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O REINO DE DEUS E

O REINO DOS HOMENS

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Chanceler:

Dom Altamiro Rossato

Reitor:

Ir. Norberto Francisco Rauch

Conselho Editorial:

Antoninho Muza Naime

Antonio Mario Pascual Bianchi

Délcia Enricone Jayme Paviani

Jorge Alberto Franzoni

Luiz Antonio de Assis Brasil e Silva

Regina Zilberman Telmo Berthold

Urbano Zilles (Presidente)

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Antoninho Muza Naime

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FONE/FAX: (05!) 339-1511 Ramal 3323

E-mail:edipucrs(lijmusic.pucrs.br

José Antônio de C. R. de Souza

João Morais Barbosa

O REINO DE DEUS E

O REINO DOS HOMENS

As relações entre os poderes

espiritual e temporal na Baixa Idade Média

(da Reforma Gregoriana a João Quidort)

Coleção

Filosofia —58

Porto Alegre 1997

© by José Antonio de C. R. de Souza e João Morais Barbosa

1ª edição: 1997

Capa: José Fernando Fagundes de Azevedo

Diagramação da versão digital: Caroline Pereira

Editoração: Suliani — Editografia Ltda.

lmpressão e acabamento: Evangraff

CIP - CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

S729r

Elaborada pelo Setor de Processamento Técnico da BC-PUCRS

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E-mail [email protected]

Souza, José Antônio de C. R. de O reino de Deus e o reino dos Homens: as relações entre

os poderes espiritual e temporal na Baixa Idade Média

(da Reforma Gregoriana a João Quidort) / José Antônio de

C. R, de Souza e João Morals Barbosa. — Porto Alegre

EDIPUCRS, 1997.

204p. (Coleção Filosofia; 58)

1. Religião 2. Igreja : História Média 3. Papas: História

1. Barbosa, João Morais II. Título III. Série

CDD 270.5

262.13

SUMÁRIO

Introdução / 9

1 – O PERÍODO GREGORIANO / 11

1.1 – A hierocracia: evolução dos fundamentos teóricos / 11

1.2 – Os antecedentes da Reforma Gregoriana / 15

1.3 – Gregório VII e Henrique IV / 22

Coletânea de Documentos / 32

2 – A HIEROCRACIA E A TEOCRACIA RÉGIA NO SÉCULO XII /53

2.1 – Ainda as questões das investiduras e da libertas Ecclesiae / 53

2.2 – Hugo de São Victor (1096-1141) / 54

2.3 – O Direito Canônico / 55

2.4 – São Bernardo e a alegoria dos dois gládios / 57

2.5 – Hierocracia e Teocracia na metade do século XII.

Os Pontífices e o Imperador / 60

2.6 – Ius Antiquum / 68

2.7 – As Contribuições de Gero de Reichersberg e de João de

Salisbúria / 70

Coletânea de documentos / 73

3 – HIEROCRACIA E TEOCRACIA NO SÉCULO XIII / 88

3.1– As idéias políticas de Inocêncio III / 88

3.2 – Ius Novum / 95

3.3 – Os pastores e a águia / 98

3.4 – As contribuições do Ostiense e de S. Thomás de Aquino / 104

Coletânea de documentos / 110

4 – NA AURORA DO SÉCULO XIV / 125

4.1 – Edígio Romano / 135

4.2 – Tiago de Viterbo / 140

4.3 – João Quidort / 145

Coletânea de Documentos / 150

6

APRESENTAÇÃO

Entre a eleição de Gregório VII para o pontificado (1073) e a morte de

Bonifácio VIII (1303), a história das idéias políticas encontra farto material. De fato,

com Gregório inicia-se um período de afirmação também teórica da supremacia do

pontífice romano, graças à qual o papa é considerado como autoridade-mor dentro da

cristandade. Ao vazio existente devido à pouca coesão interna do império, e pelo fato de

serem precários os esboços de organização nacional nos estados que começavam a

surgir, contrapunha-se a sólida estrutura da sé romana que, recuperada das agruras de

séculos anteriores, via suceder-se na direção da Igreja uma série de indivíduos altamente

preparados para o cargo, tendo todos eles um projeto comum de reforma eclesiástica que

abrangia quer aspectos puramente espirituais (como a prática religiosa dos cristãos), quer

de organização (como a formação e a disciplina do clero), quer de relações com o poder

que hoje chamaríamos de ―civil‖ (como no caso das investiduras).

Se, no século IX, Carlos Magno considerava-se — e agia como — senhor

supremo dentro do império, tratando o papa como ―ministro do culto‖, no século XI invertiam-se as posições, e o monge Hildebrando, respeitado por todos, e temido por

quase todos, ascendia ao sólio pontifício e passava a tratar as autoridades políticas da

cristandade, a começar pelo imperador, como simples vassalos. Carlos era senhor da

Igreja e, sem dúvida, se houvesse surgido um conflito entre o império e o papado, não

teria hesitado em depor o sumo pontífice; Gregório era senhor do império e, quando

surgiu o conflito, depôs o imperador e obrigou-o a humilhante penitência as portas do

castelo de Canossa.

O arcabouço teórico a sustentar as lutas do século XI é relativamente fraco,

como fracos eram os centros de estudo disseminados pelo Ocidente. Mas os tempos

mudaram, os estudos de direito, tanto eclesiástico como civil, passaram a fazer parte do

projeto de vida de muitos intelectuais, e no final do século XII e durante o século XIII a

política readquire seu caráter de ciência, para o que foi de fundamental importância a

tradução dos textos aristotélicos. De início, os grandes teóricos encontram-se quase

todos do lado da Igreja, salientando-se, entre outros, o Ostiense e o papa Inocêncio III.

No decorrer dos tempos, porém, os estudos de direito civil, o surgimento de estados

modernos na Inglaterra e na França e a experiência de governo das comunas italianas

possibilitaram o surgimento de um corpo de intelectuais capazes de questionar teoricamente o projeto de supremacia dos pontífices romanos.

Inocêncio III foi o verdadeiro imperador do Ocidente no início do século XIII.

Gregório IX e Inocêncio IV seguiram seus passos. Mas quando, no fim do século, Bonifácio

VIII foi entronizado na sé de Pedro, o mundo já era outro — o que o velho cardeal Gaetani

não percebeu. Em sua luta contra Filipe, o Belo, o povo francês, juntamente com boa parte do

clero e da universidade de Paris, ficou do lado do monarca. A polêmica atingiu um nível

teórico muito mais elevado que o do século XI e esboçou os argumentos que Dante, Marsílio

de Pádua e Ockham haveriam de desenvolver pouco depois.

7

As idéias políticas que medeiam entre Gregório VII e Bonifácio VIII,

principalmente no que tange à supremacia de um ou outro poder, são o tema de O reino

de Deus e o reino dos homens. Como os autores muito bem observam, a

interdisciplinaridade própria dos medievais faz com que se seja difícil, senão impossível,

separar teologia, filosofia, direito, política a história, e por isso mesmo a obra que estão

publicando, ao situar-se em um mundo diferente do nosso, é acima de tudo uma obra de

história das idéias.

A competência dos autores e o valor intrínseco da obra, principalmente em um país que tão pouco conhece da Idade Média, são algo a respeito de que dispenso

comentários. Permito-me tão somente ressaltar a importância para a vida acadêmica da

coletânea de documentos que acompanha cada capítulo.

Porto Alegre, 30 de janeiro de 1997.

Luis Alberto De Boni

Presidente da Comissão

de Filosofia Medieval do Brasil.

8

INTRODUÇÃO

As relações entre os poderes, ou melhor, entre os seus detentores, não importa

quando tenham ocorrido, muito menos onde tenham acontecido, sempre foram um tema

candente, seja pela luta travada entre seus protagonistas, seja pelas idéias que foram

propostas em favor deste ou daquele ponto de vista.

Neste livro trataremos das relações entre os detentores dos poderes espiritual e

temporal na Baixa Idade Média. Não significa que iremos simplesmente examinar a

convivência pacífica ou conflitante entre eles naquele momento histórico. Com certeza,

os acontecimentos servirão de pano de fundo. Entretanto, nossa atenção irá

especialmente convergir para o exame, ainda que muitas vezes conscientemente

superficial, das idéias apresentadas pelos defensores da supremacia de um poder sobre o

outro ou pelos propositores dum relacionamento harmônico entre os detentores de

ambos, cada um deles respeitando o âmbito de atuação específico da sua competência,

bem como os motivos que suscitaram essas diferentes atitudes, e, ainda, o suporte teórico

que as fundamentaram.

Além disso, é preciso ressaltar desde já que esse suporte teórico, como foi

peculiar à Idade Média, dada a interdisciplinaridade vigente àquela época, era

simultaneamente de natureza teológica, jurídica, filosófica, histórica, nunca tendo normalmente prevalecido apenas um desses aspectos teóricos na elaboração do discurso,

cuja intenção nem sempre foi necessariamente política.

Esta obra, portanto, não versa sobre a teologia ou a filosofia política medieval,

nem desconhece a história da Idade Média.

Não versa sobre a teologia ou filosofia política medieval, porque tais subáreas

do conhecimento, consideradas de maneira autônoma, pura e simplesmente não

existiram aquela época. Não desconhece a história do medievo, porque seria um absurdo

fazê-lo ao abordar o pensamento político então produzido, uma vez que os autores

medievais que escreveram sobre o objeto deste livro viveram naquele subperíodo

histórico que iremos abordar, não tendo formulado as suas teorizações independentes das

circunstâncias sócio-político-culturais nas quais estiveram inseridos.

9

E, pois, um livro de história das idéias, no que isso implica quanto ao

conhecimento da História, da Teologia, da Filosofia, do Direito Canônico e Civil, enfim

da cultura.

Em vista desses motivos, ao concebermos este livro, resolvemos que ele

também devia ter um bom elenco documental, selecionado e organizado conforme os

capítulos em que está estruturado, elenco esse que mostrasse plenamente aquelas

características referidas nos parágrafos acima.

Escolhemos, pois, cinqüenta documentos, cuja maior parte teve de ser traduzida do latim para o vernáculo, porque nos países de expressão portuguesa em geral, há pelo

menos vinte anos, infelizmente não se estuda mais esse idioma, de modo que se não

tivéssemos adotado esse procedimento, nos inspirando na atitude tornada pela Comissão

de Filosofia Medieval do Brasil, relativa aos livros que produziu sobre Filosofia

Medieval, bem como pela Editora Vozes, publicando na coleção Clássicos do

Pensamento Político obras de alguns renomados autores políticos do medievo, os jovens

interessados pelos estudos medievais, ate mesmo os que já estejam a freqüentar a pós-

graduação, não teriam acesso aos mencionados documentos.

Para quem, então, se destina este livro? Precipuamente ele foi escrito para todas

aquelas pessoas apaixonadas pela Idade Média, como é o caso de seus autores.

Particularmente, no entanto, ele foi feito para quem se interessa pelo ou se dedica ao

estudo das idéias, das teorias e das filosofias políticas na Baixa Idade Media, seja ele

aprendiz, iniciado ou mestre.

Para os mestres, com efeito, só estaremos oferecendo nossas modestas

interpretações hauridas nas correntes filosóficas do medievo no subperíodo em questão

— o neoplatonismo, o aristotelismo e o aristotelismo neoplatonizado —, lacuna

encontrada na maioria das obras escritas pelos grandes especialistas que abordaram o tema em apreço.

Com referência aos aprendizes e iniciados, este livro tenta superar um vazio

existente nos países de expressão portuguesa, pois, quando muito, encontramos alguns

artigos esparsos nos volumes organizados pela Comissão de Filosofia Medieval do

Brasil, ou, ainda, neste ou naquele número de algum periódico, de modo que ele lhes

apresenta uma visão sistematizada e articulada a respeito da temática que aborda. Por

sinal, a major parte das notas fornece indicações quanto a livros e a artigos a consultar,

se quiserem ampliar o seu saber.

Escolhemos um período rico, mas cronologicamente limitado, da história das

idéias políticas medievais. Começamos expondo os fatos e as teorias que antecederam

imediatamente a Reforma Gregoriana; terminamos abordando a querela envolvendo

Bonifácio VIII e Filipe IV, o Belo, e as teses políticas defendidas pelos ideólogos

favoráveis ao Papa ou ao Rei.

Privilegiamos as relações entre os poderes, perspectivadas no confronto entre

duas concepções políticas — a hierocracia e a teocracia —, seja inicialmente na querela

entre a Igreja e o Império, seja ao final, na disputa ocorrida entre a Igreja e a monarquia

nacional francesa. Por isso, concebemos e organizamos este livro em quatro capítulos, dos quais o

primeiro e o último são indiscutivelmente os mais importantes.

10

Ao tratar aqui deste assunto, poderíamos ter recuado mais ou ido além no

tempo. No entanto, julgamos que os séculos XIV e XV, dadas as suas características

peculiares, merecem um volume específico. Com referência a Alta Idade Media, em

1988 foi publicado um volume intitulado Pensamento político na A/ta Idade Média, e

mais recentemente um outro, O reino e o sacerdócio: o pensamento político na Alta

Idade Media; por isso, fizemos referências a fatos e a documentos vinculados a épocas

anteriores apenas quando tal se tornava imperativo para a compreensão do assunto que

se estava a tratar ou ia ser abordado mais adiante. Finalmente, devemos esclarecer que, embora a nossa motivação para escrever

este livro tenha surgido há mais de vinte anos, a pesquisa e a redação do mesmo

aconteceram em várias etapas, em face das inúmeras responsabilidades profissionais e

vicissitudes pelas quais passamos. A primeira etapa, após dois anos de trabalho

descontínuo, foi concluída no princípio de 1989. A segunda etapa, resultante dos

esforços do Dr. João Morais Barbosa, ex-Presidente do Conselho Cientifico da

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e ex-

membro da Academia Portuguesa de História, até sua morte prematura em dezembro de

1991, se estendeu de março de 1990 a fevereiro de 1991. A última e definitiva, de julho

de 1994 a agosto de 1995. Entretanto, desde a conclusão da primeira etapa, este livro

tinha a mesma organização interna de agora.

Era desejo do Dr. Morais Barbosa, como o é o meu também, que nos países de

expressão portuguesa, a semelhança do que acontece na Europa e na America do Norte,

haja pessoas que venham a se dedicar a investigação das idéias políticas que floresceram

no medievo e a publicação do resultado de suas pesquisas.

O jovem leitor esteja atento, porém, ao fato de que as doutrinas políticas

medievais foram pensadas num contexto em que o espiritual e o temporal, o imanente e o transcendente, o sagrado e o profano formavam um corpo único, sem as distinções

teóricas que nos, contemporâneos, somos relativamente capazes de estabelecer. Não

podemos julgar o passado a luz do presente. Os nossos critérios não foram os que

predominaram na Idade Media. Esperamos que as páginas deste livro tornem isso mais

claro para os nossos leitores. E que, mais do que julgar, sejamos capazes de compreender

o passado.

11

1

O PERÍODO GREGORIANO

1.1 A HIEROCRACIA:

EVOLUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS

A Igreja, durante a Idade Média, sempre assumiu, relativamente à questão das

relações entre os poderes espiritual e temporal, uma posição bem definida, que pode ser

considerada como o seu pensamento oficial. Desse modo, os vários pronunciamentos

papais a tal respeito não refletiram posições pessoais, mas veicularam uma estratégia

peculiar deste ou daquele Pontífice quanto a enfrentar concretamente uma disputa com o poder temporal.

A Igreja gradualmente elaborou e possuiu um programa de pensamento e de

ação acerca das relações entre os poderes espiritual e secular, de que os Papas foram,

durante os seus respectivos pontificados, de acordo com as circunstâncias da época, os

seus intérpretes.1

É inegável que durante o citado período alguns Pontífices, entre os quais, por

exemplo, Gregório VII, Inocêncio III, Bonifácio VIII, dotados de uma capacidade de

ação política excepcional e apoiados em teóricos de enorme gabarito, souberam definir o

programa da Igreja de modo ímpar. Mas, em maior ou menor grau, todos eles fizeram

parte duma escola de pensamento eclesiológico-político que os transcendia e que, ela

sim, procurava impor-se na sociedade medieval. Designamos essa escola de hierocrata,

e a teoria política que gradualmente foi sendo elaborada e defendida, hierocracia.

O programa da Igreja essencialmente dizia respeito, de um lado a sua ação

pastoral no mundo, e, de outro, a sua própria organização interna, na qual avultava a

definição da instância juridicamente capaz de a dirigir.

Entretanto, isso não ocorreu repentinamente. As concepções relativas ao

governo da Igreja e da sociedade que foram brotando durante o medievo encontraram, na

1 Cfr. ULLMANN, W. M ed i eva l political thought (London: Penguin Books, reprinted 1979),

em especial o capítulo 4, ―The hierocratic doctrine in its maturity‖, p. 100-129.

12

tradição de séculos, abundante material de apoio. Em parte, logo no início do

Cristianismo e, depois, ao longo da Alta Idade Média, os teóricos do poder espiritual e

do poder temporal souberam combinar idéias bebidas na Revolução, no Direito Romano

e na filosofia neoplatônica.

Em lugar de relevo, estava, naturalmente, a Palavra Revelada. O Novo

Testamento afirmava ter sido S. Pedro escolhido por Cristo para chefiar a Igreja e,

simultaneamente, cuidar de todos os fiéis. Em Mateus (16, 16-19) lemos: ―Respondeu-

lhe Simão Pedro: Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo. E Jesus respondeu-lhe: Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne e o sangue que to

revelaram, mas meu Pai que está nos céus. Ora, também eu te digo: Tu és Pedro e sobre

esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Inferno não prevalecerão contra ela.

Dar-te-ei as chaves do Reino dos céus, e o que ligares na terra ficará ligado nos céus; e o

que desligares na terra ficará desligado nos céus.‖ Por outro lado, no Evangelho de João

(21, 15-18) está escrito: ―Depois de comerem, pergunta Jesus a Simão Pedro: Simão,

filho de João, amas-me tu mais do que estes? Respondeu-lhe ele: Sim, Senhor, tu sabes

que te amo! Diz-lhe Jesus: Apascenta os meus cordeiros. Volta a perguntar-lhe pela

segunda vez: Simão, filho de João, tu me amas? Sim, Senhor, responde ele, tu sabes que

te amo. Diz-lhe Jesus: Apascenta as minhas ovelhas. Pergunta-lhe pela terceira vez:

Simão, filho de João, tu me amas? Entristeceu-se Pedro por lhe ter perguntado pela

terceira vez: Tu me amas?, e respondeu-lhe: Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que te amo.

Diz-lhe Jesus: Apascenta as minhas ovelhas.‖

Esses textos bíblicos no período medieval sempre foram entendidos como que

significando que o Senhor outorgou a Pedro o governo de toda a Igreja e igualmente

confiou-lhe o supremo pastoreio de todos os fiéis, ainda que o segundo passo há pouco

citado estabelecesse uma distinção entre ovelhas e cordeiros. No início da Idade Média Tardia, porém, os hierocratas, ampliando a dimensão

e a esfera do mandato petrino, explicitamente irão defender a tese segundo a qual o Papa,

na condição de vigário de Cristo e de sucessor e herdeiro de São Pedro, é o ―monarca do

mundo‖ de iure et de facto entre os cristãos, apenas de iure sobre os infiéis.2

A mencionada passagem evangélica alusiva ao poder das chaves irá servir de

base para eles afirmarem também a supremacia do Papa sobre o Imperador, dado que ao

primeiro está confiado o ingresso dos fiéis no Reino celeste, independentemente da sua

posição hierárquica sócio-política. Os chefes temporais aspiram a conseguir alcançar a

mesma meta sobrenatural que qualquer homem e, como tal, estão as suas vidas confiadas

ao Supremo Pastor da Igreja.

Voltemos às origens da Alta Idade Média dirigindo nossa atenção as primeiras

teses propostas com referência à organização interna da Igreja. Não foi absolutamente

inusitado o fato de o Papa Leão Magno (440-461), profundo conhecedor da cultura

2 Cfr. o capítulo 4 deste livro, em particular, os tópicos relativos a Egídio Romano e o seu livro

Sobre o poder eclesiástico e a Tiago de Viterbo e o seu tratado De regimine christiano, bem como

as teses propostas por Bonifácio VIII nas bulas Ausculta fili e Unam sanctam.

13

jurídico-política romana e experiente homem público, ter afirmado, por diversas vezes,

que a Sé Apostólica era um principatus e que ele detinha a plenitudo potestatis.

Quanto à plenitude do poder, note-se que se trata de uma plenitudo potestatis in

spiritualibus, atribuída ao Papa, enquanto os demais bispos dispõem apenas de uma

parcela do poder espiritual, como no Século XII igualmente o sustentará S. Bernardo de

Claraval no De consideratione. Mas é bom saber de antemão que a passagem e a

dilatação da plenitude do poder in spiritualibus para o âmbito da temporalidade

ocorrerão depois sem maior dificuldade. Para tanto, contribuiu fortemente o neoplatonismo e sua perspectiva de que as

realidades superiores contêm em si, como em seu princípio, as inferiores; portanto, no

poder papal, dada a sua superioridade espiritual, preexiste o poder temporal, ligado à

materialidade das necessidades concretas da vida humana em sociedade.

As idéias acima referidas quanto à supremacia espiritual da Sé Apostólica ou do

Papado no seio da Igreja significavam, porém, àquela época, que, numa disputa de

caráter doutrinal, moral ou disciplinar, desde que a mesma tivesse repercussão em toda a

Igreja, a sentença definitiva cabia sempre ao Papa. É de então a bem conhecida

expressão Roma locuta, causa finita.

A monarquia papal era tida como a forma mais perfeita de governo, dado

inspirar-se em Deus, senhor único do universo, o qual o dispôs harmonicamente através

duma única lei, a divina, em si mesma eterna e imutável. Tal paradigma devia

igualmente aplicar-se ao corpo eclesiástico, no qual, desde então, o Pontífice Romano

ocupa o primeiro lugar.

Baseado no mesmo princípio, o pensamento político medieval da segunda

metade do século XIII, que irá brotar da pena de Tomás de Aquino,3 conquanto

diferentemente respaldado na Metafísica, na Ética e na Política de Aristóteles, proporá a monarquia como a melhor forma de regime político ou governo temporal.

No entanto, mais tarde, tanto a hierocracia, como a teocracia régia, ao

conceberem a organização da humanidade num corpo unitário, defenderão a tese

segundo a qual apenas uma pessoa deverá conduzir a Christianitas, seja o Papa na

perspectiva hierocrática, seja o imperador na perspectiva teocrática.

Mas, no respeitante à vida e à organização eclesial, as orientações dadas pelo

Sumo Pontífice deveriam abarcar todos os fiéis, porque toda a autoridade provinha da

caput, de modo que os batizados, sem exclusão de ninguém (como acima vimos), tinham

o dever de obedecer-lhe. Portanto, como afirma Anthony Black, a relação entre o Papado

e as idéias da monarquia absoluta remonta ao século V; no entanto, é necessário

distinguir sempre que soberania legal, refere-se a uma corte de apelo final, base do

conceito de Principatus. ―[...] ademais, nenhum órgão político podia, na prática — como

3Cfr. as principais teses políticas do Aquinate apresentadas no final do capítulo 3 deste livro. Na

parte documental relativa ao mesmo, incluiremos alguns textos de sua autoria que se encontram no

De regimine principum

14

se pretendia no pensamento político do neoplatonismo —, ficar fora do sistema social no

qual atua [...].4

Quase ao término do século V, o Papa Gelásio I (492-496), procurando frear o

cesaropapismo bizantino, dado que ainda não haviam sido explícita e oficialmente

definidos pela Igreja de Roma os respectivos campos de atuação dos poderes espiritual e

temporal, o fez magistralmente numa carta5 dirigida ao Imperador Anastácio I (491-

518).

Desse texto legal quatro teses básicas irão marcadamente influenciar o pensamento político medieval relativo à questão das relações entre os poderes: a) O

Papa possui a auctoritas; o imperador e os Reis detêm a potestas. b) O primeiro,

juntamente com os demais ministros eclesiásticos, é o responsável pela salvação de

todos os seres humanos, de modo que sua missão é de natureza espiritual e

transcendente. É da competência dos demais propiciar-lhes o bem-estar de seus

súditos neste mundo. c) A missão dos sacerdotes — e, por extensão, de seu líder —

é mais importante do que a desempenhada pelos senhores do mundo, de modo que,

por conseguinte, a posição ocupada pelos primeiros é mais relevante do que a dos

segundos. d) As esferas de atuação próprias do espiritual e do temporal são distintas entre si.6

Não nos alongaremos mais na investigação de como o pensamento hierocrático

foi se enriquecendo e ampliando durante a Alta Idade Média. Com vista ao nosso

objetivo, é suficiente estar atento a o que foi exposto nos parágrafos anteriores.7

A par desses fatos, porém, outro acontecimento simultâneo, alheio à vontade

dos papas e dos bispos, contribuiu outro tanto para a ampliação de seu poder terreno.

Com a desagregação das províncias ocidentais do Império e o conseqüente

estabelecimento de vários reinos ―bárbaros‖, o Bispo de Roma e os demais antístites,

4―A influência do conceito de monarquia absoluta sobre o modo de entender a exercer autoridade

papal.‖ Concilium, n. 7, 1972, p. 943. 5SOUZA, José Antonio de. ―O pensamento gelasiano a respeito das relações entre a Igreja e o

Império Romano Cristão.‖ Leopoldianum, n. 31, 1984, p. 15- 41, em especial p. 36-37. 6WECKMANN, Luís. El pensamiento politico medieval y las bases para un nuevo Derecho

Internacional. México: Universidad Autonoma, 1950, 4: ―A diferencia de la Antiguedad, en donde

la esfera eclesiástica se subordina al estado y se confunde en él, la tendencia ortodoxa medieval es

la de separar ambas potestatades [...] Ambos poderes, sin embargo, encuentran un paradigma en Cristo, Sumo Sacerdote y Rey de Reyes, con lo cual la distinción entre lo espiritual y lo temporal

teóricamente formulada por el papa Gelasio, se vuelve en la práctica poco precisa. Si bien el

Sacerdocio y la Realeza son en el Medioevo dos dignidades distintas, el Sacerdocio es en su

esencia no menos regio que la Realeza es sacerdotal. Esto produce una confusio entre ambas esferas, una ‗transparencia‘ que se entiende en virtud de la noción, prevalente en el Medioevo de

que la ‗Iglesia‘ y el ‗Estado‘ tienen hasta cierto punto el mismo fin: la primera, la salvación de las

almas; el segundo, crear las condiciones de paz y justicia que hagan factibie esta salvación [...]‖. 7O leitor interessado em aprofundar seus conhecimentos acerca deste assunto poderá no entanto, ler, de Francisco Bertelloni, ―El pensamiento politico papal en la Donatio Constantini‖ e ―As

raízes da hierocracia no De institutione regia de Jonas de Orleans‖. In: SOUZA, José Antônio de

(org.). Pensamento político na Alta Idade Média. Santos, São Paulo, Ed. Unv. Leopoldianum,

Loyola, 1988, respectivamente p. 33-53, 54-59, 101-126, 127-145.

15

especialmente por causa de sua cultura, experiência, prestígio e comportamento virtuoso

singular, passaram a exercer também funções políticas, de modo que a influência da

Igreja, não apenas no aspecto religioso e moral, mas também em todas as outras

atividades sociais, tornou-se uma realidade cada vez mais intensa. Aos poucos, foi então

desaparecendo a concepção de Estado, alicerçada no direito natural e romano. Também,

paulatinamente, os teóricos medievais foram esboçando, em seu lugar, a noção de

Christianitas, cujos membros eram todos os batizados e cujo principal fator de união era

a profissão da mesma fé e que, socialmente, se fundamentava na justiça e na paz cristãs, de modo que, progressivamente, o imanente foi sendo absorvido no transcendente e o

secular no espiritual.

No entanto, a participação dos eclesiásticos nos destinos políticos da sociedade

medieval custou à Igreja um preço elevado. Muitos prelados transformaram-se em

príncipes temporais e, como reverso da medalha, os filhos de nobres, para sobreviverem

às vicissitudes feudais, foram investidos em funções de párocos, abades, bispos e até

mesmo papas. Tais fatos provocaram generalizada indisciplina clerical, acompanhada de

relaxamento moral e incompetência em matéria doutrinal.

Além disso, passado o período de bom relacionamento entre Igreja e Império,

que Carlos Magno promoveu e sustentou, seus sucessores mostraram-se incapazes de

prestar auxílio efetivo à Sé Apostólica, não tendo meios para coibir a repetição dos

mencionados abusos, quando não eles mesmos os apoiavam, pois encontravam-se

envolvidos em disputas feudais com os seus vassalos e parentes e, ainda, com os

muçulmanos nos confins da Francia Occidentalis com a Península Ibérica, com os

eslavos nas fronteiras da Francia Orientalis e, igualmente, com os normandos e piratas

na costa noroeste do Império.

1.2 OS ANTECEDENTES DA REFORMA GREGORIANA

Mas o próprio dinamismo sócio-religioso no interior da Igreja, aliado à firme

convicção que muitos eclesiásticos possuíam de que a origem e a missão da Igreja eram divinas, suscitaram um desejo sincero de nela promover reformas religiosas e sociais

profundas. Para tanto, era imperativo purificar e espiritualizar o clero, pondo fim à

investidura laica, à simonia e ao nicolaísmo, com todo o cortejo de funestas

conseqüências desses males que desabavam sobre a sociedade. Tal anseio reformista

nasceu entre os monges de Cluny, ainda no século IX, e, a partir daquela abadia, aos

poucos, se irradiou por toda a Europa.

Os reformadores tencionavam primeiramente fazer dos eclesiásticos um grupo

constituído exclusivamente por pessoas de fato vocacionadas para a vida clerical,

movidas pelo amor a Deus e ao próximo, inspiradas no Evangelho, podendo, assim, vir a

servir posteriormente de modelo exemplar para os leigos.

Com o decurso dos tempos, o movimento reformador ampliou seus objetivos,

pretendendo também espiritualizar a própria sociedade como um todo. O processo

histórico daí nascido implicava transformações políticas profundas, pelas quais a Igreja

viria a se libertar da tutela dos príncipes seculares e dos imperadores germânicos, os

quais, nos territórios sob a sua autoridade, continuavam a nomear dignitários

16

eclesiásticos — por sinal, muitos deles também imbuídos do mesmo espírito reformista,

porém, orientado e dirigido pelo Imperador. Mas tal fato não era aceito pacificamente

pelos que desejavam uma reforma abrangente, visto a missão sacerdotal ainda continuar,

em parte, nas mãos de pessoas que serviam à política imperial. Era urgente, pois, que os

leigos assumissem o compromisso de se limitar à execução das tarefas da sua

competência, sempre movidos pelo amor a Deus, concretizado no cumprimento das

diretrizes éticas e religiosas emanadas da Igreja.

Todavia, o clero alemão, que também aderira ao espírito e ao programa reformistas, fundamentando-se na literatura produzida na época carolíngia respeitante à

tarefa do Imperador e da nobreza e à missão dos bispos, estava convicto de que o

sucesso da reforma só poderia vir a ser alcançada se a autoridade imperial fosse

plenamente restaurada. Como sabemos, os monarcas germânicos dos séculos X e XI

conseguiram tal desiderato, tanto na própria Alemanha como na Itália Setentrional e

Central.8

Coexistiam, pois, duas tendências no interior do movimento reformador quanto

aos meios a utilizar para alcançar os objetivos. Uma era de natureza exclusivamente

clerical e anticesaropapista, inspirada teoricamente no pensamento gelasiano sobre as

atribuições específicas do sacerdócio e da realeza. A outra, cujos partidários viviam nas

regiões sob controle político do Império, defendia a idéia segundo a qual tinha de ser o

Imperador a dirigir a reforma, pelo que a investidura dos dignitários eclesiásticos

praticada por ele era como que um mal necessário.

Mas à véspera do início da segunda metade do século XI a situação começou

mudar. A corrente reformadora clerical, graças a suas convicções e lutas, ampliou

consideravelmente seu espaço político e prestígio. Assim, conquanto Leão IX (1049-

1054), pertencente ao clero reformado alemão, tenha sido investido na cátedra de Pedro por Henrique III (1039-1056), sentindo que desfrutava do apoio das duas correntes,

desencadeou uma campanha de acordo com o que a mesma protagonizava. Assim,

reuniu um sínodo em Reims, onde tomou severas providências contra a simonia e a

investidura efetuada pelos leigos, além de estabelecer normas relativas ao

comportamento sócio-religioso e moral do clero e dos fiéis em geral, as quais iriam

nortear a atuação dos seus sucessores. Entre elas, estabeleceu que: o governo duma

igreja só podia ser exercido por quem houvesse sido previamente eleito pelo clero e pelo

povo; as ordens sagradas e os ofícios eclesiásticos não podiam ser objeto de negociatas;

nenhum leigo podia exercer qualquer ofício clerical; os clérigos não deviam levar armas

consigo.9

Na execução do programa reformista, os primeiros papas do período em exame

aproveitaram-se do fato de o rei Henrique IV ser criança e, por isso, incapaz de se opor

ao mesmo. Foram muito bem auxiliados, especialmente por três monges de qualidades

notáveis — Hildebrando, Frederico de Lorena e Humberto de Moyenmotier, abadia da

8 Cfr. SOUZA, José Antonio de. A teocracia imperial no fim da Alta Idade Média. In: - (org.). O

reino e a sacerdócio; o pensamento político na Alta Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 1995, p.

211-234 9 Cfr. Documento 1

17

diocese de Toul —, os quais, depois, irão ocupar os mais altos cargos da hierarquia

eclesiástica.

Humberto, aliás, logo em seguida, nomeado Cardeal de Silvacandida, entre

1056-1058 escreveu uma obra intitulada Três livros contra os simoníacos. Num passo do

livro III, cap. VI, não só criticou violentamente a prática usual da investidura, como

também aludiu ao modo correto do só efetivar a eleição episcopal, cujos procedimentos

seriam: escolha de alguém efetuada pelo clero da diocese local, pessoa essa cuja vida fosse um exemplo de integridade religiosa e moral; solicitação da parte do povo do lugar; e, finalmente, sagração episcopal conferida pelo arcebispo metropolita.

10 Tal

pastor, legitimamente escolhido e consagrado, seria um exemplo de edificação para os

fiéis, instruindo-os pela palavra e pelo exemplo na doutrina cristã. Teria competência

para corrigi-los, caso fosse necessário, através de exortações ou, ainda, com castigos

mais severos.

Um pouco mais adiante, há um outro passo desse capítulo que também só

reveste de certa dimensão política. Nele a Igreja é comparada à alma e o Reino ao corpo,

sendo estabelecido um princípio que bem irá servir, mais tarde, à corrente hierocrática,

sempre propensa a esse tipo de comparações e de analogias, para alicerçar as suas idéias.

Enquanto sociedade perfeita, a Igreja dispõe de todos os meios para bem

desempenhar seu ofício. Não necessita, pois, do poder temporal para promulgar suas

próprias leis ou escolher seus ministros; é igualmente capaz do corrigi-los e castigá-los,

mesmo que exerçam também funções na administração imperial.

Mas existe um aspecto relevante na obra de Humberto: o de sobrevalorizar o

espírito e afirmar explicitamente sua superioridade em relação à matéria.

Essa afirmação está haurida no pensamento filosófico da Alta Idade Média,

genericamente considerado, e deve naturalmente suas origens ao Cristianismo e ao neoplatonismo.

Curiosamente, no entanto, a filosofia neoplatônica, em seus aspectos mais

relevantes, bom como em sua inspiração de base, fazia correr sérios perigos à fé cristã,

conduzindo normalmente a teses de natureza panteísta. Por isso, o Pseudo-Dionísio

Areopagita teve o grande cuidado de salvaguardar a absoluta transcendência de Deus,

protegendo-a das conseqüências funestas duma doutrina emanatista ao bom modo

neoplatônico. E, mais tarde, João Escoto Eriúgena, após traduzir o Corpus

areopagyticum, compôs o seu De divisione naturae, claramente influenciado pelo

Areopagita, cujas tendências (pelo menos) imanentistas e panteístas são assaz evidentes.

Mas, apesar desses perigos, o neoplatonismo foi a ferramenta fundamental para a

constituição da teologia católica, por exemplo, relativamente à explicação racional do

mistério da Santíssima Trindade. Ademais, a afirmação da existência e da subsistência

de realidades puramente espirituais, oferecida pelo neoplatonismo, fez dele a principal

corrente filosófica para a sustentação da fé cristã, carente, durante alguns séculos, duma

sólida base intelectual que a firmasse no terreno cultural, abundantemente povoado de

filosofias pagãs provenientes da Antigüidade.

10 Cfr. Documento 2.

18

O primado do espírito sobre a matéria revelou-se mais tarde como o nervo

teórico mais apreciável da hierocracia medieval. E Humberto foi o primeiro teórico da

Baixa Idade Média a assumi-la, como dissemos, ao tratar das relações entre os poderes,

afirmando a importância das realidades espirituais, enquanto as mesmas possuem um

valor intrínseco em razão da sua natureza e finalidade.

Como reverso da moeda, as coisas mundanas e o corpo são meramente

instrumentos para a consecução do fim último da vida humana, a bem-aventurança

eterna. Por isso, o Cardeal Humberto defendeu a precedência do sacerdócio em geral, e do Papa em particular, no tocante ao poder terreno e imperial. São os sacerdotes, com

efeito, os conhecedores por excelência da Revelação, os seus intérpretes privilegiados.

Estão, pois, em condições de promulgar normas reguladoras sobre o comportamento

moral e religioso dos fiéis. Estes, desde o momento do Batismo, transformam-se em

homines spirituales-renati, isto é, em cristãos, filhos de Deus, membros da Ecclesia-

Christianitas e, como tal, obrigados a observar tanto os desígnios da Providência (a

ordem do universo e da sociedade, a divisão dos ofícios no seu interior) quanto as leis

eclesiásticas.11

Daí, os próprios dirigentes seculares terem de obedecer às normas

emanadas do Evangelho, interpretado pela Igreja, se quiserem salvar-se.

A preeminência da alma sobre o corpo e a matéria e a comparação entre a Igreja

equivalendo à alma e o Império correspondendo ao corpo, à primeira vista banais, se

constituirá, mais tarde, como uma das traves-mestras da hierocracia, cuja lógica é

irrefutável: se a alma prevalece sobre o corpo e o dirige, então a Igreja deve controlar o

poder real e imperial.

Além das idéias acima referidas, Humberto com vista a mostrar a preeminência

do sacerdócio, em particular do Sumo Pontífice, sobre o Imperador, serviu-se, outrossim,

de outra analogia, que será utilizada, mais tarde, com muita freqüência, pelos hierocratas, qual seja, a comparação entre a magnitude do sol, simbolizando a autoridade

sacerdotal (da Igreja), e a claridade da lua, representando o poder secular,12

dado que

este último recebe daquele sua luminosidade, propondo dessa maneira a subordinação do

poder real ao espiritual, bem como a íntima colaboração que entre ambos deve existir. O

nosso Autor ainda enquadra os poderes régio e imperial na esfera da autoridade da Igreja

e lhes atribui a faculdade de, pela força, submeter os fiéis aos ditames dos sacerdotes, em

particular do Sumo Pontífice. Este ponto merece um pouco mais da nossa atenção.

Sob a ótica da Igreja, é oportuno recordar que as Renovationes Imperiales de

800 e de 962 denotavam precipuamente que o Império e o Imperador eram criaturas da

Igreja, estabelecido com os propósitos de defender a fé cristã, a Sé Romana e as demais

dioceses contra os seus inimigos e punir fisicamente os mais graves transgressores dos

mandamentos divinos e eclesiásticos.

É evidente, porém, que tanto Carlos Magno (742-814) quanto os imperadores

germânicos jamais se consideraram como tal e, por isso, obrigados a exercer sempre um

ministerium religioso que a Igreja lhes impunha. Ao contrário, eles se consideravam

11 ULLMANN, W. Principios de gobierno y politica en Ia Edad Media. Madrid: Ed. Revista de

Occidente, 1971, p. 122-123. 12 Cfr. Documento 3

19

como supremos líderes incontestes da Christianitas, na condição de sucessores dos

antigos imperadores romanos. Tanto era assim, como estamos a ver, que se julgavam no

direito de indigitar direta ou indiretamente quem lhes aprouvesse para exercer cargos

eclesiásticos de relevância, pois os interesses políticos do Império e/ou da dinastia

reinante se sobrepunham a quaisquer outros. Mas, por agora, estamos a examinar, como

desabrochou e veio a se consolidar nos meios eclesiásticos a idéia de que os detentores

do poder secular, e o Imperador, em especial, tinham de ser ministri Ecclesiae.

Isso aconteceu a partir da absorção do princípio paulino non est potestas nisi a Deo (Rm 13, 1) como postulado de toda a teorização sócio-política, que transferia para a

esfera da transcendência a ratio originalis do Império Romano Cristão e, mais tarde, dos

outros principados terrenos.

Ora, desaparecido o Império Romano, até que ele novamente viesse a ser

restaurado, e mesmo depois, a Igreja efetivamente foi, na Idade Média, a única instância

de unificação sócio-político-religiosa, pois a unidade de uma mesma fé congregava o

homem europeu de então, e a catolicidade de sua missão a fazia universal. Era, portanto,

inadmissível a idéia, e muito menos a efetivação de uma unidade social com fundamento

na temporalidade e no âmbito do político.

Além disso, a progressiva edificação da Igreja numa estrutura monárquica de

governo centralizado no Papa fez dela igualmente a única instância universal de poder. A

este naturalmente estava vinculada a coercividade, pelo que ao Sumo Pontífice e aos

demais ministros eclesiásticos competia punir espiritualmente os fiéis, sendo a

excomunhão o castigo extremo que separava o excluído daquela comunidade e, caso ele

não viesse a se reconciliar com a mesma enquanto vivesse, estava fadado à condenação

eterna após sua morte.

Ademais, a fé cristã, ao propor para o homem como sua meta última de vida a salvação e a beatitude eternas, projetava na transcendência toda a ação desenvolvida

neste mundo, relativizando assim as atividades sócio-políticas.

Entretanto, a Igreja atuava neste mundo; por isso, os seus dirigentes, com o

passar do tempo, acharam por bem que os fiéis também deviam ser castigados com

penas materiais, mas desde sempre os textos canônicos proibiram que os clérigos se

envolvessem com ―causas de sangue‖, pelo que a coerção física lhes estava desde logo

vedada. Ela necessitava, pois, estabelecer uma instância a quem a coerção física fosse

entregue. Essa instância em grau supremo foi o Imperador. Ademais, o sistema

neoplatônico subjacente, como dissemos, em muitas das teses que já examinamos, tinha

como uma de suas vigas-mestras a idéia da convergência de tudo para a unidade, de

modo que o modelo de governo monárquico da Igreja foi transposto para o terreno da

sociedade laica, entendendo seus teóricos que a mesma devia ser dirigida por um único

chefe na esfera temporal, evidentemente colocado abaixo de seu criador.

Quando, então, nos séculos XII e XIII os Sumos Pontífices passaram a dizer

que o Imperador era o filho, defensor e advogado da Igreja, a assertiva se enquadrava

perfeitamente no genuíno território mental da concepção eclesiástica de Imperium, a cujo

dirigente a Igreja tinha confiado o exercício do gladius materialis, o qual de direito pertencia ao Papa, a quem, no entanto, estava proibido o uso.

20

Os curialistas medievais, para justificar sua tese, que concebia o Imperador

como instância de poder delegado, competente para executar as sanções materiais em

benefício dos fins espirituais da Igreja, fundamentaram-se na conhecida alegoria das

duas espadas, que se encontra no Evangelho de S. Lucas,13

sobre a qual iremos tratar no

próximo capítulo. Assim, o Imperador era visto como o braço ―armado‖ da Igreja.

Todavia, é preciso estar atento ao fato de que a história das idéias, aliada

freqüentemente à história dos interesses políticos, normalmente segue seu rumo próprio.

Daí, a figura do Imperador como braço armado da Igreja e, portanto, como delegado do poder papal em causas espirituais que exigissem uma intervenção de força material, ter

sido progressivamente absorvida pela esfera da política, de modo que não foi só a

amplitude da coerção a única coisa que passou a ser considerada, mas também todo seu

poder temporal, o qual, nos séculos seguintes, irá acabar por subsumir-se naquela função

ministerial. As relações entre os poderes espiritual e temporal na Idade Média extrapolaram

igualmente o mero campo das esferas respectivas de atuação, associando-se com as

questões relativas à terra e à problemática do direito de propriedade.14

Quer na perspectiva original, quer na dos séculos XII, XIII e XIV, o Império

subsumia-se na Igreja, e esta se identificava com a própria Cristandade Latina, pois

todos os seus membros faziam parte de ambas as instituições. Aí está, pois, o motivo da

afirmação de Humberto de Silvacandida que mencionamos algumas páginas atrás.

Entretanto, voltando efetivamente à segunda metade do século Xl, o primeiro

grande passo para a completa libertação do Papado no tocante a tutela imperial foi dado

em 2 de agosto de 1057, quando o clero e os romanos, sem a interferência da nobreza,

elegeram como papa Frederico de Lorena, abade de Monte Cassino, que tomou o nome

de Estêvão IX. A Igreja tinha efetivamente de demonstrar a superioridade da sua missão e os direitos que possuía inerentes à mesma, a fim de se autogovernar em plena

liberdade. No entanto, após a morte do Pontífice, em 1058, a nobreza romana tentou

novamente intrometer-se na eleição papal. Hildebrando, com os seus inegáveis dotes

diplomáticos, conseguiu que fosse eleito papa Gerardo, arcebispo de Florença, que

tomou o nome de Nicolau II (1058-1061). O novo Papa procurou consolidar a ameaçada

autonomia do clero na eleição pontifícia, prevenindo casos futuros. Para tanto, convocou

um sínodo a se reunir em S. João de Latrão, durante o qual promulgou, em 13 de abril de

1059, a decretal In nomine domini.15

Este documento foi provavelmente redigido por

Humberto de Silvacandida.16

Definiu, inequivocamente, a competência dos cardeais

quanto à eleição do Pontífice, ameaçando com a excomunhão, não apenas quem não

aceitasse o que estipulava a mencionada decretal, mas também a pessoa que viesse a

ascender de outro modo a Sé Apostólica.

13 Lc 22, 38: ―Disseram eles: ‗Senhor, eis aqui duas espadas‘. Ele respondeu: ‗E suficiente!‘‖ 14 Cfr, COLEMAN, J. The two jurisdictions: theological and legal justifications of church property

in the thirteenth century. Studies on Church History, n. 23, 1987, p. 75-109. 15 Cfr. Documento 4 16 Cir. BIHLMEYER-TUECHLE. História da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1964, p. 155. v. 2.

21

Numa outra decretal,17

igualmente promulgada por ocasião do referido sínodo,

Nicolau II, dirigindo-se ao clero e ao povo em geral, remeteu-lhes as decisões tomadas

durante o mesmo. Após, no primeiro ponto, determinar competir aos cardeais bispos a

eleição do Sumo Pontífice, prosseguiu reiterando enfaticamente a condenação da simonia e do nicolaismo. Como é fácil de se imaginar, grande parte da nobreza ítalo-

germânica opôs-se a ambas as decretais, que contrariavam os seus interesses político-

feudais, pois ―C‘était là la condenation de l‘investiture, la prise en mains de la reforme

par Rome et, le cas échéant, le conflit avec les pouvoirs civils qui entendaient disposer des fonctions ecclésiastiques‖.

18

Por isso, o Papa e Hildebrando procuraram auxílio junto dos normandos,

assinando com eles, em 1060, o tratado de Amalfi. No mesmo, estabelecia-se que os

normandos protegeriam militarmente a Igreja Romana contra seus adversários,

especialmente garantindo a liberdade nas eleições pontifícias, enquanto o Papa

reconheceria como legítimas as conquistas efetuadas por eles na Itália Meridional sobre

os territórios pertencentes aos muçulmanos, comprometendo-se, outrossim, a enfeudar

seu chefe, Roberto Guiscardo, como senhor da Sicília, no caso de este conseguir a vitória

sobre os islâmicos que dominavam a ilha.

Contudo, pouco depois, o jovem rei da Alemanha, Henrique IV, pressionado

pela alta nobreza, que desejava manter os privilégios e a autonomia em face do poder

central, adquiridos durante a sua menoridade, retomou a prática da investidura episcopal

com fins políticos, na Germânia e na Itália Setentrional, de modo a restabelecer e

ampliar sua autoridade. Assim, a nobreza romana que apoiava o Rei, opondo-se ao novel

Papa eleito legitimamente pelos cardeais, Alexandre II (1061- 1073), escolheu Cadalo,

bispo de Parma, para assumir a Sé Apostólica, o qual tomou o nome de Honório II.

Pedro Damião (1007-1072), outro importante líder do partido reformista eclesiástico, opôs-se firmemente contra esse ato, manifestando sua desaprovação numa

carta dirigida a Henrique IV.19

Nesse documento, o cardeal-monge claramente apontou, como aliás em

ocasiões semelhantes sempre acontecia, as esferas próprias de competência do

sacerdócio e da realeza e a necessidade de ambos os poderes se ajudarem mutuamente na

condução da sociedade cristã. A autoridade sacerdotal e o poder secular têm sua origem

em Cristo e estabelecem entre si uma espécie de pacto. O sacerdócio é defendido pela

proteção real, enquanto o rei e o povo se beneficiam das orações dos sacerdotes. No

texto, uma vez mais, é reiterada a afirmação segundo a qual o rei tem por missão coagir

pela força das armas os inimigos da Igreja. A função primacialmente atribuída à realeza

é o ofício de fazer justiça, pelo qual os maus são punidos. E, se a dignidade régia deve

ser reverenciada, será, no entanto, merecedora de desprezo se quem a exercer agir em

benefício de seus interesses pessoais em detrimento da Igreja.

17 Cfr. Documento 5. 18 PACAUT, Marcel. La théocratie, l‘Église et le pouvoir au Moyen Age. 2. ed. Paris: Desclée,

1989, p. 61. 19 Cfr. Documento 6.

22

Portanto, a missão régia novamente acaba, por ser considerada ancilar no que

tange à sacerdotal Assim, o rei Henrique IV, desde que venha a tomar medidas efetivas

contra o antipapa Honório II, se tornará merecedor de receber a coroa imperial; caso

contrário, as conseqüências serão terríveis para o monarca germânico.20

Henrique IV, porém, não deu a mínima importância para a missiva de Pedro

Damião, continuando a apoiar Cadalo e a investir mais pessoas que lhe eram devotadas

como bispos.

1.3 GREGÓRIO VII E HENRIQUE IV

No ano de 1073, o antigo monge e cardeal Hildebrando (* 1020), cuja ação se

desenvolvia, há muito, no interior da corrente reformista clerical, como vimos, foi eleito

papa, escolhendo para si o nome do Gregório VII. ―Dal papa que ha dato il suo nome

alla riforma è certa la notevole tempra di uomo pratico, di instancabile lottatore, di

tenace assertore di alcuni principi generali: non pensatore politico, non grande teologo

appare.‖21

Oferecia-se-lhe, pois, a oportunidade de, agora mais do que nunca, prosseguir

a obra de reforma dos seus imediatos antecessores, no sentido da espiritualização da

Ecclesia-Christianitas.22

Para Gregório VII, a fé cristã estabelecia normas de comportamento que todos

os fiéis deviam observar.23

Tais normas estavam igualmente alicerçadas no princípio de

20 LLORCA et al. Historia de la Iglesia Católica II. Madrid: BAC, 1963, p. 145: ―San Pedro

Damiani jamás puso en duda los derechos históricos del emperador a intervir en las elecciones pontificias y creyó útil y conveniente para la Iglesia la última decisión de aquél en casos dificiles y

pensaba que mutuamente podían e debían ayudarse [...]‖. 21 CAPITANI, O. Papato e imperio nei secoli XI e XII. In: FIRPO, Luigi (org.). Storia delle idee

politiche, economiche e sociali. Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1983, p. 134. v. 2. 22 Cfr. MIETHKE, J. La teoria della monarchia papale nell‘Alto e Basso Medioevo: mutamenti di

funzioni. In: DOLCINI, Carlo (org.). Il pensiero politico del Basso Medioevo. Bologna: Pàtron,

1983, p. 122-123: ―Certamente, anche la cerchia dei riformatori che stavano attorno a Gregorio VII

faceva riferimento alle antiche rivendicazioni ed alle formule tradizionali, che attribuivano alla chiesa romana un posto al vertice di tutte le altre chiese. Ma le antiche formule non spiegano, da

sole, il risveglio che si può osservare in questo periodo. L‘impeto della lotta per la libertas

ecclesiae, la libertà della chiesa (e ci significava anche di ogni singola chiesa locale) dal controllo

laicale, risultò da una nuova volontà, che con un élan rivoluzionario si sbarazzò delle resistenze tradizionalistiche. Dominus dicit: ‗Ego sum veritas et vita‘, non ait ‗Ego sum consuetudo‘ [...] Con

l‘espressa assunzione di questo ‗slogan‘ di Tertuliano da parte di Gregório VII venero posti i limiti

del raporto di continuità con una tradizione divenuta ormai di difficili interpretazione complessiva.

Nella verità difesa con energia, si ritrova un criterio che consentiva di dare un nuovo ordine ermeneutico ai testi antichi [...]‖. 23 ULLMANN, W. Principios de gobierno y politica en la Edad Média. Madrid: Ed. Revista

de Occidente, 1971, p. 97-98: ―La existencia de la fe cristiana medieval es uno de los hechos más

sorprendentes de la historia del derecho: la fe en la divindad de la institución dio origen al derecho

23

justiça ―dar a cada um o que lhe é devido‖. Mas era necessário esclarecer, não apenas o

significado desse princípio, mas também como devia ele concretizar-se na sociedade

cristã, especialmente no tocante às respectivas missões do sacerdócio e da realeza e ao

seu relacionamento, atendendo ao fim último dos integrantes da mesma, cuja natureza

transcendente — a salvação eterna — se admitia com facilidade.

Para que tal sucedesse, cada indivíduo, pouco importava o seu lugar naquela

sociedade hierarquizada, devia cumprir rigorosamente suas obrigações para com a

mesma, procedimento esse que iria redundar no bem comum. Este prevalecia, portanto, sobre os bens meramente individuais, mas não os anulava, já que a pessoa humana, ao

contribuir para a realização do bem da comunidade no seu todo, estava em condições de,

em troca, receber a justa medida de seu bem privado. Estamos ainda longe do século

XIII, em que S. Tomás de Aquino sistematizará de modo sólido e coerente a teoria do

bem comum e da sua relação com o bem individual.

Embora com intuito diferente, Gregório VII propôs o mesmo princípio, ao

sustentar que um monge não era a pessoa mais indicada para liderar tropas na luta contra

os muçulmanos, como o rei também não o era para impor ao arcebispo o cerimonial da

sagração episcopal.

Além disso, bem ao gosto da mentalidade medieval, o Papa via a sociedade

como um organismo, que era em si mesmo um reflexo da ordem querida por Deus. Cada

pessoa e cada grupo social tinha a sua própria ordo, cujos limites não devia transpor, já

que ao fazê-lo estava a atentar contra os desígnios do autor divino da organização da

sociedade em ordens estáveis e, como dissemos, organicamente estruturadas. Esta

concepção, que corresponde ao imaginário do feudalismo,24

assegurava, pois, a

estabilidade social, tanto mais que a mesma se fundamentava, quanto a este particular,

num esquema ternário: as ordines dos oratores, bellatores e laboratores. Se um quarto elemento fosse introduzido, não apenas o esquema viria conseqüentemente a ser

aniquilado, bem como a estabilidade reinante cederia seu lugar para o desequilíbrio

sócio-político.

O que importa realçar no pensamento e na ação deste político da

Ecclesia/Christianitas é a sua adesão à idéia da comunidade humana, concebida como

um organismo ordenado segundo os desígnios do seu próprio Criador. O ordenamento

social, e a correspondente condenação da ultrapassagem dos limites próprios de cada

ordem, possui assim o seu fundamento na transcendência: daí sua indiscutibilidade.

Logo no início do seu pontificado, Gregório VII enviou uma carta a Henrique

IV.25

O Papa, na primeira parte da missiva, adotou um tom conciliador, elogiando

inclusivamente o rei por suas atitudes quanto a extirpar a simonia do seu território e a ter

recebido amistosamente os delegados pontifícios.

No entanto, a parte final da missiva é altamente crítica para com o Monarca,

dado que ele continuava a praticar a investidura, especialmente na diocese de Milão. Por

de la misma institución que, a su vez, regulaba a dicha fe. He aquí una demonstración patente del

anima operando como diretora del corpus [...]‖. 24 Cfr. DUBY, G. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982. 25 Cfr. Documento 7

24

último, Gregório solicitou a ajuda do Rei, quanto a intimar alguns bispos a

comparecerem num sínodo previsto para a Quaresma de 1074, onde teriam de explicar o

modo como foram eleitos para os seus cargos.

Nota-se, pois, que Gregório VII assumiu efetivamente o posicionamento de

seus antecessores no sentido de conferir à Igreja a completa autonomia na condução dos

negócios espirituais, considerando o rei germânico, tal como acima expusemos, isto é,

um delegado seu em causas com incidência no foro secular.

No mencionado sínodo, realizado na data prevista em Roma, foram reiterados os decretos pontifícios dos papas precedentes contra a simonia, o nicolaísmo e a

investidura. Vários bispos de dioceses germânicas foram destituídos e um bom número

de clérigos excomungados. Estes, revoltados com as medidas repressivas do Papa,

protestaram junto de Henrique IV, o qual se via igualmente enfraquecido pelos decretos

sinodais. De fato, havia mais de um século, os prelados depostos exerciam cargos de

relevo no Império e prestavam colaboração à política imperial. Assim, o Imperador e os

bispos destituídos passaram a criar sérias dificuldades à efetivação da reforma

gregoriana. Como nos diz J. Quillet, ―toute la querelle des investitures est, en effect,

centrée autour du problème du contenu religieux du pouvoir temporel. Vouloir le retirer

à l‘empereur c‘est le priver de sa préeminence [...].26

O atrito entre o Papa e o Rei estava

começando.

Em 1075, pouco antes de um novo sínodo quaresmal, Gregório VII ampliou e

expôs, de modo sistemático, seu pensamento e seu programa de ação para aquela

circunstância, no chamado Dictatus Papae.27

Este documento é de suma importância para a compreensão das relações entre

os poderes espiritual e temporal à época daquele Pontífice. J. Miethke, a seu respeito, diz

o seguinte: ―Se questo testo, come oggi la critica generalmente riconosce, ha il carattere di una perduta, o più verosimilmente solo progettata, raccolta di canoni, allora diviene

anch‘esso una testimonianza particolarmente incisiva di questo attegiamento

spiritualmente ambivalente nei confronti della Tradizione: Gregorio non aveva dubbi che

nella Tradizione autentica si potessero ritrovare quelle che erano le sue massime. In

effeti, è stato possibile rinevenire predecessori nel campo della tradizione giuridica

patristica ed alto-medioevale per quasi ogni sua singola proposizione. Tuttavia, nella sua

composizione e compettezza, nell‘accentuazione e coloritura energica, il testo, preso

nella sua totalità, assume un valore programmatico, quasi che tracciasse linee

fondamentali di una politica che avvrebbe dovuto portare molto al di là del suo autore

[...].‖28

Em razão de ter escrito o Dictatus, Gregório VII não pôde mais deixar de ser

uma figura controversa, tanto no seu tempo como nos atuais. Vários estudiosos viram e

condenaram este Papa como o usurpador prepotente dos direitos legítimos do Império. Muitos outros, porém, encarando-o com simpatia, conquanto não tenham negado haver

ele sido um político, cujas idéias marcaram uma época, afirmaram que não se pode

26 Cfr. Les clefes du pouvoir au Moyen Age. Paris: Flamarion, 1972, p. 44. 27 Cfr. Documento 8. 28 MIETHKE, J. La teoria della monarchia papale..., p. 124-125.

25

examinar e analisar as teses relativas à evolução da hierocracia pontifícia formuladas

mais tarde, sem considerar seu pensamento como um ponto de referência obrigatório.

Quanto a esta última opinião, consideremos novamente o que afirma J.

Miethke: ―Naturalmente sarebbe un equivoco affermare di aver ritrovato nella attitudine

di Gregorio VII nei confronti della tradizione normativa della Chiesa [...] um ‗piano‘,

che poi, nel corso dei due secoli successivi, doveva essere a poco a poco posto in atto.‖29

Vejamos também, afinal, o próprio Gregório VII falando de si mesmo e nos

revelando talvez as autênticas dimensões da sua figura de homem da Igreja: ―Devido aos embustes do inimigo, a Igreja do Oriente apostasiou da fé católica. Se eu penso

interiormente no Ocidente, se olho para os lados do Oeste, do Norte e do Sul, poucos são

os bispos que encontro como regularmente empossados e conduzindo-se de modo

normal [...] Quanto ao meio que me envolve, romanos, lombardos e normandos, são

piores do que judeus e pagãos [...] E se então olho para mim próprio, encontro-me tão

submergido pelo peso das minhas ações que não me resta outra esperança que não a

misericórdia divina [...] A minha vida não passa, para dizer a verdade, de uma morte

contínua.‖ 30

É importante que, entre os numerosos autores que estudaram a reforma

gregoriana, consideremos as posições assumidas por dois deles. O primeiro é Morghen,

para quem o Dictatus papae de Gregório VII e a magna charta do Catolicismo Romano

e, ao mesmo tempo, do pensamento político papal de cariz teocrático. Nele estão

subjacentes implicitamente os ideais do regale sacerdotium de Inocêncio III e a doutrina

da Bula Unam sanctam de Bonifácio VIII. O ideal da fuga do mundo, próprio do

ascetismo medieval, Gregório VII o substituiu pelo ideal do domínio sobre o mundo,

enquanto a realidade espiritual da Igreja, que toda a Idade Média identificara com a

Cidade do Deus agostiniana, devia transformar-se na consciência do novo poder da Igreja Romana, com as suas coleções canônicas e os seus tribunais supremos, com a

exclusividade do seu magistério e as suas preocupações disciplinares, com o seu

temporalismo e os seus interesses políticos.31

O outro autor é H. X. Arquillière; no nosso entendimento, quem melhor

compreendeu a figura de Gregório VII. Segundo o estudioso francês, devemos estar

atentos as idéias preconcebidas acerca dos gestos daquele Papa do século XI e não os

julgarmos à luz de critérios contemporâneos, que evidentemente não eram os seus. Para

ele, o Dictatus Papae lançava os alicerces inovadores da teoria segundo a qual o

sacerdócio tem uma missão mais relevante, do que a realeza, no interior da cristandade,

tese esta progressivamente enriquecida ate alcançar a maturidade no século XIV. É esta a

concepção que Marcel Prelot defende acerca do que se deve entender por hierocracia:

―determinados homens, consagrados a Deus pelo sacramento da Ordem, exercem sobre

os outros homens, por instituição divina, o poder mais eminente que [existir] possa‖,32

de

29 Art. cit., p. 126. 30 Regist. II, 49 citado por ALQULLIÈRE, H. X. L‘augustinisme polítique. Paris: J. Vrin, 1972, p.

28. 31 Medioevo Cristiano. Roma: Laterza, 1972. 32 As doutrinas políticas I. Lisboa: Presença, 1973, p.283

26

modo particular o Sumo Pontífice, em virtude de ser a cabeça da Igreja. Tal fato confere-

lhe uma superioridade nos âmbitos religioso-moral e sócio-político.

Mas os decretos do sínodo de 1075 produziram forte reação da parte do

Henrique IV, que julgava estar sendo progressivamente lesado nos seus direitos. Em

seguida a ter subjugado a rebelde nobreza da Saxônia, em junho do mesmo ano, o Rei

sentiu-se suficientemente fortalecido para continuar a investir os seus partidários em

várias dioceses, tentando inclusive impor para a arquidiocese de Colônia um candidato

que havia sido recusado pelo clero e pelo povo daquela cidade. Gregório VII escreveu de novo a Henrique IV admoestando-o por tal

desobediência. Desta vez, porém, a resposta do Rei foi radical. Estava convicto, tal como

os seus predecessores, de ser rex et sacerdos, escolhido para tal por Deus33

e detendo,

por esse fato, o total controle da Igreja e em particular do clero germânico. A situação

política nos seus domínios exigia que ele continuasse a prática da investidura, para

manter a centralização do poder contra os anseios de autonomia dos duques. Boa parte

dos dignitários eclesiásticos, enquanto funcionários da coroa, além de apoiarem a

atuação do Rei, desejavam manter os privilégios conquistados. Henrique IV não podia,

pois, deixar de investir dignitários eclesiásticos, fundamentado em teorias eclesiológico-

políticas contrárias às do Papado. Além do mais, segundo o Rei, Gregório VII tinha sido

eleito Papa sem que a corte germânica houvesse opinado a propósito, violando assim o

privilegium Otonis, que, aliás, a Igreja anteriormente já havia rejeitado.

Podemos afirmar que Henrique IV, apoiado pelos seus teóricos, defendia

direitos conquistados por seus predecessores no século anterior, dialeticamente opostos à

política centralizadora da Sé Apostólica. Esses direitos, no entender deles, só

fundamentavam na Sagrada Escritura, em particular na doutrina estabelecida por S.

Pedro e S. Paulo,34

segundo a qual todo o poder constituído tem origem em Deus; as pessoas investidas com o poder político, ainda que seja o terreno, o possuem por que

Deus assim o quer e em Seu nome devem fazer justiça, premiando os bons e castigando

os maus, devendo, portanto, os súditos ter a obrigação do obedecer às autoridades.

Em 27 de janeiro de 1076, Henrique IV reuniu um sínodo em Worms, ao qual

compareceram vinte e seis prelados e outros partidários seus. Foi durante esse sínodo

que eles proclamaram a deposição de Gregório VII.35

Se examinarmos o texto com atenção, veremos que, exceto na saudação nada

cordial, sua estrutura é muito semelhante a um documento elaborado por um hierocrata.

O monarca, partindo do princípio de que é rei pela graça de Deus, desenvolveu

toda sua argumentação fundamentado nesse princípio, com as mesmas conseqüências

que um Papa faria derivar da sua condição do caput Ecclesiae/Christianitatis. Gregório

VII caiu em heresia ao não obedecer aos preceitos apostólicos, ao não reconhecer a

origem divina do poder régio, ao permitir que os bispos fossem julgados pelo povo. Por

33 Remetemos o leitor novamente para nosso texto intitulado ―A teocracia imperial no fim da Alta Idade Média‖. In SOUZA, J. A. de C. R. de (org.) O reino e o sacerdócio; o pensamento político

na Alta Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 1995, p. 211-234. 34 Cfr. Respectivamente Rm 13, 1-7; 1Tm 2, 1-2 e 1Pd, 2, 13-15. 35 Cfr. Documento 9.

27

causa desses atos ele tem de ser destituído, pois não é um verdadeiro Papa, mas um

usurpador.

Ademais, Henrique IV reclamou para si próprio, na condição de vicarius Dei, a

competência e o direito de julgar e depor o Papa.

Na resposta de Gregório VII à ação inusitada de Henrique IV, verificamos

também o que acabamos de afirmar. O Papa dirigindo-se a S. Pedro, na condição de seu

sucessor na chefia da Igreja e herdeiro do poder das chaves, em face dos pecados que o

Rei cometeu, o excomunga — e, em conseqüência, o destitui do trono germânico — e liberta os seus súditos do juramento de fidelidade que lhe haviam prestado.

36

É aqui, precisamente, que entra em jogo a penetrante análise de Arquillière.

Como vimos, o autor francês chamara a atenção para a impossibilidade de compreender

a Idade Média e a atitude de Gregório VII à luz de preconceitos políticos hodiernos. Na

mencionada sentença de 1076 coexistem dois atos: por um lado, um ato religioso, a

excomunhão, sempre da competência do Papa; e por outro, um ato político, a deposição

do um chefe temporal.

No entendimento de Arquilière, para Gregório VII ―les deux aspects de la

sentence [...] étaient associés, liés dans sa pensée par les liens les plus intimes, dans une

unité transcendante qui dominait à la fois la juridiction pontificale et le pouvoir royal:

l‘Église. Et l‘autorité suprême de l‘Eglise résidait, alors comme aujourd‘hui, dans la

personne du pape. Il est remarquable même que, dans l‘énoncé de sa condamnation de

1076, il commence par la déposition du roi; puis il délie ses sujets de leur serment de

fidélité; enfin il prononce contre lui l‘anathème. Tout cela lui parait sortir

immédiatement de son pouvoir spirituel, de son pouvoir des clés.‖37

Noutras palavras, o

Papa acreditava não estar ultrapassando os limites do seu domínio espiritual. A seus

olhos, os chefes temporais faziam parte da Igreja, de quem ele era o chefe. Ademais, o primeiro dever dos reis é de ordem espiritual: salvar-se e contribuir para a salvação de

seus súditos.

De novo, devemos acenar à estreita ligação que há entre as noções de Império,

Igreja e Cristandade e recordar ao leitor o que a propósito já dissemos. Para nós,

contemporâneos, trata-se de realidades distintas e autônomas. Para o homem medieval,

era uma só realidade político-religiosa vista sob três perspectivas diferentes.38

36 Cfr. Documento 10. 37 ARQUILIÈRE, H.X.L‘augustinisme politique, p. 30-33. 38 Cfr. WECKMANN, L. op. cit., p. 88-89: ―Iglesia y Estado, como modernamente se los entiende,

es decir como dos corporaciones separadas y em competencia – una dualidad en este caso – no existen em la Edad Media, por lo menos antes da recuperación y voga de los escritos aristotélicos.

Todos los hombres agrupados bajo la autoridad religiosa del Papa, Forman la Ecclesia universalis;

los mismos bajo la ideal autoridad secular del Emperador constituyen El Imperium universale;

ambos, Ecclesia e Imperium son la Respublica Christiana, sociedad ecumênica religioso-secular, que abarca a todos los cristianos [...] Imperio e Iglesia son asin, en la Edad Media, términos

equivalentes, si bien non sinónimos. Esta correlación de conceptos [...] existe gracias al común

punto de apoyo religioso em la Christianitas y al común legado cultural y político de la Romanitas

[...]‖.

28

Se aparentava haver pretensões análogas entre o Papa e o Rei quanto a

governarem respectivamente o Império e a Igreja, no fundo o verdadeiro conflito não se

travava entre o poder espiritual do Pontífice e o poder temporal de Henrique; esgrimia-

se, na verdade, entre as aspirações de ambos quanto a serem os legítimos vigários de

Deus na terra, cujo poder, por sua própria natureza — espiritual —, subsume em si as

realidades temporais que à espiritualidade se sujeitam, e é somente nesta perspectiva,

então, que esse vicariato divino, esse regime político exercido sobre a terra pode ser

chamado teocracia. Havia, no entanto, uma diferença significativa entre as concepções de Henrique

IV e do Gregório VII: o Pontífice tinha consciência de que seu poder

sacerdotal/sacramental, recebido diretamente do Filho de Deus, com vista a desempenhar

um ofício mais excelso, era mais relevante do que aquele outro exercido pelo Rei,

porque ele era ―heir of all spiritual authority entrusted by Christ to Peter for the welfare

of the human souls of which he was shephered. He based his deposition of Henry

specifically in his spiritual power.‖39

Essa diferença é justamente o que de fato

caracateriza o conceito hierocracia ou sacerdotalismo.

Acerca da deposição/excomunhão do Rei alemão, vejamos a opinião de Marcel

Pacaut: ―C‘est pour cette raison et pour ses iniquités qu‘il est excomunié, mais, bien que

cette sanction soit citée après la condamnation politique, c‘est elle qui est fondamentale:

Henri IV est deposé parce que qu‘il est excomunié et ses sujets ne peuvent pas — ne

doiverit pas — lui obéir, puisqu‘il est retranché de la communion de l‗Eglise. Le

spirituel entrane le temporel [...].40

Em agosto de 1076, Gregório VII, numa primeira carta dirigida a Herman,

bispo do Metz e fiel partidário da reforma, explicou os motivos da sua atitude em relação

ao Rei. Este, ao desobedecer-lhe, não receou unir-se a clérigos e leigos simoníacos, que já haviam sido excomungados. O Pontífice é o supremo pastor de todos os fiéis e detém

o ápice do poder espiritual. Além disso, o sacerdócio é mais digno do que a realeza, pois

foi instituído por Deus para a salvação humana.

Pelo contrário, a realeza surgiu por causa da maldade dos homens e,

normalmente, os reis buscam para si próprios as honrarias e a glória terrena, esquecendo-

se da vida eterna. Por conseguinte, ao decretar a excomunhão de Henrique, ele exercia

um direito legítimo e, como juiz do tribunal da consciência, só o absolveria se ele se

mostrasse arrependido dos seus pecados.

O clero reformista alemão, os saxões e parte da nobreza ítalo-germânica,

aproveitando-se do decreto papal, rebelaram-se contra Henrique IV, deflagrando uma

guerra civil. A situação veio a agravar-se quando, em setembro do mesmo ano, Gregório

VII endereçou uma carta à nobreza e ao episcopado germânicos recomendando-lhes

generosidade para com o Rei, desde que ele afastasse os seus conselheiros

excomungados e modificasse o seu comportamento. Caso tal não acontecesse, deveriam

39 LEWIS, E. Medieval political ideas, II New York: Cooper Square Publishers, 174, p 510. 40 La théocratie, l‘Église et le pouvoir au Moyen Age 2. ed. Paris: Desclée, 1989, p 67.

29

então escolher outrem para substituí-lo como Rei, informando o Papa acerca do

resultado dessa eleição.41

Os príncipes e os bispos germânicos fiéis ao Papa, durante a dieta de Tribur,

reunida em outubro de 1076, decidiram romper definitivamente com o Rei, se não fosse

levantada a sua excomunhão no prazo de um ano, e, numa outra dieta, prevista para 2 de

fevereiro do ano seguinte, em Augsburgo, iriam examinar atentamente a situação, com

vista à escolha de um novo Rei, caso Henrique IV não viesse a atender às determinações

papais. O Rei, percebendo a situação delicada em que se encontrava, antecipou-se e

dirigiu-se a Canossa a fim de solicitar a absolvição a Gregório VII, o qual se

encaminhava, então, para a Alemanha, onde presidiria à dieta de Augsburgo. Após

penitência de três dias sob intenso frio, o Rei foi absolvido pelo Papa em 28 do janeiro

de 1077.

Mas os príncipes, ante a hábil manobra política de Henrique IV, ficaram

revoltados com ele. Reunidos em Forcheim, próximo de Bambergue, em 13 de março de

1077, elegeram Rodolfo da Suábia como novo Rei dos germânicos. Ele imediatamente

comprometeu-se a obedecer a Gregório VII e a respeitar os decretos da Sé Apostólica

concernentes à liberdade das eleições episcopais.

No entanto, tal ato, ao invés de resolver a questão político-religiosa germânica,

contribuiu para o prosseguimento da guerra civil. Henrique IV, para vencer os inimigos,

recorreu de novo à simonia e à investidura, conseguindo os seus intentos. Gregório VII,

durante o sínodo quaresmal, excomungou outra vez o Rei em 7 de março de 1080.

O documento de excomunhão possui uma estrutura interna e um conteúdo

muito semelhante ao que examinamos antes. Na primeira parte, o Papa define claramente

que, por desígnio da Providência, fora escolhido para sucessor de Pedro; assim, podia exercer a suprema chefia da cristandade. Na segunda parte, Gregório VII justifica o seu

gesto, historiando as razões que a tal o levaram e recorda os pecados de Henrique IV

cometidos contra a Igreja e os seus súditos. A terceira parte engloba as sentenças de

excomunhão e de dissolução do juramento de fidelidade que os vassalos do Rei lhe

haviam prestado. No final do texto, o Papa, baseando-se em várias passagens do Novo

Testamento alusivas aos atributos do poder espiritual e salientando a preeminência deste

em relação ao poder secular, conclui afirmando que a interferência da autoridade

espiritual no âmbito temporal é legítima, quando o detentor do poder secular se torna

indigno de o exercer.

Henrique IV então reuniu um conciliábulo em 25 de junho de 1080 em Brixen.

Nele tomaram parte trinta bispos germânicos e lombardos, excomungados, os quais

firmaram o ato de deposição de Gregório VII, acusando-o de simoníaco. Em seguida,

elegeram papa Gilberto, o então excomungado arcebispo de Ravena, o qual tomou o

nome de Clemente III (1080-1110).

No entanto, a nobreza germânica passou a criticar Gregório VII, pois via que a

sua interferência na esfera temporal, em vez de pôr termo à guerra civil, estava a

contribuir para a sua continuação, acarretando assim graves prejuízos para o Reino.

41 Cfr. Documento 11.

30

Gregório VII, informado da situação, escreveu (1081) uma segunda e longa

carta42

ao seu amigo Herman, bispo de Metz, a qual, sob o ponto de vista da teorização

política, não amplia as teses defendidas pelo Papa noutros textos.

A carta a Herman inclui-se mais no terreno das concepções eclesiológicas do

que no da teoria política, ou melhor, as teses políticas nela sustentadas são decorrência

tanto duma visão da estrutura eclesial — organizada monarquicamente e alicerçada no

primado petrino — quanto duma perspectiva da sociedade em geral — cuja natureza nos

recorda, a cada passo, a origem monástica de Gregório —. De fato, o contemptus mundi leva-o a desvalorizar sobremaneira a vida terrena (e os chefes temporais) como sendo o

domínio próprio do pecado: os príncipes buscam exclusivamente a sua glória terrena,

com total desprezo pela glória divina; tanto assim é que os santos canonizados pela

Igreja contam-se exclusivamente dentro da ordo sacerdotalis e, mesmo os imperadores

que a Igreja louva e venera, não fazem parte da lista dos santos e, à semelhança de outros

príncipes que não foram condenados para a eternidade, devem a sua salvação

unicamente à misericórdia divina. Estamos perante uma rígida distinção entre o mundo

do século e o mundo do claustro, próprio da mentalidade monástica do Papa

Hildebrando.

Tal como no plano político, também neste outro devemos analisar as posições

de Gregório VII à luz da mentalidade clericalista de sua época, não segundo as

perspectivas atuais, e, principalmente, repetimo-lo, tomando em consideração o projeto

reformista que, neste Papa como na maioria dos outros reformadores de seu tempo, era

obra de monges.

As referências explícitas ao Rei são escassas, embora o monarca germânico

esteja implicitamente suposto em todo o documento. Todavia, o Santo Padre se

fundamentou mais amplamente em passagens da Escritura e em exemplos de antecessores seus que excomungaram e depuseram chefes seculares com vista a

legitimar suas atitudes contra o Monarca.

A carta em apreço, no entanto, se reveste dum outro aspecto que merece um

destaque especial. A supremacia da Igreja no tocante ao Império deriva da missão

soteriológico/sacerdotal que lhe foi confiada por Cristo, na pessoa de seus dirigentes, em

especial, na do Papa, enquanto mediadora entre Deus e os homens, missão essa que

também deve ser exercida sobre os príncipes terrenos. Não se trata, pois, dum problema

de relacionamento entre o poder da Igreja e o do Soberano na esfera temporal, ainda que

subsumido na esfera espiritual; trata-se, na verdade, da questão relativa à subordinação

de um fiel, ainda que fosse o Rei dos germânicos, e especialmente por essa razão, nos

planos religioso e moral, às diretrizes estabelecidas pelo Romano Pontífice quanto à

disciplina eclesiástica bem ordenada. Não negamos, entretanto, que essa concepção,

mais tarde, servirá de base para o exercício efetivo da hierocracia.

O clima desfavorável a Gregório VII, tanto na Alemanha quanto na Itália

Setentrional, favoreceu a que alguns partidários/assessores de Henrique IV tomassem de

pena para defendê-lo e atacar o Papa.

42 Cfr. Documento 12.

31

Entre essas pessoas se destacaram três nomes: Pedro Crasso, Benzo de Alba e

Guido de Ferrara.

Pedro Crasso, em 1084, redigiu um opúsculo denominado Defensio Henrici

Regis, cuja major parte consistiu num ataque mordaz a Gregório VII e à sua ação.

Entretanto, nos capítulos V e VI, de expôs uma teoria acerca das relações entre os dois

poderes, a qual, inspirada quer no Novo Testamento, quer no Código de Justiniano,

contém os seguintes pontos fundamentais:

a) Os seres estão separados em espirituais e temporais; por isso, conforme ensinou o Papa Gelásio I, há dois poderes correspondentes. Mas, conquanto o poder

espiritual seja soberano em sua esfera própria de atuação, não lhe compete jamais

interferir no âmbito secular. Por isso, como Henrique IV não era clérigo, não se

enquadrava na esfera da jurisdição papal.

b) O imperador romano cristão é chefe inconteste da cristandade, não apenas

em razão de seu poder ter uma origem divina, embora seja transmitido

hereditariamente,43

mas também porque devia guardá-la e protegê-la contra os seus

adversários políticos e os inimigos da fé.

c) As leis promulgadas pelo imperador revestiam-se, pois, de um caráter

sagrado, de modo que a sua transgressão era um sacrilégio, visto o seu objetivo consistir

em manter a ordo existente no Imperium/Christianitas. Ora, Gregório VII estava a violá-

las, faltando-lhe, portanto, legitimidade para exercer o Sumo Pontificado.

d) Os cânones eclesiásticos, pelo contrário, estavam circunscritos à vida clerical

e à prática religiosa, só devendo ser obedecidos no caso de não contrariarem os decretos

imperiais.

Um outro ideólogo da teocracia régia foi Benzo de Alba. Na obra intitulada

Liber ad Henricum, concluída entre 1085-1086, em que reuniu vários textos anteriormente escritos, satirizou o Papa e enalteceu o Rei, a quem considerava o ungido

de Deus e o único vigário do Criador na face da terra. Sustentava, outrossim, a idéia

segundo a qual os transgressores dos decretos reais se assemelhavam àqueles que

renegavam os ensinamentos de Cristo e dos Apóstolos sobre as autoridades seculares.

Em suma, propôs a renovação imperial/eclesiástica de acordo com o pensamento dos

Otônidas.

Gregório VII, dado o prosseguimento do embate com Henrique IV e seus

partidários, e os sofrimentos morais que o mesmo lhe causou, veio a falecer em Salerno,

no exílio, em 25 de maio de 1085.

Um terceiro teórico regalista que merece referência por causa de suas idéias foi

Guido de Ferrara. No tratado Sobre o Cisma de Hildebrando (1086) justificou a política

dos monarcas germânicos concernente à investidura, afirmando que a missão do

sacerdócio se restringia a distribuir os sacramentos, pregar a Palavra e administrar os

bens oferecidos pelos fiéis à Igreja, enquanto a da realeza tinha por objetivo conduzir os

homens à Cidade Eterna; por isso Deus confiou aos imperadores a tarefa de governar a

Cristandade.

43 Cfr. Documento 13.

32

Entretanto, a longa controvérsia entre o Papado e o Império referente à

investidura só viria a terminar com a Concordata de Worms, em 1122, celebrada entre

Henrique V (1106-1125) e Calixto 11(1110-1124). Nesse documento ficou basicamente

concertado o seguinte: 1) os arcebispos e bispos seriam eleitos pelo clero local e

confirmados pelo Papa; 2) os abades seriam eleitos pelos monges da abadia e

confirmados pelo Papa; 3) após a sagração, os dignitários eclesiásticos seriam

empossados nos benefícios eclesiásticos pelo Imperador ou por legados seus. Como

conseqüências mais relevantes do primeiro grande conflito medieval entre a Igreja e o Império, temos que a Igreja se libertou definitivamente do cesaropapismo germânico; o

ideal reformista fortaleceu o prestígio moral e a autoridade política dos papas sobre toda

a cristandade e, finalmente, os dignitários eclesiásticos e senhores feudais germânicos

perderam a anterior parcela considerável da influência político-social que exerciam sobre

o território imperial.

Coletânea de Documentos relativa ao Capítulo 1

DOCUMENTO 1

Determinações do Papa Leão IX no sínodo de Reims. In: GALLEGO BLANCO. Relaciones entre Ia Iglesia y el Estado en la Edad Media. Madrid: Revista de Occidente, 1973, p.91.

1 — Que ninguém seja elevado ao governo de uma igreja sem ter sido

primeiramente eleito pelo clero e pelo povo. 2 — Que ninguém compre ou venda as

ordens sagradas ou os ofícios eclesiásticos ou igrejas; e, se algum clérigo comprou algo,

que o restitua ao seu bispo e faça a penitência devida. 3 — Que nenhum leigo exerça

qualquer ofício eclesiástico ou receba alguma igreja, e que os bispos não consintam que

tais fatos aconteçam. 4 — Que ninguém se atreva a pedir esmolas às portas das igrejas

sem autorização do bispo diocesano ou do seu representante. 5 — Que ninguém solicite

qualquer pagamento por haver ministrado o Batismo, celebrado a Eucaristia, ou por ter

visitado os enfermos ou por celebrar exéquias. 6 — Que os clérigos não transportem

armas e tampouco se dediquem às atividades seculares. 7 — Que nenhum clérigo ou

leigo seja usurário. 8 — Que nenhum clérigo ou leigo abandone o seu ministério ou

função. 9 — Que ninguém se atreva a atacar uma pessoa consagrada a Deus, mesmo que

esta se encontre em viagem. 10 — Que ninguém prejudique os pobres, ou roubando-os

ou enganando-os. 11 — Que não haja união incestuosa entre quaisquer pessoas. 12 —

Que ninguém abandone a sua esposa e se una a outra mulher.

DOCUMENTO 2

33

Humberto de Silvacandida. Três Iivros contra os simoníacos, III, cap. 6, MGH, Libelli de Lite, I, Hanoviae, 1891, p. 205-208. Segundo os decretos dos Santos Padres, a

pessoa que é consagrada bispo deve primeiramente ter sido eleita pelo clero, depois

solicitada pelo povo e finalmente consagrada pelo antístite da província eclesiástica com

a anuência do povo. Ninguém pode ser considerado e chamado bispo legítimo e verdadeiro, se não tiver uma porção do clero e do povo para governar e

se não tiver sido consagrado pelos outros bispos daquela província eclesiástica, com a

autorização do Metropolitano que esteja à frente da mesma, em nome da Sé Apostólica.

Aquele que tiver sido consagrado sem se

adequar a estas três regras não pode ser considerado um legítimo bispo, estabelecido de

modo indiscutível, nem poderá ser contado entre os bispos eleitos e nomeados

canonicamente; pelo contrário, deve ser chamado pseudobispo. Considerando que o

antístite é um governador e um supervisor, como pode alguém governar uma porção do

clero e do povo, quando estes dois segmentos não o escolheram para os dirigir e

tampouco foram autorizados a fazê-lo pelo arcebispo metropolitano e demais bispos

daquela província eclesiástica? [...]

Embora homens veneráveis de todo o

mundo e Sumos Pontífices inspirados pelo Espírito Santo tenham declarado que a

eleição episcopal feita pelo clero deve ser confirmada pelo julgamento do Metropolitano,

mediante a solicitação dos nobres, do povo e com a aquiescência do príncipe, agora tudo

isso é feito desordenadamente, do modo que a primeira das condições ocorre em último

lugar, e a última delas em primeiro, a tal ponto que os sagrados cânones são desrespeitados e toda a disciplina eclesiástica é conspurcada.

O poder secular é o primeiro a eleger e a

confirmar os bispos. A solicitação dos nobres e do povo, a eleição pelo clero e a

confirmação do Metropolitano, queiram eles todos ou não, ocorre posteriormente. E por

esse motivo, conforme escrevemos antes, que as pessoas elevadas ao episcopado dessa

maneira não devem ser consideradas bispos, pois o modo de serem corretamente

indicados é bem outro. [...] Com que autoridade os leigos podem ministrar os

sacramentos eclesiásticos e a graça episcopal e pastoral, isto é, entregar a alguém o

báculo e o anel, símbolos do trabalho e da atuação da Igreja?

[...] Com efeito, os báculos com a parte

superior arredondada e curva significam o chamamento dirigido ao povo e, por outro

lado, aguçados em forma de arma na parte inferior, representam a admoestação e o

castigo.

Os báculos indicam aos bispos os cuidados pastorais que lhes foram confiados e

lhes sugerem o que deve ser feito para se manterem na justiça e retidão dos costumes e

ainda condescendentes com o povo que devem atrair. Indicam igualmente que os

antístites devem se esforçar ao máximo para tornar suave e brando o áspero e difícil caminho do bem agir e da oração. [...]

34

A parte inferior dos báculos sugere aos pastores que atemorizem os

desobedientes com severas advertências e, se persistirem no erro, que os expulsem da

Igreja, como a mais severa das punições. O Apóstolo confirma isso quando diz o

seguinte: Pedimo-vos que corrijais os desobedientes, que consoleis os pusilânimes,

sustenteis os fracos e sejais pacientes com todos.

O anel, selo dos segredos celestiais, por outro lado, sugere e indica aos pastores

que, a exemplo do Apóstolo, marquem com um sinal distinto a sabedoria de Deus e a

difundam entre os perfeitos, mas, como se estivesse selada, não a ensinem aos imperfeitos, cujo alimento não é a comida sólida, mas o leite, e que expliquem e

preguem incansavelmente esta fé do Esposo à Esposa, que é a Igreja.

Portanto, quem conduz uma pessoa ao exercício do ministério pastoral, por

meio da entrega do báculo e do anel, reivindica seguramente toda a autoridade pastoral.

Ora, com tal procedimento, que juízo livre sobre esses pastores já designados podem

fazer o povo, o clero e o Metropolitano que vai consagrá-los? Os indicados dessa forma

irrompem violentamente, procurando subverter a ordem laica tanto como a clerical, antes

mesmo de serem conhecidos e requisitados por ambas.

Além disso, ofendem o Metropolitano, enquanto não são avaliados pelo mesmo;

aliás, pelo contrário, estão a julgá-lo, pois não solicitam e tampouco requerem a sua

confirmação, mas reivindicam e dele exigem submissão [...]

Toda a consagração episcopal realizada pelo Metropolitano e seus bispos

sufragâneos completa-se com a entrega do báculo e do anel, sem os quais os ordenados

pastores não recebem a autoridade e, por isso mesmo, não são bispos legítimos e

verdadeiros, visto que, sem a unção do Crisma e mediante a concessão daqueles objetos,

não podem ser considerados como antístites [...]

DOCUMENTO 3

Humberto de Sivacandida. Três Iivros contra os simoníacos, III, cap. 6, MGH, Libelli de Lite, I, Hanoviae, 1891, p. 225-226.

Entre outras coisas absurdas com que os sicofantes, como se fossem caçadores

de pássaros, apanham os incautos, cita-se a exaltação do poder terreno, particularmente

do imperial e do real [...], enaltecendo-o com freqüência acima da autoridade sacerdotal,

como se a lua fosse superior ao sol [...] e minimizando a dignidade da Igreja [...].

Qualquer pessoa que deseje comparar ambas as dignidades de modo irrepreensível pode

corretamente dizer que, na nossa época, a Igreja é semelhante à alma e o reino ao corpo,

e cada um deles exige e presta auxílio ao outro.

No entanto, do mesmo modo que a alma é mais importante do que o corpo e o

dirige, assim também a dignidade sacerdotal supera a real, isto é, a dignidade celeste

precede a terrena. Por conseguinte, a fim de que todas as coisas se mantenham ordenadas

e não haja confusão, o sacerdócio, como se fosse uma alma, deve orientar os fiéis acerca do que eles têm que fazer. E no reino, por sua vez, a cabeça deve governar todos os

membros do corpo e dirigi-los para onde têm de ir, porque, assim como os reis devem

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seguir a orientação dos sacerdotes, igualmente os leigos têm de acatar as decisões dos

seus monarcas, para o bem da Igreja e do povo.

Desse modo, o povo deve ser orientado e governado por um e outro poder e tem

de firmemente obedecer-lhes. [...] Ademais, no interior da Igreja não seria necessário o

poder secular, se o mesmo não tivesse de impor pela forca o que o sacerdote não

consegue fazer através da pregação da Palavra. Por isso, com freqüência o reino celestial

beneficia do reino secular, enquanto aqueles que, no interior da Igreja, atuam contra a fé

e a disciplina, são coibidos pelo poder dos príncipes [...] a quem Cristo confiou o seu cuidado e proteção [...].

DOCUMENTO 4

Decretal In nomine domini. In: MGH, Constituciones et acta, I, 539.

1. Em nome do Senhor Deus, Jesus Cristo, Nosso Salvador, no ano de 1059 de

Sua Encarnação, na duodécima indição, perante os Santos Evangelhos, sob a presidência

do reverendíssimo e beatíssimo Papa apostólico, Nicolau, na Patriarcal Basílica

Lateranense, chamada Basílica de Constantino, com todos os reverendíssimos

arcebispos, bispos, abades e veneráveis presbíteros e diáconos, o mesmo venerável

Pontífice, decretando com autoridade apostólica, disse:

2. Vossas Eminências, diletíssimos bispos e irmãos, conheceis, e igualmente o

sabem os membros de categoria hierárquica inferior, quanta adversidade esta Sé

Apostólica, a qual por vontade divina sirvo desde a morte de Estêvão, nosso predecessor

de feliz memória, suportou, quantos golpes e ofensas os traficantes simoníacos lhe infligiram, até ao ponto em que a coluna do Deus vivo, sacudida, parecia quase vacilar, e

a Sé Pontifícia aparentava estar prestes a mergulhar nas profundezas do abismo. Por isso,

que seja do agrado de meus irmãos o dever que temos de enfrentar os eventos futuros,

com a ajuda de Deus, e fazer uma constituição eclesiástica que resista aos males que

acaso venham a ocorrer, a fim de que nunca prevaleçam. Por conseguinte, apoiando-nos

na autoridade dos nossos predecessores e na de outros Sumos Pontífices, decretamos e

estabelecemos o seguinte:

3. Quando o bispo desta Igreja Romana universal vier a falecer, os cardeais

bispos decidam entre si, com a atenção devida, chamando posteriormente os cardeais

sacerdotes, e igualmente se associem aos outros membros do clero e ao povo, com vista

a proceder a uma nova eleição, evitando assim que a triste moléstia da venalidade não

tenha oportunidade de se perpetrar.

4. Portanto, sejam os varões mais insignes que promovam a eleição do futuro

Pontífice, e todos os demais os sigam. E este procedimento eleitoral seja considerado

justo e legítimo, visto que observa as regras e os procedimentos de inúmeros Santos

Padres e se resume naquela frase do nosso bem-aventurado antecessor Leão, que disse:

Nenhum motivo autoriza que se considerem como bispos aquelas pessoas que não foram eleitas pelos clérigos, aclamadas pelo povo e consagradas pelos bispos sufragâneos com

a aprovação do Metropolita. Já que a Sé Apostólica está acima de toda a Igreja espalhada

36

pelo orbe, e não pode ter nenhum Metropolita sobre si própria, não há dúvida de que os

cardeais bispos desempenham a função de metropolitas, levando o sacerdote eleito ao

cume da dignidade apostólica.

5. Escolham-no de entre os seus próprios membros, se encontrarem alguém digno; caso contrário, tomem-no de outra igreja qualquer.

6. Guardem a reverência e a honra devida ao nosso querido filho Henrique, que

agora é rei e que se espera será, com a ajuda de Deus, o futuro Imperador, e igualmente

aos seus sucessores que impetrarem pessoalmente este privilégio à Sé Apostólica.

7. Se a perversidade dos homens iníquos e maus prevalecer, a tal ponto que seja

impossível realizar uma eleição livre, justa e genuína, na Urbe, os cardeais bispos, com

os sacerdotes e os leigos católicos, têm o direito de escolher o Pontífice da Sé Apostólica onde julgarem mais oportuno fazê-lo.

8. Se, concluída a eleição, uma guerra ou qualquer tentativa dos homens se

opuser a que o escolhido tome posse da Sé Apostólica, segundo o costume, não obstante

isso, o eleito terá toda a autoridade pontifical para dirigir a Santa Igreja Romana,

dispondo plenamente das suas prerrogativas, como sabemos que o bem-aventurado

Gregório o fez antes da sua consagração.

9. Mas se alguém, contrariando este nosso decreto, promulgado em sínodo, for

eleito, consagrado e entronizado mediante a audácia, a revolta ou qualquer outro meio,

ninguém o considere papa, mas Satanás, nem apóstolo, mas apóstata e excomungado

perpetuamente, pela autoridade divina e dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, e

juntamente com os seus instigadores, partidários e sequazes, seja expulso da Santa Igreja

de Deus, como anticristo, inimigo e destruidor do toda a Cristandade. E não se lhe

conceda nenhum crédito, mas permaneça eternamente privado da dignidade eclesiástica,

não importando o grau a que pertença. Por outro lado, qualquer pessoa que lhe render

homenagem, considerando-o como pontífice verdadeiro, ou tentar defendê-lo como tal,

será castigado com a mesma sentença. Quem temerariamente se opuser a esta nossa

decretal e tentar prejudicar a Igreja Romana, violando o que foi estabelecido, seja

condenado com um anátema perpétuo e excomungado, e seja contado entre os ímpios que não ressuscitarão no Juízo Final. Sinta sobre si a ira do Onipotente Pai, Filho e

Espírito Santo e, nesta e na outra vida, sofra a indignação dos Santos Apóstolos Pedro e

Paulo, cuja Igreja tentou perturbar [...].

10. Os que observarem este nosso decreto sejam protegidos pela graça de Deus

onipotente e absolvidos do vínculo do todos os seus pecados pela autoridade dos bem-

aventurados bispos e Apóstolos Pedro e Paulo.

Eu, Nicolau, bispo da Santa Igreja Romana Católica e Apostólica, subscrevi

este decreto por nós promulgado, conforme se lê acima. Eu, Bonifácio, pela graça de

Deus bispo albanense, subscrevi. Eu, Humberto, bispo da Santa Igreja de Silvacandida,

subscrevi. Eu, Pedro, Bispo da Igreja de Óstia, subscrevi. E outros bispos, no total de

setenta e seis, com presbíteros e diáconos, subscreveram.

DOCUMENTO 5

37

Decretal de Nicolau II. In: GALLEGO BLANCO, op. cit., p. 96-98.

Nicolau, bispo, servo dos servos de Deus, a todos os bispos católicos, a todo o

clero e ao povo, saudações afetuosas e a bênção apostólica.

Visto a necessidade de sermos diligentemente solícitos para com todos os

homens, e preocupados com a vigilância peculiar do nosso encargo universal dirigido à

vossa salvação, tomamos o cuidado de vos enviar os decretos promulgados no sínodo

recentemente celebrado em Roma, na presença de cento e treze bispos, sob a nossa presidência, embora sejamos indigno, vo-los remetemos com a autoridade apostólica,

pois queremos que os façais cumprir em ordem à vossa salvação.

1. Primeiramente, ficou estabelecido, na presença de Deus, que a eleição do

Pontífice Romano será realizada pelos cardeais bispos, de modo que a pessoa que for

entronizada sem a sua anuência prévia e a eleição canônica não será considerada papa e

apóstolo, mas apóstata.

2. Que ao morrer o Bispo de Roma, ou de qualquer outra cidade, ninguém se

atreva a saquear os seus bens, pois os mesmos devem ser mantidos intactos para os seus

sucessores.

3. Que ninguém assista à Missa de um sacerdote do qual se sabe com certeza

que mantém uma concubina, ou vive com uma mulher qualquer. Por esse motivo, este

santo sínodo decretou, sob pena de excomunhão, o seguinte: o sacerdote, diácono ou

subdiácono que, depois da constituição relativa à castidade clerical, promulgada pelo

nosso santíssimo predecessor, o Papa Leão, de feliz memória, tome ou tenha concubina,

se não a deixar, da parte de Deus Onipotente e pela autoridade dos bem-aventurados

Pedro e Paulo, Apóstolos, ordenamos e nos opomos a que celebre Missa ou cante o

Evangelho, ou leia a Epístola, ou sequer tome parte no presbitério dos ofícios divinos em companhia dos que observam a mencionada constituição, ou receba algo da Igreja ate

que sentenciemos, com a ajuda de Deus, sobre essa questão.

4. Decretamos firmemente que os clérigos pertencentes àqueles graus da

hierarquia acima referidos que, obedecendo a nossos predecessores, se mantêm castos,

durmam e comam em comunidade, nas proximidades da igreja para a qual foram

ordenados, segundo convém ao clero piedoso, e que tenham em comum as entradas que

procedam da igreja, e lhes pedimos encarecidamente que se esforcem por cumprir e

seguir o estilo de vida apostólico que se caracteriza pela vida em comunidade.

5. Que os dízimos, as primícias e as ofertas de pessoas vivas e das que já

faleceram sejam entregues fielmente pelos leigos à igreja e que estejam à disposição do

bispo. Aqueles que os retiverem serão excomungados.

6. Que nenhum clérigo ou sacerdote obtenha das mãos dos leigos uma igreja,

sob qualquer pretexto, ou livremente ou em troca de dinheiro.

7. Que ninguém receba o hábito de monge com a esperança ou a promessa de

ser nomeado abade.

8. Que nenhum sacerdote obtenha simultaneamente duas igrejas.

9. Que ninguém seja ordenado ou promovido a algum cargo eclesiástico através da heresia simoníaca.

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10. Que nenhum leigo julgue ou expulse das igrejas os clérigos,

independentemente do grau hierárquico a que pertençam.

DOCUMENTO 6

Carta de Pedro Damião a Henrique IV, Patrologia latina, v. 144, p. 440-442.

Assim como os dois poderes, o real e o sacerdotal, estão em primeiro lugar

unidos um ao outro em Cristo, pela verdade especial de um sacramento, igualmente

estão unidos no povo cristão por uma espécie de pacto, e cada um deles necessita do

auxílio e serviço do outro.

O Sacerdócio é defendido pela proteção real, enquanto a realeza é favorecida

pela santidade do ofício sacerdotal. O rei é cingido com uma espada, para que vá armado

contra os inimigos da Igreja. O sacerdote ora, durante muitas vigílias, para obter as

graças de Deus para o monarca e para o povo.

O primeiro deve conduzir as questões terrenas com a lança da justiça; o

segundo tem de proporcionar ao sedento a água do manancial da eloqüência divina. O rei

foi estabelecido para coagir os que fazem o mal e os criminosos, com o castigo das

sanções legais. O presbítero foi ordenado para atar alguns com o zelo do rigor canônico,

mediante as chaves do Reino que ele possui, e para absolver outros pela clemência da

piedade eclesiástica.

Presta atenção ao que Paulo afirma sobre os reis e a como ele define o papel

específico do ofício régio. Após aludir a muitas coisas, o Apóstolo diz o seguinte: Ele é o

instrumento de Deus para te conduzir ao bem. Se, no entanto, praticares o mal, teme, porque não é em vão que ele traz a espada. O rei é, pois, o ministro de Deus, um

vingador que descarrega a sua ira sobre aquele que faz o mal.

[...] Um rei deve ser reverenciado sempre que obedecer ao Criador. Mas, se ele

não acatar as ordens divinas, é justo que os seus súditos o desprezem, pois se estiver

convencido de que deve governar apenas como rei e em seu próprio interesse, e não pela

causa de Deus, não estará a lutar ao lado da Igreja, e no dia da luta levará muito mais em

conta os seus objetivos terrenos, em vez de vir em socorro da mesma quando esta se

encontrar em perigo.

[...] Portanto, ó rei, considera-me como alguém que te dá um conselho fiel. Não

me julgues insolente ou um adversário da honorabilidade do poder e da majestade real,

ou, se te convém, pensa a meu respeito como uma pessoa que perdeu a razão por causa

da dor gerada pólo assassinato de sua Mãe.

Contudo, oxalá eu fosse declarado réu de traição perante o teu tribunal, desde

que só tu, árbitro da eqüidade, também castigasses os inimigos da Sé Apostólica.

Que as espada do verdugo caia sobre o meu pescoço, se a Igreja Romana,

restaurada por ti, puder ascender à eminência da sua dignidade. Além disso, se tu

destruíres imediatamente a Cadalo, à semelhança do que Constantino fez com Ário, e lutares para devolver a paz à Igreja, pela qual Cristo morreu, Deus prontamente fará com

que sejas elevado à dignidade imperial e ganhes de todos os teus inimigos os títulos de

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glória. Mas sucederá o contrário se fores desleal e recusares pôr termo ao erro que faz

periclitar o mundo, quando tens o poder para fazê-lo. Contenho o meu espírito e deixo

aos meus leitores adivinhar as conseqüências [...].

DOCUMENTO 7

Carta de Gregório VII a Henrique IV, Patrologia latina, v. 144, p. 142-143.

Gregório, bispo, servo dos servos do Deus, ao rei Henrique, saúde e bênção apostólica.

Amado filho, embora não tenhas resolvido o caso da Igreja de Milão, conforme

as tuas cartas e promessas, todavia, ouvimos com grande satisfação que trataste

amavelmente os nossos legados, que corrigiste determinados assuntos eclesiásticos e que

nos enviaste saudações por meio dos referidos legados e a certeza do teu devoto serviço.

Também nos regozijamos ainda mais, porque [...] estás disposto a extirpar

completamente do teu reino a heresia simoníaca e a usar de todo o teu empenho para

curar a inveterada enfermidade do nicolaísmo que grassa entre os clérigos [...].

Fomos levado a escrever-te esta carta por sugestão e conselho da tua santíssima

e augusta Mãe. Assim, embora pecador, tenho-me recordado e recordar-me-ei de ti, por

ocasião das Missas solenes celebradas sobre os túmulos dos Apóstolos, pedindo com

humildade que Deus Onipotente te confirme nas tuas presentes boas intenções, e que

ainda te conceda melhores coisas para o bem da Igreja.

Entretanto, filho excelentíssimo, advirto-te e exorto-te, com afeto sincero, a que

escolhas assessores que te amem e que desejem o teu bem, não os seus bens, não o seu

próprio interesse. Se observares este conselho, o Senhor Deus, cuja função desempenhas

na tua presença, será o teu protetor cheio de graça. Ainda em referência à Igreja de Milão, se nos enviares homens sábios e

piedosos, que nos apresentem o seu parecer baseado em sólidos argumentos, que nos

convençam de que os decretos da Igreja Romana, aprovados duas vezes pela autoridade

sinodal, podem e devem ser modificados, não deixaremos de seguir os seus conselhos

ponderados e tornaremos uma atitude mais conciliatória.

No entanto, se, pelo contrário, isto não for possível, peco e conjuro tua Alteza,

por amor a Deus e por tua reverência a S. Pedro, que restituas o direito de liberdade

àquela igreja. Saberás então que ganhaste finalmente o verdadeiro poder de um rei, se te

humilhares perante Cristo, Rei dos reis, empenhando-te na restauração e na defesa das

Suas igrejas. Lembra-te das palavras que Ele disse: Amarei os que me amam, honrarei os

que me honram e não estimarei os que me desprezam.

Queremos que saibas que enviamos cartas ao arcebispo Sigefredo de Mogúncia,

requerendo a sua presença no sínodo que, com a graça de Deus, pretendemos realizar na

próxima Quaresma. Se ele não puder comparecer, que envie legados que no mesmo o

representem.

Ordenamos igualmente aos bispos do Bamberga, Estrasburgo e Espira que se

apresentem pessoalmente e nos relatem como foram nomeados e vivem. Mas, como é

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típico dos insolentes, se, porventura, não vierem, pedimos-te que os obrigues, por meio

da tua autoridade régia, a fazê-lo.

Desejamos que envies com eles embaixadores de confiança, que nos informem

realmente a respeito da sua indigitação para o episcopado e da maneira como vivem, a

fim de que, sabendo da verdade pelos seus próprios lábios, possamos decretar uma

sentença inquestionável.

DOCUMENTO 8

Dictatus Papae, de Gregório VII, Patrologia latina, v. 148, p. 407-408.

1. Só a Igreja Romana foi fundada por Deus. 2. Só o Pontífice Romano,

portanto, tem o direito de ser chamado universal. 3. Só ele pode nomear e depor bispos.

4. Um seu emissário, mesmo que inferior em grau hierárquico, tem precedência

relativamente a todos os bispos reunidos em sínodo e pode decretar uma sentença de

deposição contra eles. 5. O Papa tem o direito de destituir os ausentes. 6. Não se deve

estar em comunhão ou permanecer na mesma casa com aqueles que foram

excomungados pelo Pontífice. 7. Só a ele é ilícito promulgar novas leis, do acordo com

as necessidades do momento, reunir novas congregações, converter um canonicato em

abadia e vice-versa, dividir um bispado rico e unir vários que sejam pobres. 8. Só ele

pode usar a insígnia imperial. 9. Todos os príncipes devem beijar só os seus pés. 10. O

seu nome deve ser recitado em todas as igrejas. 11. O seu título é único no mundo. 12. É-

lhe lícito destituir o Imperador. 13. Também lhe é ilícito, conforme as necessidades,

transferir bispos de uma sé para outra. 14. Só ele tem o poder de ordenar que um clérigo de qualquer igreja vá para onde lhe aprouver. 15. Aquele que é sagrado por ele pode

governar qualquer igreja, sem se subordinar a ninguém, e não pode receber de bispo

algum qualquer grau hierárquico superior. 16. Nenhum sínodo poderá ser considerado

geral se não for convocado por ele. 17. Nenhum livro ou capítulo pode ser considerado

canônico sem a sua confirmação. 18. Ninguém pode revogar as suas sentenças; só ele

próprio pode fazê-lo. 19. Ninguém pode julgá-lo. 20. Ninguém pode censurar quem

apela para a Sé Apostólica. 21. As causas de importância maior de qualquer igreja

devem ser-lhe apresentadas, para que ele as julgue. 22. A Igreja Romana, segundo

testemunha a Escritura, nunca errou e jamais errará. 23. O Romano Pontífice, escolhido

conforme a eleição canônica, será indubitavelmente santificado pelos méritos do bem-

aventurado Pedro, segundo afirma Santo Enódio, bispo de Pavia, em consenso com

muitos Santos Padres, conforme está escrito nos decretos do Papa Símaco. 24. É lícito

aos subordinados, de acordo com a sua ordem e autorização, fazer acusações. 25. Ele

pode depor e nomear bispos sem uma reunião sinodal. 26. Não deve ser considerado

católico quem não está em comunhão com a Igreja Romana. 27. O Pontífice pode

libertar os súditos do juramento de fidelidade feito a um monarca iníquo.

DOCUMENTO 9

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Destituição de Gregório VII pelo rei Henrique. MGH, Const. et acta, I, 535.

Henrique, rei, não por usurpação, mas pela piedosa disposição divina, a

Hildebrando, não já apostólico, mas falso monge.

Por causa da desordem que provocaste, mereceste esta saudação, pois aboliste a

ordem na Igreja, fazendo-a mergulhar na confusão e na desonra e não compartilhar da

bênção, mas da maldição. Com efeito, embora não pretenda tecer muitas considerações, apesar de as

mesmas serem dignas de atenção, não hesitaste somente em tocar nos dirigentes da Santa

Igreja, os arcebispos, bispos e presbíteros, ungidos do Senhor, mas os submeteste a teus

pés, como se fossem meros servos que não sabem o que faz o seu senhor e, ao humilhá-

los, recebeste o aplauso popular.

Pensaste que nada sabiam, enquanto apenas tu te consideravas a par de tudo,

Como te esforçaste, não para a edificação desta doutrina, mas para a sua destruição, a

ponto de acreditares precisamente no que o bem-aventurado Gregório, de quem

apropriaste o nome, profetizou sobre ti, declarando: A alma do prelado geralmente

alvoroça-se com o grande número de fiéis e, por isso, julga saber mais do que todos eles,

ao constatar que pode mais do que eles.

Na verdade, suportamos essa situação porque estávamos empenhado em

preservar a honra da Sé Apostólica. Mas tu pensaste que a nossa humildade era fruto do

temor e, por isso, não receaste em insurgir-te contra este poder régio que nos foi

concedido por Deus, ousando ameaçar que dele nos deporias, como se tivéssemos

recebido o reino de ti, como se estivesse nas tuas mãos, e não nas de Deus, o reino e o

império. Deus, Nosso Senhor, chamou-nos para o governo do reino, mas não te chamou para o sacerdócio.

Sem dúvida alguma, foi pela astúcia execrada pela vida monástica que

ascendeste ao Papado, galgando os seguintes degraus: obtiveste dinheiro, pelo dinheiro

os favores; por meio destes a espada, e graças a esta a Sé da Paz. E perturbaste a sua paz,

na medida em que armaste os súditos contra os prelados, ensinando-os a desprezar os

nossos bispos, chamados por Deus, embora tu não tivesses sido chamado; na medida,

também, em que conferiste indistintamente aos leigos poder sobre os sacerdotes, do

modo que pudessem condenar e depor aqueles que, para os instruir, mediante a

imposição das mãos haviam recebido de Deus o múnus sacerdotal.

Eu mesmo, ainda que indigno, ungido entre os cristãos para reinar, fui atingido

por ti; eu, que a tradição dos ensinamentos dos Santos Padres propôs que devia ser

julgado somente por Deus, exceto se cometesse o crime do me afastar da fé, fui ameaçado do deposição por ti. Ora, até a Providência poupou Juliano, o Apóstata, de ser

julgado pelos Santos Padres, reservando-o exclusivamente para o seu próprio juízo.

O bem-aventurado Pedro, legítimo Papa, ensinou igualmente: Tornei a Deus,

honrai o rei. Tu, porém, que não temes a Deus, transgrediste a sua lei em mim

personificada. O bem-aventurado Paulo, que afirmou que não pouparia um anjo do Céu,

se este porventura pregasse um outro Evangelho, também foi ignorado por ti, pois estás a

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ensinar uma doutrina diferente. Na verdade, ele disse: Se alguém, eu ou um anjo do Céu,

vos pregar um outro Evangelho diferente daquele que vos ensinamos, seja condenado.

Por isso, foste condenado por aquele anátema, pelos nossos bispos e pelo nosso

julgamento; portanto, desce da Sé Apostólica que usurpaste. Suba ao trono do bem-

aventurado Pedro uma outra pessoa que não obscureça a religião com a violência, mas

que ensine a verdadeira doutrina pregada pelo Príncipe dos Apóstolos.

Eu, Henrique, rei pela graça de Deus, juntamente com os nossos bispos,

dizemos-te: desce de onde estás, pois foste condenado pelos séculos.

DOCUMENTO 10

Sentença de deposição do rei Henrique IV, Patrologia latina, v. 148, p. 790.

Oh bem-aventurado Pedro, príncipe dos Apóstolos, nós te pedimos, inclina os

teus piedosos ouvidos para nós e escuta-me, a mim que sou teu servo. Tu me nutriste

desde a infância e, até hoje, me livraste da mão dos iníquos que me odeiam e odiarão,

por causa da fidelidade que te guardo.

Tu és minha testemunha, bem como a minha Senhora, a Santa Mãe de Deus, e

ainda o bem-aventurado Paulo, teu irmão, entre todos os santos, que foi tua Santa Igreja

Romana que me levou, contra a minha vontade, à sua chefia; eu nunca pensei que fosse

um ato de usurpação ascender à tua sede, e desejei muito mais terminar a minha

existência a peregrinar de um lado para o outro do que arrebatar o ter lugar através de

meios seculares por amor à gloria terrena.

Por isso, devido à tua graça, e não por meus méritos, creio que desejaste e queres que este povo cristão, especialmente a ti confiado, igualmente me obedeça de

modo particular, em razão do vicariato que me foi confiado.

Por tua graça, Deus me deu o poder de ligar e desligar no céu e na terra.

Apoiando-me nesta verdade, para honra e defesa da tua Igreja e em nome de Deus

onipotente, Pai, Filho e Espírito Santo, por meio do teu poder e autoridade, retiro do rei

Henrique, filho do Imperador Henrique, o poder sobre todo o reino da Germânia e da

Itália, porque ele ergueu-se contra a tua Igreja com inaudita soberba, e liberto todos o

cristãos do juramento de fidelidade que lhe tiverem feito ou que venham a fazer e os

proíbo de o servirem como rei.

É justo castigar aquele que procura diminuir a dignidade da tua Igreja, fazendo-

o perder as honrarias que devia ter. Como ele me desdenhou e se recusou a obedecer às

leis cristãs e não quis voltar ao Senhor, a quem desprezou, unindo-se aos excomungados,

além de ter cometido muitas iniqüidades e desprezado as minhas admoestações como

bem podes testemunhar, o fiz para sua salvação, porque se afastou da tua Igreja e a

tentou dividir.

Assim, por ti o liguei pelo vínculo do anátema e, confiando em ti, assim o ligo,

para que os povos possam ver e reconhecer que tu és Pedro e que sobre esta pedra o Filho de Deus vivo construiu a sua Igreja e que as portas do Inferno não prevalecerão

sobre ela.

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DOCUMENTO 11

Carta de Gregório VII ao clero e povo germânicos, Patrologia latina, v. 148, p. 245-247.

Gregório, bispo, servo dos servos de Deus, a todos os amados irmãos em Cristo, bispos, duques, condes, e a todos os defensores da fé cristã que vivem no reino da

Germânia, saúde e absolvição de todos os pecados, através da bênção apostólica.

Se considerardes atentamente o decreto pelo qual Henrique, chamado rei, foi

excomungado durante o santo sínodo, através do julgamento do Espírito Santo, vereis

indubitavelmente que medida se deve tomar neste caso. Constatareis por que ele foi

ligado com os laços do anátema e deposto da sua dignidade régia e porque todo o povo

que lhe estava sujeito pelo vínculo do juramento de fidelidade até aquele momento foi

por nós libertado do mesmo.

Entretanto, Deus o sabe, considerando que não agimos contra ele movido pelo

orgulho ou pelo vão desejo das coisas terrenas, mas sim levado apenas por causa do zelo

da Santa Sé e por nossa Mãe comum a Igreja, admoestamo-vos, em nome do Senhor

Jesus, e rogamo-vos, caríssimos irmãos, que o acolhais bondosamente se ele regressar a

Deus de todo o coração.

Peço-vos que lhe mostreis a justiça que o proibiu de reinar e que o trateis com

clemência, pois a mesma perdoa muitos crimes. Tende em conta a fragilidade da nossa

comum natureza humana, e não vos esqueçais da piedosa e nobre memória de seus pais,

governantes sem par, nos nossos dias. Aplicai, no entanto, o óleo da bondade nas suas feridas, de tal modo que as

cicatrizes não apodreçam por causa do abandono do vinho da ordem, evitando assim que

a honra devida à Igreja e ao Império Romano caiam na ruína completa por causa da

nossa indiferença.

Afastai para longe dele os maus conselheiros que, apesar de excomungados em

razão da heresia simoníaca, não têm escrúpulos em contaminar o seu próprio senhor com

tal enfermidade e ainda o estimularam a cometer vários crimes, dividindo a Santa Igreja,

e atraíram sobre ele a ira divina e de S. Pedro.

Desejamos que Henrique se rodeie de outros assessores, que levem mais em

conta os seus interesses do que os próprios, que o amem e que sobreponham a causa de

Deus às ambições terrenas. Que tais homens não pensem jamais que a Santa Igreja é sua

súdita ou serva, mas, pelo contrário, que a reconheçam como sua superior e senhora. Que

não se encham de vaidade com o espírito orgulhoso, nem defendam os costumes

inventados para restringir a liberdade da Santa Igreja, mas que observem a doutrina dos

papas que lhes foi ensinada sobre o poder divino em vista da nossa salvação.

Mas, se vos ouvirem, atendendo fielmente a estas e outras exigências que se

lhes puderem impor com justiça, desejamos que nos informeis imediatamente, através de mensageiros de confiança, a fim de que, examinando-as juntos, possamos, com o auxílio

divino, agir retamente.

44

Proibimos de modo especial, pela autoridade de S. Pedro, que algum de vós se

atreva a absolver Henrique da excomunhão, até que tenhamos sido informados acerca do

que foi acima estipulado, e tenhais recebido a nossa resposta contendo a permissão da Sé

Apostólica, pois desconfiamos das sugestões contraditórias dadas por pessoas diferentes,

bem como suspeitamos, tanto do favor quanto do temor dos homens.

Entretanto, se, por causa dos crimes de muitos, Henrique não se voltar para

Deus — oxalá Ele não permita isso —, que se procure, com o favor divino, um outro

governante para o reino, o qual se comprometa firmemente a executar as medidas que indicamos e outras que venham a ser necessárias para a segurança da religião cristã e de

todo o Império.

Além disso, caso seja oportuno fazer uma eleição para escolher um novo rei, a

fim de que o confirmemos pela autoridade apostólica e apoiemos a nova ordem,

conforme sabemos que fizeram os Santos Padres nossos antecessores, informai-nos

quanto antes sobre tal pessoa e o seu caráter. Procedendo assim, com intenção piedosa e

útil, vos Seremos gratos quanto ao caso presente e merecereis, pela graça divina, o favor

da Sé Apostólica e a bênção de S. Pedro, príncipe dos Apóstolos. [...]

Quanto aos excomungados, recordo que já vos dei, a vós que defendeis a fé

cristã, as diretrizes sobre como devem agir os bispos e a respectiva licença para os

absolver, e, agora, confirmamos tudo isso, sob a condição de que os mesmos se

arrependam verdadeiramente e solicitem humildemente penitência.

DOCUMENTO 12

Carta de Gregório VII a Herman. Patrologia latina, v. 148, p. 453-467.

Gregório, servo dos servos de Deus, ao dileto irmão cm Cristo, Herman, bispo

de Metz, saudação e bênção apostólica.

Sabemos que estás sempre disposto a trabalhar e a suportar perigos em defesa

da verdade, e não duvidamos que isso é um dom de Deus. Com efeito, faz parte da sua

graça inefável e da sua infinita misericórdia nunca permitir que os seus escolhidos se

extraviem ou caiam por completo e tampouco sejam derrubados [...].

Tu nos pedes que te ajudemos e te apoiemos contra a loucura daqueles que

pairam com a boca sacrílega, dizendo que a autoridade da Santa Sé Apostólica tanto não

tinha o poder de excomungar o rei Henrique, homem que não faz caso da lei cristã,

destruidor de igrejas e do Império, fautor e companheiro de hereges, assim como a

faculdade de libertar qualquer pessoa do juramento de fidelidade que lhe tinha sido

prestado. Não nos parece necessário refutar esses pontos, visto que na Sagrada Escritura

há inúmeras e convincentes provas a tal respeito.

Tampouco acreditamos efetivamente que aqueles que contradizem e detratam

imprudentemente a verdade, para sua condenação, acrescentando tais afirmações à

audácia da sua defesa, o façam levados mais por ignorância do que por insana e desesperada loucura. Nem nos devemos admirar disso. Com efeito, é costume dos

perversos agir assim para ocultar as suas próprias iniquidades, julgando que os outros

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são como eles, pois não se preocupam com merecer o castigo da perdição reservada aos

mentirosos.

Para citar apenas uma das muitas provas do que dizemos, basta referir a

seguinte: quem ignora as palavras de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, ditas no

Evangelho: ―Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do

inferno não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus, e tudo o que

ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos

céus.‖ Porventura estão os reis excluídos, ou não fazem parte das ovelhas que o Filho

de Deus confiou ao bem-aventurado Pedro? Quem, pergunto eu, se julga fora dessa

universalidade do poder de ligar e desligar, conferido a S. Pedro? Somente um infeliz

que, não desejando suportar o jugo do Senhor, prefere sujeitar-se ao peso de Lúcifer e se

nega a ser contado entre as ovelhas de Cristo. No entanto, isso não proporcionará nada

de bom à sua mísera liberdade, pois se recusa orgulhosamente a admitir o poder

concedido divinamente a S. Pedro e, entregando-se ao pecado da soberba, se nega a

suportá-lo, será obrigado a sofrê-lo muito mais duramente, por causa da sua condenação

no dia do Juízo..

Esta instituição da vontade divina, esta fundação do governo da Igreja, este

privilégio outorgado e especialmente ratificado através de um decreto celestial dado ao

bem-aventurado Pedro, Príncipe dos Apóstolos, foi aceita e mantida com grande

reverência pelos Santos Padres, que deram à Igreja Romana o nome de Mãe universal,

tanto nos concílios gerais quanto nos seus escritos e nas medidas que tomaram. E, da

mesma forma que aceitaram as suas exposições e instruções doutrinais relativas à

religião, acolheram igualmente as suas decisões judiciais, admitindo e consentindo,

como se fossem uma só voz e um só espírito, baseados no princípio segundo o qual todos os assuntos especialmente relevantes, todas as causas maiores e todos os juízos

sobre as demais igrejas devem ser encaminhados para a Igreja de Roma, Mãe e cabeça,

pois das suas sentenças não há apelação, e não podem as mesmas, nem devem, ser

revistas e revogadas por ninguém.

Por isso, o Papa Gelásio, apoiado na autoridade divina, instruindo o Imperador

Anastácio acerca do que devia saber a respeito do principado da Santa Sé Apostólica, lhe

escreveu: ―Embora seja conveniente que todos os fiéis se submetam aos sacerdotes que

desempenham corretamente a sua missão divina, com muito mais razão devem

igualmente aceitar o juízo daquele prelado que foi eleito como supremo governante

divino para chefiar todos os presbíteros, e a quem a fidelidade de toda a Igreja

reconheceu como tal. A tua sabedoria vê claramente que não há ninguém que se possa

igualar àquela pessoa que a palavra e o testemunho de Cristo instituiu sobre as demais, e

que a Santa Igreja Romana confessou e reconheceu sempre como sua cabeça.‖

Igualmente o Papa Júlio, escrevendo aos bispos orientais sobre o poder da Santa

Sé Apostólica, disse: ―Irmãos, devíeis ter falado respeitosamente e sem ironia a respeito

da Santa Romana e Apostólica Igreja, considerando que Nosso Senhor Jesus Cristo se

lhe dirigiu com todo o respeito, dizendo ‗tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela; darte-ei as chaves do

reino dos céus‘.‖ Com efeito, ela possui o poder que lhe foi concedido mediante um

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privilégio especial, o de abrir e fechar as portas do reino celeste a quem desejar. Não

pode, então, aquele que recebeu o poder de abrir e fechar as portas do Céu julgar aqui na

terra? Que não seja de outro modo. Recordai ainda o que o santo Apóstolo Paulo disse:

―Não sabeis que julgaremos os anjos? Quanto mais as coisas terrenas.‖

Também o Papa S. Gregório estabeleceu que os reis que se atrevessem a

desobedecer aos decretos da Sé Apostólica perderiam a sua dignidade. Ele escreveu estas

palavras a um senador e a um abade: ―Se um rei, ou um sacerdote, ou um juiz, ou ainda

um leigo qualquer, desrespeitar este nosso decreto e tentar agir contrariamente, será privado do seu poder, ofício e dignidade e deve saber que igualmente será réu do

julgamento divino por causa da iniqüidade cometida. E, a menos que repare o mal que

tiver cometido e faça a penitência devida por causa dos seus atos ilícitos, será afastado

da comunhão do Corpo e Sangue sacratíssimos de Nosso Senhor e Redentor, Jesus

Cristo, e receberá no Juízo Final o castigo que merecer.‖

Se o bem-aventurado Gregório, o mais suave dos doutores, estatuiu que os reis

que desobedecessem aos seus decretos, no respeitante a um hospital para estrangeiros,

seriam não só depostos e excomungados, mas também condenados no Juízo Final, por

que nos censuram por havermos deposto e excomungado Henrique IV, que violou não

apenas as sentenças apostólicas da sua própria Mãe, a Santa Igreja, mas também, na

medida em que pôde, pisou, destruiu e saqueou as igrejas e todo o reino? Só admitindo-

se a hipótese de tais pessoas serem semelhantes a ele.

Conforme sabemos, graças ao ensinamento do bem-aventurado Pedro, na

epístola sobre a ordenação de S. Clemente lemos: ―Se há alguém amigo daqueles com

quem ele — aludindo ao próprio Clemente — não se relaciona, tal pessoa é uma das que

gostariam de exterminar a Igreja de Deus, e, embora aparente corporalmente estar

conosco, na verdade está contra nós no coração e no espírito e, ainda, é um inimigo pior do que os que estão fora e se manifestam claramente hostis, pois tal pessoa, sob o

disfarce da amizade, age como inimigo, arruinando e destruindo a Igreja.‖

“[...] Mas voltemos à questão principal. Porventura a dignidade real, instituída

por leigos, ignorantes das coisas divinas, não está subordinada àquela que a Providência

de Deus onipotente estabeleceu para sua honra e gratuitamente ofereceu ao mundo?

Cremos que seu Filho, Deus e homem e igualmente Sumo Sacerdote, cabeça do todos os

sacerdotes, está sentado à direita do Pai, intercedendo sempre por nós. Ele, no entanto,

recusou o poder terreno, o qual sempre faz com que os filhos deste mundo se encham de

orgulho, e espontaneamente se ofereceu como vítima para o sacrifício da Cruz.

Quem ignora que os reis e os príncipes descendem de pessoas desconhecedoras

de Deus? Quem não sabe que se exaltam a si próprios relativamente aos semelhantes,

através do orgulho, do saque, da traição, do assassinato, em suma, graças a toda a

espécie de crimes, instigados por Lúcifer, príncipe deste mundo? Quem desconhece que

tais pessoas são cegas, movidas pela avareza, e que são igualmente escravas do orgulho e

de uma presunção intolerável?

Elas empenham-se em submeter os sacerdotes de Deus à sua vontade e, agindo

assim, só podem ser adequadamente comparadas àquele que é o príncipe de todos os filhos da soberba. Este, ao tentar o Filho do Altíssimo, Sumo Sacerdote e cabeça de

todos os presbíteros, prometendo-lhe os reinos deste mundo, disse: ―tudo isto te darei se

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te prostrares e me adorares‖. Quem pode descrer de que os sacerdotes de Cristo devem

ser considerados como pais e mestres dos reis, dos príncipes e de todos os fiéis? Não se

consideraria loucura digna de compaixão se um filho tentasse subjugar o seu pai, ou se

um discípulo ousasse dominar o mestre, ou ainda a pessoa que tenta submeter ao seu

controle, por meio de laços iníquos, justamente quem pode ligá-la e desligá-la, não só na

terra, mas também no Céu?

S. Gregório, numa carta dirigida ao Imperador Maurício, lembra-nos que o

Imperador Constantino Magno, senhor de quase todos os reis e príncipes do mundo inteiro, compreendendo perfeitamente o que dissemos a respeito dos sacerdotes, sentou-

se, durante o sínodo de Nicéia, num lugar inferior em relação ao ocupado pelos bispos aí

presentes e não ousou promulgar nenhuma sentença contra eles, mas, dirigindo-se aos

mesmos, reverenciou-os como deuses, estatuindo que não estavam subordinados ao seu

tribunal, mas sim ele, Constantino Magno, acataria as suas decisões.

O prelibado Gelásio, papa, admoestando o Imperador Anastácio, antes citado, a

fim de não o ofender com a verdade que lhe devia ensinar, disse: ―Há dois poderes, ó

augusto Imperador, mediante os quais o mundo é governado, a autoridade sagrada dos

pontífices e o poder real. Destes, é mais pesado o encargo dos sacerdotes, pois eles

deverão prestar contas, por ocasião do Juízo divino, não apenas de si próprios, mas

também pelos reis da humanidade.‖ E, mais adiante, acrescentou: ―Deves submeter-te ao

seu juízo, e não eles à tua vontade.‖

Portanto, muitos pontífices, apoiados nessas autoridades e em tais declarações,

excomungaram reis e imperadores. Citamos, como exemplos especiais, alguns casos.

Santo Inocêncio, papa, excomungou o imperador Arcádio, porque este consentiu que S.

João Crisóstomo fosse expulso da sua Sé episcopal. O Pontífice Romano Zacarias depôs

um rei franco, não tanto por haver cometido iniqüidades, mas pelo fato de ser incapaz de exercer tão importante encargo, e o substituiu por Pepino, pai do Imperador Carlos

Magno, desligando todos os francos do juramento de fidelidade que lhe tinham prestado.

A Igreja também faz isso com freqüência, quando, pela sua autoridade, desliga

os soldados do juramento de fidelidade prestado aos bispos que foram destituídos da sua

função, pelo poder apostólico. O bem-aventurado Ambrósio, que, embora fosse santo,

não era bispo da Igreja Universal, excomungou da mesma o Imperador Teodósio Magno,

por causa de um delito que não pareceu aos demais sacerdotes ser tão grave. Ele ainda

nos ensina nos seus escritos que o Sacerdócio é bem superior ao poder régio, da mesma

forma que o ouro é mais precioso que o chumbo, dizendo, no princípio da sua carta

pastoral: ―Irmãos, é incomparável a honra e a dignidade dos bispos. Se os confrontarmos

com o fulgor dos reis e com o diadema dos príncipes, será bem menos do que se

compararmos o chumbo ao esplendor do ouro. Com efeito, constata-se que os reis e os

príncipes inclinam as suas cabeças diante dos joelhos dos sacerdotes e, após beijarem a

sua mão direita, consideram-se fortalecidos por meio das suas orações.‖ E adiante

acrescenta: ―Recordai, irmãos, que dizemos isto para vos mostrar que neste mundo nada

há mais excelente do que os sacerdotes e mais sublime do que os bispos.‖

Caríssimo irmão, deves lembrar-te de que, no momento da ordenação de um exorcista, se lhe confere um enorme poder, como se fosse um imperador espiritual, para

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expulsar os demônios, poder esse muito maior do que o conferido a qualquer leigo para o

exercício do domínio secular.

Na verdade, todos os reis e príncipes deste mundo, que não vivam

piedosamente e nas suas ações se não revelem tementes a Deus, estão infelizmente

dominados pelo jugo de Lúcifer e encontram-se numa servidão miserável. Tais pessoas,

de fato, não querem governar conduzidas pelo amor divino, como fazem os sacerdotes,

tendo em apreço a honra de Deus e o bem das almas. Elas querem o domínio, tendo em

vista comprovar a sua intolerável soberba e satisfazer a luxúria dos seus espíritos. O bem-aventurado Agostinho, falando sobre elas, na sua Doutrina Cristã, Livro I, diz:

―Aquele que aspira a dominar os semelhantes, isto é, as criaturas humanas, atua, na

verdade, com uma soberba intolerável.‖ Ora, se os exorcistas detêm um poder divino

sobre os demônios, conforme se disse, quanto mais sobre aquelas pessoas que pertencem

e estão subjugadas pelos mesmos. Portanto, se os exorcistas são superiores aos que

dominam os semelhantes, muito mais o são os presbíteros.

Além disso, todos os reis cristãos, quando sentem aproximar-se a morte,

chamam em socorro um sacerdote, pois se encontram na condição de miseráveis

suplicantes, com vista a apresentarem-se perante o tribunal divino absolvidos dos

vínculos do pecado e a poderem escapar da prisão do inferno e logo passarem das trevas

à luz. Na verdade, quem de entre os leigos ou os sacerdotes, na hora final, solicita o

socorro de um rei terreno para salvar a sua alma? Quem, entre reis e imperadores, em

razão do encargo que exercem, é igualmente capaz de resgatar uma pessoa do poder de

Lúcifer mediante o Santo Batismo, e ainda confirmá-la como filha de Deus e fortalecê-la

espiritualmente com o Crisma? Quem, de entre eles, pode por si mesmo transformar o

pão e o vinho no Corpo e Sangue do Senhor, o maior ato da religião cristã? A quem, de

entre os soberanos, foi alguma vez concedido o poder de ligar e desligar nos céus e na terra?

Mediante estes exemplos, nota-se claramente quanto a dignidade sacerdotal é

superior em poder. Quem, entre os reis e imperadores, pode ordenar um clérigo da Santa

Igreja ou depô-lo da sua função, por qualquer falta que por acaso haja cometido? Com

efeito, na hierarquia eclesiástica reserva-se um poder maior para depor do que para

ordenar, de modo que os bispos, ainda que possam ordenar outros antístites,

absolutamente não têm o poder de depô-los sem a autorização da Sé Apostólica.

Portanto, quem, ainda que pouco esclarecido, duvida que os sacerdotes precedem os

reis? Se estes, em razão dos seus pecados, são julgados por aqueles, com muito mais

justiça podem vir a ser julgados pelo Sumo Pontífice.

Numa palavra, todo bom cristão pode mais corretamente ser denominado rei do

que os maus príncipes, pois estes, ao buscarem os seus próprios interesses e não as

coisas de Deus, são inimigos de si próprios e ainda oprimem tiranicamente os

semelhantes, enquanto aqueles, ao procurarem a glória de Deus, se autogovernam com

severidade e constituem o Corpo de Cristo, Rei verdadeiro, e, ao assim procederem,

reinarão eternamente juntamente com o Supremo Imperador. Os maus príncipes são a

falange de Satanás, e o seu poder acabará na condenação eterna, juntamente com o príncipe das trevas, que reina sobre todos os filhos da soberba.

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Decerto não causa grande espanto o fato de maus bispos concordarem com um

rei iníquo, a quem amam, temem e seguem por causa das honrarias que dele

indignamente receberam. Tais pessoas, ao ordenarem simoniacamente qualquer

indivíduo, vendem Deus até mesmo por um valor desprezível. Ora, como os escolhidos

canonicamente estão indissoluvelmente unidos à sua cabeça, igualmente os maus estão

firmemente ligados àquele que é a fonte de toda a maldade, para agir especialmente

contra os bons. No entanto, não convém discutir com tais pessoas; é melhor suplicar a

Deus por elas, com lágrimas e pranto sincero, a fim de que Ele as livre dos laços do demônio, aos quais se encontram presas, e em seguida à provação as conduza ao

conhecimento da verdade.

Fizemos referência aos reis e imperadores que, inchados pela vanglória, não

exercem o poder conforme a vontade de Deus, mas em benefício próprio. Entretanto,

como é obrigação do nosso encargo admoestar e animar a todos, qualquer que seja a

ordem a que pertençam ou a função que desempenhem, ousamos, com a graça de Deus,

proporcionar aos príncipes seculares as armas da humildade, para que saibam conter as

ondas do mar e as torrentes da soberba. Sabemos efetivamente que a glória terrena e as

preocupações com as coisas mundanas tentam principalmente àqueles que governam,

levando-os à jactância, de modo que se esquecem da humildade e buscam a própria

honra, querendo imperar sobre os semelhantes.

Especialmente útil aos reis e imperadores, embora as suas mentes estejam

voltadas para a glória e honra pessoais, é descobrir um meio de se humilharem e de se

afastarem do prazer terreno. Portanto, que eles ponderem atentamente quão perigosa e

temível é a dignidade régia e imperial, porque alguns poucos que as exercem alcançam a

salvação, e os que pela misericórdia divina a atingem não vêm a ser glorificados pela

Santa Igreja através do juízo do Espírito Santo, da mesma forma como acontece com os pobres.

Na verdade, até hoje, desde o início do mundo, não encontramos nos registros

fidedignos sete reis ou imperadores cujas vidas hajam sido assinaladas com os sinais da

virtude e religiosidade, embora acreditemos que muitos deles, por causa da misericórdia

divina, tenham obtido a salvação. Por outro lado, é diferente a situação do incontável

número de pessoas que desprezam as coisas deste mundo.

De fato, não considerando os Apóstolos e Mártires, qual de entre os reis e

imperadores se notabilizou pelos seus milagres, como os bem-aventurados Martinho,

Antão e Bento? Qual de entre eles ressuscitou mortos, purificou leprosos ou curou

cegos? É bem verdade que a Santa Igreja louva e venera os imperadores Constantino, de

piedosa memória, Honório, Teodósio, Carlos e Ludovico, amantes da justiça,

propagadores da religião, defensores das igrejas, mas, entretanto, não declara que

brilharam com tanto esplendor, porque não receberam o dom dos milagres. Além disso, a

Santa Igreja não dedicou a nenhum deles basílicas ou altares, nem ordenou que se

celebrassem Missas em seu louvor.

É oportuno que os monarcas sejam cautelosos, pois, quanto mais se alegrarem

pelo fato de, neste mundo, estarem acima dos semelhantes, correrão muito maior risco de, na outra vida, serem lançados no fogo eterno. Daí estar escrito: ―os poderosos

sofrerão duramente os tormentos‖.

50

Os monarcas, efetivamente, terão de prestar contas a Deus por todos os súditos

que estiverem sob o seu poder. Como não é fácil aos simples fiéis salvar a própria alma,

é muito mais difícil a missão dos príncipes, que têm o encargo de milhares de seres

humanos. Se a Santa Igreja julga e pune severamente aquele que cometeu um

assassinato, como será então o caso daquelas pessoas que, impelidas pela glória deste

mundo, levam muitos milhares à morte? Devido ao assassinato de muita gente, embora

às vezes façam uma prece, dizendo ―minha culpa‖, no entanto, alegram-se intimamente

da amplitude da sua fama, não se lamentam do que fizeram e tampouco se arrependem de haver mandado os seus irmãos para o Tártaro.

Por isso, enquanto tais monarcas não se arrependerem de todo o coração e não

largarem tudo o que adquiriram derramando sangue, a sua penitência aos olhos de Deus

não produzirá os frutos da verdadeira contrição. Convém, pois, que sejam cautelosos e

recordem sempre o que acima dissemos: desde os primórdios do mundo, em todos os

reinos da terra, na incontável multidão dos reis, muito poucos foram encontrados

verdadeiramente santos. Por outro lado, se considerarmos os bispos da Sé Romana, que

se sucederam uns aos outros até chegarmos ao primeiro deles, o bem-aventurado Pedro,

poderemos enumerar entre os mais santos pelo menos uma centena, sem receio de

errarmos. E por que isto? Porque os reis e os príncipes da terra, seduzidos pela vanglória,

conforme escrevemos antes, preferem as suas próprias coisas às espirituais, enquanto os

piedosos bispos, desprezando a glória terrena, colocam as coisas de Deus acima de tudo.

Aqueles punem facilmente as ofensas recebidas e toleram sem nenhum pejo o

desrespeito e o pecado cometido contra Deus. Estes perdoam imediatamente aqueles que

os ofenderam, mas não punem com a mesma rapidez os delitos cometidos contra Deus.

Os primeiros, bem mais inclinados para as coisas terrenas, pensam muito pouco nas

coisas espirituais; os últimos, meditando sempre nas coisas celestes, não fazem caso dos bens terrenos.

Logo, todos os reis cristãos que desejam governar com Cristo têm de ser

admoestados, a fim de que não reinem atraídos pelas ambições do poder secular, antes

estejam atentos ao conselho do santíssimo Papa Gregório, que declara, no seu livro

Sobre o ofício pastoral: ―O mais importante de tudo o que deve ser observado consiste

nisto: quem age de acordo com as virtudes está obrigado, em razão das mesmas, a aceitar

o seu encargo, mas aquele que não é virtuoso não assuma qualquer função, embora a

tanto seja estimulado.‖

Ora, se pessoas tementes a Deus, embora amedrontadas e coagidas, ascendem à

Sé Apostólica, onde os que foram eleitos legitimamente se aperfeiçoam, graças aos

méritos do bem-aventurado Pedro, com quanto receio e tremor devem os homens subir

ao trono, onde mesmo boas pessoas humildes — como não se ignora de David e Saul —

se tornaram imperfeitos.

O que acima foi dito relativamente à Sé Apostólica, embora o saibamos pela

própria experiência, está escrito nos decretos do Papa S. Símaco: ―Ele (isto é, o bem-

aventurado Pedro) transmitiu um dote perene de méritos aos seus sucessores, juntamente

com uma herança de inocência.‖ E adiante acrescenta: ―Na verdade, quem se julga santo, duvide, pois a pessoa elevada ao ápice de tanta dignidade, no qual se necessita da virtude

adquirida pelos méritos pessoais, basta a que lhe foi transmitida pelo seu antecessor, pois

51

ou eleva homens de distinção capazes de suportar o peso do ministério, ou exalta

posteriormente os que foram escolhidos.‖

Aqueles, portanto, a quem a Santa Igreja chama espontaneamente e por

iniciativa própria para governar ou dirigir, não para a glória passageira, mas para a

salvação de muitos, aceitem humildemente o chamado e nunca se esqueçam do que S.

Gregório diz no citado livro Sobre o ofício pastoral: ―Na verdade, quando um homem

despreza a semelhança com os demais, torna-se igual a um anjo apóstata.‖ Assim

ocorreu com Saul. Após ter possuído o mérito da humildade, encheu-se de soberba, quando no auge do poder. Com efeito, primeiramente foi exaltado por causa da sua

humildade, mas reprovado mais tarde, em razão do seu orgulho, conforme o testemunho

de Deus que assim diz: ―Não te constituí à frente das tribos de Israel, embora aos seus

olhos fosses pequeno?‖ E adiante: ―Admiro-me como na ocasião em que ele era pequeno

aos olhos deles, era de fato grande perante Deus, mas quando se pareceu como tal a si

próprio, tornou-se pequeno diante do Senhor.‖

Que eles atentem o que Jesus Cristo diz no Evangelho: ―Não busco a minha

própria glória‖ e ―aquele de entre vós que desejar ser o primeiro, seja o vosso servo.‖

Oxalá ponham sempre o louvor a Deus acima do próprio, abracem e conservem

a justiça, resguardando os direitos de cada pessoa, não atuem ouvindo os conselhos dos

ímpios, mas adiram no íntimo às palavras dos bons, não queiram dominar e submeter a

Santa Igreja a si mesmos, como se ela fosse uma serva, mas procurem antes de tudo

prestigiá-la adequadamente e reconhecer nos seus sacerdotes, aos olhos de Deus, como

pais e mestres.

Com efeito, se somos obrigados a honrar nossos pais segundo a carne, quanto

mais aos nossos pais espirituais? Se aquele que amaldiçoa o seu pai ou a sua mãe carnais

merece o castigo da morte, o que não merece então aquele que maldiz a sua Mãe e o seu pai segundo o espírito?

Que os monarcas, levados pelo amor paterno, não coloquem os seus filhos à

frente do rebanho pelo qual Cristo derramou o seu sangue, se puderem encontrar alguém

melhor e mais útil, pois, embora amem muito mais os seus filhos do que Deus, não

devem prejudicar enormemente a Igreja. É notório que a pessoa que, de acordo com as

suas capacidades, não provê às próprias necessidades, demonstra não amar a Deus e ao

próximo, como deve fazer qualquer cristão. Se lhe falta a virtude da caridade, pouco

importa o bem que venha a praticar, pois carece igualmente do fruto da salvação. Mas, se

pratica todas as virtudes com humildade e observa o amor a Deus e ao próximo, segundo

convém, poderá esperar a misericórdia d‘Aquele que disse ―aprendei de mim, porque sou

manso e humilde de coração‖. Se o imitar humildemente, passará deste reino servil e

transitório para o verdadeiramente livre e eterno.

DOCUMENTO 13

Pedro Crasso, em defesa do rei Henrique IV. MGH, Libelli de Lite, I, p. 444.

52

[...] Mediante a autoridade das leis não ficou suficientemente demonstrado que o reino

foi transmitido de maneira inviolável ao rei Henrique? Por acaso, há na face da terra,

entre os mortais, uma pessoa tão ignorante, tão fraca de entendimento, tão desprovida de

razão, tão imprudente, tão louca, a ponto de pensar que é permitido ousar atentar contra

um Rei tão importante, o que, aliás, as sanções legais proíbem fazer a qualquer pessoa?

[...] O rei Henrique, por acaso, não possui o reino tanto de direito quanto pessoalmente?

Sua legítima possessão tem a mais justa origem, cujo testemunho são a paz profunda e a

tranqüilidade em que o reino se encontra desde o tempo de seu avô, o Imperador Conrado, de divina memória, que o recebeu com a bênção apostólica e transmitiu a

sucessão a seu filho Henrique III, de gloriosa memória. Enfim, de acordo com a legítima

sucessão de seu pai, o reino passou a Henrique IV com a mesma bênção apostólica [...]

53

2

A Hierocracia e a Teocracia Régia

no Século XII

2.1

AINDA AS QUESTÔES DAS INVESTIDURAS E DA LIBERTAS ECCLESIAE

Fora da Alemanha, as questões da investidura e da libertas Ecclesiae não

atingiram as mesmas proporções: de um lado, porque a realeza era fraca relativamente à

nobreza feudal; de outro, porque os reis não souberam criar ―igrejas nacionais‖. No

entanto, o Tractatus Eboracensis, escrito provavelmente no início do século XII,

compreendendo trinta e um opúsculos, cujo autor desconhecido é comumente

denominado Anônimo de York, constitui uma peça documental de primeira grandeza

para a compreensão de tais problemas, bem como a respeito da concepção relativa ao

poder régio teocrático e às suas relações com a autoridade espiritual, no tocante à

Inglaterra e à Normandia.

As teses mais originais e mais elaboradas, aliás bastante avançadas para a

época, acerca de tais assuntos, encontram-se nos opúsculos De Consecratione

Pontificum et Regum e Apologia Archiepiscopi Rotamagensis.1

As principais teses enunciadas nesses opúsculos são as seguintes: a) O poder da Igreja Romana não provém de uma instituição feita diretamente

por Jesus Cristo, mas, pelo contrário, decorreu de uma decisão político-religiosa dos

homens. Isto significa que o Papa não pode reivindicar, em todas as circunstâncias, uma

jurisdição ilimitada a ser exercida sobre toda a Igreja.

b) Os reis, devido à ação da Providência, são escolhidos e consagrados para

governar o povo de Cristo, incluindo a própria Igreja. É por esse motivo que o poder

régio teocrático é superior à autoridade pontifícia.

c) O poder religioso do monarca provém de Deus, através da sagração e unção

com o óleo do Crisma, transformando-o num cristo do Senhor, cujas obrigações

consistem na proteção da Igreja contra os hereges e cismáticos e no governo do povo de

Deus, segundo a lei evangélica. A realeza, superior ao sacerdócio, identifica-se com a

1 Cfr. MGH, Libelli de Lite, III. Apologia Episcopi Rotomagensis, p. 659-660; De Consecracione

Pontificum et Regum, p. 670, 674, 676.

54

natureza divina de Cristo, idêntica à do Pai. Assim sendo, os monarcas têm o direito de

investir os dignitários eclesiásticos, os quais lhes devem ser submissos, do mesmo modo

que o Mestre, Sumo Sacerdote, sempre esteve subordinado à vontade de Deus Pai,

criador e senhor do universo.2

Como vemos, a concepção teocrática defendida em tais opúsculos, atribuindo

ao monarca a suprema liderança em seu reino, simultaneamente secular e espiritual, dado

que ele era ungido para tal, em nome de Cristo, defrontava-se, porém, com uma questão

prática: era um prelado, detentor da autoridade espiritual que ungia o monarca. Neste pormenor, que não é de somenos importância, só fundamentaram os hierocratas para

sustentar o dirigismo papal em questões mesmo de natureza secular. Por isso, reiteramos

o que já dissemos no capítulo anterior: ao moverem-se no terreno teórico da hierocracia,

os defensores da teocracia régia jogavam no campo do adversário.

2.2 HUGO DE SÃO VICTOR (1096-1141)

Hugo fazia parte da conhecida Escola de São Víctor, da qual foi um dos

maiores expoentes. Tal escola foi um dos esteios do conhecido ―Renascimento do século

XII‖. Esta expressão encontra-se no renomado trabalho de Charles Haskins intitulado La

rinascità del dodicesimo secolo,3 que obviamente não poderemos analisar aqui em toda a

sua amplitude, mas que, enfim, ressaltou, sob o ponto do vista cultural, um dos

momentos áureos da Idade Média.

De um modo geral, digamos que em S. Víctor de Paris se praticou

essencialmente a chamada mística especulativa; assim, os seus monges, e entre eles

Hugo, não estavam particularmente vocacionados, ou sequer interessados, para o tratamento da problemática política. Entretanto, numa das suas obras, o De sacramentis

fidei,4 nosso Autor abordou, embora apenas em alguns fragmentos, temas candentes no

tempo, de natureza política. Se, noutros pensadores, as teses políticas decorrem de um

discurso filosófico, ético ou mesmo metafísico, em Hugo surgiram integradas numa

concepção englobante da Igreja; quer dizer, ele propôs teses eclesiológicas com

conseqüências políticas.

Hugo definiu a Igreja como o Corpo Místico de Cristo, tese de origem paulina

(1Cor 12, 12-28) que não constituía novidade para a época. A marca essencial de tal

corpo é a unidade da fé e da obediência ao Espírito Santo. Este primado da unidade

contribuirá decisivamente para a tese da unidade na chefia da Sociedade Cristã e para a

conseqüente afirmação hierocrática do Papa como detentor da plenitudo potestatis, não

só no plano eclesial, mas também no âmbito sócio-político. Para Hugo, neste momento,

o que está sendo objeto de análise é a Igreja, concebida de um modo orgânico, em que

cada membro, clérigo ou leigo, desempenha uma função específica, à semelhança do

organismo humano, em benefício do todo, não em proveito de si mesmo.

2 Cfr. Documento 14 3 Bolonha, II Mulino, 1972. A edição original foi publicada em Nova Iorque em 1927. 4 Cfr. Documento 15

55

Esta universalidade de membros da Igreja organiza-se fundamentalmente em

duas ordens: a dos leigos, que constituem o lado esquerdo do corpo e provêm às

necessidades materiais e temporais do todo, e a dos clérigos, à direita e com a

responsabilidade de distribuir pelos vários membros o que lhes é espiritualmente

necessário. E é precisamente dessa divisão que decorrem os dois poderes que regem o

povo, o espiritual e o temporal, cada um dotado de uma estrutura hierárquica, mas

submetendo-se ambos, como convém a um corpo único, a uma só cabeça, que é o Papa.

De fato, a vida espiritual é mais digna do que a secular, e o espírito, dada a sua natureza, é superior ao corpo. Daí decorre — e assim entramos decididamente no terreno da

hierocracia — a faculdade que o Papa tem de instituir e julgar os dignitários seculares,

bem como o seu privilégio de não ser julgado por ninguém senão por Cristo. Este

argumento estará presente nos textos de posteriores autores hierocratas, como o estará

também aquele, referido por Hugo, segundo o qual o poder espiritual precede o temporal

no tempo e em dignidade. A conclusão é óbvia: ―na Igreja, a dignidade sacerdotal deve

instituir, consagrar e santificar, por meio da sua bênção, o poder secular‖.

2.3

O DIREITO CANÔNICO

Merece especial consideração, no período histórico em exame, o Direito

Canônico, porque as proposições por nós já analisadas, e outras ainda, vieram a ser

incluídas na legislação oficial da Igreja e nos trabalhos de jurisprudência à mesma

atinentes.

Desde o século IV, a Igreja dispunha de coleções de cânones reunidas a partir

dos decretos conciliares, dos sínodos convocados pelos Papas e de normas isoladas por eles estatuídas. Tais cânones referiam-se à doutrina, à liturgia, à moral e à disciplina

clerical e dos fiéis como um todo.

A coleção de cânones mais antiga, ampla e sistematizada de que há notícia foi

preparada por Burcardo, clérigo de Mogúncia e posteriormente bispo de Worms. No

início do Século XI, reuniu em vinte livros, contendo 1785 capítulos, inúmeros

documentos autênticos e outros tantos forjados por ele mesmo, com o propósito de

viabilizar a reforma eclesiástica. Essa coleção recebeu depois o nome de Decretum

Burchardi.

Burcardo era adepto da corrente reformista filoimperial, conquanto defendesse

ao mesmo tempo a preeminência sacerdotal nos âmbitos doutrinal e espiritual, e a

possibilidade de os leigos possuírem benefícios eclesiásticos. Apesar disso, ele foi ―um

reformador sincero, que procurou tomar como ponto de partida a realidade existente na

sociedade‖.5

A geração de canonistas posterior a Burcardo foi bastante influenciada pelos

reformadores gregorianos, especialmente por Gregório VII. Eles procuraram nos

arquivos italianos documentos e fórmulas estatuídos pela Igreja Romana que

justificavam o programa reformador, conseguindo encontrar farto material.

5 KNOWLES-OBOLENSKY. Nova história da igreja. Petrópolis: Vozes, 1976, v.2 p. 154

56

A coletânea de cânones organizada pelo cardeal Deusdedit (1087), disposta em

quatro livros, reunia 1175 documentos relativos em particular ao primado romano e às

propriedades da Santa Sé.

Ivo, bispo de Chartres entre 1091 e 1116, por volta do 1093-1094, organizou a

sua coletânea de cânones a partir daqueles estatuídos na época de Carlos Magno e de

seus sucessores, bem como dos já recolhidos por Burcardo.

Nessa obra, Ivo serviu-se do método dialético, que na época gozava do grande

prestígio. Graças ao mesmo, inferiam-se de princípios logicamente estabelecidos as proposições derivadas dos mesmos, descobrindo assim as contradições eventualmente

existentes nos textos canônicos. Desde de então, o Direito Canônico e a Dialética foram

consideradas disciplinas didática e intelectualmente organizadas, apresentando técnicas e

métodos de ensino específicos.

João Graciano, monge camalduense, é considerado o pai do Direito Canônico.

Professor de teologia no studium da sua Ordem em Bolonha, aí redigiu, por volta de

1140, a Concordia discordantium canonum, conhecida mais tarde como Decreto de

Graciano.6

Além do reunir textos, Graciano inspirando-se nos tratados filosóficos e

teológicos surgidos no momento, alicerçados no método dialético, citou, transcreveu e

analisou cânones e decretais pontifícias, mostrando a coerência existente entre os

mesmos, apesar das suas aparentes discordâncias e contradições. A importância do uso

do método dialético no século XII é sobejamente conhecida. Das artes do Trivium foi

então considerada a fundamental, depois do primado da Gramática no Renascimento

Carolíngio.

O Decreto, reunindo principalmente os textos relacionados com o programa

reformista no respeitante à disciplina clerical, está organizado em três partes. A primeira divide-se em 101 distinctiones. Começa por um discurso sobre a noção e a divisão do

direito. Seguidamente, trata das fontes do direito canônico: os cânones conciliares e

sinodais, as decretais, além dos comentários a tais documentos escritos pelos Padres da

Igreja. O Decreto discorre depois sobre o status clerical nos seus vários graus,

prerrogativas e obrigações dos seus membros e especialmente a respeito das qualidades

requeridas para alguém poder ser eleito bispo.

A segunda parte do Decreto compreende 36 casus, subdivididos em questões.

Aborda os negócios eclesiásticos, o poder episcopal e a sua jurisdição, os direitos,

deveres e obrigações do clero regular e trata ainda acerca dos bens da Igreja.

A terceira parte está estruturada em 5 distinctiones, abordando tudo no

concernente ao culto, aos sacramentos e aos sacramentais.

6 MIETHKE, J. La teoria della monarchia papale nell‘ Alto e Basso Medievo. Mutamenti di

funzione. In: DOLCINI, Carlo (org.). Il pensiero politico Del Basso Medievo. Bologna: Pàtron,

1983 p. 128: ―Il Decretum si impose nelle scuole superiori di diritto d‘Europa, e soprattutto nel luogo del suo sorgere, Bologna come libro di texto paradigmatico, anzi conquistò addirittura il

monopolio. Come i ‗legisti‘ si occupavano del Corpus iuris giustianeo, come i teologi

commentavano la Bibbia così anche i ‗decretisti‘, come essi stessi si facevano chiamare,

interpretavano il Decretum com il método della glosa in apparati, summae e quaestiones‖.

57

Seria, porém, difícil encontrar no Decreto o fio condutor de um pensamento

político, em razão de o mesmo estar disperso nas análises e comentários ao longo da

obra.

No entanto, um dos documentos mais importantes para o pensamento

hierocrático recolhido por Graciano é a célebre Donatio Constantini7 forjada na

chancelaria papal entre os séculos VIII e IX, com vista a legitimar especialmente a

jurisdição temporal do Papado sobre os territórios que constituíam o Patrimonium Petri.

Segundo esse documento,8 o Imperador Constantino (305-337), após ter sido curado de

lepra pelo Papa S. Silvestre I (314-337), por gratidão, entregou-lhe o governo do Império

do Ocidente e da cidade de Roma, retirando-se para Constantinopla.

Enfim, a partir do texto do Decreto, aos poucos, foram surgindo duas correntes

de pensamento canonista: uma defensora da autonomia e independência entre os poderes

espiritual e temporal, no tocante, às respectivas esferas de atuação de cada um deles; a

outra, defensora da preeminência moral, político-jurisdicional e legal do poder espiritual

sobre o temporal. Esta última irá contribuir efetivamente para a evolução do pensamento

hierocrático.9

2.4 SÃO BERNARDO E A ALEGORIA DOS DOIS GLÁDIOS

Entretanto, quando se deseja ter um conhecimento amplo e exato do

pensamento político medieval, no que respeita ao tema que estamos a examinar, de

modo algum podemos ignorar a contribuição progressiva das idéias dos canonistas, de

modo particular no que concerne aos vários significados e interpretações atribuídos à

alegoria dos dois gládios, cuja origem os estudiosos normalmente imputam a São Bernardo de Claraval (109l-1153),

10 assunto esse que ele tratou no seu livro titulado De

consideratione ad Eugenium Papam.‖11

Antes, porém, de vermos como o Doutor Melífluo abordou esse tema,

examinemos o teor geral daquela mencionada obra. Ela foi redigida em várias etapas e,

na verdade, teve como objetivo precípuo, não a defesa de uma preeminência política do

7 Cfr. BERTELLONI, Francisco. El Pensamiento politico papal en la Donatio Constantini. In:

SOUZA, José Antônio de (org.). Pensamento político na Alta Idade Média. Santos, São Paulo: Leopoldianum-Loyola, 1998, p. 33-59. Texto em português, p. 54-59 8 Cfr. Documento 16. 9 MIETHKE, J. La teoria della monarchia..., op. cit., p. 135: ―[...] non se seguirà nei dettagli la

disputa tra le due correnti principali, quella che la critica definisce dei ‗dualisti‘ (che accordavano al potere temporale um diritto indipendente, associato però al dovere di collaborazione, anche se

uma preminenza indiscussa, quanto alla dignità, rimaneva attribuita al potere spirituale) e quella

degli ‗ierocratici‘ (che sustenevano di vedere nell‘ Imperatore solo um incaricato del papa, dotado

di uma autorità non solo secondaria, ma anche derivata.‖ 10 Cfr. MARTINS, Waldemar. S. Bernardo de Claraval e o De gratia et libero arbitrio. In:

SOUZA, José Antônio de (org.). Filosofia medieval – estudos e textos. Santos, São Paulo:

Leopoldianum-Loyola, 1986, p. 176-191. 11 Servimo-nos da edição dessa obra que se encontra na Patrologia latina, volume 182.

58

Papa sobre a Cristandade; tal é, por exemplo, o conteúdo do capítulo VI do Livro I, em

que Bernardo insiste com Eugênio III (1145-1153) seu antigo discípulo, para que

reconheça a competência própria dos príncipes seculares no tocante ao julgamento dos

litígios temporais. Ao contrário, seu Autor quis definir, ou melhor, relembrar qual é o

verdadeiro papel do Sumo Pontífice no interior da Igreja, chamando o Papa à

consideratio acerca desse assunto e de outros problemas com os quais estava envolvido,

incompatíveis com o seu status e que o afastavam de sua missão principal.

No tocante ao supremo governo da Igreja e à preeminência jurisdicional do Papa sobre os outros dignitários eclesiásticos, no Livro II da obra em apreço há um

longo passo12

que ilustra muito bem o pensamento de Bernardo acerca deste assunto.

Todavia, não há qualquer dúvida de que textos, cuja finalidade era apenas

ressaltar o específico poder papal relativo ao governo da Igreja, hajam sido entendidos,

mediante um processo habitual na Baixa e Tardia Idade Média, como respeitantes ao

exercício do supremo poder político do Sumo Pontífice sobre a Cristandade, dado que,

aos poucos, como teremos ocasião de ver, esta passou a ser identificada com aquela.13

E

textos desse tipo nas mãos dos hierocratas se prestavam muito bem a formular uma

interpretação de acordo com sua ótica e interesse político.

Isto posto, é no Livro IV, cap. 111,14

do De consideratione que o Abade de

Claraval se referiu à alegoria dos dois gládios, passo esse que, como sabemos, se

encontra no Evangelho de Lucas, o qual, mais tarde, alguns dos hierocratas irão utilizar

para atribuir ao Papa o direito de uso de ambos, mas confiando a utilização do material

aos governantes seculares e reservando para si o uso do espiritual e igualmente a

competência para instituir e destituir os governantes seculares.15

A par e em conseqüência disso, para um bom número de estudiosos, a citada

alegoria significou, ao longo da Idade Média, a temática das relações entre o poder da Igreja e o do Imperador ou do Sacerdotium com o Imperiuin. Tal temática estaria na

senda comecada com o Papa Gelásio I, ao estabelecer, de um lado, as esferas de atuação

e competências específicas dos dois poderes, e, de outro, a preeminência do poder

espiritual sobre o temporal, por causa de sua missão específica ser mais excelsa.

Mas a alegoria das duas espadas originária e verdadeiramente de modo algum

significou esse confronto entre a Igreja e o Império. De fato, os textos canônicos falam-

nos de um gládio material ou gládio de sangue, cuja denotação corresponde à potestas

regia temporalis, atribuída à Igreja, como também lhe compete o gládio espiritual. A

espada (gladius ou mucro) é o símbolo da coerção própria do poder régio; no caso do

gládio espiritual, significa a faculdade que a Igreja detém de impor penas de natureza

espiritual (a excomunhão, em casos extremos); quanto ao gládio material, significa,

também alegoricamente, a competência para impor penas de natureza material. Esta

12 Cfr. Documento 17 13 Sirvam de exemplo, a propósito, os textos de Inocêncio IV, Egídio Romano, Tiago de Viterbo, de Bonifácio VIII. 14 Cfr. Documento 18. 15 Tal foi, por exemplo, como veremos no próximo capítulo, a tese proposta pelo canonista inglês

Alano.

59

faculdade foi transmitida por Cristo à Igreja, embora o seu exercício deva

necessariamente ser delegado por esta ao Imperador, porque de jure os sacerdotes não

podem se envolver com causas de sangue. Desta concepção, ainda no século XII, como

veremos, nos ambientes eclesiásticos, ira derivar uma outra idéla, segundo a qual o

Imperador é filho, defensor e advogado da Igreja.

Esta afirmacão, originariamente decerto que não exprimia de modo necessário

nenhum suporte para as estruturas hierocráticas de pensamento. Mas está igualmente

fora de dúvida que a referida tese, mais tarde, foi defendida enfaticamente apenas pelos defensores da hierocracia. Assim sucedeu, não só porque o processo histórico do

pensamento político a tanto chegou, mas também devido ao fato de o conceito de

Imperium, na sua amplitude teórica global, dever ser entendido a partir de sua natureza,

ao menos parcialmente, espiritual, por exemplo, quanto às suas causas eficiente e final,

como no século XIII irão propor Inocêncio III e Inocêncio IV, a qual conduz, por forca

dos seus próprios elementos constitutivos, à teoria hierocrática.

Se integrado no organismo teórico da teocracia régia — na acepção de plena

autonomia do poder temporal e do seu dirigismo relativamente ao poder espiritual — os

seus fundamentos de apoio acabam por reverter em favor da própria hierocracia.

Desvinculado da inspiração teocrática — régia ou eclesiástica —, é simplesmente

impensável para uma mente medieval. O Imperador recebeu do Papado o officium de ser

o braço ―armado‖ da Igreja. Não se tratava, por assim dizer, de reinar sobre os outros

reis. Significava, na verdade, exercer, por delegação papal, a coerção material sobre

todos os leigos, missão essa canonicamente vedada aos sacerdotes. A tarefa do

Imperador, mesmo que remetida ao terreno secular, tinha uma finalidade religiosa,

espiritual e sobrenatural.

Ora como omnes actiones christianorum sunt ordinatae ad consequendam vitam aeternam, postulado e fonte a partir da qual se desenvolveu toda a especulação

política medieval, e se os súditos do Império também eram membros da Igreja, e

igualmente ainda era um fato inquestionável que toda a ação de qualquer fiel, mesmo

num plano temporal, tinha uma finalidade sobrenatural, já que estava - ou devia estar -

ordenada para a vida eterna, conseqüentemente, o poder universal não era apenas,

portanto, aquele que não só de jure mas também de facto submetia a si todos os homens.

A potestas universalis era sobretudo um poder que subordinava a si cada homem na

universalidade do seu ser e do seu agir. Entendido assim, tal poder só podia permanecer

nas mãos da Igreja. O Imperador era considerado então como um ministro da Igreja

numa determinada esfera de competência. Por isso, a autonomia do poder

imperial/secular só será adquirida à custa da aniquilação da alegoria dos dois gládios.

Mas a hierocracia teve à sua disposição a alegoria mediante uma transformação sutil do

seu significado de origem, expressa na substituição das palavras gladius materialis por

gladius temporalis (surgida, pela primeira vez, mais tarde, em 1209, num texto de

Inocêncio III). A par da expressão gladius temporalis aparece a de gladius saecularis,

embora a primitiva expressão, gladius materialis, se mantivesse nalguns textos

juntamente com essas outras. Devemos, pois, estar atentos ao momento em que a corrente de pensamento

canonista que defendia, inicialmente de modo discreto, a supremacia pontifícia sobre a

60

Cristandade nos planos espiritual e secular passou a modificar sutilmente o significado

da alegoria dos dois gládios e a usar em proveito próprio a expressão espada material.

Por sinal, Rosario Castilio Lara nos esclarece como isso aconteceu: ―El estrecho

parentesco entre el poder coactivo y el poder político en general, del cual el primero

viene a ser una subespecie, es la clave para explicar cómo se pasó de un sentido primario

coactivo a otro político en la aplicación de la figura [do gládio material]. El poder

coactivo material estatal no es sino una parte de la potestad que el soberano ha recibido

de Dios, así como el poder coactivo espiritual no es sino parte de la plenitudo potestatis del Romano Pontífice. Era, pues, fácil pasar insensiblemente de la parte al todo, y tomar

todo el poder — en lugar de una faceta: la coactiva.‖16

Enfim, a alegoria, mesmo em sua pureza original, continha todos os elementos

para a edificação da teoria política hierocrática.

2.5

HIEROCRACIA E TEOCRACIA NA SEGUNDA METADE DO SECULO XII:

Os Pontífices e o Imperador

A problemática relativa à hierocracia e à teocracia régia, na segunda metade do

Século XII, envolveu, por um lado, os papas Adriano IV (1154-1159) e Alexandre III

(1159-1181) e, por outro, Frederico Barba Ruiva (1152-1190) e Henrique Plantageneta

(1154-1189), rei da Inglaterra, e os seus respectivos assessorcs e aliados.

Em 1152, Frederico Staufen, duque da Suábia, foi eleito rei da Alemanha,

sucedendo ao seu tio Conrado III (1138-1152). Desde então, quis ser chamado de Imperador, com a intenção evidente de atribuir à coroação pontifícia um simples valor de

reconhecimento.

O Barba Ruiva tinha como objetivos políticos fortalecer o poder imperial, à

semelhança do que fora feito por Constantino I, Justiniano I (527-565), Carlos Magno,

Otão I (936-972) e Henrique III (1039- 1056), bem como restabelecer a hegemonia

territorial do Império sobre Roma e a Península Itálica. Isso, de um lado implicava

superar a desagregação feudal, então dominante em seu país, e, de outro, controlar as

comunas italianas e o Papado. Se, nos séculos X e XI, tais metas foram atingidas graças

à investidura, esta estratégia tornara-se ao menos legalmente inviável desde a

Concordata de Worms (1122), celebrada entre o Império e o Papado. Urgia encontrar um

outro meio prático para a concretização de tais objetivos, embora existisse a oposição de

grande parte dos nobres, das comunas italianas e do Papado, que não desejavam perder

as suas liberdades político-econômicas relativamente à tutela germânica.

16 CASTILLO LARA, R. Coación eclesiastica y Sacro Romano Imperio. Estúdio jurídico-

histórico sobre la potestad coactiva material suprema de la Iglesia em los documentos conciliares y

pontificios del período de formación del Derecho Canónico Clasico como um presupuesto de las

relaciones entre sacerdotium y imperium. Torino, 1956, p 233-234

61

Uma das primeiras medidas tomadas por Frederico I foi, não ignorando a

estrutura feudal de seu país, proclamar uma trégua com vista a pacificar o reino. Os

transgressores da mesma seriam duramente castigados, correndo o risco de até perder

seus bens fundiários que seriam anexados ao domínio suevo, isto é, do Imperador.

Um outro procedimento adotado pelo Barba Ruiva, na linha em que acabamos

de mencionar, consistiu em ampliar o patrimônio familiar, base do território imperial,

adotando a política de casamento de interesse para sua família. Baste mencionar apenas

dois exemplos: ele próprio, pouco depois, casou com Beatriz, herdeira do condado da Borgonha; e, mais tarde, articulou o casamento de seu primogênito Henrique com

Constança de Altavilla, herdeira dos reis normandos da Sicília.

Em 18 de junho de 1155, Adriano IV coroou Frederico I como Imperador

Romano-Germânico. Desde logo, o novo monarca, devido à ascendência política que

rapidamente passou a exercer na Alemanha e à força militar de que dispunha, começou a

preparar um exército para levar a bom termo os seus intentos com referência à península

italiana.

O Imperador igualmente auxiliado pelos Glosadores de Bolonha e por seus

assessores políticos, cuja personagem mais expressiva era o teólogo Rinaldo de Dassel,

passou a incluir no Corpus Juris Civilis as leis que ia promulgando, com o propósito de

demonstrar ser o legítimo herdeiro dos antigos Césares, aos quais atribuía o epíteto de

―divinos‖, bom como a procurar no citado texto subsídios teóricos e fórmulas que

confirmassem a preeminência da autoridade imperial, como a suprema no plano

temporal, inclusive sobre o poder sacerdotal. Aliás, é oportuno ressaltar, para o Barba

Ruiva essa autoridade não era apenas um fato político, mas seguramente religioso e

sagrado, a ponto de estar igualmente convencido de que, só fosse necessário, dada a sua

amplitude, podia intervir no âmbito espiritual. A autoridade imperial, em contrapartida, impunha a Frederico I uma

consciência plena do dever inerente à mesma, que o obrigava a trabalhar continuamente

em proveito do bem da sociedade, o qual para ele se materializava na obtenção e

manutenção da pax e da iustitia.

Assim, desde 1157 a cúria do monarca passou a acrescentar o termo Sacro à

expressão Império Romano em todos os documentos que expedia, pretendendo desse

modo reforçar a idéia da origem divina do poder imperial e vincular as tradições romana

e judaico-cristãs relativas ao mesmo. Como é evidente, e já fizemos notar, o império

latino medieval reforçava-se na proporção em que se atribuísse a si mesmo uma natureza

sagrada: assim se distinguia na sua especificidade do império pagão da Antigüidade;

mas, assim também, se colocava numa posição de relativa fragilidade face à instância

sagrada por excelência: a Igreja e, à cabeça desta, o Papado.

Para Frederico I, o Império era único e universal; quer dizer, o seu titular

possuía e exercia uma auctoritas17

moral sobre os demais príncipes da Chistianitas, o

que não atentava contra a autonomia dos mesmos nos seus próprios territórios, desde que

eles não tolhessem a e efetivação dos objetivos da política imperial, os quais, conforme

17 FREISING, Oto de. Gesta Friderici I Imperatoris, 1, II, cap. 21, MGH Ss, XX, p. 405:

―Legitimus possessor sum. Eripiat quis, si potest, clavam de manu Herculis‖.

62

antes fizemos referência, se resumiam no exercer, de fato e de direito, uma autoridade

plena e indivisa sobre a Alemanha e a Itália.

Como estamos a ver, a contribuição dos juristas bolonheses para a eleboração

do pensamento político do Barba Ruiva foi deveras significativa. Se a doutrina também

proposta por eles, de que ambos os poderes eram autônomos nas suas respectivas esferas

de ação (cfr. Glossa Acursiana, à Novella 6), dado que ambos provinham diretamente de

Deus (Novella 73), havia, no entanto, certas questões práticas que necessitavam duma

solução. Tais eram os casos relativos à competência legislativa e jurisdicional do Imperador; quer dizer, por exemplo, até que ponto o clero realmente não devia pagar

impostos às autoridades seculares, costume esse ainda não legalizado àquela época (só o

será durante o IV Concílio de Latrão em 1215), ou qual era a extensão jurisdicional do

tribunal imperial em matéria civil e penal.

A solução para tais problemas os glosadores a apresentaram discutindo uma

tese, já referida por nós, proposta no Decreto: a Doação de Constantino. Para eles,

Constantino, embora devesse toda honra e respeito à Igreja, não podia primeiramente

impor um desejo seu aos sucessores (par in parem non obligat); em segundo lugar,

aquela doação carecia de fundamento legal, porque ela estaria pondo em risco a

estabilidade do Império; e, em terceiro, porque a lex digna (Institutas, 2, 17, 8)

determinava que os Imperadores tinham a obrigação moral de governar de acordo com a

legislação em vigor.

Estabelecido o princípio doutrinal, mediante o qual os glosadores atacavam

diretamente o fundamento que os decretistas alegavam em favor da legalidade e validade

da Doação, então ficava fácil definir que as leis imperiais, no tocante às questões

seculares, tais como as anteriormente mencionadas, eram soberanas, e o Imperador tinha

ainda a obrigação moral de as respeitar e fazer com que fossem cumpridas. No entanto, da teoria à prática há sempre uma enorme distância a ser transposta.

Neste caso, para tanto, havia a vontade política de Frederico I e certamente ele tinha

consciência de que, para levar adiante seus projetos, iria entrar em atrito com muitos

adversários.

Nesse momento, o cardeal Rolando Bandinelli, após uma brilhante carreira

como professor de Direito Canônico em Bolonha, desempenhava o cargo de chanceler

da Igreja Romana, tendo realizado com êxito importantes missões diplomáticas em nome

da Sé Apostólica.

Em outubro de 1157, Frederico I veio a Besançon tomar parte numa Dieta, na

qual os nobres do condado de Borgonha lhe deviam prestar homenagem pelo seu

casamento com Beatriz, herdeira desse território. Para aí se dirigiram também os

cardeais Rolando e Bernardo, portadores de uma carta do Papa para o Imperador.

A missiva papal foi lida e traduzida por Rinaldo de Dassel aos membros do alto

clero e da alta nobreza presentes na assembléia. Adriano IV censurava o Imperador por

não haver tornado as medidas necessárias para a libertação do arcebispo Esquil, de Lund,

que tinha sido assaltado e aprisionado por bandidos ao passar pela Borgonha. O Papa via

aqueles crimes como pecados graves, considerando que haviam sido cometidos contra uma pessoa consagrada ao serviço de Deus e, por isso mesmo, a gravidade daqueles atos

exigia uma reparação moral na mesma proporção por quem não apenas exercia a

63

autoridade sobre a região, mas também desempenhava uma função ética especial em

favor da Igreja-Cristandade.

Do fato, algum tempo antes, Adriano IV havia elevado Lund à Categoria de

arcebispado, redistribuindo e criando novas dioceses sufragâneas, para algumas das

quais nomeou bispos, sem consultar Frederico I, o qual ficou muito irritado com esses

procedimentos nocivos ao jogo do poder numa área de influência do Império.

O Santo Padre, a propósito do papel de minister Ecclesiae a ser exercido pelo

Imperador, lhe recordava que não bastava só a eleição efetuada pelos príncipes eleitores do Reich para que o escolhido fosse considerado Imperador e passasse a ter o direito de

governar o Império. Era indispensável que essa pessoa fosse sagrada e coroada pelo

Sumo Pontífice ou seu representante. Sob a ótica eclesiástica, o poder secular só revestia,

pois, de uma qualidade, diaconal ou subdiaconal, nunca sacerdotal, transmitida mediante

a unção, cuja origem remontava aos reis de Israel e, depois, aos soberanos visigodos,

merovíngios e carolíngios.

Adriano IV dava a entender que, tendo a Igreja Romana restaurado o Império,

possuía o direito de exigir do respectivo titular o cumprimento fiel dos seus deveres de

advocatus et minister da Igreja; assim, a atitude de Frederico I revelara ingratidão e, pior

ainda, negligência e irresponsabilidade.18

Na carta, o Pontífice dizia também que, se apesar do incidente envolvendo o

arcebispo Esquil fosse mantida uma convivência harmônica entre o Papado e o Império,

ia conceder outros tantos beneficia, ainda maiores, além dos que já concedera a

Frederico, em especial a coroa imperial. Ora, aquela palavra latina possuía dois

significados completamente diferentes em alemão: um deles (Wohltat,), no sentido

genérico, queria dizer vantagens, benefícios; o outro (Lehen), ao contrário, na

terminologia jurídica da época, denotava feudos. Foi empregando este segundo significado que Rinaldo traduziu a palavra usada por Adriano IV, que dava à sua

expressão genérica de benevolência o valor jurídico de promessa de um senhor para com

seu vassalo, no tocante a aumentar o número de seus feudos.

Este passo da missiva papal incomodou profundamente o Imperador e a

nobreza germânica, que protestaram enfaticamente, declarando que o Império não

provinha do Papado nem era um feudo da Sé Romana.

Pouco depois, Frederico I, numa circular dirigida aos bispos da Alemanha,19

para além de expor longamente os acontecimentos de Besançon e a traição dos legados

pontifícios, que, apresentando-se como portadores de uma mensagem do Papa muito

honrosa para com ele, acabaram por insultá-lo desrespeitosamente, proclamando que

devia o benefício da coroa imperial ao Sumo Pontífice, de maneira solene afirmava ser o

ungido de Deus, para governar o reino e o Império, de quem diretamente havia recebido

o poder para tal, através da escolha dos príncipes eleitores, e não do Papa.

Como foi usual entre defensores da teocracia régia, Frederico I apelava para o

imperativo de S. Pedro ―temei a Deus, honrai o Rei‖ (1Pd 2, 17) e acusava o Santo Padre

18 Cfr. Documento 18. 19 Cfr. Documento 19.

64

de assim desobedecer à vontade de Deus, pela qual o mundo seria governado pela espada

material e pela espiritual, sem que houvesse intromissões do Pontífice na esfera secular.

No ano seguinte (1158), o Imperador reuniu todo o episcopado alemão em

Ratisbona e reiterou a sua visão sobre o problema em causa. Por sugestão dos prelados,

escreveu uma carta ao Papa perguntando-lhe qual significado ele tinha atribuído à

palavra beneficia contida na sua epístola. Adriano IV respondeu, aludindo somente aos

favores que a Igreja concedera ao Império através dos tempos, sem tocar no assunto em

debate. Este clima de incerteza e desconfiança mútuas agravou-se quando o monarca,

em julho daquele ano, partiu para Itália a fim de submeter o norte da Península ao seu

controle político-fiscal. Em novembro, após longa e vitoriosa campanha militar,

Frederico I alcançou os seus objetivos. O evento não era feliz para o Papado, cujos

territórios ao forte estavam cercados pelas forças de um adversário em potencial.20

Nessa ocasião, o Imperador reuniu uma Dieta em Roncaglia. De novo apoiado

nos romanistas, proclamou os seus direitos supremos com tal amplitude que chegou a

exigir ―la restitution des droits de la couronne impériale sur les villes italiennes en

appliquant les règles du Droit Romain au droit féodal [...].21

Ainda na mesma Dieta, mediante a Constitutio de regalibus, Frederico I

declarou que o seu poder abrangia o próprio Patrimônio de S. Pedro, passando a exigir

que os seus habitantes lhe pagassem impostos. Simultaneamente, ordenou que os bispos

italianos, a partir desse momento, se considerassem seus vassalos. Em seguida, passou a

exercer uma influência mais direta nas eleições episcopais na Alemanha e Itália

Setentrional. Assim se anulou praticamente o estipulado na Concordata de Worms. Foi

então que, graças a esta medida, Rinaldo de Dassel veio a ser eleito arcebispo de Colônia

em 1159, acumulando a função de chanceler do Império. O cesaropapismo germânico ressurgia de novo.

Os protestos de Adriano IV não surtiram quaisquer efeitos, o que levou o Papa

a organizar a liga das cidades da Itália Setentrional, sob a liderança de Milão, para

oferecer resistência ao Imperador.

Adriano IV morreu em 1º de setembro de 1159. No dia 7, os cardeais reuniram-

se na Basílica de S. Pedro e a maioria escolheu Rolando Bandinelli como novo Papa, o

qual tornou o nome de Alexandre III. Outros deram o voto a Otaviano de Monticelli que

imediatamente arrebatou o manto pontifício e, em seguida, se apresentou ao clero e ao

povo romano como sendo o eleito, sob o nome de Vítor IV.

Os eleitores de Alexandre III mantiveram a sua posição e se refugiaram em

Ninfa, onde o mesmo foi coroado. Os partidários de Vítor IV igualmente o coroaram.

Em outubro, vinte e dois cardeais escreveram uma carta a Frederico I,

relatando-lhe o que se passara. Poucos dias depois, o antipapa e cinco cardeais seus

partidários escreveram também ao Imperador e a todo o clero latino. Ele procurou fingir

20 Cfr. PACAUT, Marcel. Alexadre III. Paris: Vrin, 1956, p. 80-86 21 QUILLET, J. Lês clefs du pouvoir au Moyen Age. Paris: Flammarion, 1972, p. 48. Cfr. Também

PARADISI, Bruno. Il pensiero político dei giuristi medievali. In: Storia delle idee politiche,

economiche e sociali. Torino: Unione Tipográfica Torinese, 1983, v.2, p. 236

65

neutralidade em face da questão, conquanto o cisma lhe conviesse bastante, por causa de

seus objetivos políticos, apesar de tratar Vítor IV como Papa e Alexandre III como o

―chanceler Rolando‖22

mas a fim de dirimir a contenda, como se fosse o árbitro supremo

da Cristandade e da Sé Apostólica, ele, por auto-iniciativa, certamente inspirado em

Constantino e no Concílio de Nicéia, convocou um concílio a se realizar em Pavia.

Nesse ínterim, Alexandre III excomungou o antipapa e os seus partidários

eclesiásticos, por atentarem contra a unidade da Igreja e assim estarem a provocar um

cisma na Cristandade. O Concílio de Pavia foi aberto em 5 de fevereiro de 1160, com a presença de

um número razoável de dignitários eclesiásticos da França, da Inglaterra, da Itália e da

própria Alemanha. O Imperador justificou seu procedimento quanto a convocá-lo e a

instaurá-lo, alegando que seus predecessores, diante de problemas semelhantes, haviam

adotado medida análoga. Alexandre III, dizendo que tinha sido eleito canonicamente de

acordo com a bula In nomine Domini de Nicolau II, recusou-se a comparecer e, em 24 de

março, excomungou Frederico I e desligou os seus súditos do juramento de fidelidade

que regularmente lhe deviam, visto ele ter ilegalmente convocado um concílio23

e

igualmente aderido ao cisma do antipapa.

O pensamento de Alexandre III a este propósito está expresso na bula Licet

omnes,24

de agosto de 1164, endereçada ao arcebispo de Upsala, na qual, certamente

inspirado em Hugo de São Víctor, sustenta em substância a tese do primado petrino e a

concepção orgânica da Igreja, segundo a qual, à semelhança do que se passa com os

órgãos do corpo humano, cada membro desempenha uma função específica, em

conseqüência das quais o Papa detém a plenitudo potestatis in spiritualibus.

Como vemos, uma vez mais, as querelas políticas medievais concernentes à

relação entre os poderes casaram-se freqüentemente com questoes eclesiológicas. Nesta época, porém, o espírito e as conseqüências dos ideais da reforma

gregoriana tinham-se alargado a todos os aspectos da vida quotidiana, dilatando o âmbito

de influências e de atuação de um clero piedoso e dinâmico e da autoridade espiritual, de

modo que ―d‘une part, elle n‘agit temporellement qu‘au nom de l‘idéal chrétien et elle ne

prétend jamais à une souveraineté directe et absolue sur le monde, particulièrement sur

22 LLORCA et al. Historia de la Iglesia Catolica. Madrid: BAC, 1963, v.2, p. 447. 23 PACAUT, M. La théocratie, l‘Eglise et le pouvoir au Moyen Age. Paris: Desclée, 1989, p. 97:

―En excomuniant Barberousse, coupable d‘avoir convoqué le concile san son avis et d‘avoir ainsi,

en usurpant un droit appurtenant exclusivement a l‘Eglise, porté gravement atteinte à celle -ci –

done d‘avoir commis contre elle une faute jugée finalement en function de critères religieux - ,il exerce sa souveraineté religieuse. Il souligne…qu‘en réunissant de lui-même l‘assemblée

conciliaire le monarque a contredit la prérrogative dogmatiquement reconnue au pape et aux

evêques sucesseurs dês Apôtres, tenant d‘eux (et plus spécielement le pape) le magistère supreme,

et qu‘il s‘est donc rendu coupable d‘un péche, aggravé encore par le schisme qui favorise le mal,au point que sa conduite doit être sanctionné par une punition religieuse (l‘excommunication). En

revanche, il ne le depose pas, parce que la déposition serait une mesure politique arrête em

consideratión d‘une faute religieuse...et parce qu‘il estime ne pas avoir le droit de le faire [...]‖. 24 Cfr. Documento 21.

66

l‘empereur et les princes, d‘autre part elle ne s‘exerce pas négativement, contre l‘erreur

ou contre le peché, mais pour promouvoir l‘idéal chrétien [..].‖25

Esta observação de Marcel Pacaut nos ajuda a compreender o pensamento de

Alexandre III, não só quanto à autoridade pontifícia, mas também no respeitante à

firmeza da sua atitude para com Henrique II Plantageneta, rei da Inglaterra, quando este

promulgou as Constituições de Clarendon e tentou que as mesmas fossem rigorosamente

cumpridas em todo o reino a partir de 1164. Henrique sucedera a Estêvão de Blois

(1135-1154), em cujo governo a Igreja se libertara da tutela régia e gozara de total liberdade e autonomia jurisdicionais em relação à nobreza, ao ponto de os clérigos,

mesmo se cometessem crimes de natureza civil, estarem isentos do ser julgados pela

Coroa. No entanto, o novo monarca quis que a situação retrocedesse nos seus domínios

insular e continental, pretendendo anular os abusos e controlar o clero e a nobreza, tendo

em vista centralizar o poder político e a administração pública. Para atingir tais

objetivos, alegou os antigos costumes caídos em desuso e passou a intervir discretamente

nas eleições episcopais, sugerindo candidatos da sua confiança, os quais esperava

viessem a ajudá-lo no seu programa político, e igualmente exigiu que os bispos eleitos

the prestassem homenagem antes da sagração.

Henrique II também julgava que poderia manobrar a Igreja do reino com mais

facilidade. Assim, indigitou Tomás Becket, seu antigo auxiliar, que trocara a carreira

pública pela eclesiástica, para arcebispo de Cantuária. O novo arcebispo primaz, ao

contrário do que o rei esperava, mostrou-se um ardente defensor dos direitos e

privilégios da Igreja e contestou a pretensão do monarca no que se referia a ter o tribunal

régio o direito de julgar os clérigos criminosos, defendendo com vigor o privilegium fori

para os mesmos.

Henrique II e seus assessores juristas reagiram elaborando e posteriormente sancionando as Constituiçães de Clarendon, nas quais explicitavam antigos direitos da

Coroa relativamente, quer ao todo social, quer em particular ao clero.

As Constituições26

estão estruturadas em três partes, das quais a segunda é a

mais importante. Ela contém 16 normas consuetudinárias coerentemente donominadas

capítulos. Uma análise global das mesmas evidencia que Henrique II, procurando

centralizar a administração da justiça, tinha consciência de que captaria e ampliaria o seu

poder. Isto ocorreria também se o Rei aumentasse seus rendimentos, por meio dos quais

ainda viria a saldar as novas despesas públicas, advindas com a reorganização da

máquina governamental.

Uma análise mais profunda, no entanto, mostra além desses aspectos que

Henrique II pretendia se fazer respeitar como soberano em seus domínios; tal é o que

preceituam os artigos 2°, 10°, 11 e 12. Revela que, na proporção em que há uma

determinação quanto a ampliar o poder judiciário do monarca, há igualmente a sua

contrapartida inversa, isto é, a restringir a competência judicial dos dignitários

eclesiásticos. É o que propõem os artigos 1°, 3°, 6°, 7°, 8°, 9° e 13.

25 PACAUT, Marcel. Alexadre III . Paris: Vrin, 1956, p. 258 26 Cfr. Documento 22.

67

Alexandre III condenou dez capítulos das Constituições. O Arcebispo Tomás

Becket, após a decisão pontifícia, voltou atrás quanto à posição que tinha tornado a favor

da política do Rei, o qual então passou a persegui-lo, bem como aos seus partidários,

obrigando-os a se exilarem por seis anos na França.

Tomás Becket, após regressar à Inglaterra, continuou a fazer oposição a

Henrique II. Por isso, acabou sendo assassinado por asseclas do Monarca quando

celebrava Missa na catedral de Cantuária (1170).

Este fato levou o Papa a exigir de Henrique II a punição dos malfeitores, ameaçando-o com a excomunhão no caso de o não fazer, o que levou o Rei, não só a

acatar a determinação papal, mas ainda a fazer uma peregrinação ao túmulo de Becket e

a revogar as Constituições do Clarendon.

Quanto a Frederico I, em 1169, fez eleger o seu filho Henrique, ainda

adolescente, rei da Alemanha e dos Romanos. Embora a cisão com a Santa Sé ainda

perdurasse, tentou obter do Alexandre III a aprovação daquele ato. O Santo Padre, então

exilado em Benevento, negou-se a fazê-lo, a menos que o Imperador anulasse as

nomeações e sagrações episcopais que Otaviano de Monticelli, seus sucessores e aliados

haviam efetuado.

Dado que o impasse entre o Papa e o Imperador se prolongava indefinidamente,

este resolveu rumar para a Itália disposto a liquidar a resistência da Liga Lombarda e

assim minar a sustentação do Alexandre III. Todavia, os exércitos adversários se

enfrentaram durante seis anos, terminando finalmente o conflito em 1176 com a vitória

da Liga na batalha de Legnano. Frederico I, derrotado, resolveu apelar para as

negociações diplomáticas com a Santa Sé e seus adversários e buscar outros caminhos

menos desgastantes para consolidar sua política na Itália. Assim, em 1177, em Veneza,

as partes celebraram a paz e assinaram um tratado em que o Imperador reconhecia Alexandre III como Papa verdadeiro e ficavam estabelecidos os termos para solucionar

as questões relativas à restituição mútua de bens apropriados durante o cisma, assim

como aos dignitários eclesiásticos nomeados durante a vigência do mesmo.27

Alexandre III, fundamentado nos mesmos princípios teóricos do outros Papas,

seus antecessores, estabelecia assim a arquitetura sólida da hierocracia, apoiando-se

também em normas do direito romano, e reclamava para o Papado uma plenitudo

potestatis que extravasava o domínio das causas espirituais. Assim, reconheceu a

autenticidade do título régio solicitado por Afonso Henriques de Portugal em 1179, e

reivindicou a autoridade para condenar os monarcas que não obedecessem às normas

dimanadas da sua condição do Sumo Pontífice. Foi igualmente com base nesses

princípios que o Papa explicou aos lombardos28

as razões do anterior diferendo que fora

obrigado a manter com o Império.

Como podemos notar, para Alexandre III, os conflitos entre os poderes

espiritual e temporal inserem-se sempre no próprio âmbito da estrutura eclesial. A

identificação da Ecclesia com a Christianitas, e a submissão do Imperium à Igreja, visto

o Imperador ser considerado como um defensor e advogado da mesma, estavam

27 Cfr. Documento 23. 28 Cfr. Documento 24.

68

presentes no pensamento do Papa e constituíam as pedras do edifício hierocrático que

aos poucos ia sendo erguido. Entretanto, seria incorreto ver nessa problemática um

simples jogo de interesses materiais e particulares, mas sim a decorrência de princípios

teóricos interpretados de modo diferente pelos príncipes eclesiásticos e seculares perante

situações concretas. Frederico I e Henrique II, cada um a seu modo, em seus respectivos

territórios, representaram por suas concepções e atitudes o elo de ligação entre as antigas

manifestações da teocracia unida ao cesaropapismo e a evolução da mesma externada,

mais tarde, nas teses de Frederico II, Filipe ―O Belo‖ e Ludovico da Baviera e seus assessores.

Por outro lado, a doutrina de Alexandre III29

pode e deve ser considerada como

o elo de ligação entre as teses hierocráticas esbocadas pelos reformadores gregorianos e

aquela explicitada juridicamcnte por Inocêncio III, Inocêncio IV, no século XIII,

Bonifácio VIII e João XXII no século XIV.

Como dissemos antes, a Igreja tinha um programa a cumprir, sendo os

Pontífices, como Alexandre III, os seus intérpretes, de acordo com as circunstâncias

históricas de determinado momento.

2.6 O IUS ANTIQUUM

A partir dos anos 50, alguns estudiosos do pensamento político medieval, entre

os quais A. M. Stikler, J. A. Watt, B. Tierney e W. Ullmann,30

também dirigiram sua

atenção para os textos produzidos pelos canonistas medievais com o propósito de

descobrir e, mais tarde, pôr em relevo suas influências e contribuições não apenas quanto

às teorias concernentes às relações entre os poderes espiritual e temporal, mas também à

formulação, desenvolvimento e ampliação jurídica da hierocracia.

Foram esses especialistas que, sob o aspecto didático, após o labor de João

Graciano, dividiram a história do Direito Canônico medieval em alguns períodos, dos

quais nos interessam particularmente os dois primeiros: o designado por lus Antiquum

29 PACAUT, M. Op. cit., p.180: ―[…] [Alexandre III] exerce avant tout, sa jurisdiction au nom de la preéminence spirituelle de son autorité, pour la défense de l‘Église et dans toutes causes

assimilées à l‘intérêt de celle-ci. En ce sens, il ne fait qu‘étendre le système des grégoriens et il

annonce directment l‘argumentation ratione peccati d‘Innocent III. 30 Cfr. STIKLER, A.M. ―Sacerdotium et regnum nei decretisti e primi decretalisti‖. Salesianum, 15 (1953), p. 572-612; ULLMANN, W. Medieval papalism. London: 1950; Idem, Medieval

political thought. London: Penguin Books, 1972; Idem, The growth of papal government in the

Middle Age. London 1955; TIERNEY, Brian. Foundations of the conciliar theory, the

contribuition of the medieval canonists from gratian to the Great Schism. Cambridge:CUP, 1955; PARADISI, Bruno. Il pensiero politico dei giuristi medievali. In: Storia delle idee politiche,

economiche e sociali. Torino: Unione Tipográfica Torinese, 1983, v. 2, p. 211-342. Da página 343

à 366, o autor apresenta uma ampla bibliografia especializada, relativa aos 18 subtítulos tratados

em seu estudo.

69

(1150-1200) e o outro denominado Ius Novum (1200-1234). Sobre este último, iremos

dizer algo no próximo capítulo.

Aliás, foi entre 1150-1220 que vieram a lume as primeiras glosas ou

comentários31

ao Decreto de Graciano, cujos autores, por esse motivo, são chamados

decretistas. Em geral, todos eles convergiram especialmente sua antenção para a

Distinção 96, em que se trata acerca das diferenças que há entre os dois poderes, e a

Distinção 4, que impõe a obrigação de só obedecer às autoridades seculares.

Entre esses glosadores, o primeiro a se destacar foi Rufino, colega de Rolando Bandinelli e, como ele, professor na Escola de Direito em Bolonha.

Entre 1157 e 1159, Rufino escreveu uma obra intitulada Suma. Uma das teses

lapidares aí encontrada é a de que a Cristandade é governada por dois tipos de

jurisdições: a do Papa (espiritual) e a do Imperador e dos reis (secular). Estes comandam

a esfera temporal e recebem o seu poder diretamente de Deus. Quanto ao Pontífice, ele

possui a Auctoritas, quer dizer, a soberania espiritual, dirige o âmbito religioso e ainda

confirma o nome do Imperador eleito.

Um outro decretista famoso foi Estêvão, bispo de Torunai, o qual escreveu seu

comentário ao Decreto, entre 1169-1171. Sua principal contribuição ao assunto em

exame consistiu em propor que os dois poderes e as respectivas competências se

reduzem apenas a um só, pelo fato de a Christianitas se identificar com a Ecclesia; quer

dizer, trata-se de uma sociedade espiritual governada por leis religiosas.

Simão de Bisignano redigiu um comentário ao Decreto que ainda permanece

sob a forma manuscrita,32

após celebração da ―concordata‖ (1177) entre Alexandre III e

Frederico I. Esse canonista, interpretando literalmente a passagem do Evangelho de

Lucas relativa aos dois gládios, ressaltou quo os dois poderes e suas respectivas

competências são distintos. Além disso, comentando o cânon 1° da Distinção XXII, que ressalta o poder de

ligar e desligar conferido por Cristo a São Pedro, e nele, aos papas seus sucessores, diz

que Graciano apenas deduziu que a Igreja possui a superioridade espiritual e, em

conseqüência, uma autoridade superior às demais, mas disto não resulta que um poder

seja dependente do outro.

Entretanto, o mais famoso de todos os canonistas de então foi Hugucião,

igualmente professor em Bolonha, cuja Suma, escrita em 1188, também ainda não foi

impressa.33

As principais teses defendidas por ele, no tocante aos assuntos que estamos a

examinar, foram as seguintes:

a) A opinião segundo a qual o Papa recebeu poderes tanto sobre o Império

celeste quanto sobre o terrestre significa apenas que ele possui e exerce a plenitudo

potestatis in spiritualibus.

31 Cfr. Fragamentos de textos de vários canonistas sobre o tema deste livro estão reunidos no

Documento 25. 32 PACAUT, M. La théocratie, l‘Église et le pouvoir au Moyen Age. Paris: Desclée, 1989, p. 103. 33 Op. cit., p. 105.

70

b) Disto não se pode inferir que o Pontífice seja competente para criar o

Imperador, do mesmo modo que este último não tem o direito de se imiscuir nas eleições

papais.

c) Quem elege o Imperador são os príncipes eleitores que criam o poder

imperial, manifestando assim a vontade de Deus. Os fatos de o Papa confirmar o eleito e

depois o ungir não mudam a essência da eleição efetuada pelos eleitores nem

acrescentam nada ao poder imperial.

d) O poderes imperial e papal são autônomos e reciprocamente independentes nas suas esferas próprias de ação; entretanto, caso o Imperador peque gravemente contra

a fé e a moral cristãs ou viole os cânones eclesiásticos, ele poderá vir a ser excomungado

pelo Pontífice. Na hipótese de ele se manter pertinazmente no erro, causando graves

prejuízos à cristandade e à religião, por causa de seu mau exemplo, o Papa poderá tomar

parte em sua deposição, cuja competência para tanto é da alçada dos príncipes eleitores,

pois são eles que lhe conferem o poder

c) A Sé Apostólica possui uma Auctoritas nuda, quer dizer, um direito de

preeminência na Christianitas sobre quaisquer outros potentados, que permite ao seu

titular julgá-los em circunstâncias extraordinárias, por exemplo, quando não aceitam

serem julgados pelas autoridades estabelecidas ou quando estas são impedidas de o

fazer.

2.7

AS CONTRIBUIÇÕES DE GERO DE REICHERSBERG E DE JOAO DE SALISBÚRIA

Gero (1093-1169) foi um dos mais destacados reformadores e intelectuais

alemães do século XII, bem como ardoroso defensor da libertas Ecclesiae. Natural de

Polling, na Baviera, em 1119 foi indicado para assumir a Escola Episcopal de

Augsburgo. Desde 1132 até sua morte passou a dirigir um grupo de cônegos regulares

em Reichersberg.

No tocante às relações entre os poderes temporal e espiritual, além dos supra

mencionados pressupostos, Gero sempre defendeu a origem divina do poder secular,

bem como ser moral e legalmente proibido aos eclesiásticos exercerem funções laicas,

para as quais nunca foram chamados por Cristo.

Nos diversos tratados que escreveu, tais como, De aedificio Dei (c. 1126-1132),

De ordine donorum (c. 1142-1143), De novitatibus huius temporis (c. 1153-1156), De

investigatione antichristi (c. 1161-1162), De quarta vigilia noctis (c. 1167), tratou

amplamente daquelas e de outras tantas idéias.

No primeiro dentre os mencionados livros, por exemplo, concebeu a Igreja

como um edifício planejado por Deus, mas construído através dos tempos pelos seus

membros. Infelizmente, muitos deles, especialmente os bispos, misturaram

indevidamente os bens espirituais com os materiais. Estes, doados pelos fiéis à Igreja,

não pertencem aos prelados, muito menos aos potentados seculares; destinam-se ao sustento e ao amparo dos necessitados.

71

Os bispos, conquanto sejam hierarquicamente superiores aos monges, devem

viver como eles, quer dizer, ser obedientes à vontade de Deus, isto é, cumpridores fiéis

do seu ofício, castos e completamente desapegados dos bens materiais. Por isso, Gero

combateu enfaticamente a atitude daqueles eclesiásticos que, em troca das regalia reais

ou imperiais, prestavam juramento de fidelidade e homenagem ao Imperador e a

membros da alta nobreza, tornando-se seus vassalos de direito e de fato.

Os clérigos e especialmente os prelados que agiam daquela forma não

passavam de simoníacos e estavam contribuindo para que a Igreja continuasse a ser tutelada pelo poder temporal.

Na segunda obra, censurou duramente muitos bispos alemães pelo fato de, fiéis

à política imperial de fortalecimento do Reich, comandarem tropas e lutarem ao lado do

Imperador e igualmente porem os bens e a infra-estrutura da diocese a serviço do poder

temporal, porque tais atitudes eram uma violação explícita da lei evangélica e canônica,

onde está escrito que ―sacerdotibus Christi in gladio percutere licitum non est‖.

Ademais, exercendo direta ou indiretamente a jurisdição civil e penal, esses prelados se

transformavam em corresponsáveis pela efusão de sangue dos condenados e, por isso,

tornavam-se indignos do ministério sacerdotal.

Noutras palavras, não é da alçada dos sacerdotes exercer qualquer poder

mundano, apenas, abençoar, e a quem competir de direito, coroar os soberanos, os quais,

recebem de Deus o seu poder, mediante a eleição ou a sucessão hereditária. Por isso, os

eclesiásticos mantêm uma superioridade em relação aos senhores temporais, devido à

dignidade da função que exercem na sociedade e na Igreja, mas tal preeminência

espiritual não significa que possuem direitos sobre os potentados seculares.

A suprema autoridade espiritual na Igreja e na sociedade compete ao Papa. Ela

lhe faculta, quando for necessário, excomungar e depor tanto os maus prelados quanto os príncipes incapazes e injustos, porque estão a prejudicar os fiéis ou os seus súditos. Mas

essa intervenção papal na esfera secular deve acontecer excepcionalmente e visa a

restabelecer a ordem moral, a assegurar a salvação eterna dos cristãos e a manter a

justiça e a paz.

No último dos tratados que escreveu, intitulado De quarta vigilia noctis (1167),

contemporâneo da querela entre Alexandre III e Frederico I, e de suas conseqüências,

como o cisma que dividia a Igreja e a Cristandade, Gero, ao mesmo tempo em que

censurou qualquer espécie de interferência laica nos assuntos e questões espirituais,

como a pretensão dos governantes relativa a indicar e ou a depor bispos, também criticou

asperamente as tendências de certos membros do clero quanto a reivindicar o direito de

exercer ofícios temporais, bem como a considerar o Imperador como vassalo do Papa.

Quaisquer dessas idéias não tinham absolutamente fundamento algum no Novo

Testamento, de modo que seus propositores e defensores estavam a incorrer no castigo

divino.

João de Salisbúria (c. 1110/1120-1180), certamente um dos mais destacados

intelectuais de seu tempo e grande conhecedor dos autores clássicos da antigüidade,

estudou em Paris (com Abelardo) e depois em Chartres, para onde foi designado bispo em 1176.

72

Legou-nos, entre outras obras, um tratado político intitulado Polycraticus,

provavelmente redigido entre 1155/1159, durante o pontificado de Adriano IV, cujo

tema central versa acerca da conduta do bom e do mau governante, a quem o pensador

inglês designa por tirano.

Para entender e avaliar a importância das doutrinas de João de Salisbúria, é

preciso ressaltar que de possuía uma visão extremamente crítica da realidade e que, na

senda dos antigos, em especial de Cícero, adotou a atitude teórico-metodológica

designada por ―critério do conhecimento provável‖, com os propósitos de evitar, de um lado, as controvérsias estéreis sem fim e, de outro, o perigo de uma adesão cega às

doutrinas tradicionais, conquanto nunca tivesse posto em dúvida as verdades

apresentadas pela Revelação.

Algumas idéias inovadoras na teoria política do medievo, por sinal, brotaram da

pena de João de Salisbúria. Vamos examiná-las.

De acordo com o que Túlio Cicero outrora havia ensinado, ele propôs como

alicerce para a origem da vida em sociedade o acordo mútuo e recíproco entre os

integrantes da mesma, sedimentado na eqüidade e na lei naturals, cujo autor é Deus,

igualmente fonte de todo poder. Usando a reta razão os seres humanos percebem com

clareza o que a lei e a eqüidade naturais estipulam, de modo que os membros da

comunidade têm a obrigação de respeitar as leis.

Ora, a vida em sociedade implica que as pessoas que dela faziam parte tenham

igualmente escolhido alguém para liderá-las, tornando-o seu chefe. Isso sempre

aconteceu com todas as comunidades humanas naturais.

João de Salisbúria compara o reino ao corpo humano, cujo vigor depende da

saúde de todos os órgãos e membros, os quais são importantes para o conjunto. Assim,

os trabalhadores rurais e urbanos se assemelham aos pés desse corpo, porque lhe dão sustentação; as mão se comparam ao exército, porque o protege; o coração, à cúria régia,

porque auxilia o governante por meio de seus conselhos; a cabeça, ao príncipe, porque a

primeira dirige toda a pessoa, enquanto ele governa todo o reino; a alma se compara à

religião porque, de um lado, ela inspira todos os movimentos do corpo, e, de outro, a

religião deve impulsionar todos os movimentos daquela comunidade política.

O clero tem por obrigação moral e legal precípua anunciar a Boa Nova e

distribuir os Sacramentos para os governantes e súditos. Deve, entretanto, fazer isso com

dedicação especial no tocante aos governantes, porque estes, em face dos cargos que

desempenham, têm responsabilidade maior para com a sociedade, por isso, se não forem

bem instruídos para tal, não apenas toda comunidade sofrerá as conseqüências nocivas

desse fato, mas os eclesiásticos, no dia do Juízo, também serão duramente castigados por

Deus.

Os bons governantes, pouco importa se leigos ou eclesiásticos portanto, não se

transformam em tiranos quando observam o que as leis determinam e sempre têm como

objetivo proporcionar a todos o membros da comunidade os bens materiais e espirituais

de que necessitam.

Os tiranos, ao contrário, só pensam em si mesmos e nas vantagens que podem tirar do cargo que ocupam. Ora, quem porta a espada temporal, esquecendo-se de que a

recebeu de Deus, para punir os maus e recompensar os bons, desrespeitando as leis,

73

assim procedendo está a aniquilar a justica, daí não possuírem nem exercerem nenhum

direito sobre o povo e, portanto, não são dignos de governar e têm de ser julgados com

extremo rigor, a ponto de ser perfeitamente justo e lícito matá-los.

Respaldado nesses princípios, João de Salisbúria igualmente tratou das relações

entre os poderes com bastante originalidade e coerência.

Ambos os poderes são reciprocamente independentes nas suas esferas próprias

de ação; por isso, um absolutamente não deve interferir na alçada do outro, bem como

têm de respeitar os direitos e privilégios respectivos. Entretanto, o poder sacerdotal goza de uma autoridade e dignidade moralmente superiores em relação ao temporal, devido à

sua missão específica ser mais relevante. Daí, as leis que os potentados seculares editam

deverem estar em consonância não só com a lei divina mas também com os cânones. É

por essa razão também que a Igreja fez dos príncipes seculares o seu braço armado,34

dado que os clérigos estão proibidos de usar o gládio material.

Apesar de ter defendido essa preeminência relativa do poder sacerdotal, João de

Salisbúria em seu tratado igualmente denunciou com muita ênfase as pretensões e os

abusos cometidos pelos clérigos, especialmente no tocante a desejarem o poder terreno e

as riquezas.

João de Salisbúria ainda recomendou ao Papa Adriano IV que nomeasse para os

cargos eclesiásticos aqueles cristãos que se notabilizassem pela piedade e humildade,

com o fito de edificarem o povo pelo seu exemplo.

Coletânea de documentos relativa ao capítulo 2

DOCUMENTO 14

Anônimo de York, sobre os poderes temporal e espiritual.

―[...] A essa afirmação responderei, dizendo o seguinte: se os Sumos Pontífices,

que aliás foram bispos da Igreja Romana, e seus partidários defendem tal ponto de vista,

isso decorre do poder que o Império Romano detinha e da importância de Roma, que

estava à frente do orbe universal.

Todavia, no princípio da história da Igreja não sucedeu assim. Cristo não a

considerava como tal, nem os Apóstolos, muito menos os setenta e dois discípulos, bem

como o protomártir Estevão e os seus companheiros, e ninguém, a menos que seja um

ignaro, nega que eles todos foram os primeiros Padres de todos os fiéis [...], de modo que

a citada medida foi tomada pelos homens, não por Cristo-Deus ou pelos Apóstolos.

34 Cfr. Documento 26.

74

Portanto, a causa da nossa salvação não depende necessariamente daquela instituição

[...], pois não se trata de um mandato legítimo e essencial, e, se assim fosse, ou Jesus o

teria estabelecido na sua Lei, ou o Senado Apostólico o haveria estatuído.

Com efeito, essa medida constituiu-se numa usurpação imposta pela

necessidade, antes que surgissem facções impelidas pelo instinto diabólico [...], pois

aconteceu que algumas pessoas pensavam que aqueles que as haviam batizado não o

fizeram em nome de Cristo, mas no seu próprio. Por isso, foi decidido para toda a terra

que um dos presbíteros seria escolhido para chefiar os demais, competindo-lhe daí por diante velar por toda a Igreja, a fim de que as sementes do cisma fossem extirpadas. Por

conseguinte, os cismas foram a razão pela qual o Pontífice Romano foi colocado à frente

dos outros presbíteros [...].‖

―[...] Os Santos Pontífices estão subordinados aos reis e aos príncipes, porque

receiam transgredir a ordem divina sobre tal matéria e dessa forma virem a ser

castigados terrivelmente. Se agissem de outro modo, violando o mandato divino, e não

obedecessem aos príncipes, incorreriam também em graves prejuízos. [...] Os Pontífices

não ignoram que o poder dos reis sobre todos os homens lhes foi conferido do alto e que

Deus lhes concedeu exercer um domínio não apenas sobre os leigos e os soldados, mas

ainda sobre os seus sacerdotes. [...] O fato de os monarcas estabelecerem leis para a

proteção da Igreja e velarem por ela não é contrário à justiça, porque [...] eles detêm um

poder sacrossanto inclusive sobre os Pontífices do Senhor, bem como exercem o

governo eclesiástico [...].‖

―[...] A Igreja de Deus é a comunidade dos fiéis que conjuntamente vivem a

mesma fé, esperança e caridade [...], de modo que os reis, ao serem ungidos, recebem o

poder de Deus para governá-la, confirmá-la na justiça e julgamento, e administrá-la

segundo o estatuído pela lei cristã, pois eles reinam na Igreja, que é o povo de Deus, e exercem essa missão juntamente com Cristo. [...] Foi por essa razão que os Padres da

Igreja e os Pontífices Romanos, compreendendo tal fato, mediante as luzes da

Providência divina, passaram a ungi-los, a fim de que eles protegessem a Igreja e a fé

cristã, pois, se os gentios e os hereges não fossem reprimidos pelo poder régio, tê-las-

iam destruído e aniquilado [...] No entanto, tais misteres não podem ser executados pelos

sacerdotes e, por isso, estes necessitam do poder régio para se defender e proteger, de

modo que no interior da Igreja reinem a paz e a segurança. Portanto, nestas

circunstâncias, o rei e o sacerdote representam a imagem de Cristo.

O bem-aventurado Agostinho, no 1° livro da sua obra intitulada Sobre o

consenso entre os evangelistas, declara: ―Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro e único

rei-sacerdote, revelou aos nossos antepassados estas duas pessoas, cada uma delas como

tendo nascido à sua imagem, uma destinada ao nosso governo, outra à nossa remissão.

Lemos também no Antigo Testamento que essas duas pessoas eram ungidas e

consagradas com o óleo abençoado, prefigurando o ministério de Cristo à frente do seu

povo [...]; é por tal razão que o rei e o sacerdote são igualmente ungidos com o óleo

santo, em nome de Deus e de Jesus Cristo [...] O sacerdote desempenha um ministério

proveniente da natureza inferior de Jesus, a humana; o rei, pelo contrário, desempenha uma função de origem naturalmente superior, a divina. [...] Alguns julgam que o rei e o

seu poder é maior e mais importante do que o sacerdote e a sua autoridade, no

75

respeitante à missão que desempenham junto do povo [...] É por isso que afirmam que a

dignidade real institui a sacerdotal e esta deve ser-lhe submissa, e tal fato não contraria a

justiça divina, porque o mesmo acontece com Jesus Cristo [...] Na verdade, se o padre é

instituído por um monarca, isso não ocorre através do poder de um homem, mas por

meio do poder do Deus, visto o mesmo provir do Criador, d‘Ele pela natureza, do rei

pela graça divina [...] Os Sumos Pontífices estão subordinados tanto aos reis quanto a

Jesus Cristo e prestam-lhes homenagem, porque sabem perfeitamente que, mediante os

reis, é Ele que reina e exerce o seu domínio sobre todos [...] Não é um leigo que concede a investidura, mas um monarca, o cristo do Senhor, co-reinando pela graça divina com

Ele, ungido do Senhor por natureza, e como esses dois cristos reinam juntamente, ambos

concedem simultaneamente o que é necessário ao seu reino [...] além disso, o bispo

recebe juridicamente do rei as suas possessões; e não só isso, mas também a missão de

guardar a Igreja e o direito de governar o povo de Deus [...].‖

DOCUMENTO 15

Hugo de S. Victor, De Sacramentis fidei, Livro II, capítulo IV. In: P. L., 176, 416-418.

[...] A Santa Igreja é o Corpo de Cristo, vivificada por um só Espírito, unida e

santificada por uma só fé. Os cristãos são os membros deste Corpo e todos, embora

sejam muitos, constituem um único corpo em virtude de serem animados por uma só fé e

um único Espírito.

Do mesmo modo que, no corpo humano, cada membro tem uma função própria e específica, e cada qual não a desempenha exclusivamente em benefício próprio, assim

também os dons da graça foram distribuídos no corpo da Santa Igreja, e cada pessoa,

sem dúvida alguma, não retém particularmente para si mesma o que recebeu

isoladamente.

Com efeito, os olhos são os únicos órgãos que vêem, mas decerto não vêem

somente para si, mas para todo o corpo. Igualmente os ouvidos são os únicos órgãos que

escutam [...], os pés são os únicos membros que caminham [...]; todos eles o fazem em

proveito do corpo [...].

Esta universalidade de pessoas compreende duas ordens, a dos leigos e a dos

clérigos, como se fossem os dois lados do um mesmo corpo. Os leigos, à esquerda,

constituem o lado esquerdo do Corpo de Cristo e são os que servem às necessidades da

vida presente. Os clérigos, pelo contrário, incumbidos da vida espiritual, formam a parte

direita do Corpo de Cristo. Este, portanto, que é a Igreja Universal, consta de ambas as

partes. [...]

Há duas vidas: uma terrena, outra celeste. Uma do corpo, outra do espírito.

Uma para que o corpo viva da alma, e a outra para que esta viva de Deus. Ambas

procuram bens, por meio dos quais possam subsistir. A vida terrena alimenta-se com as boas coisas do mundo, e a vida espiritual com bons meios espirituais.

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O que é secular pertence à vida terrena e as coisas espirituais relacionam-se

com a vida espiritual. Para que em ambas as espécies de vida se respeite a justiça e se

produzam coisas úteis, é necessário primeiramente que haja pessoas que, mediante o seu

trabalho e entusiasmo, proporcionem os bens indispensáveis à sobrevivência de todos.

Em segundo lugar, que haja pessoas que, mediante a autoridade do seu cargo, distribuam

tais bens de modo eqüitativo, para que ninguém se aproveite e abuse do seu irmão, e

assim respeitar-se-á a justiça.

Os leigos ocupam-se e interessam-se pela obtenção dos bens indispensáveis à vida terrena. Eles exercem o poder secular ou terreno. Os clérigos, por sua vez, tem por

incumbência distribuir os bens relativos à vida espiritual. Eles possuem o poder

espiritual ou divino.

Num e no outro poder há vários graus e hierarquia de dignidades, mas ambos

estão sob a chefia de uma só cabeça, como se procedessem e se dirigissem para um

mesmo princípio. O rei é a cabeça do poder terreno; o Sumo Pontífice, do poder

espiritual. O poder régio, voltado para a vida secular, dirige o que é terreno. Ao

contrário, sob o governo do Papa estão as coisas necessárias à vida espiritual.

Na medida em que a vida espiritual é mais digna do que a terrena, e o espírito

superior ao corpo, assim também o poder espiritual precede em honra e dignidade o

secular. Além disso, o primeiro tem o dever de ensinar e o direito de julgar o segundo, se

este não for bom. Todavia, o poder espiritual, estabelecido exclusivamente por Deus,

ainda que erre, só poderá vir a ser julgado por Ele mesmo, conforme está escrito, de

modo que o poder espiritual pode julgar tudo, mas não deve ser julgado por ninguém.

É notoriamente evidente que o poder espiritual, considerado como uma

instituição divina, precede no tempo e em dignidade o outro, pelo fato de o Sacerdócio

ter sido primeiramente instituído por Deus e só mais tarde, por ordem celestial, o poder secular foi estabelecido pelo Sacerdócio.

Por esse motivo, agora, na Igreja, a dignidade sacerdotal deve instituir,

consagrar e santificar, por meio da sua bênção, o poder secular. Ora, como diz o

Apóstolo, aquele que abençoa é maior do que o abençoado, inferindo-se claramente daí

que o poder secular, pelo fato de ser abençoado pelo poder espiritual, é

inquestionavelmente inferior ao mesmo.

DOCUMENTO 16

Doação de Constantino. In: Decreto, Parte I, dist. 96, c. 11.

[...] Nós doamos, a partir de agora, ao nosso pai Silvestre, o nosso palácio

imperial de Latrão [...], o colar, as vestes, o cetro, os ornamentos, enfim, as demais

insígnias do nosso poder imperial. [...] E, para que a Sé Pontifícia não seja inferiorizada,

mas, pelo contrário, a fim de que a sua glória e poder sobressaiam à dignidade do

Império terreno, damos e legamos ao bem-aventurado Silvestre, não apenas o nosso palácio, mas todas as províncias, cidades e territórios da Itália e do Ocidente [...], e

julgamos oportuno transferir para o Oriente o nosso Império, na magnífica cidade de

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Bizâncio, e lá edificar uma cidade que terá o nosso nome, e exercer sobre o mesmo a

nossa jurisdição e autoridade, pois não é justo, de modo algum, que o imperador terreno

a exerça onde o imperador celeste estabeleceu a suprema autoridade religiosa e a

preeminência do Sacerdócio [...].

DOCUMENTO 17

Deconsideratione, II, P. L., 182: 751a, 751d, 752a-b

[...] Devemos, a partir de hoje em diante, investigar as dúvidas que por acaso

possam existir acerca do que ora tratamos, se estas persistirem. Muito bem, indaguemos

diligentemente quem és tu, quero dizer, qual é o papel que neste mundo desempenhas na

Igreja de Deus. Quem és tu? Tu és o grande Sacerdote, o Sumo Pontífice. Tu és o

primeiro dentre os bispos, o herdeiro dos Apóstolos. Tu te comparas a Abel no primado,

a Noé no governo da arca, a Abraão no patriarcado, a Melquisedeque no sacerdócio, a

Aarão na dignidade, a Moisés na autoridade, a Samuel por tua função de juiz, a Pedro no

poder, a Cristo na unção.

[...] Tu és o único pastor, não apenas de todas as ovelhas, mas também de todos

os pastores. Perguntais como o posso comprovar? Mediante as palavras do Senhor:

―Pedro, se tu me amas, apascenta as minhas ovelhas‖. Por que, não indago a qual dos

bispos, mas, a qual dos Apóstolos, todas as ovelhas absoluta e indistintamente foram

confiadas?

[...] Para quem não é evidente que Cristo não lhe atribuiu apenas um certo

número, mas que simplesmente lhe confiou todas as ovelhas? Onde Ele não fez nenhuma exclusão, nada se exclui [...] É por isso que a cada um dos outros Apóstolos foi dada em

partilha uma nação particular, pois eles conheciam o sinal. E enfim, Tiago, que era uma

das colunas da Igreja, se contentou com Jerusalém, deixando a Pedro a universalidade.

[...] Portanto, segundo os teus cânones, tu foste chamado à plenitude do poder;

os outros foram chamados apenas a compartiihar da solicitude. Enquanto o poder dos

outros pastores se confina a determinados limites, o teu se estende igualmente sobre os

deles. Não poderias, por um motivo razoável, exciuir do céu um bispo, depô-lo de suas

funções, e até entregá-lo a Satanás? Por conseguinte, que teu privilégio permaneça

inabalável, tanto em relação às chaves que te foram dadas, quanto às ovelhas que te

foram confiadas.

DOCUMENTO 18

De consideratione, IV, 3, P. L., 182: 776.

Por que deverias brandir de novo a espada que estás obrigado a meter na bainha? Mas se alguém nega que essa espada é tua, parece-me que não presta atenção às

palavras de Deus: ―Mete a tua espada na bainha‖. Portanto, ela é também tua e deve ser

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desembainhada talvez por indicação tua, mas não pela tua mão. Se a espada não te

pertencesse, então, quando os discípulos disseram ―Eis aqui duas espadas‖, o Senhor não

teria respondido: ―Bastam‖, mas são demais. Ambas as espadas, a saber, a espiritual e a

material, pertencem à Igreja. Mas a material deve decerto ser brandida em favor da

Igreja, e a espiritual pela própria Igreja. Aquela pela mão do sacerdote, esta pela mão do

soldado, mas por indicação do sacerdote e por ordem do rei. [...] Brande por agora a

espada que [Deus] te deu para percutir [a espiritual], e percute com golpes que tragam a

salvação, se não a todos, se não a muitos, pelo menos àqueles que puderes.

DOCUMENTO 19

Carta de Adriano IV a Frederico I, MGH, Const. et Acta, II 229-230.

Adriano, bispo, servo dos servos de Deus, ao seu amado filho Frederico, ilustre

Imperador dos Romanos, saúde e bênção apostólica.

[...] Tua serena Alteza sabe que não podemos estar tranqüilo, quando nos

lembramos do modo pelo qual o nosso venerável irmão Esquil, arcebispo de Lund, foi

capturado nessa terra por alguns celerados e ímpios, quando regressava da Sé

Apostólica, embora estivesse sob custódia.

Além disso, os criminosos malfeitores somente por maldade empunharam

violentamente as suas espadas desembainhadas contra ele e os seus companheiros, e

trataram o Arcebispo de maneira torpe e vergonhosa, despojando-o de tudo o que tinha

consigo.

Sabes igualmente que a notícia de tão grande crime já chegou às regiões mais distantes e remotas. Entretanto, permitiste que a monstruosidade de uma ação tão

nefanda ocorresse, sem teres tomado as devidas medidas exigidas pelas circunstâncias.

Segundo cremos, amas o bem e odeias o mal e, assim, devias ter manifestado

grande empenho em punir tal crime, pois com a espada que te foi concedida pelo poder

divino tinhas de castigar os maus e recompensar os bons. Devias ter punido o orgulho

dos blasfemos e destruído corajosamente os presunçosos.

Todavia, corre de boca em boca que não te importaste com o fato,

escamoteando-o, e que declaraste que os celerados não tinham motivo algum para Sé

arrependerem de haverem praticado aquele sacrilégio, pois supuseram que não seriam

castigados por causa dele.

Ignoramos totalmente a causa dessa negligência e dissimulação, pois nada na

nossa consciência nos acusa de termos ofendido, por qualquer modo, a glória de tua

Serenidade; pelo contrário, sempre amamos a tua pessoa na condição de nosso filho

dileto e especial e príncipe cristianíssimo, de cujo poder não duvidamos e afirmamos ter

sido consolidado por Deus na pedra da confissão apostólica. Estamos certos de que

sempre te tratamos com o afeto da caridade e da benignidade que te é devida.

Deves, portanto, gloriosíssimo filho, recordar quão graciosa e alegremente, no ano passado, a Sacrossanta Igreja Romana te recebeu e com quanto afeto ela te tratou,

com que plenitude de dignidade e de honra te revestiu, e como, concedendo-te muito

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graciosamente a distincão da coroa imperial, se empenhou em te conservar no seu regaço

fertilíssimo, no ápice da tua sublimidade, certa de não ter nada que viesse a causar o

mais pequeno descontentamento à tua vontade real.

Tampouco nos arrependemos de haver satisfeito em tudo os desejos do teu

coração, mas alegrarmo-nos-íamos, não sem motivo, se a tua Excelência tivesse recebido

das nossas mãos benefícios maiores ainda, se tal fosse possível, considerando, como

sabemos, quão grande auxílio e vantagens a Igreja de Deus e nós mesmos podemos

receber de ti. [...] Portanto, em face do exposto e de outras questões que agora nos

preocupam, julgamos que, nesta ocasião, seria oportuno enviar-te, da nossa parte, duas

pessoas das melhores e mais caras que nos rodeiam, os nossos diletos irmãos Bernardo,

cardeal presbítero do título de S. Clemente, e Rolando, nosso chanceler e cardeal

presbítero do título de S. Marcos, homens que se destacam pela sua piedade, honestidade

e prudência. E pedimos [...] que sejam bem tratados [...] e esperamos que os acolhas,

como se proviesse da nossa própria boca tudo o que eles te disserem em nosso nome à

tua Majestade Imperial, no referente a este assunto e a outros mais relativos à honra de

Deus, da Santa Igreja Romana, e também à glória e exaltação do Império. E não duvides

da verdade das suas palavras, como se fôssemos nós mesmos que as estivéssemos a

proferir [...].

DOCUMENTO 20

Circular de Frederico I aos bispos do Império, MGH, Const. et acta, II 231-232.

Visto a autoridade divina, fonte de todo o poder, tanto no céu como na terra,

nos ter confiado, como a seu ungido, o governo do reino e do Império, e decretado que a paz das igrejas seja mantida graças às nossas armas, somos forçados, não sem uma

enorme dor de coração, a queixar-nos a vós, amados bispos, pois parece que os motivos

da discórdia, as sementes da maldade e o veneno de uma enfermidade pestífera emanam

da cabeça da Santa Igreja, na qual Cristo imprimiu o caráter da sua paz e amor.

Se Deus não o impedir, tememos que, por causa disso, todo o corpo da Igreja

venha a ser maculado, a unidade se rompa e acabe por haver uma cisão entre o Reino e o

Sacerdócio.

Não há muito, com efeito, enquanto estávamos reunidos em Dieta na cidade de

Besançon e tratávamos com a devida solicitude da honra do Império e da segurança das

igrejas, chegaram legados apostólicos dizendo trazer uma mensagem de tal natureza que,

devido à mesma, a honra da nossa Majestade seria muito enaltecida.

Recebemo-los no primeiro dia da sua chegada, com a honra que lhes competia

e, no segundo dia, como é costume, concedemos-lhes juntamente com os nossos

príncipes uma audiência, para ouvirmos a mensagem que traziam.

No entanto, eles, como que inchados com o espírito do orgulho e da iniqüidade,

entregaram-nos arrogantemente, cheios de uma alegria execrável, uma mensagem em

forma de carta apostólica, a tentar lembrar-nos que devíamos ter sempre em mente a

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maneira como o Papa nos havia concedido a distinção da coroa imperial, e que nos

sentiríamos lisonjeados se dele recebêssemos maiores benefícios ainda.

Era este o conteúdo da mensagem de paternal doçura que devia manter a

unidade entre a Igreja e o Império, que pretendia uni-los com o vínculo da paz, que

tencionava suscitar no ânimo dos presentes a concórdia e a obediência recíprocas.

Não somente a nossa Majestade Imperial revelou uma justa indignação contra

aquela mensagem arrogante e vazia, mas também todos os príncipes aí presentes, os

quais ficaram tão irritados que, sem sombra de dúvida, teriam condenado à pena de morte aqueles dois iníquos presbíteros, se a nossa presença os não detivesse.

Além disso, foram encontradas com eles cartas de teor semelhante à

mencionada, e fórmulas sigilosas para serem completadas, segundo o seu arbítrio,

através das quais, de acordo com o seu procedimento habitual, pretendiam ir a todas as

igrejas da Alemanha para esparramar o vírus engendrado pela sua iniqüidade,

desnudando os altares, apoderando-se dos vasos da casa de Deus e despojando as cruzes.

Nós, então, obrigamo-los a voltar à Urbe pelo mesmo caminho por onde haviam

chegado, o que não teriam feito se lhes fosse dada oportunidade para irem mais longe no

seu ato vilipendioso.

Tendo em vista que, pela eleição dos príncipes, recebemos o reino e o Império

somente de Deus, o qual, por meio da Paixão de Cristo, seu Filho, submeteu este Orbe ao

governo das duas espadas necessárias, e considerando, paralelamente, que o Apóstolo

Pedro ensina a todos a seguinte doutrina: ―Temei a Deus e honrai o Rei‖, aqueles que

afirmam termos recebido a coroa imperial através do Senhor Papa, ao modo de

benefício, contradizem a instituição divina, bem como o ensinamento do bem-

aventurado Pedro, e por isso devem ser considerados mentirosos.

Além disso, como nós temos afincadamente dedicado, até hoje, a livrar das mãos dos egípcios a liberdade e a honra da Igreja, oprimida durante muito tempo pelo

jugo de uma servidão imerecida, e continuando a esforçar-nos para lhe preservar todas as

prerrogativas da sua dignidade, pedimo-vos, como a pessoas capazes de sentir conosco a

ignomínia que nos foi infligida, bem como ao Império, e confiando na sinceridade total

da vossa lealdade, que não permitais que a honra do Império, que permaneceu glorioso e

sem sofrer humilhação desde a fundação de Roma e o estabelecimento da religiao cristã

até aos nossos dias, seja ultrajada por tão inaudita novidade e orgulho presunçoso, e que

saibais indubitavelmente que estamos dispostos inclusive a correr o risco da vida, mais

do que a tolerar agora o opróbrio de tanta confusão [...].

DOCUMENTO 21

Alexandre III, Bula “Licet omnes”, In: PACAUT, M. Alexandre ill. Paris: Vrin, 1956, p. 258.

[...] embora todos os Apóstolos tenham recebido de Cristo o mesmo poder de ligar e de desligar, se bem que Ele, único Mestre verdadeiro e especial, os tenha incumbido de

pregar o Evangelho a todos os homens, no entanto, o Senhor estabeleceu entre os

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mesmos uma certa diferença hierárquica, pois o bem-aventurado Pedro, mediante um

privilégio singular, recebeu a missão de apascentar os cordeiros do próprio Cristo,

privilégio esse que lhe foi concedido quando Ele lhe disse: ―Pedro, tu me amas?

Apascenta os meus cordeiros.‖

Pedro obteve, igualmente, de entre todos os Apóstolos, o título de Príncipe e

recebeu de Jesus a missão especial de confirmar na fé os seus irmãos. Desse modo, foi

dado a toda a posteridade compreender que, embora todos eles tenham sido instituídos

para conduzir a Igreja, apenas um, no entanto, ocupa o lugar e o cargo da suprema dignidade, competindo-lhe a honra de governar e de julgar a todos.

Assim se conservou na Igreja a diversificação dos ministérios, do mesmo modo

pelo qual, no corpo humano, os diversos órgãos existem de acordo coma variedade de

funções, pois, no interior da Igreja, pessoas diferentes foram estabelecidas nos diversos

graus do sacramento da Ordem, conforme os vários ministérios a exercer. Acima de

todas elas, porém, o Romano Pontífice, como Noé na arca, conforme se sabe, ocupa o

primeiro lugar.

Ele, gracas ao privilégio que lhe foi concedido para sempre na pessoa do

Príncipe dos Apóstolos, julga e regula as questões respeitantes a todos os homens, e não

cessa de confirmar os filhos da Igreja por todo o Orbe, mantendo a unidade na fé e

cuidando de se mostrar sempre digno de ser o sucessor daquele que teve o mérito de

ouvir do Senhor: ―E tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos...‖

DOCUMENTO 22

Constituições de Clarendon. In: GALLEGO BLANCO. Relaciones entre Ia Iglesia y el Estado en Ia Edad Media. Madrid: Ed. Revista de Occidente, 1973, p. 238-240.

Capítulo 1: Na hipótese de surgirem controvérsias entre leigos ou entre estes e

clérigos, ou ainda entre clérigos, relativamente à criação ou fusão de igrejas paroquiais,

tais controvérsias serão tratadas e decididas no tribunal do rei.

Capítulo 2: As igrejas dos feudos pertencentes ao rei não podem ser concedidas

perpetuamente sem a sua anuência e autorização.

Capítulo 3: Os clérigos acusados de terem cometido qualquer delito, quando

forem convocados pela justiça do rei, deverão comparecer no seu tribunal para aí

responderem às perguntas consideradas oportunas; igualmente deverão comparecer ao

tribunal eclesiástico, se tal for conveniente, e aí serão inquiridos, desde que a justiça do

rei envie alguém como observador ao tribunal da Santa Igreja, para verificar o motivo

por que a causa deve aí ser tratada. Se, porém, o clérigo confessar o seu delito ou vier a

ser declarado culpado, a Igreja não lhe concederá proteção.

Capítulo 4: Os arcebispos, bispos e outras pessoas que vivem no reino não

poderão dele sair sem a devida autorização do rei. Se este, porém, vier a permitir tais viagens, os supracitados prometerão não prejudicar o monarca e o reino, enquanto durar

a permanência no exterior, bem como durante as viagens de ida e retorno.

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Capítulo 5: Os excomungados não podem fazer promessa e juramento

perpétuos; apenas deverão oferecer garantias de comparecimento ao tribunal eclesiástico,

para ali obterem a sua absolvição.

Capítulo 6: No tribunal diocesano, para que o arquidiácono não perca o seu

direito e o que lhe é devido, os leigos só poderão ser acusados de alguma falta na forma

da lei e por pessoas e testemunhas dignas de confiança. Se houver culpados e ninguém

quiser indicá-los, o visconde, solicitado pelo bispo, providenciará doze homens bons da

vizinhança ou da vila, os quais, sob juramento feito na sua presença, prometerão agir conscientemente e em vista à obtenção da verdade.

Capítulo 7: Nenhum vassalo direto do rei e nenhum dos seus prepostos será

excomungado ou poderá ter as suas terras colocadas sob interdito sem antes haverem

solicitado justiça ao monarca, se estiver no reino, ou ao seu [Ministro da] Justiça, se

estiver ausente, a fim de que tudo se desenvolva corretamente. Desse modo, tudo o que é

da competência do tribunal régio ou do eclesiástico deve ser encaminhado, tratado e

resolvido por quem de direito.

Capítulo 8: Caso haja apelações, dirigir-se-ao do arquidiácono ao bispo, e deste

ao arcebispo. Se este não fizer justiça, as apelações deverão ser encaminhadas ao rei,

para que ele lhes ponha fim no tribunal arquidiocesano, evitando delongas posteriores

sem o seu consentimento.

Capítulo 9: Se ocorrer uma disputa entre um clérigo e um leigo, ou vice-versa, a

respeito de uma doação que o primeiro deseja acrescentar à sua propriedade religiosa e o

segundo ao seu feudo, serão escolhidos doze homens de bem para estudar o litígio e

averiguar se a referida doação está ligada à propriedade religiosa ou ao feudo. Em

seguida, será prolatada decisão pelo principal encarregado da justiça real na presença dos

litigantes. Se for comprovado que a doação se vincula à propriedade religiosa, a questão será levada ao tribunal diocesano. Diversamente a causa será encaminhada para o

tribunal do rei, se as partes estiverem sob a jurisdição de um mesmo bispo ou de um

mesmo barão. Se os contendores, no entanto, apelarem nessa questão junto do mesmo

bispo ou barão, o litígio será resolvido no tribunal eclesiástico, de modo a que,

concretizada a identificação do proprietário, não venha ele a perder o seu direito, até que

a disputa seja resolvida judicialmente.

Capítulo 10: Quem residir numa cidade, distrito, castelo ou burgo pertencentes

diretamente ao rei e vier a ser chamado ou pelo arquidiácono ou pelo bispo, por causa de

crime cometido e pelo qual deva responder, se se recusar a atender à convocação, essa

pessoa legalmente poderá ser colocada sob interdito, mas não deverá ser excomungada

antes que o oficial mais importante do rei nos citados lugares o obrigue a atender à

convocação. Se este, porém, não cumprir o seu ofício, a pessoa ficará sob a proteção do

rei, mas o bispo poderá, então, coagir o acusado, valendo-se dos castigos e

procedimentos eclesiásticos.

Capítulo 11: Os arcebispos, bispos e todas as pessoas que receberam benefícios

diretamente do rei, e que os conservam como se fossem uma baronia, deverão responder

pelos mesmos perante os representantes da justiça real, observando e cumprindo, ainda, todas as obrigações e costumes devidos para com o monarca, tal como o fazem os

demais barões, inclusive tomando parte no tribunal régio, com esses últimos, enquanto

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durarem as sessões de julgamento, sejam elas para absolver ou condenar à morte os

culpados.

Capítulo 12: Quando vagarem um arcebispado, bispado, abadia ou priorado nos

domínios do rei, deverão permanecer sob o controle do monarca, que deverá ser

informado sobre as entradas e saídas de rendimentos, recebendo as primícias como se lhe

pertencessem. O rei, quando providenciar a nomeação de um responsável por uma igreja,

deverá convocar os principais membros do clero para realizarem, a eleição na capela

real, os quais deverão ouvir também a opinião dos súditos que tiverem sido convocados para essa finalidade. Em seguida, o eleito deverá prestar homenagem e jurar fidelidade

ao rei, como se este fosse o seu senhor feudal. O juramento abrangerá a sua vida, os seus

membros e a sua honra, com exceção dos votos religiosos da Ordem a que pertencia

antes da consagração.

Capítulo 13: Se algum dos altos dignitários do reino vier a impedir a um

arcebispo, bispo ou arquidiácono de recorrer à justica em nome próprio ou dos seus

subordinados, o rei deverá levá-lo ao seu tribunal. Se alguma pessoa impedir o monarca

de fazer justiça, os arcebispos, bispos e arquidiáconos devem obrigá-la a dar satisfação

ao rei desse ato.

Capítulo 14: Contra a decisão real, nenhuma igreja ou cemitério poderão

conservar os bens móveis que estejam sob a sua responsabilidade, porque eles pertencem

ao rei, mesmo que se encontrem no interior da igreja, ou fora delas.

Capítulo 15: As questões relativas aos débitos não pagos, feitos sob promessa

de pagamento ou não, são da competência jurisdicional do rei.

Capítulo 16: Os filhos dos camponeses não deverão ser ordenados sem a

concordância do senhor em cuja terra tenham nascido.

DOCUMENTO 23

Tratado de paz entre Frederico I e Alexandre III. MGH, Const. et acta, II, 362- 365.

O senhor Imperador Frederico, tendo reconhecido o senhor Papa Alexandre

como pontífice católico, prestar-lhe-á a devida reverêcia, como fizeram os seus

antecessores cristãos aos predecessores do mencionado Papa, e fará o mesmo quanto aos

seus sucessores entronizados canonicamente.

O senhor Imperador também restabelecerá a paz, não só com o Papa Alexandre,

mas igualmente com a Igreja Romana, e mantê-la-á, outrossim, com os sucessores do

Santo Padre. Por isso lhe restituirá de boa fé, salvo o que pertencer ao Império, as

possessoes, bens, dignidades ou algo que lhe pertencia e de que se tenha apropriado

pessoalmente ou por meio de outrem. Por sua vez, a Igreja Romana, de boa fé, devolverá

a Frederico I, exceto os seus próprios direitos, todas as possessões e bens que lhe tornou

pessoalmente ou por meio de outrem.

O Imperador ainda auxiliará a Igreja Romana a conservar tudo o que lhe vier a restituir, devolvendo-lhe e ao Papa Alexandre todos os seus vassalos que, ou capturou,

ou recebeu como reféns durante a vigência do cisma.

84

Além disso, o Imperador e o Papa ajudar-se-ão reciprocamente no tocante à

conservacão da honra e dos direitos do Império, o Sumo Pontífice, na condição de pai

bondoso em relação a seu devotado e muito amado filho, o cristianíssimo Imperador.

Este, por sua vez, agirá da mesma forma em relação ao seu amado e reverendíssimo pai,

o vigário do bem-aventurado Pedro.

O Imperador e os seus partidários devolverão às igrejas tudo o que lhes tiver

sido tomado, em razão do cisma e durante o período da sua vigência, ainda que a

apropriação haja ocorrido sem a devida autorização judicial. Beatriz, a imperatriz, e o seu filho Henrique, igualmente reconhecerão o Papa

Alexandre e os seus sucessores, como Pontífice católico, e prestar-lhe-ão a reverência

devida, fazendo-lhe o mesmo juramento que o Imperador vier a lhe prestar.

O Imperador e seu filho, o rei Henrique, firmarão uma verdadeira paz por

quinze anos com o ilustre rei da Sicília, de acordo com o que foi estabelecido e escrito

pelos mediadores da mesma. Firmarão também uma paz verdadeira com o Imperador de

Constantinopla e com todos aqueles que ajudaram a Igreja Romana, e não lhes farão mal

algum, pessoalmente ou por meio dos seus partidários, por causa da ajuda que lhe

prestaram.

Quanto às pendências e litígios surgidos entre o Império e a Igreja antes do

pontificado de Adriano, constituir-se-ão mediadores em representação das partes, os

quais serão investidos de todo o poder, com vista a resolvê-los por meio de acordo ou

sentença arbitral. No entanto, se os mediadores não conseguirem entender-se, os

conflitos serão dirimidos pelo julgamento do Imperador e do Romano Pontífice, ou pelas

pessoas que escolherem para tal propósito.

A Cristiano, chanceler do Império, será concedido o arcebispado de Mogúncia,

mas o de Colônia será confiado a Filipe. Ambos serão confirmados em toda a plenitude da dignidade e do múnus arquiepiscopal. A Conrado, se lhe convier, será concedido o

primeiro arcebispado que vagar no reino da Alemanha, por meio da autoridade do Sumo

Pontífice e com o auxílio do Imperador. Calisto receberá igualmente uma abadia. Os

assim chamados cardeais do antipapa terão de regressar aos lugares que ocupavam antes

da sua escolha para tal dignidade, a menos que espontaneamente renunciem aos cargos

que exerciam ou tenham sido destituídos, mas permanecerão no mesmo grau hierárquico

em que estavam antes da eclosão do cisma.

Gero, considerado atualmente bispo de Alberstadt, será deposto

incondicionalmente, e Ulrico, legítimo prelado daquela diocese, será reintegrado na

função. As alienações feitas e os benefícios concedidos por Gero, bem como outros atos

semelhantes feitos pelos demais intrusos, serão anulados pela autoridade papal e

imperial. Tais bens deverão ser devolvidos às igrejas que os possuíam.

Far-se-à uma investigação sobre o modo como se realizou a eleição do bispo de

Brandemburgo, indicado para o arcebispado de Bremen, e se a eleição e a indicação

tiverem ocorrido simultaneamente, o prelado será transferido para esta última igreja.

Tudo o que tiver sido alienado ou dado em benefício por Balduíno, que atualmente

dirige o arcebispado de Bremen, será restituído a esta igreja, desde que seja canonicamente justo. Tudo o que foi tomado à igreja de Salzburgo, por ocasião do

cisma, ser-lhe-á igualmente devolvido.

85

Todo o clero da Itália e o de outras regiões que não fazem parte do reino da

Alemanha permanecerão à disposição do Papa Alexandre e dos seus sucessores para fins

de julgamento, levando-se em conta, no entanto, que, se aprouver ao Imperador

interceder por aquelas dez ou doze pessoas que foram ordenadas canonicamente,

poderão elas vir a ser posteriormente reintegradas nas suas funções.

Garsidônio de Mântua será reintegrado na posse daquele bispado, e quem

atualmente o dirige será deslocado para o de Trento pela autoridade papal e com o

auxílio do Imperador. O arcipreste de Saco será plenamente reintegrado na posse do seu arciprestado, usufruindo de todos os benefícios de que gozava antes do cisma. Todos os

clérigos ordenados pelos bispos católicos ou por legados seus na reino da Alemanha

serão também reintegrados nos respectivos graus do sacramento da Ordem e não serão

castigados por causa do cisma.

Quanto à situação daqueles considerados bispos de Estrasburgo e de Basiléia,

que foram sagrados por Guido de Cremona, será conferida autoridade aos citados

mediadores ou a oito ou dez senhores que indicarem, para estudar a questão. Em

seguida, jurarão que o conselho que vierem a dar ao Papa e ao Imperador pode ser

canonicamente dado, sem causar mal nem às suas próprias almas, nem à do Papa e à do

Imperador. O Romano Pontífice posteriormente seguirá o predito conselho.

À semelhança do que Alexandre e os cardeais fizeram, ao acolherem Frederico

como Imperador Romano e Católico, assim deverão proceder com Beatriz, sua serena

esposa, na condição de Imperatriz Católica dos Romanos [...].

Todavia, se o Santo Padre for o primeiro a falecer, oxalá Deus não o permita, o

Imperador e o rei Henrique, seu filho, e os príncipes respeitarão firmemente este acordo

e tratado de paz, mantendo-o com os seus sucessores, com a Igreja Romana, com todos

os cardeais, com o ilustre rei da Sicília, com os lombardos e com os demais que lhe estiveram unidos.

Igualmente, se o Imperador vier a falecer primeiramente, que Deus não o

permita, o Sumo Pontífice, os cardeais e a Igreja Romana manterão firmemente a

mencionada paz com o seu sucessor, com Beatriz sua esposa sereníssima, com o rei

Henrique, seu filho, com todos os seus partidários e com todos os habitantes do reino

germânico, de acordo com o estabelecido nos parágrafos anteriores.

Os sucessores do Papa assim também procederão quanto aos termos deste

acordo, assinado por Wiemann, arcebispo de Magdeburgo, Filipe, arcebispo de Colônia,

Cristiano, arcebispo de Mogúncia, Arnoldo, arcebispo de Treves. Eu, Arduíno,

protonotário imperial, o lavrei.

DOCUMENTO 24

Carta de Alexandre III aos lombardos. In: PACAUT, M., op. cit, p. 180.

―[...] O Imperador Romano tinha a obrigação de defender e proteger a Igreja,

como seu advogado. Todavia, combateu-a, porque escutou a voz da ambição e não a da

86

razão. Dividiu a Igreja na sua unidade, opondo o altar ao altar, e não receou cortar a

túnica inconsútil de Cristo-Deus.

Daí, por estar rompida a unidade da Igreja e desfeito o vínculo de paz, a

dignidade da Igreja Romana foi quase aniquilada e ela, que tinha sido a mestra dos povos

e a monarca das províncias, foi submetida um pesado tributo. Foi igualmente aviltada na

sua autoridade, por causa daquela perseguição terrível e violenta, e parecia não haver

mais ninguém capaz de corrigir os erros e as faltas dos delinqüentes que se afastaram

completamente dos seus deveres, rompendo com os estatutos dos Santos Padres e violando os cânones por eles estabelecidos.

Assim, por causa daquele cisma e desavença, um grande número de mosteiros e

igrejas foram destruídos, a honestidade parcialmente desapareceu e a religião foi

conspurcada. Houve numerosos adultérios e fornicações, homicídios e roubos foram

cometidos sem julgamento e castigo. Vilas e castelos ficaram à mercê do saque e da

rapina [...].‖

DOCUMENTO 25

Textos de alguns dos decretistas

Rufino [...] [Graciano] chama império celeste aquele dos cavaleiros celestes, quer

dizer, o corpo clerical com o que lhe pertence. Ele designa por reino ou império terrestre

os leigos e as coisas seculares. Isto demonstra, portanto, que o Sumo Pontífice, o vigário

do bem-aventurado Pedro, possui um direito sobre o reino terrestre. Mas é preciso ressaltar que, de um lado há o direito de autoridade, e de outro, o de administração.

“[...] O Patriarca Supremo possui, portanto, um direito sobre o império terrestre

quanto à autoridade, de modo que é por esse motivo que ele, mediante sua autoridade,

confirma o Imperador, ao consagrar o reino terrestre, e, igualmente, porque ele impõe

um castigo mais severo ao Imperador do que aos outros leigos, que abusam das coisas

deste mundo, a quem ele absolve depois de terem feito penitência. Quanto ao Príncipe,

depois dele, possui a autoridade para governar os leigos [...]. (In: PACAUT, M. op. cit.,

p. 102).

Estêvão de Tournai [...] Há na mesma cidade, sob a autoridade do mesmo rei, dois povos, e de

acordo com os mesmos, dois gêneros de vida, segundo esses dois gêneros de vida, dois

tipos de governo, e de acordo com eles funciona uma dupla ordem jurisdicional.

A cidade é a Igreja, o rei da cidade é Cristo, os dois povos são as duas ordens

existentes na Igreja, a dos clérigos e a dos leigos, os dois gêneros de vida são o espiritual

e o material, os dois tipos de governo são o sacerdotal e o real, as duas jurisdições são o

direito divino e o direito humano. Dai a cada um o que lhe compete e tudo ficará em perfeita harmonia [...]. (Ibidem, p. 103).

87

Simão de Bisignano [...] Nenhum dos dois poderes é reciprocamente dependente, porque foi dito:

―eis aqui os dois gládios‖ [...] O Imperador não recebe do Papa o poder sobre o gládio,

mas antes de Deus, e ele é mais importante do que o Papa na esfera temporal [...].

(Ibidem, p. 103).

Hugucião [...] Algumas pessoas afirmam que o Imperador recebe o gládio e a dignidade

imperial do Papa e que ele o estabelece e que por isso pode depô-lo. Eu, no entanto,

afirmo que o Imperador possui o poder do gládio e a dignidade imperial não do Papa,

mas dos príncipes e do povo, mediante a eleição. Com efeito, o Imperador existiu antes

do Papa e o Império antes do Papado [...].

[...] Por acaso o Papa pode julgar o Imperador por causa de delitos cometidos

na sua própria esfera de ação? Penso que sim [...] Na verdade, se bem que o Imperador

seja mais importante do que o Papa na esfera temporal, por causa de seu orgulho, lhe

está submisso no âmbito espiritual [...] No entanto, quanto a afirmar que possa depô-lo,

acredito que seja verdade, desde que os príncipes o queiram e dêem o seu assentimento,

caso o Imperador tenha sido acusado perante o Papa e reconhecido culpado [...] Ao

contrário, o Papa, caso cometa um delito temporal, não pode ser julgado pelo Imperador

no âmbito secular, e com muito mais razão, na esfera espiritual [...] porque o Imperador

não exerce nenhuma espécie de jurisdição e direito de preeminência sobre o Papa [...].

(Ibidem, p. 106).

DOCUMENTO 26

João de SaIisbúria: Subordinação do poder laico ao eclesiástico Polycraticus, livro IV, cap. 3. In: P. L., 199, p. 516.

[...] Portanto, o príncipe recebe sua espada das mãos da Igreja, porque esta

última absolutamente não pode usar o gládio de sangue. Entretanto, o possui também,

embora faça uso dele, através do príncipe, a quem concedeu o poder para corrigir os

corpos. Por conseguinte, o príncipe, de certo modo é um ministro do sacerdote, e quem

exerce aquela parte dos ministérios sagrados que parece lhe ser indigna de a exercer,

pois todo ofício das leis sagradas é religioso e pio. Todavia, é algo inferior o que ocorre

no tocante à punição dos crimes e parece representar certa imagem de verdugo.

Foi por esse motivo que Constantino [...] ao presidir o Concílio dos sacerdotes

ocorrido em Nicéia, não ousou ocupar o primeiro lugar, mas procurou um secundário,

nem quis se intrometer com as assembléias dos presbíteros, e as decisões que foram

tomadas por eles as acolheu e as reverenciou de tal modo, como se tivessem sido

promulgadas pela Majestade Divina [...]‖.

88

3

Hierocracia e Teocracia

no século XIII

3.1 AS IDÉIAS POLÍTICAS DE INOCÊNCIO III

Em 1198, foi eleito Papa o Cardeal Lotário Segni, então com trinta e sete anos,

o qual tomou o nome de Inocêncio III (1198-1216). Discípulo brilhante de Hugucião em

Bolonha, fez, como se pode imaginar, uma rápida carreira eclesiástica.

Muitas páginas excelentes já foram escritas1 sobre o pensamento e a atuação

política deste Papa, tido na conta de suserano universal. Nosso propósito reside em

salientar exclusivamente a sua contribuição para a sedimentação e ampliação do

Sacerdotalismo.

O pensamento político de Inocêncio III se encontra espalhado tanto em seus

escritos e sermões como em suas cartas. Muitas dessas cartas foram mais tarde

incorporadas ao Direito Canônico sob a forma de decretais.

Tomemos como ponto de partida a decretal Solitae,2 dirigida ao Imperador

bizantino Aleixo III (1195-1203).

No § 2º da mesma, o Papa, comeca a responder aos argumentos que o

Imperador Bizantino havia apresentado, numa outra carta que lhe tinha escrito antes, em

que tentava demonstrar a superioridade do poder imperial sobre o sacerdotal.

Aleixo III, para fundamentar sua tese, havia se apoiado naquele passo da 1a

Epístola de São Pedro [2, 13-17] em que o Príncipe dos Apóstolos exorta os fiéis em

1 Cfr. a propósito: MACCARONE, M. Chiesa e Stato nella Dottrina di Papa Innocenzo III. Roma,

1940; Idem, Studi su Innocenzo III. Padova, 1972; LAUFS, M. Politik und Recht bei Innocenz III.

Koln-Vien, 1980; WATT, J. A.The theory of Papal Monarchy in the thirtheenth century. Traditio, 20 (1964), particularmente p. 190-235 2 O texto original foi publicado na Patrologia Latina (PL), v. 216, p. 1182-1185. Traduzimo-lo

para o vernáculo no artigo entitulado ―Contribuição de Inocêncio II à hierarquia‖, Leopoldianum,

45 (1989), p. 107-122. Cfr. Documento 27.

89

geral, a serem submissos às autoridades constituídas, uma vez que elas existem,

conforme o desígnio de Deus, para castigar os maus e recompensar os bons.

O Santo Padre, no mencionado parágrafo, redarguindo a Aleixo, argumenta

alicerçado em três pares de binômios, cujos termos estão relacionados entre si — Sumo

Pontífice/Imperador; espiritual/temporal; alma/corpo — e visam a ressaltar a

preeminência do Sacerdócio pelo fato de seus ministros, em particular o Papa,

desempenharem uma tarefa cuja natureza é espiritual e, assim, mais excelsa, conforme a

essência da alma e para seu proveito. É importante notar que o Papa, no fundo, apóia-se no mesmo argumento

metafísico em que Hugo de São Victor havia se inspirado, como já tivemos ocasião de

ver.

Ainda no mesmo parágrafo, o Papa redarguiu outros argumentos hauridos no

Antigo Testamento, apresentados pelo Imperador Bizantino com vista a demonstrar a sua

tese.

Desde este passo da decretal, vemos o Papa dar à teoria hierocrática novos

elementos para robustecê-la: mesmo que na época do Antigo Testamento os reis tenham

mandado nos sacerdotes, agora, na época do Novo Testamento, é diferente, porque o

Sumo Sacerdote da Nova Aliança, Cristo, redimiu os homens através de sua paixão e

morte, e deixou na terra um Vigário, para que prossiga na tarefa que ele começou. O

sacerdócio tem, portanto, uma função soteriológica, bem mais relevante, pela sua

finalidade e transcendência, do que a desempenhada pelo poder régio, daí, outrora, os

reis terem exercido um poder supremo e exclusivo sobre toda a sociedade.

No § 4º, Inocêncio III, mantendo o mesmo estilo de argumentação, fundamenta

sua tese, concernente à supremacia do Sumo Pontificado sobre o poder temporal,

recorrendo a novos pares de binômios, que estão relacionados com os anteriores, cujo suporte é um passo do Gênesis [1, 14-17]: sol/lua; dia/noite; espiritual/temporal;

alma/corpo; pontífices/reis.

Um pouco mais adiante, no § 6º, Inocêncio III arremata suas considerações

sobre a preeminência do sacerdócio sobre a realeza, citando os conhecidos passos

evangélicos que sustentam a commissio Petri ou o Primado Pontifício, o qual foi

concedido por Cristo a S.Pedro, e deve ser exercido sobre todos os batizados, leigos e

clérigos, reis e servos, e que faculta ao seu detentor corrigir aquelas ovelhas que se

desviam do caminho reto.

A Igreja é, portanto, a única sociedade a se ter em conta, pois dela, mediante o

batismo, fazem parte todos os fiéis, e, por isso mesmo, tem de ser governada por uma só

cabeça que, de acordo com o Evangelho, é o Papa. Trata-se, na verdade, de um

organismo espiritual com uma dimensão temporal subsidiária, não de um corpo

bipartido, ―quase um monstro‖, para empregarmos a comparação usual entre os

medievais. O único objetivo desta comunidade universal dos fiéis reside em alcançar a

salvação eterna; daí o Papa tratar o Imperador como filho, pelo fato de na esfera

espiritual ele indubitavelmente estar subordinado ao Romano Pontífice.

90

Um outro documento da lavra de Inocêncio III que merece nossa atenção, pelo

seu pragmatismo político, é a decretal Venerabilem,3 escrita em março de 1202 e

endereçada aos príncipes eleitores, dos quais três eram eclesiásticos, os arcebispos de

Treves, Mogúncia e Colônia, competindo a este último ungir, coroar e sagrar o

Imperador em nome do Papa, e os outros quatro leigos. Todos, em conjunto, eram tidos

como os sucessores e herdeiros dos senadores romanos. Essa decretal concerne às

relações entre o Papado e o Sacro Império Romano Germânico.

Desde a morte do Imperador Henrique VI Staufen, em 1197, dois príncipes alemães disputavam pelas armas e pelo voto a coroa imperial: Filipe Staufen e Otão,

duque de Brunswick. A guerra entre eles causara já a morte de muitas pessoas, bem

como a destruição de cidades, castelos, plantações e propriedades na Alemanha e na

Itália. Além disso, o sistema cleitoral germânico não previa uma solução para casos

como este.

Nessa decretal, logo no § 3º, o Sumo Pontífice oficializou a teoria da Translatio

Imperii, segundo a qual foi o Papa Leão III (795-816) que transferiu o Império dos

gregos para os germânicos, na pessoa de Carlos Magno (800-814), no natal de 800, dado

que os bizantinos, naquela oportunidade, eram governados por uma mulher, Irene.

Inocêncio III apoiava a sua teoria num relato acerca deste acontecimento, registrado nos

Anais da Cúria Romana, escrito em 801. Assim, o Império ficava sob a auctoritas

pontifícia, perspectivado como um beneficium eclesial, outorgado de acordo com o

direito canônico, ficando, pois, o Imperador na condição de beneficiário (vassalo) da

Igreja, e com a obrigação de defendê-la.

Outrossim, o Sumo Pontífice ressaltou que sequer teve a intenção de reivindicar

um direito que não lhe pertencia, uma vez que eram os príncipes eleitores que tinham o

dever de escolher algum como rei da Alemanha, o qual depois ira ser promovido a Imperador.

No parágrafo seguinte, Inocêncio III estabeleceu, pela primeira vez, que o

exame quanto à aptidão e ao caráter do candidato ao trono imperial cabia ao seu

consagrante, isto é, o próprio Papa, adaptando para a esfera das relações entre o Papado e

o Império uma prática usual e institucionalizada no tocante à confirmação dos bispos

eleitos pelos cabidos diocesanos, efetuada ou pelo Metropolita ou pelo Santo Padre.

O que essas medidas denotavam, conquanto o documento não o diga

explicitamente? Significavam que, na concepção do Pontífice explicitada desde

Alexandre III (1159-1181), a Igreja era a causa eficiente do Império e do poder imperial

e que o Imperador era um advocatus et protector Ecclesiae. Aliás, no § 6º, o Sumo

Pontífice indaga se é justo que a Sé Apostólica fique sem um protetor por causa da

negligência dos príncipes eleitores.

Nesse mesmo parágrafo, Inocêncio III estabeleceu um outro ponto lapidar da

teoria política relativa à preeminência do poder pontifício sobre o imperial, que irá se

consagrar no transcurso do próprio século XIII e durante boa parte do XIV, afirmando

que numa eleição imperial, quando não houver acordo entre os eleitores, o Papa, em

3 Esta decretal encontra-se publicada na P. L., 216, p. 1065-1067. Igualmente traduzimos alguns

trechos da mesma, no artigo supra citado, p. 114-115. Cfr. Documento 28.

91

seguida a ter chamado à ordem os príncipes, dando-lhes um certo tempo para que

exercitem o seu direito, se isto não ocorrer, poderá então favorecer a uma das partes,

dado que o escolhido irá ser ungido, coroado e consagrado por ele próprio.4

Ademais, este princípio irá permitir que, doravante, os papas reivindiquem o

direito de só tratarem alguém como Imperador depois de a sua eleição para o cargo real

ter sido sancionada pela lgreja, ou, melhor, depois de o Sumo Pontífice, reconhecendo

sempre o direito de os príncipes elegerem o rei da Alemanha como candidato à coroa

imperial, por saber que tal direito é uma concessão da Santa Sé, sagrar o eleito como legítimo Imperador, até aí simples candidato.

Uma outra decretal famosa de Inocêncio III, por causa das teses políticas aí

enunciadas, é a Per venerabilem,5 igualmente escrita em 1202. Esse documento veio a

lume face à solicitação do conde Guilherme de Montpellier dirigida ao Sumo Pontífice,

através do Arcebispo de Arles, que desejava que seus filhos bastardos fossem

legitimados a fim de que pudessem herdar seus bens.

Como se percebe, trata-se de uma questão com múltiplas facetas, entre as quais

a sócio-econômica, a ético-religiosa e a jurídico-política feudal. Sob este último aspecto,

de acordo com o entendimento de Guilherme, o Papa era competente para legitimar

filhos adulterinos e naturais, porque assim procedera com a prole do Rei Filipe Augusto

(1180-1223), tida com Inês de Meran, e, ainda, porque ele era vassalo da Sé Apostólica,

em vista de ter recebido territórios da diocese Magalonense.

Sob o angulo ético-religioso, os filhos adulterinos eram o fruto de uma união

pecaminosa, de modo que só o juiz na esfera espiritual era competente para examinar e

julgar casos envolvendo tal tipo de pessoas. Por último, considerada sob o aspecto

econômico-social, Guilherme não queria deixar seus únicos filhos desamparados, uma

vez que naquela época os bens da raiz eram os únicos que asseguravam o poder, o status social e o prestígio.

Inocêncio III comecou a responder ao conde afirmando que, em princípio, a

Santa Sé poderia vir a atender tal solicitação, com vista a um objetivo temporal, pois

tinha pleno direito de legitimar bastardos e adulterinos para que estes pudessem vir a ser

consagrados bispos, cujas tarefas que irão desempenhar, muito mais importantes, são de

natureza espiritual, e como estas se sobrepõem àquelas, em vista do primazia do espírito

sobre a matéria, era natural que a autoridade competente para legitimar na esfera

superior também o fosse na inferior. Uma vez mais, o Papa retoma o argumento

4 PACAUT, M. La théocratie, l‘Eglise et le pouvoir au Moyen Age. Paris: Desclée, 1989, p. 119:

―[…] Iorsque les électeurs son divisés et élisent deux personnes, comme cela se produit em 1197,

il revient au pape, causa urgente, de les examinar l‘un et l‘autre et de discerner lequel des deux est le plus apte à exercer l‘office suprême selon la volonté divine, donc de dénoncer le vote en faveur

de l‘auter comme um peché. Au nom de son droit prééminent (principaliter), qui est d‘essence

spirituelle mais s‘exerce à ce niveau dans le domaine politique, comme lors du transfert de

l‘Empire, le pontifice reconnaît le premier uniquement em fonction de sés mérites en adéquation avec la fin rechée (finalter), et non em fonction dês conditions jurisdiques (respect des règles) de

l‘élection [...].‖ 5 Esta decretal encontra-se publicada na P. L., 214, p. 1130-1134. Também traduzimos alguns

trechos da mesma, no artigo acima referido. Cfr. Documento 29.

92

metafísico da superioridade dos seres espirituais sobre os materiais para embasar sua

argumentação jurídico-política.

No entanto, em seguida, o Sumo Pontífice passou a analisar e a refutar os

argumentos apresentados por Guilherme. O Rei da França, então viúvo da primeira

esposa, dela já tinha tido um herdeiro legítimo e naquele momento estava separado da

nova esposa, tendo alegado, para tanto, impedimento de afinidade, sentença essa que

fora sancionada pelo Legado Apostólico em Paris. O Conde, ao contrário, teve filhos

com outra mulher, estando casado com sua legítima esposa. Com referência aos filhos que o Rei tivera com Inês, enquanto questão do grau

de afinidade parental com Ingebergue não fosse definitivamente resolvida, permanecia a

dúvida se os mesmos eram legítimos ou não.

Mais adiante, Inocêncio III afirmou que o Rei dos Francos, pelo fato de não

admitir que não possuía nenhum superior na esfera temporal, então recorreu à autoridade

pontifícia com aquele propósito, sem que estivesse a lesar o direito de ninguém,

conquanto talvez pudesse legitimar os próprios filhos, não como pai, mas como príncipe

em relação aos súditos.

Por isso, o Papa diz que atendeu à solicitação de Filipe, levado por esses

motivos, e considerando que em face de certas circunstâncias ele também exercia a

jurisdição secular noutras regiões.

Na parte final desse documento, Inocêncio III, para fundamentar sua tese

quanto a ter o direito de intervir casualmente na esfera secular, recorreu a uma passagem

do Deuteronômio [17, 8-13] alusiva à organização sócio-político-religiosa hebraica,

associando-a com aquele passo do Evangelho de Mateus (16, 16-20) relativo ao mandato

e primado petrinos.

Segundo o Papa, o lugar escolhido por Cristo, conforme a mencionada passagem do Deuteronômio, para a Respublica Christiana ser dirigida é a Sé Romana.

Os levitas e o Sumo Sacerdote aí mencionados simbolizam respectivamente os

sacerdotes da Nova Aliança e o Romano Pontífice, a quem o Senhor, na pessoa de Pedro,

estabeleceu como seu vigário sobre a terra, dando-lhe assim uma posição singular em

relação aos demais fiéis.

No tocante às três espécies de causas/julgamentos referidas naquele passo do

Deuteronômio, a primeira diz respeito às civis/criminais, as quais compete

exclusivamente aos juízes seculares examiná-las e julgá-las; a última relaciona-se com as

questões atinentes à esfera espiritual, obviamente da alçada do foro eclesiástico; a do

meio refere-se às questões mistas, isto é, simultaneamente espirituais e seculares, por

exemplo, causas tratando de dote, de herança, de divórcio, associadas ao sacramento do

Matrimônio.

Ante esse tipo de causa, nas hipóteses de os juízes subalternos terem alguma

dúvida quanto à medida mais justa a ser tomada, ou decidirem lesando o direito de uma

das partes, devia-se recorrer ao Sumo Pontífice, cujas sentenças tinham de ser cumpridas

à risca, sob pena de se incorrer no castigo eterno.

93

Uma outra decretal de Inocêncio III, a Novit Ille,6 escrita em 1204, forneceu

mais subsídios teóricos para a posterior ampliação da jurisdição pontifícia na esfera

secular.

Em boa parte desse documento, Inocêncio III discorreu sobre a origem divina

do poder papal dado por Cristo a Pedro e na pessoa dele aos seus sucessores; falou

também das atribuições de competência específica da autoridade pontifícia: corrigir

qualquer cristão que peca mortalmente e castigá-lo com as penas eclesiásticas; conduzir

o pecador do vício à virtude, do erro à verdade; enfim, propiciar a todos os homens os meios para que alcancem a salvação eterna.

A novidade doutrinária acerca da competência jurisdicional do poder papal,

introduzida por Inocêncio III nesta decretal consistiu em ele ter afirmado que o rei João

(1199-1216) da Inglaterra denunciara à Igreja que o seu suserano, Filipe Augusto, tinha

pecado contra ele, fato esse que obrigava o Sumo Pontífice, por dever de ofício, a ouvi-

lo e a apresentar uma solução para aquela disputa entre os dois príncipes cristãos. Não se

tratava, portanto, de judicare de feudo, cuja responsabilidade era do Rei dos Francos,

mas decernere de peccato, incumbência essa inerente ao poder sacerdotal, e, de acordo

com o estabelecido pela Lei Divina, todos os batizados que pecassem tinham de ser

julgados da mesma maneira pelos ministros eclesiásticos.

Ora, naquele caso, como se tratava de dois monarcas em conflito, era natural

que o Sumo Pontífice interviesse na contenda, não apenas por um motivo de precedência

hierárquica e de neutralidade da parte da Sé Romana, mas igualmente ainda, pelos fatos

de a iminência de uma guerra que poderia vir a ocorrer entre ambos, ser um pecado

mortal gravíssimo, e porque João e Filipe, conquanto tivessem firmado tratados de paz

sob juramento, não os haviam cumprido.

Se considerarmos, portanto, que na Societas Christiana qualquer delito, em princípio, era um pecado, ao menos teoricamente, esta e a decretal anteriormente referida

conferiam ao Sumo Pontífice uma plenitudo potestatis tanto na esfera espiritual quanto

na temporal. Noutras palavras, o Pontífice Romano, possuindo uma autoridade regular

para julgar os pecadores e os pecados que estes cometeram, no fundo de modo implícito

estava insinuando ter competência para interferir na esfera secular quando lhe parecesse

que convinha fazê-lo em proveito da política papal.

Em termos efetivo-práticos, bastava então que o Papa tivesse prestígio e força

política para de fato exercer uma suserania sobre a Cristandade Latina. Tal foi o caso,

por exemplo, do próprio Inocêncio III, de Inocêncio IV (1243-1254) e de João XXII

(1316-1334).

Há ainda uma outra importante decretal política de Inocêncio III. É a Licet ex

suscepto dirigida ao bispo de Vercelli, no ano de 12067. Concerne ao problema se uma

causa qualquer poderia ser examinada pelo próprio antístite, ou pelo Papa ou pelos juízes

da comuna.

6 Esta decretal se encontra na P. L., 215, p. 325-328. Igualmente a traduzimos no antes artigo

citado, Cfr. Documento 30. 7 Corpus Iuris Canonici, ed. AEMILIUS. FRIEDBERD, Akademische Duruk U. Verlagsansalt,

Graz, 1995, p. 250-251. Cfr. Documento 31.

94

O Papa estabeleceu que se porventura os cônsules não a quisessem examinar,

ou fossem incapazes de fazer justiça, ou se suspeitasse de que poderiam vir a favorecer

uma das partes, e considerando também que se o trono imperial estivesse vago, instância

à qual se devia normalmente recorrer, então a causa poderia vir a ser examinada pelo

tribunal diocesano ou pela Sé Apostólica, a fim de que a justiça viesse a ser feita.

Em suma, podemos resumidamente afirmar que:

a) Inocêncio III deu continuidade e ampliou o programa político-eclesial de

seus antecessores, adequando-o de maneira realista ao momento histórico em que viveu, e preparando, outrossim, o caminho teórico para o futuro desenvolvimento da

hierocracia à época de Inocêncio IV e de seus sucessores.

Isso ainda ocorreu graças às seguintes atitudes que tomou:

b) Ao intitular-se, por exemplo, Vigário de Cristo, e não mais vigário de Pedro,

como o tinham feito Gregório VII e seus predecessores, introduziu na terminologia

eclesiológico-política um conceito lapidar, dado que a frase paulina Omnis potestas a

Deo [Rm 13, 1], desde então, nos círculos hierocráticos durante o medievo, sempre irá

significar que, na Sociedade Cristã, todo poder vem de Cristo e, por extensão, que todo

poder vem do Vigário de Cristo.8 De fato, o Papado tenderá a ampliar o seu vicariato em

vários aspectos: quer se transformando progressivamente a si próprio na fonte de todo o

poder, ao se atribuir uma plenitudo potestatis não só no plano espiritual, mas também no

secular, quer modificando sutilmente interpretações de passagens da Sagrada Escritura

relativas ao primado pontifício.

c) Além disso, Inocêncio III não mais recorreu apenas à passagens do Novo

Testamento, mas também a trechos do Antigo, para justificar a preeminência do poder

sacerdotal sobre toda a cristandade, ao mesmo tempo que introduziu no vocabulário

político papal expressões técnicas precisas, as quais foram aproveitadas pelos hierocratas dos tempos seguintes,

d) Segundo Inocêncio III, reiterando uma tese já defendida desde meados do

século XII pelos Pontífices, o Imperador e os reis desempenham na cristandade um

papel, cujo objetivo é idêntico àquele a ser executado pelos ministros eclesiásticos,

embora em grau e dignidade inferior, porque a esfera de sua atuação limita-se a

organizar materialmente as comunidades particulares que governam, a fim de que os

seus súditos possam alcançar a salvação eterna da melhor maneira possível. Assim,

quando os soberanos transgridem os mandamentos divinos e os cânones, os quais

obrigam sempre, tanto no foro de consciência quanto no público, o Papa tem o direito de

interferir politicamente tanto no Império quanto nos reinos onde ocorrer esse tipo de

problema.9

8 Cfr. DENIEL, R. Omnis potestas a Deo – l‘origine du pouvoir civil et sa relativon a l‘Église.

Recherches de Sciences Religeuses, 56 (1968), p. 43-85 9 PACAUT, M. Op. cit., p. 113: ―La jurisdiction ecclésiastique en matière de pêché (ratione

peccati) cesse d‘être uniquement de for interne et privé pour entrer dans le droit public. Le

gouverment sacerdotal, qui appartienne ainsi à la Papauté, est celui de la société, et non

uniquement celui de l‘Église [...].‖

95

3.2

O IUS NOVUM Se, com Inocêncio III, estamos no ponto de charneira entre o exercício de uma

plenitudo potestatis in temporalibus mitigada e uma outra declaradamente radical, outro

tanto sucedeu com os primeiros decretalistas.

Reiteramos que jamais compreenderemos bem a problemática política

medieval, em especial no respeitante às relações entre os poderes espiritual e temporal, sem tomarmos em consideração o contributo dos juristas. Noutras palavras, se a política

na Idade Média não foi somente o resultado de um processo histórico-material despido

de uma ideologia forte e consistente, também não residiu somente na decorrência de uma

reflexão filosófica abstraída de outros planos da cultura, entre os quais o direito, que

desempenhou papel de grande relevo.

O ius novum, caracterizado pelos cânones conciliares, bem como pelas decretais

promulgadas pelos papas desde Alexandre III até 1234, sob o pontificado de Gregório

IX, reunidos e organizados pelo canonista S. Raimundo de Peñaforte e promulgados

naquele ano pelo Pontífice então reinante, integraram os Cinco livros das decretais.

Esses textos abriram novas perspectivas à reflexão sobre as relações entre os

poderes, tarefa essa levada a termo pelos decretalistas. Infelizmente não podemos, aqui,

discorrer e analisar em toda a amplitude o contributo dos mesmos para o pensamento

político da Idade Média. Baste-nos destacar duas correntes que houve entre eles: uma

moderada, formada por João o Teutônico, Lourenço e Vicente Hispano, e outra,

extremada, constituída pelo inglês Alano, Tancredo e Bernardo de Parma o Jovem.

Ambas confluíram, a seu modo, para o fortalecimento do pensamento

hierocrático, determinando as circunstâncias em que o poder papal poderia intervir no âmbito temporal. Os adeptos da primeira corrente, em princípio, mantiveram-se

dualistas, limitando bastante tal intervenção, a ponto de restringi-la às seguintes

circunstâncias: quando o Império estivesse vacante e não fosse possível recorrer a uma

instância superior; quando os juízes seculares fossem suspeitos de parcialidade; quando

as causas fossem ambíguas e os juízes não estivessem seguros quanto à maneira de as

julgar; e ratione peccati.

Pode-se claramente notar que tais idéias relativas à intervenção do poder

espiritual na esfera de competência do temporal, embora sejam relativamente moderadas,

se fundamentaram nos textos e no pensamento de Inocêncio III.

Entre os decretalistas moderados, também se destacou Sinibaldo Fieschi,10

mais

tarde, Sumo Pontífice, sob o nome de Inocêncio IV. Ex-professor de Direito da

Faculdade de Bolonha, antes de vir trabalhar na Cúria Romana, sob o pontificado de

Honório III (1216-27), escreveu posteriormente uma obra intitulada Apparatus ad

quinque libros decretalium, em que defendeu as seguintes teses: o poder imperial é

autônomo na sua esfera própria de ação; o Papa, no entanto, é o chefe de toda a

10 Cfr. PACAUT, M. l‘Autorité pontificale selon Innocent IV. Moyen Âge, 66 (1960), p. 85-119,

em essencial, páginas 85-98.

96

Cristandade, enquanto supremo dirigente da Igreja, identificando, como se nota, esta

última com a própria Christianitas.

O canonista Alano ânglico, contado ―inter defensores suprematiae Ecclesiae in

temporalibus‖11

é um dos principais expoentes da corrente que designamos por

extremada. ―Il explique très clairement que, pour lui, le pape a les deux glaives, mais

que, ne pouvant garder le temporel (qui symbolise le pouvoir politique et non plus le

bras séculier de l‘Église), il doit remettre à l‘élu des princes‖.12

É evidente que as teses que Alano, Bernardo e Tancredo propuseram e defenderam nos seus Apparatus não serão bem compreendidas, se olvidarmos o contexto

histórico em que eles viveram, plenamente favorável ao exercício de uma suserania

efetiva da Santa Sé sobre a Cristandade.13

Os fundamentos teóricos para as idéias que propuseram foram o mandato

petrino e o vicariato de Cristo possuídos pelo Sumo Pontífice. Tais idéias se referiam ao

direito, segundo eles, de o Papa poder interferir na esfera secular, fora do Patrimonium

Petri, legislando ou julgando causas, nas seguintes circunstâncias, além daquelas

propostas pela corrente moderada: 1) quando se tratar de causas connexae, isto é,

relacionadas com um dos Sacramentos; por exemplo, o dote conexo com o Matrimônio,

a herança conexa com Batismo etc.; 2) quando se tratar de causas annexae, quer dizer, de

algo assessoriamente anexo a alguma coisa espiritual; por exemplo, a ruptura de um

tratado de paz celebrado entre príncipes cristãos, sob juramento, e, ainda, porque a paz

era fruto da caridade, uma das virtudes teologais; 3) quando as autoridades seculares

fossem negligentes no tocante a proporcionar o bem-estar material e espiritual a seus

súditos, porque não estavam cumprindo com uma obrigação ética inerente ao seu ofício;

4) quando um crime qualquer fosse denunciado ao tribunal eclesiástico, uma vez que o

mesmo era tido na conta de um pecado. Alano particularmente ―believed quite simply that if the pope was vicar of

Christ, was head of Christian society, was the maker and breaker of emperors and

11 CANTINI, J. De autonomia iudicis saecularists et de Romani Pontificis plenitudine potestatis

secundum Innocentium IV. Salesianum, 23 (1961), p. 433 12 PACAUT, M. La théocratie, l‘Eglise et le pouvoir au Moyen Âge. Paris: Desclé, 1989, p. 123 13 STIKLER, A. M. Sacerdotum et regnum nei decretisti e primi decretalisti. Salesianum, 7 (1953),

p. 582: ― E qui crediamo opportuna uma osservazione su um punto importantissimo del metodo

che si deve seguire chi indaga il pensiero politico dei glossatori: nel Diritto la teoria senza

l‘applicazione pratica è come um recipiente senza il contenuto [...]‖. Ainda sobre o pensamento político dos canonistas em geral, sugerimos ao leitor consultar o seguintes trabalhos: ULLMANN,

W. Medieval papalism. London, 1949; Idem, Medieval political thought. London: Penguin Books,

1972; Idem The growth of papal government in the Middle Age. London, 1955; TIERNEY, Brian.

Foundations of the conciliar theory, the contribuition of the medieval canonists from Gratian to the Great Schism. Cambridge. CUP, 1955; PARADISI, Bruno. Il Pensiero politico dei giuristi

medievali. In: Storia delle idée politiche, economiche e sociali . Torino: Unione Tipográfica

Torinese, 1983, p. 211-342, v.2 Da página 343 à 366, o autor apresenta uma ampla bibliografia

especializada, relativa aos 18 subtítulos tratados em seu estudo.

97

kings‖,14

e por essa mesma razão, ele igualmente era ―iudex ordinarius omnium de omni

negotio‖.

O documento infra selecionado15

ilustra bem a preeminência pontifícia sobre o

imperador, na ótica de Alano, enriquecido, aliás, com um comentário literal à passagem

do Evangelho de Lucas alusiva aos dois gládios.

Como já afirmamos, a Igreja tinha um programa a cumprir, o qual sempre

transcendeu os seus intérpretes em cada época histórica. Explicitemos melhor. Não se

tratava de um programa estrategicamente preparado e depois progressivamente executado, de acordo com as circunstâncias e os interesses de momento, por cada Papa.

Tratava-se, antes, de um conjunto de princípios que, bebidos na autoridade revelada e

conjugados com o direito antigo e a filosofia neoplatônica, não podiam senão levar a

determinadas conseqüências, as quais eram consubstanciadas no dirigismo papal da

sociedade cristã. E isto não aconteceu devido a um processo intencionalmente pensado e

arquitetado, mas à conjuntura histórico-social da Idade Média, em que as esferas do

espiritual e do secular só muito dificilmente poderiam ser pensadas como autônomas.

O homem medieval não tinha consciência, como nós hoje a temos, de estar

dividido entre dois campos, o político e o religioso, e de estes, malgrado as suas

recíprocas influências, serem independentes e dotados cada um de atribuições e regras

específicas. O homem medieval tinha, sim, a consciência de pertencer a uma sociedade

única, a Respublica Christiana, cuja unidade, destruídos os alicerces do império pagão,

só podia radicar na fé cristã. Tudo o mais veio por acréscimo. Mas a fé cristã não

dependia do homem, não tinha nele os seus fundamentos; provinha de Deus e nele

encontrava os princípios a serem obedecidos, não só na esfera que hoje consideramos

estritamente religiosa, mas também no âmbito englobante da vida humana, em sociedade

ou em privado. Assim, a admissão de uma dupla chefia da Cristandade, protagonizada por

Gelásio I, não era facilmente aceita ou, pelo menos, trazia conseqüências gravosas para a

vida social, organizada em vista do bem comum. O próprio Gelásio, aliás, distinguia,

entre auctoritas sacerdotal e potestas régia, e atribuía à primeira um preeminência em

razão da dignidade. Tudo conduzia para a consideração de que uma mesma comunidade

com duas cabeças era uma espécie de monstro (quasi monstrum). E o primado do

espiritual sobre o material, conjugado aqui com o imperativo neoplatônico de redução da

multiplicidade (dos reinos temporais) à unidade (do poder papal) viria a impor o Sumo

Pontífice como chefe único da Ecclesia-Christianitas, vendo-se no Imperator o simples

braço armado da Igreja, para sua defesa e advocacia.

A teocracia régia bebia os seus princípios nas mesmas fontes doutrinais da

hierocracia. Daí a sua dificuldade em se impor e reclamar para o Imperador a suprema

liderança e governo da Respublica Christiana.

14 WATT, J. A., art. cit. p.277. 15 Cfr. Documento 32.

98

3.3

OS PASTORES E A ÁGUIA

A controvérsia entre os poderes espiritual e temporal, que já tivemos ocasião de

examinar, prolongar-se-á na história medieval. Mas, apesar das diferenças

circunstanciais, o terreno mental é o mesmo. Daí que assistamos, então, a um

progressivo reforço das teses hierocráticas, provocado, aliás, segundo cremos, pela também tendência crescente de afirmação da teocracia régia. A tal confronto nos

referiremos agora, reportando-nos à época do Papa Inocêncio IV e do imperador

Frederico II.

Foi uma luta empolgante, não somente no terreno dos fatos, mas também no da

história cultural e das idéias políticas por ambos defendidas.

Mas, para entendermos com objetividade e clareza a dimensão que a hierocracia

alcançou nos escritos de Inocêncio IV, e a teocracia nos textos e na prática de Frederico

II, teremos de examinar, ao menos de passagem, o contexto em que os mesmos se

desenvolveram.

Frederico II,16

graças ao apoio do seu tutor, Inocêncio III, cingiu efetivamente a

coroa imperial em 1215. Em troca prometeu-lhe que abdicaria do trono siciliano em

favor do seu filho Conrado. No entanto, após a morte do Papa, não cumpriu com o

prometido, conservando os cetros da Sicília e do Império. Deste seu ato resultava que o

Patrimonium Petri ficava cercado, ao sul e ao norte, pelos Staufen. De acordo com M.

Pacaut, desde Alexandre III e Inocêncio III, ―la liberté del‘Italie semblait au Saint Siège

la condition nécessaire à la liberté de l‘Église, la Papauté ne se sentait réellement libre si

elle ne disposait d‘un ensemble de territoires lui appartenant en propre et sur lesquels ne s‘exerçait aucune autre souveraineté [...]‖.

17

Além disso, o Stupor Mundi, como Frederico II também era conhecido,

prometera repetidas vezes a Honório III (1216-1227) e a Gregório IX (1227-1241)

organizar uma cruzada contra os Turcos Seldjúcidas, que haviam reconquistado a Terra

Santa aos Latinos, impedindo-lhes as peregrinações àquele local. Em 1229, finalmente, o

Imperador optou por assinar um tratado com Malik el Kamil, sultão do Egito, pelo qual

se comprometia, não só a auxiliá-lo contra o sultão de Damasco, mas também a impedir

que os príncipes ocidentais atacassem os seus territórios. Em troca, Malik assegurou-lhe

a posse do reino de Jerusalém, o qual lhe pertencia como dote de casamento com a filha

de João de Brienne, assim como a liberdade de trânsito para os peregrinos cristãos.18

Esses acontecimentos levaram Gregório IX a excomungar Frederico II, o qual

em represália passou a perseguir eclesiásticos, a confiscar os bens da Igreja nos seus

domínios e, por fim, a tentar conquistar Roma (1239), na tentativa de capturar o já idoso

Pontífice. ―Dans l‘été 1240, devant la vigueur des iniciatives impériales le pape

convoqua à Rome un concile pour juger Fréderic. Celui-ci s‘employa aussitôt à

16 BENOIST-MÉCHIN. Frédéric de Hohenstaufen ou le rêve excommunié. Paris: Perrin, 1980. 17 PACAUT, M. L‘autorité pontificale selon Innocent IV. Moyen Âge, 66 (1960), p. 90. 18 Cfr. VILLORSLADA, R. Historia de la Iglesia Catolica. Madrid: BAC, 1963, p. 496-503. v. 2.

99

empecher les prêlats de se rendre à la convocation. En mai 1241, tandis qu‘il était

installé à Tivoli d‘où il menaçait Rome, la flote de Pise, son alliée, attaqua les navires

gênois qui transportaient des évêques, dont deux furent noyés et une centaine faits

prisioners.‖19

Pouco depois, em agosto, Gregorio IX faleceu.

É interessante notar que Gregório IX, pouco antes de falecer, exatamente em

1236, reintroduziu no discurso político em favor da preeminência papal in temporalibus,

sobre o Império, a Donatio Constantini, que os papas e curialistas mais sérios e críticos

haviam posto de lado, certamente porque, já há algum tempo, como vimos, estavam a elaborar sua teoria com base em argumentos mais consistentes hauridos tanto na

Escritura quanto na filosofia neoplatônica.

Com efeito, em 1236, Gregório IX escreveu uma carta20

a Frederico II em que

discorreu amplamente sobre o poder temporal do Papa haurido na Donatio.

A argumentação do Pontífice não é meramente factual. Embora aluda à cessão

feita por Constantino Magno a Silvestre I, tanto das insígnias imperiais como da cidade

de Roma e da parte ocidental do Império, o Papa se preocupa em mostrar que o gesto do

Imperador se fundamentou igualmente nas convicções que de tinha a respeito da

grandeza do sacerdócio e, em particular, do sumo pontificado.

O Papa recorreu, por exemplo, à conhecida alegoria e analogia entre a anima e

o corpus, retomando a doutrina tradicional da preeminência da primeira sobre o segundo,

e, em conseqüência e por extensão, os sacerdotes e principalmente o Pontífice Supremo,

enquanto responsáveis pela salvação eterna das almas, tinham de exercer uma

supremacia sobre os imperadores e os reis, cuja tarefa que desempenhavam era ancilar e

secundária àquela outra.

Por essas razões, continua Gregório, Constantino, julgando oportuno que o

Vigário de Cristo não devia governar apenas as almas e os eclesiásticos, reconheceu que ele tinha de ampliar sua jurisdição sobre os corpos e os bens materiais de todas as

pessoas.

Ora, conquanto a Donatio, pouco importa se à época fosse considerada falsa ou

autêntica, bastasse como uma prova efetiva do poder temporal do Pontífice, porque

registrava um acontecimento que tinha ocorrido, para Gregório IX ela ainda necessitava

de mais fundamentos teóricos que a legitimassem.

Uma análise mais verticalizada dessa carta apresenta um outro fundamento de

natureza política para a Donatio. Trata-se das condições formais sob as quais esse

documento teria sido feito. O Papa ressaltou primeirarnente o status do doador; quer

dizer, Constantino era o detentor plenipotenciário da soberania imperial exercida sobre

todo o seu território, isto é, ele era competente para tomar aquela decisão.

Em segundo lugar, Gregório IX destacou enfaticamente a importância da

aquiescência dos senadores, dos romanos e de todos os habitantes do Império àquela

medida tomada pelo Imperador, querendo insinuar que o consenso popular era uma

garantia da legitimidade do ato de doação. Entretanto, a argumentação do Papa assumia

um caráter redundante, porque a própria doação, em face de sua natureza, e a

19 PACAUT, M. La théocracie, l‘Église et le pouvoir au Moyen Âge. Paris: Desclée, 1989, p. 126. 20 MGH, Epistolae seculi XIII. tomo I, n. 703, p. 599-605.

100

competência legal do doador para tomar aquela medida, cedendo a Silvestre I

determinados bens territoriais, eram de per si suficientes para legalizá-la e torná-la

legítima.

Aliás, convém dizer que o texto da Donatio absolutamente não faz nenhuma

alusão tanto à alegoria anima-corpus quanto ao fato de Constantino ter podido contar

com um consensus da parte de alguém. Na verdade, o texto apenas se refere a uma

decisão tomada em comum, pelo Imperador e pelo povo, no tocante a ampliar o poder do

Pontífice Silvestre.21

De fato, Gregório IX foi mais além. Querendo mostrar a preeminência da

autoridade espiritual sobre a imperial, inclusive na sua própria esfera de ação, enfatizou

a participação do povo naquele ato em que Silvestre I teria sido transformado em

soberano universal; caracterizou a transferência da soberania de um para outro detentor,

como uma decisão da vontade de Constantino, e, por último, serviu-se do termo técnico

consensus, não utilizado em textos políticos, ao menos até aquele momento, com esta

denotação, a fim ressaltar a participação popular como uma dentre as exigências

legitimadoras da Donatio.

Certamente essas idéias apresentadas pelo Pontífice eram fruto, não apenas de

seus conhecimentos acerca do Direito Romano e do Canônico, mas também do próprio

espaço político que a burguesia, há algum tempo, estava a dilatar nas comunas e cidades

italianas, simultaneamente defensora de suas conquistas e adversária ferrenha do

contralismo imperial. Convinha ao Papa contar com o apoio dessa burguesia, destacando

historicamente o seu papel político em Roma.

Examinemos agora também algumas das teses defendidas por Frederico II.

Fundamentado nos escritos dos juristas Hermano von Salza, Pedro della Vigna e Tadeu

de Sessa, cultivava uma concepção do Império Romano e da sua autoridade bem diferente daquela pensada pela hierocracia. Segundo o Imperador, Deus, ao estabelecer

os dois poderes, fê-lo com os propósitos de que ambos, em seus campos específicos de

atuação, governassem os seres humanos, a fim de que mais facilmente viessem a obter a

sua realização.22

Como vemos, esta perspectiva não só afastava da mundividência hierocrática,

só que os seus defensores viam na felicidade terrena, a um tempo, uma pálida imagem da

felicidade definitiva da Pátria e um caminho para a obtenção da mesma, de onde, no

21 Cfr. BERTELLONI, Francisco. El pensamiento politico papal en la Donatio Constantini. In:

SOUZA, José Antônio de (org.) Pensamento político na Alta Idade Média. Santos, São Paulo, Leopoldianum-Loyola, 1988, p. 33-59, texto em português, p. 54-59, particularmente p.56: ―Por

isso, nós, juntamente com todos os nossos sátrapas, com todo o Senado, com todos os optimates e

com todo o povo romano, súdito de nosso Império, julgamos conveniente, considerando que Pedro

foi instituído vigário do Filho de Deus na terra [...] que de nós recebam um poder jurisdicional maior [...].‖ Idem, ―Preparación Del ingresso de la Política de Aristóteles en Occidente‖, Anuario

de Filosofia Jurídica y Social, 9 (1989), p. 337-370, em especial p. 352-370. 22 Cfr. Documento 33. In: WINKELMANN, E. Acta imperii inedita saeculi XIII et XIV. Innsbruk,

1880, p. 314. v. 1.

101

fundo, derivava uma real subordinação do poder secular em geral ao poder do Sumo

Pontífice.

Para Frederico II, porém, os dois poderes tinham a mesma origem divina e

estavam, portanto, em pé de igualdade. Ou seja, o Imperador via a problemática das

relações entre os poderes a partir da comum origem de ambos, enquanto os hierocratas a

perspectivavam a partir da comum finalidade última dos dois. O Imperador não negava,

contudo, a maior dignidade do poder sacerdotal, precisamente tendo em vista a sua

finalidade transcendente. No entanto, a bem-aventurança final jamais seria alcançada sem que o Império, através do seu titular, proporcionasse à comunidade humana a

ordem, a justiça, a paz, que eram, outrossim, condições indispensáveis para a felicidade

terrena.

O Stupor Mundi e seus assessores tinham uma posição ambivalente do poder

régio, que chegava a ser, até certo ponto, contraditória, pois, se de um lado o fazia

assentar-se na justiça, conferindo-lhe um valor ético, do outro, ao destacar a paz como

supremo valor político a ser atingido, subordinando-lhe a própria justiça, estavam

inclinados a sustentar um regime autoritário que podia muito bem chegar às raias do

despotismo.

Mas, segundo Frederico II, respeitar a justiça equivalia a prestar uma

homenagem a Deus. Tal respeito consubstanciava-se no cumprimento rigoroso das leis,

explicitação da própria justiça e espelho visível da justiça eterna. Ademais, aplicando ao

mundo os princípios de causalidade e de necessidade, constatava-se que os males da

humanidade tinham por causa última a transgressão da justiça; o mal passou a dominar

no mundo quando os nossos primeiros pais, movidos pelo orgulho, violaram a ordem do

Criador. Portanto, o desrespeito pela justiça gerava uma desordem que, pelo sofrimento

dela emanado, era a antítese da felicidade. O Imperador se considerava, outrossim, como o supremo detentor da auctoritas

neste mundo e, como tal, tinha a obrigação de interferir pessoalmente em qualquer

questão, sempre que a desordem se manifestasse, ou então por meio dos seus oficiais,

leigos ou eclesiásticos, a fim de restabelecer a ordem e, mediante ela, a justiça.

Portanto, fica evidente, uma vez mais, que para Frederico e seus assessores a

justiça era uma decorrência da paz (da ordem) reinante na socieade.

O Imperador, porque tinha sido ungido com o óleo do Crisma, como se

desfrutasse duma graça especial que lhe tinha sido concedida por Deus, era capaz de

discernir o justo do injusto, e, assim, fazer provalecer no seio da Christianitas os

interesses comuns sobre as aspirações individuais, de tal modo que nenhum outro

homem tinha competência para reivindicar o direito de se imiscuir no âmbito da sua

atuação, nem sequer com o intuito de lhe oferecer sugestões que não estivessem em

conflito com a obtenção da beatitude eterna. Assim, a desobedência às leis imperiais era

considerada um sacrilégio, uma vez que colocava a ordem sócio-política em perigo.

De tudo isto decorria que Frederico II se considerava a lex animata in terris,

bem como o seu guardião e executor, e não admitia que o seu poder proviesse do Papa,

sucessor e vigário de S. Pedro, ou até mesmo de Jesus Cristo, mas exclusivamente de Deus. O Imperador, portanto, tinha consciência de que devia desmantelar a

transformação radical, de natureza hierocrática, do princípio paulino, segundo o qual

102

―todo o poder vem de Deus‖ metamorfoseado na tese ―todo o poder vem do Papa‖,

transformação essa que fora possibilitada pela tese intermédia ―todo o poder vem de

Cristo‖.23

Frederico II sustentava ainda que a ingerência do Papa na esfera da

competência imperial era a maior causadora de desordem no mundo. Por isso, achava ele

que tinha competência para controlar a Igreja, procedimento esse que certamente não

apenas iria restringir suas liberdades, nomeadamente: o privilegium fori eclesiástico e

suas imunidades fiscais, bem como, lhe impor regressar ao estilo de vida pobre e humilde, peculiar à comunidade cristã primitiva e à Era Apostólica.

Apesar disso, o Imperador não menosprezava e tampouco ignorava o papel

relevante dos ministros eclesiásticos e, particularmente, do Papa. Eles conduziam os

homens para a salvação eterna, tarefa essa exercida mediante a pregação do Evangelho, a

qual tinha um alcance social e político não desprezível. Assim, mediante o trabalho dos

eclesiásticos, os fiéis tinham mais chance de não se deixar vencer pelas tentações, eram

estimulados à prática da caridade e das outras virtudes cristãs, as quais contribuiriam

para melhorar a convivência social e para assegurar, portanto, a paz no reino e no

Império, enfim, apesar de estarem a viver neste mundo, tinham sempre diante de si a

meta a ser alcançada: a bem-aventurança eterna.

Não é material, mas sim formalmente, que as teorias hierocrática e a proposta

por Frederico II instrumentalizam a vida no mundo do tempo, com vista à eternidade. De

acordo com a tese proposta pelo Imperador, a vida sobrenaturalmente bem conduzida

leva, de modo necessário, à conservação da unidade política.

Retornemos ao exame dos fatos históricos. Após os funerais de Gregório IX, os

cardeais, temendo que a cidade fosse invadida pelas tropas de Frederico II, protegidos

pelos romanos, se reuniram no antigo mosteiro de Septizônio e aí realizaram o primeiro

conclave da história, no qual foi eleito Celestino IV. Este, porém, veio a falecer em

novembro de 1241.

Entretanto, desta feita, os cardeais negaram-se a eleger um novo Papa enquanto

Frederico II mantivesse preso um número considerável de dignitários eclesiásticos. O

impasse durou quase dois anos. O Imperador, então, resolveu ceder, e o Sacro Colégio,

em junho de 1243, elegeu Sumo Pontífice, Sinibaldo Fieschi, cardeal-chanceler da

Igreja, o qual tomou o nome de Inocêncio IV.

O novo Pontífice optou, inicialmente, pela negociação diplomática, solicitando

ao Imperador que se justificasse perante ele e a Cúria Romana, por causa das

excomunhões que havia sofrido. Frederico II não aceitou. Mais tarde, ambos combinaram um encontro em Narni, com o intuito de tratar pessoalmente das causas que

perturbavam as relações entre a Igreja e o Império. Mas o Papa, temendo vir a ser

aprisionado, fugiu para Gênova e, depois, para Lião (dezembro de 1244), de onde

23 Cfr. DENIEL, R. art. cit., p. 43: ―La formule de saint Paul (Rm 13, 1-7) rattache immédiatament à Dieu le pouvoir civil et sa responsabilité. Elle assure ainsi son indépendance par rapport au

pouvoir ecclésiastique. Les commentaires de ce texte montrent à partir des princes et des États

chrétiens, une tendance toujoirs plus prononcée à interpreter A Deo comme A Christo, et à

subordoner l‘État au pouvoir de l‘église‖.

103

convocou a Cristandade para um Concílio Ecumênico a realizar-se naquela cidade, em

meados do ano seguinte, com o propósito de, entre outros assuntos, tratar de resolver

definitivamente as questões que envolviam o Imperador e o Papado.

Durante a terceira e última sessão do Concílio, em 17 de julho de 1245, o Papa

sancionou a deposição de Frederico II, acusado do perjuro, de sacrilégio, de manter

relações amistosas com os infiéis, de violar paz entre o Império e o Papado, de ser

omisso no cumprimento dos seus deveres, na condição de minister Ecclesiae. Essas

acusações e a justificação da deposição encontram-se no documento intitulado Sentença de deposição do Imperador Frederico.

24

Frederico II reagiu, escrevendo e divulgando em toda a Cristandade a Encyclica

contra depositionis sententiam, cujos argumentos alegados pelo Imperador, Inocêncio IV

os rebateu um a um. Tal refutação do Papa está contida no documento Aeger cui lenia,25

o qual encerra o mais decisivo contributo de Inocêncio IV para a hierocracia. O seu fio

condutor é de natureza teológico-jurídica, com implicações ético-políticas. O Sumo

Pontífice é o Vigário terreno do Rei dos reis e o sucessor do Apóstolo São Pedro.

Recebeu do Filho de Deus uma generalis legatio, a qual lhe confere a jurisdição plena

sobre todos os homens, inclusive os governantes de todos reinos da terra inteira, o que

lhe ―permet de donner des ordres quand il le veut et à qui il le veut‖.26

Os sacerdotes do

Antigo Testamento receberam de Deus um poder semelhante e, por isso, depuseram os

maus governantes de Israel. Assim também, o Sumo Pontífice na Nova Aliança podia

agir casualiter, quando os príncipes seculares ratione peccati deixassem de cumprir com

seus deveres para com Deus e a Igreja, pois Cristo, obedecendo ao desígnio da

Providência, estabeleceu na Sé Apostólica um principado sacerdotal e real, visto Ele ser

simultaneamente Sacerdote e Rei. É por esse motivo que as chaves para abrir e fechar o

reino dos céus e as espadas para ferir e cortar espiritual e temporalmente se encontram na posse da Igreja e só o Papa, na condição de chefe máximo da Ecclesia Christianitas,

pode confiar as funções seculares aos príncipes, porque fora da Igreja não existe poder

legítimo. A cerimônia da outorga da espada, efetuada pelo Papa ao Imperador, comprova

muito bem que ele é um minister sacerdotis e que o Império de jure et de facto está

subordinado ao Papado. Todavia, isto não significa que o secular esteja absorvido pelo

espiritual, mas simplesmente que ―les activités temporelles n‘ont d‘autre fin que celles

du spirituel, à savoir, conduire les hommes au ciel. En même temps, cela correspond à la

volonté de maintenir l‘unité temporelle de la societé chrétienne [...].‖27

Ora, Frederico II se revelara um pecador contumaz. Logo, Inocêncio IV tinha o

direito de o destituir do trono imperial.

De qualquer modo, o Imperador ainda se manteve no trono até a sua morte, em

1250. Pouco antes de falecer, enviou uma circular a todos os príncipes da Cristandade,

em que acusava o Papa de ter maquinado o seu assassinato e o identificava com Satanás,

24 Cfr. Documento 34. 25 Cfr. Documento 35. Servimo-nos do texto editado por GRASSO, Ioannes B. Lo. Ecclesia e

Status – fontes selecti. Roma, 1939, p. 175-178 26 PACAUT, M. La théocratie, l‘Église et Le pouvoir au Moyen Âge. Paris: Desclée, 1989, p. 30. 27 PACAUT, M. L‘autorité…, p. 105

104

por querer usurpar o poder político total, não se contentando com aquele que de direito

lhe competia.

3.4 AS CONTRIBUIÇÕES DO OSTIENSE

E DE S. TOMÁS DE AQUINO

Henrique Bartolomeu de Susa (c. 1200-1271) estudou cânones e leis na

Faculdade de Direito de Bolonha. Mais tarde, comentou as Decretais na Universidade de Paris, aperfeiçoando os seus já vastos conhecimentos jurídicos. Passou depois a residir

na Inglaterra, onde se dedicou também ao magistério universitário e à diplomacia ao

serviço de Henrique III (1216-1272).

Inocêncio IV (1243-54) o nomeou bispo de Sisteron, na Franca, em 1244.

Posteriormente, veio a ser promovido a arcebispo de Embrum, em 1250, e, por causa dos

seus méritos e grande afeição à Igreja, o Papa Urbano IV (1261-1264) deu-lhe o chapéu

cardinalício em 1262, designando-o para o arcebispado de Óstia.28

O Ostiense, como também é designado, apesar de ter levado simultaneamente

uma vida repleta de atividades em campos diferentes, ainda escreveu três volumosas

obras de direito canônico, que constituem tanto a melhor síntese de jurisprudência

eclesiástica medieval quanto, paralelamente, na demonstração insofismável da

autonomia dessa disciplina relativamente às suas fontes, a Teologia e o Direito Romano.

Tais obras levam por título Commentaria in quinque libros decretalium, que começou a

redigir em Paris, a pedido dos seus alunos, e continuou até quase ao fim da vida; Summa

super titulos decretalium ou Summa aurea e Commentaria in sextum, ou comentário às

decretais de Inocêncio IV. Estes livros foram abundante fonte para a formulação das

teorias hierocráticas posteriores. Para escrevê-1os

29 o Cardeal de Óstia serviu-se, como fontes jurídicas, do

Decreto, das Decretais pontifícias, especialmente as de Inocêncio III e Inocêncio IV, das

glosas, particularmente as de Alano e de Tancredo, do cardeal Godofredo de Trani e de

Bernardo de Parma o Jovem. Fiel à tradição canonística e teológica, admitiu que no

interior da Ecclesia-Christianitas havia dois poderes independentes, o espiritual e o

temporal, fato esse que impunha existir igualmente uma distinção entre as respectivas

esferas de competência de ambos, mas o primeiro, dada a dignidade da sua missão

28 Cfr. WATT, J. A. The theory of papal monarchy in the ythirteenth century. Traditio, 20 (1964),

p. 281: ―Hostiensis was one of the great churchmen of a century when such were not rare. Few

others, however combined so signally as active life both pastorally and in the diplomacy of the

highest Europeam political circles, with high academic distinction and notable personal sanctity […].‖ 29 Um dentre os mais recentes trabalhos especializados acerca do pensamento jurídico-político do

Hostiense é o da autoria do cardeal Arturo R. Damas, intitulado Pensamiento politico de

Hostiensis, Zurique: Pás-Verlag, 1964.

105

própria e de sua natureza, tinha de dirigir este último, como podemos verificar no

documento infra transcrito.30

Estas teses, de fato, não são novas na história do pensamento político medieval,

e já nos deparamos com elas, páginas atrás, defendidas por vários outros autores.

O mesmo sucede quanto à afirmação de Henrique de Susa, relativa às

responsabilidades increntes ao ofício real, de acordo com a qual os reis foram

estabelecidos por Deus à frente da sociedade temporal, com vista à promoção e à

coordenação do bem-estar material dos seus súditos, à execução da justiça, punindo os maus e libertando com o poder do gládio os oprimidos. Em consequência disso, não

devem imiscuir-se na esfera espiritual, por exemplo, interferindo nas eleições episcopais,

exigindo contribuições e/ou cobrando impostos dos clérigos, levando-os aos tribunais

seculares ou forçando-os a empunhar a espada na guerra.

Jesus Cristo fundou a Igreja e a confiou a Pedro, seu vigário. Ela é imutável,

una e indivisa. O Papa, sucessor do Príncipe dos Apóstolos, exerce a potestas ligandi

atque solvendi (o poder das chaves, tantas vezes invocado já por outros hierocratas), e

todos os prelados e clérigos estão sob a sua jurisdição. Compete-lhes a cura animarum,

mediante a pregação da Palavra, a administração dos sacramentos, a distribuição das

indulgências e os sacramentais.

Quanto ao Sumo Pontífice, cabe-lhe especialmente promulgar as leis

eclesiásticas e, juntamente com os outros dignitários da Igreja, avaliar e julgar o

comportamento dos fiéis de acordo com tais leis e o ius divinum. Mas a razão principal

da existência do Sacerdócio é conduzir os homens à bem-aventurança eterna, porque

―omnes actiones fidelium ordinari debent ad consequendam Beatitudinem‖. Por esse

motivo, os clérigos não podem envolver-se com atividades seculares, uma vez que foram

consagrados ao serviço de Deus e do próximo. Não podemos, portanto, afirmar que as teses do Ostiense quanto à origem,

natureza e finalidade dos dois poderes sejam em tudo consonantes com aquelas que já

nos deparamos antes, sustentadas e desenvolvidas pelos teóricos hierocratas, salvo no

que respeita à preeminência do poder sacerdotal do Sumo Pontífice.

Entretanto, quando passamos a examinar as idéias do Cardeal de Óstia no

tocante ao Sacro Império Romano, no sentido óbvio de justificar a política da Santa Sé

adotada relativamente a Frederico II, então, o Sacerdotalismo ganha um peso

considerável. A Igreja instituiu o Império com as finalidades de que protegesse tanto ela

própria quanto a Cristandade (imperator ab Ecclesia Romana imperium tenet). É por tal

razão que o Imperador est vicarius Dei in terris in temporalibus. O Papado transferiu o

Império dos gregos para os germânicos e ao Sumo Pontífice cabem a unção, a coroação e

a sagração do seu titular. Este, por conseguinte, além das obrigações peculiares ao seu

ofício, tem o dever ético de empunhar a espada em favor da Igreja, considerando que ela

foi-lhe confiada pelo Vigário dc Cristo, pois São Pedro detinha utrumque gladium.

30 Cfr. Documento 36, cit. In: DAMAS, A. R. Pensamiento politico de Hostiensis. Zurique: Pas-

Verlag, 1964, p. 219. É interesse notar que o Hostiense atribui a Alexandre de Hales O. M. um

texto que, como vimos, é da autoria de Hugo de São Victor. A propósito, cfr. o primeiro

documento do capítulo anterior, o de número 15.

106

Mas, para além destes argumentos, Henrique de Susa afirmava que o próprio

direito civil reconhecia a preeminência do Papado sobre o Império, pois que a Doação de

Constantino, inserida pelo canonista Paucapalea, discípulo de Graciano, na Distinção 96,

capítulos 13 e 14 do Decreto, era, não só o testemunho de um fato verídico, mas também

um documento autêntico, que confirmava o desígnio da Providência relativo à existência

de uma só cabeça à frente da Cristandade e igualmente reparava um abuso quanto ao

exercício de um poder ilegítimo detido pelos imperadores pagãos. Na verdade,

Constantino Magno, movido por inspiração divina, limitou-se a restituir a São Silvestre um poder sobre o Ocidente que de direito lhe pertencia, na condição de vigário do Filho

de Deus sobre a terra inteira. Portanto, o Sacerdócio e o Sumo Pontífice detêm

inclusivamente uma prioritas sobre o Império e o Imperador. Tal prioridade fundamenta-

se nas teses do vicariato de Cristo, da plenitude de poder e da chefia unitária que deve

existir no seio da Ecclesia-Christianitas.

Com base nessas premissas, Henrique de Susa acrescentou outras

circunstâncias, além das que anteriormente já analisamos, que possibilitavam ao Sumo

Pontífice intervir na esfera secular: ―[...] quando se requer a sua intervenção e esta não

prejudica os direitos de outrem [...], quando se faz justiça em favor dos oprimidos [...],

quando, em qualquer lugar, um suserano trata ou julga de modo injusto o seu vassalo e

também naquelas cidades onde não há um juiz secular [...]‖.31

Os profundos conhecimentos canonísticos do Cardeal de Óstia lhe

possibilitaram sistematizar o pensamento hierocrata sob o prisma jurídico, o qual,

durante a primeira metade do século XIV, veio a ser enriquecido e ampliado mediante a

contribuição de filósofos e teólogos, que não ignoraram o que ele havia escrito.

São Tomás de Aquino, OP (1225-1274), não nos oferece uma teoria política

suficientemente sistematizada acerca das relações entre os poderes espiritual e secular, ao contrário do que ele fez no tocante à Teologia e à Metafísica. As suas teses a esse

respeito encontram-se dispersas nos Comentários aos quatro livros das Sentenças de

Pedro Lombardo (1253-1257), na Suma teológica (1266/68-1269/72), na Suma contra

os gentios (1258-1264), no Comentário à Ética nicomaqueia e à Política de Aristóteles,

e sobretudo nos pequenos tratados Sobre o governo dos judeus à Duquesa de Brabante

(1262) e Sobre o governo dos príncipes ao Rei de Chipre (1266).

É sobre este último opúsculo que faremos incidir a nossa atenção,

primeiramente com o fito de oferecer ao leitor uma rápida visão das principais teses

políticas do Doutor Angélico. Em seguida, então, iremos examinar suas idéias a respeito

do tema central deste livro.

Na verdade, São Tomás escreveu apenas o Livro I e os quatro primeiros

capítulos do Livro II do De regno, sendo a obra completada em seguida por seu

discípulo e amigo Ptolomeu de Lucca, O. P. De qualquer modo, no texto do próprio

Tomás, encontramos posições teóricas bem definidas e que os pensadores do futuro irão

considerar atentamente, incluindo nos seus próprios trabalhos passos significativos do

tratado, muitas vezes sem sequer citarem o seu autor.

31 In: Watt, J. A. The theory…, p. 290

107

O mesmo sucederia, naturalmente, com os livros e capítulos subseqüentes, da

autoria de Ptolomeu de Lucca, não tão famoso como o seu mestre, os quais foram

julgados pelos homens da época como saldos da pena do próprio Aquinate, de modo a

ganharem aceitação.

O Doutor Angélico foi particularmente influenciado pelos tratados de

Aristóteles, cujo conhecimento completo de toda a sua produção filosófica no Ocidente

só veio a ocorrer à volta de 1260, embora ele preferisse seguir as traduções de Guilherme

de Moerbeke, seu tradutor privativo. Entretanto, a concepção do Estagirita sobre a sociedade política organizada parecia inadequar-se ao pensamento político cristão, o

qual, se não desvalorizava por completo o Estado e as suas instituições hauridos na

experiência, manifestava sobre os mesmos uma certa desconfiança, de modo que ―the

historical significance of the political theory of Tomas Aquinas thus appears strictly

correlative to his great entreprise of reconciling aristotelianism and christianity, and to

the philosophical, or rather metaphysical premisses which seemed to make the

conciliation possible [...].‖32

Começa o De regimine principum33

por justificar a necessidade do governo

temporal, que, para Tomás, e ao invés dos autores da linha agostiniana, não tinha a sua

ratio no pecado original, mas sim na natural sociabilidade do homem.

O homem é um animal social e político, sendo-lhe natural, mais ainda do que o

é em outros animais sociais desprovidos de razão, viver em comunidade, mas apenas

guiando-se pela sua razão individual, nenhum homem alcançará os fins que tem em

vista, pelo que necessita dos outros homens para tal. Mas a humanidade não é apenas

uma soma de seres individuais com os seus interesses particulares, mas sim uma

comunidade com um fim último neste mundo, o qual é o bem comum, pelo que se impõe

a necessidade de haver um governante que para tal bem conduza a sociedade e cada um de seus membros.

O governante secular, portanto, sempre deve ter em vista o bem comum, e não

o seu próprio interesse, pois, neste caso, transformarse-á de rei em tirano.

Essa tese será posteriormente retomada por vários autores nos séculos

seguintes, ao discorrerem sobre as formas de governo, o critério de diferenciação entre

as justas e as perversas e, entre estas últimas, a tirania como regime político opressor por

excelência.

Se o governo tirânico for exercido por vários indivíduos, e não apenas por um

só, tem por nome oligarquia; e se pelo povo, que oprima os ricos, será chamado

democracia. Todas as três são formas degeneradas de governo, respectivamente, da

monarquia, da aristocracia e da politia. Embora estas últimas sejam todas justas, no

entanto, o Aquinate prefere a monarquia, ou governo de um só para o bem comum.

32 D‘ENTREVES, Alexander P. The medieval contribuition to the political thought . Oxford: OUP, 1930, p. 20. 33 Servimo-nos neste trabalho do texto em vernáculo traduzido pro Arlindo Vieira dos Santos, in A

filosofia política de Santo Tomás de Aquino, São Paulo, 1957. A propósito, cfr. o conjunto de

textos do Aquinate sobre este assunto, reunidos sob o número 37.

108

Então, quanto mais eficaz for o governo para conseguir a unidade, tanto mais

útil será; e tanto mais será eficaz, quanto maior unidade nele se verificar. Assim, o

governo monárquico, dada a unidade do governante, é o mais apto para dirigir a

sociedade política.

No entanto, as mesmas razões que levam o Doutor Comum a considerar a

monarquia o melhor dos govemos justos, conduzem outrossim a ver na tirania, o

governo de um só para o seu próprio bem, a forma péssima de governo.

Como vemos, S. Tomás de Aquino aceita a monarquia eletiva como o melhor regime político e não discute sequer a sua diferenciação relativamente à monarquia

hereditária. No entanto, se suceder a desgraça da tirania, é mais útil suportá-la durante

algum tempo do que rebelar-se contra ela, caindo deste modo em perigos que são mais

penosos que a tirania em si própria, porque S. Pedro ensina que devemos nos sujeitar,

não só aos senhores bons e moderados, mas também aos que o não forem.

Mas, e aqui está um problema freqüentemente tratado na Idade Média e mesmo

na Idade Moderna, o que fazer se o regime tirânico se tornar insuportável? Neste caso, se

de direito competir ao povo a eleição do rei, então este poderá depô-lo. Mas, se tal

direito couber a uma instância superior, dela se deve esperar que ponha cobro à tirania.

Se toda a ajuda humana faltar, que se recorra a Deus, Rei dos reis, e que se aproveite o

sofrimento assim causado como meio de purificação dos pecados próprios.

Pelo contrário, o bom príncipe governa o povo para o bem comum e deve

esperar, como recompensa do reto exercício do seu poder, não a glória terrena, que é em

si mesma transitória, mas a bem-aventurança eterna, autêntico prêmio digno dos bons

governantes.

Fiel ao seu método de investigação, na teoria política como noutros domínios, o

Aquinate procura então na natureza o modelo ideal do poder régio. Ora, nas coisas naturais há o governo universal e o particular. O universal, que compete a Deus, e o

particular, que se acha também no homem, justamente chamado microcosmo, porque

nele se verifica a forma do governo universal. Os vários membros do corpo e as várias

potências da alma são regidos pela razão; assim, pois, a razão existe no homem na

mesma proporção em que Deus está para o universo. Mas, porque o homem é um animal

naturalmente sociável, nele se encontra a semelhança do governo divino, enquanto cada

indivíduo se rege a si mesmo por meio da razão, e enquanto pela razão de um só se

governa uma multidão. O rei será pois, no seu reino, como a alma no corpo e como Deus

no universo.

O rei, tal como a comunidade humana, deve viver segundo as virtudes. Mas

estas não são um fim em si mesmas, mas apenas um meio para a futura fruição de Deus,

último fim da vida humana e felicidade por excelência. O governo régio, por

conseguinte, tanto mais justo será quanto melhor conduzir os súditos para o seu último

fim. No entanto, como o ser humano por si mesmo não poderá atingir a fruição divina,

mas mediante a gratia, é tarefa específica da autoridade espiritual encaminhá-lo para

Deus. Nesta precisa medida, Cristo Rei e Sacerdote universal delegou aos seus

Apóstolos e, na pessoa deles, aos seus sucessores, os sacerdotes, e em especial a Pedro, tal incumbência. E, por isso mesmo, compete sumamente ao Papa orientar ética e

109

religiosamente todos os reis e seus súditos, os quais devem acatar essas orientações a fim

de poderem vir a atingir a felicidade eterna.

Dc qualquer modo, o Doutor Angélico só em causas espirituais, isto é, as que

concernem à salvação das almas, atribui ao poder papal a prerrogativa de se impor ao

secular. Nos casos regulares, sustenta a autonomia dos dois poderes, cada qual na sua

esfera própria de atuação.34

34 Cfr. Conjunto de textos relativos a esse assunto elencados sob o documento 38.

110

Coletânea de documentos relativos ao capítulo 3

DOCUMENTO 27

Decretal Solitae de Inocêncio III a Aleixo III de Constantinopla.

[...] não negamos que o Imperador está acima, porém só daqueles que lhe estão

subordinados temporalmente. Ora, o Sumo Pontífice igualmente está acima na esfera

espiritual, mais digna do que a secular, como a alma o é em relação ao corpo [...].

[...] David, embora tivesse recebido o diadema régio, mandava em Abiatar, não

tanto pela dignidade real, mas pela autoridade profética. No entanto, o que foi legal na época do Antigo Testamento, agora sob o Novo Testamento é diferente, pois Cristo, que

se fez sacerdote eternamente segundo a ordem de Melquisedeque, ofereceu-se como

hóstia a Deus Pai sobre o altar da Cruz. Por sua morte, ele redimiu o gênero humano e

realizou isto na condição de sacerdote, não como rei, e principalmente o que diz

concerne à missão daquele que é o sucessor do Apóstolo Pedro e Vigário de Jesus Cristo.

“[...] Além disso, deveríeis saber que Deus fixou duas grandes luminárias na

abóbada celeste, a maior para presidir ao dia e a menor para presidir à noite. Ambas

grandes, mas uma delas maior, visto a palavra céu designar a Igreja, conforme diz a

Verdade: O reino dos céus é semelhante a um pai de família, que saiu de manhã cedo

para contratar trabalhadores para a sua vinha.

Entende-se então por dia o espiritual e por noite o secular, conforme o

testemunho profético: o dia segreda uma palavra ao dia, e a noite abre uma estrada à

noite. Deus fez, portanto, duas grandes luminárias na abóbada celestial, isto é, na Igreja

Universal, quer dizer, Ele instituiu duas grandes dignidades, que são a autoridade

pontifícia e o poder real. Mas a que dirige os dias, isto é, as coisas espirituais, é maior, e

a que preside à noite, pelo contrário, é menor, a fim de que se saiba quão grande é a

diferença que existe entre os pontífices e os reis, à semelhança do que se passa com o sol e a lua.

―[...] Por isso, não deveríeis considerar molesta a nossa exortação, mas sim

acatá-la, lembrando-vos de que o pai corrige o filho a quem ama, da mesma forma que

Deus censura e pune aqueles que ama. Na verdade, cumprimos um encargo do ofício

pastoral quando insistimos, exortamos e corrigimos, tentando conduzir, não só os demais

fiéis, mas também os imperadores e reis, oportuna e inoportunamente, segundo o que

agrada à vontade divina.

§ 6º Com efeito, na pessoa de S. Pedro foram-nos confiadas as ovelhas de

Cristo, de acordo com as suas próprias palavras: ‗Apascenta as minhas ovelhas‘, não

tendo feito distinção alguma entre essas ou aquelas ovelhas, a fim de comprovar que a

pessoa que não reconhecer Pedro e os seus sucessores como pastores e mestres não faz

parte do seu aprisco. Aliás, é por demais sabido que o Senhor, dirigindo-se a Pedro e, na

111

pessoa dele, aos seus sucessores, disse: ‗Tudo o que ligares na terra, será ligado nos

céus‘, nada excetuando do seu poder ao dizer tudo [...].‖

DOCUMENTO 28

Decretal Venerabilem de Inocêncio III.

Recebemos afetuosamente o nosso venerável irmão, o Arcebispo de Salzburgo,

o nosso amado filho, o Abade de Salmansweiber e o nobre marquês d‘Este, os quais

foram enviados por alguns príncipes como embaixadores à Sé Apostólica, e decidimos

conceder-lhes uma audiência benévola. Ordenamos também que fosse lida com cuidado

a carta que nos haviam remetido através deles e anotamos todo o seu conteúdo. [...]

3. Como devemos fazer justiça a pessoas particulares, em razão do cargo

inerente ao ministério apostólico, igualmente não queremos que a nossa competência

seja usurpada por outrem e tampouco desejamos reivindicar qualquer direito pertencente

aos príncipes. Reconhecemos, por isso, como nosso dever para com os mesmos, aos

quais legalmente pertence, por antigo costume, o poder e o direito de elegerem alguém

como rei, o qual mais tarde será elevado à dignidade imperial, principalmente

considerando que receberam esse direito e poder da Sé Apostólica, que transferiu o

Império Romano dos gregos para os germanos na pessoa do magnífico Carlos.

4. Mas, por outro lado, os príncipes devem reconhecer e decerto reconhecem

que a autoridade e o direito para examinar a pessoa eleita rei e que será promovida ao

Império nos compete, visto que nós a ungimos, coroamos e consagramos. Pois é normal

e regularmente observado que o exame da pessoa compete àquele que lhe vai impor as mãos. Por conseguinte, se os príncipes, em consenso ou em desacordo entre si,

escolherem como rei uma pessoa sacrílega ou excomungada, um tirano ou um idiota, ou

um herege ou um pagão, nós deveremos ungir, consagrar e coroar tal pessoa? Decerto

que não!

5. Respondendo, por conseguinte, às objeções dos príncipes, afirmamos que o

nosso legado, o Bispo de Palestrina, não agiu como eleitor, pois não escolheu ninguém,

nem se empenhou para que algum dos postulantes fosse eleito, segundo fomos

informado pelas cartas de alguns dos eleitores que se opunham a um dos candidatos.

Tampouco se envolveu em tal assunto ou agiu como procurador, pois manteve-se neutro

quanto à eleição, não se envolvendo na mesma, visto não ter sugerido aos príncipes que

a confirmassem ou a anulassem. Portanto, não usurpou de modo algum para si próprio o

direito que cabia aos eleitores, nada fazendo contra eles.

Na verdade, o Bispo de Palestrina exerceu a função de denunciante, ao apontar

como indigna a pessoa do duque [Filipe Staufen] e a do rei [Otão de Brunswick] como

idônea para assumir o Império, não tanto por causa da preocupação dos príncipes

eleitores, mas devido principalmente às pessoas eleitas [...].

6. É evidente, ainda, que, numa eleição, quando os votos dos príncipes estão divididos, após uma advertência e um intervalo conveniente, podemos favorecer um dos

postulantes, considerando-se que posteriormente um deles virá a ser ungido, coroado e

112

consagrado por nós, e aconteceu freqüentemente que ambos nos pediram que fizéssemos

isso. Assim, que brilhem o direito e o exemplo.

Por acaso, se os eleitores tiverem sido advertidos e instados a agir, e se não

puderem ou não quiserem entrar em acordo, a Sé Apostólica ficará sem advogado e

protetor, e tal negligência acabará por redundar em prejuízo da mesma?

[...] Além disso, tendo em mente que o duque acima referido não recebeu a

unção e a coroa de quem devia fazê-lo, quer dizer, das mãos do nosso venerável irmão, o

Arcebispo de Colônia, e no lugar de praxe, a saber, Aquisgrana, nós examinamos e nomeamos rei a Otão, não a Filipe, conforme determina a justiça. E ao recusarmos o

citado Filipe, duque da Suábia, levamos em conta vários impedimentos notórios.

Fazemos isso, não tanto pela acusação que sobre ele impende, porque não há provas

evidentes a tal respeito, mas principalmente devido à condenação em que incorreu [...].

8. De fato, as restrições à pessoa de Filipe, duque da Suábia, são bastante

conhecidas: a excomunhão pública, o perjúrio evidente, a perseguição movida, tanto por

ele mesmo quanto pelo seu pai, contra a Sé Apostólica e outras igrejas. Aliás, quando

Filipe residia na Toscana, foi condenado pública e solenemente pelo vínculo da

excomunhão, decretada pelo nosso predecessor, o Papa Celestino, de feliz memória,

porque o duque tinha invadido e arrasado o Patrimônio de S. Pedro. Filipe admitiu a

excomunhão que lhe foi imposta quando solicitou, por meio de um embaixador, a

absolvição, primeiramente ao nosso antecessor e, mais tarde, ao então Bispo de Sutri, a

quem nós, compadecido, juntamente com o Abade de Santo Anastácio e o nosso

venerável irmão, o Arcebispo de Salerno, enviamos à Alemanha para o isentar daquela

punição.

Ora, Filipe, agindo contra a nossa disposição, pois não tinha o direito de

proceder desse modo, logo após a sua eleição obteve a absolvição às escondidas. Logo, é notório que foi eleito enquanto estava ainda excomungado, conforme acima se disse,

ousando postular a coroa temerariamente.

Ninguém, por conseguinte, em sã consciência, ignora efetivamente que nos

cabe julgar se aquele juramento que lhe foi prestado de seguida era legítimo ou não, e se

devia ou não ser cumprido [...].

DOCUMENTO 29

Decretal Per venerabilem de Inocêncio III.

Inocêncio III ao nobre varão Guilherme, senhor de Montpellier.

Por intermédio do nosso venerável irmão, o Arcebispo de Arles, que chega à Sé

Apostólica, suplicou-nos a tua Nobreza que nos dignássemos honrar os teus filhos com o

direito de legitimação, no intuito de que a alegação dos natais não lhes obstasse a que te

sucedam.

Que a Sé Apostólica tenha pleno direito sobre tal questão, constata-se pelo fato de que, examinadas várias causas, a mesma tem dispensado algumas pessoas nascidas

ilegitimamente, não só naturais, mas mesmo adulterinos, legitimando-as assim para atos

113

espirituais, a fim de que pudessem vir a ser promovidas ao episcopado. Acredita-se, pois,

mais verossímil e julga-se mais provável que possa legitimá-las para atos seculares,

sobretudo no caso de não se conhecer entre os homens, além do Pontífice Romano, outro

superior que tenha o poder de o fazer, pois, dado que no espiritual se requer [em grau

maior] tanto prudência quanto autoridade e idoneidade, o que se concede ao maior

também parece ser lícito ao menor [...].

Aparentando então, face ao exposto, competir à Igreja Romana a autoridade

para legitimar, não apenas na esfera espiritual, mas também na temporal, o citado Arcebispo requeria em teu nome, no concernente a essa questão, que fizéssemos tal

favor aos teus filhos, levando-se em conta os teus méritos e os de teus progenitores, visto

sempre teres perseverado humildemente na dedicação à Sé Apostólica.

Ao requerer isso, no entanto, parecia que não estavas a propor algo de

inusitado, pelo fato de se poder alegar que não era necessário procurar muito para achar

um exemplo semelhante, em favor dessa pretensão, pois afirmavas que nós mesmo o

havíamos oferecido em circunstância idêntica. De fato, o nosso diletíssimo filho em

Cristo, Filipe, ilustre rei dos francos, tendo abandonado Ingebergue, preclara rainha dos

francos e nossa caríssima filha em Cristo, e tendo tido um menino e uma menina com a

outra a quem se unira, igualmente tu, de modo análogo, afastando-te da esposa legítima,

tinhas-te unido a outra, de quem tiveste filhos, e julgava-se que fosse o caso de dispensar

da ilegitimidade, pelo favor da Sé Apostólica, não só os filhos do referido rei, mas

também os teus, em razão de um fato mais relevante recomendar esse procedimento e tu

seres mais particularmente subordinado a nós.

Na verdade, o rei dos francos teve de Isabel, rainha dos francos, de ínclita

memória, um legítimo herdeiro que, espera-se e crê-se, haverá de lhe suceder no trono

real. Tu, no entanto, não tens da legítima esposa herdeiro varão que te suceda, quer na dedicação para conosco, quer na própria herança. Além disso, enquanto o mencionado

rei nos está subordinado no âmbito espiritual, tu o estás também no temporal, visto que

recebeste da igreja Magalonense parte do teu território, que a mesma reconhece

temporalmente por meio da Sé Apostólica, motivo esse que levou o referido Arcebispo a

afirmar que nes estavas subordinado secularmente por causa da dita igreja.

Todavia, se a verdade for procurada atentamente, encontrar-se-á algo bem

diferente do que foi dito, e nada de semelhante, pois o mencionado rei teve o seu

casamento dissolvido por sentença do Arcebispo de Reims, de saudosa memória. Tu,

pelo contrário, separaste-te da tua esposa por própria iniciativa, como se diz. Aliás,

Filipe, antes de lhe ter chegado a proibição de se casar com a outra mulher, já havia

desposado uma pessoa, da qual se sabe ter tido filhos gêmeos. Ao casareste com uma

segunda, tu agiste com desprezo da Igreja, fate que a obrigou a usar contra ti o gládio da

vingança eclesiástica.

Além disso, Filipe alegou o caso de afinidade para invalidar o Matrimônio com

a mencionada rainha e apresentou testemunhas perante o Arcebispo de Reims, por cuja

sentença, cassada apenas pela não observância do procedimento jurídico, julgamos

oportuno [...] conceder-lhe, como advogados para essa questão, o nosso venerável irmão Otaviano, Arcebispo de Óstia, e João, nosso dileto filho, Cardeal-presbítero titular de

Santa Prisca. [...]

114

Ainda a respeito dos filhos do citado monarca, quer tenham sido legítimos quer

não, enquanto estiver pendente a predita questão da afinidade, podemos suscitá-la não

sem motivo, pois, se a mesma for comprovada, será evidente que Ingebergue não é

esposa do rei, e conseqüentemente a outra estará legitimamente unida a ele, tendo-lhe

gerado filhos igualmente legítimos [...].

Além disso, como o rei Filipe não reconhece de modo nenhum ter superior no

âmbito temporal, sem nisso lesar o direito de outrem, pôde sujeitar-se e [de fato]

submeteu-se à nossa jurisdição, quando talvez parecesse a alguém que ele poderia ter legitimado por si próprio, não como pai em relação aos seus filhos, mas na condição de

Príncipe para com os súditos. Tu, no entanto, és conhecido como súdito de outrem. Daí

que não pudesses sujeitar-te nesse aspecto, sem prejudicares assim o direito alheio, a

menos que te autorizassem a fazê-lo, e ainda não gozas da autoridade para teres o direito

de dispensar em tal questão.

Movidos por essas razões e baseando-nos, tanto no Antigo, como no Novo

Testamento, atendemos à solicitação de Filipe, tendo em mente ainda que, não só no

Patrimônio da Igreja exercemos pleno direito no temporal, mas também noutras regiões,

dadas certas circunstâncias, exercemos casualmente a jurisdição na esfera secular. Com

isso não tencionamos prejudicar um direito de outrem, ou usurpar um poder que nos seja

indevido, visto não ignorarmos a resposta que Cristo oferece no Evangelho: ‗Dai a César

o que é de César e a Deus o que é de Deus‘. O Senhor, ao ser solicitado para dividir uma

herança entre duas pessoas, declarou: ‗Quem me constituiu juiz sobre vós?‘ Todavia,

igualmente está escrito o seguinte no Deuteronômio: ‗Se vires que é difícil e ambíguo o

teu juízo entre sangue e sangue, entre causa e causa, e entre lepra e lepra, e constatares

que no interior das tuas muralhas são diversos os pareceres dos juizes, levanta-te e vai ao

lugar que o Senhor teu Deus tiver escolhido e irás ter com o sacerdote da linhagem de Levi e com o juiz que na ocasião exercer a função, e consultá-los-ás e eles te indicarão a

verdade do juízo. E farás tudo o que te disserem os que presidem no lugar que o Senhor

tiver escolhido, e tudo o que eles te ensinarem conforme a Sua lei, e seguirás o parecer

deles sem te afastares nem à esquerda nem à direita. Porém, os que se escravizarem pela

soberba e se recusarem a obedecer ao mandato do sacerdote, que na ocasião é o ministro

do Senhor teu Deus, morrerão por ordem do juiz e assim extirparás o mal do interior de

Israel.‘

Ora, como a palavra Deuteronômio, pela natureza do vocábulo, Significa

efetivamente segunda lei, comprova-se isso pelo fato de que, o que aí está determinado,

tem de ser observado no Novo Testamento. Assim, o lugar que o Senhor escolheu, isto é,

a Sé Apostólica, pode ser conhecido do seguinte modo: Ele, pedra angular, o alicerçou

em si próprio. De fato, tendo Pedro saído em fuga da cidade, querendo chamá-lo de volta

ao lugar que escolhera, acabou por ser interrogado pelo discípulo: ‗Aonde vais, Senhor?‘

Cristo respondeu: ‗Volto para Roma para ser de novo crucificado‘. Pedro, entendendo o

motivo pelo qual o Mestre lhe dirigia aquelas palavras, regressou imediatamente para o

lugar onde tinha de estar.

Desse modo, os sacerdotes da linhagem levítica são nossos irmãos, que exercem para conosco o encargo de coadjutores, na celebração do ofício presbiteral, por

direito levítico. Sobre des desempenha o papel de Juiz ou Pontífice aquele a quem o

115

Senhor, na pessoa de Pedro, diz: ‗Tudo o que ligares na terra‘, etc., isto é, o Seu vigário,

d‘Ele que sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedeque, constituído por

Deus como juiz dos vivos e dos mortos.

Com efeito, distinguem-se três espécies de julgamento. O primeiro entre o

sangue e o sangue, quer dizer, questões criminals e civis. O último entre lepra e lepra,

através do qual se designam questões eclesiásticas e criminais. E o do meio entre causa e

causa, relativo a ambas as questões, tanto eclesiásticas, como civis, nas quais, havendo

algo difícil ou ambíguo, se deve recorrer ao julgamento da Sé Apostólica, de cuja sentença, quem, orgulhoso, desprezar o cumprimento, determina-se que morra e assim se

extirpe o mal de Israel, isto é, ser excluído, como os mortos, da comunidade dos fiéis

através da sentença de excomunhão.

Paulo, com o fito de explicar o que é a plenitude de poder, escrevendo aos

Coríntios, diz o seguinte: ‗Não sabeis que julgaremos os anjos, quanto mais as coisas do

mundo?‘ Ora, as incumbências seculares costumam ser regularmente executadas por

quem exerce o poder temporal, Às vezes, porém, e em circunstâncias excepcionais, por

outrem. Embora nos tenhamos inclinado a conceder a dispensa, no tocante aos filhos do

rei Filipe [...], resolvemos deixar pendente a decisão relativa ao pedido em apreço, e

agora não anuir às tuas súplicas quanto ao mesmo. Esse fato, porém, não impede que te

enviemos a nossa saudação afetuosa e particular e que nos prontifiquemos a mostrar-te

benevolência especial naquilo que estiver ao nosso alcance, conforme o desígnio de

Deus e a honestidade.

DOCUMENTO 30

Decretal Novit ille de Inocêncio III.

Aquele que nada ignora e que, conhecendo os segredos do coração os

esquadrinha, sabe que amamos nosso preclaro filho em Cristo, Filipe, ilustre rei dos

francos, possuidor de um coração puro, consciência reta e sincera fidelidade [...].‖

Portanto, ninguém pense que tencionamos diminuir ou prejudicar o direito e a

jurisdição do nobre rei dos Francos, pois ele não pode nem pretende impedir que

exercitemos nossa jurisdição e poder. Assim, por que então iríamos querer usurpá-los de

outrem?

Mas o Senhor afirma o seguinte no Evangelho: ―Se o teu irmão pecar vai

corrigí-lo a sós contigo. Se ele te ouvir, ganhaste o teu irmão. Se ele não te escutar,

porém, toma contigo mais uma ou duas pessoas, para que toda questão seja decidida

segundo o parecer de duas ou três testemunhas. Caso não lhes dê ouvido, recorre então à

Igreja. Se nem mesmo à Igreja ele der ouvido, trata-o como gentio ou publicano‖.

Ora, o Rei da Inglaterra, segundo o que referiu, diz que está suficientemente em

condições de provar que o Rei dos francos pecou contra ele e, tendo-o repreendido de

acordo com a lei evangélica, nada conseguiu, por esse motivo informou à Igreja acerca do que se passava.

116

Nós que fomos colocado à frente da Igreja universal por uma disposição divina,

com vista a governá-la, como poderemos nos esquecer daquela recomendação

evangélica, a ponto de agirmos contra a mesma? A menos que Filipe apresente um

argumento razoável mostrando o contrário ou perante nós mesmo ou nosso legado.

Na verdade, não pretendemos julgar a respeito do feudo, pois tal ato lhe

compete, a não ser por um privilégio especial do direito comum ou porque aconteça algo

contrário aos bons costumes. Nós, entretanto, podemos fazê-lo em relação ao pecado,

cuja denúncia nos compete, direito esse que possuímos e devemos exercer sobre qualquer pessoa, seja ela quem for.

[...] Ninguém em sã consciência ignora que não nos fundamentamos nalguma

constituição humana, antes pelo contrário, na Lei Divina, porque nosso poder não

provém do homem, mas de Deus. Sabemos, ademais, que compete ao nosso encargo

corrigir qualquer cristão que peca mortalmente e coagi-lo com as penas eclesiásticas,

caso vier a desprezar nossa admoestação.

É por demais sabido que podemos e devemos corrigir qualquer pessoa de

acordo com o que atestam claramente ambos os Testamentos [...] O Apóstolo,

exortando-nos também a corrigir os perturbadores, ainda fala o seguinte: ―refuta,

ameaça, exorta com toda paciência e doutrina‖ [...] e tal se infere igualmente das

palavras que o Senhor dirigiu ao Profeta, que era um dos sacerdotes de Anatot: ―Eis que

te constituí sobre os reinos e nações para arrancares, destruíres, edificares e plantares‖. É

evidente que todo pecado mortal deve ser arrancado, destruído e extirpado. Ademais,

quando o Senhor entregou a Pedro as chaves do reino dos céus, disse-lhe: ―Tudo o que

ligares na terra será ligado nos céus e tudo o que desligares na terra será desligado nos

céus‖.

[...] Mas talvez alguém objete, alegando que se deve dar aos reis um tratamento diferente daquele reservado aos demais. Todavia, todos sabemos que na Lei Divina está

escrito o seguinte: ―Não farás acepção de pessoas, julgarás o grande da mesma forma

que o pequeno‖ [...].

Por conseguinte, dispomos de autoridade para agir dessa forma quanto a

qualquer pecado criminoso, a fim de que possamos conduzir o pecador do vício à

virtude, do erro à verdade, especialmente quando ele pecar contra a paz, que é um fruto

da caridade, a respeito da qual Cristo deu o seguinte preceito particular aos Apóstolos:

―Quando entrardes numa casa qualquer, dizei primeiramente, a paz esteja nesta casa, e se

aí houver um filho da paz, que desça sobre ele a vossa paz [...].‖

Finalmente como entre os dois monarcas foram celebrados e firmados tratados

de paz sob juramento expresso e válido de ambas as partes, mas posteriormente não

foram cumpridos no prazo estipulado, por acaso não poderemos examinar esses

juramentos religiosos, os quais estão indubitavelmente no âmbito da jurisdição

eclesiástica, a fim de que se restabeleçam os referidos tratados de paz violados? [...].‖

DOCUMENTO 31

Decretal Licet ex suscepto de Inocêncio III ao bispo de Vercelli.

117

―[...] Com efeito, fica, pois, sabendo que recebemos uma informação dos diletos

filhos, os cônsules da comuna de Vercelli, que, embora tenham sido apresentadas contra

eles algumas reclamações, perante os juízes da mesma, de acordo com o costume em

vigor, e eles quisessem mostrar a plenitude da justiça a qualquer reclamante, a fim de

que a sua jurisdição não fosse esvaziada e igualmente não fossem onerados com

trabalhos e despesas extras acerca de assuntos que não competem ao foro eclesiástico,

obtiveram esta nossa carta apostólica, mediante a qual os mencionados cônsules não venham a ser privados de sua jurisdição e tampouco sejam coagidos a trabalhar de

maneira diferente da habitual.

Querendo, portanto, zelar pelos interesses dos cônsules, a fim de que não

soframos, vendo sucumbir o direito deles, se acontecer de os leigos de Vercelli apelarem

à Sé Apostólica através de cartas, acerca de assuntos, principalmente aqueles que são da

competência do foro secular, ordenamos à tua fraternidade, mediante nossa autoridade,

através desta carta apostólica, que as julgue, suprimindo o obstáculo da apelação [...]

contanto que os mencionados cônsules e a comuna, tendo recorrido ao tribunal secular,

recebam um complemento da justiça.

Entretanto, se litigantes forem conduzidos perante os mencionados cônsules e

notarem que estes ou exorbitam de seu poder ou procedem maldosamente contra eles,

como tem sido costumeiramente observado, seja-lhes permitido apelar para o teu ou para

o nosso tribunal, especialmente nesta ocasião em que, vago o trono imperial, não têm

outro juiz secular a quem recorrer, dado que estão sendo oprimidos pelos superiores em

seu próprio foro de atuação.

Além disso, se os cônsules que ministram a justiça forem recusados, porque

tidos na conta de suspeitos, que o motivo da suspeição seja apresentado a árbitros escolhidos de comum acordo pelos próprios litigantes. Se tal motivo for

comprovadamente justo, seja-lhes igualmente ilícito recorrer a ti ou a nós, a fim de que a

justiça prevaleça, como antes foi dito [...].‖

DOCUMENTO 32

Alano Ânglico sobre as relações entre os poderes (citado por M. PACAUT, p. 129).

―[...] Entretanto, o Papa não está subordinado ao Imperador, quer na esfera

espiritual quer na temporal, porque a Igreja e todos os seus negócios estão isentos do

poder laico [...] Também é mais justo que o Imperador obtenha sua espada do Papa. De

fato, a Igreja não é senão um único corpo e e este só deve ter uma cabeça. Ora, o Senhor

usou os dois gládios e Ele solidamente estabeleceu Pedro como Seu vigário sobre a terra,

deixando-lhe, portanto, um e outro gládio. Igualmente, se o Senhor possuiu o gládio

material, qual príncipe Ele instituiu como Seu vigário sobre a terra para usar esse gládio?

Também Moisés possuiu ambos os gládios e no tempo do Novo Testamento o Papa é o seu sucessor. Ademais, Pedro disse ao Senhor: ‗Eis aqui os dois gládios‘. Por isso, eles

então pertenciam a Pedro [...].‖

118

―[...] Portanto, se o Papa é juiz ordinário para as esferas espiritual o temporal,

tanto o Imperador pode ser deposto por ele, quanto todo leigo exercendo qualquer cargo

ou possuindo não importa qual seja a dignidade [...].‖

DOCUMENTO 33

Frederico II e os dois poderes

―[...] No princípio do mundo nascente, a provisora e inefável Providência divina

[...] estabeleceu no firmamento duas luminárias, uma maior e a outra menor. A maior

para governar os dias, a menor para presidir as noites. Ambas deviam completar-se

mutuamente, mas cada uma delas tinha de proceder de tal modo no cumprimento de sua

função que não atrapalhasse a outra [...]. Semelhantemente, a Providência também quis

que neste mundo houvesse dois governos, o sacerdotal e o imperial, para que o homem,

que tinha sido dividido em dois componentes, fosse moderado por dois governos [...].―

DOCUMENTO 34

Sentença de Deposição do Imperador Frederico, MGH, Const. et acta, II, p, 508-512.

Inocêncio, bispo, servo dos servos de Deus, ao presente Santo Concílio, com

vista à perpétua recordação do acontecimento. 1. Nós, embora indigno, tendo sido elevado ao ápice da dignidade apostólica

pelo favor da Majestade Divina, estamos obrigado a cuidar de todos os cristãos com

atenta solicitude, a avaliar os seus méritos individuais por meio de um exame criterioso e

a ponderá-los meticulosamente no nosso íntimo, para recompensar os que, segundo o

peso de uma avaliação justa, se mostrarem dignos. Entretanto, aos que forem

considerados criminosos, restará a punição com os castigos merecidos, após um

julgamento equânime e isento de animosidade, pois a recompensa ou o castigo deve ser

concedido a cada um deles, proporcionalmente, conforme a qualidade das suas ações.

Quando a comoção horrível da guerra havia muito perturbava algumas regiões

da Cristandade, nós, desejando com todo o empenho da nossa mente a paz e a

tranqüilidade para a Santa Igreja de Deus, bem como, em geral, para todo o povo cristão,

enviamos como legados nossos os veneráveis irmãos Pedro de Albano, então Arcebispo

de Ruão, Guilherme de Sabina, naquela oportunidade Bispo de Modena, e o nosso

amado filho Guilherme, Cardeal-presbítero da Basílica dos Doze Apóstolos, na ocasião

Abade de S. Facundo, ao mais importante príncipe do século, responsável e fautor

daquela desgraça e conflito, os quais se mostravam zelosos pela salvação dele.

Frederico já havia sido excomungado pelo Papa Gregório, nosso predecessor de feliz memória, por causa das suas maldades, ligando-o assim com o vínculo do anátema.

Foram incumbidos os nossos legados de propor-lhe que nós e os nossos irmãos, os

119

cardeais, desejávamos ardentemente restabelecer a paz com ele e seus partidários, e que

estávamos disposto a proporcionar a paz e a tranqüilidade a todo o universo.

2. Como tais aspirações podiam ser obtidas mais facilmente se ele libertasse

todos os prelados, clérigos e outras pessoas que mantinha prisioneiros, bem como as que

havia condenado às gales, pedimos-lhe e rogamos-lhe, através dos mencionados núncios,

que os prisioneiros fossem libertados, conforme ele mesmo e os seus embaixadores nos

haviam prometido, antes de sermos chamados ao múnus apostólico. Esclarecemos

também que os nossos representantes estavam preparados para ouvir e negociar propostas de paz em nosso nome, além de oferecer uma explicação, se o referido

príncipe desejasse conhecer todos os motivos pelos quais havia sido ligado pelo vínculo

da excomunhão, e também oferecer, no caso de a Igreja o ter injustamente prejudicado (o

que Ela não pensa), satisfação imediata e pronta, corrigindo e reparando tal prejuízo [...].

3. Entretanto, o nosso desejo de restabelecer a paz e de nos termos esforçado

em insistir com ele, mediante avisos paternais, e suplicado com deferência, foi vão, pois

ele, imitando a teimosia do faraó e não nos dando ouvidos, a semelhança da áspide,

desprezou os nossos pedidos e advertência com arrogante obstinação e excessivo

orgulho.

Pior do que isso, algum tempo depois, jurou [...] cumprir as nossas ordens e as

da Igreja, por intermédio do nobre Conde de Tolosa [...] e dos Mestres Pedro della Vigna

e Tadeu de Sessa, magistrados da sua cúria, seus embaixadores e procuradores especiais,

comissionados para aquele objetivo [...]; no entanto, os dias foram passando e Frederico

não cumpriu a sua promessa relativa ao juramento que fizera.

Portanto, evidentemente, podemos saber, com certeza, mediante as suas atitudes

contraditórias, o que se passava na sua mente ao prestar o seu juramento. Pretendia

muito mais iludir-nos e à Igreja, e não obedecer-nos, pois o tempo escoou-se e, passado mais do um ano desses acontecimentos, não houve condições para o seu regresso ao seio

da Igreja. E ele nem pensou em reparar as injúrias e os prejuízos que causou à Igreja,

embora tivesse sido intimado a fazê-lo.

Já não nos sendo possível tolerar tais iniqüidades, sob pena de cometermos uma

grave ofensa a Cristo, fomos obrigado a agir urgentemente contra ele, aconselhado

retamente pela nossa consciência.

4. Não nos referiremos aos seus crimes passados, mas somente aos quatro

gravíssimos que cometeu. Estes últimos não podem ser perdoados com misericórdia

alguma: em várias oportunidades renegou a Deus; violou a paz celebrada entre a Igreja e

o Império; perpetrou ainda um nefando sacrilégio, capturando diversos cardeais da Santa

Igreja Romana, bem como alguns prelados, clérigos seculares e religiosos que se

dirigiam ao Concílio convocado por nosso mencionado antecessor. É igualmente

acusado de heresia [...].

5. É sabido que cometeu inúmeros perjúrios. Outrora, quando residia na Sicília,

antes da sua eleição para a dignidade imperial, jurou fidelidade ao Papa Inocêncio, nosso

predecessor de feliz memória, perante G. de S. Teodoro, Cardeal-diácono, legado da Sé

Apostólica, e à Igreja Romana, pela concessão que esta lhe fez no respeitante ao reino da Sicília, conforme é sabido. Mais tarde, essa concessão foi renovada quando ele foi

elevado à dignidade imperial. Em seguida, vindo à Urbe, em presença do referido

120

Inocéncio, dos seus irmãos, os cardeais, e de muitas outras pessoas gradas, prestou-lhe

homenagem lígia, colocando as suas mãos entre as dele [...]; algum tempo mais tarde,

quando já se encontrava na Alemanha, jurou ao citado Inocêncio e ao sucessor deste, o

Papa Honório, de feliz memória, e aos seus sucessores e à própria Igreja Romana,

perante nobres e príncipes do Império, que se empenharia da melhor forma possível em

proteger e respeitar a honra, os direitos e as possessões da mesma e que não se oporia a

restituir brevemente os seus bens que estavam em suas mãos. E, mais tarde, quando

recebeu a coroa imperial, confirmou as suas promessas mediante juramento, referindo-se expressamente àquelas possessões.

Mas o que se viu foi a sua transformação num temerário violador de

juramentos, cometendo traição e notório crime de lesa-majestade [...].

Além disso, empenhou-se com todas as suas forças em minimizar e arrebatar o

privilégio que Nosso Senhor Jesus Cristo concedeu ao bem-aventurado Pedro e, nele, aos

seus sucessores, dizendo: ―tudo o que ligares na terra será ligado nos céus e tudo o que

desligares na terra será desligado nos céus‖. Como sabemos, em tais palavras se

fundamenta a autoridade e o poder da Igreja Romana, pois afirmava que não havia

motivo para receber as sentenças que o mencionado Papa Gregório proferiu contra ele,

calçando aos pés as chaves da Igreja. Não só se negou a acatar a excomunhão que lhe

fora imposta, mas também obrigou outros, pessoalmente ou através dos seus oficiais, a

procederem como ele, e não cumpriu as outras sentenças de excomunhão e de interdição,

desrespeitando-as e reduzindo-as a nada [...].

6. Consta ainda que [...] deixou vacantes por muito tempo onze ou mais

arcebispados, muitas sés episcopais, abadias e outras igrejas no aludido reino e, como se

sabe com certeza, estas ficaram privadas do governo dos prelados, fato esse causador de

enorme prejuízo para as mesmas e grave dano às almas dos fiéis. E, mesmo que fosse possível realizar eleições em algumas igrejas do reino,

pelos cabidos, pode-se, no entanto, supor com grande probabilidade que tais cabidos só

elegeriam os clérigos que fossem seus amigos, pois aí não há liberdade eleitoral.

Além disso, não só permitiu que as mencionadas igrejas fossem privadas dos

seus bens, conforme desejou, mas também apoderou-se das suas cruzes, turíbulos,

cálices, de outros tesouros e de paramentos de seda, reservados às celebrações do culto

divino, embora se afirme que parte dos mesmos lhes foram devolvidos, mas não sem

antes haver cobrado um preço por eles.

Na verdade, Frederico taxa os clérigos com muitos impostos e tributos e força-

os a comparecer a tribunais seculares, além de, segundo consta, os obrigar a passar pela

prova do duelo, e muitos deles são encarcerados, torturados e até mesmo mortos para

vergonha e opróbrio da ordem clerical. E tampouco reparou as injúrias e os danos que

causou aos Templários e Hospitalários e a outras pessoas eclesiásticas.

7. É certo igualmente ser ele autor de um sacriléglo, pois, quando os

mencionados Bispos do Porto e de Palestrina e inúmeros prelados e clérigos, tanto

regulares como seculares, foram convocados para irem a Roma a fim de participar dum

Concílio que o próprio Frederico solicitara, sabendo eles de antemão que todos os caminhos por terra se achavam bloqueados por sua ordem, foram obrigados a viajar por

mar. Então, ele enviou o seu filho Enzo, capitaneando um número consideravel de

121

galeras, contra os viajantes, tendo-lhes antes preparado obstáculos nas regiões marítimas

da Toscana, para dificultar a sua chegada. Depois capturou-os, agindo atrevida e

sacrilegamente, afogando inclusivamente alguns, ferindo outros que tentavam escapar e

matando os demais. Muitos deles ainda foram espoliados de todos os seus bens e levados

presos vergonhosamente para a Sicília, de lugar em lugar, e finalmente encarcerados na

mais lôbrega prisão. Alguns dos prisioneiros, macerados pelo sofrimento e enfraquecidos

miseravelmente pela fome, vieram a falecer.

8. Por outro lado, a suspeita de herege perversão que pesa contra ele, nasceu após ter incorrido na sentença de excomunhão proferida pelos mencionados L. Bispo de

Sabina e T. Cardeal, e após o referido Papa Gregório o ter ligado pelo vínculo do

anátema [...] em seguida à sua aliança e amizade ignominiosa com os sarracenos [...]; no

entanto, o fato mais execrável reside em ter feito, quando estava nos países de além-mar,

um tratado, ou melhor, um conluio com o sultão, permitindo que o nome de Maomé

fosse proclamado dia e noite publicamente no templo do Senhor [...].

9. Além disso tudo, ele esgotou ao máximo e reduziu à servidão, nos aspectos

material e espiritual, este reino da Sicília, que é parte integrante do patrimônio do bem-

aventurado Pedro e que ele recebeu da Sé Apostólica, tendo-o como feudo. Assim,

clérigos e leigos e todos os homens probos foram a tal ponto espoliados que se viram na

contingência de abandoná-lo. Os que lá ficaram foram obrigados a viver quase em

condição servil e, sob pressão, a ofender e lutar frequentemente contra a Igreja Romana,

de quem são particularmente súditos e vassalos.

Também pode ser censurado com justiça, porque há mais de nove anos não

paga a quantia anual de mil schiiati que devia à Igreja Romana por ter o reino da Sicília

como feudo.

10. Em face do exposto, nós, ainda que indigno, na condição de Vigário de Cristo na terra e a quem nos foi dito, na pessoa de Pedro, ―tudo o que ligares na terra‖,

etc., comprovamos e declaramos que o citado príncipe Frederico, considerando ainda

que cometeu outros crimes nefandos, se tornou indigno de toda a honra e dignidade real

e imperial, sendo privado por Deus de tais privilégios e do poder de reinar e imperar. E,

após deliberação criteriosa do Concílio acerca da questão, apomos a nossa sentença de

destituição e libertamos para sempre todas as pessoas que lhe estão ligadas por força do

juramento de fidelidade ou por outro idêntico, e proibimos firmemente, pela autoridade

apostólica, que lhe prestem obediência, de ora em diante não a considerando já como Rei

e Imperador, e para isso decretamos que será imediatamente excomungado aquele que

lhe prestar conselho, auxílio ou favor, como se ainda continuasse a exercer os poderes

régio e imperial. E àqueles a quem no Império compete eleger outro Imperador, que o

façam livremente. Quanto ao referido reino da Sicília, aconselhado pelos nossos irmãos,

cuidaremos de indicar um Rei para o mesmo, segundo nos parecer mais conveniente.

Dado em Lião, em 16 das Calendas de agosto, no terceiro ano do nosso

pontificado.

DOCUMENTO 35

Inocêncio IV, Aeger cul lenia.

122

―[...] Na verdade, exercemos uma delegação geral sobre a terra, a qual foi

recebida do Rei dos reis. Entende-se, relativamente a ela, que ninguém nem quaisquer

assuntos ou negócios devem estar isentos do seu controle. Tal delegação abarca

amplamente o universo, porque foi enunciada no gênero neutro, pois o Senhor atribuiu

ao Príncipe dos Apóstolos e, na sua pessoa, a nós mesmo, a plenitude do poder, tanto

para ligar como para desligar tudo o que está sobre a face da terra. Daí o Apóstolo dos

Gentios, ao querer comprovar que tal plenitude de poder não devia ter limites, afirmar: ―Não sabeis que julgaremos os Anjos? Quanto mais as coisas deste mundo?‖[...]

[...] Lemos na Escritura, a respeito desse poder, que um bom número de

Pontífices da Antiga Aliança o exerceram graças à autoridade divina que lhes foi

concedida ao deporem do trono real muitos monarcas que se tinham tornado indignos de

governar. Portanto, daí resulta que o Papa pode exercer, ao menos casualmente, o seu

julgamento pontifício sobre qualquer cristão, seja ele quem for, principalmente se não

houver outra pessoa capaz de reparar a falta cometida pelo mesmo ou não queira fazer

justiça e, sobretudo, em razão do pecado [...].

De fato, o Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, Deus e homem verdadeiro,

agindo também como autêntico rei e sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque,

igualmente revelou de modo claro aos homens, ora usando a honorabilidade da sua

majestade real, ora exercendo perante os mesmos a dignidade pontifícia, recebidas do

Pai, que estabeleceu na Sé Apostólica uma monarquia não apenas sacerdotal, mas

também real, ao confiar ao bem-aventurado Pedro e aos seus sucessores as rédeas dos

impérios celeste e terrestre, como se pode notar de modo evidente em razão da

pluralidade das chaves, de maneira que através de uma recebemos o poder sobre a terra e

as questões seculares e, pela outra, no céu e a respeito dos assuntos espirituais, a fim de que se entenda que o Vigário de Cristo obteve o direito de julgar. [...]

Portanto, se o poder desta espada material está incorporado na Igreja e se tal

poder está potencialmente incluído no seu interior, ele torna-se ativo quando é

transferido ao príncipe. Com efeito, aquele rito pelo qual o Sumo Pontífice apresenta a

espada embainhada a César, que por ele, Pontífice, vai ser coroado, demonstra-o

claramente, pois o Imperador, após a receber, a retira da bainha e, brandindo-a,

comprova que recebeu da Igreja o direito de usá-la [...]

DOCUMENTO 36

O Oostiense e os dois poderes

Daí, segundo Frei Alexandre [de Hales] da Ordem dos Menores, a Igreja é a

multidão ou a totalidade dos fiéis cristãos [...] possuindo dois lados, o direito e o

esquerdo. O primeiro é o dos clérigos, porque administram o que pertence à vida

espiritual. O esquerdo é o dos leigos, os quais se dedicam ao cuidado de prover o que é necessário à vida terrena. Duplo é igualmente o poder: espiritual e secular. O chefe deste

é o rei, e o Sumo Pontífice é o no domínio espiritual.

123

O poder espiritual é mais importante do que o secular, por três motivos: em

razão da dignidade ou superioridade, enquanto o espírito é superior e mais nobre do que

o corpo [...]; devido à instituição, o que é evidente por causa do sacerdócio de

Melquisedeque, que precedeu a lei escrita, pois a seu respeito se sabe que existiu antes

[...]; e ainda relativamente à autoridade ou poder, considerando-se que a autoridade

espiritual deve instituir a secular a fim de que esta exista, e que pode vir a julgá-la se não

for boa [...].

DOCUMENTO 37

Textos do Aquinate relativos à origem da sociedade e acerca do pior e meihor regime poIítico.

―[...] Convém que o governo seja de um só, para que seja mais poderoso; mas,

se se inclinar para a injustiça, convém que seja de muitos, para que seja mais fraco.

(Livro I, cap. III.)

Já que o governo de um só deve ser preferido por ser o melhor, e costuma

converter-se em tirania, que é o pior [...] deve se procurar com toda a diligência que se

dê ao povo um rei que não venha a converter-se em tirano. É necessário, em primeiro

lugar, que aqueles a quem compete escolher o rei elejam um homem de tal condição que

não seja provável que se incline para a tirania [...].‖

[...] Depois, deve dispor-se o governo da república de modo que ao rei como tal

instituído se retire a ocasião de tiranizar, e justamente moderar o seu poder, para que não

possa facilmente inclinar-se para a tirania [...]. (Livro I, cap. VI.) Se a bem-aventurança é prêmio da virtude, conseqüentemente, há de ter maior

prêmio a virtude que for maior; e é muito grande aquela com que um homem não só se

governa a si mesmo, mas também a outros, e tanto mais quantos mais forem aqueles que

governa. (Livro I, cap. IX.)

DOCUMENTO 38

Textos de Tomás de Aquino relativos às relações entre os poderes espiritual e secular.

Os reis não exercem nenhum poder sobre questões espirituais, porque não

receberam as chaves do reino dos céus, e o exercem apenas no domínio secular, embora

o seu poder também provenha de Deus [...], e, por tal motivo, deve-se reconhecer a

excelência do mesmo, de modo que os monarcas cristãos podem exercê-lo na sociedade

cristã sob a inspiração do Senhor [...].

(S. Tomás de Aquino, Comentário às sentenças, IV, dist. 19, q. 1a 1, qca. 3, sol. 3a 2.)

124

―[...] Como é da competência dos príncipes seculares interpretar a lei natural,

estabelecendo normas para o bem comum da sociedade no âmbito secular, da mesma

forma compete aos dignitários eclesiásticos legislar no respeitante ao bem espiritual de

todos os fiéis em geral [...].

(S. Tomás de Aquino, Suma teológica, II, II q. 147, a.3.)

O poder secular está subordinado ao espiritual, do mesmo modo que o corpo à

alma. Por isso, o prelado espiritual não comete usurpação do foro quando se imiscui em questões temporais naqueles aspectos em que o poder terreno lhe está subordinado, ou

naqueles outros em que lhe são confiados pela autoridade temporal [...].

(S. Tomás de Aquino, Suma teológica, II, II, q. 60, a.6 a 3.)

Parece ser falsa a assertiva segundo a qual se deve obedecer mais ao poder

superior do que ao inferior, visto que o primeiro está no ápice em dignidade

relativamente ao poder terreno. Se assim fosse, o prelado espiritual poderia sempre

isentar qualquer pessoa do cumprimento de uma lei emanada do poder secular, fato esse

que não condiz com a realidade. [...] Ao quarto argumento deve-se responder que os

poderes espiritual e secular procedem do poder divino. Por isso, este último subordina-se

ao primeiro só naqueles aspectos que Deus estabeleceu, isto é, no respeitante à salvação

das almas. Daí, nesse aspecto, deve-se obedecer mais ao poder espiritual do que ao

secular. Porém, no concernente à consecução do bem terreno, deve-se obedecer mais ao

poder secular do que ao espiritual, segundo está escrito no Evangelho de Mateus,

capítulo 22: Dai a César o que é de César, etc. A menos que aconteça que os poderes

espiritual e secular estejam nas mãos do Sumo Pontífice, que detém o ápice de ambos,

conforme a vontade d‘Aquele que é rei e sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque, Rei dos reis e Senhor dos senhores, cujo poder jamais terminará e o seu

reino não terá fim, pelos séculos dos séculos. Amém.

(S. Tomás de Aquino, Comentário às sentenças, IV, dist. 44, q. II, art. 3.)

125

4

NA AURORA DO SÉCULO XIV

Na história das idéias políticas, pelo menos no que concerne à Idade Média,

verifica-se com freqüência um fenômeno curioso, qual seja, o de as teorizações mais

sólidas de uma instituição sócio-política surgirem quando a concretização efetiva dessas

teorias se manifesta, ou em declínio, ou até na impossibilidade de se materializar.

A idéia de Império novamente se fortaleceu quando ele passou a ser uma

abstração sem fundamento prático na realidade. A ideologia hierocrática, no caso

vertente do século XIV, se enriqueceu de novos e bem precisos elementos teóricos quando essa práxis política igualmente se tornou inviável. Precisamente neste momento

histórico, no qual as monarquias nacionais, ciosas da sua autonomia, questionavam a

preeminência da monarquia universal reivindicada pelo Sacro Império Romano

Germânico, o número de ideólogos que o defenderam manifestou-se bastante expressivo.

1

Foi também neste momento, como acabamos de dizer, em que os organismos

universais de poder estão condenados ao fracasso, que ideologia hierocrática recebeu

novos contributos, anteriormente insuspeitados, provenientes dos âmbitos da Filosofia e

da Teologia. Mas, igualmente de modo curioso, os defensores da autonomia do poder

secular foram buscar no terreno do adversário os seus argumentos de combate. E assim

se afirma que ―o rei é imperador no seu reino‖, colhendo da noção universal de império

um contributo para a destruição do império universal. Igualmente ainda se recorreu com

1 Cf.WECKMANN, L. El pensamiento politico medieval y las bases para un nuevo Derecho

Internacional, México, Universidade Autônoma, 1950, 23: ―Toda concepción de Derecho es

imposible; fronteras y territorio, como límites y esfera, respectivamente de jurisdicción, ambas

premisas del Estado Moderno, quedan diluídas dentro del âmbito común del Imperium...‖.5: ―Mientras que el estado moderno es fijo, autosuficiente, autorresponsable y completo (encontrando

su justificación em la soberanía estatal que él mismo emana y la cual al mismo regresa), el

‗estado‘ o más bien, el corpo político medieval es algo que no existe em sí ni se justifica por sí

mismo: el ‗estado‘ medieval depende de normas más elevadas y no es, por lo tanto, soberano. El cuerpo político medieval es básicamente uma abstraccíon, uma idea sostenida precariamente por

andamiajes técnicos; el estado moderno es fundamentalmente uma tecnicalidad a la cual se le ha

asignado um valor absoluto y cuyo edificio es sostenido por un anda miaje de ideas creadas para

sostenerlo, pero las cuales se encuentran, al menos jurídicamente subordinadas a él.‖

126

mais intensidade aos fundamentos conceptuais da hierocracia, para a destruir pela

afirmação das teocracias régias.

Deste último juízo devemos excluir João Quidort pelos motivos que adiante

veremos.

A história das idéias não acompanha a história dos fatos. Atrasa-se em relação a

ela, embora noutros casos seja capaz de se lhe antecipar. Disto falamos no início deste

capítulo, dedicado ao início do Século XIV, época em que as teorias de natureza

hierocrática se apresentaram com uma consistência nunca antes vista. Foi a época de Filipe ―O Belo‖ e de Bonifácio VIII que as lutas entre os poderes secular e espiritual

recrudesceram; foi também a época em que reis, imperadores e papas dispuseram de

autênticas equipes de apoio, formadas por filósofos, teólogos e juristas. O mesmo, até

certo ponto, sucedera no passado. Mas agora os nomes dos teóricos soavam com uma

nova força, pois se tratava de pensadores renomados.

Entretanto, o objeto deste capítulo restringe-se apenas ao exame e à análise das

doutrinas que floresceram no fim do século XIII e bem na aurora do século XIV. As

doutrinas políticas surgidas depois e até a primeira metade do século XV merecem

outros trabalhos específicos.

Desde 1294, o rei Filipe IV estava em guerra com Eduardo I (1272-1307) da

Inglaterra, por causa de questões político-econômicas e feudais envolvendo os territórios

da Gasconha, de Flandres e outras regiões nominalmente sob a suserania da coroa

francesa, Esses monarcas, face a tal circunstância, passaram a extorquir dinheiro do

clero, violando um cânone do IV Concílio de Latrão (1215) que isentava aquele

segmento social de pagar qualquer imposto às autoridades seculares, exceto em

circunstâncias especiais e com a autorização da Santa Sé.

As reclamações do clero francês dirigidas a Bonifácio VIII alcançaram tamanha proporção que o Sumo Pontífice em 24 de fevereiro de 1296 promulgou a bula Clericis laicos,

2 endereçada genericamente à Cristandade, mas de maneira implícita àqueles reis

em estado de beligerância.

Se esse procedimento continuasse a ocorrer, o Papado ficaria numa situação

financeira delicada, pois seus projetos e obras pias de natureza diversa não poderiam ser

levados a bom termo.

Tal documento, resumidamente, proibia, sob pena de excomunhão, aos

eclesiásticos proporcionarem quaisquer espécies de auxílio financeiro aos potentados

seculares, a menos que fossem autorizados pela Cúria Romana. Proibia também aos

príncipes e aos seus oficiais de imporem qualquer taxação ao clero e às suas

propriedades, sob a ameaça de receberem semelhante castigo.

Bonifácio VIII tencionava dar continuidade á política hierocrática de seus

antecessores no que tange ao governo da Ecclesia/Christianitas.

Essa política, em parte, se alicerçava no renascimento do homo naturalis et

politicus para a vida sobrenatural, a única que importava, mediante o Batismo,3 de

2 Cfr. Documento 39. 3 Cfr. 1 Cor 2, 14-15, ibidem 12, 12-13: ―O fato é este: o corpo é um só, mas tem muitas partes.

Todas as partes do corpo, apesar de serem muitas, formam um só corpo. Assim, também acontece

127

acordo com o qual o cristão, homo novus ou renatus, feito membro da

Igreja/Cristandade, devia obedecer às leis regulamentadoras da convivência nesse tipo de

comunidade político-social e religiosa singular, leis essas estabelecidas pelos Soberanos

Pontífices que haviam transformado a doutrina cristã, com o fluir do tempo, em

princípios jurídicos universais, e que pretendiam fazer de seu autor o líder inconteste

daquela sociedade.

Todavia, Filipe IV, assessorado e influenciado pelos juristas burgueses Pedro

Flotte, Guilherme de Plaisians, Enguerrando de Marigny e Guilherme de Nogaret, especialistas em Direito Romano, os quais por força desta sua formação não podiam

mais concordar com essa mundividência, reagiu firmemente contra a Clericis laicos. O

Rei, além de não acatar as determinações contidas naquela bula, em 17 de agosto proibiu

que metais preciosos como o ouro, a prata e qualquer importância em dinheiro saíssem

da França sob qualquer hipótese, e ainda expulsou do reino os banqueiros italianos que

arrecadavam e transferiam o óbolo de São Pedro para Roma.4 Com essa medida, os

dízimos cobrados pela Câmara Apostólica sobre os benefícios eclesiásticos existentes no

reino foram embargados, não obstante os protestos do Sumo Pontífice.

Paralelamente, alguns dentre os mencionados juristas produziram e divulgaram

junto à opinião pública citadina, em especial a parisiense, textos em que defendiam a

política assumida por Filipe ―O Belo‖. Esses textos, em parte, se distinguiram dos

tratados escritos nos séculos anteriores, por ocasião das controvérsias entre o Regnum e o

Sacerdotium, como será possível verificar mais adiante.

Afirmamos antes que esses juristas e assessores da coroa pertenciam à

burguesia emergente, e estamos convencidos de que tal fato exerceu enorme influência

tanto em suas atitudes quanto em seus escritos, pois o citado segmento social estava

interessado na centralização do poder político nas mãos do Soberano, face aos seus interesses econômicos (atividades manufatureiras, comerciais e financeiras), entravados

pela nobreza feudal e pelo clero, grandes proprietários de terras.

Um dos caminhos para essa centralização do poder era sobrepor juridicamente

os interesses nacionais aos de particulares tomados isolada ou grupalmente. Noutras

palavras, o direito do reino devia estar acima tanto dos costumes e direitos feudais

quanto do canônico. Esse processo comecou com Filipe Augusto (1180-1223), a quem

Inocêncio III (1198-1216) reconheceu, de acordo com o que o próprio monarca tinha

afirmado, que em seu reino não havia ninguém com autoridade superior à sua.5 São Luís

IX (1226-1270) prosseguiu na obra centralizadora de seu avô.

com Cristo. Pois todos nós judeus e não judeus, escravos e livres, fomos batizados num só Espírito

para formarmos um só corpo. E todos nós bebemos plenamente de um só e mesmo Espírito [...].‖

Cfr. Igualmente Romanos, 8, 8-11; Efésios, 2 15; Gálatas, 6,5. 4 PASSOS, José Afonso de Morais Bueno, Bonifácio VIII e Felipe IV de França, São Paulo, Tese de Doutoramento em História Social, mimeo, apresentada e defendida junto ao Departamento de

História da Universidade de São Paulo, 1973: 64 e ss. 5 Cfr. a decretal Per venerabilem da autoria daquele papa, inserida no conjunto de documentos

relativo ao capítulo anterior, sob o número 29.

128

Um outro procedimento para alcançar esse objetivo consistiu em os reis

neutralizarem o poder fundiário dos grandes vassalos da coroa, guerreando contra eles e,

após derrotá-los, anexar suas terras ao patrimônio real. Filipe Augusto foi um adversário

implacável dos reis plantagenetas (Ricardo Coração de Leão, 1189-1199; e João Sem

Terra, 1199-1216), grandes proprietários de terras na França. Também foi ele o executor

da não menos atroz cruzada contra os albigenses, ou melhor, contra o poderoso conde

Raimundo VI de Tolosa e seu cunhado Pedro II (1196-1213), rei de Aragão, visando

com esse empreendimento a se apossar daquele condado rico e próspero, sob os aspectos manufatureiro e mercantil, e ainda guarnecer as fronteiras do sul do reino contra os

aragoneses.

Todavia, a ―Questão Inglesa‖ apesar do tratado de Paris (1259), celebrado entre

São Luís e Henrique III (1216-1272), ainda não tinha sido plenamente resolvida, de

acordo com os interesses da coroa francesa, como nos referimos anteriormente; na

verdade, só o será efetivamente nos tempos modernos.

Voltemos, porém, ao pensamento dos citados juristas. Impressionados com a

beleza estrutural do Direito Romano, por sua precisão de conceitos e definições, por sua

conseqüência rigorosamente lógica aplicável a todos os casos e por sua rígida

formalidade, se imbuíram da maneira de pensar jurídica explicitada no Código, passando

a considerar como racional, justo e bom tudo o que se adequava ao mesmo.

Portanto, fundamentados naquela fonte e igualmente na Ética e na Política de

Aristóteles, defendiam o célebre princípio enunciado no Digesto – quod principi placuit

legis habet vigorem – proclamando que o rei devia ser o princeps no sentido jurídico-

político da palavra, isto é, a fonte e a origem de toda lei, e, na qualidade de chefe do

Estado, devia dispor de todos os meios apropriados para proteger o bem, o interesse, a

honra e a liberdade de todos. Em nome desse tipo do bonum commune, os juristas não admitiam que houvesse limites ao poder do soberano, nem no âmbito judiciário, nem no

legislativo, muito menos na esfera administrativa. Não podia haver limite nenhum

porque, segundo eles, o poder do Rei provinha diretamente de Deus, sem a

intermediação da Igreja, perante Quem ele era exclusivamente responsável.

Todavia, aquele princípio do Digesto tinha sido historicamente aplicado só aos

imperadores, e por isso também, pretendendo desvincular ao menos teórico-

juridicamente a França de uma subordinação ao Sacro Império Romano Germânico,

esses juristas assimilaram dos reis de Leão-Castela, em especial do Afonso X ―O Sábio‖

(1252-1284, autor de Las siete partidas), um outro postulado — rex in regno suo est

imperator —, o qual passaram enfaticamente a apregoar e a defender. Tal expressão

significava o reconhecimento de uma soberania régia colocada no vértice hierárquico

dos poderes existentes no reino, do mesmo modo como os membros da alta nobreza

eram soberanos em seus domínios, de acordo com uma tese proposta pelo jurista francês

Filipe de Beaumanoir (2a metade do século XIII), que também foi o primeiro a elaborar

uma teoria acerca do poder legislativo do rei.

Mas note-se ainda o que afirmamos no início deste capítulo: que os defensores

da autonomia régia procuravam os fundamentos das suas teorizações em terreno que, à partida, lhes era adverso. Entretanto, ainda que isso tenha sido uma verdade, o processo

de revitalização e transformação do conceito de soberania, iniciado no governo de

129

Frederico I, como tivemos ocasião de examinar no Capítulo 2, irá passar de medieval a

moderno, justamente quando as instituições universais do medievo, isto é, a Igreja e o

Império, não tiverem mais condição de o sustentar na prática, e as monarquias nacionais

irão absorvê-lo para si. O longo interregno imperial da segunda metade do século XIII,

causado pelo Papado, também contribuiu para isso.

Por outro lado, esses juristas também se empenharam nos seus escritos,

propositadamente anônimos, de modo a não incorrerem na acusação de hereges, a

delimitar a esfera específica de atuação do poder espiritual, restringindo-o às atividades religiosas, bem como a ressaltar as características essencialmente profanas, terrenas e

legais do poder temporal, a fim de que o rei pudesse agir livre e soberanamente como um

princeps em seu reino, de acordo com o que estava escrito não apenas no Código de

Justiniano, mas também nos textos do imperador Adriano e dos juristas Ulpiano, Gaio e

Papiniano, incorporados ao mencionado Código, os mais lídimos teóricos do

absolutismo monárquico do Imperador à época do Baixo Império (193-284).

Um dos tratados anônimos que veio a lume em seguida à promulgação da

Clericis laicos foi o opúsculo intitulado Disputatio inter clericum et militem.6 Não se

trata duma obra em que se aborda sistematicamente a origem, a natureza, a finalidade e

as obrigações do poder secular. Entretanto, esses assuntos, além dos que mencionamos

nos parágrafos imediatamente anteriores, aí podem ser vistos.

Dada a sua importância, como uma das expressões do pensamento político do

momento histórico em exame, nomeadamente a jurídica e laicizante, embora

absolutamente não ignoremos a unidade interdisciplinar tão cara aos autores medievais,

iremos agora examinar os seus trechos mais relevantes, convidando o leitor a examiná-

los onde se encontram.7 No entanto, de propósito não iremos analisá-los em

profundidade, como fizemos noutras partes deste livro, com outras fontes, a fim de que possam servir de material de trabalho para estudiosos interessados nesse gênero da

literatura.

O opúsculo apresenta-se sob a forma de um diálogo entre um clérigo e um

soldado do rei. Sua tônica é às vezes áspera e irônica. Principia com as lamentações do

clérigo, concernentes à violação da imunidade fiscal, até então desfrutada pelos

eclesiásticos franceses, e agora sustada por Filipe ―O Belo‖.

6 LEWIS E., Medieval Political ideas, 2 Ed. New York: Coopers Square Publishers, 1974, p. 468,

observa o seguinte: ―[…] is a brief anonymous treatise, written in the first phase of the controversy

between Boniface VIII and Philip the Fair, probably in 1926 or 1927, It is in the form of a lively

dialogue between a knight and an ecclesiastic on the issue of the king‘s right to tax the clergy. The knight gets the best of the argument.‖ 7 Note-se que, para a mentalidade medieval, o poder de legislar consistia efetivamente em,

mediante leis positivas, interpretar caso a caso a lei natural. Daí que para os hierocratas, o poder

legislativo fosse prioritariamente da competência do Papa, ficando o exercício da justiça, esta mesma derivada da lei, e sua aplicação concreta a cargo do príncipe secular. De um lado, com a

emergência das monarquias nacionais, e de outro, com a elaboração das teorias políticas que

fundamentavam as várias formas de teocracia régia, é natural que tal incumbência fosse atribuída

ao supremo governante secular em seu respectivo território.

130

O soldado, após indagar do clérigo o que ele entende por lei e direito, manifesta

seu ponto de vista acerca desses conceitos, revelando nitidamente o pensamento dos

juristas do Rei: ninguém pode legislar sobre assuntos que não são da sua competência

política específica. É por esse motivo que o Papa não pode reiterar a legislação que

isenta o clero francês ou o de outros reinos do pagamento de impostos, porque ele não é

soberano nos assuntos referentes ao fisco. Daí, o clérigo não poder invocar os cânones

como fundamento para a predita imunidade fiscal.

Um pouco mais adiante, o autor do opúsculo ressalta a suprema competência legislativa do rei em seus domínios, bem ao contrário da teoria hierocrática, que atribuía

ao monarca, primacialmente, a faculdade de fazer justica, aplicando as leis.8

Trata-se de uma sutileza que não deve, no entanto, passar despercebida na

análise deste texto. Nega-se ao Papa a capacidade de legislar fora do âmbito espiritual, e

se transfere a mesma para o Rei, que, até aí, embora não lhe fosse negado o poder de

fazer leis, o possuía apenas como poder segundo e que, no exercício do mesmo, não

podia agir contra as leis supremas emanadas do Papado. Estamos, de fato, num mundo

diferente, o do nascimento das monarquias nacionais, independentes e autônomas em

relação aos organismos de natureza universal, seja o Império, seja a Igreja. A idéia de

uma Cristandade de raiz cristã encontra-se próxima da ruína. As relações entre os

poderes já não mais se estabeleceriam dentro do âmbito da Ecclesia-Christianitas, mas

sim entre instâncias diversificadas de poder.

O clérigo prossegue na sua argumentação, alegando que Jesus Cristo, na

condição de Filho de Deus, é o senhor de todas as coisas e transmitiu esse privilégio, na

pessoa de São Pedro, ao Santo Padre, seu vigário, sobre a terra. O soldado retruca,

dizendo que aprendeu com algumas pessoas notáveis pela sabedoria e piedade que é

preciso distinguir dois momentos na vida do Mestre: o da humildade e o do poder. O primeiro deles se estendeu até o momento de sua morte, e foi naquela primeira ocasião

que o Senhor estabeleceu Pedro como seu vigário, exclusivamente para o âmbito

espiritual, visto Ele próprio ter se recusado a exercer a jurisdição e o poder seculares,

como demonstram muito bem as Sagradas Páginas. O outro momento da vida de Cristo

sobre a terra ocorreu após a Ressurreição. Foi a ocasião em que ele usufruiu plenamente

de toda glória e poder divinos.

Tendo sido negadas ao Papa e à Igreja uma soberania e uma competência

jurisdicional na esfera temporal, como se pode notar, vendo as palavras do soldado, ao

rebater os argumentos teológicos que fundamentavam a Plenitudo potestatis papalis, o

clérigo em seguida passa a tentar justificar o direito de os ministros do altar julgarem

questões envolvendo o pecado e a injustiça, face à natureza ético-religiosa inerentes às

mesmas. O soldado rebate essa tese, declarando que o fato de os sacerdotes possuírem a

cognitio de peccato não lhes dá competência pleno iure para proferir judicia acerca do

que é iustus et iniustus, devendo, pois, restringirem sua atuação exclusivamente quanto

às transgressões relacionadas com os preceitos religiosos e morais alicerçados nos Dez

Mandamentos. Noutras palavras, um tipo de saber especializado, mesmo que seja tido na

8 Cfr. Documento 40. Servimo-nos da edição de Melchior Goldast, Monarchia Sancti Romani

Imperii, v.1, Hanoviae, 1611, p. 13-18.

131

conta de superior aos demais, por tratar das coisas excelsas, não assegura a quem o

possui outros conhecimentos igualmente especializados nem o direito de em nome

daquele saber interferir noutra esfera de poder.

De fato, é o Rei e as leges humanae que determinam o que e justo e injusto, de

modo que apenas ele, monarca, soberano, legislador e juiz pode em seu reino estatuí-las

e aplicá-las de acordo com as circunstâncias e necessidades que se apresentarem.

Compete-lhe ainda o direito de modificá-las ou até mesmo revogá-las se for o caso, e

todos os súditos, eclesiásticos ou leigos, tem o dever de respeitá-las. Tampouco interessa ainda o fato de o Papa e a Igreja terem a cognitio de

peccato, pois seus dirigentes e o clero em geral só poderão agir se porventura o Rei vier

a ser omisso no cumprimento de seus deveres, consentindo e permitindo que crimes

notórios fiquem impunes, sendo, porém, a atuação deles limitada apenas à admoestação

dos delinqüentes. Não lhes é permitido tomar nenhuma medida coerciva contra os

malfeitores, pois essa incumbência também é da alçada exclusiva da realeza. Portanto,

visto Pedro e seus sucessores não terem recebido de Cristo nenhum poder e jurisdição no

âmbito secular, os Papas ao se imiscuírem no mesmo, estão a cometer um grave abuso e

a causar um enorme prejuízo a todos os fiéis.

Quando o clérigo, em seguida, afirma que o poder secular e os bens materiais

devem servir às causas espirituais e às necessidades dos eclesiásticos, como aconteceu

entre os israelitas, o soldado, admitindo que em parte é justo àqueles que servem o altar

viverem do altar, objeta, porém, alegando que é muito mais justo ainda que os

dignitários eclesiásticos e demais ministros do Senhor destinem as ofertas que receberam

dos fiéis, desde há muito, para outras causas de interesse geral, insinuando de um lado

com a idéia de nação, que se opõe radicalmente à tradicional divisão da sociedade em

trés ordens — clérigos, nobres e camponeses — e, de outro, com a idéia de bem comum ou geral, que deve se sobrepor às aspirações individuais ou dos grupos sociais.

Ao final do opúsculo, uma vez mais, o soldado defende a soberania do Rei

contra uma provável interferência (aliança) do Império e do Papado nos assuntos

internos do reino francês, ressaltando sua autonomia jurídico-legislativa ante uma

eventual ameaça de qualquer outra autoridade com poderes análogos.

Bonifácio VIII redargüiu as teses da Disputatio com uma outra bula, a

Ineffabilis amoris dulcedine, promulgada em 20 de setembro de 1296. Nela o Papa

censurava o rei francês por ter dado atenção a seus maus assessores e conselheiros e lhe

recomendava que mudasse sua maneira de agir; do contrário, estaria incorrendo numa

falta grave que lhe poderia vir a acarretar severas punições espirituais.

Nesse ínterim, porém, as desavenças entre os Caetani, parentes do Papa

reinante, e os Colonna começaram a perturbar o equilíbrio político entre a elite dirigente

de Roma e das regiões vizinhas, o que levou o Pontífice a deixar temporariamente de

lado o conflito que há algum tempo vinha mantendo com Filipe IV.

Bonifácio VIII, mesmo antes de ascender ao Sólio de Pedro, favorecia muito os

seus parentes com somas de dinheiro, facilitando-lhes a aquisição de terras, castelos e

casas. Essa atitude nepotista ampliou-se ainda mais após ele ter se tornado Papa, de modo que em pouco tempo os Caetani tomaram-se um rico e poderoso clã rural. Além

disso, ele se uniu politicamente com os Orsini e juntos apoiavam o expansionismo

132

angevino na Itália Meridional e Sicília. Esses fatos causaram descontentamento e

preocupação entre os Colonna que se viram ameaçados nos seus interesses e

desprestigiados pelo Papa. Todavia, os dois cardeais dessa família, Pedro e Tiago,

respectivamente tio e sobrinho, passaram a apoiar de modo velado os Espirituais

italianos, liderados por Jacopne de Todi, em suas invectivas contra o Pontífice.

Ademais, o Papa, durante as reuniões de trabalho com os cardeais, tratava os

Colonna dura e asperamente, embora a atitude costumeira de Bonifácio VIII fosse a de

não ouvir os pareceres dos membros do Sacro Colégio e decidir tudo autocraticamente. Por tais motivos, conquanto os dois cardeais tivessem participado do conclave que

elegera o Pontífice em dezembro de 1294, passaram a questionar veladamente a sua

legitimidade.

O conflito latente estourou quando a 2 de maio de 1297 o conde Estêvão

Colonna, capitaneando um bando de asseclas, roubou uma elevada soma de ouro, prata e

objetos preciosos que eram transportados de Anagni para Roma.

O Santo Padre imediatamente exigiu que os Colonna se explicassem por causa

do roubo cometido, lhe devolvessem os bens apreendidos; que Estêvão fosse julgado

pelo delito cometido e, ainda, que as fortalezas de Palestrina, Zagarollo e Colonna

passassem ao controle do Papado.

Os bens dos Caetani foram devolvidos, mas as outras exigências do Papa não

foram levadas em consideração. Poucos depois, no dia 10 de maio, os Cardeais Colonna

publicaram o Manifesto de Lunghesa, afirmando que Benedito Caetani não era papa

legítimo em razão de a renúncia de seu antecessor não ter validade canônica. Em favor

de sua tese alegavam 13 argumentos. No dia 16 de maio, eles publicaram um outro

manifesto em que, além de reiterar as idéias propostas no primeiro documento, acusavam

o Sumo Pontífice de usurpador, simoníaco e homicida, pois, segundo eles, tinha feito Celestino V morrer na prisão. Por tais crimes imputados a Bonifácio VIII apelavam

novamente para a convocação de um Concílio Geral, durante o qual tais acusações

viriam a ser examinadas e, depois, se fosse o caso, ele seria condenado.

O Papa reagiu com firmeza contra os Cardeais. Através da bula Lapsis

abscissus os excomungou e os destituiu do cardinalato em razão de estarem tentando

provocar um cisma na Igreja e de o acusarem injustamente. Mas refugiados no castelo de

Palestrina, em 16 de junho, tornaram a publicar um terceiro manifesto,9 no qual, além

das acusações anteriores, afirmavam que Bonifácio VIII era arbitrário ao governar a

Igreja e invocando a plenitudo potestatis proclamava orgulhosamente estar acima de

qualquer autoridade leiga ou eclesiástica.

É oportuno observar que 19 membros do Sacro Colégio imediatamente após

esses acontecimentos assinaram um manifesto em favor de Bonifácio VIII, afirmando

que sua eleição fora perfeitamente legal e legítima.

O Papa, a seguir, ordenou uma perseguição implacável à família Colonna, cujos

palácios e fortalezas foram destruídos e cujos bens foram confiscados.10

9 Os três manifestos dos Cardeais Colonna foram publicados pelo P. Denifle no ALKG, tomo V,

pela ordem: 509-515, 515-518, 519-524. 10 SOUZA José Antônio de, ―A Gênese do Conciliarismo‖, Leopoldianum, 21 (1981): 23-25

133

Bonifácio VIII, a par desses episódios, tentando neutralizar um dos muitos

conflitos em que se metera, e talvez o mais delicado de todos, atendendo a uma

solicitação do alto clero francês expressa numa carta de 31 de janeiro de 1297, na qual

diziam que tanto a igreja local quanto o reino se encontravam rodeados de inimigos e

que, por isso, o Rei lhes solicitara auxílio pecuniário para poder armar-se contra os

adversários, e que, ante esse fato grave, lhes parecia razoável que o Papa lhes permitisse

ajudar o monarca, promulgou a bula Coram illo fatemur (fevereiro de 1297), na qual

permitia que o clero francês pagasse impostos ao Rei Capeto, a fim de que ele pudesse sustentar a guerra que movia contra Eduardo I.

Finalmente, para selar a reconciliação entre ele e Filipe IV, Bonifácio VIII

resolveu canonizar Luís IX em face de seus méritos pessoais, e quiçá também para

mostrar ao Rei qual devia ser o comportamento de um Soberano cristão no tocante aos

seus súditos e à Igreja. A festa de canonização foi celebrada solenemente em Orvieto em

11 do agosto de 1297.

Se o Monarca tivesse se contentado com aquela concessão e se sentido

prestigiado com a beatificação de seu avô, o diferendo entre ele e o Papa teria terminado.

No entanto, em junho de 1299, Filipe IV preferiu dar guarida aos Cardeais Pedro e

Tiago, os quais tinham conseguido fugir de seu confinamento em Tívoli, após sua

fortaleza de Palestrina ter sido conquistada em outubro de 1298.

Lembremo-nos, entretanto, de que Filipe IV, na senda de seus antecessores,

estabelecera como meta o fortalecimento da política contralizadora, fato esse que

implicava no exercício do poder régio em todos os aspectos administrativos, jurídicos e

sociais, e exigia a integração do clero, também quanto a esses aspectos, no âmbito global

da sociedade francesa. Por outro lado, Bonifácio VIII queria um Rei que lhe fosse a tal

ponto submisso, inclusive na esfera temporal, quando os interesses da Igreja e do Papado estivessem em jogo.

No entanto, Filipe IV, precisando cada vez mais de dinheiro para manter a

guerra contra Eduardo I, aumentou gradualmente o valor das taxas sobre o clero francês.

Alguns clérigos julgavam a medida justa, porque, afinal, a França estava em guerra.

Além disso, os assessores do rei tinham influenciado a população mediante uma bem

organizada campanha contra a Inglaterra. Outros clérigos, todavia, pensavam que o

Monarca os desrespeitava e violava o acordo firmado com o Sumo Pontífice. Entre estes

últimos contava-se Bernardo Saisset, Bispo de Pamiers e amigo de Bonifácio VIII, o

qual não perdia a oportunidade de criticar asperamente o Rei.

Em 1301, surgiu a ocasião para Filipe IV ripostar. O Prelado havia se

desentendido com alguns de seus vassalos, os quais se queixaram ao Rei. Este ordenou

aos seus juristas que formalizassem um processo contra Saisset. Os juristas o

organizaram de tal modo que o Bispo era acusado de herege, de blasfemar, de praticar a

simonia e, pior ainda, de conspirar com o rei de Aragão, Jaime 1(1291-1327), contra a

França.

No dia 21 de outubro daquele ano, Saisset foi detido e levado ao tribunal régio,

sob a acusação de ter cometido crime de lesa-majestade. Como reivindicasse o direito ao foro privado, o Rei permitiu-lhe que ficasse sob a custódia do Arcebispo de Narbona até

que a questão fosse julgada.

134

Bonifácio VIII viu nestes acontecimentos mais um desrespeito à sua autoridade.

Exigiu, pois, que o Rei libertasse Saisset deixando-o viajar para Roma, onde deveria ser

julgado, exigência essa a que Filipe o Belo não atendeu.

Como represália, o Papa promulgou, no dia 4 de dezembro, a bula Salvator

mundi, na qual revogava todos os privilégios fiscais concedidos à coroa francesa e

proibia terminantemente ao clero o pagamento de qualquer imposto. No dia seguinte, o

Papa promulgou uma nova Bula, a Ausculta flu charissime.11

Para além dos abundantes pormenores de circunstância relativos às acusações imputadas contra Filipe o Belo, em face de uma série de atos que ele praticara, a bula

tem interesse pelo suporte teórico que a fundamenta, nitidamente neoplatônico, e se

comparada com as concepções políticas expressas na Disputatio, acima analisada, pois

os argumentos de Bonifácio VIII são precisamente aqueles contra os quais o soldado

tinha se insurgido.

Ora, as novas teorias, bem fundamentadas pelos assessores de Filipe, situavam-

se, como vimos, num plano totalmente outro. Quem pode fazer direito, segundo eles, é o

Rei; o Papa intromete-se em assuntos que não são da sua competência ao legislar sobre

tais direitos e privilégios. A discussão, neste contexto toma-se, pois, inviável. Os

argumentos, de um e de outro lado partiam de postulados completamente distintos.

Como dissemos, a teoria política dos juristas franceses inseria-se num mundo novo;

aquele, precisamente, em que a contra-argumentação pontifícia se manifesta desinserida.

Assim que a Ausculta fili chegou à corte, o jurista Pedro Flotte destruiu-a e

elaborou uma bula apócrifa, a Deum time, na qual se afirmava que o Papa exercia a

jurisdição temporal sobre o Rei e todos os franceses. Flotte e seus colegas antes referidos

ordenaram aos funcionários reais que divulgassem esta bula por todo o país, com o

propósito de mover a opinião pública contra Bonifácio VIII, objetivo esse, aliás, rapidamente alcançado.

Filipe IV, em seguida, proibiu ao clero francês que se ausentasse do reino sem

autorização expressa. Em abril de 1302, e depois em junho, o monarca convocou os

representantes da nobreza, do clero e da burguesia para deliberarem sobre as atitudes do

Sumo Pontífice relativas à França. Após tais reuniões dos Estados Gerais, foram

enviadas cartas de protesto ao Sacro Colégio.

Mas Bonifácio VIII dispunha também de uma equipe de assessores filósofos,

entre os quais avultava Egídio Romano; além disso, era um exímio canonista e como tal,

em 24 de junho de 1302, durante um consistório, afirmou: ―Quadraginta anni sunt quod

nos sumus experti in Jure. Scimus quod duae potestates sunt ordinatae a Deo. Quis ergo

debet credere vel potest, quod tanta fatuitas, tanta insipientia sit vel fuerit in capite

nostro. Dicimus quod in nullo volumus usurpare iurisdictionem regis [...] non potest

negare rex seu quiqunque alter fidelis quin sit nobis subiectus ratione peccati […]‖.12

Entretanto, circulavam já duas obras produzidas nos meios eclesiásticos,

escritas com o objetivo de oferecer uma solução para o conflito entre o Rei e o Papa.

11 Cfr. Documento 41. 12 In PILATI, G. Bonifácio VIII e il potere indireto. Antonianum, 8 (1933), p. 333

135

Sobre as mesmas nos debruçaremos de imediato, bem como sobre os seus respectivos

autores.

4.1

EGÍDIO ROMANO

Egídio Romano, o Doctor Fundatissimus, como também se tornou conhecido,

nasceu em Roma em meados do século XIII. Aí mesmo ingressou na Ordem dos

Eremitas de Santo Agostinho em 1258. Estudou na Universidade de Paris, onde

gradualmente recebeu os títulos de magister artium e de baccalaureus formatus, em

1276.

Ele esteve igualmente envolvido nos debates acadêmicos que agitaram a

Universidade de Paris e exigiram a intervenção da própria Igreja, motivados pela

influência dos escritos e comentários de Averróis aos textos de Aristóteles, os quais

punham em causa certos dogmas do Cristianismo como, por exemplo, o relativo à

imortalidade da alma humana. Entre os mestres averroístas encontravam-se Sigério de

Brabante, Gosvínio de la Chapelle e Bernério de Nivelles. Para além de teses de natureza

eminentemente metafísica e teológica, sustentavam que as sanções relativas aos atos

humanos eram imanentes aos próprios atos, o que não deixava de ter conseqüências de

ordem sócio-política.

Pelo contrário, S. Tomás de Aquino, cujos seguidores se lhes opuseram,

defendera a existência de uma duplex ordo, a da natureza e a da graça, e que embora a

natureza possuísse a sua própria consistência ontológica e o seu dinamismo, se

subordinava à lei eterna. Não podemos desenvolver aqui todos estes temas. Baste salientar a importância

que o chamado averroísmo latino teve no Ocidente europeu. Tanto assim foi que o bispo

de Paris, Estêvão Tempier, assessorado por uma equipe de teólogos da Universidade,

veio a condenar por duas vezes, em 1270 e 1277, o averroísmo aristotélico professado

por Sigério de Brabante e seus colegas,13

a última das quais sob o pontificado de João

XXI, mas sem uma intervenção direta do mesmo no ato condenatório, 219 proposições

sustentadas por mestres da Faculdade de Artes, algumas das quais se relacionavam, pelo

menos indiretamente, com a filosofia de S. Tomás de Aquino. A condenação envolvia a

proibição de ler Aristóteles em privado ou em público, o que significava dar lições, em

locais públicos ou privados fundamentadas nos textos do ―Estagirita‖, os quais, no

13 Sobre a problemática da penetração do aristotelismo no Ocidente cristão, cfr. o trabalho de L.

BIANCHI: Il vescovo e i filosofi; la condanna parigina del 1277 e l‘evoluzione de‘ll aristotelismo

scolastico (Bergamo, Pieluigi Lubrina 1990); ver também outros trabalhos deste jovem estudioso italiano, v.g., L‗errore di Aristotele. La polemica contro l‘eternità del mondo nel XIII secolo

(Florença, La Nuova Itália, 1984); Cfr. DE BONI, Luis A. As condenações de 1277: os limites do

diálogo entre a Filosofia e a Teologia. In: De BONI, Luis A. (org.). Lógica e linguagem da Idade

Média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995, p. 127-144.

136

entanto, continuaram a ser lidos, no sentido atual da palavra, por vários mestres e

estudantes.

Devido à decisão do Bispo Tempier, Egídio Romano viu dificultado o seu

ensino universitário.

No entanto, o nosso Autor desempenhou, entre 1279 e 1285, importantes

funções no interior da sua Ordem na Itália e, ao regressar à França, foi convidado por

Filipe III para ser preceptor do jovem príncipe Filipe. Egídio escreveu e dedicou-lhe um

livro intitulado De regimine principum, inspirado na Ética Nicomaqueia e na Política do Estagirita, bem como no próprio De regimine principum de S. Tomás de Aquino e de

Ptolomeu de Lucca.

Egídio acabaria por conhecer e tornar-se íntimo amigo do cardeal Benedito

Caetani, então desempenhado várias missões diplomáticas na França. Em 1287, após

notável produção intelectual, obteve o título de magister theologiae na Universidade de

Paris. Em 1292, foi eleito superior geral da Ordem e, passados três anos, Bonifácio VIII

o nomeou arcebispo de Bourges. Pôde então acompanhar de perto a luta que o Papa e

Filipe IV travavam, vindo então a fornecer ao Sumo Pontífice sólido e amplo material

teórico para a defesa das posições hierocráticas, em particular no respeitante à celebre

lex divinitatis atribuída ao Pseudo Dionísio Areopagita ao qual nos referiremos adiante.

Egídio era um intelectual que conhecia profundamente as cosmovisões

agostiniana, tomista e averroísta. Esta última, ao propor uma separação radical entre os

fins imanente e transcendente do homem, dado que a unidade universal do intelecto

humano não possibilitava a imortalidade pessoal do homem, mas apenas uma

imortalidade comum da espécie, e ao sustentar que a civitas ou regnum, como entidade

integrada no plano da natureza, era autônoma, quer dizer, tinha as suas leis próprias e

independentes, e auto-suficiente relativamente a qualquer outra instância, estabelecia, como conseqüência, que os reinos temporais possuíam como fim específico a obtenção

da vida suficiente, a qual se realizava já neste mundo, ao contrário de Santo Agostinho e

de seus seguidores, para quem a felicidade neste mundo era uma imagem, embora pálida,

da felicidade eterna.

Os averroístas latinos inspiravam-se em Aristóteles, embora não o seguissem

integralmente. Para os intelectuais que seguiam esta corrente de pensamento, muitos dos

quais certamente estavam a serviço da coroa, o Rei devia ainda regular a convivência

sócio-política e econômica dos cidadãos. Eles associaram estas concepções com aquelas

outras teses antes vistas, colhidas no Direto Romano.

A nova cosmovisão tinha, como é fácil perceber, fortes conseqüências de ordem

política, ameaçando os organismos universais como o Império, a Cristandade/Igreja

liderada pelo Sumo Pontífice. Digladiando-se ao longo de séculos, a Igreja e o Império

inspiravam-se, porém, como repetidas vezes afirmamos, nos mesmos princípios teóricos,

que favoreciam grandemente a hierocracia; agora, as duas entidades encontravam-se

diante de uma ameaça comum à sua hegemonia, e as monarquias nacionais nasciam com

novas perspectivas, fundamentadas em princípios teóricos diferentes e vocacionadas para

se imporem definitivamente no decurso da história. Se desligadas do mundo mental da teocracia, o que nem sempre sucedeu, tinham todas as possibilidades de vencer.

137

Além do já referido De regimine principum, Egídio Romano escreveu o De

ecclesiastica potestate,14

no qual sistematizou filosófica e teologicamente o pensamento

político hierocrático, mediante a análise da origem, natureza e competências da

autoridade espiritual e das suas relações com o poder secular.

Fundamentando-se também em Santo Agostinho, em Hugo de São Victor, no

Pseudo-Dionísio, na Sagrada Escritura e no Direito Canônico, Egídio Romano

combinou, numa síntese bem acabada, as principais fontes do pensamento filosófico-

político da Idade Média. E assim firmou em bases sólidas a preeminência do Sacerdócio e a conseqüente tese que atribuía ao Papado a competência de instituir o poder terreno,

de transferir reinos e do depor os príncipes seculares.15

Tal como no De regno de seu mestre Tomás de Aquino, o ponto de partida

inicial para o ―Doutor Fundatíssimo‖ elaborar sua teoria acerca da origem da sociedade e

do poder político é colhido em Aristóteles e, mais concretamente, nas idéias da índole

gregária e da sociabilidade do homem, gracas às quais ele pode mais facilmente

conseguir os bens indispensáveis à sua realização terrena, bem como a concepção de que

a lei positiva, além de ser o mecanismo regulador da convivência político-social,

também foi o mecanismo que o ser humano usou para o estabelecimento das diferentes

formas de escolha dos governantes. Todavia, mais importantes do que esses dados

naturais, são aqueles outros que a Revelação apresenta acerca do fim último a ser

atingido pelo homo renatus, apenas mediante a água batismal, a saber, a bem-

aventurança eterna.

Cristo fundou uma sociedade, a Igreja, confiando-a a Pedro, o seu vigário, e a

organizou monárquica e hierarquizadamente. Para fazer parte dessa sociedade, cujo fim

último é propiciar a todos os seus membros os meios para alcançarem a salvação eterna,

é indispensável obter a regeneratio baptismalis, tornando-se um homo novus. A Igreja, tendo à frente o Papa e congregando todos os fiéis, está, pois,

monarquicamente organizada.

Mas é no capítulo IV do Livro I do De ecclesiastica potestate, que encontramos

um texto extremamente rico e destinado a um notável sucesso no futuro.16

Bonifácio

VIII acolheu-o na bula Unam sanctam e, através dela, foi reproduzido em obras de

numerosos hierocratas do século XIV, como, a título de simples exemplo, Tiago de

Viterbo, no De regimine christiano, e Álvaro Pais, no De statu et planctu Ecclesiae.

Nesse texto encontramos a célebre lex divinitatis, atribuída por Egídio ao Pseudo

Dionísio,17

mas que não se encontra nem no original grego, nem em qualquer das

14 Servimo-nos da edição em português desse tratado, elaborada pro L. A. De Boni e Cléa Pitt B.

Goldman Vel Lejbman (Petrópolis: Vozes, 1989). 15 Cfr. ULLMANN, W. Medieval political thought, p. 126. 16 Cfr. Documento 42. 17 A propósito da lex divinitatis, cfr. LUSCOMBE, D. E. The Lex divinitatis in the Bull Unam

Sactam of Pope Boniface VIII. In Church and government in the Middle Ages. (Essay presented to

C. R. Cheney on his 70th Birth day, London, ed. C. N. L. Brooke, 1976, p. 205-221). LUSCOMBE,

D. E. Some examples of the use of the works of Pseudo-Dionysius by university teachers in the

138

traduções latinas do Corpus dionysiacum. Analisemos de passagem o texto, para dele

retirarmos algumas importantes conclusões.

A tese a demonstrar é a supremacia da Igreja sobre os vários reinos. Ora,

segundo Dionísio, é lèx divinitatis (lei da divindade) que as realidades ínfimas se

reduzam às superiores mediante as intermédias. Tal lei fundamenta toda a ordem do

universo.

De fato, o neoplatonismo, no qual o Pseudo-Areopagita se integra, propõe a

existência de uma hierarquia na ordem universal dos seres, de tal modo que as realidades inferiores, que, segundo o grau hierárquico em que se situam, são igualmente mais

materiais do que as superiores.

Ao Uno corresponde o supremo grau de espiritualidade, e dele emanam as

realidades superiores; as outras delas provêm e a elas devem reduzir-se pela conversão

da multiplicidade à unidade e da materialidade à espiritualidade. Assim, cada hierarquia

pré-contém em si, num grau superior, as hierarquias inferiores que, ao se lhe reduzirem,

são por ela reconduzidas a outra hierarquia superior na ordem da unidade e da

espiritualidade e, mediante este processo de conversão, as hierarquias intermédias

reduzir-se-ão à hierarquia suprema.

Egídio Romano aplicou esta cosmovisão metafísica à realidade política e, mais

concretamente, às relações entre os dois poderes. O poder espiritual, por ser tal como é,

quer dizer, por sua natureza ser desse modo, o faz superior ao poder temporal; a ordem

universal, por sua vez, impõe que este se lhe reduza.

O nosso Autor socorre-se paralelamente da autoridade paulina, segundo a qual

todos os poderes existentes foram ordenados por Deus (ordem essa que, segundo

Dionísio, obedece à regra das relações entre o uno e o múltiplo, entre o espírito e a

matéria, a qual já nos referimos), bem como da alegoria dos dois gládios, identificando, no bom estilo da hierocracia, a espada espiritual com o poder da Igreja e a espada

temporal (expressão que, também segundo a terminologia da hierocracia mais acabada,

prefere à genuína locução espada material) com o poder dos potentados seculares. Estas

duas espadas provêm de Deus e, de acordo com o texto evangélico, estão ambas na posse

da Igreja. Assim, o gládio inferior, o temporal, deve, para obedecer à lex divinitatis,

reduzir-se ao superior e lhe estar submisso.

Temos aqui o uso da interpretação alegórica tão ao gosto dos autores medievais,

mediante a qual se reduz ao específico significado canonístico do gládio material, a

saber, a coercividade, todo o poder imperial e régio. Semelhante interpretação alegórica

alia-se agora à inspiração de natureza neoplatônica, aplicando-se ao universo teórico da

política e, mais concretamente, às relações entre os poderes. A conclusão lógica será a

integração plena de todo o poder na suprema autoridade da Igreja, como Tiago de

Viterbo irá afirmar; a Igreja é o gênero e os reinos as espécies contidas nesse mesmo

gênero. Mas nem sempre a lei da divindade foi, porém, interpretada em favor da

hierocracia, e abria mesmo as portas à independência dos reinos seculares, já que no

Later Middle Ages, in Les universités à la fin du Moyen Age (Lovaina, 1978 p. 228-241);

MIETHKE, J. La monarchia papale…, p. 142.

139

plano inferior, ou seja, no das realidades políticas subalternas, estas eram plenamente

autônomas. 18

Mas, por agora estamos a tratar do pensamento de Egídio Romano, para quem a

lex divinitatis impunha a clara submissão dos governantes seculares à Igreja.

O poder secular é, para o Arcebispo de Bourges, simultaneamente um remédio

e um castigo à inclinação dos homens para o mal, para o pecado; por isso, seus

detentores freqüentemente querem dominar o próximo e se apoderar de seus bens.

Visto, pois, que o poder secular foi instituído por causa do pecado, necessita igualmente ser purificado, através da ação sacerdotal, porque na sociedade cristã os

legítimos direitos de governar e de possuir bens materiais provêm da graça divina,

através dos Sacramentos, especialmente por intermédio do Batismo, de maneira que em

seu interior só os renati são competentes para tanto. A generatio carnalis é insuficiente

para alguém ter o direito de herdar o poder ou algum bem de outrem, por isso também a

regeneratio baptismalis é indispensável.

O Papa, chefe supremo da Ecclesia-Christianitas, é o Vigário de Cristo e, como

tal, o detentor da plenitudo potestatis. Daí, por exemplo, ser da sua competência

explicitar a doutrina cristã, dirigir o corpo clerical e proporcionar aos fiéis os meios

necessários à consecução da vida eterna, os quais não fazem obviamente parte da missão

dos reis e demais potentados seculares, cujas responsabilidades, no interior daquela

sociedade, são menos relevantes em vista de seu telos derradeiro. É devido a tal

superioridade que o Papa é também a causa e o fundamento próximo do poder temporal,

cabendo-lhe o direito de controlar seus detentores, já que ter a autoridade em grau

máximo significa possuir e exercer um dominium sobre todas as pessoas.

Além disso, uma vez que a autoridade pontifícia origina-se diretamente de Jesus

Cristo, seu grau de espiritualização, aqui na terra, é o mais elevado possível. No entanto, o poder régio tem uma origem divina apenas mediata, porque é semi-espiritualizado pelo

fato de se originar do poder sacerdotal, quando os monarcas recebem o gládio temporal,

com o qual assumem o govemo das comunidades sócio-políticas somente na esfera

secular, propiciando aos seus súditos as condições para obterem o bem-estar material e

espiritual e servir aos interesses da Igreja.

Mas os monarcas podem usar mal esse poder. Por isso, é imperativo que sejam

orientados pela Santa Sé e, no caso de o exercerem de modo injusto, poderão até mesmo

vir a ser punidos pelo Papa, já que este detém as duas espadas.19

No entanto, como existe, no seio da Ecclesia-Christianitas, uma distribuição de

funções específicas, o Papa não deve se imiscuir na esfera temporal. Mas Egídio

Romano, baseando-se nas teses de Inocêncio III, de Inocêncio IV e do Ostiense, faculta

ao Sumo Pontífice interferir na mesma nas seguintes circunstâncias: 1) quando não

existir um juiz secular para examinar a causa, pode-se, então, recorrer à Sé Apostólica;

2) quando o mesmo for omisso no cumprimento do seu encargo ou atuar com

18 Cfr. BARBOSA, João Morais. Fondamenti teorici della ierocrazia nel pensiero politico del

Tardo Medioevo. In: SOUZA, José Antônio de (org.). Temas de filosofia medieval. Santos: Ed.

Universitária Leopoldianum, 1990, p. 257-277. 19 Cfr. Documento 43.

140

parcialidade; 3) nas questões em que habitualmente se recorre ao tribunal eclesiástico; 4)

durante a vacância do trono imperial, considerando-se que o Sacro Império foi instituído

pelo Papado; 5) naqueles territórios sobre os quais o Papa também exerce o poder

secular; 6) nas questões propter connexitatem ad causam ecclesiasticam; tais são os

casos do dízimo, da herança e do dote, relacionados estes últimos com o sacramento do

Matrimônio; 7) nas situações rationepeccati, pois o Sumo Pontífice, responsável pelo

bem espiritual dos fiéis, exerce sobre os mesmos um dominium immediatum et

executorium genera liter et casualiter; 8) na hipótese de eclodir uma guerra entre os membros da Cristandade, tendo em vista que a paz, alicerçada nas virtudes da caridade e

da justiça, é indispensável, não só para se viver hem neste mundo, mas também para se

poder alcançar a vida eterna; 9) quando os príncipes cristãos romperem um tratado de paz, pois o mesmo foi selado por um juramento, que é uma ação espiritual; 10) quando

surgirem questões ambíguas ou difíceis ou extra leges.

4.2

TIAGO DE VITERBO

É o outro renomado teórico da hierocracia daquele momento. Autor do tratado

De regime christiano20

pertencia à congregação dos Eremitas de Santo Agostinho.

Estudou na Universidade de Paris, onde, em 1293, obteve o grau de magister theologiae,

exercendo depois aí o magistério. Através do amigo e confrade Egídio Romano,

estabeleceu relações cordiais com a Cúria Romana e com Bonifácio VIII.

Em outubro de 1302 foi nomeado arcebispo de Benevento e, pouco depois, em

dezembro, foi transferido para o arcebispado de Nápoles, onde faleceu em 1308.

O De regimine christiano caracteriza-se pelo aristotelismo agostinizado.21

Está

dividido em duas partes. Na primeira, Tiago descreveu a Igreja e, mediante uma análise

precisa e meticulosa, concebeu-a como um regnum. Na segunda, tratou dos vários

poderes de Cristo e daqueles possuídos por seu vigário na terra, o Papa.

Iremos agora analisar sucintamente esta obra, a partir de sua primeira parte. A

Igreja é a communitas omnium fidelium e, simultaneamente, um regnum. Nesta

circunstância é, pois, uma societas perfecta. O autor justifica tal assertiva baseando-se,

de um lado, na definição de Igreja proposta por Santo Isidoro de Sevilha, congregatio vel

adunatio multorum fidelium e, de outro, na classificação relativa às várias espécies de

comunidade apresentadas por Santo Agostinho no De civitate Dei, Livro XIX: domus,

civitas, regnum. Baseia-se, ainda, em Aristóteles, com o objetivo de explicar a origem dessas três comunidades. O ponto de partida é a natureza social do homem; este, se

20 AEQUILIÈRE, H. X. (ed.). Le plus ancient traité de l‘Église; Jacques de Viterbe; De regime

christiano. Paris 1926 21 Não dispomos em língua portuguesa de estudo algum sobre Tiago de Viterbo e seu tratado eclesiológico-político, salvo o trabalho de Nicolas Boer, intitulado Relação entre a Igreja e o

Estado no fim do século XIII e início do século XV, tese de doutoramento defendida em 1939 e

reapresentada ao Departamento de Filosofia da Educação da FEUSP em 1972, com o propósito de

revalidar aquele título obtido, o qual foi utilizado por nós neste livro.

141

vivesse isolado, não conseguiria obter e dispor das coisas de que necessita para viver

bem e para se realizar materialmente. O regnum suplanta a domus e a civitas, porque as

subsume no seu interior e porque possui uma meta mais relevante, o que justifica a

subordinação destas àquele.22

A Escritura e os autores cristãos compararam a Igreja a tais comunidades. No

entanto, é mais adequado considerá-la como regnum, por vários motivos: 1) congrega

uma grande variedade de povos espalhados pelo mundo; 2) apresenta-lhes e

proporciona-lhes os caminhos e os meios necessários para o gozo de uma vida espiritual suficiente, a beatitude eterna, o bem comum por excelência; 3) engloba no seu interior

comunidades menores, hierarquizadas entre si: paróquias, dioceses e províncias

eclesiásticas, cada uma delas tendo seu chefe próprio.23

A literatura cristã denominou a Igreja regnum Christi, porque ele a instituiu e a

governa através do seu vigário na terra, o Sumo Pontífice. Nesse reino, no exílio

tenrestre, um grande número de batizados vive da fé, esperança e caridade, constituindo

a Igreja Militante. Outros, juntamente com os santos do Antigo Testamento, fruem da

visão beatífica, constituindo a Igreja Triunfante. Portanto, a natureza da Igreja assenta na

gratia (é espiritual) e na natura (é terrena). Mas a Igreja é sociedade perfeita devido

ainda a outras dez características: 1) ela é um reino legítimo e justo, porque foi

concebida por Deus e se apóia na autoridade do seu fundador; 2) é um reino antigo e

perpétuo, visto o primeiro justo ter sido redimido pelo sangue de Cristo e o seu reino não

terá fim; 3) ela é um reino ordenado, porque tem uma estrutura hierarquizada; 4) é um

reino homogêneo, pois todos os seus membros professam a mesma fé; 5) ela é um reino

bom, porque dispõe de todos os meios para atingir o fim segundo o qual foi instituída; 6-

7) é um reino extenso e rico, pois, de um lado, abarca a terra inteira, e de outro, possui

muitos bens materiais; 8) é um reino forte, pois o Cristo prometeu guardá-la para sempre das tramas do Maligno; 9) é um reino pacífico, porque a paz de Cristo é perene; 10) é um

reino estável, porque a sua firmeza repousa na fé em Cristo.24

Tiago de Viterbo, inspirando-se no Símbolo dos Apóstolos, sintetizou as

características acima enumeradas em apenas quatro. A Igreja é una, porque todos os seus

membros, apesar da diversidade de ministérios, professam a mesma doutrina, celebram o

mesmo culto, obedecem aos mesmos preceitos estabelecidos pelo Papa.

A Igreja é santa, porque distribui por todos os que a procuram as graças

deixadas pelo seu Fundador, a fim de que possam atingir a felicidade eterna. É católica,

porque foi instituída pelo Senhor do universo e porque se estende da terra ao céu. É

apostólica porque Jesus incumbiu os Apóstolos de pregarem o Evangelho e de a

organizarem.

―A Segunda parte do De regimine christiano começa por analisar os poderes de

Jesus. Ele é o Deus e Homem verdadeiro, é rei e, como tal, senhor de tudo e de todos,

porque o Pai lhe concedeu todos os poderes no céu e na terra. Portanto, Cristo detém e

22 Utilizaremos aqui, a edição de H. X. Arquillière do D.R.C., a propósito deste assunto; cfr. I, 1, p.

95. 23 D.R.C., I, 1, p. 101-105. 24 D.R.C., I, 1, p. 106-117.

142

exerce um poder régio, considerando-se ainda que governa a Igreja, descende do rei

David e julga o comportamento dos homens. É também o Sumo Sacerdote por

antonomásia.

―Cristo transmitiu aos homens os seus poderes: o régio, o sacerdotal e o de

fazer milagres. Todos os homens, em certa medida, possuem e exercem o poder régio,

enquanto, guiados pelas luzes da fé e da razão, devem autogovernar-se e são capazes de

discernir as suas boas e más ações.

―O poder régio de Cristo foi concedido em grau maior a determinadas pessoas, isto é, os reis, porque muitos homens sem escrúpulos, não querendo autogovernar-se

abusaram de seus direitos em prejuízo dos semelhantes. Por isso, os seres humanos

decidiram estabelecer governantes para si próprios, com vista a regular o convívio social.

―Cristo, porém, concedeu aos Apóstolos e em especial a Pedro, e na pessoa dele

aos seus sucessores, seus poderes régio e sacerdotal, a fim de bem exercerem as missões

que Ele lhes confiou: anunciar a Boa Nova, distribuir os Sacramentos entre os fiéis e

governar o seu reino na terra. Por esse motivo, o Sumo Pontífice, neste mundo, possui e

detém a plenitude do poder régio e sacerdotal de Cristo sobre toda a Igreja, enquanto os

bispos os exercem apenas em suas dioceses. Daí também ser insutentável a teoria

segundo a qual, o Papa tenha recebido o poder temporal dos legítimos soberanos

seculares ou de Constantino.‖25

Apesar de o sacerdócio e a realeza terem origem em Deus, não se confundem,

por vários motivos:

a) O sacerdócio já existia na época em que a humanidade era regida somente

pela lei natural, visto a mesma impor a todos adorar a Deus e oferecer-lhe sacrifícios.

Mais tarde, Javé instituiu o sacerdócio levítico na pessoa de Aarão. Finalmente, Jesus

Cristo veio ao mundo estabelecer o sacerdócio definitivo. b) A missão do sacerdócio cristão é da natureza espiritual, pois os ministros

eclesiásticos são os mediadores entre o céu e a terra, enquanto oram pelo povo e pelos

governantes, oferecem sacrifícios a Deus, pregam o Evangelho e ministram os

sacramentos.

c) A realeza foi instituída pelos homens através da lei humana.

d) O rei, detentor da potestas regia temporalis, governa, julga e corrige o povo,

castigando os maus e recompensando os bons. Legisla e faz com que as suas leis sejam

cumpridas em benefício da comunidade. Estes encargos são claramente seculares.26

No entanto, a diferença fundamental entre o sacerdócio e a realeza alicerça-se

no fato de o primeiro se originar na gratia e a segunda na natura. Tal não significa um

antagonismo entre ambos, porque, na sociedade cristã, os detentores da potestas regia

temporalis ou naturalis têm o dever ético de fazer dos seus súditos pessoas virtuosas,

disciplinando-lhes o comportamento e orientando-as para a bem-aventurança eterna.

Em seguida, Tiago de Viterbo discorre sobre a origem imediata do poder régio.

Discute primeiramente acerca das teses vigentes na época a respeito. De um lado,

estavam os juristas, que afirmavam ser Deus a causa imediata do poder temporal. Do

25 D.R.C., II, 3, p. 180 26 D.R.C., II, 3, p. 172-189.

143

outro, os defensores da preeminência da autoridade espiritual, sustentando ser a mesma a

causa próxima do poder secular. Tiago opta pela via média. O poder régio de um

monarca cristão ―materialiter et inchoative habet esse a naturali hominum inclinatione‖

para viver em sociedade, radicando assim no povo, que o estabelece de acordo com a lei

humana. Entretanto, ―perfective autem et formaliter habet esse a potestate spirituali‖,

que o institui no momento da unção (gratia) e o aperfeiçoa, contribuindo para que bem

desempenhe o seu cargo e para que igualmente cumpra com os seus deveres, entre os

quais, o mais importante é o de conduzir os súditos para a bem-aventurança eterna. Ora, como, do acordo com S. Tomás de Aquino, a graça não destrói a natureza, antes a

aperfeiçoa, então, a ―spiritualis potestas potest dici quodam modo forma temporali, eo

modo quo lux dicitur forma coloris‖. Assim, o poder régio temporal não é anulado, mas

espiritualizado, porque ―nulla potestas est omnino vera sine fide. Non quod sit nulla et

omnino illegitima, sed quia non est vera et perfecta‖.27

A razão desta tese é evidente. De direito, o Papa detém a plenitude de poder na

sociedade cristã e a exerce na condição do vigário de Cristo e herdeiro dos poderes

petrinos, para mais facilmente conduzir os homens para o seu fim último, tarefa essa

mais sublime do que o encargo dos soberanos. Daí que estes devam obedecer ao Papa.28

Embora o Papa seja superior ―dignitate et causalitate‖ a todo potentado

secular, e nele preexista a ―plenitudo pontificalis et regiae potestatis‖ e detenha ―tota

potentia gubernativa, quae a Christo communicata est, sacerdotalis et regalis,

spiritualis et temporalis‖,29

ele não deve normalmente se imiscuir nas questões

seculares. Todavia, pode orientar os reis e julgá-los de acordo com a lei divina, se não

forem bons. E, quanto a este particular, o nosso autor retoma as teses do Egídio

Romano.30

Finalmente, Tiago de Viterbo descreve o príncipe secular como um minister Ecclesiae, que deve se comportar de modo exemplar perante os súditos.

Em suma, Egídio Romano como Tiago de Viterbo, não obstante considerarem

muito extremada a posição dos outros hierocratas, ―insist with impeccable logic, that the

pope must play a part in the creation of every christian ruler, because rulership in a

Christian society is intimately connected with the values of the Christian faith. In a

Christian society, they argue, a temporal leadership completely independent on the

papacy in either its origins or the exercise of its powers [...].31

Durante os dias tensos do primeiro semestre de 1302 que antecederam e

sucederam às reuniões dos Estados Gerais, em abril e junho, foi divulgada uma outra

obra anônima em favor da política de Filipe IV, intitulada Quaestio in utramque

partem.32

27 D.R.C., II, 7, p. 231-233 28 Cfr. Documento 44. In: D.R.C., II, 8, p. 233-234 29 D.R.C., II, 9, p. 268-272 30 D.R.C., II, 8, p. 250-251 31 McCREADY, W. Papalists and antipapalists: aspects of the Church/State controversy in the

Latter Middle Age. Viator, 6 (1972), p. 272. 32 Cfr. Documento 45.

144

Examinando primeiramente esse texto, sob o aspecto formal, nota-se que se

trata duma quaestio elaborada, nos moldes acadêmicos de então, por um professor anti-

hierocrata da Faculdade de Artes ou da Faculdade de Teologia, ou, ainda, quiçá,

pertencente a uma congregação religiosa, que teria tido a intenção de apresentá-la aos

seus alunos para ser discutida na sala de aula, certamente entre abril/novembro de 1302.

Temendo provavelmente que a veiculação pública de suas idéias pudesse lhe causar

muitos dissabores, em vista do desenrolar dos acontecimentos, optou por não propô-la

aos seus estudantes, guardando consigo o texto que elaborou. Se isso não tivesse ocorrido, da maneira como pensamos e propomos, hoje seguramente saberíamos quem a

escreveu e quando e onde tal texto foi discutido. Mas esses dados são irrelevantes.

Uma outra possível hipótese que apresentamos, até que, porventura, outros

manuscritos aparentados com este opúsculo venham a ser descobertos, é a de que o

mesmo, à parte o fato de que seu autor seja um clérigo, possa ter sido efetivamente

elaborado no palácio real, à semelhança do que se passou com a falsa bula Deum time,

com sua resposta, da parte do Rei, intitulada Scire te vo1umus e com a Disputatio inter

clericum et militem.

Em segundo lugar, examinando o conteúdo da Quaestio, à primeira vista, ela

aparenta ser apenas mais um texto, como tantos outros produzidos especialmente durante

a primeira metade do século XIV, acerca da conflitante relação entre os poderes

temporal e espiritual. No entanto, uma leitura mais atenta irá mostrar seus aspectos

inovadores.

Conquanto o autor, para elaborar seu discurso, se apóie nas fontes

tradicionalmente usadas pelos hierocratas e anti-hierocratas desse período,

nomeadamente, a Sagrada Escritura, ao apresentar argumentos de razão teológica, o

Decretum Gratiani e os Livros de Decretais, e nas suas Glosas ordinárias, no Apparatus de Inocêncio IV, citados com muita freqüência, é interessante notar que ele também

lançou mão do Corpus iuris civilis e de sua Glosa ordinaria, demonstrando, portanto,

que preferiu igualmente trabalhar com fontes jurídicas. Serviu-se também de algumas

passagens de certos livros do Estagirita e fez, ainda, uma exacerbada apologia da

monarquia francesa e da soberania do Rei em seu território. Estas, pois, nos parecem, são

as principais contribuições e os aspectos inovadores da Quaestio33

que irão exercer uma

influência nas obras políticas de João Quidort e de Dante Alighieri, ao tratarem das

relações entre os poderes.

Em suma, a Quaestio tem três partes. A 1ª constituída por vinte e cinco

argumentos, visa a demonstrar que os dois poderes são distintos e que o Papa não exerce

um supremo domínio na esfera temporal. A 2ª parte, sob a forma de cinco artigos, uma

vez mais, trata dos preditos assuntos, com o fito de tomá-los plenamente mais

compreensíveis. Aqui, porém, o autor anônimo externa seus pontos de vista pessoais. A

3ª, conforme esse tipo de escrito, consiste em respostas, vinte no total, às objeções às

duas teses propostas e na discussão e refutação das principais assertivas hierocráticas, já

33 Iremos nos servir da ed. Crítica de Gustavo Vinay, publicada sob o título ―Egidio Romano e la

cosidetta Quaestio in Utranque Partem‖, BISI 53 (1939) p. 43-92, texto p. 93-136. Cfr. também J.

WATT ―The Quaestio in utramque partem reconsidered‖, Studia Gratiana 13 (1967), p. 413-453

145

esboçadas nas partes anteriores, contrárias principalmente ao dualismo proposto pelo

autor.

De novo, propositadamente, não iremos apresentar uma análise detalhada deste

texto, pela mesma razão que alegamos antes, ao nos referirmos à Disputatio inter

clericum et militem.

4.3

JOÃO QUIDORT

Não podemos passar em claro a contribuição de João Quidort, ou de Paris, à

polêmica em apreço. As suas idéias não pendem para o lado da hierocracia, nem para o

do regalismo teocrático.

Nascido em 1270 em Paris, graduou-se em Artes vinte anos depois na

Universidade local. Ingressou em seguida na Faculdade de Teologia. Admirador das

teses de Tomás de Aquino, esteve envolvido nas disputas doutrinárias que então

agitavam a Academia, defendendo as posições tomistas. Durante esse tempo, escreveu o

De principio individuationis, o Tractatus de formis e o Commentarium in libros

sententiarum. No ano de 1300, compôs um opúsculo de natureza teológica, intitulado De

Antichristo, no qual rebateu as idéias apocalípticas e reformistas de Arnaldo de

Villanova, médico de Bonifácio VIII, bem como as que, também nesse sentido,

circulavam entre os Espirituais Franciscanos da Provença e da Toscana/Marca de

Ancona, e ainda os grupos heréticos, em particular o chefiado por Dolcino de Novara.

Por volta de 1303, João de Paris, já Irmão Pregador, subscreveu com outros

Dominicanos que residiam no convento de Saint Jacques, em Paris, um documento no

qual se propunha a convocação de um Concílio Geral para proceder ao julgamento do Papa.

No ano seguinte, na condição de responsável pela cátedra de teologia

pertencente aos Dominicanos na Universidade de Paris, divulgou o seu principal tratado

teológico intitulado Determinatio de modo existendi corporis Christi in sacramento

altaris. A obra foi considerada herética em muitos pontos, o que levou à constituição de

uma comissão de prelados encarregada de a examinar mais profundamente. Da comissão

faziam parte o arcebispo Egídio Romano e os bispos Guilherme e Bertrando, os quais,

após o referido exame, reiteraram a opinião dos professores de teologia da Universidade,

sugerindo que Quidort fosse afastado da cátedra, o que veio, de fato, a suceder. O nosso

autor recorreu então ao Papa Bento XI, o qual, no entanto, veio a falecer em 1304, sem

ter podido examinar o recurso de seu confrade. João Quidort solicitou audiência ao novo

Papa, Clemente V (1305- 1314), ex-arcebispo de Bordéus, mas veio a morrer quando

estava prestes a ser recebido.

João de Paris, porém, terá incorrido no mencionado castigo especialmente

devido a sua obra filosófico-política intitulada Sobre o poder, régio e papal,34

escrita

34 A primeira edição desta obra devemo-la a Jean Leclerc (Paris: Vrin, 1942). Aqui, utilizaremos a

edição traduzida para o português, acompanhada de uma introdução, da autoria de Luis Alberto De

Boni (Vozes: Petróplis, 1989).

146

provavelmente durante a primeira metade de 1302, a qual não podia agradar aos

hierocratas, incluindo o próprio Egídio Romano, que fazia parte da comissão acima

referida.

Ao compor essa obra, João Quidort fundamentou-se na Ética e na Política de

Aristóteles, na Sagrada Escritura, nos Padres da Igreja, em S. Tomás de Aquino,35

nos

Direitos Canônico e Romano, demonstrando, ainda, conhecer as obras de Egídio

Romano, Tiago de Viterbo e Henrique de Cremona, e certamente ainda a Quaestio in

utramque partem. A obra compreende uma introdução e mais três partes. A primeira trata da

origem e da natureza do poder régio (capítulos I-V); a segunda, da origem, da natureza e

do campo de ação específico do poder papal (capítulos VI-XX); e a terceira examina

outros temas, relacionados com os primeiros, como a Doação de Constantino e a

renúncia e deposição do Sumo Pontífice (capítulos XXI-XXVI).

Na introdução, João Quidort aponta dois erros graves cometidos por quem

normalmente analisa os poderes pontifício e eclesiástico. Um deles consiste em negar

que o Papa e a Igreja possuem qualquer poder jurisdicional ou de propriedade sobre bens

materials. O outro reside na afirmação de que a Igreja é um reino (uma clara alusão a

Tiago de Viterbo) e que o Papa, vigário de Cristo, é o detentor da plenitudo potestatis,

graças à qual exerce um controle absoluto sobre todas as pessoas e bens materiais.36

A proposta de João de Paris consiste em refutar essas duas posições antitéticas,

a fim de que possam ser restabelecidas a paz e a concórdia entre Filipe IV e Bonifácio

VIII.

Os homens estão inclinados para a vida em sociedade, de acordo com o que a

experiência e a natureza humana demonstram. Aqui, o nosso autor é claramente devedor

de S. Tomás de Aquino. No entanto, no início da história, tal não sucedeu. Apenas alguns mais sábios convenceram os outros homens das vantagens da vida social,

pressuposta, como é evidente, a chefia de alguém sobre os demais.37

Tais pessoas agiram assim, não apenas com o objetivo de alcançar o bem

comum mais facilmente, mas também para garantir uma distribuição eqüitativa dos bens

materiais e a vida suficiente (conceito de origem aristotélica). Também assim se

racionalizavam os procedimentos e medidas quanto à produção e à aquisição do

necessário à sobrevivência, à garantia do direito de propriedade privada, à defesa do

território, em face da ameaça dos vizinhos hostis.

Portanto, qualquer reino pode organizar-se como tal e igualmente atingir a sua

finalidade natural, a saber, proporcionar aos súditos a possibilidade de ―vivere secundum

virtutem moralem acquisitam‖, sem depender do beneplácito da Igreja e das graças

sobrenaturais. A sua legitimidade está desde logo assegurada, pois o reino deriva da

35 Cfr. L. A. De Boni, João Quidort e seu ―Tratado De regia potestate et papali‖, in Filosofia

medieval: estudos e textos (Leopoldianum, 38 (1986), p.81): Em exigese bíblica Quidort é um seguidor de Tomás de Aquino e da escola que os Dominicanos instalaram no convento de Saint

Jacques. O realismo de outra provieniência. 36 Cfr. Documento 46. 37 Cfr. Documento 47.

147

natureza e da razão humanas e depende exclusivamente da vontade dos indivíduos,

regulada em exclusivo pela moral natural.

Nesta nova concepção, alicerçada no pensamento político de Aristóteles e no

naturalismo implícito no mesmo, não entravam em jogo elementos como a graça divina,

ou expressões como ―rei pela graça de Deus‖. Noutras palavras, a hierocracia já não era

contrariada pela teocracia régia, o que lhe causava sérios embaraços. João Quidort

movia-se num terreno cujos princípios teóricos de base não eram os mesmos da

hierocracia, ao invés do que sucedia com as doutrinas enquadradas no âmbito da teocracia régia.

O reino, comunidade auto-suficiente, e o poder secular, considerados

abstratamente, são anteriores ao sacerdócio cristão e não derivam dele, nem, muito

menos, por ele são estabelecidos. Justificam-se plenamente em razão dos benefícios

múltiplos que proporcionam aos cidadãos, além daqueles outros oferecidos

gratuitamente pela Igreja. Noutras palavras, os reinos têm a sua razão de ser nas próprias

estruturas terrenas materiais, o que desde logo afasta todo e qualquer tipo de pretensão

hierocrática.

Daí, João Quidort afirmar que a tese segundo a qual os seres superiores regem

os inferiores, fundamentada no princípio de que os seres espirituais dirigem sempre os

materiais, é incoerente, pois uma verdade metafísica, segundo ele, não deve

necessariamente ser aplicada, com a mesma certeza, no âmbito da física ou da lógica. A

comunidade política e o poder secular têm origem na própria natureza social do homem.

Ambos são independentes do poder pontifício, bem como da nobreza e do clero.

De qualquer modo, tal autonomia do poder régio não lhe assegura, como

conseqüência, um caráter absoluto e ilimitado, pois foi o povo quem delegou parte dos

seus direitos ao monarca. Portanto, se este passar a agir contra o povo e não se corrigir desse abuso, o remédio inicial será a ameaça de excomunhão da parte da Igreja e, se

mesmo assim o mal não for suprimido, os barões e outros homens do reino poderão

destituir o rei.

Mas os seres humanos têm um fim transcendente, o que requer uma

participação da Igreja no processo político-social. Cristo, Deus é homem verdadeiro, rei

espiritual, é o fundador e a cabeça da Igreja. Foi ele quem, movido por um amor infinito,

remediou os efeitos do pecado original mediante a sua paixão e morte. Foi ele quem

fundou a Igreja escolheu os Apóstolos e instituiu os Sacramentos. Portanto, a causa

eficiente do poder espiritual é o próprio Cristo e a sua causa final é a obtenção da

salvação eterna. O Papa, sucessor de Pedro, e os bispos, sucessores dos apóstolos, detêm

o poder espiritual na condição de ministri de Cristo.38

Entretanto, inúmeras passagens do Novo Testamento demonstram que Cristo

não exerceu nenhum poder e jurisdição terrenos e muito menos os confiou a Pedro e na

pessoa dele aos seus sucessores. Poi isso, o âmbito de atuação do poder espiritual,

inclusive do próprio Papa, restringe-se à esfera espiritual, no concernente à pregação da

palavra, à ministração dos Sacramentos, à consagração eucarística e ainda à organização

38 Cfr. Documento 48.

148

e à administração eclesiástica, como o provimento dos cargos eclesiásticos, o julgamento

e punição dos clérigos transgressores dos cânones.

Os ministros da Igreja podem ainda punir os fiéis que desobedecerem aos

Mandamentos e às leis de Cristo e da Igreja, impondo-lhes castigos igualmente de

natureza espiritual, de acordo com a espécie e natureza do poder que detêm e exercem.

Tais punições são a admoestação, a advertência, a exclusão dos sacramentos, o interdito

e, a mais grave de todas, a excomunhão. Mas, na hipótese de o pecador não se corrigir,

os ministros eclesiásticos não poderão infligir-lhes castigos pecuniários ou corporais. No entanto, este tipo de castigo ser-lhes-á aplicado per accidens, se os cristãos arrependidos

quiserem espontaneamente reparar os seus débitos para com Deus ou o próximo,

dispondo-se a fazer penitência, sob a forma de jejum ou outra mortificação qualquer, ou

ainda oferecer um donativo material à Igreja.

Do mesmo modo, no caso de um príncipe aderir a uma heresia, o Papa, depois

de o admoestar e advertir relativamente à sua má conduta pessoal e ao péssimo exemplo

dado aos súditos, poderá até mesmo excomungá-lo, pois a heresia é um pecado e, como

tal, enquadra-se no âmbito jurisdicional da autoridade espiritual. Em seguida, deverá o

Papa notificar do fato os súditos do reino, os quais poderão então depô-lo.

Mas João Quidort, consciente das transformações que naqueles dias sepassavam

à sua volta, pondera que, no momento em que os príncipes e os povos não se

intimidarem com os castigos espirituais, o peso da influência eclesial na esfera secular se

tornará, nesse aspecto, irrelevante.

É oportuno notarmos atentamente a grande mudança na mundividência do

pensamento político do início da Idade Média Tardia, verificada na obra de João de

Paris, no que respeita às implicações entre a excomunhão e deposição dos potentados

seculares. Como tivemos ocasião de ver, os hierocratas identificavam facilmente a

Ecclesia, com a Christianitas e concebiam o Imperium como uma criatura espiritual da

Igreja e o Imperador como o seu braço armado. Neste caso, a pena de excomunhão, se

aplicada ao Imperador, cortava ipso facto o vínculo entre o mesmo e a fonte do seu

poder e, portanto, implicava a sua imediata deposição. Esses autores tentaram aplicar

essa teoria aos demais governantes seculares.

Para o autor de Sobre o poder régio e papal, o castigo supremo de natureza

espiritual, a excomunhão, quando imposto aos príncipes seculares em geral, só acarretará

na sua deposição, caso esta seja a vontade do povo, dado que o poder temporal radica na

vontade dos integrantes da comunidade política e se trata de uma instituição puramente

humana. O corte com a hierocracia estava, pois, materializado.

Demonstradas as validades daquelas premissas, as conclusões de João Quidort

acerca do tema em exame são necessariamente lógicas. Não compete à autoridade

pontifícia julgar e destituir os detentores do poder secular, se estes porventura não forem

bons, porque o poder temporal não provém do Papa e tampouco é por ele legitimado.

Igualmente ainda, o Romano Pontífice não é a causa dos poderes sacramental e

jurisdicional dos bispos. É Cristo quem lhes confere tais poderes, através da sagração. Também aqui, no plano da eclesiologia, João Quidort se distancia, por exemplo, da

149

concepção de Tiago de Viterbo, para quem o Papa detinha o ápice da potestas ordinis e

da potestas jurisdictionis ou potestas regia spiritualis.

Ao analisar o poder papal no seu âmbito específico de ação, Quidort também

apresentou uma concepção original. Apesar de o poder pontifício se originar diretamente

em Jesus Cristo e ser o único da sua espécie no interior do corpo clerical, requer

também, para a sua efetivação, a cooperação humana dos cardeais, representantes de

todos os clérigos na eleiçao papal. Por isso mesmo, quando o Sumo Pontífice peca

gravemente, contrariando os artigos da fé e a moral cristã, ou praticando a simonia, compete ao Sacro Colégio adverti-lo e, no caso de ele não se corrigir, recorrer à

convocação de um Concílio Geral para o julgar e depor, ou até mesmo apelar para o

bracchium saeculare.39

O Concílio Geral, em algumas circunstâncias, está acima do Papa e limita o seu

poder, tendo competência para o depor, visto representar todos os cristãos, clérigos e

leigos. A deposição pelo Concílio Geral, se o Romano Pontífice não renunciar

espontaneamente, poderá ocorrer, além de nos casos já referidos, por outros dois

motivos: 1º) defectus personae, nas hipóteses de irregularidade canônica na eleição e

falta de idoneidade do eleito; 2º) abusu potestatis, quando o Papa administra

fraudulentamente o patrimônio eclesiástico ou quando viola direitos canonicamente

assegurados, pertencentes aos demais prelados, aos clérigos e às demais corporações

eclesiásticas. Entretanto, as citadas medidas extremas só deverão ser tomadas em caso de

gravidade sem precedentes e para assegurar o bem-estar espiritual dos fiéis.

O mérito da obra de João de Paris residiu em ter retomado a doutrina relativa à

separação entre os poderes espiritual e secular, dando-lhe um fundamento racional, e ter

ressaltado seus âmbitos próprios de atuação, sem haver, ao menos teoricamente, a

possibilidade de uma intromissão recíproca na esfera de cada um deles. Por isso mesmo, a teocracia régia não teve bom acolhimento em seu tratado, uma vez que a mesma, ainda

que seus defensores não o desejassem, bebia nas mesmas fontes teóricas da hierocracia.

Voltemos agora aos últimos meses de 1302. ―La mitad del episcopado francés,

ante la humillación militar de su rey [perante os flamengos, na batalha de Courtray, em

11 de junho], tuvo el suficiente valor para obedecer al Pontífice: cuatro arzobispos (los

de Tours, Bourges, Auch y Burdeos), y 35 obispos se presentaran en Roma‖.40

Todos os problemas que afetavam as relações entre o Papado e a França foram

então amplamente discutidos. Os eclesiásticos franceses recomendaram a Bonifácio VIII

que negociasse primeiro e, depois, agisse com severidade, no caso de o Rei não ceder.

De qualquer modo, e apesar de o Sumo Pontífice ter acatado o conselho, no dia 18 de

novembro, durante um consistório e sem a presença dos padres sinodais, ele leu e

sancionou a bula Unam sanctam.41

39 Cfr. Documento 49. 40 LLORCA et. al. Historia de La Iglesia Catolica. Madrid BAC, 1963, p. 606. v. 2 41 Cfr. Documento 50.

150

Este texto pontifício assume uma natureza dogmática42

e não aparentemente

polêmica, embora os verdadeiros destinatários, nele não mencionados expressamente,

sejam Filipe IV e os seus partidários. A concepção que preside a Bula é a de uma Igreja

una e única, constituída como um corpo dotado apenas de uma só cabeça, Jesus Cristo,

que delegou a Pedro, e na pessoa dele aos seus sucessores, o seu poder universal.

Portanto, os reinos e impérios estão subsumidos nesse mesmo Corpo Místico de Cristo

que é a Igreja.

Fundamentando-se em textos bíblicos já nossos conhecidos, Bonifácio VIII serviu-se também da lex divinitatis do Pseudo Dionísio Aeropagita e do tratamento dado

à mesma por Egídio Romano.

Para finalizar, só nos cabe ressaltar aqui a real oposição, naquele tempo

conturbado de luta entre os dois poderes, que havia entre uma concepção segundo a qual

os reinos eram entidades políticas, com uma origem na natureza social do homem e na

vontade deliberativa dos povos, e outra teoria, de acordo com a qual a Igreja era a única

realidade universal, subsumindo na sua plenitude de poder todos os poderes inferiores, A

oposição já não se verificava mais entre a hierocracia e a teocracia régia, mas entre a

hierocracia e as teorias sustentadoras da autonomia das monarquias nacionais

emergentes. Digamos que, neste terreno de combate, a hierocracia tinha os seus dias

contados, muito embora a sua história se prolongue durante o século XIV, registrando

novamente uma pugna com os ideólogos da teocracia imperial.

Coletânea de Documentos relativos ao capítulo 4

DOCUMENTO 39

42 BOER, Nicolas. A Bula Unam sanctam de Bonifácio VIII sobre as relações entre a Igreja e o

Estado. In SOUZA, José Antônio de (org.) Pensamento medieval. São Paulo, Santos: Loyola-

Leopoldianum, 1983, p.128

151

Bula Clericis Laicos, Bonifácio VIII. In: GALLEGO BLANCO. Relaciones entre Ia Iglesia y el Estado en Ia Edad Media. Madrid: Revista de Occidente, 1973, p.

272-274.

Para a perpétua lembrança do acontecimento. O tempo mostrou-nos que os

leigos sempre foram excessivamente hostis para com o clero, e isto comprova-se de

modo evidente face ao ocorrido nos nossos dias, pois, não contentes com o que lhes diz

respeito, desejam obter o que lhes está proibido e extravasam a sua ganância. Tampouco atentam diligentemente em que se lhes proíbe igualmente exercer qualquer poder sobre o

clero, bem como sobre as pessoas eclesiásticas e os seus bens. Antes pelo contrário, os

leigos impõem pesados tributos aos prelados e às suas igrejas, e ainda ao clero secular e

regular, fazendo-os pagar impostos e taxas. Extorquem-lhes consideráveis tributos dos

seus proventos e exigem o pagamento da metade, um décimo ou um vigésimo, ou uma

outra importância qualquer, além de se empenharem de muitos modos em escravizá-los e

pô-los sob o seu domínio.

Reportamo-nos, muito triste, ao seguinte: alguns prelados de igrejas, bem como

outras pessoas eclesiásticas, receando algo que não devem temer, procurando conseguir

uma paz transitória e temendo ofender muito mais a um dignitário secular do que à

Majestade eterna, levados também pela falta de visão da realidade, permitem que tais

abusos ocorram sem a aquiescência e autorização da Sé Apostólica.

É nosso desejo pôr um fim a tais atos ilícitos. Por isso, tendo ouvido os nossos

irmãos, os cardeais, decretamos, pela autoridade apostólica, que os prelados e as pessoas

eclesiásticas, religiosas ou seculares, de qualquer estado, condição ou ordem, que aos

leigos pagarem, prometerem ou consentirem em fazê-lo, dízimos, contribuições ou

tributos, vigésimos ou centésimos do seu patrimônio pessoal ou das rendas e possessões das suas igrejas, ou ainda pagarem uma quantia, porção ou quota dos seus próprios

proventos ou bens, ou do seu valor aproximado ou real, sob a forma de ajuda,

empréstimo, subvenção, subsídio ou a modo de presente, ou ainda sob qualquer outro

pretexto, modalidade ou solicitação, sem prévia autorização desta mesma Sé Apostólica,

incorrerão na sentença de excomunhão.

Igualmente incorrerão em semelhante castigo, os imperadores, reis, príncipes,

duques, condes, barões, potentados, capitães, oficiais e demais autoridades, qualquer que

seja o seu título, de cidades, castelos e demais localidades, onde quer que estejam, e

qualquer pessoa, de qualquer lugar de origem, estado ou condição social, e aqueles que

impuserem, demandarem ou receberem tais bens, incluindo os que só atreverem a violar,

tomar ou ocupar as propriedades das igrejas ou os bens das pessoas eclesiásticas,

depositados nos edifícios sagrados, ou ainda os que tal ordenarem ou receberem tais

bens, e aqueles que souberem de tais fatos e prestarem ajuda, conselho e apoio a tal

empreendimento, oculta ou publicamente.

Igualmente colocamos sob interdito as Universidades que se opuserem a estas

determinações.

Ordenamos, outrossim, severamente, a todos os prelados e pessoas eclesiásticas acima referidas, em virtude da obediência e sob pena de destituição do cargo que

exercem, que, de ora em diante, não consintam em tais requisições sem a permissão

152

expressa da Sé Apostólica, nem paguem nada sob a alegação de promessa, de obrigação

ou de compromisso assumido ou feito antes de receberem esta constituição, preceito e

proibição. Nem os leigos receberão tais pagamentos. E, se os primeiros pagarem e os

segundos receberem algo, incorrerão automaticamente na sentença de excomunhão.

Ninguém será absolvido das penas acima referidas, exceto na hora da morte,

sem licença e autorização especial da Sé Apostólica, pois temos o firme propósito de não

pactuar com abuso tão horrendo cometido pelo poder secular, apesar dos privilégios, de

qualquer conteúdo, forma, dizeres ou modalidade, graças aos quais foram concedidos a imperadores, reis e às demais autoridades mencionadas acima, pois não queremos que

tais concessões excluam a ninguém, tendo em vista que se opõem abertamente às

proibições anteriores.

Portanto, ninguém ouse atentar e opor-se atrevidamente a esta nossa

constituição, preceito ou proibição [...]

DOCUMENTO 40

Disputatio inter Clericum et Militem. Servmo-nos da edição latina deste opúsculo publicada por Melchior Goldast, Monarchia Sancti Romani Imperii, I (Hanoviae, 1611, p. 13-18.

[...] Clérigo: em meu tempo vi a Igreja desfrutar de enorme prestígio junto de

todos os reis, príncipes e nobres, agora, ao contrário, vejo-a estar merecendo compaixão,

pois foi transformada por todos vós numa presa. Exigem tudo de nós e se não vos damos

nossos bens, tomam-nos e não nos dão absolutamente nada. Nossos direitos são espezinhados, nossas imunidades são violadas.

Soldado: Não posso facilmente acreditar nisso, pois o Rei, cujo conselho é

constituído por clérigos, não pode agir injustamente contra vós, ainda que vossos direitos

estejam sendo violados por tais pessoas.

Clérigo: Longe disso! Com certeza estamos a suportar inúmeras afrontas,

contrárias a todo direito.

Soldado: Quero saber o que entendeis por direito?

Clérigo: Admito como tal os decretos dos Padres e os Estatutos dos Pontífices

Romanos.

Soldado: O que eles determinam quanto aos bens temporais podem ser

considerados por vós como direito, mas por nós não o são. Com efeito, visto ninguém

poder estatuir algo sobre o que não possui domínio, segundo consta do Direito, assim

nem o Rei da França pode estabelecer algo a respeito do Império, como igualmente o

Imperador não pode fazer o mesmo em relação à França. Os Príncipes semelhantemente

não podem estatuir algo relativo aos vossos assuntos espirituais, assim também vós não

podeis determinar nada quanto aos bens temporais que lhes pertencem porque não

possuís direito algum sobre tais bens. Ora, como não recebestes de Deus nenhum poder no que diz respeito aos mesmos, o que estabelecestes no tocante a essa questão carece de

validade jurídica. Por isso, há algum tempo atrás ri bastante ao ouvir dizer que o Senhor

153

Bonifácio VIII promulgou um novo estatuto, no qual afirma que tem de estar e de fato

está acima de todos os reis e príncipes, de modo que pode reivindicar tranqüilamente

para si o direito de possuir qualquer bem [...].

[...] Soldado: De modo algum estou me opondo à ordem ou ao poder divino,

porque sou e quero continuar cristão. Por esse motivo, se me demonstrardes através das

Escrituras que os Papas foram estabelecidos como senhores de todos os bens temporais e

que é necessário que os Reis e Príncipes em geral estejam subordinados aos Romanos

Pontífices, não apenas na esfera espiritual mas também na temporal, aceitarei isso de bom grado.

Clérigo: Não há dificuldade alguma em comprovar tais verdades, através das

Escrituras. Com efeito, nossa fé ensina que o Apóstolo Pedro e, na pessoa dele, os Papas,

seus sucessores, foram constituídos como vigários plenipotenciários de Jesus Cristo.

Ora, um vigário plenipotenciário indiscutivelmente detém um poder idêntico ao possuído

por seu senhor, pois, se alguem é estabelecido como tal, deve usufruir de todos os

poderes possuídos pelo seu senhor, sem admitir-se exceção alguma.

Soldado: Ouvi de homens santos e doutos a opinião, segundo a qual se deve

fazer uma distinção entre dois momentos durante a vida terrena de Cristo, um da

humildade, o outro do poder. O primeiro deles se estendeu até sua Paixão. O do poder,

em seguida à sua Ressurreiçäo, quando ele próprio declarou, segundo está escrito no

último capítulo do Evangelho de Mateus [27, 18]: ―Todo poder me foi dado sobre o céu

e a terra‖.

Entretanto, Pedro foi constituído vigário de Cristo por ocasião de seu estado de

humildade [...] e, por conseguinte, delegou ao seu vigário aquele poder que exerceu

como simples mortal, não aquele outro que recebeu quando foi glorificado. E para

comprovar tal asserção aduzirei passagens da própria Escritura que vós alegastes em vossa argumentação.

Na verdade, o próprio Jesus disse a Pilatos: ―Meu reino não é deste mundo‖. [Jo

18, 36]. Ademais, Ele veio a este mundo para servir, não para ser servido. [Mt 20, 28]. E

agora, cito de propósito um testemunho bem evidente para confundir os obstinados e os

que têm cabeça dura. Assim, está escrito no Evangelho de Lucas, capítulo 12 [13, 14], o

seguinte: ―Alguém da multidão disse a Jesus: Mestre, dizei a meu irmão que reparta

comigo a herança. Ele respondeu: Homem, quem me estabeleceu juiz ou árbitro sobre

vossa partilha‖. Portanto, ouvistes claramente que Cristo declarou não ter sido

constituído juiz ou árbitro sobre os negócios temporais. Logo, no estado de humildade

Ele não possuiu nem procurou obter para si um reino temporal [...] e no cargo que

confiou a Pedro não incluiu as chaves dos reinos da terra mas as do céu. E ainda consta

do Antigo Testamento que os pontífices dos hebreus foram submissos aos seus reis e que

também foram destituídos por eles, o que não está acontecendo com os vossos.

A fim de que saibais com certeza que o Vigário de Cristo foi escolhido para

dirigir o reino espiritual e não o temporal, ouvi o não menos claro testemunho do próprio

Paulo. Ele diz o seguinte: ―Todo Sumo Sacerdote, tirado dos homens, é constituído em

favor dos homens, em suas relações com Deus, não para exercer um domínio terreno, mas para que ofereça dons e sacrifícios pelos pecados‖ [Hb 5, 1]. [...] Portanto, é

154

evidente que Cristo não governou reino temporal algum e tampouco o confiou a Pedro

[...].

[...] Clérigo: Se as doações feitas a Deus podem ser retomadas, então as

promessas serão ineficazes.

Soldado: Não se trata de retomar o que foi ofertado a Deus, mas de aplicá-las de

acordo com a intenção das pessoas que as ofereceram. De fato, o que se oferta a Deus,

por essa razão, deve ter um objetivo piedoso. Na verdade, o que é mais santo do que a

salvação do povo cristão? O que é mais agradavel ao Senhor do que barrar os inimigos, os raptores e os assassinos do povo cristão e igualmente conseguir que reine a paz entre

os súditos e fiéis vassalos? Portanto, é com tais propósitos que os bens doados à Igreja

devem ser utilizados, restituindo-se-lhes verdadeiramente a finalidade que os doadores

tiveram em mente quando os ofertaram [...].

[...] Clérigo: Ó, soldado, foram os bons imperadores que sancionaram aquelas

medidas, não os reis, e agora os demais governantes serão controlados por suas leis.

Soldado: Esta resposta é um insulto, pois, ao que tudo indica, ou ignorais a

origem do reino ou, o que denota ser mais verdadeiro, tendes inveja de sua grandeza. Por

conseguinte, se examinardes os registros de Carlos Magno e as Histórias fidedignas,

encontrareis e verificareis que o reino da França é uma parte do Império de condição mui

digna [...] usufruindo de igual importância e autoridade, com aproximadamente

quinhentos anos de existência bem distintos [...]. Por esse motivo, como sabemos que

tudo que se encontra no interior do Império deve estar subordinado ao Imperador, assim

também o que se acha em território deste reino deve estar submisso ao Rei. E como o

Imperador tem a obrigação de legislar para todo o Império, ampliando ou diminuindo o

número de suas leis, do mesmo modo, o Rei da França, se o quiser, poderá ou recusar as

leis imperiais em geral, ou alterar qualquer uma delas ou ainda prescrevê-las e aboli-las como sendo inaplicáveis ao seu reino.

Por outro lado, conforme acontece muitas vezes, quando for necessário estatuir

alguma coisa nova, se o rei, que é o primeiro no reino, não puder fazer isso, então

ninguém mais terá competência para tanto, porque acima dele não há ninguém. Portanto,

senhor clérigo, moderai vosso linguajar e não ignoreis as leis, os costumes, bem como

vossos privilégios e imunidades que vos foram concedidos pelo Rei. O poder real está

acima de tudo e, consultando seus próceres, conforme já ocorreu, ou apoiando-se na

eqüidade natural e na razão, pode ampliá-los, diminuí-los ou revogá-los.

Assim igualmente, se constatardes neste momento que algo imutável deve ser

sacrificado em vista do bem-estar do reino, aceitai e suportai isto com paciência. Aliás,

tal atitude vos é recomendada pelo Apóstolo Paulo, na Carta aos Romanos, capítulo 13

[1-7]. [...]

DOCUMENTO 41

Bonifácio VIII, Bula Ausculta fili. In: GALLEGO BLANCO, Relaciones... p. 278-280.

155

Ao nosso diletíssimo filho em Cristo, Filipe, ilustre rei da França.

Ouve, ó caríssimo filho, os preceitos de um pai e presta atenção aos

ensinamentos do mestre, que exerce a função de vigário na terra d‘Aquele que é o único

Mestre e Senhor. Coloca respeitosamente no teu coração a advertência da Santa Mãe

Igreja, e trata de agir de acordo com a mesma, fazendo o bem, para que, arrependido,

voltes reverentemente para Deus, de quem, como se sabe, te afastaste por negligência ou

em razão dos maus conselhos que recebeste, e conforma-te à sua e à nossa vontade

fielmente. [...] Tu entraste na arca do verdadeiro Noé, fora da qual ninguém pode salvar-se,

isto é, a Igreja Católica, a pomba, a imaculada, a única esposa de Cristo, cujo primado

pertence ao seu vigário, o sucessor de S. Pedro, o qual, tendo recebido as chaves do reino

dos céus, se considera igualmente como instituído por Deus juiz dos vivos e dos mortos,

e a quem compete, visto estar à frente do Sólio da Justiça, pela sua autoridade extirpar

todo o mal.

Na verdade, o Pontífice Romano é a cabeça desta esposa que veio do céu e foi

preparada por Deus como tal para seu Esposo. Ela não possui várias cabeças, como se

fosse um monstro, pois existe sem mancha, sem ruga e nada de repugnante possui.

Movido, ó filho, pela nossa consciência e pela necessidade urgente e eminente,

explicar-te-emos claramente por que razão escrevemos acima tais coisas.

Com efeito, apesar de os nossos méritos serem insuficientes, Deus constituiu-

nos sobre reis e povos, impondo-nos o jugo da servidão apostólica, para arrancar e

abater, construir e edificar em seu nome e pela sua doutrina.

Por isso, filho caríssimo, ninguém te persuada de que não tens nenhum

superior, do que não estás subordinado ao Sumo Sacerdote da hierarquia eclesiástica,

pois quem pensa deste modo é um ignorante e, ao dizer isso, pertinazmente assemelha-se a um incrédulo que não faz parte do rebanho do Bom Pastor.

Ora, o afeto que te devotamos não nos permite dissimular quanto nos perturbas,

ao oprimir os teus súditos eclesiásticos e seculares, os nobres, as comunidades e o povo,

sobre o que te advertimos com freqüência, sem que tivesses mudado de comportamento.

É notoriamente claro, e consta do direito vigente, que o Pontífice Romano

detém um poder supremo e total sobre as dignidades eclesiásticas, pessoas, benefícios,

canonicatos, prebendas vacantes na Cúria Romana ou fora dela, e que também não te

compete e tampouco pode competir-te a colação dos mesmos, nem qualquer pessoa pode

ter direito algum sobre os mesmos, graças à tua nomeação, exceto se tiver recebido,

tácita ou exprossamente, autorização da Sé Apostólica para tanto. E quem a recebe e

depois nega que tal tenha ocorrido deve ser privado desse privilégio, por causa da sua

ingratidão, do mesmo modo que merece um tratamento semelhante a pessoa que abusa

de um poder que lhe foi outorgado ou permitido. E os que te fazem pensar

diferentemente atentam contra a verdade.

Não obstante tudo isso, ultrapassaste os limites e as metas que te foram

assinalados, colocando obstáculos de modo temerário e injusto à ação da Sé Apostólica

nesse aspecto, não permitindo, mas impugnando, que se efetivem as nomeações feitas canonicamente, embora se saiba que precederam às tuas [...].

156

Tu, por meio de atitudes pessoais, obrigas a comparecer ao teu tribunal prelados

e outros clérigos, regulares e seculares, que vivern no teu reino, ainda que não se trate de

um direito ou de um bem que receberam de ti como feudo. Fazes com que sejam detidos

e submetidos a interrogatórios, embora não tenhamos atribuído aos leigos nenhum poder

sobre os clérigos e as pessoas eclesiásticas. Além disso, não permites que os mesmos

usem livremente o gládio espiritual contra os que os ofendem e os perturbam, nem que

exerçam a sua jurisdição sobre os mosteiros, os quais pretendes controlar e guardar.

Ainda, tratas tão mal a igreja do Lião e a reduziste a tal situação de penúria, que é difícil que ela consiga refazer-se economicamente, embora ela não faça parte do teu reino. Nós

estamos a par dos direitos da referida igreja, desde os tempos em que éramos cônego.

Tu, juntamente com os teus, gastas imoderadamente as rendas e os proventos

das igrejas e catedrais do teu reino. Tu e os teus as dominais abusivamente, retirando-

lhes todas as regalias. Desse modo, as igrejas, cuja guarda, desde o princípio, foi

confiada aos reis para a sua proteção, suportam agora calamitosamente o abuso das

pilhagens e estão sempre expostas a enormes perigos.

Por agora, não nos deteremos na mudança da moeda que fizeste e a respeito de

outras reclamações que recebemos de toda a parte.

Mas, para não nos tornarmos culpados perante Deus, que nos pedirá contas da

tua alma, querendo zelar pela tua salvação e preservar a imagem de um reino que nos é

querido, após termos conscientemente deliberado a tal respeito com os nossos irmãos, os

Cardeais, convocamos, mediante cartas patentes, a comparecerem diante de nós, os

Arcebispos, os Bispos, os Abades dos mosteiros, os membros dos cabidos das catedrais

do teu reino e os mestres em Teologia e em Direito Canônico e Civil e alguns outros

eclesiásticos que aí vivem, e ordenamo-lhes que estejam em nossa presença no dia

primeiro de novembro próximo futuro, para os consultar sobre todos estes acontecimentos. Tais pessoas, como bem o sabes, longe de te serem suspeitas, estão

comprometidas com o bem-estar do teu reino.

Se quiseres e tiveres interesse, poderás comparecer pessoalmente ou enviar

embaixadores fiéis e bem instruídos sobre a tua opinião a tal respeito. Nós, porém, não

deixaremos de agir na tua ausência e [...] consideraremos mais cuidadosamente e

ordenaremos de modo mais adequado o que convier à realidade e à correção dos

assuntos acima referidos, para a tua tranqüilidade e o teu bem-estar, como para a

execução de um bom governo e prosperidade desse reino [...].

DOCUMENTO 42

Egídio Romano, Sobre o poder eclesiástico, Livro I, cap. IV., ed. de L. A. De Boni e Cléa Pitt B. Goldman Vel Lejbman (Petrópolis: Vozes, 1989, p. 44-46).

Hugo de São Victor, no livro De sacramentis fidei christianae, diz que a

autoridade espiritual tem poder de instituir a autoridade terrena e julgá-la, caso não seja boa. Portanto, a respeito da Igreja e da autoridade eclesiástica verifica-se aquele

vaticínio: Dou-te hoje autoridade sobre as nações e os reinos, para extirpares e abateres,

157

para destruíres e demolires, para construíres e plantares. Este vaticínio sobre o próprio

Jeremias foi realizado quando profetizou algumas coisas a respeito da destruição e

edificação de alguns reinos, razão pela qual, pelo espírito da profecia, foi constituído

sobre alguns reinos para edificá-los, quanto aos reinos dos quais profetizou a edificação;

e para os destruir, quanto aos reinos dos quais profetizou a destruição.

Este vaticínio, contudo, realiza-se hoje a respeito da própria Igreja, como se o

Senhor lhe dissesse: Vê, hoje, isto é, a contar do dia em que foste constituída, eu te dou

autoridade sobre as nações e os reinos, para destruíres, para extirpares, transferindo-os do seu lugar; para edificares e plantares, edificando e plantando os mesmos reinos em

outro lugar, o que por sinal já se realizou, porquanto o sumo pontífice transferiu o

império do Oriente para o Ocidente, como está notado na ciência do Direito.

Os acontecimentos concordam com a autoridade dos doutores, pois, como ficou

claro através de Hugo, a autoridade espiritual tem poder de instituir a terrena e de julgá-

la se não é boa, o que não seria possível se não pudesse plantá-la e extirpá-la. De uma

parte pôde plantá-la, como quando a instituiu; de outra parte, pode extirpá-la, quando

julga se ela é boa. Neste assunto não só os acontecimentos concordam com a autoridade,

porquanto Hugo afirma isto, e a Igreja, transferindo o império, não só o fez de direito,

mas de fato; mas também os vaticínios dos profetas estão nesta matéria conformes com a

razão, porque o que Jeremias profetizou pode-se aplicar à Igreja: que seja constituída

sobre as nações e os reinos; e também a razão natural ensina isto.

Podemos, com efeito, declarar tranqüilamente que, pela ordem do universo, a

Igreja deve ser constituída sobre nações e reinos, pois, segundo Dionísio, é lei da

divindade reduzir as coisas ínfimas às supremas passando pelas intermediárias. A ordem

do universo requer que as coisas ínfimas se elevem às supremas, passando pelas

intermediárias. Se, com efeito, as coisas ínfimas se reduzissem imediatamente às supremas, assim como também as intermediárias, o universo não estaria corretamente

ordenado, o que é inconveniente dizer, principalmente a respeito destes poderes e

autoridades, como está claro pela sentença do Apóstolo, o qual diz que não há

autoridade, a não ser a vinda de Deus, para acrescentar imediatamente: E os que do fato

existem foram ordenados por Deus. Se há dois gládios, um espiritual e outro temporal,

como está claro pelas palavras do Evangelho: Senhor, eis aqui duas espadas, onde logo o

Senhor acrescenta: basta, porque, na Igreja bastam estes dois gládios — é preciso que

estes dois gládios, estas duas autoridades e poderes, sejam da parte de Deus, já que não

há autoridade a não ser a vinda da parte de Deus. Assim, é preciso que estas autoridades

sejam ordenadas, pois, como tratávamos, as coisas que provêm de Deus precisam de ser

ordenadas; e não o seriam a não ser que um gládio se reduzisse a outro e a não ser que

um estivesse sob a dependência de outro, porquanto, como foi dito por Dionísio, requer a

lei da divindade que Deus deu a todas as coisas criadas, isto é, requer a ordem do

universo que nem todas as coisas sejam elevadas imediatamente às supremas, mas as

ínfimas, passando pelas intermediárias, e as inferiores passando pelas superiores.

Consequentemente o gládio temporal, enquanto inferior, deve ser reduzido, passando

pelo espiritual, como se passasse pelo superior, e um deve ser estabelecido sobre o outro, de modo que o inferior esteja sob o superior.

158

Mas alguém diria que os reis e príncipes devem sujeitar-se nas coisas

espirituais, não nas temporais, como se assim se devesse entender o que foi dito: que os

reis e os príncipes, espiritualmente, não temporalmente, estejam sujeitos à Igreja. As

próprias coisas temporais, diria alguém, a Igreja as reconhece como vindas do domínio

temporal, como ficou claro pela doação e contribuição que Constantino fez à Igreja. Mas

os que assim dizem não entendem a força do argumento. Pois se só nas coisas espirituais

os reis e os príncipes estivessem sujeitos à Igreja, não haveria gládio sob gládio; não

haveria coisas temporais sob coisas espirituais, não haveria ordem nos poderes, não se reduziriam as coisas ínfimas às superiores passando pelas intermediárias. Se, pois, estas

coisas foram estabelecidas, é preciso que o gládio temporal esteja sob o espiritual, é

preciso que existam reinos sob o vigário de Cristo, e de direito, embora alguns de fato

ajam de modo contrário; é preciso que o vigário de Cristo tenha domínio sobre as coisas

temporais. Embora algumas autoridades pareçam dizer que, de fato, não de direito, do

tribunal secular se apela para a Igreja, tais palavras devem explicar-se pelo direito

costumeiro, ou podemos dizer que a Igreja simplesmente tem certo domínio sobre as

coisas temporais, mas de que maneira por este fato se apela para ela, será dito na última

parte desta obra. Ora, quem por direito simplesmente domina no espiritual, por certa

excelência tambérn tem domínio sobre as coisas temporais. Se alguns, porém, por temor

dos príncipes seculares, escreveram de outra maneira, não se deve admitir a autoridade

deles. A Igreja pode, pois, admoestar os príncipes nas coisas seculares, uma vez que o

gladio temporal está sob o gládio espiritual [...].

DOCUMENTO 43

Egídio Romano, Sobre o poder eclesiástico, ed, cit., Livro II, cap. V, p. 90-92.

Alguns quiseram dizer que ambos os poderes, tanto o sacerdotal como o real ou

imperial, vêm diretamente de Deus e que um não veio através do outro e pelo outro. Daí

querem ir mais longe e concluir que o Papa não tem ambos os gládios. Mas que o poder

real seja constituído através do eclesiástico pode evidenciar-se como segue. Os que

foram reis na lei da natureza, ou foram maus ou tornaram-se reis por invasão ou

usurpação, como lemos de Nemrod, cujo reino começou na Babilônia [...]; ou, só foram

reis [...], foram igualmente sacerdotes, como ficou claro de Melquisedeque e Job.

Contudo, não lemos que se tornaram reis por mandato do Senhor. Com efeito, não há

poder que não venha de Deus e quem resiste ao poder opõe-se ao plano de Deus, como

se diz em Rm 13, 2. Assim é que até o poder que têm os maus reis o têm de Deus [...].

Mas uma coisa é vir de Deus enquanto age geralmente nas coisas, a outra é vir de Deus,

enquanto dá um mandato especial.

[...] Erram os que dizem que o sacerdócio e o império, Ou o sacerdócio e o

poder real vieram, tanto um como o outro, diretamente de Deus, pois, por ordem de

Deus, o primeiro rei no seio do povo fiel foi constituído através do sacerdócio. De fato, inicialmente, o povo judeu, que era então o povo fiel e ao qual sucedeu o povo cristão,

era regido através de juízes, que eram instruídos pelos sacerdotes. [...] E antes que

159

houvesse juízes, o próprio Moisés regia fielmente o povo e era seu guia e juiz, não só nas

coisas que se referem a Deus, no que se relaciona com o poder espiritual e com o gládio

espiritual, mas também nas coisas que competem ao poder terreno e ao gládio material.

Como, porém, se esgotava em trabalho estulto e trabalhava além das suas forças, levado

pelo conselho do Jetro, seu sogro, constituiu varões, que temiam a Deus, que odiavam a

avareza o seguiam a verdade, para que julgassem Israel. A estes juízes, quanto às causas

temporais, entre as pessoas leigas, sucedem o imperador, os reis e os príncipes terrenos.

Era, porém, o poder sacerdotal e eclesiástico que constituía estes juízes, porque Moisés, retendo para si o poder sobre as coisas que se referem a Deus, com o que se quer

significar o poder eclesiástico, constituiu tais juízes, que exerciam o ofício do poder

terreno, e Samuel constituiu os seus filhos como juízes sobre Israel.

Todos os reis cristãos, todos os príncipes fiéis devem refletir de onde veio o

poder régio e como o Senhor mandou que fosse constituído um rei sobre o povo fiel; e

descobrirão clara e manifestamente que tal poder foi constituído através do sacerdócio.

Portanto, o poder régio não veio também diretamente de Deus como o sacerdotal, mas

aquele veio através deste e conseqüentemente debaixo deste.

Mas o poder régio não seria constituído sob o poder eclesiástico, a não ser que

as coisas temporais, que estão sob o poder do rei, estivessem colocadas sob o poder do

Sumo Pontífice. Daí, quanto ao que so referia no começo deste capítulo, que o Sumo

Pontífice não tem senão um dos gládios, dizemos que o poder terreno só tem o gládio

material, mas o gládio espiritual de modo algum o tem, nem para o uso, nem à sua

disposição; já o poder eclesiástico tem ambos os gládios: o espiritual para uso, e o

material à disposição. Pois também os discípulos do Senhor, aos quais os prelados

eclesiásticos sucedem, confessaram que tinham dois gládios, como diz Lc 22, 38: Eis

aqui dois gládios, e pelos dois gládios entendem-se os dois poderes: o espiritual e o terreno. Logo, os discípulos tinham ambos os gládios e a Igreja também os tem.

E se forem bem consideradas as palavras do Evangelho, está muito bem

simbolizado, através daqueles dois gládios, de que modo tenha a Igreja ambos os

gládios, porque, como diz Beda, um daqueles gládios foi tirado e o outro ficou na

bainha. Pois, embora fossem dois os gládios, lemos que um só foi desembainhado,

aquele com o qual Pedro feriu o servo do príncipe dos sacerdotes e lhe amputou a orelha

direita. Que significa senão que a Igreja tem os dois gládios: o espiritual para o uso, que

está figurado pelo gládio desembainhado, e o material não para o uso, mas à disposição,

e que está figurado pelo gládio não desembainhado? Por isso, com o gládio

desembainhado, que a Igreja tem para usar no servo, isto é, no pecador — porquanto

quem faz pecado é servo do pecado — se amputa a orelha direita, através da qual se

ouvem as palavras de Deus, assim como com a esquerda se ouvem as palavras do século.

Amputar a orelha direita significa separar da comunhão dos fiéis, para que o pecador não

possa ouvir as palavras divinas de salvação e a alma dde de modo nenhum possa viver

das palavras que procedem da boca de Deus.

Mas quem usou deste gládio, e quem amputou a orelha direita? Pedro. Por isso,

o Sumo Pontífice, que sucede a Pedro, tem o uso de tal gládio, porque ele detém o poder eclesiástico e pode expulsar os outros por meio da censura eclesiástica e separá-los da

comunhão dos fiéis. Os outros, se usarem deste gládio, fazem-no pela autoridade do

160

Sumo Pontífice. Portanto, os discípulos tinham ambos os gládios, mas só usaram de um;

o outro não o tiveram para usar, mas à disposição, Assim também a Igreja tem ambos os

gládios, o que não aconteceria, a não ser que os príncipes terrenos, que têm o uso do

gládio material e o juízo de sangue, estivessem sob o domínio e a serviço do poder

eclesiástico. E, se os príncipes terrenos estão sob o domínio do poder eclesiástico, segue-

se que também as coisas temporais, que estão sob o principado terreno, estão colocadas

sob o domínio da Igreja.

DOCUMENTO 44

Tiago de Viterbo: Sobre a subordinação do poder terreno ao espiritual.

[...] Sabe-se que o principado secular foi instituído com a finalidade de proporcionar um

governo aos seres humanos, através de uma lei igualmente humana. No entanto, por

outro lado, a instituição de um principado secular, sob a chefia de um monarca cristão,

para governar os fiéis, foi estabelecida pela autoridade espiritual.

Ora, como as pessoas se tornam cristãs através do ministério do sacerdote, assim

também qualquer príncipe cristão, ao ser investido com a autoridade governamental, por

meio do poder espiritual, está obrigado a sujeitar-se ao mesmo, pois todos os fiéis,

qualquer que seja a sua dignidade ou condição social, devem ser-lhe submissos,

conforme estabelece a lei divina [...].

DOCUMENTO 45

Quaestio in utramque partem

[...] Por acaso as dignidades pontifícia e imperial ou real são dois poderes

distintos, separados e divididos, não reciprocamente dependentes? Esta pergunta

equivale a indagar se o Sumo Pontífice possui uma jurisdição plena e um poder

ordinário, tanto na esfera espiritual, como na temporal, de modo que todos os príncipes

seculares lhe devam estar sujeitos no tocante ao âmbito temporal [...]?

[ARGUMENTOS FILOSÓFICOS]

[I] [...] O Filósofo, no livro Sobre a alma [II, 2, 11], diz que as potências

distinguem-se umas das outras pelos seus atos. Assim, onde ocorrem ações diferentes, aí

necessariamente deve haver poderes igualmente distintos. Ora, no governo das coisas

temporais e no das coisas espirituais, há em geral ações diferentes. Logo, os poderes de

ambos os regimes em geral são diferentes. Na verdade, que o são é óbvio, porque um

não está subordinado ao outro. Logo, o poder temporal não está subordinado ao

espiritual. [II] Do mesmo modo, segundo o Filósofo: as capacidades distinguem-se entre si

pelos objetos. Desse modo, o som é o objeto da audição, que difere da cor, que é o objeto

161

da visão. Por isso, a audição e a visão são duas capacidades distintas. Igualmente, as

coisas temporais e as espirituais são genericamente distintas, não fazem parte do mesmo

gênero e tampouco se compõem da mesma matéria. Logo, os poderes espiritual e

temporal são distintos e reciprocamente independentes.

[III] Ainda, conforme ensina o Filósofo, as capacidades e ações em geral se

distinguem umas das outras pelos respectivos fins. Assim, como o intelecto e os sentidos

se ordenam a fins diferentes, por esse motivo são capacidades distintas existentes na

alma. Ora, o poder espiritual se ordena para um fim enquanto o temporal para outro, como é evidente de per si e será demonstrado infra no corpo da questão.

[ARGUMENTOS TEOLÓGICOS]

[IV] Item, também demonstra-se isto mediante razões teológicas do seguinte

modo: no princípio Deus criou o céu e a terra [Gn 1, 4], isto é, fez seres espirituais e

corpóreos. Segundo o bem-aventurado Agostinho ensina, esta é a primeira e a maior

diferença que pode existir entre as criaturas, pois não foram feitas da mesma matéria e

requerem regimes diferentes, porque as criaturas espirituais, como as corpóreas,

possuem uma organização própria. Logo, os poderes para as governar necessariamente

têm de ser distintos.

[V] Igualmente, no primeiro dia da criação do mundo, Deus criou a luz e a

separou das trevas. Ora como Agostinho e outros santos ensinam, os seres espirituais são

representados pela luz, os temporais pelas trevas. Logo, assim como os espirituais se

distinguem e diferem dos temporais, assim também a luz das trevas. Logo, os poderes de

ambos os regimes em geral são distintos, pois o Apóstolo diz que é quase nula a relação

entre a luz e as trevas.

[VI] Item, no quarto dia, Deus fez duas grandes luminárias [Gn 1, 16], a saber, o sol e a lua, para ornar e governar o universo, cujos deveres são distintos e diversos,

porque Ele ordenou que o sol presidisse ao dia e à lua a noite. Ora, estas duas luminárias

representam estes dois poderes, de modo que o sol corresponde ao Papa, que preside à

esfera espiritual, e a lua ao Imperador, que dirige o âmbito secular, de acordo com o que

está escrito nas Decretais, sob o título De maioritate et obedientia, cap. Solitae: ―Deus

fez duas grandes luminárias para o firmamento visível da Igreja que são a autoridade

pontifícia e o poder real‖. Logo, como o sol e a lua foram criados imediatamente por

Deus, e a segunda não procede do primeiro, embora difiram muito em claridade, assim

também os poderes espiritual e temporal provêm imediatamente Deus, conquanto sejam

diferentes quanto à dignidade.

[VII] Do mesmo modo, na Antiga Lei estes dois poderes eram distintos e, por

isso, nela havia uma dupla unção, a do pontífice e a do rei, e ambos exerciam ofícios

distintos, de modo que um não devia nem impunemente podia usurpar o ofício do outro,

nem tampouco a dignidade real estava subordinada à pontifícia na esfera temporal. Logo,

com muito mais razão, na Nova Lei os dois poderes são distintos, de modo que a

autoridade secular não está subordinada à espiritual na esfera temporal.

[VIII] Item, a Lei da Graça requer maior espiritualidade na dignidade pontifícia do que a Antiga Lei. Ora, para que os ministros da Antiga Lei não se afastassem da

celebração do culto divino, Deus não quis que eles possuíssem um domínio sobre terras,

162

daí a tribo de Levi não ter tido uma porção da herança, como as outras tribos, na divisão

da Terra prometida, conforme está patente no Levítico e em Josué [Js 13, 14, 33; 18, 7].

Logo, os pontífices e os outros ministros da Nova Lei, muito menos deviam querer ou

possuir um domínio sobre terras.

[IX] Item, como diz o Salvador: não existe discípulo maior do que mestre, nem

servo maior do que o seu senhor [Mt 10, 24] nem o vigário possui um poder maior do

que aquele possuído por aquela pessoa de quem ele o é [...]. Ora, conquanto Cristo,

mediante o direito hereditário, seja o senhor de tudo que existe, contudo não quis usar esse poder, antes ao contrário, recusou completamente o que lhe foi oferecido, conforme

lemos no Evangelho de João, capítulo 6 [15]. De fato, quando o povo o buscava para

fazê-lo rei, ele fugiu como que desprezando e ensinando a desprezar a insaciável

voracidade da avareza e a oca vaidade da ambição, especialmente ao seu vigário, dando

um exemplo quanto a não usurpar para si as dignidades imperial ou real.

[X] Item, no Evangelho de Lucas, capítulo 12 [13-14], está escrito que, como

alguém tivesse dito ao Senhor Jesus: ―Mestre, dize a meu irmão que reparta comigo a

herança‖, ele respondeu: ―Homem, quem me estabeleceu juiz ou árbitro da vossa

partilha?‖ Eis, pois, como o Filho de Deus recusou julgar partilhas, conquanto tivesse

sido estabelecido por Deus juiz dos vivos e dos mortos. Logo, o seu vigário não deve se

intrometer com a jurisdição temporal.

[XI] Semelhantemente, o sucessor de Pedro não possui maior poder na esfera

temporal do que o primeiro vigário de Cristo o possuiu. Ora, Cristo não prometeu nem a

Pedro nem aos outros Apóstolos que possuiriam o domínio sobre terras; antes pelo

contrário, ordenou-lhes que guardassem e observassem inviolavelmente a extrema

pobreza e a humildade, conforme está patente no Evangelho. Logo, o sucessor de Pedro

não exerce nenhuma jurisdição na esfera temporal. [XII] O Senhor, tendo sido interrogado pelos judeus sobre se era lícito pagar o

tributo a César, porque a sua efígie estava na moeda, respondeu-lhes: ―Dai a César o que

é de César e a Deus o que é de Deus‖ [Mt 22, 17-21]. Portanto, o que é de César e o que

é de Deus são coisas distintas.

[XIII] Do mesmo modo, não se lê na passagem evangélica alusiva ao vicariato

confiado a Pedro, que lhe tivesse sido confiado o poder temporal, mas apenas o

espiritual. De fato, Cristo disse ao Apóstolo:

―Dar-te-ei as chaves do reino dos céus‖ [Mt 16, 19]. Não lhe disse: o domínio sobre as

coisas do mundo. Daí, o Senhor ter acrescentado imediatamente àquelas palavras, como

se lhe estivesse a explicar que se referia apenas ao poder espiritual: ―tudo o que ligares

sobre a terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares‖, etc. E, depois de sua

Ressurreição, Cristo disse aos Apóstolos: ―Recebei o Espírito Santo, aqueles a quem

perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados‖, etc. [Jo 20, 22].

[ARGUMENTOS HAURIDOS NOS CÂNONES]

[XIV] Também se demonstra a tese em apreço, de muitas maneiras, através dos

cânones [...] [XVI]. Igualmente, quem paga tributo a alguém parece que não tem precedência na esfera temporal, antes, denota muito mais que está subordinado. Ora, o

Papa paga tributo ao Imperador, conforme o Cânon XI, questão 1 ―magnum‖ e o Cânon

163

XXIII, questão VIII ―tributum‖, onde está escrito o seguinte: ―Pedro estava a pescar

quando encontrou o tributo na boca do peixe, a fim de que ficasse evidente que a Igreja

paga tributo sobre todos os seus bens exteriores‖, e infra ―tem de se pagar [tributo] aos

imperadores sobre os bens externos da Igreja, o que, aliás, é um costume muito antigo,

por causa da paz e da tranqüilidade, dado que eles nos devem guardar e defender‖ [...].

[XVIII] [...] Do mesmo modo, quem confirma a escolha de outrem, de direito

não lhe deve estar subordinado. Ora, o Papa no Sínodo outorgou a Carlos, rei da França,

os direitos de confirmar a escolha do Sumo Pontífice, bem como o de pôr ordem na Sé Apostólica. Logo, por força do direito, o rei da França não deve estar subordinado ao

Papa. Prova-se a premissa menor assim: na Distinção LXIII, capítulo ―Adriano‖, a

respeito de Carlos, após ele ter desbaratado os inimigos da Igreja Romana, está escrito o

seguinte: ―Enfim, regressando a Roma, aí ordenou com o Papa Adriano a realização de

um sínodo, no patriarcado lateranense, na igreja de São Salvador, o qual foi efetuado

com a presença de cento e cinqüenta e três Bispos, Abades e religiosos. O Papa Adriano

conferiu a Carlos o direito de escolher o Pontífice e o poder de pôr ordem na Sé

Apostólica, a dignidade do patriciado e, juntamente com todos os padres sinodais, ainda

lhe concedeu o direito de investir todos os arcebispos e bispos de cada uma das

províncias. Ele determinou que o bispo seria nomeado e investido apenas pelo rei e não

seria consagrado por ninguém; e quem quer que agisse contra este decreto estaria ligado

pelo vínculo do anátema, e também ordenou que, se esta pessoa não voltasse atrás, seus

bens seriam confiscados‖.

Isto ainda igualmente pode ser dernonstrado na mesma Distinção, capítulo ―in synodo‖,

com referência a Carlos e a Otão I, seu filho, Imperador dos teutônicos: ―No sínodo

reunido em Roma na igreja de São Salvador, imitando o exemplo do bem-aventurado

Adriano [bispo] da Sé Apostólica, concedeu-lhe o direito de investir os Bispos: Eu também, Leão, bispo, servo dos servos de Deus, junto com todo o clero e o povo

Romano, por meio de nossa autoridade apostólica, confirmamos, corroboramos,

concedemos e outorgamos ao senhor Otão I, rei dos teutônicos, e aos seus sucessores no

governo deste reino da Itália, a faculdade de eleger e de designar o pontífice sucessor da

suma Sé Apostólica, e, através dessa medida, igualmente os arcebispos e os bispos, de

modo que eles recebam dele a investidura o a consagração, e assim, se alguém for eleito

bispo pelo clero e pelo povo, caso não venha a ser nomeado e investido pelo mencionado

rei, não poderá vir a ser consagrado. Decretamos que se alguém agir contra esta medida,

estabelecida pela autoridade apostólica, será excomungado e, caso não volte atrás, será

então punido com um exílio irrevogável ou castigado com o suplício extremo [...]‖.

[ARGUMENTOS HAURIDOS NO DIREITO CIVIL]

[XXI] Prova-se ainda a mesma tese através do direito civil. Nas Autênticas,

título Quomodo oporteat episcopos, no princípio, coll. I está escrito: ―Na verdade, os

maiores dons de Deus, concedidos mediante sua excelsa clemência, são o sacerdócio e o

império, aquele ministrando nas coisas divinas, este presidindo nas humanas e

mostrando diligéncia. Ambos procedem de um só e mesmo princípio‖ [...] respondo à objeção, dizendo que para se demonstrar que as duas jurisdições são distintas, basta ver

que uma está nas mãos do Papa e dos juízes eclesiásticos, e a outra nas do Imperador e

164

dos reis. Na verdade, tudo o que se aplica ao Imperador vale também para o rei de

França, que é o imperador no seu reino.

Demonstro especialmente que o monarca francês não está subordinado ao Papa

no âmbito secular, fundamentando-me nas palavras constantes do Livro extra das

Decretais, título De iudiciis, cap. Novit, em que o Papa Inocêncio diz o seguinte:

―Ninguém julgue que pretendemos prejudicar ou diminuir a jurisdição do ilustre rei dos

Francos‖ [...] A Glosa, comentando essa passagem, declara: ―É evidente que, de acordo

com as palavras de Inocêncio, o Papa e a Igreja não detêm os dois gládios‖. E, mais adiante, no mesmo capítulo, ele acrescenta: ―Não pretendemos julgar a respeito do

feudo, cuja competência para tal pertence à sua autoridade [...]‖.

[XXIII] [...] Além do mais, ao que tudo indica, o rei da França é semelhante ao

Imperador quanto à competência e à autonomia jurisdicional, porque o reino dos francos

obteve o Império antes do que o reino dos teutões, segundo está escrito na dist. LXIII,

capítulo Ego Ludovicus. No final do mesmo, está dito que o Papa, após ter sido sagrado,

enviou legados aos Imperadores e aos reis dos francos, que estavam unidos entre si pelos

laços de amizade, de paz e de caridade. Logo, parece que o Imperador e o rei dos francos

possuem a mesma dignidade [...]‖.

[ARTIGOS]

[II] [...] Estes dois poderes são distintos e mutuamente independentes, uma vez

que de fato o ser humano é constituído de alma e de corpo, e assim dupla é a vida,

corpórea e espiritual. O homem, por causa da vida terrena, necessita das coisas materiais,

e, em vista da espiritual, requer também ações espirituais. Assim, os imperadores e os

reis exercem um poder sobre os corpos dos seus súditos no respeitante aos assuntos

seculares e à vida terrena. Com efeito, detêm eles um poder coercivo e devem punir os réus e os transgressores das leis imperiais com uma punição corporal, pôr em ordem os

assuntos do reino, manter em paz e na tranqüilidade os povos que lhes estão submissos,

defender a pátria, combater os inimigos. Os pontífices, ao contrário, possuem a

jurisdição espiritual sobre tudo aquilo que concerne ao governo e à salvação das almas

[...]‖.

[...] Os Príncipes usam, pois, o gládio material, como ensina o Apóstolo, na

Epístola aos Romanos, capítulo 13 [4]: ―Não é em vão que ele traz a espada: ele é um

instrumento de Deus para fazer justiça e punir quem pratica o mal‖. O mesmo Apóstolo,

referindo-se à espada espiritual, diz o seguinte na Epístola aos Efésios, capítulo 6 [17]:

―Tomai o capacete [...] e a espada do Espírito, que é a Palavra de Deus‖. Portanto, os

Apóstolos usavam a espada espiritual. Não se lê em parte alguma da Escritura que

tenham usado o gládio material [...]. Dessa forma, os dois poderes são distintos, e

tampouco devem se prejudicar mutuamente, pois, como o príncipe não deve se

intrometer nos assuntos espirituais, assim também o Santo Padre não deve imiscuir-se no

âmbito secular, nem deve pretender assumir a jurisdição temporal, exceto em situações

específicas consagradas pelo direito [...].

[III] [...] Cristo, ao instituir o poder espiritual, não concedeu, ou melhor, não prometeu a S. Pedro o direito de exercer um domínio sobre os bens terrenos. De fato, no

Evangelho de Mateus, capítulo 16 [18 e ss.], lê-se que Ele instituiu o bem-aventurado

165

Pedro e os seus sucessores como seus vigários: ―Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei

a minha Igreja, e as portas do Inferno não prevalecerão contra ela. Darte-ei as chaves do

reino dos céus‖. Cristo não lhe disse: os bens terrenos [...].

[...] Assim, como foi demonstrado que ao Sumo Pontífice, sucessor do bem-

aventurado Pedro, não foram concedidos o domínio sobre os bens terrenos nem a

jurisdição temporal, para se saber de fato, qual é o poder ou a dignidade concedida ao

Santo Padre, que espécie de autoridade foi concedida ao bem-aventurado Pedro, vigário

de Jesus Cristo, é suficiente recordar que aquele poder e dignidade são muito mais nobres, mais sublimes e mais úteis do que a autoridade imperial. Na verdade, tanto dista

o Oriente do Ocidente, o corpo da alma, as coisas materiais das espirituais, as terrenas

das celestes, quanto se distancia a autoridade do Romano Pontífice do ápice das

dignidades imperial ou régia. Ademais, basta prestar atenção às palavras do Senhor,

instruindo o seu vigário, as quals se encontram no Evangelho. Ele disse: ―tu és Pedro

[...].‖

[IV] Com o propósito de mostrar em que circunstâncias e de que modo o poder

temporal se subordina ao espiritual [...] é oportuno ressaltar que há questões

efetivamente espirituais [...] há também outras questões meramente seculares, como as

feudais e aquelas relativas a derramamento de sangue e outras mais que lhes são

semelhantes. Deus imediata e particularmente confiou o seu exame e sua solução apenas

aos imperadores e aos reis, de modo que nem o Romano Pontífice e muito menos os

demais prelados devem imiscuir-se nas mesmas [...]; há ainda as questões mistas. São

causas temporais que têm uma certa conexão com as espirituais. Assim a questão feudal,

que, por natureza, é temporal, pode estar conexa a um juramento ou a um pacto,

conforme é notório na dissensão ocorrida entre os reis da França e da Inglaterra,

referente ao condado da Aquitânia. O Papa, que diretamente não podia se inteirar dessa causa feudal, indiretamente se envolveu com a mesma, em razão do juramento ou do

pecado, de acordo com o que consta do Livro extra das Decretais, título De iudiciis,

capítulo Novit [...].

[...] Assim também, conforme estabelece o direito, os imperadores, os reis e os

demais juízes seculares têm de se inteirar das causas meramente seculares, e tal é o caso

do rei da França. Por conseguinte, ele não está subordinado ao Papa e tampouco lhe deve

prestar contas sobre feudos que existem em seu reino, mas poderá estar-lhe incidental e

casualmente subordinado por causa da conexão que possa haver entre alguma questão

secular com uma causa espiritual, como está dito no Livro extra das Decretais, título De

iudiciis, capítulo Novit [...].

[V] [...] Respondemos de modo sucinto à questão, dizendo que o rei de França

recebeu diretamente de Deus o poder que exerce sobre o seu reino, não de qualquer

pessoa, por exemplo do vigário de Cristo, nem enquanto Papa, nem como simples

mortal.

Para corroborar nossa opinião, invocamos o testemunho do próprio Sumo

Pontífice, a saber, de Inocêncio III, cujas palavras se encontram no Livro extra das

Decretais, título Qui filii sint legitimi, capítulo Per venerabilem, o qual falando a respeito do então rei dos francos, assim se pronunciou: ―O rei dos francos não reconhece

possuir nenhum superior na esfera temporal [...]‖.

166

[ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À TESE E RESPOSTAS DO AUTOR]

[IV] [...] Como num corpo natural só há uma cabeça que governa todos os

sentidos e todos os membros, assim também no Corpo Místico, que é a Igreja, só pode

haver uma cabeça, pois seria monstruoso que nela existissem duas, como o seria

igualmente num corpo natural.

Respondo ao argumento, dizendo que apenas uma só pessoa é a cabeça de toda

a Igreja, do mesmo modo que ela é a pomba. Afirmarnos que esta cabeça é Cristo. Apenas ele é apropriadamente a cabeça da Igreja e só d‘ele ambos os poderes derivam,

conforme diz o Apóstolo, na Epístola aos Efésios, capítulo 2 [1, 22]: ―O Pai colocou

tudo debaixo de seus pés, pondo o Filho como a cabeça de toda a Igreja, que é o seu

corpo‖.

Todavia, admitimos que o Sumo Pontífice pode ser chamado de cabeça da

Igreja, enquanto é o vigário de Cristo e principal dentre os ministros eclesiásticos, e de

quem depende toda a organização da esfera espiritual, do mesmo modo como também a

Igreja Romana é designada cabeça das outras igrejas, mas o Papa não é a cabeça quanto

ao governo temporal. Na verdade, cada rei é a cabeça no seu reino, como o Imperador o

é no Império [...].

[X] [...] Item, pouco antes da Paixão, os discípulos do Senhor apresentaram-lhe

dois gládios, dizendo-lhe; ―Eis aqui duas espadas.‖ Ele respondeu: ―É suficiente.‖ [Lc

22, 32.] Ora, segundo o ensinamento dos doutores, esses dois gládios representam os

dois poderes que estão no interior da Igreja, possuídos especialmente pelo Santo Padre,

de modo que ele, em face de uma necessidade iminente, pode usá-los contra qualquer

pessoa, incluindo os reis e os imperadores. Portanto, etc.

Respondo ao argumento, concedendo que os dois gládios podem representar os dois poderes que estão na Igreja, no entanto, dizemos que é verdade também, que os

príncipes possuem um deles e o Papa o outro. Com efeito, os doutores mencionados não

afirmam que os dois gládios eram de Pedro, mas apenas um, de acordo com o que o

próprio Senhor atesta, dizendo-lhe: Mete a tua espada na bainha. Com efeito, Pedro não

foi repreendido por haver desembainhado a espada no momento adequado, face a uma

necessidade iminente, mas porque fez aquilo de modo inconveniente e numa ocasião

inoportuna. É por esse motivo que o juiz eclesiástico não deve usar o seu gládio, exceto

se houver um motivo relevante, enorme necessidade e após uma reflexão profunda [...].

[XVI] [...] igualmente o Papa Zacarias depôs o Rei dos francos, segundo consta

da Distinção 15, questão 6, cap. Alius. Logo, etc.

Respondo ao argumento, afirmando que não se lê em texto algum que o Rei dos

francos foi deposto pelo Papa Zacarias. Na verdade, segundo afirmam algumas pessoas,

aquele Papa foi consultado acerca da deposição. Com efeito, indagado sobre quem

deveria efetivamente reinar, se a pessoa que zelava pelos negócios do reino ou aquele

que não o fazia, Zacarias respondeu que deveria ser o primeiro. Assim, a rei Childerico

foi deposto pelos barões e Pepino foi ordenado e ungido rei.

Ou como dizem outras pessoas, o rei Childerico não foi deposto, mas ingressou espontaneamente num mosteiro, abraçando a vida monástica. Daí, como os barões do

reino hesitassem sobre se lhes seria lícito escolher e instituir Pepino como rei,

167

consultaram o Pontífice Romano a tal respeito. Mas poderiam ter tomado aquelas

medidas, sem que fosse necessário consultá-lo [...].

[XVIII] [...] Do mesmo modo, quem pode fazer algo maior também pode fazer

algo menor. Ora, os assuntos espirituais são mais importantes e excelsos do que as

temporais. Logo, etc.

Respondo a este argumento, afirmando que aquela premissa maior: quem pode

fazer algo maior, é verdadeira, quando se aplica a coisas do mesmo gênero, por exemplo,

se um rei pode conquistar uma cidade, logo também pode conquistar um acampamento militar.

No entanto, quando tal premissa se refere a coisas de gênero diverso, não é

verdadeira; por exemplo, o fato de uma pessoa ser capaz de gerar uma outra não implica

que possa gerar igualmente uma mosca. Portanto, dado que as coisas espirituais e as

materiais são do gênero diverso, pelo mesmo motivo não decorre que uma pessoa que

exerce um poder no âmbito espiritual também possa exercê-lo na esfera temporal.

Além disso, a citada premissa igualmente não considera a situação daqueles que

exercem exclusivamente um poder em comissão ou delegação. De fato, sabemos que na

Cúria dos príncipes a orientação e o cuidado das almas estão confiados aos sacerdotes,

enquanto aos médicos a cura dos corpos. Disto não se conclui quo o confessor,

exercendo um poder sobre o maior, isto é, a alma, também o exerça sobre o menor, o

corpo, logo [...].

Na verdade, embora muitos dos argumentos referidos na primeira parte deste

texto, possam ser redarguidos e não cheguem a uma conclusão necessária, entretanto,

como tínhamos o propósito de ser breve, não os discutimos amplamente, porque não

devíamos acrescentar outros tantos argumentos relativos a esse assunto.

DOCUMENTO 46

João Quidort, Sobre o poder régio e papal. Ed. Luis A. De Boni (Vozes: Petrópolis, 19, p. 41-22.

O erro dos valdenses foi o de afirmar que aos sucessores dos Apóstolos — o

Papa e os prelados — é vedado o domínio temporal e não lhes é permitida a posse de

bens materiais. Baseados nesta afirmação, dizem que a Igreja de Deus, os sucessores dos

Apóstolos e os verdadeiros prelados da Igreja de Deus duraram somente até ao Papa

Silvestre I, a partir do qual, com a doação feita à Igreja por Constantino, começou a

existir a Igreja Romana, tal como permanece até hoje, e que, segundo eles, não é a Igreja

de Deus. Esta, dizem, já não existe mais, a não ser na medida em que é continuada por

eles ou por eles reparada. [...]

O erro oposto foi o de Herodes que, ouvindo dizer que Cristo, o rei, havia

nascido, supôs que este seria um rei terreno. Provém evidentemente deste erro a opinião

de alguns modernos, que tanto se distanciam do erro dos valdenses a ponto de caírem de todo no oposto, afirmando que o Senhor Papa, como representante de Cristo na terra,

possui o domínio, bem como a jurisdição sobre os bens temporais dos príncipes e barões.

168

Dizem também que este poder sobre as coisas temporais, o Papa o possui em proporção

maior que o príncipe, pois o Papa o tem como autoridade primária, diretamente de Deus,

enquanto o príncipe o tem mediatamente de Deus, através do Papa.

DOCUMENTO 47

João Quidort, Sobre o poder régio e papal (ed. cit., p. 44-46).

Tal governo é derivado do direito natural e do direito das gentes. Como o

homem é um animal político ou civil, segundo diz Aristóteles (Política, I. 1, 1235a), o

que se manifesta, segundo o Filósofo, pela alimentação, vestuário e defesa, nos quais o

indivíduo sozinho não é suficiente a si mesmo, e também pela fala, algo que só o homem

possui, e que se dirige a um outro, é necessária ao homem a vida em multidão. [...]

Contudo, toda a multidão na qual cada um persegue próprio interesse acaba por

dissolver-se e dispersar-se em diversas direções, a não ser que seja ordenada para o bem

comum por uma só pessoa, a quem foi confiado o cuidado pelo bem comum [...]; antes

de Belo e Nino, que foram os primeiros a reinar, os homens não viviam conforme a

natureza, nem como homens, mas como animais selvagens, sem guia, segundo narram

alguns e refere Orósio. Também Cícero diz algo semelhante no início da sua Retórica

antiga, e o Filósofo comenta na sua Política que tais indivíduos não vivem como

homens, mas como deuses ou como bestas.

[...] Então, alguns homens, que faziam maior uso da razão e sofriam sob a falta

de rumo dos seus semelhantes, empreenderam a obra de, através de argumentos

persuasivos, convencer os demais a partir para uma vida comum e ordenada, sob a direção de um único chefe, conforme narra Cícero. Os que concordaram foram ligados

por certas leis relativas à vida em comum, que aqui são chamadas de direito das gentes.

Assim, fica claro como este regime procede tanto do direito natural como do direito das

gentes.

DOCUMENTO 48

João Quidort, Sobre o poder régio e papal (ed. cit., p. 47-49).

Como o homem não consegue a vida eterna pela virtude humana, mas pela

divina — segundo o que diz o Apóstolo em Rom 6, 23: A vida eterna é a graça de Deus -

levar ao fim sobrenatural não é obra do governo humano, mas do governo divino.

Este governo pertence, portanto, àquele rei que não é somente homem, mas

também Deus, Jesus Cristo, que faz todos os homens filhos de Deus e assim os introduz

na vida eterna, sendo por isto chamado rei [...], oferecendo-se a si mesmo na Cruz a

Deus Pai, como sacerdote e vítima ao mesmo tempo, por sua morte removeu o impedimento universal, que era a ofensa a Deus Pai pelo pecado comum do gênero

humano. Por isto foi chamado verdadeiro sacerdote em favor dos homens e escolhido de

169

entre os homens [...]. Tais remédios são os sacramentos da Igreja, nos quais a força

espiritual da Paixão de Cristo está contida como força do agente nos instrumentos [...].

Enfim, como Cristo haveria de subtrair da Igreja a sua presença corporal, foi necessário

instituir alguns auxiliares que ministrassem aos homens estes sacramentos, auxiliares

estes que são chamados sacerdotes, porque dão coisas sagradas, ou são guias sagrados,

ou guias de coisas sagradas, pelas quais são intermediários entre Deus e os homens. [...];

o sacerdócio é o poder espiritual conferido por Cristo aos ministros da Igreja, para

dispensarem os sacramentos aos fiéis [...]. Assim, este poder foi dado primeiramente aos discípulos de Cristo, de modo que por eles pudesse ser transmitido a outros, entre os

quais deve haver alguns ministros superiores e perfeitos que, pela ordenação e sagração,

confiram a outros o sacerdócio, tais são os bispos [...]. Embora os povos se dividam por

diversas dioceses e cidades, nas quais os bispos presidem nas coisas espirituais, é

evidente que há uma só Igreja de todos os fiéis e um só povo cristão. E assim como em

cada diocese existe um só bispo, que é cabeça da igreja daquele povo, assim também em

toda a Igreja e em todo o povo cristão há um só Sumo Pontífice, o Papa romano,

sucessor de Pedro, para que assim a Igreja Militante derive, por semelhança, da

Triunfante, na qual um só preside, o mesmo que preside a todo o universo. [...] Este

único indivíduo, que possui a posição suprema é Pedro e o seu sucessor, e não por uma

determinação sinodal, mas pela boca do Senhor que não quis abandonar a Sua Igreja no

que lhe é necessário e que, segundo João 21, 26, antes da ascensão ao céu, disse

singularmente a Pedro: ―Apascenta as minhas ovelhas‖, e, segundo Lc 22, 32, lhe

recomendou antes da Paixão: ―E tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos‖.

DOCUMENTO 49

João Quidort, Sobre o poder régio e papal (ed. cit., p. 92-93).

O Papa pode, porém, pecar em coisas espirituais, como, por exemplo,

conferindo benefícios por simonia, dissipando os bens das igrejas, privando as pessoas

eclesiásticas e os capítulos dos seus direitos, julgando ou ensinando erroneamente no que

se refere à fé e aos bons costumes. Nestes casos, deve ser primeiramente admoestado

pelos cardeais, que representam todo o clero. Se, porém, se mostrar incorrigível, e os

cardeais sozinhos não conseguirem remover o escândalo da Igreja, devem recorrer ao

auxílio do braço secular. Então, o Imperador, por ser membro da Igreja, sendo

requisitado pelos cardeais, deve proceder contra o Papa na forma predita, a fim de o

depor. Assim, pois, a Igreja possui de certo modo o gládio secular; não porque o use ou o

tenha à sua disposição, mas enquanto lhe dá um sinal e o chama em auxílio, como diz

Bernardo ao Papa Eugênio. Deste modo, os dois gládios são obrigados a ajudar-se

mutuamente pela caridade comum que deve unir todos os membros da Igreja [...].

DOCUMENTO 50

170

Bonifácio VIII, Unam sanctam.

Somos obrigados pela fé a acreditar, e acreditamos firmemente e confessamos

com sinceridade, que a Santa Igreja Católica e Apostólica é única, e que fora desta Igreja

não existe salvação, nem remissão dos pecados, como a seu respeito diz o Esposo no

Cântico dos Cânticos: ―Uma só é minha pomba, uma só é minha perfeita. Ela é filha

única de sua mãe, a preferida de quem lhe deu a luz‖.

A Igreja representa o Corpo Místico, cuja cabeça é Cristo, e a cabeça de Cristo, Deus. Nela há um só Senhor, uma só fé e um só Batismo. Com efeito, uma só foi a arca

de Noé no tempo do dilúvio, a qual prefigurava a única Igreja e com o teto em aclive de

um côvado de altura, levava um só regente e governador, Noé, e fora dela sabemos que

tudo quanto existia na face da terra foi eliminado.

Veneramos também a Igreja como única, porque o Senhor, por meio do

Salmista, diz a seu respeito: ―Oh Deus, arranca da espada a minha alma e a minha única

vida do poder dos cães‖. Na verdade, ele orou pela sua alma, quer dizer, por si próprio,

que é a cabeça, e pelo seu corpo e o denominou de sua única Igreja, por causa da unidade

com o Esposo, da fé, dos sacramentos e da caridade que há na mesma.

Ela é a túnica inconsútil do Senhor, que não foi rasgada, mas deixada para

sorteio.

Esta Igreja, que é una e única, possul um só corpo e uma só cabeça, não duas,

como se fosse um monstro, a saber, Cristo e o vigário de Cristo, Pedro e o seu sucessor,

pois o Mestre disse ao próprio Pedro: ―Apascenta as minhas ovelhas‖, Disse as minhas

ovelhas em geral, e não estas ou aquelas em particular. Por esse motivo, subentende-se

que o encarregou de cuidar de todas. Daí, se os gregos ou outros dizem que não foram

confiados a Pedro e aos seus sucessores, é mister que confessem igualmente que não pertencem as ovelhas de Cristo, porque o Senhor diz no Evangelho do João que há um

só rebanho e um só pastor.

E aprendemos das palavras do Evangelho que nesta Igreja e em seu poder estão

duas espadas: uma espiritual e a outra temporal. Com efeito, dizendo os Apósto]os, ―Eis

aqui dois gládios‖ [...], o Senhor não respondeu são demais, mas ―bastam‖. Decerto,

aquele que nega que o gládio temporal está em poder de Pedro, entende mal a palavra do

Senhor, que diz: ―Mete a tua espada na bainha‖. O gládio espiritual e o material, estão

ambos em poder da Igreja, mas aquele deve ser manejado pela Igreja e pelo sacerdote, e

este pelos reis e soldados, se bem que por indicação e anuência do sacerdote. Por isso, é

necessário que uma espada esteja sob a outra e que a autoridade secular esteja

subordinada à autoridade espiritual. Com efeito, quando o Apóstolo diz: ―Não há poder

que não venha de Deus, e os que existem são ordenados por Deus‖, eles não seriam

ordenados se o gládio não estivesse sob o gládio e, como inferior, se reduzisse pelo outro

aos superiores. De fato, segundo o bem-aventurado Dionísio, é lei da divindade que as

realidades ínfimas se reduzam às superiores mediante as intermediárias. Segundo a

ordem do universo, não todas as realidades igual e imediatamente, mas as ínfimas pelas

intermédias, as inferiores pelas superiores, devem ser reduzidas à ordem. Que a espiritual ultrapassa em dignidade e nobreza qualquer poder terreno, somos obrigados a

crer e igualmente proclamar com grande clareza, da mesma forma que o espírito supera a

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matéria [...]; porque, segundo testemunha a verdade, o poder espiritual institui a secular e

deve julgá-lo se não for bom [...].

Logo, se o poder secular erra, será julgado pelo poder espiritual; se o poder

espiritual inferior se desvia, será julgado pelo superior, mas, se este errar, apenas poderá

ser julgado por Deus e não pelos homens, pois o Apóstolo afirma: ―O homem espiritual

julga tudo, mas não é julgado por ninguém‖.

Mesmo que este poder tenha sido confiado a um homem e seja exercido par seu

intermédio, ele não é humano, mas sim divino, pois foi confiado a Pedro mediante a palavra divina, e nele aos seus sucessores, e confirmado por Aquele mesmo a quem

testemunhou, e por isso ele foi a pedra, quando o Senhor lhe disse: ―Tudo o que ligares‖

etc.

Portanto, qualquer pessoa que resiste a este poder assim estabelecido por Deus

resiste à disposição divina, a não ser que, como maniqueu, admita que há dois princípios,

o que julgamos falso e herético, pois Moisés testemunha que não nos princípios, mas que

no princípio Deus criou o céu e a terra.

Por tudo isso declaramos, estabelecemos, definimos e afirmamos que

absolutamente necessário, para a salvação de toda a criatura humana, estar subordinada

ao Romano Pontífice.