o rio de janeiro como imagética literária: uma análise das ... · pdf...

16

Click here to load reader

Upload: truongkhuong

Post on 21-Feb-2018

215 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: O Rio de Janeiro como imagética literária: uma análise das ... · PDF filede Andrade, Manuel Bandeira e ... atiradores fora de moda a que os da direita chamam com suspeita de literato

1

O Rio de Janeiro como imagética literária: uma análise das crônicas de Rubem Braga1

Samantha Gaspar

Mestranda – PPGAS/USP Bolsista FAPESP

Resumo: Focando o período entre os anos de 1930 e 1960, busco evidenciar um primeiro mapeamento dos escritos de Rubem Braga, tendo como recorte temático as crônicas que mais explicitamente constroem uma imagética espacial. O objetivo é o de apreender quais são as representações sobre o Rio de Janeiro que o cronista elabora diacronicamente, atentando para as reincidências e para as alterações das imagens da cidade no decorrer dos anos. Mostra-se profícuo, nesse exercício, a análise contrastiva de suas representações acerca do campo, cuja descrição parece apresentar um caráter mais homogêneo e idealizado. A reflexão busca perscrutar, centralmente, algumas questões, tais como: quais regiões do Rio de Janeiro são privilegiadas em seus escritos; quais os tipos específicos de sociabilidade são narrados como presentes nestes espaços; de que maneira em suas crônicas o espaço urbano mostra imbricação com elementos da natureza, como o mar. Uma vez que no período assinalado o cronista era alvo de intensa e constante recepção por parte dos leitores dos periódicos nos quais publicava, avento que por meio das representações presentes em seus textos é possível ter acesso a certas imagéticas sobre o Rio de Janeiro que possuíam grande espraiamento e consonância social. Dessa forma, tais crônicas ao mesmo tempo expressariam e construiriam determinadas representações acerca do espaço urbano carioca, movimento no qual a contraposição com o campo ganha destaque.

Palavras-chave: Rubem Braga; crônica literária; imagética espacial

Sobre a crônica

De maneira sucinta, a crônica pode ser definida como um gênero literário no

qual se faz “um pequeno comentário, publicado em jornal ou revista, acerca de fatos

reais ou imaginários” (Moisés & Paes, 1987:129-130). Candido (1992), respondendo

aos críticos literários que classificavam a crônica como um gênero “menor”, posto que

preocupado com as miudezas do dia-a-dia, vê na proximidade com o cotidiano uma das

grandes qualidades do gênero, e afirma que o valor estaria justamente em “sua

capacidade de traçar o perfil do mundo e dos homens” (Candido, 1992:22). Sobre o

trânsito entre jornal e livro, Candido argumenta que a crônica

“não foi feita originalmente para o livro, mas para essa publicação efêmera que se compra num dia e no dia seguinte é usada para embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão da cozinha. Por se abrigar neste veículo transitório, o seu

1 Trabalho apresentado na 27ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil.

Page 2: O Rio de Janeiro como imagética literária: uma análise das ... · PDF filede Andrade, Manuel Bandeira e ... atiradores fora de moda a que os da direita chamam com suspeita de literato

2

intuito não é o dos escritores que pensam em ‘ficar’, isto é, permanecer na lembrança e na admiração da posteridade; e a sua perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés-do-chão. Por isso mesmo consegue quase sem querer transformar a literatura em algo íntimo com relação à vida de cada um, e quando passa do jornal ao livro, nós verificamos meio espantados que a sua durabilidade pode ser maior do que ela própria pensava” (Candido, 1992:15).

Apresentando a história do gênero, Candido mostra como este surgiu há 150

anos, justamente no momento em que o jornal se tornou “cotidiano”, com grande

circulação e conteúdo relativamente acessível. “No Brasil ela tem uma boa história, e

até se poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade

com que se aclimatou aqui e a originalidade com que aqui se desenvolveu” (Candido,

1992:15). De folhetim – que o autor define como um artigo de rodapé que versava sobre

assuntos hodiernos – até ganhar o formato atual, a crônica foi cultivada por inúmeros

escritores: José de Alencar, Machado de Assis, Olavo Bilac, João do Rio, sendo que

Candido acredita que foi na década de 1930 que a crônica moderna se consolidou no

Brasil “como um gênero bem nosso” (Candido, 1992:17). Nesse período, não só Mário

de Andrade, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade tinham se firmando no

ofício, como também surgiu “aquele que de certo modo seria o cronista, voltado de

maneira praticamente exclusiva para este gênero: Rubem Braga” (Candido, 1992:17).

Segundo Candido, durante seu desenvolvimento a crônica teria alterado seus

objetivos, passando a cada vez mais desempenhar a função de diversão em detrimento

da informação, que foi ocupada por outras instâncias do jornalismo. E, no que se refere

à forma, ela teria então se tornado cada vez mais leve e se descurado de uma lógica

argumentativa, em prol da poesia. Candido também chama a atenção para o corrente

emprego da linguagem coloquial, que não só corroboraria para trazê-la para perto do

cotidiano das pessoas, como, nesse processo, também fomentaria a aproximação de

novos leitores à literatura. “Creio que a fórmula moderna, onde entra um fato miúdo e

um toque de humorístico, com o seu quantum satis de poesia, representa o

amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma” (Candido,

1992:15). O crítico alerta para o fato de que a gratuidade e leveza da crônica não

inviabilizariam, mas, ao contrário, lhe auxiliariam a desvelar o mundo: “a crônica pode

dizer as coisas mais sérias e mais empenhadas por meio do ziguezague de uma aparente

conversa fiada” (Candido, 1992:20).

Page 3: O Rio de Janeiro como imagética literária: uma análise das ... · PDF filede Andrade, Manuel Bandeira e ... atiradores fora de moda a que os da direita chamam com suspeita de literato

3

Sobre um cronista

“(...) um homem sem partido, sem religião nem profissão de fé, um desses franco-atiradores fora de moda a que os da direita chamam com suspeita de literato anarcóide e

os da esquerda chamam, com desprezo, de individualista pequeno-burguês; uns e outros, provavelmente, com razão” (Braga, 1994:35).

Rubem Braga é comumente retratado como um caso singular, por ter sido um

dos raros escritores a entrar para a história da literatura brasileira dedicando-se quase

que exclusivamente às crônicas (Candido, 1992; Arrigucci Jr., 1979, 1985, 2001;

Coutinho, 1978). O autor nasceu em 1913 em Cachoeiro de Itapemirim (ES) e faleceu

em 1990 no Rio de Janeiro (RJ). Começou a publicar seus primeiros escritos ainda na

adolescência, no jornal cachoeirense Correio do Sul, fundado por seus irmãos Jerônimo

e Armando. Iniciou o curso de Direito no Rio de Janeiro em 1929 e o concluiu em Belo

Horizonte em 1932, ano em que passou a colaborar para o jornal mineiro Diário da

Tarde. Inicia-se então uma profícua carreira como cronista e jornalista, que se estende

até a sua morte, quando trabalhava para O Estado de São Paulo. Apenas no período no

qual a pesquisa se detém, além de Belo Horizonte, o autor trabalhou em inúmeras

cidades, tais como Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Recife, colaborando para

diversos jornais e revistas2. Parcela de sua produção foi periodicamente compilada para

a publicação em livro3, resultando na produção de uma vasta obra4.

Entre lembranças da roça e ponderações sobre o Rio de Janeiro

“Sou um ignorante, um pobre homem de cidade” (Braga, 1977:42).

“Bem pouca coisa eu sei (...). Mas o que sei lhe ensino; são pequenas coisas do mato e da água, são humildes coisas” (Braga, 1977:40, grifos meus).

2 A título de exemplo, podemos assinalar os seguintes veículos: Diário da Tarde (MG), Diário de São Paulo (SP), Diário da Noite (RJ), O Jornal (RJ), Diário de Pernambuco (PE), Folha do Povo (PE), A Manhã (RJ), Folha de Minas (MG), Problemas (SP), O Imparcial (RJ), Diretrizes (RJ), Correio do Povo (RS), Folha da Tarde (RS), O Estado de São Paulo (SP), Diário Carioca (RJ), O Globo (RJ), Correio da Manhã (RJ), Comício (RJ), Manchete (RJ), Diário de Notícias (RJ), Última Hora (RJ), Cláudia (RJ), Visão (RJ), Jornal do Brasil (RJ). 3 A bibliografia do cronista é a seguinte: O conde e o passarinho (1936), O morro do isolamento (1944), Com a FEB na Itália (1945), Um pé de milho (1948), O homem rouco (1949), 50 crônicas escolhidas (1951), A borboleta amarela (1955), A cidade e a roça (1957), 100 crônicas escolhidas (1958), Ai de ti, Copacabana! (1960), A traição das elegantes (1967), 200 crônicas escolhidas (1977), Livro de versos (1980), Recado de Primavera (1984), Crônicas do Espírito Santo (1984), Os melhores contos de Rubem Braga (1985), As boas coisas da vida (1988), Um cartão de Paris (1992), Uma fada no front: Rubem Braga em 39 (1994) e Casa dos Braga: memória de infância (1997). 4 Informações detidas sobre a biografia do escritor podem ser obtidas, dentre outros, em Carvalho (2007).

Page 4: O Rio de Janeiro como imagética literária: uma análise das ... · PDF filede Andrade, Manuel Bandeira e ... atiradores fora de moda a que os da direita chamam com suspeita de literato

4

Nas crônicas de Braga, alguns temas possuem uma reincidência maior, como os

que se referem à mulher amada, à infância, ao mar, a vivências em sua cidade natal e no

Rio de Janeiro. Busco aqui apresentar uma primeira síntese a respeito dessa última

temática, mobilizando, inicialmente, a questão das reminiscências infantis ambientadas

no interior do Espírito Santo. É importante ressaltar que se trata de uma primeira

tentativa de análise de tais textos, e que, portanto, a interpretação proposta abaixo tem

caráter inacabado e experimental, e será posteriormente desenvolvida com mais vagar.

Presente no título de vários de seus escritos, a palavra “lembrança” possui

destaque na obra do cronista. Na maioria das vezes, ela é acionada em suas narrativas

acerca da vida da roça – como o narrador freqüentemente nomeia espaços que não são

urbanos –, nas quais, também com grande incidência, constrói uma contraposição com a

vida da cidade grande. A imagética urbana sobre o Rio de Janeiro também é matéria

constante de seus escritos, por meio dos quais é possível acessar percepções sobre certas

regiões e bairros da cidade, seus moradores e as atividades engendradas.

Em uma crônica de 1952, intitulada “Os embrulhos do Rio”, o narrador discorre

a respeito da chegada de algum familiar que, tendo viajado para o Rio de Janeiro,

retornaria à Cachoeiro de Itapemirim com presentes trazidos daquela cidade:

“(...) Quando meus pais ou minha irmã voltavam de um passeio ao Rio, nós todos, os menores, ficávamos olhando com uma impaciência quase agônica as malas e valises que o carregador ia depondo na sala. A alegria maior não estava no presente que cada um recebia, estava no mistério numeroso das malas, na surpresa do que ia surgindo. Uma grande parte, que despertava exclamações deliciadas das mulheres, não nos interessava: eram saias, blusas, lenços, cortes de trapos e fazendas coloridas, jóias e bugigangas femininas. A mais distante das primas e a mais obscura das empregadas podia estar certa de ganhar um pequeno presente: a alegria era para todos da casa e da família, e se derramava em nossa rua pelos vizinhos e amigos. Além dos presentes havia as inumeráveis encomendas, três metros disto ou daquilo, um sapatinho de tal número para combinar com aquele vestidinho grená, fitas, elásticos, não sei o que mais.

Se esse mundo de coisas de mulher nos deixava frios e impacientes, os brinquedos e os presentes para homens e coisas para uso caseiro eram visões sensacionais. Jogos de papelões coloridos, coisas de lata com molas imprevistas, fósforos de acender sem caixa, abridores de latas, sopa juliana seca, isqueiros, torradeiras de pão, coisas elétricas, brilhantes e coloridas – todo o mundo mecânico insuspeitado que chegava ao nosso canto de província. E também programas de cinema, cardápios de restaurantes...

Seriam, afinal de contas, coisas de pouco valor: os grandes engenhos modernos estrangeiros estavam fora de nossas posses e de nossa imaginação. Mas para nós tudo era sensacional; e depois de esparramado sobre a mesa ou pelo chão

Page 5: O Rio de Janeiro como imagética literária: uma análise das ... · PDF filede Andrade, Manuel Bandeira e ... atiradores fora de moda a que os da direita chamam com suspeita de literato

5

o conteúdo da última valise, e distribuídos todos os presentes, ainda ficávamos algum tempo aturdidos por aquela sensação de opulência e de milagre. E o dia inteiro ouvindo a conversa dos grandes, que davam notícias de amigos, comentavam histórias, falavam da última revista de Araci Cortes, no Recreio, da última comédia de Procópio ou de Leopoldo Fróis ou da doença dos nossos parentes em Vila Isabel – ainda ficávamos tontos, pensando nesse Rio de Janeiro fabuloso, tão próximo e tão distante.

Aos 9 anos de idade, vim pela primeira vez ao Rio, trazido por minha irmã. Voltei muitas vezes; estou sempre voltando. Aqui já me aconteceram coisas. Mas o grande encanto e o máximo prestígio do Rio estavam nas malas e nos embrulhos abertos diante dos olhos assombrados do menino da roça” (Braga, 1967:15-16, grifos meus).

O esplendor do Rio de Janeiro aparece desvelado por meio dos olhos infantis,

cuja perspectiva, como o cronista sublinha ao final do texto, é a da roça. Foi através das

encomendas e presentes, cujo conteúdo era inusitado ao seu contexto infantil, que a

cidade grande marcou e encantou os “menores”. O narrador não deixa de frisar a

diferenciação do local de sua infância com o Rio: trata-se de uma província, ao mesmo

tempo próxima e distante da então capital do país.

Já em “As Pitangueiras de D’Antanho”, de 1957, o recurso da lembrança infantil

é novamente acionado, dessa vez para narrar as transformações urbanísticas e sociais

pelas quais passou parte da zona sul do Rio de Janeiro. O narrador discorre sobre uma

mulher que:

“Tem seus 23 anos, e eu a conheço desde os oito ou nove, sempre assim, meio gordinha, engraçada, de cabelos ruivos. Foi criada, a bem dizer, na areia do Arpoador; nasceu e viveu em uma daquelas ruas que vão de Copacabana a Ipanema, de praia a praia. A família mudou-se quando a casa foi comprada para construção de edifício.

Certa vez contou: – Em meu quarteirão não há uma só casa de meu tempo de menina. Se eu

tivesse passado anos fora do Rio e voltasse agora, acho que não acertaria nem com a minha rua. Tudo acabou: as casas, os jardins, as árvores. É como se eu não tivesse tido infância...

Falta-lhe uma base física para a saudade. Tudo o que parecia eterno sumiu. Outra senhora disse então que se lembrava muito de que, quando era

menina, apanhava pitangas em Copacabana; depois, já moça, colhia pitangas na Barra da Tijuca; e hoje não há mais pitangas. Disse isso com uma certa animação, e depois ficou um instante com o ar meio triste – a melancolia de não ter mais pitangas, ou, quem sabe, a saudade daquela manhã em que foi com o namorado colher pitangas” (Braga, 1977:282).

Page 6: O Rio de Janeiro como imagética literária: uma análise das ... · PDF filede Andrade, Manuel Bandeira e ... atiradores fora de moda a que os da direita chamam com suspeita de literato

6

Nas duas reminiscências femininas encontramos sugestões de mudanças em

bairros como Copacabana e Ipanema que apontam para um processo de verticalização

de tais áreas ocorrido nos fins da primeira metade do século XX. Cinco anos antes, em

“O sono”, tal questão já havia sido tematizada, dessa vez sob a perspectiva do próprio

narrador:

“Mas em volta de mim, e sobre meu peito, e sobre meu ventre, resolveram construir uma cidade. Incorporações, incorporações, edifícios de apartamentos, quarto e sala, kitchenette, entrada de dez por cento. Estão me matando devagar, pela tabela Price; estão me serrando, me triturando, me martelando, com o objetivo de ganhar dinheiro. Que loucos são esses? Não devem ser daqui. Se tivessem vivido e sofrido longamente esta cidade, como eu tenho, esta cidade com seus homens e suas mulheres, e seus encontros e seus desencontros, e penúrias vis, não iriam adensar e agravar essa loucura construindo outra cidade nos interstícios dessa, não se esbaldariam sobre os baldios nesse afã criminoso de entupir o mundo de gente entre cubos de cimento. (...) Defenderemos nossos cubos e favelas superlotadas; não possuímos mais espaço algum para novas amantes desamadas e amadas desamantes; chega, chega de confusão” (Braga, 1955: 203-204).

Em “Regência”, texto escrito em 1949, o narrador também apresenta

insatisfação com o espaço citadino e com a profissão que desenvolve, patente pela

afirmação de que se encontraria em um “exílio urbano”. E novamente, a infância

aparece como substrato para a constituição do contraponto que tece a respeito da vida

urbana. Narrando a visita à localidade que nomeia a crônica, que se encontra “na beira

sul da foz do rio Doce”, descreve a pesca de um peixe:

“Um caboclinho está pescando e lhe peço a iba, que aqui se chama, bem mais explicado, pindaíba. Sinto um peixe que não belisca, mas puxa mansamente o anzol, e sussurro para o menino um nome de que não me lembrava mais desde a infância: ‘acho que é moréia...’ Um puxão mais longo, e a moréia vem no anzol. Essa pequena vitória me enche de uma secreta delícia; então esses inumeráveis anos de bater à máquina, de fazer tanto gesto mecânico no exílio urbano não me tiraram essa sensibilidade de menino que ainda reconhece a moréia e sabe o instante exato de puxá-la. Aqui o lambari de São Paulo e Minas se chama, como no Itapemirim, piaba; aqui reencontro meus peixes, minhas palavras no sentido antigo, uma vida de beira-rio que afinal nem de todo se perdeu” (Braga, 1994:26-27).

É com reticência que, na mesma crônica, trata do que denomina de “progresso”.

Sua descrição dos últimos acontecimentos da região em que se encontra não deixa de

evidenciar uma tomada de posição:

Page 7: O Rio de Janeiro como imagética literária: uma análise das ... · PDF filede Andrade, Manuel Bandeira e ... atiradores fora de moda a que os da direita chamam com suspeita de literato

7

“Daqui para cima todo o vale se agita numa febre de progresso; motores novos pulsam no rio, a estrovenga limpa o mato, o machado abate os troncos, o cacau se alastra, as serrarias guincham, os colonos requerem terras, a ferrovia se renova, os minérios são arrancados da terra, os americanos fazem contratos, os baianos chegam ávidos de dinheiro.

Mas Regência dormita. Ali mesmo do outro lado, a menos de uma légua rio acima, um lugar que só tem o nome de Povoação está crescendo; já se mudou para lá o juiz distrital, já lá se foi o registro civil, lá se fundam fazendas, lá se abrem casas, lá se ganha dinheiro depressa. Em Regência as casas são todas relativamente novas e feias; a igrejinha é de um medíocre estilo comercial. Isso me espanta; não ficou nada da antiga Barra do Doce, da nobre Regência Augusta, pátria do Caboclo Bernardo?” (Braga, 1994:26).

A preterição em relação ao que alcunha de progresso também é encontrada em

outros escritos de Braga, dentre eles “O outro Brasil”, de 1953:

“Já tomei muito avião para fazer reportagem, mas o certo não é assim, é fazer como Saint-Hilaire ou o Príncipe Maximiliano, ir tocando por essas roças de Deus a cavalo, nada de Rio-Bahia, ir pelos caminhos que acompanham com todo carinho os lombos e curvas da terra, aceitando uma caneca de café na casa de um colono. Só de repente a gente se lembra de que esse Brasil ainda existe, o Brasil ainda funciona a lenha e lombo de burro, as noites do Brasil são pretas com assombração, dizem que ainda tem até luar no sertão, até capivara e suçuarana – não, eu não sou contra o progresso (‘o progresso é natural’) mas uma garrafinha de refrigerante americano não é capaz de ser como um refresco de maracujá feito de fruta mesmo – o Brasil ainda tem safras e estações, vazantes e piracemas com manjuba frita, e a lua nova continua sendo o tempo de cortar iba de bambu para pescar piau” (Braga, 1977:188).

Ao dizer que não se oporia ao progresso, mas que um refrigerante não seria

melhor que um suco, o narrador cria um paralelismo no qual a primeira bebida estaria

vinculada ao progresso e, a segunda, ao “outro Brasil” cuja persistência de sua

existência faz questão de ressaltar. E mais: a vinculação de progresso com o produto

industrial remete, indiretamente, por extensão, à vida urbana. O mesmo vale ao avião,

que é trocado pelo “certo”, que, no caso, corresponde à utilização de transporte animal

“por essas roças de Deus”.

Se a descrição positivada de elementos e atividades da roça é uma constante, o

cotidiano da cidade grande também se constitui como matéria de inúmeras crônicas.

Vale a pena explorar, então, alguns dos escritos nos quais é possível apreender

narrativas sobre certos espaços da cidade do Rio de Janeiro.

Page 8: O Rio de Janeiro como imagética literária: uma análise das ... · PDF filede Andrade, Manuel Bandeira e ... atiradores fora de moda a que os da direita chamam com suspeita de literato

8

Em “A empregada do Dr. Heitor”, texto de 1935, o narrador informa, já de

início, que “era noitinha em Vila Isabel... As famílias jantavam. Os que ainda não

haviam jantado chegavam nos ônibus e nos bondes. Chegavam com aquela cara típica

de quem vem da cidade. Os homens que voltam do trabalho da cidade. As mulheres que

voltam das compras da cidade. Caras de bondes, caras de ônibus. As mulheres trazem as

bolsas, os homens trazem os vespertinos” (Braga, 1977:3).

Uma vez que Vila Isabel se distancia da cidade, local no qual estariam os postos

de trabalho – ocupados pelos homens – e de comércio – freqüentados pelas mulheres –,

aquela parece se constituir como um bairro de caráter eminentemente residencial. Após

apresentar tais associações de gênero, nas quais homens estariam vinculados a trabalho

e jornal e, mulheres, a bolsas e compras, o narrador discorre sobre o cotidiano noturno

do bairro: o homem chegaria em casa e seria recebido por cachorros abanando o rabo e

filhos batendo palmas, caso os tenha. Em seguida, após beijar a testa da esposa, esta

pediria à empregada que servisse o jantar. Esta o faria, e depois lavaria a louça e se

postaria no portão. Enquanto isso, marido e mulher concluem que a atual seria mais

boazinha que a empregada anterior.

O narrador passa a se deter na casa vizinha, onde haveria uma constituição

familiar diversa, vivendo juntos o pai aposentado e seus filhos. O assunto primordial de

seus jantares seria o da repartição pública na qual todos trabalhariam. Ainda na noite de

Vila Isabel, aparece um grupo de crianças que “devem ser jornaleiros, talvez engraxates,

talvez moleques simples” (Braga, 1977:4) e que passam pela rua cantando. O filho do

Dr. Heitor os observa do portão e sente inveja. A empregada então o informa que se

trata de moleques e que ele precisava ir dormir. E aqui o narrador apresenta o futuro

dessa mulher, frisando que seu filho também cantará pelas ruas do bairro, como agora o

faz esse grupo de moleques:

“A empregada do Dr. Heitor é de cor parda e namora um garboso militar que uma noite não virá ao portão e depois nunca mais aparecerá, deixando a empregada do Dr. Heitor à sua espera e à espera de alguma coisa. De alguma coisa que será um molequinho vivo que cantará samba na rua, marchando, batendo palmas, desentoando com ardor” (Braga, 1977:5).

Em outra crônica do mesmo ano, “Batalha no Largo do Machado”, o narrador

apresenta o cortejo do “povo glorioso da escola de samba na Praia Funda” (Braga,

Page 9: O Rio de Janeiro como imagética literária: uma análise das ... · PDF filede Andrade, Manuel Bandeira e ... atiradores fora de moda a que os da direita chamam com suspeita de literato

9

1977:6) e, no meio do texto, introduz um fato comentado pelos jornais e que logo em

seguida se transformaria em marchinha de carnaval no Largo do Machado:

“Febrônio fugiu do Manicômio no chuvoso dia de sexta-feira, 8 de fevereiro de 1935... Foi preso no dia 9 à tarde. Neste dia de domingo, 10 de fevereiro pela manhã, o Diário de Notícias publica na primeira página da segunda seção: ‘A sensacional fuga de Febrônio, do Manicômio Judiciário, onde se achava recolhido, desde 1927, constitui um verdadeiro pavor para a população carioca. A sua prisão, ocorrida na tarde de ontem, veio trazer a tranqüilidade ao espírito de todos, inclusive das autoridades que o procuravam’. Que repórter alarmado! Injuriou, meus senhores, o povo e as autoridades. Encostai-vos nas paredes, população! Mas eis que na noite do dia chuvoso de domingo, 10 de fevereiro, ouvimos:

‘Bicho Papão Bicho Papão Cuidado com o Febrônio Que fugiu da Detenção...’ Isso ouvimos no Largo do Machado, e eis que o nosso amigo Miguel, que

preferiu ir batucar em Dona Zulmira, lá também ouviu, naquele canto glorioso de Andaraí, a mesma coisa. Como se esparrama pelas massas da cidade esparramada essa improvisação de um dia? As patas inumeráveis batem no asfalto com desespero. O asfalto porventura não é vosso eito, escravos urbanos e suburbanos?” (Braga, 1977:7, grifos do autor).

Valendo-se de palavras como “massas”, “patas”, “eito” e “escravos”, o narrador

constrói uma narrativa de todo partidária daqueles que retrata. E, tema muito recorrente

em sua obra, já aqui abordado em “Regência”, faz críticas à profissão jornalística:

“Nesta mormacenta segunda-feira, 11 de fevereiro, um jornal diz que ‘a batalha de confete do Largo do Machado esteve brilhantíssima’.

Repórter cretiníssimo, sabei que não houve lá nem um só miserável confete. O povo não gastou nada, exceto gargantas, e dores e almas, que não custam dinheiro. Eis que ali houve, e eu vi, uma batalha de roncos e soluços, e ali se prepararam batalhões para o Carnaval – nunca jamais ‘a grande festa do Rei Momo’ – porém a grande insurreição armada de soluços” (Braga, 1977:7-8).

“Coração de mãe”, de 1938, descortina alguns dos aspectos do então bairro do

Catete. A crônica narra a história de uma dona de pensão que, descontente com o

comportamento de suas duas filhas, resolve expulsá-las de casa. Percebendo o assédio

que ambas recebem nas ruas, na forma de convites masculinos oferecendo proteção, a

mãe demove-se da decisão e faz com que as filhas retornem ao lar. Os moradores dessa

pensão no Catete são descritos da seguinte forma: “a pensão da mãe das moças era uma

Page 10: O Rio de Janeiro como imagética literária: uma análise das ... · PDF filede Andrade, Manuel Bandeira e ... atiradores fora de moda a que os da direita chamam com suspeita de literato

10

grande pensão, pululante de funcionários, casais, estudantes, senhoras bastante

desquitadas” (Braga, 1977:18). Pode-se apreender, além disso, certos estereótipos então

em circulação sobre as diferentes áreas do Rio de Janeiro, que parecem ser pautados por

relações de classe:

“Mesmo sobre os casarões do Catete o céu às vezes é azul, e o sol acontece ser louro. Uns dizem que na verdade esse céu azul não pertence ao Catete e sim ao Flamengo: a população do Catete apenas o poderia olhar de empréstimo. Outros afirmam que o sol louro é da circunscrição de Santa Teresa e da paróquia de Copacabana; nós, medíocres e amargos homens do Catete, também o usufruiríamos indebitamente. Não creio em nada disso. A mesma injúria assacaram contra Niterói (...) declarando que Niterói não tem lua própria, e a que ali é visível é de propriedade do Rio. Não, em nada disso creio” (Braga, 1977:18).

Já sobre os moradores do bairro – e o pronome “nós” deixa antever o lugar social

assumido pelo narrador –, dizem que se trata de

“Gente muito misturada, etc. É assim que os habitantes dos bairros menos precários e instáveis costumam falar mal de nosso Catete. Mas uma coisa ninguém pode negar: nós, do Catete, somos verdadeiros gentlemen. O cavalheirismo do bairro se manifestou naquele instante de maneira esplendente quando a senhora dona Rosalina deu por encerrado, com um ríspido palavrão, seu comício.

Em face daquelas mocinhas expulsas do lar e que soluçavam com amargura houve um belo movimento de solidariedade.

(...) De todos os lados apareceram os mais bondosos homens – funcionários, militares, estudantes, médicos, bacharéis, engenheiros-sanitários, jornalistas, comerciários, sanitaristas e atletas – fazendo os mais tocantes oferecimentos” (Braga, 1977:20).

“Cinelândia”, texto de 1952, é uma narrativa em que é contraposta a situação atual

dessa área do centro do Rio de Janeiro com o seu passado, no qual se reuniam aos

sábados muitos dos jovens da cidade, provenientes de distintas localidades:

“Extraviei-me pela cidade na tarde de sábado, e então me deixei bobear um pouco pela Cinelândia. Foi certamente uma lembrança antiga que me fez sentar na Brasileira; e quando o garçom veio e perguntou o que eu desejava, foi um rapaz de 15 anos que disse dentro de mim: ‘waffles com mel’.

(...) Mais tarde, já na Faculdade, e morando no Catete, me lembro que sábado, de tarde, às vezes a gente metia uma roupa branca bem limpa, bem passada (depois de vários telefonemas à tinturaria) e vínhamos, dois ou três amigos, lavados, barbeados, penteados, assim pelas cinco da tarde, fazer o footing na Cinelândia. E estavam ali moças de Copacabana e do Méier, com seus vestidos

Page 11: O Rio de Janeiro como imagética literária: uma análise das ... · PDF filede Andrade, Manuel Bandeira e ... atiradores fora de moda a que os da direita chamam com suspeita de literato

11

de seda estampados, a boca muito pintada, burburinhando entre as confeitarias e os cinemas. Não nos davam lá muita atenção essas moças: seus pequenos corações fremiam perante os cadetes e os guardas-marinhas, mais guapos e belos em seus uniformes resplendentes, com seus espadins brilhantes.

Tudo isso passou: o sábado inglês, as dificuldades do trânsito e o próprio tempo agiram, e nesta bela tarde de sábado em que me extravio pelo centro, há apenas alguns palermas como eu zanzando pela Cinelândia. Só agora reparo nisso, e então me sinto um velho senhor saudosista; não há mais sábado na Cinelândia, creio que não há mais cadetes nem guardas-marinhas, todos são tenentes-coronéis, capitães-de-corveta e de fragata, perdidos em Agulhas Negras, quartéis, cruzadores recondicionados, nesses mares do mundo” (Braga, 1977:162).

As ruas do centro também são o palco de “O homem e a cidade”, crônica de

1960. Os produtos vendidos pelo comércio e a ocupação das ruas pelos transeuntes são

tematizados. Ao elencar a profusão de mercadorias e assegurar que estas vieram de

distintas localidades para serem oferecidas, o narrador sugere o caráter de centro

comercial que a cidade do Rio de Janeiro possuiria:

“(...) E sinto prazer em andar pela calçada larga da Rua do Passeio, em espiar as grandes vitrinas coloridas de presentes de Natal. (Não quero comprar nada, não preciso ganhar mais nada, não é verdade que recebi na minha porta a graça juvenil de uma rosa amarela?)

A calçada está cheia de gente, e é doce a gente se deixar ir andando à toa. Na Rua Senador Dantas vejo livros, camisas, aparelhos elétricos, discos, fuzis submarinos, gravatas; e os cartazes dizem que tudo é muito barato e fácil de comprar, os cartazes me fazem ofertas especiais para levar agora e só começar a pagar em fevereiro... Muito obrigado, muito obrigado, mas não preciso de nada. Entretanto, gosto de ver essa fartura de coisas: fico parado numa porta de mercearia contemplando reluzentes goiabadas e frascos de vinho, bebidas e gulodices de toda a espécie que vieram de terras longes se oferecerem a mim” (Braga, 1977:248).

De 1935 é a crônica “Chegou o outono”. Dessa vez, os espaços mencionados são

a rua Marquês de Abrantes, no Flamengo, e a Praia Vermelha, na Urca. O narrador

busca precisar a data e o local nos quais o outono teria se adentrado no Rio de Janeiro.

Provavelmente no dia 12 de março. A única certeza que possui é que estava no reboque

do bonde Praia Vermelha. Embora não o utilize com assiduidade, diz que sempre foi um

simpatizante de tal bonde. Revela então que se trata do

“(...) bonde dos soldados do Exército e dos estudantes de Medicina. Raras mulatas no reboque; liberdade de colocar os pés e mesmo esticar as pernas sobre o banco da frente. Os condutores são amenos. Fatigaram-se naturalmente de advertir os soldados e estudantes; quando acontece alguma coisa eles suspiram e tocam o

Page 12: O Rio de Janeiro como imagética literária: uma análise das ... · PDF filede Andrade, Manuel Bandeira e ... atiradores fora de moda a que os da direita chamam com suspeita de literato

12

bonde. Também os loucos mansos viajam ali, rumo do hospício. Nunca viajou naquele bonde um empregado da City Improvements Company: Praia Vermelha não tem esgotos. Oh, a City! Assim mesmo se vive na Praia Vermelha. Essenciais são os esgotos da alma. Nossa pobre alma inesgotável! (Braga, 1977:10).

Não apenas é ressaltada no texto a existência do hospício na Praia Vermelha,

como também o narrador assegura a falta de saneamento de tal área. Outro aspecto

descrito refere-se ao bonde e sua dinâmica:

“Eu ia no reboque, e o reboque tem vantagens e desvantagens. Vantagem é poder saltar ou subir de qualquer lado, e também a melhor ventilação. Desvantagem é o encosto reduzido. Além disso os vossos joelhos podem tocar o corpo da pessoa que vai no banco da frente; e isso tanto pode ser doce vantagem como triste desvantagem” (Braga, 1977:10).

Sobre o início do outono, o narrador discorre acerca dos elementos e espaços

envolvidos em sua chegada que lhe permitiriam apreendê-lo:

“Eu havia tomado o bonde na Praça José de Alencar; e quando entramos na Rua Marquês de Abrantes, rumo de Botafogo, o outono invadiu o reboque. Invadiu e bateu no lado esquerdo de minha cara sob a forma de uma folha seca. Atrás dessa folha veio um vento, e era o vento do outono. Muitos passageiros do bonde suavam. No Rio de Janeiro faz tanto calor que depois que acaba o calor a população continua a suar gratuitamente e por força do hábito durante quatro ou cinco semanas ainda.

(...) Chegara o outono. Vinha talvez do mar e, passando pelo nosso reboque, dirigia-se apressadamente ao centro da cidade, ainda ocupado pelo verão.

(...) As folhas secas davam pulinhos ao longo da sarjeta; e o vento era quase frio, quase morno, na Rua Marquês de Abrantes. E as folhas eram amarelas, e meu coração soluçava, e o bonde roncava.

Passamos diante de um edifício de apartamentos cuja construção está paralisada no mínimo desde 1930. Era iminente a entrada em Botafogo; penso que o resto da viagem não interessa ao grosso público” (Braga, 1977:10-11).

Ao atentar-se para “outono”, “folhas secas”, “mar”, “vento”, o narrador coloca

em primeiro plano aspectos da natureza em pleno contexto urbano. E mais: tal primazia

é apresentada como obviedade, a ponto de assegurar que o resto de seu percurso é

notoriamente irrelevante para a maior parcela de seus leitores. Tal tipo de narrativa, que

valoriza a natureza presente dentro da cidade, especialmente a do Rio de Janeiro, pode

ser encontrada em vários outros textos de Braga, como, por exemplo, em “Flor de

Maio” e “O mato”, ambos de 1952.

Page 13: O Rio de Janeiro como imagética literária: uma análise das ... · PDF filede Andrade, Manuel Bandeira e ... atiradores fora de moda a que os da direita chamam com suspeita de literato

13

O primeiro transmite notícias advindas do Jardim Botânico da cidade e, ao fazê-

lo, subverte a classificação usual dos jornais sobre os acontecimentos que seriam

julgados importantes. E, mais uma vez, o trabalho jornalístico que, vale lembrar, o

próprio cronista executa, é desqualificado.

“Entre tantas notícias do jornal – o crime de Sacopã, o disco voador em

Bagé, a nova droga antituberculosa, o andaime que caiu, o homem que matou outro com machado e com foice, o possível aumento do pão, a angústia dos Barnabés – há uma pequenina nota de três linhas, que nem todos os jornais publicaram.

Não vem do gabinete do prefeito para explicar a falta d’água, nem do Ministério da Guerra para insinuar que o país está em paz. Não conta incidentes de fronteira nem desastre de avião. É assinada pelo senhor diretor do Jardim Botânico, e nos informa gravemente que a partir do dia 27 vale a pena visitar o Jardim, porque a planta chamada ‘flor-de-maio’ está, efetivamente, em flor.

Meu primeiro movimento, ao ler esse delicado convite, foi deixar a mesa da redação e me dirigir ao Jardim Botânico, contemplar a flor e cumprimentar a administração do horto pelo feliz evento. Mas havia ainda muita coisa para ler e escrever, telefonemas a dar, providências a tomar.

Agora, já desce a noite, e as plantas devem ser vistas pela manhã ou à tarde, quando há sol – ou mesmo quando a chuva as despenca e elas soluçam no vento, e choram gotas e flores no chão.

Suspiro e digo comigo mesmo – que amanhã acordarei cedo e irei. Digo, mas não acredito, ou pelo menos desconfio que esse impulso que tive ao ler a notícia ficará no que foi – um impulso de fazer uma coisa boa e simples, que se perde no meio da pressa e da inquietação dos minutos que voam. Qualquer uma dessas tardes é possível que me dê vontade real, imperiosa, de ir ao Jardim Botânico, mas então será tarde, não haverá mais ‘flor-de-maio’, e então pensarei que é preciso esperar a vinda de outro outono, e no outro outono posso estar em outra cidade em que não haja outono em maio, e sem outono em maio, não sei se em alguma cidade haverá essa ‘flor-de-maio’.

No fundo, a minha secreta esperança é de que estas linhas sejam lidas por alguém – uma pessoa melhor do que eu, alguma criatura correta e simples que tire dessa crônica a sua substância, a informação precisa e preciosa: no dia 27 em diante as ‘flores-de-maio’ do Jardim Botânico estão gloriosamente em flor. E que utilize essa informação saindo de casa e indo diretamente ao Jardim Botânico ver a ‘flor-de-maio’ – talvez com a mulher e as crianças, talvez com a namorada, talvez só.

Ir só, no fim da tarde, ver a ‘flor-de-maio’; aproveitar a única notícia boa de um dia inteiro de jornal, fazer a coisa mais bela e emocionante de um dia inteiro da cidade imensa. Se entre vós houver essa criatura, e ela souber por mim a notícia, e for, então eu vos direi que nem tudo está perdido, e que vale a pena viver entre tantos sacopãs de paixões desgraçadas e tantas COFAPs de preços irritantes; que a humanidade possivelmente ainda poderá ser salva, e que às vezes ainda vale a pena escrever uma crônica” (Braga, 1958:262-264, grifos meus).

Em contraposição à correria da cidade grande, o narrador sugere a visita ao

Jardim Botânico para apreciar a flor-de-maio, “coisa boa e simples”. O desabrochar de

Page 14: O Rio de Janeiro como imagética literária: uma análise das ... · PDF filede Andrade, Manuel Bandeira e ... atiradores fora de moda a que os da direita chamam com suspeita de literato

14

tal flor é apresentado não só como a única notícia que vale a pena entre aquelas

veiculadas pelos periódicos, como, ainda, seria a melhor coisa presente no Rio de

Janeiro. No cotidiano da cidade imensa, a flor-de-maio é descrita como uma dádiva. Já

em “O mato”, são celebradas as facilidades de acesso que tal cidade possui no que se

refere ao contato humano com elementos da natureza.

“Veio o vento frio, e depois o temporal noturno, e depois da lenta chuva

que passou toda a manhã caindo e ainda voltou algumas vezes durante o dia, a cidade entardeceu em brumas. Então o homem esqueceu o trabalho e as promissórias, esqueceu a condução e o telefone e o asfalto, e saiu andando lentamente por aquele morro coberto de um mato viçoso, perto de sua casa. O capim cheio de água molhava seu sapato e as pernas da calça; o mato escurecia sem vaga-lumes nem grilos.

Pôs a mão no tronco de uma árvore pequena, sacudiu um pouco, e recebeu nos cabelos e na cara as gotas de água como se fosse uma bênção. Ali perto mesmo a cidade murmurava, estava com seus ruídos vespertinos, ranger de bondes, buzinar impaciente de carros, vozes indistintas; mas ele via apenas algumas árvores, um canto de mato, uma pedra escura. Ali perto, dentro de uma casa fechada, um telefone batia, silenciava, batia outra vez, interminável, paciente, melancólico. Alguém, com certeza já sem esperança, insistia em querer falar com alguém.

Por um instante, o homem voltou seu pensamento para a cidade e sua vida. Aquele telefone tocando em vão era um dos milhões de atos falhados da vida urbana. Pensou no desgaste nervoso dessa vida, nos desencontros, nas incertezas, no jogo de ambições e vaidades, na procura de amor e de importância, na caça ao dinheiro e aos prazeres. Ainda bem que de todas as grandes cidades do mundo o Rio é a única a permitir a evasão fácil para o mar e a floresta. Ele estava ali num desses limites entre a cidade dos homens e a natureza pura; ainda pensava em seus problemas urbanos – mas um camaleão correu de súbito, um passarinho piou triste em algum ramo, e o homem ficou atento àquela humilde vida animal e também à vida silenciosa e úmida das árvores, e à pedra escura, com sua pele de musgo e seu misterioso coração mineral.

E pouco a pouco ele foi sentindo uma paz naquele começo de escuridão, sentiu vontade de deitar e dormir entre a erva úmida, de se tornar um confuso ser vegetal, num grande sossego, farto de terra e de água; ficaria verde, emitiria raízes e folhas, seu tronco seria um tronco escuro, grosso, seus ramos formariam copa densa, e ele seria, sem angústia nem amor, sem desejo nem tristeza, forte, quieto, imóvel, feliz” (Braga, 1967:17-19, grifos meus).

Na crônica transcrita acima é possível apreender as definições e qualificações

que são tecidas sobre a vida urbana. A cidade aparece vinculada ao trabalho,

promissórias, condução, telefone e asfalto. É o espaço, portanto, das obrigações

agendadas, da necessidade de comunicação e de locomoção. Em seguida, são descritos

os sons relacionados a tal vida e, novamente, ganha proeminência o aspecto dos

Page 15: O Rio de Janeiro como imagética literária: uma análise das ... · PDF filede Andrade, Manuel Bandeira e ... atiradores fora de moda a que os da direita chamam com suspeita de literato

15

transportes: são os ruídos de bondes e de carros que dominam a passagem, além das

vozes humanas indiscriminadas. O balanço sobre a vida urbana é negativo: o

personagem pondera sobre suas falhas e capacidade de desgaste nervoso que gera. Uma

vez que se delineia esse quadro, o Rio de Janeiro é então tido como um espaço

diferenciado, pois, dentre as grandes cidades, é a única que permite uma “evasão fácil

para o mar e a floresta”, isto é, para espaços não propriamente urbanos. Entretanto, paz

e sossego apenas seriam de todo obtidos se o próprio personagem deixasse de ser

humano para se transformar em um “confuso ser vegetal”.

Primeiras impressões

Por meio das análises sucintamente apresentadas, é possível pontuar algumas

questões no que se refere às crônicas de Braga. A primeira delas é que, no período

abarcado, diferentes regiões da cidade do Rio de Janeiro são desveladas, tais como o

centro e alguns dos bairros da zona sul. Como contraposição ao espaço urbano, que é

entendido como um exílio, a vida da roça se torna positivada. Além disso, a natureza

comumente é acionada como foco da narrativa, aparecendo como um dos melhores

atributos da paisagem urbana carioca.

Tal natureza, como se evidencia na segunda epígrafe e na última crônica do

tópico anterior, é qualificada como humilde. Nesse ponto, mostra-se profícua a

aproximação com as reflexões de Arrigucci Jr. (1985), segundo o qual a escrita de

Braga guardaria afinidades com a do poeta Manuel Bandeira, sendo que na obra dos

dois haveria a utilização de um “estilo humilde”: “tanto quanto para o poeta, também

para o cronista a humildade se converte de valor ético em valor estético” (Arrigucci Jr.,

1985:14). Em suas palavras, “para ambos (...) o maior valor parece residir no mais

simples e só se mostra na forma mais despojada, a única capaz de criar de imediato o

contacto humano com o que há de mais alto e com o leitor” (Arrigucci Jr., 1985:14).

Uma vez que a natureza enquanto “humilde coisa” é valorizada, é possível aventar que a

cidade e sua vida, quando elementos da natureza nelas não estão presentes, ocupam uma

posição menos destacada.

As crônicas acima mobilizadas fazem parte do corpus que foi compilado dos

jornais e publicado em livro pelo autor. O objetivo, no próximo momento, além do

aprofundamento da primeira análise aqui desenvolvida, será o de interpretar as crônicas

“inéditas”, isto é, aquelas que não foram selecionadas e permanecem nos arquivos dos

Page 16: O Rio de Janeiro como imagética literária: uma análise das ... · PDF filede Andrade, Manuel Bandeira e ... atiradores fora de moda a que os da direita chamam com suspeita de literato

16

periódicos nos quais colaborou. Pretende-se, então, estudar se em tais textos outras

imagens do Rio de Janeiro são tecidas pelo cronista.

Bibliografia

ARRIGUCCI JR., Davi. “Onde andará o velho Braga?”. In: Achados e perdidos. São Paulo, Livraria Editora Polis, 1979. ________. “Braga de novo por aqui”. In: Os melhores contos de Rubem Braga. São Paulo, Global, 1985. ________. “Fragmentos sobre a crônica”. In: Enigma e comentário – ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo, Companhia das Letras, 2001. BRAGA, Rubem. A borboleta amarela. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Ed., 1955. ________. 100 crônicas escolhidas. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Ed., 1958. ________. A traição das elegantes. Rio de Janeiro, Ed. Sabiá, 1967. ________. 200 crônicas escolhidas. Rio de Janeiro, Ed. Record, 1977. ________. Crônicas do Espírito Santo. Vitória, Suplemento Especial de A Gazeta, 1994. CANDIDO, Antonio. “A vida ao rés-do-chão”. In: A Crônica – O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, Ed. Da Unicamp, 1992. CARVALHO, Marco Antonio de. Rubem Braga: um cigano fazendeiro do ar. São Paulo, Globo, 2007. COUTINHO, Afrânio. “Gêneros ensaísticos”. In: Notas de Teoria Literária. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978. MOISÉS, Massaud & PAES, José Paulo (orgs.). Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira. São Paulo, Cultrix, 1987.