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estudos semióticos issn 1980-4016 semestral vol. 11, n o 2 p. 56–61 dezembro de 2015 http://www.revistas.usp.br/esse O semissimbolismo na propaganda audiovisual: uma análise de Paint Cintia Alves da Silva * Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar o semissimbolismo existente em Paint, um dos comerciais da campanha Colour like no other, lançada pela Sony para a linha de televisores de LCD Bravia, em 2006. Premiado com o leão de ouro em Cannes, em 2007, Paint surpreendeu tanto por sua complexa produção quanto pelos números que confirmaram o seu sucesso: o aumento expressivo nas vendas do televisor e mais de um milhão de acessos ao site do produto. A megaestrutura envolvida na produção de Paint fez com que o público não somente assistisse a propaganda nos veículos midiáticos, mas também buscasse informações sobre como seria – e se seria – possível um espetáculo de tais proporções sem a utilização de recursos de computação gráfica. Assim, com base nos pressupostos da semiótica plástica, especialmente nas contribuições de Jean-Marie Floch para o estudo das relações semissimbólicas, isto é, dos processos de geração de sentido que se dão a partir da homologação entre o plano do conteúdo e o plano da expressão, pretende-se discutir as implicações entre as expressões plástica e musical na composição da propaganda audiovisual, que resultam em efeitos de sentido de verdade e autenticidade, cujo teor persuasivo mostra-se fundamental ao estabelecimento do contrato fiduciário. Palavras-chave: Semiótica greimasiana, semiótica plástica, semissimbolismo, propaganda audiovisual Introdução Lançado em 2006 pela Sony, Paint é um dos comer- ciais da campanha Colour like no other para a linha de televisores de LCD Bravia. Produzido pela agência Fallon, de Londres, o comercial teve como cenário dois blocos de um conjunto de prédios em Toryglen, distrito de Glasgow, Escócia. Paint foi veiculado internacional- mente na TV, no cinema e na internet, sendo premiado com o leão de ouro em Cannes, em 2007. Os núme- ros também confirmaram o sucesso do comercial: o aumento expressivo nas vendas e mais de um milhão de acessos ao site do produto (Furtado, 2010). A complexidade da produção explica, em parte, o impacto do comercial junto ao público. Furtado (2010) descreve que “Paint precisou de 70 mil litros de tinta, 322 morteiros, 330 metros de canos de aço e 57 quilô- metros de fios de cobre para dar vida a explosões coloridas de proporções gigantescas”. A estrutura necessária à produção do comercial deram à Paint ares de megaprodução, fazendo com que o público não somente o assistisse nos veículos midiáticos, mas buscasse informações sobre como seria – e se seria – possível um espetáculo dessas proporções, ou se tudo não passava apenas de bem aplicados recursos de computação gráfica. A estratégia de marketing da Sony incluiu a divulgação do making of do comercial no Youtube, dada a curiosidade gerada em torno da produção. Neste trabalho, analisamos o comercial Paint com base nos pressupostos da semiótica plástica, parti- cularmente nas contribuições de Jean-Marie Floch para o estudo das relações semissimbólicas, ou seja, dos processos de geração de sentido que resultam da homologação entre o plano do conteúdo e o plano da expressão. Esta análise tem como objetivo discu- tir sobre os sentidos gerados pela articulação entre as expressões plástica e musical na composição da propaganda audiovisual, bem como dos mecanismos enunciativos envolvidos na produção de sentidos de verdade e autenticidade – no plano do conteúdo –, dos quais dependem o estabelecimento do contrato fiduciário entre enunciador e enunciatário. 1. O semissimbolismo nas semióticas sincréticas A análise das semióticas sincréticas, isto é, de textos- objetos compostos por dois ou mais tipos de linguagens ou sistemas semióticos, tem apresentado desafios cada * Doutoranda em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/FCLAr). Endereço para correspondência: [email protected] .

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estudos semióticos

issn 1980-4016

semestral

vol. 11, no 2

p. 56 –61dezembro de 2015

http://www.revistas.usp.br/esse

O semissimbolismo na propaganda audiovisual: uma análise de Paint

Cintia Alves da Silva∗

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar o semissimbolismo existente em Paint, um dos comerciaisda campanha Colour like no other, lançada pela Sony para a linha de televisores de LCD Bravia, em 2006.Premiado com o leão de ouro em Cannes, em 2007, Paint surpreendeu tanto por sua complexa produção quantopelos números que confirmaram o seu sucesso: o aumento expressivo nas vendas do televisor e mais de ummilhão de acessos ao site do produto. A megaestrutura envolvida na produção de Paint fez com que o públiconão somente assistisse a propaganda nos veículos midiáticos, mas também buscasse informações sobre comoseria – e se seria – possível um espetáculo de tais proporções sem a utilização de recursos de computação gráfica.Assim, com base nos pressupostos da semiótica plástica, especialmente nas contribuições de Jean-Marie Flochpara o estudo das relações semissimbólicas, isto é, dos processos de geração de sentido que se dão a partir dahomologação entre o plano do conteúdo e o plano da expressão, pretende-se discutir as implicações entre asexpressões plástica e musical na composição da propaganda audiovisual, que resultam em efeitos de sentido deverdade e autenticidade, cujo teor persuasivo mostra-se fundamental ao estabelecimento do contrato fiduciário.

Palavras-chave: Semiótica greimasiana, semiótica plástica, semissimbolismo, propaganda audiovisual

Introdução

Lançado em 2006 pela Sony, Paint é um dos comer-ciais da campanha Colour like no other para a linhade televisores de LCD Bravia. Produzido pela agênciaFallon, de Londres, o comercial teve como cenário doisblocos de um conjunto de prédios em Toryglen, distritode Glasgow, Escócia. Paint foi veiculado internacional-mente na TV, no cinema e na internet, sendo premiadocom o leão de ouro em Cannes, em 2007. Os núme-ros também confirmaram o sucesso do comercial: oaumento expressivo nas vendas e mais de um milhãode acessos ao site do produto (Furtado, 2010).

A complexidade da produção explica, em parte, oimpacto do comercial junto ao público. Furtado (2010)descreve que “Paint precisou de 70 mil litros de tinta,322 morteiros, 330 metros de canos de aço e 57 quilô-metros de fios de cobre para dar vida a explosõescoloridas de proporções gigantescas”. A estruturanecessária à produção do comercial deram à Paintares de megaprodução, fazendo com que o públiconão somente o assistisse nos veículos midiáticos, masbuscasse informações sobre como seria – e se seria– possível um espetáculo dessas proporções, ou setudo não passava apenas de bem aplicados recursos

de computação gráfica. A estratégia de marketing daSony incluiu a divulgação do making of do comercialno Youtube, dada a curiosidade gerada em torno daprodução.

Neste trabalho, analisamos o comercial Paint combase nos pressupostos da semiótica plástica, parti-cularmente nas contribuições de Jean-Marie Flochpara o estudo das relações semissimbólicas, ou seja,dos processos de geração de sentido que resultamda homologação entre o plano do conteúdo e o planoda expressão. Esta análise tem como objetivo discu-tir sobre os sentidos gerados pela articulação entreas expressões plástica e musical na composição dapropaganda audiovisual, bem como dos mecanismosenunciativos envolvidos na produção de sentidos deverdade e autenticidade – no plano do conteúdo –,dos quais dependem o estabelecimento do contratofiduciário entre enunciador e enunciatário.

1. O semissimbolismo nassemióticas sincréticas

A análise das semióticas sincréticas, isto é, de textos-objetos compostos por dois ou mais tipos de linguagensou sistemas semióticos, tem apresentado desafios cada

∗ Doutoranda em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/FCLAr).Endereço para correspondência: 〈 [email protected] 〉.

estudos semióticos, vol. 11, no 2 – dezembro de 2015

vez maiores aos semioticistas, principalmente devido àsua multiplicidade e complexidade desses textos, queaumentam proporcionalmente ao avanço das novastecnologias.

Parte da semiótica discursiva, o estudo das semióti-cas sincréticas figura como um campo em crescenteexpansão nas últimas décadas, com pesquisas pre-dominantemente dedicadas à análise e à descriçãode textos midiáticos. Em comum, essas pesquisasempreendem uma busca por formas diferenciadas detratamento para o texto sincrético, de modo a per-mitir a apreensão de seus processos de geração desentido pela articulação dos planos do conteúdo e daexpressão nas diversas linguagens que o integram,considerando-o como um todo de significação. Nesteartigo, lançaremos mão das contribuições teóricas deJean-Marie Floch (1985; 1990; 1995), principalmente,e, paralelamente, das reflexões de Médola (2009) ePietroforte (2007; 2009) para a análise do texto audio-visual.

No Dicionário de Semiótica, Greimas e Courtés (2008,p. 467) assim definem o sincretismo:

Pode-se considerar o sincretismo como o pro-cedimento (ou seu resultado) que consiste emestabelecer, por superposição, uma relaçãoentre dois (ou vários) termos ou categoriasheterogêneas, cobrindo-os com o auxílio deuma grandeza* semiótica (ou linguística) queos reúne.

A definição do termo engloba também alguns exem-plos de semióticas sincréticas, tais como “a ópera ouo cinema”, caracterizados pelo acionamento simultâ-neo de várias linguagens de manifestação. A própriacomunicação verbal é citada como sincrética, por in-cluir elementos paralinguísticos (como a gestualidade),sociolinguísticos, entre outros.

Mais detalhadamente, o verbete “semióticas sincré-ticas” é abordado por Jean-Marie Floch, em sua defini-ção para o segundo volume do Sémiotique: Dictionnaireraisonné de la théorie du langage (Greimas; Courtés,1986). Segundo Floch, as semióticas sincréticas têm oseu plano de expressão caracterizado por “uma plura-lidade de substâncias para uma forma única”, sendoesta última o objeto de interesse da semiótica.

É importante ressaltar que o conceito de sincretismorelaciona-se diretamente à noção de “dependência”,desenvolvida por Hjelmslev, em seus Prolegômenos auma teoria da Linguagem. Segundo sua concepção,por princípio de análise, um objeto só pode existir emrazão dos “relacionamentos” ou “dependências” que,somados, constituem a sua totalidade, ao passo queas partes somente podem ser definidas por meio dosrelacionamentos existentes “entre ela e outras partescoordenadas”, “entre a totalidade e as partes do grau

seguinte” e “entre o conjunto dos relacionamentos edas dependências entre essas partes” (Hjelmslev, 2009,p. 28). Essa noção, também presente no pensamentosaussuriano, auxilia-nos a melhor compreender a na-tureza da linguagem audiovisual, como veremos.

Para Médola (2009), a ocorrência de sincretismospode ser concebida como uma suspensão de oposiçõesdistintivas nas semióticas sincréticas (o que, em ter-mos hjelmslevianos é designado por “superposição”).Ao se considerar as linguagens em seu caráter biplano,isto é, em seus planos da expressão e do conteúdo,bem como em seus níveis – forma e substância – é pos-sível apreender o seu plano de conteúdo, como unidadesemantizada, tanto na forma quanto na substância(ideias e conceitos sincretizados), por meio do inteli-gível. Por outro lado, ao considerar-se o seu planode expressão, constata-se que a substância dessaslinguagens, enquanto matéria sensível sincretizada,somente pode ser discretizada em “unidades mínimasabstratas, não semantizadas”, sendo apreendidas pelosensível. Médola (2009, p. 404) explica, ainda, que

No caso da imagem audiovisual, essas uni-dades mínimas irão compor os formantes ei-déticos, cromáticos, topológicos1, como nassemióticas visuais, mas agora também comformante cinético. Na substância sonora, porsua vez, os sons, compreendidos como maté-ria sensível serão formatados em notas mu-sicais, fonemas, ruídos. Assim, conteúdo eexpressão audiovisual apresentam caracte-rísticas próprias, mas não independentes, demodo que os traços distintivos da forma da ex-pressão correspondem aos traços distintivosda forma do conteúdo.

Denominadas por Floch de “pluriplanas” e “conotati-vas”, em seu verbete, as semióticas sincréticas podemser compreendidas, portanto, como uma articulação delinguagens ou sistemas semióticos por meio de relaçõesde dependência regidas por uma hierarquia que resultaem diferentes configurações ou modos de organizaçãotextual, dentre os quais o texto-objeto audiovisual éapenas um dos exemplos possíveis. Assim, as relaçõesexistentes entre as categorias da expressão e do con-teúdo – isto é, a sua homologação – estabelecem aschamadas relações semissimbólicas.

Na obra Petites Mythologies de l’œil et de l’esprit(1985), Floch desenvolve a noção de sistemas semis-simbólicos. Esses sistemas seriam caracterizados nãopela correlação direta, termo a termo, entre os planosda expressão e do conteúdo, mas, sim, pela homolo-gação entre suas categorias. Segundo Floch (1985,p. 79), as semióticas plásticas (e nisso estão incluí-dos os textos-objetos visuais e audiovisuais) são um

1 Grifo nosso.

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Cintia Alves da Silva

dos modos de realização dos sistemas semissimbóli-cos, uma vez que estes “[...] podem ser realizados porsons ou por gestos, isto é, por outras substâncias daexpressão (e trata-se também de relações semióticasno sentido de que os dois planos da linguagem estãosempre colocados em relação)”2.

Enquanto mecanismo de análise das semióticas sin-créticas, o sincretismo pode ser entendido como oexame das correlações existentes entre as categoriasdo plano do conteúdo e do plano da expressão. Esteúltimo manifesta o plano do conteúdo por meio detrês categorias: as categorias cromáticas, eidéticase topológicas – dadas, respectivamente, pelas cores,pelas formas e pela distribuição e organização espacial(Pietroforte, 2009, p. 39).

A partir desse breve panorama sobre o semissimbo-lismo nas semióticas sincréticas, passaremos, então, àdescrição e à análise da propaganda audiovisual Paint.

2. A análise de PaintA propaganda audiovisual que tomamos por objetoneste estudo, Paint, tem duração de 1 minuto e 10segundos, espaço temporal em que se desdobra a se-guinte sequência: um rufar de tambores e uma sériede explosões de tinta ocorrem simultaneamente. Jatosde tinta sobressaem a partir da base de um edifício.A abertura da ópera de Gioacchino Rossini, A pegaladra, tem início. Os dois edifícios explodem em umainfinidade de cores, interna e externamente. Colunasde tinta são lançadas sucessivamente ao ar e explodemcomo fogos de artifício. A música é interrompida mo-mentaneamente, enquanto um palhaço vestindo umfraque e enormes sapatos vermelhos, semelhante a ummaestro, corre em direção (provavelmente) contráriaaos prédios. De repente, um dos edifícios é tomado poruma explosão de cores, em uma espécie de implosãoreversa, que parte da base do prédio e vai até o topo,numa sequência que obedece ao espectro contínuo dascores, variando gradativamente do violeta ao vermelho.Há um frenesi de cores, em que as bombas de tintaparecem sair do solo. A música acaba e só se ouveo som da tinta caindo. O playground é tingido pelosjatos de tinta anteriormente lançados. Surge o sloganColour like no other (“Cor como nenhuma outra”), des-dobramento de um dos slogans corporativos da Sony,like.no.other (utilizado até 2009). Por fim, o televisorSony Bravia aparece em meio a um fundo escuro, atéque esvaece, dando lugar à marca Bravia, em vermelho,sobre um fundo branco.

A sequência visual dos principais quadros que com-põem a propaganda pode ser vista no Anexo (Figuras1 a 44). Para assistir ao vídeo na íntegra, basta aces-

sar o link do Youtube, citado em nossas “Referências”.Esta breve descrição do anúncio, juntamente com aapreciação do texto-objeto audiovisual, permite-nosconstatar a presença de pelo menos cinco tipos desistemas semióticos: o imagético (visual), o musical(sonoro), o videográfico (a “linguagem do cinema”) ogestual e o verbal escrito. Por configurar-se como umasemiótica conotativa – quer dizer, em razão de seuplano de expressão ser formado a partir dos planosde expressão e de conteúdo de outras semióticas –a linguagem audiovisual tem um caráter englobante.Suas relações de dependência são estabelecidas, por-tanto, entre os diferentes sistemas reunidos em suaconfiguração, resultando em um todo de sentido.

Com base nessas considerações, partiremos doplano do conteúdo, em suas oposições fundamentaispara, então, examinarmos as relações existentes entreas categorias da expressão plástica – e suas implica-ções discursivas.

As oposições semânticas dinamicidade vs. estati-cidade e identidade vs. alteridade, presentes no ní-vel fundamental do plano do conteúdo, associam adinamicidade e a identidade a valores eufóricos, en-quanto a estaticidade e a alteridade são tomados en-quanto valores disfóricos. Essas oposições elementaresmanifestam-se, no nível narrativo, por um destinador-manipulador figurativizado pelo ator palhaço-maestro(Figuras 15 e 16), no nível discursivo, o qual dá inícioàs explosões de tinta que tomam conta de todo o cená-rio, transformando-o. O palhaço-maestro sincretiza amarca Sony, no nível discursivo: aquela que rege, quefaz acontecer um “espetáculo de sons e cores”. A quefaz com que as cores se ponham em movimento com opropósito de entreter, transformando a realidade emmagia. Figurativizada pelo bailar das tintas, a TV temo seu valor modal reafirmado, ao levar entretenimento– o espetáculo – sob as formas de “cor” e “som”, aoexpectador (destinatário-enunciatário).

Narrativamente, o destinador (enunciador, no níveldiscursivo) cumpre a função de manipulação, persua-dindo o seu destinatário a se identificar com a marcaSony, por associar-se a um “fazer-entreter” (valor mo-dal), apoiado na oposição identidade vs. alteridade.

Como decorrência dessas oposições no plano doconteúdo, é possível perceber oposições correlatas noplano da expressão, que são apreensíveis por suascategorias plásticas (cf. Tabela 1).

A Tabela 1 apresenta as categorias cromática, ei-dética e topológica, bem como as oposições observa-das no plano da expressão plástica, sobre as quaisse pode fazer algumas considerações relevantes paraa compreensão da configuração e do funcionamentosemissimbólico dos textos audiovisuais.

2 Tradução nossa.

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Categoria cromática Monocromático × Colorido

Categoria eidética Homogêneo × HeterogêneoConcentrado × Difuso

Categoria topológica Vertical × HorizontalSuperior × Inferior

Tabela 1: Categorias plásticas - plano da expressão

A primeira constatação pode ser feita a partir dasrelações estabelecidas pela categoria cromática. A opo-sição entre Monocromático vs. Colorido é figurativizadanos prédios e no ambiente, cujas cores são predo-minantemente monocromáticas (sépia e tons pastéis)e nos jatos de tinta que, por sua vez, são coloridos(policromáticos) e vibrantes. Simultaneamente, as ca-tegorias do plano da expressão se correlacionam àsfiguras do plano do conteúdo, tornando-se manifes-tadas pelas relações semissimbólicas monocromático/estaticidade vs. colorido/ dinamicidade, bem comopelas relações monocromático/ alteridade vs. colorido/identidade.

Na categoria eidética, a forma dos prédios, em seuscontornos bem delimitados, e os jatos de tinta, emsua sinuosidade (sem contornos definidos, ora maisconcentrados, ora mais difusos) constituem, figura-

tivamente, as oposições Homogêneo vs. Heterogêneoe Concentrado vs. Difuso. Tanto quanto a catego-ria cromática, a categoria eidética dá origem a rela-ções semissimbólicas com as categorias semânticas doplano do conteúdo, em que homogêneo/ concentradohomologam-se com as categorias de alteridade/ estati-cidade, e heterogêneo/ difuso encontram homologaçãocom as categorias de identidade/ dinamicidade.

A categoria topológica estabelece relações de opo-sição de acordo com a distribuição ou organizaçãoespacial de seus formantes, resultando nas oposiçõesprincipais3 Vertical vs. Horizontal e Superior vs. Infe-rior. As relações semissimbólicas possíveis são, nessecaso, horizontal / inferior vs. estaticidade / alteridadee vertical / superior vs. dinamicidade / identidade.

A homologação entre os planos do conteúdo e daexpressão plástica podem ser resumidas na Tabela 2:

Plano do Conteúdo Plano da Expressão

identidade e dinamicidade colorido(valores eufóricos) heterogêneo

difusoverticalsuperior

alteridade, estaticidade monocromático(valores disfóricos) homogêneo

concentradohorizontalinferior

Tabela 2: Categorias plásticas - Plano da expressão

A música escolhida para a propaganda Paint é aabertura de La gazza ladra (A Pega Ladra, em itali-ano), uma ópera semisséria (melodrama) em dois atosdo compositor italiano Gioachino Rossini (o mesmo

compositor de “O barbeiro de Sevilha”). Célebre porsua abertura, essa obra se destaca pelo uso das cai-xas4. Em linhas gerais, seu libreto5 conta a históriade uma empregada acusada de roubo e condenada à

3 Sobre a oposição Exterior vs. Interior, por não se correlacionar com o caráter eufórico ou disfórico presente nas oposições do plano doconteúdo, pode-se dizer que não é uma oposição homologável – ou seja, não resulta em relações semissimbólicas.

4 Caixa, tarol, tarola (snare drum, em Inglês): tipo de tambor utilizado mais frequentemente nas marchas militares.5 Texto a partir do qual são compostos óperas, oratórios ou cantatas (Houaiss, 2009).

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Cintia Alves da Silva

morte, mas que é salva no último instante, quando sedescobre que a culpada fora apanhada.

Como se vê, há uma evidente arbitrariedade entreas narrativas do libreto e da propaganda audiovisual.No entanto, como recurso de referencialização (moti-vado), podemos apontar correlação entre o rufar dostambores e os “disparos” dos tubos de tinta presosao prédio, que podemos ver na primeira tomada dapropaganda (Figuras 1 e 2 do Anexo), em provávelalusão às marchas militares. As figuras 23, 24, 31e 32 do anexo também retomam essa mesma ideia,no plano da expressão plástica, simulando explosõesde “bombas” numa guerra de tintas e cores. Ademais,a escolha da figura do palhaço-maestro nos sugere,mesmo de forma indireta, a associação dos simulacrosda empresa e do compositor, exímios “regentes” em

seus domínios.

Ainda que não haja homologação entre os planosdo conteúdo da ópera e da propaganda, é possível ob-servar, nesta última, um esforço em se homologar osvários planos de expressão da linguagem audiovisual.Ao tomarmos o plano de expressão da linguagem musi-cal e a sua relação com o plano de expressão plástica,devemos levar em consideração a presença, no textoaudiovisual, do sincronismo entre os glossemas me-lódicos6, apreensíveis no plano da expressão musical(Longo vs. Breve; Forte vs. Fraco; Agudo vs. Grave), ea forma das explosões, na expressão plástica (Verticalvs. Horizontal; Concentrado vs. Difuso; Superior vs. In-ferior). Desse modo, é possível constatar as seguintesrelações semissimbólicas (ver Tabela 3):

Expressão musical Expressão plástica

Longo / Fraco / Grave ConcentradoHomogêneoVerticalInferior

Breve / Forte / Agudo DifusoHeterogêneoHorizontalSuperior

Tabela 3: Relações entre as categorias do plano de expressão musical e as categorias da expressão plástica

Enquanto elemento figurativo, os jatos de tinta e ex-plosões estabelecem categorias plásticas que se homo-logam às categorias da expressão musical, permitindo-nos delinear as principais relações semissimbólicasresponsáveis pelo efeito de sentido de “sincronia” ge-rados no texto audiovisual. Os jatos de tinta verticais(Anexo, figuras 3, 4 e 5), concentrados, homogêneose inferiores (em termos topológicos) homologam-se àsnotas musicais mais longas, fracas e graves. Por outrolado, os jatos de tinta horizontais (figuras 3, 4 e 6), quesucedem aos jatos verticais, difusos, heterogêneos e(predominantemente) superiores, sob a forma de pe-quenas explosões, se homologam às notas musicaismais breves, fortes e agudas.

Em relação à oposição Superior vs. Inferior, pode-mos observar que, na propaganda, ela se homologa àintensidade das notas musicais: Superior / Forte vs.Inferior / Fraco. Desse modo, a gradação dos jatos de

tinta acompanha a das notas musicais – quanto maiora altitude, maior a intensidade das notas musicais –,como pode ser visto no trecho do vídeo referente àsfiguras 17 a 22.

Vale destacar que, na propaganda analisada, asexplosões (figuras 7,8, 12, 23 e 24) são sempre ca-racterizadas pelas categorias Breve / Forte / Agudoem homologação às categorias Difuso / Heterogêneo/ Horizontal, independentemente de sua distribuiçãotopológica (Superior vs. Inferior).

Considerações finaisA análise de Paint, tal como a fizemos, mostrou-seprodutiva do ponto de vista semiótico, não porque seesperasse de sua composição alguma ausência de sin-cretismos – e, portanto, de relações semissimbólicas– mas, pelo contrário, porque a riqueza manifesta desua constituição nos possibilitou testar algumas das

6 Segundo a teoria glossemática hjelmsleviana, os glossemas melódicos são grandezas virtuais relacionados à análise da expressãomusical devido ao seu poder distintivo (Carmo Junior, 2007, P. 52). Descrevem a duração, a intensidade e a altura das notas musicais,sendo eles, respectivamente: cronema ( “breve × longo”), dinamema ( “fraco × forte”) e tonema ( “grave × agudo”).

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principais formas de homologação entre os planos daexpressão e do conteúdo no texto audiovisual, a fimde permitir a aplicação do conceito de semissimbo-lismo como mecanismo de análise para as semióticassincréticas.

Manifestados no nível discursivo do plano de con-teúdo do texto audiovisual, podemos constatar a recor-rência de valores associados à constituição da marcaSony Bravia, num esforço de resgatar uma construçãodiscursiva anterior e exterior ao texto (horizonte discur-sivo), de modo a reafirmá-los: alta definição (nas corese imagens); ousadia; originalidade (o “espetáculo); eirrepetibilidade (geradora de efeitos de sentido de veri-dicção, dada a impossibilidade de erros ou mesmo derepetição, em razão da complexidade da produção).

As relações semissimbólicas entre os planos do con-teúdo e da expressão, levantadas ao longo deste tra-balho, permitem-nos inferir a transição de um estadoinicial disfórico, de monocromatismo e estaticidade,para um estado final eufórico, de saturação cromá-tica (policromatismo) e dinamicidade, confirmando osvalores relacionados à identidade da marca Bravia.Esse mesmo crescendo pode ser observado na tensãoestabelecida no plano de expressão musical. Outroponto digno de nota é que a contínua homologaçãoentre categorias e planos tem como resultado a pro-dução de efeitos de sentido de “sincronia” e “harmo-nia”, despertando no enunciatário uma perplexidadee um encantamento que se devem, em grande parte,à predominância da apreensão sensível em relação àinteligível.

A exibição da imagem da TV de LCD Sony Bravia, aofinal da propaganda, sugere que o “espetáculo” vistopelo telespectador – ou pelo internauta – só pode sercompletamente apreciado através de uma TV da linhaBravia: a única a mostrar “cores como nenhuma outra”.Dá-se, assim, a proposição do contrato fiduciário porparte do enunciador, a partir da geração de efeitos desentido de identidade/alteridade, “verdade”, “realidade”e “autenticidade”, voltados aos processos de interpre-tação, manipulação e persuasão, dos quais dependea efetiva (e afetiva) adesão por parte do enunciatário.Promove-se, desse modo, o que Furtado (2010) deno-mina de “publicidade-entretenimento”, que se mostracomo uma bem-sucedida estratégia do marketing e dapublicidade contemporâneos.

Referências

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Furtado, Juliana de Assis2010. Coelhos na cartola: publicidade e entre-tenimento na campanha de Sony Bravia. Rumo-res - Revista Online de Comunicação, Linguageme Mídias, 7a edição, janeiro-junho de 2010. Dis-ponível em: <http://www3.usp.br/rumores/visu_art2.asp?cod_atual=172>. Acesso em:26 out. 2012.

Greimas, Algirdas Julien; Courtés, Joseph1986. Sémiotique: dictionnaire raisonné de la théoriedu langage. Volume II. Paris: Hachette.

Greimas, Algirdas-Julien Greimas, Courtés, Joseph2008. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto.

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Pietroforte, Antonio Vicente2007. Análise do texto visual: a construção da ima-gem. São Paulo: Contexto.

Pietroforte, Antonio Vicente2009. Tópicos de semiótica: modelos teóricos e apli-cações. São Paulo: Annablume.

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Dados para indexação em língua estrangeira

Alves da Silva, CintiaSemi-symbolism in the audiovisual advertisement: an analysis of Paint

Estudos Semióticos, vol. 11, n. 2 (2015)issn 1980-4016

Abstract: This study aims to analyzing the semi-symbolism in Paint, one of the advertisements for the campaignColour like no other, launched by Sony for the line of LCD televisions Bravia, in 2006. Paint was awarded theGolden Lion in Cannes in 2007, surprising both by its complex production and by the numbers of its success: thesignificant increase in sales and more than a million hits to the product website. The megastructure involvedin the production of Paint made ??public not only watch the advertisement but also seek for information abouthow it would - and if it would - be a spectacle of such proportions without the use of computer graphics. Thus,based on the principles of the plastic semiotics, mainly on the contributions of Jean-Marie Floch for the study ofsemi-symbolical relations – it means, the meaning generation processes that occur from the homologation betweenthe content and the expression plans –, it is intended to discuss the implications of the plastic and the musicalexpressions for the composition of the audiovisual advertisement, which result in meaning effects of truth andauthenticity, whose persuasive character is fundamental for establishing the fiduciary contract.

Keywords: Greimassian semiotics, Plastic semiotics, semi-symbolism, audiovisual advertising

Como citar este artigo

Alves da Silva, Cintia. O semissimbolismona propaganda audiovisual: uma análise dePaint. Estudos Semióticos. [on-line] Disponível em:〈 http://revistas.usp.br/esse 〉. Editores Responsáveis: IvãCarlos Lopes e José Américo Bezerra Saraiva. Volume11, Número 2, São Paulo, Dezembro de 2015, p. 56–61.Acesso em “dia/mês/ano”.

Data de recebimento do artigo: 12/02/2015

Data de sua aprovação: 02/12/2015

Anexo

Figura 1

Figura 2

Figura 3

Figura 4

Figura 5

Figura 6

Figura 7

Figura 8

Figura 9

Figura 10

Figura 11

Figura 12

Figura 13

Figura 14

Figura 15

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Figura 19

Figura 20

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