristo da Cruz do Bom Jesus de Barcelos”, com início no dia 1 de

Maio, devendo rezar-se pela paz e concórdia entre os príncipes cristãos, pela Santa

Madre Igreja, pelo combate e “extirpação” das heresias.

Estas indulgências ou graças vigoravam por um período de 7 anos e apenas seriam

obtidas nesta ocasião do ano, o que reforçava a sua importância.

O Doutor Francisco Pacheco Pereira cónego na Santa Sé Primacial

desembargador e vigário geral nesta corte e arcebispado de Braga pelo

ilustríssimo senhor cabido sede vacante primaz das Espanhas. Faço saber

que me foi apresentado um breve de Sua Santidade o papa Clemente

duodécimo nosso senhor ora presidente na Igreja de Deus pelo qual foi

servido conceder a todo o povo fiel cristão assim homens, como mulheres

que verdadeiramente confessados, e comungados por algum espaço de

tempo assistirem à oração das quarenta horas que de licença do ordinário

se fizerem no templo da Confraria de Nosso Senhor Jesus Cristo da Cruz do

Bom Jesus de Barcelos no primeiro dia de Maio, e aí devotamente orarem a

Deus Nosso Senhor pela paz e concórdia entre os príncipes cristãos,

exaltação da Santa Madre Igreja, e extirpação das heresias rezando

algumas orações por cada vez, que isto fizerem alcancem indulgência

plenária, e remissão de todos os seus pecados por misericórdia de Deus, as

quais indulgências concedeu por tempo de sete anos somente, não havendo

para os mesmos fieis cristãos semelhantes graças, em outro qualquer dia do

ano, ou que pela aceitação, admissão ou publicação das presentes se

mandasse coisa alguma ainda que limitada, e por me constar por certidão

do reverendo pároco as não há, mando passar o presente edital de

publicação de indulgências, a que dou e entreponho minha autoridade

ordinária com decreto judicial, e mando se cumpra e guarde como no breve

se contém. Dado em Braga sob meu sinal e selo desta corte aos trinta de

Setembro de mil e setecentos e trinta e sete anos8.

8 Idem, Edital de publicação de breve de 1737.

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Este decreto do Sumo Pontífice foi

confirmado por outro documento que

menciona não um mas dois breves

papais emitidos em 1737 (ambos

negociados na instância judicial

religiosa), no qual se afirma que o

tesoureiro gastou 560 réis no Juízo

Apostólico de Braga, com a expedição

dos dois breves, um que concedia de

novo o estatuto de altar privilegiado ao

do Senhor Bom Jesus da Cruz e outro

a decretar outra vez as indulgências

relacionadas com a oração de 40 horas,

a decorrer nos primeiros três dias de

Maio.

É de salientar que, no mesmo ano, e dando cumprimento a um breve da cúria de Braga,

foi colocada uma banqueta no altar-mor, que custou à irmandade 8.000 réis, para a

colocação do Santíssimo Sacramento. Por outro lado, o velho retábulo do altar do

Senhor da Cruz, bem como o da Senhora das Dores, haviam sido recentemente

substituídos pelos actuais, entalhados ao gosto joanino, por um conceituado mestre

entalhador do Porto.

Outro exemplo é-nos dado pelo breve de

indulgências do papa Benedito XIV, publicado em

2 de Maio de 1749, destinado aos devotos do

Senhor da Cruz de Barcelos. Tinha também

validade de sete anos e concedia aos fiéis de

ambos os sexos – que fossem “verdadeiramente

confessados, sacramentados e arrependidos de

suas culpas”, e visitassem algum dos altares do

templo do Senhor Bom Jesus da Cruz no dia da

Invenção da Santa Cruz, em 3 de Maio, entre o

romper do dia e o pôr-do-sol –, o perdão de todos

os pecados, o que representava uma porta entreaberta para a eternidade.

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Mas para alcançarem esta “indulgência plenária, e remissão de todos os seus pecados”,

os devotos exaltantes da Santa Madre Igreja de Roma deveriam não apenas elevar o seu

pensamento e oração a Deus, mas rezar também pela paz e concórdia entre os príncipes

cristãos, sem esquecer a “extirpação das heresias”9.

O amor a Cristo, que se pregava nos púlpitos das igrejas e nos palanques das procissões,

incitava o povo cristão e católico a não se deixar iludir pelos cristãos luteranos,

calvinistas e anglicanos, a combater os judeus, muitos dos quais escondidos sob a capa

da reconversão e apelidados de cristãos-novos mas que continuavam fiéis ao credo

israelita, a perseguir sem dó nem piedade os adeptos de Maomé.

Desde o Concílio de Trento até ao conturbado século XVIII (mas ele existirá algum

século que não seja conturbado?), alimentar a chama da fé e do fervor religiosos, unir a

cristandade à volta dos seus príncipes educados nos dogmas e ritos católicos e

obedientes à Igreja Romana, e consequentemente combater, perseguir e liquidar os

heréticos, parecem ter sido as palavras de ordem.

O rito, a pregação, a doutrina geralmente versada em latim, o verbo vernáculo da

Companhia de Jesus em acção evangelizadora e o domínio das escolas, pensadas para as

elites, onde se sacralizava a pedagogia do medo, reinante desde a Idade Média.

A Inquisição, ou Tribunal do Santo Ofício, em perfeita sintonia com o Estado absoluto

do Antigo Regime, fazia o resto: prendia, torturava, julgava. E matava tantas vezes. Às

vezes absolvia.

Era, no entanto, tarde demais, porquanto iam florescendo, concomitantes à repressão e

ao totalitarismo, as luzes do pensamento racionalista e liberal, antes de mais na

Inglaterra anglicana (que a grande custo viu nascer os E.U.A.), nos países do norte

europeu e sobretudo em França, onde acabou por eclodir a Revolução de 1789 que

marcou simbolicamente o início da Época Contemporânea.

No último quartel do século XVIII, a Santa Sé há-de confirmar o estatuto de

privilegiado ao altar do Senhor da Cruz, passar novos decretos de indulgências,

estimular o fervor religioso em redor do fenómeno da Santa Cruz e de Cristo, mas

abrangendo também a mãe de Deus, na sua qualidade de Nossa Senhora das Dores.

Nesse sentido, três decretos da cúria romana chegaram a Barcelos, em 1787.

9 Idem, Edital de publicação de breve de 1749.

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O arcediago da arquidiocese de Braga, Pedro Paulo de Barros Pereira, assinou a

publicação de um decreto, em 22 de Julho de 1787, que vem uma vez mais atribuir o

estatuto de privilegiado ao altar do Senhor da Cruz, chegando mesmo a classificar a sua

igreja como colegiada.

Refere, pois, que o papa Pio VI havia emitido um breve pelo qual concedia “que o altar

do Senhor da Cruz da igreja colegiada do mesmo Senhor da Cruz da vila de Barcelos,

seja privilegiado”. Desta vez, o estatuto de altar privilegiado foi concedido a título

perpétuo, concedendo os favores das indulgências a todas as almas sufragadas aquando

da celebração de missas neste altar, “sem as penas do purgatório”.

Na mesma data, em 22 de Julho de

1787, o citado arcediago publicava

mais dois breves da Santa Sé, um dos

quais a instituir igualmente o estatuto

de altar privilegiado ao de Nossa

Senhora das Dores, também com

carácter perpétuo, durante três dias por

semana, designadamente às Segundas,

Quartas e Sábados.

Tal privilégio vinha acentuar a

importância do culto mariano no

templo do Senhor da Cruz, logicamente

associado ao drama da Paixão.

O outro decreto concedia novamente indulgências aos cristãos “verdadeiramente penitentes

confessados e refeitos com a sagrada comunhão”, que visitassem ou viessem a visitar a “igreja

colegiada do Senhor da Cruz” da vila de Barcelos, nos dias da Invenção e da Exaltação da

Santa Cruz, “e também no dia em que se faz a festa de Nossa Senhora das Dores da mesma

igreja”, graça desta vez concedida para todo o sempre.

A que se deveu o epíteto de colegiada?

Para realçar a importância de uma igreja

que mantinha em funcionamento um coro

(com 7 capelães desde 1725, ampliado para

9 capelães e 2 meninos nos finais de 1728)

que cantava nas festividades mais solenes,

Livro do século XVIII, relacionado com a instituição

do coro do Senhor da Cruz.

Page 17: O senhor da cruz   das origens do fenómeno religioso à construção do actual templo - artigo para a br

em conformidade com a prática dos

cónegos da antiga colegiada da vila? Ou

deveu-se simplesmente à forte influência

do prior e de outros cónegos da dita

colegiada.

É preciso não esquecer que, frequentemente, deparamos com o prior e os cónegos da

antiga colegiada a exercerem funções no templo do Senhor da Cruz, quer como juízes

ou elementos da mesa da irmandade, quer como capelães do mencionado coro.

Seja como for, estes três decretos da Santa Sé, emitidos na mesma data, constituíram um

inequívoco quadro legal e institucional no reconhecimento do famoso culto do Senhor

Bom Jesus da Cruz de Barcelos.

Para fortalecer e ampliar a crença dos devotos, reafirmaram-se e actualizaram-se os

privilégios do passado, acrescentou-se ou reforçou-se a dinâmica em redor do culto da

Senhora das Dores, perpetuaram-se os privilégios e as graças que no passado eram

dadas pontualmente, que no máximo tinham a validade de sete anos.

A antiga morada do Senhor Bom Jesus da Cruz

Pouco se sabe acerca das construções anteriores à actual igreja.

A escritura notarial onde se refere a data de 1504, trasladada pelas certidões do século

XVII, explica que logo após o miraculoso aparecimento da cruz (e testemunhado o

fenómeno antes de mais por notáveis da vila – Diogo da Costa, escudeiro e juiz

ordinário, Pedro Alvares, contador, Pedro Machado, escudeiro, Álvaro Pinheiro, fidalgo

e o tabelião que fez a escritura –, mas também por “muita gente da dita vila e fora dela”

que ali acorreu para “ver e adorar a dita cruz”), esta foi cercada por pedras, mas logo se

combinou a edificação de uma capela, atendendo a que toda aquela gente ali reunida, na

presença de muitos outros “homens e governadores da dita vila acordaram ser edificada

uma casa ao pé e lonjura da dita cruz”.

No mesmo dia à tarde ter-se-á organizado uma solene procissão, que deve ter saído da

colegiada em direcção àquele novo chão sagrado – e que contou com o natural

envolvimento de todo o clero local e da Confraria da Nossa Senhora da Misericórdia –,

Page 18: O senhor da cruz   das origens do fenómeno religioso à construção do actual templo - artigo para a br

transportando uma cruz de madeira “muito alta, muito bem feita”, que ali foi colocada

como “divisa e mostramento” do referido milagre.

Os investigadores tradicionais são unânimes na apresentação de um primitivo espaço

assinalado no sítio do primeiro milagre, delimitado por quatro arcos cobertos por uma

abóbada.

Referem que no ano seguinte, um rico mercador barcelense terá trazido da Flandres a

magnífica imagem que integra actualmente o altar do Senhor Bom Jesus da Cruz, pelo

que se tornou necessário, sem dúvida, um abrigo fechado e um espaço mais amplo. Era

forçoso abrigar a Deus, com dignidade.

Por isso, talvez em data não muito distante de 1505, ter-se-á tapado a arcaria dos lados

nascente, norte e poente, e dividido a capela em dois espaços; uma pequena abertura na

parede do poente, com uma grade de ferro, permitia a veneração da imagem alojada na

nave do lado do antigo souto de carvalhos (que no século XIX se há-de encontrar

“adornado com casas dos habitantes do bairro do Bom Jesus da Cruz”); no espaço

oposto, numa segunda nave, colocou-se um altar com seu retábulo, onde se passou a

rezar missa e por onde se entrava pelo arco do lado sul.

Evidentemente que a referência a duas naves e à celebração da missa na nave voltada a

nascente permite-nos imaginar uma capela de razoáveis dimensões, orientada a norte e

com dois portais voltados a sul – um talvez encerrado no dia-a-dia, que dava acesso

directo à novíssima escultura flamenga, e o pórtico que dava acesso ao espaço das

celebrações litúrgicas. Ou seja, em vez de duas ermidas, como parece à primeira vista,

deve ter-se ampliado significativamente o primitivo espaço de culto: construiu-se uma

capela de duas naves, orientada a norte, com dois portais de acesso ao interior.

Esta hipótese é tanto mais verosímil quanto, dizem os estudiosos do passado, em volta

da primitiva ermida construiu-se “uma arcaria coberta com telhado, e sustentada em

colunas de pedra”10

, isto é, deve ter-se edificado a partir da primitiva ermida um templo

de duas naves, ainda que de modestas dimensões, uma reservada à imagem do Senhor

da Cruz e a outra destinada ao funcionamento do culto e ao enterramento de irmãos.

Esta nova capela seria rematada por uma cobertura abobadada, a partir do cruzamento

de uma arcaria – talvez ogival ou goticizante, já que o arco de volta perfeita, “ao

10

PEREIRA, Domingos Joaquim – Memória Histórica da Vila de Barcelos, p. 86.

Page 19: O senhor da cruz   das origens do fenómeno religioso à construção do actual templo - artigo para a br

moderno”, não dera ainda entrada triunfal no gosto português – saída dos pilares que

suportavam o edifício.

Exteriormente, uma arcada em granito justificava-se para suportar o alpendre colocado à

roda do templo. É pois de crer que o primeiro abrigo deu rapidamente lugar a uma

capela de dimensões mais aceitáveis, em conformidade com as necessidades do culto e

com a afluência de um número crescente de devotos que acorriam ao templo.

É que, embora no dia-a-dia fossem sobretudo os devotos da vila e arredores que se

dirigiam à capela (e já não eram poucos), nas festividades mais importantes – a

Procissão dos Passos, no segundo Domingo da Quaresma, a Invenção da Santa Cruz, no

dia 3 de Maio e a Exaltação da Santa Cruz, a 14 de Setembro – participavam devotos

oriundos de variadíssimas localidades.

Particularmente a Invenção da

Santa Cruz, responsável pela

mais famosa das romarias

minhotas – a Festa das Cruzes

que há centenas de anos se

realiza, quase sempre, entre os

dias 1 e 3 de Maio –, mobilizava,

como continua a mobilizar,

muitos milhares de devotos e

forasteiros.

De notar que a feira associada a esta romaria parece ter perdido alguma importância no

século XIX, a avaliar pelas palavras de Amaral Ribeiro, segundo o qual “noutros

tempos”, a feira ligada às festividades das Cruzes fora concorrida por comerciantes de

todo o reino, enquanto na data em que escreve estaria a mesma feira limitada a alguns

ourives, chapeleiros, vendedores de quinquilharias, guarda-sóis e pouco mais.

Em meados de oitocentos, a fraca participação popular e o consequente impacto

negativo nos negócios chegou a limitar a Festa das Cruzes a um só dia.

Na sua reunião de 2 de Abril de 1850, a

mesa da irmandade determinou que a

festa se celebrasse apenas no dia 3 de

Maio, devendo no entanto esta efeméride

da Invenção da Santa Cruz ser assinalada

Festa das Cruzes, 2006.

Pormenor do tapete de flores, visitado por

Page 20: O senhor da cruz   das origens do fenómeno religioso à construção do actual templo - artigo para a br

com a grandeza e a solenidade habituais,

até porque, dizia-lhe a experiência, os

“rendimentos escasseiam sempre que

sem motivo justificado e bem notório se

não faz a festividade das Cruzes com

toda a solenidade e grandeza”.

O que se passava, na realidade, era a reduzida afluência das populações mais distantes,

devido às difíceis condições de acesso a Barcelos, que inibiam a participação de

forasteiros das regiões localizadas a norte e a sul do concelho.

Assim parece ter acontecido durante sete anos, já que na reunião de 3 de Abril de 1857,

a mesa considera conveniente que a festividade de Maio retome a duração de 3 dias,

alegando para o efeito vários motivos: assim estaria determinado nos velhos estatutos,

que tinham entretanto desaparecido; era uma exigência decorrente da tradição; e porque

se achavam “agora prontas e abertas à viação as estradas de Viana e Porto” – aspecto

quanto a nós determinante, porquanto a nova estrutura viária prometia repor o antigo

concurso de gentes na feira associada à Festa das Cruzes.

Para restabelecer a “antiga concorrência”, isto é, chamar de novo à romaria de Barcelos

milhares de forasteiros, elaborou-se um programa aparatoso que incluía, para além da

música instrumental e de vozes (cuja orquestra ficou a cargo do mesário João Diogo da

Silva Cardoso, conforme decisão da mesa de 16 de Abril), o fogo de artifício e “mais

aparatos e festejos fora do templo”, programa que levou à abertura de uma subscrição

pública.

Da antiga capela ao actual templo

A velha capela existente no século XVII, dotada de uma confraria provavelmente desde

os anos que se seguiram ao aparatoso milagre de 1504, acolhia um significativo recheio,

nomeadamente:

A – O mobiliário religioso, a indumentária indispensável ao funcionamento do culto

(paramentaria, toalhas e cortinados) e as alfaias litúrgicas.

Page 21: O senhor da cruz   das origens do fenómeno religioso à construção do actual templo - artigo para a br

B – O retábulo e o altar onde se encontrava a imagem de Cristo com a cruz às

costas, escultura que Manuel Severim de Faria – que terá seguido a História

Manuscrita da Província da Capucha da Piedade, da Ordem de S. Francisco –,

afirma ter vindo da Flandres logo no ano seguinte ao primeiro milagre da cruz: “no

ano de 1505, trouxe um mercador de Barcelos das partes da Flandres esta Santa

Imagem”11

.

C – O andor para sair nas procissões, os instrumentos do martírio e da Paixão de

Cristo e todos os objectos ligados à instalação dos Passos nas principais artérias

intra e extra-muros da vila.

E não deveriam faltar ainda os ex-votos alusivos aos milagres e ao correspondente

cumprimento de promessas, um ou outro relicário, bem como algumas telas e tábuas

com representações pictóricas do drama sagrado.

Apesar da escassez de documentos conhecem-se, felizmente, alguns dos inventários,

nomeadamente os de 1666, 1668, 1669 e 1687.

Conhece-se também um livro, embora de difícil leitura, com registos de receitas e

despesas da segunda metade do século XVII, que nos fornecem algumas pistas para um

melhor entendimento da capela seiscentista.

No inventário de 1666, o escrivão da confraria padre Domingos Carvalho foi

suficientemente minucioso para nos dar uma ideia aproximada da dinâmica em torno do

11

BMB, Manuscrito do tenente Francisco Cardoso e Silva – Apontamentos para a História de Barcelos,

vol. I, fl. 281v.

Imagem relicário que, pela análise estilística, poderá

pertencer ao século XVII, embora não seja referida nos

inventários existentes.

Page 22: O senhor da cruz   das origens do fenómeno religioso à construção do actual templo - artigo para a br

Senhor da Cruz. A descrição pormenorizada do recheio da velha capela era tão

importante que o tesoureiro, Belchior Francisco, declarou que faltava um parafuso no

“lampadário de prata”.

Num ápice, ficamos a saber que havia apenas uma invocação no templo, a do Senhor

Bom Jesus da Cruz (com a imagem dos inícios do século XVI exposta no seu altar, na

nave do lado poente) e que o mesmo era dotado de um retábulo localizado na nave do

lado nascente, espaço onde decorriam os actos litúrgicos e se sepultavam os irmãos

falecidos.

Os inventários do século XVII

No ano de 1666, a Santa Confraria da Vera Cruz era proprietária de um modesto mas

esclarecedor recheio, nomeadamente:

Do arquivo da confraria – Existia o livro dos estatutos, uma bula de indulgências

atribuída pela Santa Sé à confraria (“mais uma pauta engessada em que está trasladada”

a referida bula papal), cinco livros, dois dos quais velhos e três novos – um que servia

para o registo dos confrades, outro para os actos eleitorais da mesa e inventário do

recheio da capela, e outro para registo das receitas e despesas. Neste último, deparamos

com o registo da compra do “livro do estatuto”, pelo valor de 140 réis, neste mesmo ano

de 1666. Para os ofícios do culto divino existiam ainda um missal grande e um manual

bastante usado.

Mobiliário, lampadários, castiçais e alfaias litúrgicas – Existia uma caixa que servia

para guardar o “tesouro” do Senhor da Cruz, uma estante da China, uns armários de

guardar os paramentos, um banco comprido que se encontrava na nave onde se

celebravam as missas, um escabelo, uma caldeira em cobre, uma campainha partida e

uma bacia para a recolha das esmolas, dois lampadários (um de prata e outro de latão),

dois castiçais de estanho e “uns castiçais de prata pequenos”, quatro galhetas (duas de

prata e duas de estanho), dois cálices de prata e duas patenas.

Page 23: O senhor da cruz   das origens do fenómeno religioso à construção do actual templo - artigo para a br

Paramentaria, cortinados e outros – Uma vestimenta, um véu de tafetá com renda,

três alvas e três amictos, um par de cortinas de rede e “umas cortinas de volante”, três

mesas de corporais, cinco frontais de altar (dois de damasco vermelho, um dos quais

usado, outro de cetim preto e outro de damasco tostado, um outro já roto), oito toalhas

de altar, um pano da Paixão de Cristo e um pano do coro para o transporte do guião.

Imagem e andor – Uma imagem de Cristo, na qualidade de Senhor dos Passos, com

“suas túnicas roxas”, com uma cruz e o andor desta imagem.

A referência a uma única imagem do patrono

da irmandade, a conhecida representação do

Senhor Bom Jesus da Cruz – uma bela

escultura flamenga dos inícios de

quinhentos, que se venera actualmente no

seu altar –, logicamente associada ao Senhor

dos Passos, denota bem a centralidade desta

invocação e a importância atribuída

historicamente, pela Igreja e pelos fiéis, à

recriação anual do drama sagrado da Paixão

de Cristo.

Sabemos que as festas da Invenção e da Exaltação da Santa Cruz, em 3 de Maio e em 14

de Setembro, constituíam momentos altos da vida religiosa em torno da antiga capela do

Senhor da Cruz.

Mas as despesas lançadas em livro, de que há registos minimamente legíveis a partir de

1666, denunciam a Procissão dos Passos como o momento mais elevado da vida da

irmandade, quer pelo simbolismo que encerra – trata-se do drama justificativo da Santa

Cruz, com um significado deveras acrescido para todos os que piamente acreditam na

sua aparição em Barcelos –, quer pela espectacularidade que suscita, sempre que o

cortejo processional é posto em movimento.

Page 24: O senhor da cruz   das origens do fenómeno religioso à construção do actual templo - artigo para a br

DESPESAS DA IRMANDADE DO SENHOR BOM JESUS DA CRUZ – 166612

DESCRIÇÃO DA DESPESA RÉIS

Pela porca do sino que um devoto deu de esmola e “pela ferragem que consertou

o mordomo Brás do Vale pelo amor de Deus que se gastou somente com quem

pôs a porca de agarrá-lo”.

90

Por uma corda para o Cristo da Procissão dos Passos. 150

Pelo conserto do taburno que deveria estar junto do retábulo do altar-mor. 230

Pela limpeza do percurso da Procissão dos Passos. 40

Pela aquisição de 4 libras de cera a 520 réis cada. 2.080

Por meio almude de vinho “para curar os penitentes”. 100

Pelo vinho maduro para as garrafas. 132

Aos cónegos e serventes “para coristas das vésperas para dia da festa”. 940

Pela missa cantada, dita pelo cónego António Velho. 200

Pelos juncos das “completas para dia da festa”. 100

Por três quartilhos de azeite “das noites, para dia da festa”. 120

A quem foi buscar e levar os bancos para escabelos. 60

Ao cónego João de Medela, de levar o Santo Lenho na Procissão dos Passos. 200

Aos coreiros pela participação na Procissão dos Passos. 200

Ao sacristão dos ornamentos, pelo ano inteiro. 400

12

AISC, Livro das receitas e despesas do século XVII.

Pormenor da Procissão dos Passos, década de 1990.

Page 25: O senhor da cruz   das origens do fenómeno religioso à construção do actual templo - artigo para a br

Pelo livro do registo das receitas e despesas. 200

Pelo livro “dos assentos da irmandade”. 360

Pelo livro do inventário. 200

Pelo livro dos estatutos. 140

Nos inventários de 1668 e 1669, o escrivão Domingos Carvalho limita-se a acrescentar

algumas peças novas ou as que não tinham sido ainda inventariadas.

Assim, a 6 de Dezembro de 1668, e sendo ainda tesoureiro Belchior Francisco,

mencionam-se:

Um legado pio – Deixado por testamento do mestre de campo Gaspar Pinheiro Lobo,

do qual “tem mais esta confraria cinco mil reis de sobejos de juros de vinte, e cinco mil

réis”, verba que o legatário destinou a uma missa quotidiana, para todo o sempre, e que

a confraria já tinha aplicado em empréstimos a juros. O valor global deste legado era de

500.000 réis.

Cruz, guião, varas e cortinado – Uma cruz de prata “que se mandou fazer” para um

guião, destinada a acompanhar os confrades à sua última morada; um guião roxo, de

damasco, com as suas estampas, cordões e suas borlas de retrós roxo e amarelo; três

varas para os juízes e o escrivão levarem na Procissão dos Passos; e umas cortinas de

linho do altar.

Rendas em géneros – Finalmente, a “santa confraria” recebia todos os anos 19

alqueires de cereais, 13 de milho e 6 de centeio, provenientes dos seus rendeiros.

Page 26: O senhor da cruz   das origens do fenómeno religioso à construção do actual templo - artigo para a br

Em 1669, sendo juízes da confraria Diogo de Vilas Boas Caminha e António de Faria

Carvalho, e tesoureiro o cirurgião Martim Rodrigues Gomes, como que se vai

completando o inventário, com o registo dos novos paramentos e dos “papéis e

escrituras” das décadas de 1650 e 1660:

Paramentaria – Duas toalhas de altar (uma oferecida por António Simões e outra por

Francisco Braga), uma toalha das comunhões, duas mesas de corporais, uma bolsa de

corporais de damasco pardo, três mursas roxas, dois hábitos brancos, dois véus (um

vermelho e um tostado), uma vestimenta de chamelote branco (de lã, com franjas de

retrós carmesim), uma alva nova e rendada e dois cordões novos de cingir a cintura dos

capelães.

Objectos vários – Um diadema novo do Senhor dos Passos, um missal também novo e

encadernado “com pasta da boa”, um candeeiro de três lumes, dois tocheiros, quatro

forquilhas para o andor “com seus encontros” e uma lança do guião.

Escrituras de dinheiro a juros – Seis escrituras inventariadas em 1669 dão-nos conta

de quem recorria aos créditos da confraria, a saber: Miguel Garcia devia 100.000 réis,

através de escritura feita na nota do tabelião Manuel de Faria; Francisco Martins Colaço

60.000 réis, registados pelo escrivão Alexandre Dantas; Luís da Silva 50.000 réis, pela

nota de Baltazar Dantas; a viúva Maria Ribeiro devia 100.000 réis, escriturados no

notário de Luís da Rocha e mais 100.000 na nota de Manuel de Faria. Todos os

devedores residiam na vila de Barcelos.

Finalmente, o inventário de 1669 lança alguma luz sobre os legados pios e sobre a

situação económico-financeira da confraria que, nos séculos XVIII e XIX, há-de tornar-

se numa importante instituição de crédito da vila, como adiante se verá no capítulo

dedicado à Real Irmandade do Senhor Bom Jesus da Cruz.

Por este inventário ficamos a saber da escritura do testamento de Gaspar Pinheiro Lobo,

a favor da Confraria do Senhor da Cruz, feita em 1654 em Lisboa pelo escrivão João da

Guerra, sem se mencionar o montante da doação; porém, mais à frente, o documento

refere a entrega ao novo tesoureiro das escrituras “do dinheiro que anda a juro do mestre

de campo Gaspar Pinheiro Lobo” e que totalizava 500.000 réis.

Somos ainda informados da existência de uma sentença derivada de um processo que a

confraria moveu contra os cónegos da colegiada de Barcelos, processo relacionado com

a apresentação dos capelães “em que se julgou pertencia a apresentação aos oficiais da

dita confraria”. Como se depreende do não dito, deste confronto jurídico pela

apresentação dos capelães do Senhor da Cruz, com os cónegos da colegiada, a mesa da

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confraria saiu certamente perdedora, sendo lavrada a sentença a 11 de Julho 1659

(participaram neste processo o escrivão Luís da Rocha e Andrade, de Barcelos e Manuel

Correia de Faria, “escrivão dos agravos” do tribunal portuense que ditou a sentença).

O livro de receitas e despesas acima mencionado fornece-nos elementos interessantes

atinentes a uma melhor compreensão da capela seiscentista.

As receitas são em geral

oriundas das esmolas em

dinheiro e em géneros

recolhidas ao longo do ano e

com particular incidência nos

dias das principais

festividades, das rendas em

géneros entregues à confraria,

dos enterramentos de devotos

e seus familiares, das jóias

dos novos irmãos admitidos e

dos chamados anuais.

O legado de Gaspar Pinheiro Lobo atrás referido, e o mais expressivo na segunda

metade do século XVII, estava colocado a juros e rendeu em 1669 cerca de 5.000 réis de

lucro, depois dos pagamentos efectuados aos capelães que diziam as missas.

Assim, as capelanias resultantes da instituição de legados eram suportadas pela

administração dos mesmos, entrando os sobejos nos cofres da irmandade ou no circuito

mutualista, podendo ainda servir para o pagamento de despesas, como aconteceu em

1669-1670 quando o tesoureiro declarou ter entregado 5.000 réis dos “juros das missas

quotidianas, que sobejam dos capelães” a Baltazar Francisco, para pagamento do que se

lhe estava a dever “dos gastos que fez no conserto da capela”.

Como se infere das contas da confraria, as despesas destinavam-se aos compromissos

com os capelães que celebravam as missas instituídas pelos legados e a todos os

clérigos que participavam nos actos da liturgia em dias festivos, aos materiais e mão-de-

obra inerentes a obras de reparação na capela e à realização das principais solenidades,

sobretudo a Procissão dos Passos, a Invenção e a Exaltação da Santa Cruz.

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MOVIMENTO DAS RECEITAS E DESPESAS DA IRMANDADE DO SENHOR

BOM JESUS DA CRUZ – 1669-167013

ORIGEM DAS RECEITAS RÉIS DESTINO DAS DESPESAS RÉIS

O tesoureiro recebeu do seu

antecessor.

425 Uma missa celebrada pela alma de

Maria de Miranda.

50

“Covagem” ou enterramento de

um familiar de Páscoa Lopes.

200 A quem levou o guião no funeral

de Maria de Miranda.

20

Enterramento da irmã do Faria. 200 Uma corda para o lampadário. 100

Enterramento do Grilo da Fonte

de Baixo.

160 Uma roldana para o lampadário. 100

Enterramento de uma criança. 100 Missa dita por Isabel, solteira, de

Barcelinhos.

50

Enterramento da filha da

Focinha, que morreu ao nascer.

50 A quem “negociou a bula das

indulgências”, em Braga.

100

Enterramento de uma criança,

da Marreca.

100 Uma libra de cera branca. 550

Enterramento “do negro” de

João de Mendanha.

150 A uma mulher que foi a Salvador

do Campo, buscar o guião.

20

Enterramento da Gazoulha. 200 Ao sacristão, pelo dia da Procissão

dos Passos.

200

Bacias das esmolas.

160

A uma mulher que foi a Braga

buscar e levar “os ladrões e as

murças” para a Procissão dos

Passos.

100

Esmolas do dia da Santa Cruz. 220 Trombeta dos Passos. 400

Esmolas do dia da Santa Cruz. 40 Meio almude de vinho. 120

Esmolas do dia da Santa Cruz. 100 Vinho para as garrafas. 48

Esmolas de 5 libras de estopa. 250 Meia canada de vinho maduro para

a Procissão dos Passos.

24

Esmolas. 340 Meia mão de papel. 25

Esmolas da Procissão dos

Passos.

80 Ao cónego António Velho, de levar

o Santo Lenho.

200

13

AISC, Livro de receitas e despesas do século XVII, fls. 55-56v.

Page 29: O senhor da cruz   das origens do fenómeno religioso à construção do actual templo - artigo para a br

Admissão de novos irmãos. 800 Aos coreiros. 200

Anuais. 1.110 Tingimento de 2 véus para o altar. 40

Esmolas da bacia. 534 A AntónioVelho, pelas “vésperas e

missa da festa”.

200

Enterramento do filho de

Jerónimo do Vale.

100 “Capas e mais aparelho” para o

sacristão.

200

Venda de 7 alqueires de milho e

3 de centeio, deixados por

Maria de Miranda.

960

Aos dois coreiros, das “vésperas e

dia da festa”.

270

Venda de 19 alqueires “de pão

que se paga a esta confraria”.

1.640 Dois feixes de juncos. 40

Dos “juros das missas

quotidianas, que sobejam dos

capelães”*.

5.000

Ao provedor das contas.

640

Total 11.234 Dois anos de missas que estavam

por dizer.

600

* “Declaro que os cinco mil réis deu o

tesoureiro a Baltazar Francisco que se

lhe estavam devendo dos gastos que fez

no conserto da capela com o que está

satisfeito, como consta da paga que deu”.

Uma missa pela alma do Pina. 50

Ao capelão das sextas-feiras. 2.500

Total 6.817

Remate do escrivão:

“Gastaram mais os senhores juízes de sua bolça os gastos de duas pregações dos Passos

e da Procissão, e música dos Passos, e dia da festa e armação do dia e pregação e mais

gastos ordinários que tudo deram de esmola para a dita confraria e de como o disseram

mandaram fazer esta verba que assinaram, e eu o padre Domingos Carvalho o escrevi”.

Os inventários e os registos de contas conhecidos, relativos ao século XVII, dão-nos

uma ideia aproximada do templo seiscentista – um edifício abobadado, com duas

pequenas naves, uma com o seu retábulo e onde decorriam os actos litúrgicos, e outra

que servia de abrigo à veneranda imagem quinhentista.

Page 30: O senhor da cruz   das origens do fenómeno religioso à construção do actual templo - artigo para a br

O retábulo da velha capela, fabricado por certo ao estilo maneirista, deveria incluir

várias telas alusivas ao tema da Paixão. As seis telas de pintura a óleo que se encontram

arrumadas numa das salas do templo, e que merecem um cuidadoso restauro, podem ter

pertencido ao altar do século XVII, conforme parece indiciar o inventário de 1714 ao

referir a existência de “sete quadros já velhos” que saíram de um retábulo. Uma das seis

representa a Virgem com o Menino, as restantes cinco narram-nos aspectos da Paixão

de Cristo.

Nos inícios do século XVIII, o edifício deveria estar a degradar-se e os seus espaços a

revelarem-se insuficientes face ao fervor religioso em torno do Senhor Bom Jesus de

Barcelos.

A sua irmandade, credora do prestígio e importância junto dos devotos da vila e fora

dela, vinha mobilizando vontades desde a década de 1690, que haviam de conduzir à

construção da nova e actual igreja, mais ampla, monumental e moderna, de acordo com

a estética e a mentalidade barrocas.

Uma das seis antigas pinturas a óleo sobre tela, que se

encontram guardadas no templo à espera de restauro.

Page 31: O senhor da cruz   das origens do fenómeno religioso à construção do actual templo - artigo para a br

Nota final

Este trabalho constitui o resumo do primeiro capítulo do livro O Senhor Bom Jesus da

Cruz de Barcelos. Quinhentos anos de História, editado pela Real Irmandade do Senhor

Bom Jesus da Cruz de Barcelos, 2004, mas apresentado a público no auditório da

Biblioteca Municipal de Barcelos no dia 2 de Março de 2005.

Assim, para uma melhor compreensão da história do Senhor da Cruz pode consultar-se

o referido livro, bem como a documentação e a bibliografia nele mencionadas.

Templo do Senhor Bom Jesus da Cruz, 1705-1710.