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O SARRAFO 8 dezembro 2005 Um jornal pau-pra-toda-obra AOS TRABALHADORES DO TEATRO o número da retomada

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AOS TRABALHADORES DO TEATRO

o número da retomada

Nossos endereçosÁGORA – CDT CENTRO PARA DESENVOLVIMENTO [email protected] • www.agoranarede.com.br

[email protected] • www.arlequins.ato.br

CANHOTO LABORATÓRIO DE ARTES DA REPRESENTAÇÃ[email protected]

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CorrespondênciaPara entrar em contato com O SARRAFO escreva para o [email protected]

Versão on-line do jornal pelo site

www.jornalsarrafo.com.br

O SARRAFO Número 8 • Dezembro 20052

um jornal pau-pra-toda-obra

Publicação independente produzida pelos grupos

Ágora, Arlequins, Canhoto Laboratório de Artes da Representação, Companhia Cênica Farândola Troupe, Companhiado Feijão, Companhia do Latão, Companhia Ocamorana de Pesquisas Teatrais, Companhia São Jorge de Variedades,Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes, Engenho, Folias, Fraternal Companhia de Artes e Malas-Artes, Grupo XIXde Teatro, Parlapatões, Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, Tablado de Arruar, Teatro de Narradores

Editores: Sérgio de Carvalho e Daniele Ricieri (Mtb. 41.944)Coletivo Editorial: Iná Camargo Costa, José Fernando, Luís Carlos Moreira e Reinaldo MaiaColetivo de produção: Antonio Tadachi, Mariana Senne, Neto de Oliveira e Renata Zanetha

Ilustrações: Júlio Dojcsar

Versão para internet: Márcio Boaro

Colaboraram nesta edição: Ana Cristina Petta, Cecília Garcia, Celso Frateschi, Fernando Kinas, Marco AntônioRogrigues, Matthias Pees, Ney Piacentini, Paulo Arantes e Paulo Flores

Agradecimento: Beth Rabbeti, Carminha Gongora, Chico de Oliveira, Evelaine Martines, Márcio Aurélio, Rafael VillasBôas, Sebastião Salgado, Tadeu de Souza, Thomas Miguez, Wagner Nabuco, Goethe Institut e MST

Foto da capa: Sebastião Salgado em Terra, São Paulo, Companhia das Letras, 1997 (as fotos do MST foramgentilmente cedidas pelo Movimento)

Diagramação: Pedro PenafielGráfica: Gazeta Mercantil TamboréTiragem: 10.000 exemplares

Apoio cultural: Editora Casa Amarela e Pizza Filosófica

Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.

Edito

rial Este número do SARRAFO dá continuidade ao projeto original e

amplia seu alcance. Seu desejo coletivo é construir uma esferapública de debate sobre as relações entre arte e sociedade.

Se não formos capazes de produzir e organizar o pensamentocrítico sobre o teatro que fazemos – e sobre o significado cultural epolítico da nossa simples existência – corremos o sério risco desermos varridos da cena e de não garantir nem mesmo a memóriade nossa passagem por ela.

Todos vivemos na carne os efeitos destrutivos do processodevastador de privatização da esfera pública e da mercantilizaçãoabsoluta de todas as práticas culturais. O mercado não apenasinviabiliza a nossa atividade cultural, ele inviabiliza a nossaprópria vida.

Para enfrentá-lo, precisamos organizar com conseqüência aoposição ao processo de desumanização em curso. Este jornal querser um instrumento de produção de pensamento crítico, tanto naestética quanto na política. Esta edição de retomada amplia onúmero dos grupos responsáveis por sua produção. Tentaremosincorporar de modo produtivo até mesmo a contribuição dosleitores. Queremos que militantes teatrais de todos os lados seenvolvam nesse projeto que, concebido originalmente pelos gruposÁgora, Folias, Teatro da Vertigem, Companhia do Latão, Parlapatõese Fraternal, se abre agora para a comunidade teatral brasileira,assumindo feições e sentido novos.

As lutas pela causa do teatro e da cultura são inúmeras e podemassumir as mais diversas formas. O SARRAFO está disposto adefender todas aquelas que apontem para a real democratização daprodução cultural no Brasil.

INÁ CAMARGO COSTA

“O preço da liberdade é a eterna vi-gilância”. Com esta frase lapidar, os libe-rais brasileiros forjaram no século passa-do um ótimo álibi para apoiar a ditaduramilitar de 1964 a 1980. A jogada foi ex-tremamente eficiente pois, além de asse-gurar com a força das armas a sua liber-dade à custa da liberdade dos que pensa-vam diferente, essa gente conseguiu ades-trar o conjunto da sociedade para viversegundo as suas deliberações sem riscode questionamentos radicais. Esquema-tizando a operação, digamos que primei-ro eliminaram os divergentes, depois for-çaram e cultivaram a mais radical despo-litização e, finalmente, obtiveram o maisduradouro resultado: uma geração intei-ra despolitizada, que não tem a menornoção do que está em jogo na vida polí-tica (nem se interessa por ela) e, por issomesmo, acredita piamente que política évotar em eleições ou que decisões comoas tomadas pelo Ministro da Fazenda deplantão ou pelo Banco Central não sãopolíticas. Para completar o quadro, des-de a queda do muro de Berlim, seguidapelo fim do lado oriental da “cortina deferro”, a maioria dos partidos ditos deesquerda jogou fora as suas bandeiras elançou-se alegremente nas fileiras dosadoradores do Deus Mercado, abraçandoa nova religião universal.

Como demonstrou um dos mais profun-dos estudiosos das entranhas desse deus,cujo nome verdadeiro é modo de produ-ção capitalista, seu móvel é a taxa de lu-cro e sua única finalidade é a valorizaçãodo capital. Como periodicamente aquelataxa cai, esta queda retarda a formaçãode novos capitais autônomos, promoven-do, inevitavelmente, superprodução, es-peculação, crises, capital supérfluo e, parao que nos interessa diretamente, POPU-LAÇÃO SUPÉRFLUA. Na condição de parteda população supérflua, inúmeros gruposde teatro vêm se organizando em todo oBrasil desde os anos 90 do século passa-do. E como os demais supérfluos, sobrevi-vem, em total liberdade (sobretudo a depassar fome), à margem da esfera pública– esta inteiramente privatizada e entre-gue a todos os exploradores da nova reli-gião: igrejas propriamente ditas, jornais,rádio, televisão, cinema e demais espaços,ditos convencionais, de circulação de es-petáculos-mercadoria, popularmente co-nhecidos como teatros.

Parodiando a frase dos nossos antigosliberais, não é excessivo dizer que o pre-ço da nossa liberdade é a completa irre-levância. Como já somos supérfluos do

ponto de vista econômico, não constitu-ímos ameaça real aos negócios do ramodo espetáculo e, como estamos à mar-gem da esfera pública privatizada, o Es-tado também não precisa se preocuparconosco. Isto posto, e considerando queentretanto continuar fazendo o que fa-zemos é para nós questão de vida ou mor-te, como reverter este quadro?

A chave da porta é evidentemente apolítica, entendida não mais como fata-lística submissão às regras do jogo e simcomo amplo processo de questionamen-to não só do próprio jogo e suas regras,mas sobretudo da sociedade que os for-jou e para a qual aparece como fatalida-de a existência de uma população su-pérflua. No caso dos que fazemos tea-tro, esta idéia obriga a enfrentar umaampla pauta de estudos, mas uma parteimportante da nossa experiência e dahistória de nossos antecessores pode ser-vir de horizonte para a nossa luta pelodireito à existência.

Nossa experiência de grupo já ensinoua necessidade de combater os valores sub-jetivos que asseguram a existência da so-ciedade que fez de nós seres supérfluos. Éo caso, por exemplo, do individualismo,da irresponsabilidade, do descompromis-so com o coletivo, ou falta de solidarieda-de e do autoritarismo. Estes valores, to-dos a serviço da concorrência que é partedo funcionamento da sociedade capitalis-ta, são uma permanente ameaça à sobre-vivência de um grupo teatral. A eles, otrabalho coletivo opõe entre outros altru-ísmos, generosidade, responsabilidade, so-lidariedade e relações democráticas. Masse a duras penas temos conseguido culti-vá-los entre nós e em meio ao público quenos acompanha e apóia, sem conquistar aesfera pública propriamente dita, o senti-do profundo das nossas experiências, queé político, corre o risco de se perder. Paradar o passo que falta, a história das lutassociais do século vinte, envolvendo tam-bém artistas de teatro, apresenta algunsepisódios capazes de no mínimo mobili-zar a nossa imaginação.

O primeiro ilustra o modo como o showbusiness está sempre de olho em talen-tos individuais onde quer que estes semanifestem. Contam os livros de histó-ria do anarco-sindicalismo americanoque uma jovem adolescente participava

de um ato público em Nova Iorque e cha-mou a atenção de um produtor da Broa-dway. Seu desempenho oratório era tãobrilhante que, ao final, ele tratou de con-vidá-la para integrar o elenco de sua pró-xima produção. A militante da IWW (In-dustrial Workers of the World ), organi-zação que ainda existe, recusou a pro-posta e um salário milionário, respon-dendo sem pestanejar: “Eu só falo o meupróprio texto” ou, em inglês, I speak myown lines. Não se deve esperar de umator a mesma capacidade de resistênciaao canto de sereia do mercado sinteti-zada no gesto daquela militante anar-quista, mas um ator com experiência emteatro de grupo, inspirado nele, pode ne-gociar melhor os termos em que vende-rá sua força de trabalho se não se es-quecer de que provém de um coletivo aparte decisiva de seu talento.

Outro caso, que delineia um horizontemuito próximo do nosso, verificou-se emfins do século XIX e começo do XX. Quemconhece a história do Teatro Livre sabeque sua marca registrada foi a arregimen-tação de trabalhadores que gostavam deteatro a ponto de também querer fazê-lo,a começar por André Antoine, um empre-gado da companhia de gás parisiense. Masestes trabalhadores queriam encenar tex-tos que tratava de assuntos censuradosou sem interesse para o mercado teatral.A versão alemã desta experiência em pou-co tempo viu-se diante do desafio de po-litizar-se porque seus espetáculos atrope-lavam os critérios da censura, que reagiucom violência, e só os trabalhadores já or-ganizados em partidos e sindicatos apoia-ram a sua luta. O resultado desta aproxi-mação entre teatro e trabalhadores orga-nizados é a Volksbühne, que até hoje re-siste e produz espetáculos que dão o quepensar, como vimos recentemente em SãoPaulo e outras capitais brasileiras.

O SARRAFODezembro 2005 • Número 8 3

Vamos encarar a politização?Um terceiro caso, um pouco mais com-

plexo, deu-se nos Estados Unidos duran-te o governo Roosevelt. Como a crise de1929 produziu uma verdadeira legião deartistas supérfluos, foi criado um pro-grama federal de apoio às artes que osempregou aos milhares. Chamada Fede-ral Theatre, a parte que nos interessadeste programa promoveu a mais amplaexperiência teatral da história daquelepaís. Para ficar em apenas um exemplo:o espetáculo Isto não pode aconteceraqui (It can’t happen here) estreou nomesmo dia em 18 cidades, em 22 produ-ções diferentes, quatro das quais emNova Iorque e duas em Los Angeles. Istoaconteceu no dia 27 de outubro de 1936.Duas semanas depois estreou uma 23ªprodução e nove delas ainda circularampelo país uma vez encerrada a tempora-da de estréia. Ao final do processo, oespetáculo tinha sido visto por cerca de500 mil pessoas. Este episódio único sóse explica pelo alto grau de politizaçãodos envolvidos no processo.

Por muito suspeito que possa soar, nãodá para resistir à tentação de dizer que oteatro tende a inspirar políticas demo-cráticas radicais e que a mobilização po-lítica inspira práticas teatrais muito maisdemocráticas do que se pode imaginar. Ocaminho é a luta.

Um dos cartazes do espetáculo Isto nãopode acontecer aqui, que estreou no

mesmo dia em 18 cidades

COMOORGANIZARA LUTA?

COMOORGANIZARA LUTA?

O SARRAFO Número 8 • Dezembro 20054

SARRAFO PERGUNTA

O SARRAFODezembro 2005 • Número 8 5

Como democratizar as políticas culturais?

CELSO FRATESCHI

“...erguendo uma tal divisóriaEntre vocês e o mundo, apenas se lançamFora do mundo. Negassem ser eleUm artista, poderia ele negarQue fossem homens, e issoSeria uma censura maior.B. Brecht

1. Antes de tudo, rejeitar de forma radical o papel deCLIENTE que historicamente somos forçados a represen-tar e ao qual, por vezes, até nos afeiçoamos.

2. Construir de forma coletiva o papel de ARTISTACIDADÃO DO SÉCULO XXI: uma personagem em abertoque nos responsabiliza na moldagem de seu caráter, nasua forma de agir, nas suas relações e na elaboração doseu pensamento.

3. Abdicar totalmente o trejeito da vítima do destinoe assumir a responsabilidade da nossa condição em re-lação ao conjunto da sociedade.

4. Romper as divisórias que nos separam do mun-do e entender nosso ofício como um trabalho dentrodo mundo. Um trabalho tão necessário como todos

os trabalhos de nossos semelhantes, exatamente por-que o que fazemos “é algo universal, humano (...),para o homem tão bom quanto respirar e comer”. Nãonos separemos de nossos semelhantes, pois se deci-direm se separar de nós, nosso ofício perderá com-pletamente o sentido.

5. Ao nos colocarmos dentro do mundo, recolocare-mos a questão cultural na sua dimensão política e per-ceberemos que ela não deve se restringir ao âmbito dassecretarias de cultura e sim impor a sua função estraté-gica na construção de nossa cidadania. Devemos enten-der e demonstrar que a política não é um fim em si,mas um instrumento para construirmos uma vida me-lhor no planeta.

6. Alinhar-se na construção da esfera pública rom-pendo o círculo estatal, atuando diretamente no legis-lativo e no executivo, criando e reforçando canais departicipação direta dos cidadãos na elaboração de polí-ticas e na sua implantação e controle.

7. Rejeitar o corporativismo estreito que limita nos-sa relação com o Estado apenas ao que diz respeito aofinanciamento de nossas produções.

8. Construir propostas e soluções que efetivem a sus-tentabilidade de nossa atividade profissional e não ape-nas a realização de nosso próximo trabalho.

9. Compartilhar a construção de programas de aper-feiçoamento, de formação de público, de circulação,de reforço de um teatro vocacional, compartilhar aconstrução e manutenção de espaços cênicos e cen-tros culturais nas mais diferentes regiões, de modo aapoiar e fomentar as mais diversas atividades cultu-rais e realizar um trabalho conjunto com as outrasáreas da atividade humana, principalmente com a áreade educação.

10. Não esperar que as coisas aconteçam por reco-nhecimento da nossa condição. Nossa arte é um bisturinum mundo que se tornou espetáculo de mísseis trans-oceânicos . Nossa função nesse status quo é desneces-sária. Tão desnecessária que pode se tornar inconveni-ente e é aí que reside a nossa importância e a nossaeficácia, pois podemos atingir cirurgicamente cada um,enquanto eles atingem indiscriminadamente. Nossa lutadeve se organizar pelo aprendizado da essência de nos-sa atividade. Como dizia Heiner Müller, “formando ilhasde desordem nesse mar da ordem capitalista”, ao atuar-mos como protagonistas e coadjuvantes no processo cul-tural, político e social. A dramaturgia deverá ser escritana ação, num processo aberto e não necessariamentecolaborativo, mas sem nenhuma dúvida, ao mesmo tem-po individual e coletivo.

Desnaturalizar a promiscuidadeREINALDO MAIA

Imaginemos o seguinte cenário. Uma empresa privadadirige-se a um membro do executivo e apresenta umprojeto de investimento. Para realizá-lo impõe uma con-dição: receber durante 20 anos isenção de impostos,sejam eles municipais, estaduais ou federais. Em trocacriará 100 empregos diretos. Não esqueçamos que a em-presa privada ao se instalar já se beneficia com gastospúblicos referentes a saneamento básico, iluminaçãopública etc. O desinformado ou o sujeito de má-fé dirãoque o Poder Público não fez mais do que a obrigaçãoem conceder a isenção dos impostos. Já o cidadão co-mum, a quem o ato simples da sobrevivência dá umacanseira danada, ficará com cara de otário vendo seusimpostos contribuírem para engordar o capital do capi-talista que veio para sua região aumentar seus lucros.

O exemplo acima é importante para entendermoscomo opera o aparelho do estado, quando diz respeito asubsidiar o Capital: o Público serve para beneficiar oPrivado; o esforço de muitos (de toda a sociedade) édirecionados para engordar poucos (os donos de em-presas privadas). Isto é tão antigo que existe até umacanção popular que diz: “Uns com tantos e outros tan-tos sem nenhum...” E permanecemos calados, sem ex-pressar nossa indignação com tamanha injustiça. Criou-se em nosso inconsciente que o Poder Público servesomente para limitar os direitos e deveres do cidadão,quando o que está em jogo é o interesse dos “investido-

res”. Vivemos em um verdadeiro “cortiço” político, onde,diariamente, os direitos elementares dos cidadãos sãojogados na lata do lixo. Não é por outro motivo que,para enfrentar a miséria, não procuramos redistribuir ariqueza, mas criar os “fomes zero” que têm como maio-res doadores e contribuintes os próprios miseráveis. Nãoé por outro motivo que o “pedreiro Waldemar constróitantos edifícios e não tem onde morar”. Essa lógica éválida, também, quando se trata de negócios culturais.A área cultural ainda conta com uma facilidade que é ade não ser uma questão de Estado. O direito à cultura éentendido como o direito dos que “já tudo têm”: o ci-dadão comum é visto apenas como um consumidor, istoé, o seu direito ao bem simbólico resume-se àquilo queele pode adquirir com seus recursos econômicos. A ques-tão cultural é mais um grande negócio a aumentar esubsidiar o crescimento do capital privado. Não é poroutro motivo que foram criadas as Leis de Incentivo àCultura que não são nada mais do que a forma legal dese realizar a concentração de renda e de “bem simbóli-cos” para aqueles que já os tem em demasia. Não é poroutro motivo que os investidores, os mercadores da cul-tura de plantão, ficam enraivecidos quando se aprovauma Lei como a do Fomento ao Teatro da cidade de SãoPaulo. E o seu maior inimigo tem sido o Secretário deFinanças do Executivo (que é no interesse do governo,o fiscalizador dos interesses privados).

Um exemplo concreto da promiscuidade entre inte-resses públicos e privados: uma notícia tirada de “OEstado de São Paulo” de 07 de outubro de 2005 afirma

que “cidades do interior que não tem cinema vão rece-ber uma sala itinerante, onde serão exibidos filmes eduas peças de teatro. O programa Estradafora em Todosos Cantos, parceria entre a Secretaria Estadual da Cul-tura e a ONG Teatro de Tábuas”.

Custo do projeto R$ 1,8 milhões, para levar o projeto a88 cidades. Agindo como um homem de teatro, questio-narei. A escolha da ONG foi feita com licitação pública? Ascidades sem salas não tinham outras dependências paraserem usadas para se projetar filmes: salão de igrejas, pra-ças etc? Não seria mais adequado, já que se quer dotaressas cidades de salas de cinema, doar os equipamentos,em vez de ser itinerante? Dos R$ 1,8 milhões, quanto se-rão, verdadeiramente, aplicados no projeto na medida emque a ONG deve ter seus custos administrativos? Com osR$ 20.454,54 não se construiria algo permanente? Os mu-nicípios contemplados com o projeto não têm Secretariasde Cultura ou “artistas locais” capazes de realizarem essetão “complexo” projeto de se projetar um filme? O projeto,em sua essência, visa a que objetivo?

O Projeto usado como exemplo é só uma forma de trei-narmos o nosso olhar para enxergarmos como não-natu-ral aquilo que nos é apresentado como natural. Não es-queçam que essa mesma Secretaria de Estado vem tercei-rizando (privatizando) todos os setores de uma adminis-tração que deveria ser pública. Essa é apenas a ponta doiceberg. Desconhece-se toda a sua verdadeira dimensão.E tudo propiciado pelo cortiço onde vivemos, em que aindistinção entre Público e Privado serve ao desrespeitodos direitos elementares dos cidadãos comuns.

Não somos vítimas do destino

Como construir programas públicos?

ELABORAÇÃO COLETIVA DA T RIBO DE ATUADORES

ÓI NÓIS AQUI TRAVEIZ

O teatro é instrumento de humanidade e este é o seupapel fundamental: restituir ao homem os valores éticospropositadamente esquecidos e desprezados na nossasociedade consumista. Num mundo marcado pela exclu-são, homogeneização, pelo pensamento único, pela de-sumanização e pela barbárie, cada vez mais é vital e ne-cessário denunciar a injustiça, as vendas de opinião, oautoritarismo, a mediocridade e a falta de memória. Asolidariedade, a honestidade pessoal e a liberdade sãoprincípios para realização de um teatro comprometidocom a vida. Os fazedores de teatro não podem perder devista suas funções básicas: a estruturação e o desenvol-vimento da sensibilidade e do pensamento, a análise crí-tica e a exposição das relações inter-humanas.

Nesse sentido acreditamos que o Teatro de Rua trazintrínseco na sua manifestação valores significativos queexpressam o combate à alienação e exclusão cultural,valorizando a nossa identidade e afirmando princípioslibertários, criando um teatro popular, onde arte e polí-tica se fundem, voltado para a maior parte da população.Transformando a rua em palco de um teatro que se assu-ma como um constante repensar da sociedade, motivan-do uma releitura da vida cotidiana. No momento históri-co em que vivemos, onde a grande maioria da populaçãobrasileira, por suas carências econômicas e culturais, nãotem acesso as salas de espetáculos, o teatro de rua assu-me um papel fundamental na democratização da arte. OTeatro de Rua requer uma pesquisa estética levada às

últimas conseqüências, onde surgem elementos como más-caras e bonecos de grandes proporções, pernas de pau emúsica, canto e dança, figurinos e adereços criativos ecoloridos. O ator do teatro de rua precisa desenvolverdiferentes técnicas expressivas que amplie o seu gesto ea sua voz, e pré-disposição para lidar com todo tipo deimprevisto. O cenário da rua exige um gesto ampliadocapaz de prender a atenção de cidadãos que acorrem ca-sualmente, formando a roda da brincadeira teatral. Diga-se, seguramente, não haver manifestação mais contun-dente do que ganhar a rua, encontrar as pessoas atravésde um teatro divertido e lúcido, repartir com elas a in-dignação com a injustiça e a esperança em um mundomais solidário. A formação do ator para o teatro de ruatem sido conseqüência do aprendizado grupal. À mar-gem das universidades, dos editais públicos e premia-ções, a história do teatro de rua vem sendo contadapelos grupos que se empenham em realizá-lo. Estes gru-pos vêm investigando incessantemente uma linguagemprópria para o espaço urbano. O teatro nas ruas, praçase parques, bairros e vilas populares forma um públicoque, ao se perceber pela primeira vez assistindo teatroe gostando do que vê, o torna necessário em sua vida.Da mesma forma, são estes grupos a escola do teatro derua, fomentando e multiplicando novos coletivos.

São sobretudo os coletivos de trabalho continuado queapontam caminhos para os impasses que a arte mercado-lógica e a mídia nos impõem. Esses grupos, que repen-sam cotidianamente a sua prática, que percebem os er-ros e aprendem com eles, não se contentando com solu-ções superficiais, encarando o teatro como algo maior emais importante que um simples entretenimento, são

eles que garantem para a arte teatral relevância históri-ca. Existem, espalhados por todo país, grupos que ape-sar de todas as dificuldades, como o pagamento de one-rosos aluguéis, constituíram espaços culturais autogeri-dos de forma coletiva que, além de local para apresenta-ção de espetáculos, funcionam como escolas, formandonovos atores e grupos, espaço para investigação, pesqui-sa e compartilhamento de experiências, e acervo de par-te da história do teatro brasileiro. Em oposição à lógicacapitalista, onde a propriedade é privada, os espaços des-ses grupos se abrem à população de suas cidades para oencontro e a comunhão. Hoje, quando são cada vez maisraros os verdadeiros encontros entre seres humanos, emque a criação de não-lugares onde não se estabelece con-tato, historicidade ou referência é a tônica de nossa ar-quitetura, organização e conseqüente relação, ou ainda,da incapacidade de estabelecê-la, se faz urgente e neces-sário a criação e manutenção de LUGARES, para que acon-teça a retomada do homem na sua essência. O Teatrocomo arte artesanal e corpórea é fundamental para estaconstrução. Resignificar a existência do homem, consti-tuir um espaço de possibilidades, talvez uma das carac-terísticas mais significativas do trabalho teatral, criarum campo fértil para semear as possibilidades do homemem todos os tempos.

É preciso difundir o teatro de rua e o teatro de grupo eseus centros de criação e compartilhamento: é necessárioque existam políticas públicas que garantam o desenvol-vimento e a ampliação destas manifestações. Afirmar oteatro como arte singular e fundamental para o aprimora-mento da condição de vida da maior parte da população, écontribuir para a emancipação do homem.

Repartir indignação e esperançaComo produzir relevância histórica?

MARCO ANTÔNIO RODRIGUES

Como um corpo que reaprende a andar depois de umgrave acidente, o teatro brasileiro que interessa vem, pou-co a pouco, se recuperando. As condições físicas aindasão muito débeis, a fragilidade é imensa e sua recupera-ção é um fenômeno a interessar parapsicólogos e genteque aposta no sobrenatural. Sim, por que as condiçõesem que se deram e estão se dando são absolutamenteadversas: do ponto de vista governamental, exceção fei-ta à Lei de Fomento ao Teatro que a atual administraçãoda Prefeitura Municipal de São Paulo teve a dignidade demanter viva, as políticas públicas na área são dignas dosmelhores tempos do autoritarismo. O Governador do Es-tado ressuscitando a censura policial impede a aprovaçãodo Fundo Estadual de Arte e Cultura, lei criada pelo ama-durecido trabalho de artistas de todas as áreas e queonera os cofres públicos em fantásticas quantias corres-pondentes à menos de 0,25% da arrecadação do ICMS. OPresidente Lula, que deve muitos dos seus milhões devotos ao avanço cultural do povo brasileiro , se mantémolimpicamente omisso na vergonhosa política para artee cultura que seu governo herda e eterniza. (Se outros

países, com mais problemas econômicos do que nós, comoPortugal, por exemplo, tem políticas públicas decentes,por que não haveremos de ter?).

Do ponto de vista das mídias, senhores absolutos sub-metendo a tudo e a todos, interessa é o mercado, aindaque ridiculamente não lhes tenha chegado a notícia que omercado cá por estas terras, sequer nasceu. No campo doconhecimento, da reflexão, do pensamento, é o que se vê:literatura e produção editorial especializada enferrujaram,na melhor das hipóteses perdidas na gramática lá do sécu-lo XX; os pensadores que valem a pena (e tire-se disto doisou três) discutem, sim, em extensos artigos nos principaiscadernos de literatura dominical, a produção artística con-temporânea ... européia ou americana.

Enfim, somos exóticos! E só o exotismo pode explicar apresença e a pujança de tantos trabalhos artísticos de qua-lidade, tanta gente envolvida! Sim, por que grana não é onúmero que explica esta equação. Olhe só: faço parte deum grupo que envolve por volta de 60 pessoas. Mesmoque beneficiados pelo Fomento, os recursos asseguram ape-nas a manutenção física do grupo. Não são suficientespara remuneração do trabalho artístico, o que é feito atra-vés de uma percentagem da bilheteria de um espaço de100 lugares! Evidentemente ninguém “vive” disso. O fa-

zer artístico do teatro que interessa em São Paulo põeem disputa uma questão aparentemente superada: ser émuito mais gratificante do que ter. É este querer vir aser, a constituir uma arte, uma cultura, uma nação o quemantém de pé os ajuntados artísticos. Sob estas condi-ções, experiências como o do Arte e Ciência no Palco, porexemplo, que mantém temporadas de terça a domingocom um repertório de cinco espetáculos, mais leiturasdramáticas e edições. Ou o Oficina, com sua saga euclidia-na que envolve um exército de mais de 100 pessoas. Ouo Tapa, que sem casa e sem patrocínio, consegue até poro pé na estrada com espetáculos invejáveis. Sem falar doEngenho, mais de dez anos com um circo-teatro que sedesloca pela periferia. Ou o ajuntamento destes gruposque fazem o Sarrafo. Qual será o segredo destes temposjuntando tantos e tão bons? Quase com certeza, em cadaagrupamento a idéia de coletivo deixou de ser teoria epassou a ser prática. Um espetáculo assim criado, nãotem dono, nem assinatura; é de todos e de cada um emais do que isso: faz parte de um projeto discutido, bri-gado, disputado e assim parido. Projeto , que filho detodos e pai de cada um, refunda a sensação de pertenci-mento que é o que de fato constitui uma ética, umacultura e uma cidadania.

O teatro sem donoComo garantir a manutenção de um grupo?

O SARRAFO Número 8 • Dezembro 20056

O SARRAFODezembro 2005 • Número 8 7

NEY PIACENTINI E S ÉRGIO DE CARVALHO

A chance de uma inserção mais viva do teatro no siste-ma das artes está na sua desmercantilização. É a partirde uma contradição que se abre alguma possível mudan-ça: uma nova circulação em alguma medida será um re-torno à produtividade, à não-circulação. Ela depende dofim do imperialismo do valor de troca, da negação dosentido mercantil do trabalho teatral. É do retorno a umautilidade propriamente artística, uma utilidade afeita aoinútil, uma utilidade da ação supérflua em relação à so-brevivência física – mas necessária em relação à vida li-vre, que o teatro extrai a chance de um diálogo produti-vo com sua época. Sempre que se sujeita acriticamenteaos limites convencionais impostos pelo chamado mer-cado das artes (entidade mal formada num país sem bur-guesia liberal), o teatro reafirma a voz da mercadoria. Astemporadas nos teatros centrais nas grandes cidades,quando não criam um novo lugar de encontro artístico,reproduzem a marca da instituição acolhedora. O dinhei-ro gasto com mídia paga, assessorias de imprensa e baju-lação dos servidores das empresas jornalísticas acena parao céu dos grandes capitais como o primo pobre cumpri-menta o grande parente financista e nesse gesto expres-sa sua aprovação invejosa. Enquanto isso, encalham oscartazes e filipetas que insistimos em manter como lem-brança de uma época em que se tinha uma relação maisdireta com o público, lembrança de um tempo pré-finan-

Uma coletividade críticaceirizado em que os produtores tinham o gosto de mer-cadejar porque na feira dos bens culturais ainda existiaalguma relação viva para além da hegemonia das marcas.Nos antípodas disso, a recusa simples em participar dojogo, a decisão em se afastar dos centros urbanos e doslugares marcados do teatro não garante a ninguém umadesmercantilização das relações. O movimento de fugapode carregar consigo o horror de origem. Pode carregaro autoritarismo ideológico das falsas respostas ou o feti-chismo da cultura autorizada. Para criar um novo lugar,o teatro não pode ignorar que o processo de mercantili-zação atravessa toda a vida subjetiva e objetiva da soci-edade, nem deixar de se dirigir aos despossuídos. Se éverdade que o movimento vem das províncias e subúrbi-os, é também verdade que não devemos deixar de atuarnos centros da produção simbólica e dos debates críti-cos, porque é em relação a eles que os extremos se posi-cionam. Aos descontentes, em toda parte, nos dirigimos.

A esperança para o teatro provém de seu potencialde dizer não às tendências dominantes do mundo damercadoria – a especialização, a individualização, aserialização, a facilitação, a hedonização, a consumi-ção. É porque esse potencial subsiste que não desisti-mos por completo da tentativa de uma relação diretacom o público. Isso quer dizer – as companhias quepretendem superar os limites pré-estabelecidos peloque se chama de mercado não devem só priorizar oseu aprimoramento estético mas também trabalhar parasubstituir o destino de todo produto (a circulação)

por um destino de ativação da coletividade. A criaçãode coletivos de grupos teatrais, o cooperativismo, ajunção com parceiros não habituados a partilhar dochamado universo cultural, o estabelecimento de ob-jetivos produtivos que façam – de atores e publico –seres conscientemente ativos e responsáveis, tudo issopode ser o ponto de partida para um trabalho desmer-cantilizado nos centros ou periferias das cidades. Nãosão produtos ou eventos culturais que devemos ofere-cer, mas processos de invenção livre de uma vida me-lhor. A elaboração de políticas públicas para o teatrosó terá importância real quando liberar energias parauma democratização verdadeira das potencialidades crí-ticas da sensibilidade.

Não são aos consumidores de arte que nos dirigimos.Não deveríamos reforçar a ilusão de que o mercado ofe-rece escolhas e autonomia, mas sim trabalhar para umacoletividade crítica. A capacidade de diálogo com es-pectadores se mede pela desautomatização de seus há-bitos de consumo cultural, pela formação de novosmodelos produtivos, pela flexibilização de suas estru-turas de pensamento, imaginação e percepção, pela lem-brança simbólica de que só existimos coletivamente.Cabe a nós – com nossa capacidade profissional, emmeio ao mundo da mercadoria – produzir condiçõesmateriais para que o livre Amadorismo seja um direitode todos e um modelo para o ofício. Se as gerações an-teriores encontraram saídas para o seu tempo, cabe anós pôr em movimento nossa história.

Como renovar os sistemas de circulação cultural?

ANA CRISTINA PETTA

“Ele (o trabalho alienado) aliena o homem do seupróprio corpo, sua natureza externa, sua vida es-piritual e sua vida humana.”Karl Marx

Atores em movimento, visões sobre o mundo, olharessobre o Brasil, possibilidades criativas, dificuldades fi-nanceiras, anseios e limites individuais, desejos e ne-cessidades coletivas: surge um grupo de teatro. Assimsurgiu nossa Companhia, a São Jorge de Variedades.Apoiados em uma direção que sempre apostou na inte-ligência dos movimentos coletivos, experimentamos sen-timentalismo português, precariedade brasileira e ins-pirações brechtianas.

Quando o desafio era penetrar a alma e o cotidianodo Brasil, fomos a um texto de raiz popular, nordestinae habitamos um cenário vivo, urbano. Foi a hora denosso primeiro desafio nas relações internas de traba-lho, contradição entre indivíduo e coletivo. O dilemaera permitir à diretora, que também é atriz, atuar. “– Equem dirige?” A solução estava no grupo! Um ator saiude cena e assume a direção do novo espetáculo. Ficou alição de que para manter-se vivo o grupo precisa deuma organização capaz de transformar anseios indivi-duais em desejos coletivos.

Amparado pela necessária Lei de Fomento, o mergu-lho da Companhia na realidade dos albergues de SãoPaulo nos envolveu nas contradições de um país real,apresentou nova realidade cênica, desmoronou certe-zas e detonou um processo de construção de novos pa-râmetros para o trabalho do grupo.

O espaço não é o palco, não há distinção entre cenae platéia. O processo é aberto, não há diferenças entreensaio e apresentação. O local é “casa temporária”, nãohá separação entre público e privado. O texto não édramático, não há limites entre o que é dito e narrado.

Uma concepção coletiva do espetáculo, inspirada nosprocessos colaborativos – que incluía adaptação drama-túrgica realizada por alguns atores – foi adicionada ànova direção. Atores em novas funções precisam orga-nizar os ensaios, iluminar a cena, fazer opções de ence-nador e dramaturgo, registrar e fotografar o processo,escrever e refletir sistematicamente sobre os dilemas detodas as etapas da criação. Caminho escolhido: hori-zontalizar relações e superar a absoluta especializaçãode cada membro do grupo, permitindo novas vivênciase a participação mais densa, pela inspiração de quem vêprocessos de lugares diferentes.

O período de maior transformação das nossas rela-ções de trabalho foi uma fase de acirramento das con-tradições internas e intensa politização do grupo. Ex-perimentamos a crise, divergimos, questionamos nossafunção social, deparamo-nos com nossos preconceitos.

O momento exigiu longos debates, visão crítica, paci-ência e um ambiente sensível aos limites e conflitos decada um. Sem perder o foco na construção do espetácu-lo e na capacidade de transformar decisão coletiva emação teatral.

Após dois anos da estréia de As bastianas, no alber-gue Canindé, estamos revisitando nossos espetáculostransformados por esta experiência. Em um processo decriação radicalmente horizontal, cada artista contribuilivremente com todas as personagens em longas impro-visações. Cada cena ganha diferentes visões. O materialé organizado em uma relação de troca entre elenco,direção, iluminação e direção musical, com direito aterritórios de intersecção. Durante os ensaios, todos en-tram em cena para propor e todos saem para observar.O espaço livre é construído a partir de um repertório decriação comum, consciente.

A inquietação, o conflito, a diversidade são elemen-tos fundantes do nosso trabalho. Não é possível ditarregras. É preciso fazer o grupo caminhar, abrir espaçospara o crescimento dos indivíduos, torná-lo permeável,passível de mudança. Criar um ambiente solidário dedebates e trocas artísticas fundadas na realidade, queexercite o espírito dialético e revele mecanismos. Assimpoderemos organizar a luta e vivenciar no teatro a uto-pia de uma sociedade onde o trabalho seja a expressãoda liberdade e criatividade humanas. Sem esquecer queo mundo está aí para ser transformado.

Transformar decisão coletiva em ação teatralComo melhorar as relações de trabalho nos grupos?

O SARRAFO Número 8 • Dezembro 20058

PAULO EDUARDO ARANTES

“Bem-vindos ao deserto brasileiro do real”. Pensaria duas vezes antes de dar asboas vindas nestes termos a uma iniciativa tão urgente como a de retomar a açãoteatral no âmbito mais enérgico da luta política organizada. Deixando portanto opessimismo para dias melhores – sejam bem-vindos mais uma vez a uma animadorapaisagem de ruínas e projetos carbonizados. No que segue, breve contribuição umtanto remota e nada prática para o projetado Manual da Retomada.

Depois do longo inverno da nossa despolitização – foram 20 anos de simulação deuma realidade irreal de grandes gestos políticos coreografados pelos eternos artistasdo possível, das Diretas-já à pirotecnia da campanha presidencial de 2002 –, o realdesertificado para o qual afinal despertamos se reapresentou com a cara pré-históri-ca do reino da necessidade mais cega. Necessidade econômica por certo, que pordefinição exige total submissão ao “querer obscuro da riqueza que se valoriza”. Querdizer, a fatalidade das mil formas de uma nova exploração econômica à qual veio sejuntar outras tantas formas de poder e opressão, disseminadas pela soberania obsce-na das redes empresariais, semeando por sua vez todo tipo de hierarquias e violên-cias entre os sobreviventes.

Por mais assombroso que pareça, já vivemos tudo isto antes: na Colônia. Daí a forteimpressão que se tem hoje em dia no coração do sistema mundial de que o deserto emexpansão por estas terras de miséria e impotência na verdade parece anunciar umadramática periferização do planeta. Por isso, numa hora limiar como a presente, vemmais do que ao caso insistir na atualidade da assim chamada Acumulação Primitiva,que de primitiva obviamente não tinha nada, como de resto o demonstra o caráter“avançado” do experimento colonial que engendrou a horrenda sociedade brasileira deontem e de hoje. Me explico: enquanto a Europa ainda se arrastava no emaranhado doAntigo Regime, em sua franja colonial se encontrava em plena ebulição um verdadeirolaboratório de vanguarda do capitalismo total. Várias guerras bárbaras de limpezaétnica depois, a banalização de todo um território por força de uma razão econômicade novo tipo, repovoado por assentamentos humanos exclusivamente empresariais, epor isto voltados integralmente ao mister selvagem de extração de mais-valia com umaintensidade e crueldade jamais vistas na história do trabalho humano, pelo menosdesde os tempos do trabalho escravo nas minas do Império Romano. O que antes seapresentava como uma zona residual de comportamentos extremos, a exceção queprosperava nos subterrâneos da normalidade burguesa em formação, desde então ame-aça tornar-se a regra nos momentos de colapso do sistema. Foi assim com o apocalipsenazi: nunca é demais lembrar que a principal mágoa dos bons europeus com os hierar-cas do Terceiro Reich era o tratamento “colonial” que lhes estava sendo dispensado.Completava-se assim o sentido da colonização. Quando se diz que o Imperialismo estáde volta, impulsionado por novas rodadas de acumulação por espoliação – privatiza-ções, ajustes fiscais, expropriações via patentes, guerras de pilhagem, etc. –, é nova-mente disto que se trata, da recaída em nossa condição originária de exploração aber-ta, desavergonhada, direta e seca. De volta portanto ao deserto colonial de vanguardada mais rasa necessidade econômica. Pois que de necessidade se trata, não há maisnada a fazer a não ser aquilo que deve ser feito, governa-se cada vez mais por medidasadministrativas – exatamente como nas colônias.

Deu-se então o grande disparate. Reconciliando gregos e troianos, a esse governoda coerção econômica pura, deu-se o nome de “consenso democrático”, em tornoexatamente do interesse nu e cru do pagamento em dinheiro. Aqui no entanto, oparadoxo maior da nossa despolitização: não é bem o que parece. É que, ato contí-nuo, acionou-se o realejo do vazio político, das nossas escolhas confiscadas etc. E noentanto é muita lágrima derramada sobre esse famigerado vazio político. Dá paradesconfiar do contrário, de que se trata de entupi-lo com mais política ainda. E seessa caixinha de música fosse de fato o mega-computador do tal filme, justamenteum filme de ficção política? Tudo se passa como se a tal máquina de simulação darealidade fosse a própria Política. Estou é claro me fazendo de desentendido, nossoManual para depois da Queda são outros quinhentos. Mesmo assim não custa o avisoaos navegantes: estamos carecidos mesmo é da providência contrária, de uma críticaem regra da Política e, em função dela, reorganizar nossa imaginação, extraviada faztempo no mercado das responsabilidades públicas.

Carta aos queretomam aação teatral

O SARRAFODezembro 2005 • Número 8 9

é muita lágrima derramada sobre esse famigerado vazio político.

Enquanto o deserto crescia nos últimos quinze anos, nunca se viu tanta gente,do mais variado calibre e por todos os cantos do espectro ideológico, empenhadana promoção e venda de um sem número de artigos políticos, da “cidadania” às“refundações republicanas” a torto e a direito, sem falar nas “inclusões” assim ouassado, nas “injustiças” a reparar, nos “preconceitos” a denunciar, nos “direitos” aregistrar em cartório, a começar pelo sacrossanto direito ao “dissenso”, democráti-co é claro. Tantos estremecimentos políticos mal abafavam o ruído festivo com queo capitalismo turbinado vinha mandando tudo que é moldura reguladora pelosares, salvo é claro, o básico. Quer dizer, ficou a exploração, fragmentada por umsem número de redes de extração de mais-valia – sendo a rentista a mais invasivadessas bombas de sucção da riqueza social. Exploração além do mais interiorizadaaté o fundo da alma. Ou da pele: “Todos se tornam o seu capital humano, aindaque seja simplesmente o corpo nu”. Se é assim, porque não tomar ao pé da letra ojúbilo com que dez em cada dez colunistas da grande imprensa, para não falar nossábios de sempre, dia sim dia não e nos últimos quatro meses de derrocada petistaentão nem se fala, provam por a+b que a democracia simplesmente faliu por ine-quívoco esgotamento histórico, já que absolutamente mais nada de relevante sedecide no seu âmbito de representatividade nula? Mas quando o diabo entra emcena e sugere tirar conseqüências não triviais do mesmíssimo raciocínio tão escla-recido, porque o Deus nos acuda? Mesma réplica literal no que concerne o marke-ting corporativo. De tanto vender ao distinto público a idéia de que o lucro é umdetalhe técnico, contando mesmo e exclusivamente o compromisso social da em-presa com o consumidor, o meio ambiente e o seus funcionários, as pesquisasacabaram demonstrando que as vítimas finalmente se convenceram de que é assimque deve ser – entendendo-se que os acionistas também estão de acordo, já quenão se desenhou tal estratégia sem a sua anuência. Nessas condições, teríamosapenas que fazer constar em ata esse imenso arquipélago de economia solidária,não é mesmo? Pelo menos de violência ideológica não se poderá falar, afinal esta-mos todos de acordo quanto aos termos de enunciado de fundo. Teríamos no míni-mo duas fábulas a trançar em cena, algo como uma Comédia da Política, em cujoprólogo no céu poderíamos medir o tamanho de nossa despolitização pelo inchaçoda falecida cultura da reclamação... política, que nos confiscaram, etc etc.

Trocando em miúdos mais tangíveis, digamos que padecem todos os egressos daressaca dos últimos 20 anos de uma espécie de nostalgia politicamente correta daluta de classes, como quem diz: no seu tempo, tais lutas foram formas integrado-ras – daí o mantra da “inclusão”. Os órfãos do dissenso não suspiram pelos comba-tes sociais de ontem, contra cujos excessos de resto não havia garantia nenhuma,longe disto: a ausência pela qual vestem luto é outra, embora também da ordem dapacificação dos conflitos, a virtude inibidora das pulsões destrutivas que se foicom a sábia calibragem política da luta de classes. Vistas as coisas do ângulooposto, o roteiro é mais familiar. Houve de fato um tempo em que as idas e vindasda luta de classes arrancavam, na forma de tréguas mais ou menos duradouras,“instituições” que não brotariam por geração espontânea no terreno adverso deuma sociedade antagônica: sindicatos, sufrágio universal, legislação do trabalho,seguridade social, etc. Como era de se prever, tais conquistas provaram não sercumulativas nem irreversíveis, as que sobrevivem continuam a se esvaziar. No re-fluxo da maré, o que se vê na praia é o cenário de ruínas evocado linhas atrás. Aluta simplesmente mudou de patamar. Onde antes parecia haver composição deinteresses e a luta política assumia a forma de uma barganha, a atual ditadura daescassez parece estar imprimindo à política a matriz estratégica da guerra – im-posta aliás pelo próprio campo inimigo quando iniciou o desmanche do arranjoanterior, alegando que num mundo globalizado de empresas soberanas (como nostempos coloniais em que as grandes companhias comerciais dispunham de forçasarmadas privativas e controlavam territórios), o novo parâmetro passara a ser aguerra econômica total. Mal perguntando: nas presentes circunstâncias, qual osignificado menos surreal de uma expressão como “disputa pelo fundo público”?Ou ainda, “nosso governo”? Bem-vindos, etc.

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se refere à idéia de que o mundo écognoscível e transformável – o fato éque não estamos mais em condiçõesde ordenar informações segundo as ca-tegorias de verdade e progresso surgi-das no Iluminismo, e nem era exata-mente esse o projeto de Marx – acre-dito também que suas análises da re-alidade continuam a abrir os mais po-tentes caminhos de diálogo produti-vo com os processos do real. Em con-traposição ao caminho norte-america-no imposto ao mundo (uma via da va-lorização da individualização), os pen-samentos marxistas ainda são os maisúteis instrumentos de compreensão einterferência nos acontecimentos dasociedade. Permitem-nos olhar paradeterminadas conexões sociais que deoutro modo não seriam percebidas.Bem longe disso, a tendência mais fre-qüente no teatro alemão é pôr-se defora dos problemas, recostar-se, tor-nar-se depressivo. Estabelece-se umcurto-circuito entre vivência do capi-talismo e depressão: as pessoas prefe-rem se isolar em torno de sua maiorou menor capacidade individual defazer sucesso.

O SARRAFO – Dentro e fora do te-atro, a realidade parece cada vezmais comprovar a observação de Marxde que as grandes disputas da socie-dade ainda passam pela exploração

O SARRAFO – Numa palestra emSão Paulo, o senhor se filiou a umatradição teatral de esquerda daqual fazem parte Brecht e Piscator,referindo-se a si próprio como um“marxista ocidental”. Gostaríamosque, se possível, o senhor comen-tasse o que significa hoje ser umartista marxista.

CASTORF – Certamente existemmuitos diretores influenciados por umpensamento crítico que toma comoponto de partida o valor material dascoisas. Existem muitos diretores quepoderiam ser ligados ao nome de Marx.No entanto, entre Marx e o teatro exis-te uma mediação chamada Brecht quefoi quem mais radicalmente estabele-ceu um trabalho de arte decorrentedessa visão da sociedade. De fato eume incluo nessa tradição e me sintocompromissado com esse pensamen-to. Acredito que muitos diretores, so-mente pelo fato de terem se aproxi-mado dos textos de Brecht, se enca-minharam para uma visão crítica dasociedade próxima do marxismo. Pre-cisamente no atual momento históri-co, na Alemanha depois da unifica-ção, quando os blocos do Oeste e doLeste terminaram de existir, é que sepoderá ler outra vez com interesse eatenção o “O Capital” de Karl Marx.Ainda que eu acredite que a teoriamarxista deva ser completada no quee

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POR FERNANDO KINAS, INÁ CAMARGO COSTA , JOSÉ F ERNANDO E SÉRGIO DE C ARVALHO

Frank Castorf é um dos mais importantes encenadores daatualidade. Oriundo da Alemanha Oriental, foi por cincovezes eleito diretor do ano pelos críticos teatrais daAlemanha . Sua sede de trabalho é o lendário Volksbühne (oTeatro do Povo), construído em 1914 por associaçõesoperárias e que continua a ser um dos espaços maisinfluentes do teatro europeu. Situado na Praça RosaLuxemburg, no centro antigo de Berlim, o Volksbühne dehoje reinventa – sob a orientação de Castorf – o legado deartistas como Piscator, Besson e Heiner Müller. O conceito de“teatro expandido” praticado nessa casa abarca, além dotrabalho de encenadores inventivos e polêmicos comoMarthaler, Schlingensief, Gotscheff e René Pollesch, eventosculturais variados de literatura e música. Castorf esteverecentemente no Brasil com Estação Terminal América(Endstation Amerika ), adaptação livre da peça Um bondechamado Desejo de Tennessee Williams. Esta entrevista a OSarrafo foi realizada em 23 de setembro, em São Paulo, nosbastidores do teatro durante a apresentação do espetáculo.

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Edifício da Volksbühne na década de 1920

do trabalho, mesmo quando esse tra-balho se mostra cada vez mais frag-mentado e precarizado. Essa depres-são não decorre de uma relação detrabalho tornada o tempo todo con-correncial e competitiva?

CASTORF – Também na Alemanha,não só no Brasil, o trabalho está su-mindo. O trabalho que permite o en-contro das pessoas, que reúne suasatividades em uma ação conjunta,esse sistema de produção da riquezapouco a pouco desaparece, sem quea maioria da população possa de fatodesfrutar do tempo livre. Cada umestá sendo jogado para o isolamentoe se sente mais e mais impotente. Édessa forma que as pessoas passam aser governadas mais facilmente,quando submetidas a uma sensaçãode impotência. O individualismo ex-tremo é o outro lado da moeda.

O SARRAFO – Foi o interesse noque o senhor chama “caminho ame-ricano” de gestão do capitalismomundial que o levou a encenar umtexto de Tennessee Williams?

CASTORF – O caminho americano épercorrido por uma sociedade quandomais e mais pessoas se retiram da po-lítica. Quando elas deixam de acredi-tar estar mudando alguma coisa ao seorganizar, ao votar. Foi por isso quenessa peça existe a tentativa de con-ferir um perfil político a uma perso-nagem como Stanley Kowalski, supos-tamente um polonês católico, torna-do alguém com um passado radical doponto de vista político-social. Comoocorre com tanta gente que se encon-tra num estado de isolamento e impo-tência, quando as pessoas chegam aum ponto em que pensam que nãovão mais conseguir mudar nada na so-ciedade, já muito distantes de um pas-sado em que participaram de grevesou de uma comunidade qualquer(como um partido ou igreja ou até afamília), esse Stanley Kowalski é tam-bém aquela pessoa que vê uma épocaacabada e se sente isolado e doente.Como lidar com esse tipo de doençavaria muito – existem aqueles que ten-tam produzir alternativas e até mes-mo aqueles que produzem arte comouma alternativa de compensação ilu-sória. Gente que cria mundos imagi-nários. Que prefere viver em mundosde arte, mundos de arte feita para dro-gados, que oferecem imagens muitofalsas da realidade. Esses são os artis-tas cúmplices daqueles que têm o po-der. São idiotas úteis. Mas o fato éque essas doenças só podem ser bemavaliadas dentro de um sistema de co-ordenadas – daí a importância do va-lor material das coisas. Quando as neu-

roses de uma peça se desenvolvem, arealidade das lutas psíquicas só terásua real dimensão dentro de uma lo-calização social aberta a processosmais amplos.

O SARRAFO – O que você pareceestar fazendo é traduzir Brecht paraa Alemanha atual, aplicando seumétodo a uma forma de encenaçãoque – para instaurar um novo dis-tanciamento – chega ao ponto deromper com as técnicas tradicionaisde fabulação. Para se aproximar deBrecht o senhor chega a romper como “classicismo” épico.

CASTORF – A base, no entanto, éa mesma. A hipótese com que eutrabalho é que a influência maisimportante de Brecht para o teatroalemão atual pode ser percebida na-queles que definem o homem a par-tir de uma relação materialista. Aíestá o ponto importante. As pesso-as não existem através do seu espí-rito: o que as define como indivíduoé a situação e condições na qual semovem e o que elas fazem. É nessaperspectiva que eu e outros na Ale-manha procuramos fazer teatro.

O SARRAFO – A sua técnica deencenador pode ser comparada à deoutro artista interessado em Brecht,como Mathias Lahgoff. Mas tanto osenhor como ele trabalham à ma-neira de Müller: é como se vocês es-tabelecessem uma tensão entre pla-nos, mais de uma trilha histórica,que formam uma meta-narrativa,não linear. A cena não é um veícu-lo, não está “deaco rdo com apeça”. Ela apare-ce contraposta,oscilando em re-lação aos mate-riais do texto.

CASTORF –Acredito que defato exista essasemelhança demétodo. No fun-do sempre procu-ro construir ummeta-nível cêni-co. Existe a his-tória e existe ocomentário so-breposto. O diá-logo é que é im-portante. Comestas tensões criouma determinadadinâmica. Aoatribuir uma bio-grafia política aKowalski diferen-

te daquela de Tennessee Williams, aspalavras da peça têm seu sentido mo-dificado. Criamos uma ativação. Écomplicado falar sobre isso. Mas émesmo muito importante no meu tra-balho esse tipo de articulação críticado material.

O SARRAFO – Como é possível pôrem prática essa atitude teatral radi-cal num espaço como a Volksbühne,mantido pelo Estado alemão?

CASTORF – Isso tem aver com uma certa heran-ça feudal das instituiçõespúblicas alemãs. Quandovocê atinge um patamaralto de liderança dentrodessas instituições, vocêse torna alguma coisa pa-recido com o rei. Um inten-dente de um teatro públicoalemão tem o direito abso-luto de decidir tudo. Daí éque surge a chance de praticar a“longa marcha através das institui-ções” para lhes conferir uma utili-dade realmente pública. Dessa con-tradição é que surge a chance de re-estruturar a instituição teatral deacordo com as necessidades políti-cas daqueles que nela trabalham.Também fiz isso na República Demo-crática Alemã, mesmo quando eraminstituições pequenas. Nós consegu-íamos por dois, três, até quatro anostrabalharmos com independência eliberdade, em desacordo com o esta-do totalitário. Até o momento emque fomos politicamente despedaça-do e proibidos de seguir com liber-

dade. Na Volksbühne de hoje, emfunção dessa herança arcaica, pode-mos determinar as condições do tra-balho, suas formas de produção, de-finir as relações e programas. Issosignifica conquistar a grande inde-pendência de se trabalhar livre dapressão capitalista, sem a preocupa-ção em atingir índices de especta-dores, números de visitantes, quan-tidades de edição ou de retorno demídia, metas que as empresas cul-

turais costumam ter. Estaé uma situação atípica eprovém de uma estrutu-ra feudalista. É isso quenos confere esse grandeprivilégio.

O SARRAFO – Não existenenhum tipo de censura?

CASTORF – A censura po-lítica não funciona hojecomo na época do comu-

nismo, não é exercitada de forma cla-ra. Ela tem caminhos mais curvos paraexercer sua destruição. Nosso maiorproblema está na pressão de um gos-to mediano burguês, que se manifes-ta tanto na política quanto na estéti-ca. Esse gosto, formado no círculo da-queles que ganham mais dinheiro eainda freqüentam teatro, se converteàs vezes em rejeição direta. Eles assis-tem aos espetáculos e depois vão aoprefeito, aos partidos, e dizem: “Istonão é o que queremos. Não é para nós.Isso não é feito para o povo.” Falamem nome do povo, mas faz tempo queo povo não vai mais ao teatro. O tea-tro se tornou um gueto.

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O SARRAFO – Na Volksbühne opovo não ocupa a platéia?

CASTORF – Tentamos romper comessa tendência oferecendo entrada apreços muito baixos. Começamos issoem 1992, cobrando cinco marcos, algocomo dois dólares e meio. Hoje os in-gresso custam cinco euros para estu-dantes, desempregados, aposentados,soldados. Para aqueles que podem pa-gar, cobramos 20 euros. Há um certotempo realizamos trabalhos com mo-radores de rua. Acolhemos um diretorque trabalhava com atores à margemda sociedade. Tivemos este grupo du-rante quase dez anos. Temos tambémteatro com jovens estudantes. O tea-tro é pensado como uma espécie decentro cultural com atividades artís-ticas variadas, um lugar aonde se vaitambém para dançar, festejar, conver-sar, discutir filosofia, viver. Como umagrande casa de cultura com interessesmuito diversos, tentamos tirar dos fre-qüentadores o medo do teatro, rom-per com aquela imagem comum amuita gente de que “sou ignorantedemais para o teatro, não entendoisto”. Foi isso que tentamos duranteos últimos anos. Recentemente per-demos um pouco o fôlego. Essa ten-tativa já não tem a mesma intensi-dade. Entretanto, percebemos que seperdêssemos esta energia, entraría-mos numa crise. Porque agora é opúblico burguês – que no fundo sóquer a bela aparência – que não vemmais. Pelo menos não em massa. Epor aí somos forçados a continuar ocaminho de uma casa cultural aber-ta. Podemos fazer isso porque temosessa chance de contar com um bomdinheiro que nos permite manter umaenorme equipe trabalhando.

O SARRAFO – Como é a utilizaçãodo orçamento do teatro?

CASTORF – A maior parte de nos-sa verba não vai para a arte, vai paraos trabalhadores, os artesãos, paratodas as pessoas que trabalham jun-tas dentro do teatro. Nas áreas artís-ticas somos no máximo 50. E exis-tem mais de 180 pessoas nas outrasáreas. Somos 25 atores, dramaturgos,diretores, músicos, administração,equipes técnicas. Ao todo mais de 250funcionários. Para tanto contamoscom um orçamento anual de aproxi-madamente 14 milhões de euros.

O SARRAFO – Isso é inacreditávelpara os padrões brasileiros!

CASTORF – E dentro de Berlimsomos um teatro estatal pobre. ASchaubühne recebe mais do que nós,em termos percentuais, mas é pou-ca coisa. Quem recebe bem mais di-nheiro são o Deutsches Theater e oBerliner Ensemble. Somos um tea-tro do Oriente, e antigamente rece-bíamos o dinheiro do Município deBerlim oriental. Já o Berliner Ensem-ble era um teatro estadual na época

da Alemanha Oriental. E naqueletempo já recebiam mais dinheiro. Eé assim que continua. Em relação aoresto da Alemanha, porém, somosum teatro bem abastado.

O SARRAFO – A Volksbühne nasceem 1890 da vontade de romper com omonópolio cultural da burguesia. Nas-ce como uma cooperativa de organi-zação do público operário: pequentascotas mensais mantinham os espaçose repertórios teatrais. O senhor pode-ria contar rapidamente essa história?

CASTORF – A associação “FreieVolksbühne” era uma organização demassa por volta de 1913, com mais de70 mil associados, quando conseguejuntar dinheiro e construir o prédio.Foi o primeiro teatro construído comdinheiro de operários na Alemanha.Nos anos 20, quando a associação con-ta com mais de meio milhão de inte-grantes, acolheu artistas muito dife-rentes, por exemplo, Max Reinhardt ePiscator. Mas as lideranças da associa-ção “Freie Volsbühne” no fundo ti-nham uma imagem de teatro muitotradicional. A política cultural dossocial-democratas, o partido de FranzMehring, rebatia no teatro e eles ima-ginavam que o operário – que não ti-nha estante de livros – deveria ver en-cenado seu “Goethe puro”. Entretan-to, pessoas como Erwin Piscator que-riam um teatro de vanguarda, políti-co, voltado para o novo por meio daliteratura. Os nazistas, no poder de-pois de 1933, desapropriaram a asso-ciação e fazem da Volksbühne um Tea-tro de Estado. Depois da Guerra, naRepública Democrática, é assim que acasa permanece, enquanto a “FreieVolksbühne”, a associação dos funda-dores, migra para Berlim ocidental.Depois de 1961, Erwin Piscator voltapara a Alemanha e funda a “FreieVolksbühne de Berlim Ocidental”. En-tão passam a existir duas Volksbüh-ne. A Volksbühne Oriental retorna aum espírito aburguesado de repertó-

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rio, parecido com o dos social-demo-cratas dos anos 20 e os políticos daantiga RDA aprovam, ao mesmo tem-po em que a platéia se esvazia. So-mente nos anos 70 houve um perío-do importante com Benno Besson,um encenador suíço discípulo de Bre-cht. Foi uma época muito produtiva.Ali trabalhou Heiner Müller, o poetae dramaturgo mais importante daAlemanha no pós-guerra. Houve umarenovação progressista, todos eram deesquerda. Mas tão de esquerda quenão agradavam aos dirigentes comu-nistas da RDA, com sua concepçãopequeno-burguesa. No fim dos anos70 o teatro estava politicamente que-brado. E com ele muitos daqueles quetinham feito um teatro importanteno Leste depois de 1945.

O SARRAFO – O senhor assume oteatro no fim dos anos 80...

CASTORF – Quando já tinha seesvaziado. Ofereceram-me e eu dis-se: “Bom, está vazio. E mais vaziodo que o vazio não há.” Eu me es-queci que as coisas atingem às ve-zes superlativos inesperados. Era,contudo, o teatro que tinha meatraído quando eu era estudante eassistia o trabalho de Besson e detantas pessoas do mundo inteiroque por ali passaram. O que era in-comum na RDA, um país cercado.Foi esse teatro que nos anos 70, naminha juventude, me deu coragempara continuar. Era também o tea-tro da história recente da Alema-nha: foi reconstruído em 1954 commármore retirado do palácio de go-verno de Hitler, da sua chancela-ria. O exército soviético pegou par-te daquele monte de mármore paraconstruir o monumento da liberta-ção da Alemanha, no parque dobairro de Treptow, e a outra parteestá na Volksbühne. Anda-se ali emcima das lâminas da memória dopalácio de Adolf Hitler. É semprebom não esquecer essa camada.

O SARRAFO – Na Alemanha unifi-cada pelo capitalismo, a Volksbühnepermanece como um corpo vivo dahistória. Como o passado do teatrose relaciona com os anos 90?

CASTORF – De certo modo é umteatro que continua a se dirigir a umaparte da Alemanha inadaptada paraas condições burguesas, tanto pelopassado como por sua atitude críti-ca. Houve ocasiões em que esse con-fronto com o sistema de gestão capi-talista teve dimensões diretamentepolíticas, no intuito de apontar as in-justiças da nova sociedade. Certa vez,recebi um telefonema do chefe de umpartido pós-comunista, esse homemtinha sido meu parente e me ligou àsseis horas da manhã. Ele liderava umgrupo que tinha sido politicamentecastigado porque seu partido tinhaganhado as eleições. Estavam sendoperseguidos, foram despedidos dasinstituições públicas onde trabalha-vam. Iam dar início a uma greve defome como protesto. Eu tinha acaba-do de sair do show de um grupo folk-punk escocês e estava bêbado. Nesseestado, como um zelador, fui abrir oteatro de manhã. Eles levaram suascamas de campanha, tiraram as rou-pas, revelaram as cuecas já feitas dotípico algodão branco de uma marcaclássica alemã. Vi que estavam bas-tante bem alimentados. E imediata-mente o governo de Berlim me orde-nou que eu os pusesse na rua. Entãoeu disse: “Sou o primeiro que vocêspodem botar para fora.” Também abri-gamos uma rádio pirata na nossacasa, que fez programas proibidos.Tentamos dar proteção a esse tipo depessoas. Por aí se percebe que em taltipo de instituição se pode fazer mui-to mais do que se pensa. É como umaigreja. Os anos noventa foram muitointeressantes em Berlim. Agora tudose torna normal demais.

O SARRAFO – De que jeito se dáessa normalidade?

Cena de Estação Terminal América

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O SARRAFODezembro 2005 • Número 8 13

CASTORF – Não se tenta mais fa-zer coisas juntos. Cada um só pen-sa em sua aposentadoria, em suaprosperidade, como é que vai con-tinuar até o fim. Não existe maisotimismo. São poucos os que dizem:“Não estou bem, mas gosto de vi-ver e quero fazer alguma coisa ou-tra, por exemplo, com arte.” Pesso-as com 20 anos de idade já estãopensando na aposentadoria. Isso éhorrível. Nem se começa a viver.

O SARRAFO – Não faz falta naAlemanha de hoje um tipo de pro-vocação mobilizadora como as fei-tas por Heiner Müller?

CASTORF – Enquanto havia o co-munismo, Müller foi um analista

muito exato e polêmico. Tentava in-cluir tudo em sua observações, deAuschwitz até o Gulag, o campo deconcentração comunista. Ele era oartista de uma esquerda que se dis-sipava. Confrontava-se, também,muito abertamente e de maneira cí-nica, com a auto-satisfação dos co-munistas alemães. Era o oxigêniodele. Depois da queda do muro, como fim do estado comunista, o “pes-simismo histórico” de Müller (nãosei se seria exato chamar assim!),enfim, sua maneira de encarar a his-tória se tornou obsoleta. Aí ele fi-cou doente. E não apenas por cau-sa do câncer. Mas para mim o pen-samento de Müller até hoje temgrande força. Porque certamente

MATTHIAS PEES

Um livro que, já nos primórdios, apresentou o trabalho de Frank Cas-torf na Alemanha tinha o título “Teatro do momento”. Como dramatur-gista acompanhei nos anos 90 durante cinco anos as fases de ensaio desuas produções, e todas elas se caracterizavam por um trabalho voltadopara o momentâneo. Concretamente, tratava-se em geral do seguinte pro-cedimento: os atores, sentados na sala de ensaios ou no palco, já estãoesperando que o diretor chegue atrasado. Quando este finalmente apare-ce, alega ignorância, diz que está despreparado, declara-se incompeten-te, e todos esperam juntos que alguma coisa aconteça. Talvez esperemmomentos. Alguns experimentam figurinos, fazem-se comentários sobreinúmeros problemas de outra natureza, que parecem muito mais impor-tantes, contam-se episódios ocorridos na noite anterior; os atores, cenó-grafos, dramaturgistas, pontos, assistentes são instados a fazerem suges-tões “construtivas” sobre a maneira de prosseguir, mas estas são rejeita-das logo em seguida em tom irônico, o que acaba provocando perplexida-de ainda maior, aprofundando a crise.

A crise, a imobilidade, a impossibilidade do teatro – é esse o verdadeiroponto de partida do trabalho; motivação, engajamento e boa vontade jásão o princípio do fim, condição infalível para um teatro ruim – por issoprecisam ser combatidos desde o início. Heiner Müller afirmou certa vezque somente uma peça “irrepresentável” serve realmente para fazer teatro;se na leitura da peça já posso imaginar o que vai acontecer no palco,dispensa-se desde logo a sua encenação. Devemos encenar somente o ini-maginável, porque só ele merece ser levado ao palco. Talvez seja por issoque o diretor Frank Castorf começa descartando em bloco tudo o que lhe“veio à mente” sobre os personagens, a peça ou determinada cena antesdos ensaios. Porque aquilo que pode ser imaginado antes é apenas o espe-rado, o calculável, o previsível.

Em certo momento, depois de muita repetição quase ritualística da mes-ma pergunta: “E agora?”, Castorf posiciona os atores no cenário, lançando-lhes na cara textos ligados à respectiva cena. Ele declama, resmunga, grita,mastiga o texto para eles, esse texto que vira uma mistura de original literá-rio e comentário espontâneo e que encontra o ator completamente despre-parado. É a única maneira que o diretor usa para “mostrar” o que quer(dificilmente ele se levanta da cadeira durante os ensaios, nunca sobe aopalco, para mostrar ao ator o que deve fazer, como se este devesse imitá-lo).Mas o texto, sim, ele o lança no ensaio com uma dicção e uma energia queserve ao ator como modelo de aprendizagem e de interpretação, às vezesdepois de semanas, quando estuda a gravação do respectivo ensaio.

É raro também Castorf aparecer no ensaio com um texto pronto. Asversões de suas peças e até mesmo das dramatizações de romances vão

surgindo no momento do ensaio. Nem tampouco fica repetindo as cenasencontradas durante os ensaios, pois segue rigorosamente a cronologia dodesenrolar da futura peça. Quando falta um dos atores, ele não pula seustrechos, prefere alterar definitivamente o desenrolar da peça, cortandopersonagens ou invertendo simplesmente a seqüência. Só bem mais tarde,pouco antes da estréia, começa a repetir, selecionar, descartar, cortar, quandomonta as cenas em seu conjunto, lançando então o grupo em novas crisese perplexidades, porque, apesar da eficácia probatória das gravações e dasanotações de roteiro feitas por seus assistentes durante os ensaios, elequestiona a exatidão daquilo que está sendo repetido, põe em dúvida oacerto de detalhes ou da seqüência que começa a se definir.

Só então fica pronta a estrutura de sua peça. Muitas vezes é só depoisda estréia que se pode fazer um balanço geral da peça como um todo,porque antes faltou tempo para um ensaio geral. E aí começa outra crise.Trata-se, agora, de uma crise de energia, de um questionamento geral:será que os atores estão em condições de reunir energia e coragem ecompreensão suficientes para enfrentar o construto todo dessa encena-ção que acaba de erguer-se diante deles como um monstro, será queconseguirão “passar” tudo isso ao público, de uma maneira viva e inteli-gente, sem afetação, com sinceridade?

Castorf é rápido. Pode ser que seus “lances de xadrez” não tenhamsido planejados estrategicamente de antemão, mas parece que ele, comoum campeão mundial de xadrez, já consegue prever, no momento dolance, ou seja, a partir de um fato cênico ocorrido durante o ensaio,todas as combinações decorrentes, por isso decide na hora, se um episó-dio eventual se encaixa ou não no contexto total, se vale a pena levaradiante e desenvolver a idéia. Nesses momentos, os atores, que precisammostrar autonomia em suas propostas cênicas, se orientam totalmentenele e estão dispostos a acatar cegamente as suas decisões. Não parecemlevar para o lado pessoal a “rejeição” de uma proposta feita por eles,antes se submetem ao princípio de uma inteligência superior, de umavista do alto em quarta dimensão, olhando uma cena virtual como quenuma perspectiva do futuro. Esse impulso produtivo em que se realiza oque chamamos de “teatro do momento” dura, até mesmo nos dias comoito horas de ensaio, no máximo 30 a 40 minutos, mas é o que basta.Esses momentos não podem ser repetidos, mas são perceptíveis. E maistarde, lembrando esses momentos no contexto geral, pode-se tentar pro-duzir novos momentos, para combiná-los. Tudo isso não dura mais quequatro a seis semanas. Quanto mais curta a fase de ensaios, mais longaserá a peça. O início é protelado indefinidamente, é preciso evitar que secomece, que sejam tomadas decisões, que se estipule quem faz o que ecomo começar. No fim, a situação se inverte: é preciso evitar que setermine, que a panela perca a pressão, que os atores se sintam (suposta-mente) “seguros”, que se decida cedo demais a luta pelo todo.

Processo criativo na Volksbühne

trata-se de um artista marxista, quenos mostra em suas peças, junto aosmovimentos das pessoas, os inte-resses materiais e o interesses dopoder. Eu encenei a peça “A Mis-são” duas vezes. Ela trata de umarevolução exportada. Mas no meioda peça tem uma interrupção. Onobre sonha com o futuro. Diz:“Tive um sonho. Estive em Nova Ior-que. E o asfalto estava fervendo.” Éuma imagem muito linda. “Sonheicom três cobras. Uma era azul, aoutra dourada, e outra branca.”Pressentimos os três continentes:Ásia, Europa e África. O sonhadordiz: “Porque me esqueci que saímosde mundos muito diversos.” Mas porum determinado tempo, apesar de

tamanhas diferenças, conseguiramfazer algo juntos. Justamente por-que tiveram o sonho de fazer algojuntos. Esses três – se quisermos di-zer assim – revolucionários estavampraticando uma forma útil de soli-dariedade. Acredito num renasci-mento da obra de Müller. Como mar-xistas não devemos nos acomodarem nada. Não compartilho de ne-nhuma crença no determinismo dadecadência ou coisa do tipo. Sintofalta, às vezes, em certas obras, dainterferência de uma dimensão éti-ca ou moral que nos lembre da nos-sa responsabilidade nesse conjuntode coisas e condições.

Edição de Sérgio de Carvalho

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DANIELE R ICIERI E MARIA CECÍLIA G ARCIA

Uma das grandes lições práticas que um movimentocomo o MST pode dar aos artistas, para além da ativa-ção histórica da luta de classes, está na sua capacidadede organização. O crescimento do papel da cultura den-tro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra,nos últimos anos, é um bom exemplo de uma impressio-nante capacidade de acumular esforços de aprendizado.Ainda que a ação cultural tenha sempre existido noMST, originalmente ligada às chamadas Místicas e a umaprodução espontânea de canções, poesias e peças co-munitárias, formadas da experiência de vida dos acam-pamentos ou assentamentos, foi nos últimos anos queessa produção se sistematizou com a criação do Coleti-vo Nacional de Cultura do MST.

Segundo Rafael Villas B ôas, um dos responsáveispelas atividades culturais no MST, o Coletivo de Cul-tura, trabalha com três eixos programáticos: qualifi-cação estética e política de militantes nas lingua-gens culturais com o objetivo de formação de multi-plicadores; produção de um referencial de cultura quese contraponha à lógica da produção cultural do ca-pitalismo; e fortalecimento do contato entre popula-ção rural e urbana.

O grande crescimento do teatro dentro do projeto cul-tural do MST dá uma boa imagem desse processo de acú-mulo cultural em bases políticas. Desde 2001, o MST temprocurado com mais constância estabelecer parcerias comartistas e intelectuais interessados na produção de umaarte crítica. No caso do teatro, a primeira parceria decooperação regular, para além das eventuais colabora-ções com grupos como Ensaio Aberto e Companhia doLatão, ocorreu com uma série de oficinas a partir dométodo de Augusto Boal. Membros do Centro do Teatrodo Oprimido (CTO) trabalharam com os integrantes daBrigada Patativa do Assaré, representante dos 23 estadosem que MST atua, num contato que produziu de iníciovárias cenas de Teatro Fórum, sendo os temas das peçasdefinidos pelos participantes. Um desses assuntos recor-rentes foi a discriminação racial. O Teatro Fórum demons-trou, assim, “capacidade de identificar problemas de opres-são e discriminação que as comunidades acampadas eassentadas tinham dificuldade de expor em reuniões eassembléias”, nas palavras de Villas Bôas, apontando aindaoutras questões críticas do cotidiano das pessoas, comomachismo, violência doméstica, discriminação dos sem-terrinha nas escolas da cidade e o preconceito em tornoda educação sexual.

Este exemplo ilustra bem o potencial de uma técnicateatral para identificar e mobilizar problemas do pró-prio movimento: “Notamos que no decorrer desses cin-co anos de atuação da Brigada Patativa do Assaré come-çou a se esboçar uma espécie de sistema interno noMST, em que grupos produzem peças, que são registra-das por escrito, e o texto é enviado para outros coleti-vos. Nos encontros nacionais e regionais esses gruposapresentam-se e trocam experiências.”

O crescimento do interesse por teatro dentro do mo-vimento fez com que o Coletivo de Cultura passasse aprocurar intercâmbios com outros grupos de trabalhoe com intelectuais como Iná Camargo Costa, o que re-presentou a abertura de uma frente de estudos ligadaao teatro épico.

Nas várias regiões passaram a se organizar trabalhosteatrais com perspectivas de continuidade. Uma oficinacoordenada pelo grupo paulista Teatro de Narradores, emoutubro de 2004, em Sidrolândia, no Mato Grosso do Sul,bem como seu trabalho com textos de Brecht, estimulouque os grupos já existentes e os multiplicadores passas-sem a trabalhar o teatro épico. A peça Trapulha, da Bri-gada de agitprop do pré-assentamento Gabriela MonteiroDistrito Federal exemplifica uma apropriação da técnicaépica do texto O círculo de giz caucasiano. A partir decasos como esse, processos de criação coletivizados seexpandiram em outros trabalhos apresentados em en-contros, mobilizações, cursos, festas e marchas do movi-mento. Debates com o público sobre os processos artísti-cos amplificaram o sentido crítico do aprendizado. “Nosdebates é estabelecido um processo formativo que quali-fica o senso estético dos participantes e proporciona aeles a oportunidade de deixar de ser meros consumidorespara se tornar também produtores de peças, músicas,poesias, enfim, de narrativas e imaginários. E, natural-mente, com a circulação das produções, há um processode aperfeiçoamento constante, de consciência das ca-rências e de tomada de providências para supri-las, sejapor meio de oficinas, de leituras teóricas, de debates”,informa Villas Bôas. Foi desse modo que a produção tea-tral no MST aos poucos abandonou o caráter espontane-ísta e assumiu uma perspectiva consciente de sua res-ponsabilidade política e estética.

Outros exemplos dessa cooperação ocorreram no es-tado de São Paulo, a partir de oficinas coordenadas porDouglas Estevan, ex-integrante da Companhia do La-tão, que se tornou membro do Coletivo de Cultura doMST e realizou com o grupo Filhos da Mãe Terra, deSarapuí (SP), a montagem da peça Posseiros e fazendei-ros, criativa adaptação da peça Horácios e Curiácios de

Brecht. Analogamente, no Rio Grande do Sul foi ence-nada Paga Zé, livre adaptação da peça Não tem imperia-lismo no Brasil, de Augusto Boal, feita pela militanteDenise Cornelli, do coletivo Peça Pro Povo.

A incorporação de procedimentos do Teatro Épico-Dialético à base do Teatro do Oprimido já formada noMST tem gerado um debate crítico sobre as possibilida-des formais e técnicas da experiência teatral do movi-mento. A principal tentativa tem sido conjugar e nãorejeitar experiências, desde que elas sirvam à luta pelaemancipação.

Esse processo culminou recentemente na Marcha Na-cional pela Reforma Agrária, em 2005, em Brasília, quan-do 270 militantes de mais de 15 estados do país atua-ram no Teatro Procissão. O tema previsto era a históriada luta pela terra contada do ponto de vista dos cam-poneses. Para isso, houve a colaboração do Centro doTeatro do Oprimido no estabelecimento da base geralda procissão e os grupos de cada grande região brasilei-ra, já incorporando o teatro épico, desenvolveram asetapas da encenação: a região Amazônica construiu oBalé do genocídio; a região Centro-Oeste trabalhou aetapa Falsas promessas, e contou com a orientação deuma integrante do grupo americano Art and revolutionpara a construção dos bonecos gigantes; a região Sulproduziu a etapa Imperialismo, em parceria com o gru-po gaúcho Ói Nóis Aqui Traveiz; e a região Sudeste cons-truiu A farsa da justiça burguesa, encenação originadade uma oficina sobre teatro e dialética ministrada pelaCompanhia do Latão .

A organicidade do MST é calcada no método docentralismo democrático. Isso implica distribuição detarefas e responsabilidades e o estabelecimento defunções de coordenação para todas as tarefas. A ten-tativa fundamental é fazer com que o projeto se cons-trua a partir do diálogo com a militância de base.Uma das coordenadoras do Coletivo de Cultura do MST,Evelaine Martines, lembra que a tarefa de desenvol-vimento do projeto cultural do movimento exige umacrítica da cultura dominante em seu caráter de clas-se: “a cultura pode formar identidade desde que nãodesconsidere seu processo histórico de elitização, emque ela foi tirada da mão dos trabalhadores. E é essasituação que precisa se transformar”. A fundação re-cente da Escola Nacional Florestan Fernandes (SP),destinada à formação geral de militantes, assinala ummomento do MST em que ganha nova importância aformação cultural como um todo. Quando organizadapoliticamente, a produção cultural revela seu real sen-tido comunitário. “O ato de ver seus colegas campo-neses, vizinhos, familiares, produzindo cultura é po-tencialmente desalienador, pois em primeiro lugarmostra que todos podem fazer, e a depender de comofor feito, mostra que podem existir outras formasestéticas, não contempladas pelos veículos da indús-tria cultural”, diz Villas B ôas. A aplicação prática doprojeto cultural do MST exige um novo modo de or-ganização do imaginário, acentuadamente anticapi-talista. Contar a própria história, ser o protagonistana construção do sentido e não apenas um mero con-sumidor de bens culturais são as tentativas funda-mentais dessa luta cultural que deve servir de exem-plo ao movimento teatral brasileiro.

O exemplo da açãoteatral no MST

O SARRAFODezembro 2005 • Número 8 15

POR UM FOMENTO NACIONALO movimento Arte Contra A Barbárie fará no dia 25 de novembro um ato público em São Paulo.

Assembléia Legislativa, Parque do Ibirapuera, 15 horas

É hora!Da aplicação dos recursos previstos em lei para o Fundo Nacional de Cultura

Do Fundo Nacional de Cultura atuar exclusivamente por meio de editais públicos

Da imediata aprovação do Prêmio Teatro Brasileiro destinadoa núcleos de trabalho, produção e circulação de espetáculos

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O SARRAFO Número 8 • Dezembro 200516

Não àmercantilização!

Não àcorrupção!

Não àdespolitização!