o revolucionÁrio da educaÇÃo - kd · eu já tive de fazer isso, quando fui...

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Aos 48 anos, Alberto M. Carvalho fala de forma pausada e convincen- te. As palavras em português saem- -lhe, aqui e ali, um pouco enferruja- das, mas nada que o impeça de pra- ticar o que faz melhor: comunicar. E mudar. É um self made man e um fazedor. Superintendente do con- dado de Miami Dade, o quarto maior estado dos EUA, gere 400 es- colas públicas, um orçamento de 2,94 mil milhões de euros, tem 53 mil empregados, 23 mil professo- res e 500 mil estudantes. Defensor acérrimo da qualidade do ensino, mesmo em tempos de crise econó- mica, acredita que a revolução do ensino passa pelo digital. “A arqui- tetura do ensino a nível global, com x dias por ano e 60 minutos por aula, já não serve.” O homem que foi eleito “líder visionário do ano” em 2010 pela Câmara do Co- mércio de Miami está muito envol- vido na política educativa dos EUA, a nível federal, em Washing- ton, mas não descarta a hipótese de voltar para Portugal. O que faz realmente um superin- tendente? Um superintendente é nomeado por nove deputados eleitos pela co- munidade, que representam mi- lhões de votantes. Sou o equivalen- te a um ministro da Educação re- gional. Não há ninguém acima de mim a dizer-me o que fazer. Sou responsável pela educação, orça- mento, inventário das escolas (mais de 400), política regional, de- fesa dos interesses locais face ao Governo federal... Tenho um escri- tório central, na Baixa de Miami, mas sou um homem do terreno. Sou o único superintendente fede- ral que começou por duas escolas (uma primária e outra secundária) A Alberto M. Carvalho é português e o equivalente a ministro da Educação de Miami, nos EUA. Cresceu numa casa de uma assoalhada, no Bairro Alto, com os pais e cinco irmãos. O seu primeiro emprego na terra das oportunidades foi a lavar pratos. Hoje, gere um orçamento de mais de 2,94 mil milhões de euros e orgulha-se do seu percurso. Acredita que a revolução na educação está em curso e que é urgente mudar a forma de pensar o ensino. Este ilustre desconhecido em Portugal foi nomeado “líder visionário do ano” em 2010. ENTREVISTA DE KATYA DELIMBEUF FOTOGRAFIAS DE NUNO BOTELHO O REVOLUCIONÁRIO DA EDUCAÇÃO ENTREVISTA 42 REVISTA 17/NOV/12

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Aos 48 anos, Alberto M. Carvalhofala de forma pausada e convincen-te. As palavras em português saem--lhe, aqui e ali, um pouco enferruja-das, mas nada que o impeça de pra-ticar o que faz melhor: comunicar.E mudar. É um self made man e umfazedor. Superintendente do con-dado de Miami Dade, o quartomaior estado dos EUA, gere 400 es-colas públicas, um orçamento de2,94 mil milhões de euros, tem 53mil empregados, 23 mil professo-res e 500 mil estudantes. Defensoracérrimo da qualidade do ensino,mesmo em tempos de crise econó-

mica, acredita que a revolução doensino passa pelo digital. “A arqui-tetura do ensino a nível global,com x dias por ano e 60 minutospor aula, já não serve.” O homemque foi eleito “líder visionário doano” em 2010 pela Câmara do Co-mércio de Miami está muito envol-vido na política educativa dosEUA, a nível federal, em Washing-ton, mas não descarta a hipótesede voltar para Portugal.

O que faz realmente um superin-tendente?Um superintendente é nomeado

por nove deputados eleitos pela co-munidade, que representam mi-lhões de votantes. Sou o equivalen-te a um ministro da Educação re-gional. Não há ninguém acima demim a dizer-me o que fazer. Souresponsável pela educação, orça-mento, inventário das escolas(mais de 400), política regional, de-fesa dos interesses locais face aoGoverno federal... Tenho um escri-tório central, na Baixa de Miami,mas sou um homem do terreno.Sou o único superintendente fede-ral que começou por duas escolas(uma primária e outra secundária)A

Alberto M. Carvalho é português e o equivalente a ministro da Educação de Miami,nos EUA. Cresceu numa casa de uma assoalhada, no Bairro Alto, com os pais e cinco irmãos.O seu primeiro emprego na terra das oportunidades foi a lavar pratos. Hoje, gereum orçamento de mais de 2,94 mil milhões de euros e orgulha-se do seu percurso.Acredita que a revolução na educação está em curso e que é urgente mudar a formade pensar o ensino. Este ilustre desconhecido em Portugal foi nomeado “líder visionáriodo ano” em 2010. ENTREVISTA DE KATYA DELIMBEUF FOTOGRAFIAS DE NUNO BOTELHO

O REVOLUCIONÁRIODA EDUCAÇÃO

ENTREVISTA

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RESPONSABILIDADE

SUPERINTENDENTEDO CONDADO DEMIAMI DADE, NOSEUA, DESDE 2008,ALBERTO M.CARVALHO TEVE DERESTRUTURAR TODOO SISTEMA PORCAUSA DA RECESSÃO

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e se autonomeou diretor de ambas.Hoje, são as que têm as melhoresnotas do condado. São escolas on-de há professores misturados comconteúdos digitais. Não há campa-inhas, não há tempo regimentado,não há mobiliário escolar (só mó-veis do Ikea), os estudantes podemtirar os sapatos se quiserem, hápuffs onde se podem sentar... Passomuito tempo com a comunidade.Recusou um convite para inte-grar o Governo de Obama, em2009. Porquê?Não foi por motivos políticos. Massou orientado por certos valores, eo trabalho e a missão que estou adesenvolver na Florida ainda nãoterminou. Estamos a criar um no-vo modelo educativo para a nação,quem sabe até um modelo de refor-ma internacional. Um ensino de fi-nanciamento público, com elimina-ção drástica de custos administrati-vos, de burocracia... Ao mesmo tem-po que nunca despedi um profes-sor por razões económicas, não re-novei o contrato a mais de 6000professores considerados incompe-tentes e despedi dezenas de direto-res de escolas. Mudei 64% dos dire-tores de escolas da minha região.Mas ver-se-ia num Governo deObama se o seu mandato acabas-se a tempo [o mandato terminaem 2016])?Há a possibilidade de aceitar umaposição federal. Nos EUA, sou inde-pendente. Não sou republicanonem democrata. A minha políticafinanceira é conservadora, a mi-nha política social é moderada, tal-vez um pouco liberal. E é difícil pôruma pessoa como eu numa “caixa”.Acompanha a realidade educati-va portuguesa? Aqui, o ministroNuno Crato não renovou o con-trato a mais de 5000 professo-res. O que pensa disso?É sempre triste não renegociarcom professores que podem seraté muito bons mas não têm tan-tos anos de serviço. Um sistemaque tem a longevidade como úni-co critério de emprego não tiravantagens do grande talento decertos professores. Devia haverum equilíbrio entre o respeito porprofessores antigos e as necessida-

des dos estudantes. Um dos princi-pais problemas das políticas deeducação é que são feitas por adul-tos e para adultos. Há demasiadasreformas educativas pelo mundofocadas nas questões dos adultos,que excluem os benefícios dos estu-dantes. As crianças não têm sindi-catos. Nunca pensamos nelas co-mo clientes, mas a educação é umaindústria social. O problema de es-te ser um sector público é achar-mos que o cliente é garantido.Como avalia o grau de satisfaçãodesses clientes, as crianças?Entrevista-os?Exatamente. Nos últimos quatroanos fizemos sondagens aos nos-sos estudantes, aos pais e aos pro-fessores. Existe um formulário, queé preenchido online — o School Cli-mate Survey [Sondagem do ClimaEscolar]. A minha avaliação é com-pletamente pública. Se cometerum erro que põe em causa o empre-go de milhares de pessoas, essa con-sequência é muito visível. Passadosdois anos, qualquer pessoa pode pe-dir para ver estas avaliações.Em Portugal, foi introduzidauma avaliação de professoresque gerou muita polémica. Quei-xaram-se de critérios subjetivos,interferências pessoais...Se há a possibilidade de violaçõeséticas, relações de amizade ou ne-potismo, a fé nessas avaliações per-de-se. E, se se perde a fé, esse atodeixa de ser objetivo e respeitado. Epode causar dano à perceção públi-ca. Por isso é que a mesa de nego-ciações tem de ser inclusiva. Nãopode ser um formulário feito porum administrador sem consultaros professores. Em Portugal, nãohá diretores de escolas — é um con-selho de professores. Isso pareceser justo, mas tem de haver umapersonagem responsável a fazê-lo.Sem um responsável, é difícil con-seguir uma reforma com resulta-dos. Para avaliar professores justa-mente, é bom ter outros professo-res envolvidos, mas é preciso al-guém sujeito a escrutínio público.Em Portugal, não há essa figura. Po-diam ser reitores, não eleitos. Nemtodas as posições têm de ser eleitas.Como superintendente, não sou

eleito. Sou um CEO. Tenho de ter ahabilidade para fazer este trabalho.Como levaria a cabo uma refor-ma educativa numa altura degrandes restrições orçamentais?Eu já tive de fazer isso, quando fuinomeado superintendente da Flori-da, em 2008, em plena recessãomundial. De então para cá, o meuorçamento baixou de 5 mil mi-lhões para 2,94 mil milhões de eu-ros. E posso dizer com orgulho quenunca despedi um professor pormotivos financeiros. Mas troqueimuitos professores. Renegocieicontratos com sindicatos, incluí no-vas regras — mérito, ligação entreaptidão académica dos estudantese avaliação — e dei incentivos fi-nanceiros a professores que atin-gem objetivos acima da média(que vão até cerca de 20 mil eurospara os “professores-estrelas”, quefazem milagres). Não valorizo tan-to as qualificações académicas co-mo o desempenho de um profes-sor e a ligação que consegue esta-belecer com os estudantes.Quais as ideias-chave para fazerreformas em tempos de crise?Modificar leis estatais para conse-guir poupar. Por exemplo: de qua-tro em quatro anos, era supostocomprarmos novos livros escola-res. Eu disse que não queria gastarciclicamente dinheiro nisto, mas in-vestir mais em instrução digital,computadores, iPads... Renegocieitodos os contratos com os empre-gados — professores, condutoresde autocarros (temos a maior frotaescolar do mundo, com 1500 auto-carros) — e com o privado. Duran-te a recessão, achei que os preçosdeviam ser mais baixos e que devía-mos todos fazer sacrifícios. Quan-do fui nomeado superintendente, osistema financeiro estava falido.Havia 4 milhões de dólares em re-serva, de um orçamento de 60 mi-lhões. O nosso rating na Moody’sera negativo... Tive de trazer estabi-lidade. A diferença entre o que fizno condado de Miami Dade [Gran-de Miami] e o que se passou em paí-ses ou organizações é que estesnão tiraram vantagem da crise eco-nómica para reduzir custos. Culpeia recessão para conseguir um orça-

ACREDITO NUMENSINO EM QUECADA ESTUDANTETEM UM PROGRAMAACADÉMICOPERSONALIZADO,COM A AJUDADE PLATAFORMASDIGITAIS. O SISTE-MA ATUAL ESTÁULTRAPASSADO

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mento equilibrado e fazer refor-mas legislativas que nunca teriamsido feitas se as condições financei-ras fossem outras. Também conse-gui reduzir taxas de impostos paraos contribuintes da comunidade,para garantir o seu apoio. Esse cor-te de 58% permitiu-me reinvestir anível escolar: não tive de despedirprofessores, protegi os programasopcionais (música, arte...) e amplieios programas de alta qualidade(programas magnet) para estudan-tes de alto rendimento. Usei a forçapolítica e económica do sistema e otamanho do Estado a nosso favor.Depois, usei fortemente a opiniãopública: falei diretamente com ascomunidades locais nas suas lín-guas nativas — francês com os hai-tianos, castelhano com os latinos...Outra coisa importante: cortei a bu-rocracia administrativa em 58%nos primeiros dois anos. É precisocoragem, porque matam-se mui-tas “vacas sagradas”.É um adepto fervoroso dasplataformas tecnológicas. Sãoindispensáveis à revolução noensino?Passados quatro anos de mandato,todas as 400 escolas têm wi-fi. Ado-támos uma política de bring yourown device [traz o teu equipamentoeletrónico], que pode ser um smart-phone, um iPad, um computadorportátil. Fizemos uma sondagempara perceber os rendimentos dasfamílias e entender quem tem pos-sibilidade de trazer um aparelhode casa — e, para os que não têm,dar-lhes essa oportunidade.Mas a plataforma é tudo? Não épor um miúdo ter um iPad emvez de um caderno que estudaforçosamente melhor...Não se trata apenas de dar o apare-lho digital à criança, mas sim o con-teúdo digital que criámos em parce-ria com a Apple e o Discovery Chan-nel. Este conteúdo pode ser perso-nalizado para cada criança. Temosdados estatísticos de aprendiza-gem de todos os nossos estudantes— em leitura, matemática, ciência,escrita... Com essa plataforma digi-tal, cada estudante tem um progra-ma académico personalizado.Cada estudante tem um

SACRALIZADO PARA

ALBERTO CARVALHO, É O

STATUS QUO QUE CRIA

ENTRAVES À REVOLUÇÃO

DO ENSINO QUE

SE IMPÕE E QUE PASSA

PELO DIGITAL. VAI SER

PROVOCADA PELOS

ESTUDANTES DIGITAIS,

QUE ESTÃO

ABORRECIDOS

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programa próprio? Isso é possí-vel de pôr em prática?É como no iTunes: o programa per-cebe o perfil do estudante pelassuas reações e vai “aprendendo” acriança. Os programas tentam mo-tivar os utilizadores, dar-lhes desa-fios. Tentam sempre não frustraros jogadores. Aqui, acontece o mes-mo: o estudante é mantido entreti-do, com desafios crescentes.Numa sala de aula, como é possí-vel cada aluno aprender pelo seuprograma personalizado? O quefaz o professor no meio disto?Essa é uma questão fundamental.Nós glorificamos muito as escolascomo elas são hoje. São quase co-mo templos, exemplos icónicos danossa sociedade. Mas a arquiteturada educação que temos atualmen-te não foi desenhada por educado-res, mas pela Revolução Industrial.É uma réplica dos horários agrá-rios e industriais. A campainha quetoca para o recreio é a réplica doapito da Revolução Industrial, quemarca o fim do tempo de descanso.São métodos que precisam de seratualizados. Estamos a viver a revo-lução digital. As crianças são “nati-vos digitais”, nasceram nesta reali-dade. E nós, que somos migrantesdigitais, estamos a lutar muito paranos mantermos nesta realidadeconfortável, sem levar em conta omodo como os cérebros das crian-ças aprendem, que é diferente dosnossos. As crianças de hoje são mui-to mais inteligentes, porque o nívelde estímulos a que foram expostascresceu de forma exponencial.Mas não é importante continuara ler um livro em papel?Para mim, é igual ler um livro empapel ou no e-reader. O processode leitura é o mesmo. O método decompreensão (as letras fazemsons, que criam palavras, que têmsignificados) é idêntico. Estudosmuito sólidos mostram que ascrianças aprendem melhor emconteúdo digital. Um dos proble-mas da educação hoje é acharmosque o processo de aprendizagemtem de acontecer 180 dias por ano,8 horas por dia, interrompido emsegmentos de 60 minutos. Não éassim que nós vivemos. O proble-

ma neste país que eu adoro [Portu-gal] é que tudo tem de estar muitocompartimentado em caixinhas. E,às vezes, mais vale partir a caixa.Desconstruir.E como se faz um teste igualpara todos, com alunos emníveis de aprendizagem tãodiferentes?A nossa fixação com a regimenta-ção do ensino é uma loucura. Oúnico processo que conheço quedá oportunidade, em grupos gran-des, a cada criança de ter uma jor-nada pessoal de aprendizagem écom um professor e um conteúdodigital que se adaptem à criança.Quanto tempo acha que essemétodo de ensino vai demorar achegar a Portugal?Cinco anos ou menos. Nos EUA,dois anos ou menos. Vai haver mui-ta resistência, devido à mudançadas coisas que conhecemos — ocheiro do papel, etc. A indústrianão se vai adaptar rapidamente,porque ganha muito dinheiro comos livros escolares impressos. Essamudança digital vai ser tectónica —a tensão será criada pelos estudan-tes digitais, que estão aborrecidos.O que deve ser para si a escolapública?Justa, equitativa, de alta qualidade,que leve em conta as exigênciasdos pais. 46% dos estudantes domeu condado escolhem as escolasou academias (mais centradas emtorno de um interesse, como artes,ballet, línguas ou engenharia) paraonde querem ir. A localidade ondeas crianças vivem não pode deter-minar a sua educação. Esse poderde escolha reforça a reforma daeducação pública.A sua filha [tem 21 anos e estudana Universidade de Atlanta]andou na escola pública?Sim, em quatro escolas públicas.O seu início de vida foi muitoduro. Nasceu numa famíliahumilde, no Bairro Alto, e desem-barcou nos EUA, aos 17 anos,como imigrante ilegal... É oexemplo do self made man...Nasci no nº 40 da Travessa da Espe-ra, no Bairro Alto, numa assoalha-da, onde vivia com os meus cincoirmãos, os meus pais e os pais da

minha mãe. Não havia cozinhanem casa de banho, apenas umaárea comum. As minhas memóriassão de tempos difíceis. Nunca terroupa ou sapatos novos... Nuncahouve luxos, mas houve sempremuito amor e dedicação dos meuspais. Tenho muito orgulho na mi-nha origem. Recuso aceitar que anossa condição seja uma condena-ção, uma sentença que não possa-mos alterar. O importante não é on-de se começa, é onde se acaba e oque se alcança. Quando acabei o12º ano em Portugal, tinha de se co-nhecer alguém para entrar na uni-versidade, ou então pagar muito di-nheiro para ir para uma faculdadeprivada. Trabalhei para conseguiros meus primeiros mil dólares.Com eles, comprei o bilhete paraos EUA. Saí daqui com um visto deturismo para seis meses, mas combilhete de regresso de 30 dias. Ho-ras depois de chegar a Nova Iorqueestava a trabalhar. Tive trabalhosmuito humildes. Lavei pratos emcozinhas de restaurantes. Fiz todoo tipo de tarefas: na construção,limpeza, fui empregado de mesa,vendi fatos de homem... Ninguémpedia documentos para trabalhar— eu era um imigrante ilegal, co-mo tantos outros, a partir do mo-mento em que o meu visto expi-rou. Mas ninguém pensava dessamaneira. E, uma vez, um congres-sista que ia muito ao restauranteonde eu trabalhava decidiu ajudar--me. Arranjou-me um visto de estu-dante, e eu podia estudar e traba-lhar 20 horas por semana... Não fa-lava inglês — só francês. Aprendiinglês e espanhol a namorar [risos].Já queria ser médico na altura?Sim. A ciência fascinava-me, e eramuito bom estudante. Os médicossão quase como deuses, e eu queriareformar a medicina como depoisreformei a educação pública... Ins-crevi-me na universidade, tirei no-tas máximas, recebi uma bolsa pre-sidencial para ir estudar na Univer-sidade Católica da Florida, e aí tireio meu curso de Biociências. De-pois, continuei para Medicina, masnão gostei. Não era para mim. Fuiprofessor de Química e Biologia noensino secundário três anos e senti

MELHORARA EDUCAÇÃOPÚBLICA É UMAQUESTÃO DEVONTADE. O‘STATUS QUO’ É TÃOFORTE QUE O MEDODAS REPERCUSSÕESPOLÍTICAS MATATODAS AS BOASIDEIAS. A INOVAÇÃOTEM POUCASHIPÓTESES

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que tinha de modificar o sistemade ensino público. Candidatei-mea administrador e tornei-me dire-tor de uma escola — que foi nomea-da uma das dez melhores secundá-rias do país. Era uma escola muitopobre, com uma população de 85%de pobres e minorias. Mas conse-guiu resultados muito superioresaos de escolas com recursos.O segredo era motivar?Não há segredos. Nós já sabemostudo o que precisamos para melho-rar a educação pública. É apenasuma questão de vontade. O statusquo é tão forte que o medo das re-percussões políticas mata todas asboas ideias. A inovação tem pou-cas hipóteses.Acredita no ensino bilingue, eeste ano letivo implementouuma parceria com o InstitutoCamões para dar aulas em portu-guês. Quantos alunos aprendemportuguês em Miami Dade?

Milhares. Havia muita procura, so-bretudo por parte da comunidadebrasileira. Era importante paramim, porque sou português. Masnegociei mais facilmente acordoscom a Alemanha, França, Espa-nha... Com Portugal, foi sempre di-fícil: muitos papéis, protocolo... Is-so enfurece-me, porque sou muitoimpaciente. Não temos uma déca-da para melhorar a qualidade doensino se queremos ganhar a guer-ra contra o analfabetismo.Gostaria de voltar a Portugal?Tem alguma data em mente?A palavra mais bonita da línguaportuguesa é “saudade”. Tenhoimensa saudade de Lisboa. Leiomuitas vezes notícias sobre a atua-lidade portuguesa e penso qual po-deria ser o meu contributo. Vivo es-ta dualidade: nos EUA, eu digo, efaço. É tudo mais rápido. Mas vejoem Portugal uma inquietude queme encoraja. Há um sector que é

educado, impaciente, que quer mu-dança. Pessoas com esperança,que querem ser parte da solução.Não descarta um futuro napolítica em Portugal, então?Tenho grande esperança para estepaís. E não é impossível que me li-gue mais a pessoas que queremum futuro melhor para Portugal,elevando a qualidade de vida, anossa assinatura económica inter-nacional... Temos grande riqueza epotencial humano, que não utiliza-mos como poderíamos.Acha que conseguiria manter-seindependente em Portugal?Não, Portugal tem um sistemamais polarizado. Mas não é impossí-vel pessoas bem intencionadas en-tenderem-se sobre a educação, queé o sector mais importante para avisibilidade económica de um país.Porque se naturalizou norte-ame-ricano?Os EUA foram o país que me deu a

minha oportunidade. No dia 11 desetembro de 2001, o dia do ataqueterrorista às Torres Gémeas, estavanum avião com a minha mulher, aregressar de Veneza. Catorze horasdepois de levantar voo, ainda está-vamos no ar — não podíamos ater-rar em JFK. Aterrámos no Canadá.Quando vi as imagens na televisãopela primeira vez, senti um impac-to emocional muito grande. Tomeia decisão de me naturalizar nessemomento. Mas este ano renovei omeu passaporte português. Portu-gal está numa encruzilhada. Está aenfrentar um panorama assusta-dor, mas também prometedor. A sa-bedoria está com aqueles que reco-nhecem a oportunidade. É em tem-pos difíceis economicamente que omelhor das comunidades se poderevelar. A minha expectativa paraPortugal é que haja um despertarnacional. Agora é o momento. R

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