o reconhecimento e a gratidão com os esforços de outros pioneiros

10
4 Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006 Santos-Dumont por ele mesmo O reconhecimento e a gratidão com os esforços de outros pioneiros Não fosse a audácia digna de todas as nossas homenagens, dos Capitaine Ferber, Lilienthal, Pilcher, Barão de Bradsky, Augusto Severo, Sachet, Charles, Morin, Delagrange, irmãos Nieuport, Chavez e tantos outros - verdadeiros mártires da Ciência - e hoje não assistiríamos, talvez, a esse progresso maravilhoso da Aeronáu- tica, conseguido, todo inteiro a custa des- sas vidas, de cujo sacrifício ficava sempre uma lição. Penso, a maior parte dos meus leitores serão jovens nascidos depois dessa época, que já se vai tanto ensombreando na memória; suplico-lhes, pois, não se esquecerem destes nomes. A eles cabe, em grande parte, o mérito do que hoje se faz nos ares... Sobre o pai Tudo lhe devo, desde os exemplos. Nascido na cidade de Diamantina, o Dr. Henrique Dumont, formou-se, em Enge- nharia, pela Escola Central de Paris e, de- pois de trabalhar vários anos na E.F. Cen- tral (foi em uma casita situada na gar- ganta João Aires que eu nasci) dedicou- se à lavoura no estado do Rio. Vendo que aí nada de grande podia fazer, partiu com minha mãe e oito filhos, então todos crianças, para Ribeirão Preto, que se acha- va a três dias de viagem a cavalo da ponta dos trilhos da Mogiana. Explorara, an- tes, o interior do estado de São Paulo e ficou maravilhado com as matas de Ribeirão Preto. Neste país essencialmente agrícola, ele foi o protótipo do fazendeiro audacioso, e, com uma energia tão grande como a sua confiança no futuro, desbravou sertões e cultivou o solo, aí trabalhou durante dez anos, ao cabo dos quais, por ter sido acometido de uma pa- ralisia, vendeu aquelas “matas”, então transformadas em cerca de 5.000.000 de cafeeiros, servidos por uma estrada de ferro particular, por ele construída e que os liga a Ribeirão Preto. Hoje, para que não morresse na memória dos homens a lembrança do valor desse audacioso, os ingleses, em significativa homenagem, conservaram em seu nome na companhia proprietária atual daquelas terras. Em 1905, a Dumont Coffee Company colheu, naquele cafezal, 498 mil arrobas; em 1911, obteve uma renda bruta de 3.883 contos de réis. Um de nossos grandes estadistas, depois de uma visita que fizera a meu pai, escreveu, em uma impressão de viagem, referindo-se àquela fazenda: Ali tudo é grande, tudo é imenso; só há uma coisa modesta; a casa onde mora o fundador de tudo aquilo. Primeiros tempos No Brasil, onde nasci em 20 de julho de 1873, o céu é tão belo, os pássaros voam tão alto e planam tão à vontade sobre as grandes asas estendidas, as nuvens sobem tão alegremente na pura luz do dia, onde se deitam tão languidamente, na atmosfera O pai, Henrique Dumont. Santos Dumont escreveu três livros, fez dis- cursos e deu entrevistas a orgãos da imprensa. Descrições de suas experiências, impressões, re- cordações e feitos são aqui apresentadas a partir de seus próprios textos (Seleção e Notas de Nel- son Studart).

Upload: buinhi

Post on 08-Jan-2017

223 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: O reconhecimento e a gratidão com os esforços de outros pioneiros

4 Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006Santos-Dumont por ele mesmo

O reconhecimento e a gratidão com osesforços de outros pioneiros

Não fosse a audácia digna de todas asnossas homenagens, dos Capitaine Ferber,Lilienthal, Pilcher, Barão de Bradsky,Augusto Severo, Sachet, Charles, Morin,Delagrange, irmãos Nieuport, Chavez etantos outros - verdadeiros mártires daCiência - e hoje não assistiríamos, talvez, aesse progresso maravilhoso da Aeronáu-tica, conseguido, todo inteiro a custa des-sas vidas, de cujo sacrifício ficava sempreuma lição.

Penso, a maior parte dos meusleitores serão jovens nascidos depois dessaépoca, que já se vai tanto ensombreandona memória; suplico-lhes, pois, não seesquecerem destes nomes. A eles cabe, emgrande parte, o mérito do que hoje se faznos ares...

Sobre o paiTudo lhe devo, desde os exemplos.

Nascido na cidade de Diamantina, o Dr.Henrique Dumont, formou-se, em Enge-nharia, pela Escola Central de Paris e, de-pois de trabalhar vários anos na E.F. Cen-tral (foi em uma casita situada na gar-ganta João Aires que eu nasci) dedicou-se à lavoura no estado do Rio. Vendo queaí nada de grande podia fazer, partiu comminha mãe e oito filhos, então todoscrianças, para Ribeirão Preto, que se acha-va a três dias de viagem a cavalo da pontados trilhos da Mogiana. Explorara, an-tes, o interior do estado de São Paulo eficou maravilhado com as matas deRibeirão Preto. Neste país essencialmenteagrícola, ele foi o protótipo do fazendeiroaudacioso, e, com uma energia tãogrande como a sua confiança no futuro,desbravou sertões e cultivou o solo, aítrabalhou durante dez anos, ao cabo dosquais, por ter sido acometido de uma pa-ralisia, vendeu aquelas “matas”, entãotransformadas em cerca de 5.000.000 decafeeiros, servidos por uma estrada de

ferro particular, por ele construída e queos liga a Ribeirão Preto. Hoje, para quenão morresse na memória dos homens alembrança do valor desse audacioso, osingleses, em significativa homenagem,conservaram em seu nome na companhiaproprietária atual daquelas terras. Em1905, a Dumont Coffee Companycolheu, naquele cafezal, 498 mil arrobas;em 1911, obteve uma renda bruta de3.883 contos de réis. Um de nossosgrandes estadistas, depois de uma visitaque fizera a meu pai, escreveu, em umaimpressão de viagem, referindo-se àquelafazenda: Ali tudo é grande, tudo é imenso;só há uma coisa modesta; a casa onde morao fundador de tudo aquilo.

Primeiros temposNo Brasil, onde nasci em 20 de julho

de 1873, o céu é tão belo, os pássaros voamtão alto e planam tão à vontade sobre asgrandes asas estendidas, as nuvens sobemtão alegremente na pura luz do dia, ondese deitam tão languidamente, na atmosfera

O pai, Henrique Dumont.

Santos Dumont escreveu três livros, fez dis-cursos e deu entrevistas a orgãos da imprensa.Descrições de suas experiências, impressões, re-cordações e feitos são aqui apresentadas a partirde seus próprios textos (Seleção e Notas de Nel-son Studart).

Page 2: O reconhecimento e a gratidão com os esforços de outros pioneiros

5Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006

embalsamada das noites, que basta levan-tar os olhos para ficar amante do espaço eda liberdade.

Cada ano, no dia 24 de junho, diantedas fogueiras de São João, que no Brasilconstituem uma tradição imemorial, eu en-chia dúzias destes pequenos “montgol-fiers”1 e contemplava extasiado a ascensãodeles ao céu.

Nesse tempo, confesso, meu autor fa-vorito era Jules Verne. A sadia imaginaçãodeste grande escritor, atuando com magiasobre as imutáveis leis da matéria, mefascinou desde a infância. Nas suas con-cepções audaciosas eu via, sem nunca meembaraçar em qualquer dúvida, a mecânicae a ciência dos tempos do porvir, em que ohomem, unicamente pelo seu gênio, setransformaria em semideus.

Com o capitão Nemo e seus convida-dos explorei as profundezas do oceano, nes-se precursor do submarino, o Nautilus.Com Fileas Fogg fiz em oitenta dias a voltaao mundo. Na “Ilha a Hélice” e na “Casa aVapor”, minha credulidade de menino sau-dou com entusiástico acolhimento o triun-fo definitivo do automobilismo, que nessaocasião não tinha ainda nome. Com HeitorServadac naveguei pelo espaço (...)

De 1888, mais ou menos, a 1891,quando parti pela primeira vez para a Euro-pa, li, com grande interesse, todos os livrosdesse grande vidente da locomoção aérea esubmarina. (…) Naquele tempo, só conhe-cia o existente em nossa fazenda, que erade um aspecto e peso fantástico; assim oeram, também, os tratores que meu paimandava vir da Inglaterra: puxavam duascarroças de café, mas pesavam muitastoneladas (...) Senti um bafejo de esperan-ça quando meu pai me anunciou que iaconstruir um caminho de ferro para ligara Fazenda à estação da Companhia Mogia-na; pensei que nessas locomotivas, que de-viam ser pequenas, iria encontrar base paraa minha máquina com que realizar asficções de Jules Verne. Tal não se deu; elaseram de aspecto ainda mais pesado. Fiquei,

então, certo de que Jules Verne era umgrande romancista.

Todas estas máquinas de que acabode falar [despolpadores, secadoras, des-cascadoras e separadoras de café], bemcomo as que forneciam a força motriz,foram os brinquedos de minha meninice.O hábito de vê-las funcionar diariamenteensinou-me, muito depressa, a repararqualquer das suas partes. As peneirasmóveis, com especialidade, arriscam-sea se avariar a cada momento. Sua veloci-dade bastante grande, seu balanço hori-zontal muito rápido, consumiam umaquantidade enorme de energia motriz.Constantemente fazia-se necessário tro-car as polias. E bem me recordo dos vãosesforços que todos empregávamos pararemediar os defeitos mecânicos do siste-ma.

Aos 7 anos, já eu tinha permissãopara guiar as locomóveis de grandesrodas empregadas na nossa propriedadenos trabalhos do campo. Aos 12, deixa-vam-me tomar o lugar do maquinistadas locomotivas Baldwin que puxavamos trens carregados de café nas 60 milhasde via férrea assentadas por entre asplantações. Enquanto meu pai e meus ir-mãos montavam a cavalo para irem maisou menos distante ver se os cafeeiroseram tratados, se a colheita ia bem ou seas chuvas causavam prejuízos, eu pre-feria fugir para a usina, para brincar comas máquinas de beneficiamento.

Eu já estava perfeitamente familia-rizado com a história de Montgolfier.Sabia da mania de aerostação que, comuma série de corajosas e brilhantes expe-riências, marcou de maneira signifi-cativa os últimos anos do século XVIII eos primeiros do século XIX. E haviadevotado um verdadeiro culto de admi-ração a Montgolfier, Charles2, Pilatre deRozier3 e Henry Giffard4, que haviamindissoluvelmente ligado os seus nomesaos grandes progressos da navegaçãoaérea.

Planos futurosEu queria, por minha vez, construir

balões. Durante as compridas tardes enso-laradas do Brasil, ninado pelo zumbido dosinsetos e pelo grito distante de algum pás-saro, deitado à sombra da varanda, eu medetinha horas e horas a contemplar o belocéu brasileiro e a admirar a facilidade comque as aves, com suas longas asas abertas,atingiam grandes alturas. E ao ver as nu-vens que flutuavam alegremente à luz dodia, sentia-me apaixonado pelo espaço livre.

Assim, meditando sobre a exploraçãodo grande oceano celeste, por minha vezeu criava aeronaves e inventava máquinas.

Tais devaneios eu os guardava comi-go. Nessa época, no Brasil, falar em inven-tar uma máquina voadora, um balão diri-gível, seria querer passar por desequilibradoou visionário. Os aeronautas que subiamem balões esféricos eram consideradoscomo profissionais habilíssimos, quasesemelhantes aos acrobatas de circo. Se ofilho de um fazendeiro de café sonhasse emse transformar em êmulo deles, cometeriaum verdadeiro pecado social.

1891 em ParisVou encontrar novidades em Paris - ba-

lões dirigíveis, automóveis. Paris, é comose diz, o lugar para onde emigra a almados bons americanos quando morrem.

Na França é que fora lançado o pri-meiro balão cheio com hidrogênio, que voa-ra a primeira aeronave com sua máquinaa vapor, seu propulsor de hélice e seu leme.

Santos-Dumont por ele mesmo

A família Dumont na fazenda Arindeúvaem Ribeirão Preto (circa 1880).

Brincadeira de infância: dirigir locomó-veis.

Santos Dumont quando jovem.

Page 3: O reconhecimento e a gratidão com os esforços de outros pioneiros

6 Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006

Naturalmente eu acreditava que a questãohavia avançado consideravelmente desdeque, em 1852, Henri Giffard, com umacoragem tão grande quanto a sua ciência,havia demonstrado de maneira magistrala possibilidade de dirigir um balão.

Eu me lembro que eu encontrei mui-tas pessoas que colocavam no mesmo pla-no o problema da direção de balões e aque-la do movimento perpétuo infligindo aosdois o mesmo nome irônico de quimera.Dieu Merci, a questão da direção dos balõesmostra-se lógica a todo mundo, enquantoque aquela o movimento perpétuo seráeternamente absurda.

Balões ou automóveis?Se eu arriscar mil e duzentos francos

pelo prazer de uma tarde, posso gostar,ou não. No segundo caso, empregarei meudinheiro em pura perda; no primeiro, fica-rei com vontade de repetir o divertimento,e não disporei de meios.

O dilema mostrou-me o caminho aseguir. Renunciei, não sem mágoa, àaerostação e fui buscar consolo no auto-mobilismo.

Os automóveis eram ainda raros emParis em 1891. Tive de ir à fábrica de Va-lentigney para comprar a minha primeiramáquina, uma Peugeot de estrada de trêse meio cavalos de força.

Era uma curiosidade. Nesse temponão existia ainda nem licença de automó-vel, nem exame de motorista. Quandoalguém dirigia a nova invenção pelas ruasda capital, era por sua própria conta e ris-co. E tal era o interesse popular que eunão podia parar em certas praças, comoa da Ópera, com receio de juntar a mul-tidão e interromper o trânsito.

De então em diante tornei-me adeptofervoroso do automóvel. Entretive-me aestudar os seus diversos órgãos e a açãode cada um. Aprendi a tratar e consertara máquina. E quando ao fim de sete meses,minha família voltou ao Brasil, levei co-migo a minha Peugeot.

É bem certo que se não houvesse mededicado à aerostação, ter-me-ia feitoentusiasta das corridas de automóveis,passando continuamente dum tipo praoutro, procurando constantemente umavelocidade superior, avançando com osprogressos da indústria, como fazemtantos e do novel espírito esportivo pari-siense.

A emancipaçãoUma manhã, em São Paulo, com

grande surpresa minha, convidou-memeu pai a ir à cidade e, dirigindo-se a umcartório de tabelião, mandou lavrarescritura de minha emancipação. Tinhaeu dezoito anos. De volta à casa, chamou-me ao escritório e disse-me: Já lhe dei hojea liberdade; aqui está mais este capital, eentregou-me títulos no valor de muitascentenas de contos. Tenho ainda algunsanos de vida; quero ver como você se conduz:vai para Paris, o lugar mais perigoso paraum rapaz. Vamos ver se você se faz umhomem; prefiro que não se faça doutor; emParis, com o auxílio de nossos primos, vocêprocurará um especialista em física, química,mecânica, eletricidade, etc., estude essas ma-térias e não se esqueça que o futuro do mundoestá na mecânica. Você não precisa pensarem ganhar a vida; eu lhe deixarei o necessáriopara viver...

1898 em ParisChegando a Paris, decidi-me a deixar

de lado os aeronautas profissionais e diri-gir-me aos construtores. Meu empenhoparticular era conhecer o sr. Lachambre,que havia construído o balão de Andrée, eseu associado o sr. Machuron, autor do li-vro5. Digo com toda a sinceridade queencontrei neles o acolhimento que desejava.Quando perguntei ao sr. Lachambre o preçode um ligeiro passeio em balão, fiquei tãosurpreso com a resposta que lhe pedi marepetisse: Uma ascensão de três ou quatrohoras, com todas as despesas pagas, inclui-ndo o transporte de volta dobalão em caminho de ferro,custar-lhe-á 250 francos. [....]Fechei imediatamente o negó-cio. E combinamos tudo paraa manhã do outro dia.

Primeira ascensão6

Guardo uma recordaçãoindelével das deliciosas sensa-ções de minha primeira ten-tativa aérea. Cheguei cedo aoparque de aerostação de Vau-girard, a fim de não perdernenhum dos preparativos. Obalão, de uma capacidade desetecentos e cinqüenta metroscúbicos, jazia estendido sobrea grama. A uma ordem do Sr.Lachambre, os operárioscomeçaram a enchê-lo de gás.E em pouco a massa informecomeçou a se transformarnuma vasta esfera.

Às 11 horas os preparativos estavamterminados. Uma brisa fresca acariciavaa barquinha, que se balançava suavemen-te sobre o chão. A um dos cantos dela,com um saco de lastro na mão, eu aguar-dava com impaciência o momento dapartida. Do outro, o Sr. Machuron gritou:- Lâchez tout! No mesmo instante, o ventodeixou de soprar. Era como se o ar emvolta de nós se tivesse imobilizado. É quehavíamos partido, e a corrente de ar queatravessávamos nos comunicava suaprópria velocidade. Eis o primeiro grandefato que se observa quando se sobe numbalão esférico.

Esse movimento imperceptível demarcha possui um sabor infinitamenteagradável. A ilusão é absoluta. Acreditar-se-ia, não que é o balão que se move, masé a terra que foge dele e se abaixa. No fun-do de um abismo que se cavava sob nós,a mil e quinhentos metros, a terra, emlugar de parecer redonda como uma bola,apresentava a forma côncava de uma tige-la, por efeito de um fenômeno de refraçãoque faz o círculo do horizonte elevar-secontinuamente aos olhos do aeronauta.

Aldeias e bosques, prados e castelosdesfilavam como quadros movediços emcima dos quais os apitos das locomotivasdesferiam notas agudas e longínquas.Com os latidos dos cães, eram os únicossons que chegavam ao alto. A voz huma-na não vai a essas solidões sem limites.As pessoas apresentavam o aspecto de for-migas caminhando sobre linhas brancas,as estradas; as filas de casas assemelha-

Santos-Dumont por ele mesmo

Santos Dumont em sua primeira ascensão descrita emdetalhes em Os Meus Balões.

Page 4: O reconhecimento e a gratidão com os esforços de outros pioneiros

7Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006

vam-se a brinquedos de crianças.A sombra assim produzida [por uma

nuvem que encobriu o sol] provocou umesfriamento do gás do balão que, mur-chando, começou a descer, a princípio len-tamente, depois com velocidade cada vezmaior. Para reagir, deitamos lastro fora.

Sobre esse fundo de alvura imaculada,[acima da camada de nuvens] o sol proje-tava a sombra do balão; e nossos perfis,fantasticamente aumentados, desenha-vam-se no centro de um triplo arco-íris.

O calor do sol, pondo as nuvens emebulição, fazia-as lançar em derredor denossa mesa [um almoço com ovos duros,vitela e frangos frios, queijo, gelo, frutos,doces e regado a champanhe, café e licor]jatos irisados de vapor gelado, compará-veis a grandes feixes de fogos de artifício.A neve, como que por obra de um milagre,espargia-se em todos os sentidos, em lin-das e minúsculas palhetas brancas. Porinstantes os flocos formavam-se, espon-tâneos, sob os nossos olhos, mesmo nosnossos corpos.

Acabava eu de beber um cálice de licorquando uma cortina desceu subitamentesobre esse admirável cenário de sol,nuvens e céu azul. O barômetro elevou-se rapidamente cinco milímetros, indican-do brusca ruptura do equilíbrio e umadescida precipitada. O balão devia ter-sesobrecarregado de muitos quilos de neve;caía como uma nuvem.

A neblina nos envolveu em umaobscuridade quase completa. Distinguía-mos ainda a barquinha, nossos instru-mentos, as partes mais próximas do cor-dame. Mas a rede que nos prendia ao balãonão era mais visível senão até certa altura;e o balão, ele próprio, desaparecera.

Experimentamos assim, e por instan-tes, a singular sensação de estarmos sus-pensos no vácuo, sem nenhuma susten-tação, como se houvéssemos perdidonosso último grama de gravidade e nosachássemos prisioneiros do nada opaco.

Após alguns minutos de uma quedaque amortecemos soltando lastro, vimo-nos abaixo das nuvens, a uma distânciade cerca de 300 metros do solo. A nuvemque provocara a nossa descida era prenún-cio de uma mudança de tempo. Pequenasrajadas começavam a impelir o balão dadireita para a esquerda e de cima para bai-xo. De espaço a espaço o guide-rope7 - umagrande corda de uns 100 metros de com-prido, que flutuava fora da barquinha, -tocava no chão. A barquinha não tardou

por sua vez a roçar as copas das árvores.O que se denomina fazer o guide-rope apre-sentou-se-me assim em condições parti-cularmente instrutivas. Tínhamos aoalcance da mão um saco de lastro: se umobstáculo qualquer se apresentasse nocaminho soltávamos alguns punhados deareia; o balão subiria um pouco e a difi-culdade seria vencida. Mais de 50 metrosdo cabo arrastavam-se já pelo chão. Nãoera preciso tanto para nos mantermos emequilíbrio a uma altitude inferior a 100metros, pois havíamos decidido não exce-der disso até o fim da viagem.

Durante um quarto de hora fomossacudidos como um cesto de legumes esó nos libertamos aliviando um pouco delastro. O balão deu então um pulo terrívele foi como uma bala furar as nuvens.Estávamos ameaçados de atingir alturasque depois nos podiam ser perigosas paraa descida, dada a pequena provisão delastro de que já dispúnhamos. Era tempode recorrer a meios mais eficazes: abrir aválvula de manobra para que o gásescapasse. Foi obra dum minuto. O balãoretomou a descida e o guide-rope tocou de novo o solo.Não nos restava senão darpor encerrada aí a excursão;a areia estava quase todaesgotada8.

[O local de aterrisagem]pertencia ao parque do cas-telo de La Ferrière, proprieda-de do sr. Alphonse deRothschild. (…) Partimospara a estação da estrada deferro, [...] Às seis e meiaestávamos novamente emParis. Havíamos efetuado umpercurso de 100 quilômetrose passeado quase duas horas.

O primeiro balão “Brasil”De volta, em caminho de

ferro, pois descêramos longe,transmiti ao piloto o meudesejo de construir, paramim, um pequeno balão.Tive como resposta que a fá-brica a que ele pertencia, ti-nha, havia pouco, recebidoamostras de seda do Japão degrande beleza e peso insigni-ficante. No dia seguinteestava eu no atelier dos cons-trutores. Apresentaram-meprojetos, mostraram-me

sedas... Propuseram-me fazer construirum balão de 250 metros cúbicos...

Tomei a palavra:- O Sr. disse-me ontem que o peso

dessa seda, depois de envernizada, é detantos gramas; o gás hidrogênio puroeleva tal peso; desejo uma barquinha mi-núscula e, pelo que vi ontem, um saco delastro me será bastante para passar algu-mas horas no ar; eu peso 50 quilos;conclusão: quero um balão de cem metroscúbicos - grande espanto! Creio mesmoque pensaram que eu era doido.

Alguns meses depois, o “Brasil”, comgrande espanto de todos os entendidos,atravessava Paris, lindo na sua transpa-rência, como uma grande bola de sabão.As suas dimensões eram: diâmetro 6 me-tros, volume 113 metros cúbicos, a sedaempregada (113 metros quadrados) pe-sava 3 quilos e meio, envernizada e pron-ta, 14 quilos. A rede envolvente e cordasde suspensão pesavam 1.800 gramas. Abarquinha, 6 quilos. A corda-guia (cordade compensação), comprido de 6 metros,pesava 8 quilos, uma ancorazinha, 3 qui-los. Os meus cálculos tinham sido exatos:parti com mais de um saco de lastro.

Santos-Dumont por ele mesmo

O primeiro balão, o “Brasil” (1898).

Page 5: O reconhecimento e a gratidão com os esforços de outros pioneiros

8 Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006

Este minúsculo “Brasil” despertougrande curiosidade. Era tão pequeno quediziam que eu viajava com ele dentro daminha mala!

Nele e em outros, fiz, em vários me-ses, amiudadas viagens, em que ia pene-trando na intimidade do segredo das ma-nobras aéreas.

Em direção aos dirigíveis: Adquirindoexperiência

Antes da minha primeira ascensão nopequenino “Brasil”, fiz vinte e cinco outrinta em balões esféricos comuns, intei-ramente só, ao mesmo tempo capitão epassageiro único. O sr. Lachambre, quese encarregara de diversas ascensões públi-cas, permitiu-me realizar algumas em seulugar. Foi assim que subi em diversas ci-dades da França e da Bélgica. Isto evitavatrabalho ao sr. Lachambre, a quem euindenizava de todas as despesas e incômo-dos, proporcionava-me prazer e permitia-me praticar o “sport”. A combinação aco-modava a nós dois.

Duvido que, sem uma série de estudose experiências preliminares em balão esfé-rico, um homem obtenha qualquer pro-babilidade de ser bem sucedido com umdirigível alongado, cujo manejo é muitomais delicado. Antes de tentar conduziruma aeronave é indispensável ter, a bordodum balão ordinário, aprendido as condi-ções do meio atmosférico, feito conheci-mento com os caprichos do vento, pene-trado a fundo as dificuldades que apresen-ta o problema do lastro, sob o trípliceaspecto da partida, equilíbrio aéreo e ater-rissagem.

Compreender-se-á, assim, que mani-festo grande surpresa quando vejo inven-tores, sem nunca terem posto os pés numabarquinha, desenharem no papel e atéexecutarem, no todo ou em parte, fantás-ticas aeronaves, com balões cubando mi-lhares de metros, carregados de enormesmotores que eles não conseguem levantardo chão, e providos de máquinas tão com-plicadas que nada faz marcharem. Os in-ventores desta classe nunca manifestammedo porque não fazem nenhuma idéiadas dificuldades do problema. Se houves-sem começado por viajar nos ares ao sabordo vento, enfrentando as influências hos-tis dos fenômenos atmosféricos, compre-enderiam que um balão dirigível, para serprático, requer, antes de mais nada, umaextrema simplicidade de mecanismos.

Alguns infelizes construtores, que pa-garam com a vida sua triste imprudência,jamais haviam efetuado uma subida embalão esférico, como capitão e sob sua pró-pria responsabilidade. A maior parte dosseus êmulos de hoje, tão devotados às suastarefas, encontra-se ainda nas mesmascondições de inexperiência. Assim se expli-cam para mim seus insucessos. Estão namesma situação de quem, sem haver ja-mais deixado a terra firme ou posto ospés num bote, pretendessem construir ecomandar um transatlântico.

Uma educação informal(...) com o auxílio dos primos, fui

procurar um professor. Não poderia tersido mais feliz; descobrimos o Sr. Garcia,respeitável preceptor, de origem espanho-la, que sabia tudo. Com ele estudei pormuitos anos9.

Início do inventor - o n° 1Comprei um dia um triciclo a petró-

leo. Levei-o ao “Bois de Boulogne” e, portrês cordas, pendurei-o num galho hori-zontal de uma árvore, suspendendo-o aalguns centímetros do chão. Édifícil explicar o meu conten-tamento ao verificar que, aocontrário do que se dava em terra,o motor do meu triciclo, suspenso,vibrava tão agradavelmente quequase parecia parado. Neste diacomeçou a minha vida de inven-tor.

Corri à casa, iniciei os cálculose os desenhos do meu balão n° 1.Nas reuniões do Automóvel Club- pois o Aeroclube não existia ainda- disse aos meus amigos quepretendia subir aos ares levandoum motor de explosão sob umbalão fusiforme. Foi geral o es-panto: chamavam de loucura omeu projeto. O hidrogênio era oque havia de mais explosivo! Sepretendia suicidar-me, talvez fossemelhor sentar-me sobre um barrilde pólvora em companhia de umcharuto aceso. Não encontreininguém que me encorajasse.

A 18 de setembro [1898],minha primeira aeronave, o “San-tos Dumont n° 1” estava estendidasobre a relva, entre as lindasárvores do jardim. (...) Parti do lo-cal, que eles me indicaram, e no

mesmo segundo, tal como eu receava,meu navio aéreo foi se rasgar contra asárvores. O acidente serviu, pelo menos,para demonstrar aos incrédulos a efi-ciência do meu motor e do meu propulsor.

Não perdi tempo em lamentações.Dois dias mais tarde, a 20 de setembro,largava do mesmo campo, desta vez, po-rém, do ponto escolhido por mim. Trans-pus sem acidentes o cimo das árvores, elogo em seguida comecei a fazer evoluçõespara a demonstração da aeronave aosparisienses acorridos em multidão. Tiveentão, como sem cessar, daí por diante,os aplausos e a simpatia do povo de Paris,com quem meus esforços sempre encon-traram um testemunho generoso e entu-siasta. Sob a ação combinada do propul-sor, que lhe imprimia movimento, doleme, que lhe permitia a direção, do guide-rope que eu deslocava, e dos dois sacos delastro que eu fazia deslizar conforme aminha fantasia, ora para diante, ora paratrás, logrei a satisfação de evoluir em to-dos os sentidos, da direita para a esquerda,de cima para baixo e de baixo para cima.(...) Enquanto estive subindo, o hidrogê-nio, em razão da depressão atmosférica,aumentou de volume; e o balão, bem esti-

Santos-Dumont por ele mesmo

Na cesta do n° 1.

Page 6: O reconhecimento e a gratidão com os esforços de outros pioneiros

9Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006

cado, conservou sua rigidez; tudo ia pelomelhor. A complicação foi, porém, nadescida. A bomba de ar destinada a obviara contração do hidrogênio mostrou-se decapacidade insuficiente. O longo cilindro,que formava o invólucro, repentinamentecomeçou a dobrar-se pelo meio, como umcanivete. (…) A descida transformava-seem queda. Por felicidade (…) um grupode meninos brincava com papagaios. Umasúbita idéia atravessou-me o espírito:gritei-lhes que agarrassem o meu guide-rope, que já tocava o solo, e corressem comtoda a força contra o vento. Eram garotosinteligentes, pegaram no instante propícioa idéia e a corda. E o resultado deste auxilioin extremis foi imediato, e tal qual euesperava. A manobra amorteceu a violên-cia da queda e evitou-me, pelo menos, umchoque perigoso. Estava eu salvo pela pri-meira vez! Agradeci o inestimável serviçodos bravos meninos, que ainda me aju-daram a arrumar as coisas dentro da bar-quinha. Chamei uma carruagem, e trans-portei para Paris as relíquias da aeronave.

N° 5 - O quase vitorioso - Tentando oprêmio Deutsch

Chego agora ao dia terrível: 8 de agos-to de 1901. Em presença da ComissãoCientífica do Aeroclube, larguei-me paraa Torre Eiffel. Contornei-a ao cabo de9 minutos e tomei a direção de SaintCloud. Por infelicidade, um acidente en-fraquecera a mola de uma das válvulasautomáticas e o balão perdia hidrogênio.Arrisquei prosseguir. O balão contraía-sevisivelmente; a tal ponto que ao alcançaras fortificações de Paris, perto de La Muet-

te, as cordas de suspensão arqueavam-setanto que as mais vizinhas do propulsorengancharam-se na hélice em marcha. Vio propulsor cortá-las e arrancá-las. Pareio motor. O vento, que soprava com força,levou instantaneamente o aparelho parao lado da Torre Eiffel. Ao mesmo tempo,eu caía. A perda de gás era considerável.Teria podido atirar fora muito lastro eamortecer sensivelmente a queda, masassim o vento teria tempo de me jogarcontra os ferros do grande monumento.Preferi deixar a aeronave ir a seu modo(…)

Eu caía. E o vento me levava para aTorre Eiffel (…) a extremidade do meu ba-lão alongado, que conservava ainda todoo seu gás, foi bater contra um telhadomesmo no momento de franqueá-lo. Obalão estourou, com um grande barulho(…) encontrava-me suspenso, na minhabarquinha de vime, por cima do pátio dosedifícios do Trocadero.

N° 6 - O prêmio DeutschIniciei a construção de um novo balão

e novo motor, este um pouco mais forte,aquele um pouco maior. Três semanas,contadas dia por dia, após o último de-sastre, meu aparelho, o n° 6, estava pron-to. O tempo, porém, continuava mau. Em19 de outubro [1901], à tarde, pois amanhã foi chuvosa, a partida oficial tevelugar ás 2 horas e 42. Embora o ventome açoitasse de lado, com tendência paralevar-me para a esquerda da Torre,mantive-me na sua linha direta. Avanceielevando gradualmente a aeronave a umaaltitude de 10 metros acima do seu pico.Esta manobra fazia-me perder tempo,mas premunia-me, na medida do possível,contra todo perigo de contato com o mo-numento. Subi de novo, contornei a Torre,a uma altura de 250 metros, sobre umaenorme multidão que aí estacionava àminha espera. A volta foi demorada. Ovento era contrário. O motor, que até en-tão havia se comportado bem, assim quedeixou a Torre para trás uns 500 metros,ameaçou parar. Tive um instante de graveindecisão. Era preciso tomar uma medidarápida. Com o risco de desviar o rumo,abandonei por um momento o leme a fimde concentrar a atenção na maneta docarburador e na alavanca de comando dafaísca elétrica.

O motor, que havia quase parado,retomou o seu ritmo. Eu acabava de atin-gir o Bosque [de Bolonha]. Aí, por umfenômeno que bem conhecem todos osaeronautas, a frescura das árvores come-çou a fazer o balão progressivamente mais

pesado. E por desagradável coincidência,o motor voltou a moderar a velocidade.De tal sorte que a aeronave descia ao mes-mo tempo que a força motriz tomava-semenor. Para me opor à descida tive queempurrar para trás o guide-rope e os pe-sos deslocáveis. A aeronave tomou umaposição diagonal e o que restava de energiaao propulsor fê-lo remontar de modo con-tínuo.

Eu havia chegado à pista do campode corridas d’Auteuil. O aparelho passavapor cima do público, com a proa levantadamuito alto, e eu ouvia os aplausos daenorme multidão, quando, repentina-mente, meu caprichoso motor readquiriusua plena velocidade. Subitamente acele-rado, o propulsor, que se encontrava qua-se sob a aeronave, tão empinada ia esta,exagerou ainda mais a inclinação. Àsovações sucederam-se gritos de alarme.

Da minha saída ao momento em quepassei do zênite do ponto de partida, de-correram 29 minutos e 30 segundos. Coma velocidade que levava, passei a linha dachegada - como fazem os yachts, os bar-cos a petróleo, os cavalos de corridas, etc.- , diminuí a força do motor e virei debordo; então, voltando, e com menos ve-locidade, manobrei para tocar a terra, oque fiz em 31 minutos após minha par-tida. Não sabia ainda qual o tempo exato.Gritei: - Ganhei? Foi a multidão que merespondeu: - Sim! Pois bem, alguns se-nhores quiseram que fosse esse o tempooficial! Grandes polêmicas. Tive comigotoda a imprensa e o povo de Paris e tam-

Santos-Dumont por ele mesmo

A queda do n° 1.

Resgate do n° 5 pelos bombeiros de Paris.

Page 7: O reconhecimento e a gratidão com os esforços de outros pioneiros

10 Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006

bém Son Altesse Imperiale le Prince RolandBonaparte, presidente da Comissão Cien-tífica que ia julgar o assunto. O voto mefoi favorável.

N° 9 - Balladeuse - O sucessoDepois do meu n° 6, construí vários

outros balões, que não me deram os resul-tados desejados. Há um ditado que ensina“o gênio é uma grande paciência”; sempretender ser gênio, teimei em ser umgrande paciente. As invenções são, sobre-tudo, o resultado de um trabalho teimoso,em que não deve haver lugar para o esmo-recimento. Consegui, afinal, construir omeu n° 9; com ele pude alcançar algumacoisa; fiz dezenas de passeios sobre Paris,fui várias vezes às corridas, dele me apeeià porta de minha casa, na Avenida dosCampos Elíseos, e nele, quase todas as noi-tes, fiz corso sobre o Bois de Boulogne. Aminha presença com ele na revista militarde Longchamps, em 14 de julho de 1903,causou um imenso sucesso.

Um menino de sete anos subiu comi-go no n° 9. Uma encantadora mocinha odirigiu literalmente, sozinha, durante umpercurso de cerca de uma milha. O meninoera o pequeno Clarkson Potter, que seráseguramente, um magnífico capitão de

aeronave, se quiser aprovei-tar deste lado sua inteli-gência. O caso passou-se a26 de junho de 1903. Rea-lizava-se uma festa infantilem Bagatelle. Desci com on° 9 no meio desse pequenomundo, e perguntei: - Háalgum menino que queirasubir comigo?

(…) Tive de escolherentre uma dúzia de volun-tários. Levei o mais pró-ximo.

Quanto à outra cir-cunstância, a da primeiramulher que subiu numa aeronave, comou sem companheiro, merece ser conser-vada nos anais da navegação aérea, poisa moça subiu sozinha e dirigiu o meu n°9. A heroína, uma jovem e lindíssimacubana [Aída D´Acosta], muito relacio-nada na sociedade de Nova York, (…) ma-nifestara-me seu ardente desejo de voar.(…) O simples fato de haver consentido,com a condição que a pretendenterecebesse primeiramente algumas liçõespara a manobra do motor e dos maqui-nismos, diz eloqüentemente, suponho, daminha confiança no n° 9. Essas lições fo-ram em número de três, após o que,quando chegou a data de 29 de junho de1903, que ficará memorável na históriada aerostação navegável, minha jovemdiscípula elevou-se dos terrenos da minhaestação, no menor dos dirigíveis pos-síveis.

[O n° 9] foi o mais popular de todosos meus filhos, só mais tarde suplantadopela minúscula Demoiselle.

14 bisDormi três anos e no mês de julho

de 1906 apresentei-me no campo de

Santos-Dumont por ele mesmo

Bagatelle com o meu primeiro aeroplano.Perguntar-me-á o leitor porque não oconstruí mais cedo, ao mesmo tempo queos meus dirigíveis. É que o inventor,como a natureza de Lineu, não faz saltos;progride de manso, evolui. Comecei porfazer-me bom piloto de balão livre e sódepois ataquei o problema de sua diri-gibilidade. Fiz-me bom aeronauta nomanejo dos meus dirigíveis; durantemuitos anos, estudei a fundo o motor apetróleo e só quando verifiquei que o seuestado de perfeição era bastante parafazer voar, ataquei o problema do maispesado que o ar. A questão do aeroplanoestava, havia já alguns anos, na ordemdo dia; eu, porém, nunca tomava partenas discussões, porque sempre acrediteique o inventor deve trabalhar em silêncio;as opiniões estranhas nunca produzemnada de bom.

Abandonei meus balões (…) Emcompleto silêncio trabalhei três anos, atéque, em fins de julho, após uma assem-bléia do Aeroclube, convidei meus amigosa assistirem minhas experiências, no diaseguinte. Foi um espanto geral. Todomundo queria saber como era o aparelho.A suas dimensões eram: comprimento,10 metros; envergadura, 12 metros;

O Balladeuse - seu grande sucesso.

O híbrido 14-bis.

Pronto para decolar no 14-bis.Aída d’Acosta, voou sozinha no n° 9.

Page 8: O reconhecimento e a gratidão com os esforços de outros pioneiros

11Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006 Santos-Dumont por ele mesmo

superfície total, 80 metros quadrados;peso, 160 quilos; motor, 24 HP. Era umaparelho grande e biplano e assim o fiz,apenas, a fim de reunir maiores facili-dades para voar, pois sempre preferi osaparelhos pequenos, tanto que meesforcei para inventá-los, o que conseguicom o minúsculo Demoiselle, o aeroplanoideal para o amador. Continuando naminha idéia de evolução, dependurei omeu aeroplano em meu último balão, on° 14; por esta razão, batizaram aquelecom o nome de 14-bis. Com esse con-junto híbrido, fiz várias experiências emBagatelle, habituando-me, dia a dia, como governo do aeroplano, e só quando mesenti senhor das manobras é que medesfiz do balão.

Lutei, a princípio, com as maioresdificuldades para conseguir a completaobediência do aeroplano. Era o mesmo que

tentar arremessar uma flecha com a caudapara a frente. Em meu primeiro vôo, após60 metros, perdi a direção e caí.

Este meu primeiro vôo, de 60 metros,foi posto em dúvida por alguns, que o qui-seram considerar apenas um salto. Eu,porém, no íntimo, estava convencido deque voara e, se me não mantive mais tem-po no ar, não foi culpa de minha máquina,mas exclusivamente minha, que perdi adireção. Com grande velocidade, conserteirapidamente o aparelho, fiz-lhe algumaspequenas modificações e, durante algu-mas semanas, “rodei” em Bagatelle a fimde me aperfeiçoar no seu difícil governo.Logo depois, (…) perante a ComissãoCientífica do Aeroclube e de grande mul-tidão, fiz o célebre vôo de 250 metros, queconfirmou inteiramente a possibilidade deum homem voar.

Um público numeroso assistiu aos

primeiros vôos feitos por um homem,como tais, reconhecidos por todos os jor-nais do mundo inteiro. Basta abri-los,mesmo os dos Estados Unidos, para seconstatar essa opinião geral. Podia citartodos os jornais e revistas do mundo,todos foram, então, unânimes em glori-ficar esse minuto memorável na história danavegação aérea.

Demoiselle - A jovem donzelaNessa época, os aparelhos eram gran-

des, enormes, com pequenos motores,voavam devagar, uns 60 quilômetros porhora ou pouco mais. Mandei, então, cons-truir um motor especial de minha inven-ção, desenhado especialmente para umaeroplano minúsculo.

Este motor possuía dois cilindrosopostos, o que trás a inconveniência dadificuldade de lubrificação, mas, também,as vantagens consideráveis de um pesopequeno e um perfeito equilíbrio, nãoultrapassado por qualquer outro motor.Pesava 40 quilos e desenvolvia 35 HP.

A Demoiselle media 10 metros qua-drados de superfície de asas; era 8 vezesmenor que o 14-bis! Com ela, durante umano, fiz vôos todas as tardes e fui, mesmo,em certa ocasião, visitar um amigo emseu Castelo. Como era um aeroplanopequenino e transparente, deram-lhe onome de Libelule ou Demoiselle. Este foi,de todos os meus aparelhos, o mais fácilde conduzir, e o que conseguiu maior po-pularidade. Com ele obtive a “Carta de pi-loto” de monoplanos. Fiquei, pois, possui-dor de todas as cartas da Federação Aero-náutica Internacional: - Piloto de balãolivre, piloto de dirigível, piloto de biplanoe piloto de monoplano. Durante muitosanos, somente eu possuía todas essas car-tas, e não sei mesmo se há já alguém que

O avião “moderno”: versão do Demoiselle de 1907. Cavaleiro da Legião de Honra francesa (1904).

14 bis, decolagem e vôo

Page 9: O reconhecimento e a gratidão com os esforços de outros pioneiros

12 Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006

as possua. Fui, pois, o único homem a terverdadeiramente direito ao título de aero-nauta, pois conduzia todos os aparelhosaéreos. Para conseguir este resultado mefoi necessário não só inventar, mas tam-bém experimentar, e nestas experiênciastinha, durante dez anos, recebido os cho-ques mais terríveis; sentia-me com os ner-vos cansados.

Sobre os irmãos WrightNo ano seguinte (1907) o aeroplano

Farman fez vôos que se tornaram célebres;foi esse inventor-aviador que primeiroconseguiu um vôo de ida-e-volta. Depoisdele, veio Bleriot, e só dois anos mais tardeé que os irmãos Wright fazem os seusvôos. É verdade que eles dizem ter feitooutros, porém às escondidas. Eu nãoquero tirar em nada o mérito dos irmãosWright, por quem tenho a maior admi-ração; mas é inegável que, só depois denós, se apresentaram eles com um apa-relho superior aos nossos, dizendo que eracópia de um que tinham construído an-tes dos nossos.

Sobre patentesSe quer prestar-me um grande obsé-

quio, declare, pelo seu jornal, que, desejosode propagar a locomoção aérea, eu ponhoà disposição do público as patentes de in-venção o meu aeroplano. Toda a gente temo direito de construí-lo e, para isso, podevir pedir-me os planos. O aparelho nãocusta caro. Mesmo o motor não chega a5.000 francos10.

Abandona o campo de provasAnunciei a meus amigos a intenção

de pôr fim à minha carreira de aeronauta,tive a aprovação de todos.

Sobre o uso de aviões na guerraEm 14 de julho de 1903, voei sobre a

revista militar de Longchamps. Nela to-mavam parte 50.000 soldados e em seusarredores se acotovelavam 200.000 espec-tadores. Foi a primeira vez que a navega-ção aérea figurou em uma demonstraçãomilitar. Naquela época, predisse que aguerra aérea seria um dos aspectos maisinteressantes das futuras campanhas mili-tares. Minha predição foi ridicularizadapor alguns militares; outros, entretanto,houve que, desde logo, alcançaram asfuturas e imensas utilidades da navegaçãoaérea.

Pessoalmente creio que se usará oaeroplano para correspondência e tambémpara os passageiros entre os dois conti-nentes, provavelmente muito em breve.Sem dúvida esta opinião motivará gestosde incredulidade e a predição será acolhida

com sorriso. Quando há doze anos disseque as máquinas aéreas seriam importan-tíssimas para o desenvolvimento das guer-ras futuras, toda a gente teve igualmentetais gestos e tais sorrisos. (...) Os militarescontradiziam-me, considerando o aero-plano como um joguete, e resistiram aomeu propósito de discutir seriamente oassunto. Considera-se, agora, pelos acon-tecimentos posteriores, a inapreciávelutilidade que o aeroplano alcançou nosexércitos. Na presente guerra, o aviãorevolucionou os processos. A grandeimportância da cavalaria desapareceu11.

Consideremos, entretanto, os aconte-cimentos desde aquela época. Considere-mos o valioso trabalho que o aeroplanotem produzido na atual guerra. A aviaçãorevolucionou a arte da guerra. A cavala-ria, que teve grande importância em mo-mentos valiosos, deixou de existir. Oaeroplano provou a sua importância su-prema nos reconhecimentos. De seu bor-do, podem-se locar as trincheiras inimi-gas, observar os seus movimentos, otransporte de tropas, munições e canhões.De bordo do aeroplano, por meio de tele-grafia sem fios, ou de sinais, pode-sedirigir o fogo das forças. Por meio de infor-mações transmitidas pelo telégrafo semfios, grandes peças de artilharia podemprecisar seus tiros contra as trincheiras ebaterias inimigas. O avião é de maior valorna defesa das costas do que os cruzadores.

A aviação demonstrou-se a mais efi-caz arma de guerra tanto na ofensiva co-mo na defensiva. Desde o início da guerra,os aperfeiçoamentos do aeroplano têmsido maravilhosos.

Quem, há cinco anos atrás, acredi-taria na utilização de aeroplanos para ata-car forças inimigas? Que os projéteis decanhões poderiam ser lançados com efei-tos mortíferos de alturas inacessíveis aoinimigo?

Desde o começo da guerra, os apare-lhos têm melhorado. Têm sido aumenta-dos em dimensões e alguns, hoje, são feitosexclusivamente de aço. Os motores igual-mente se têm aperfeiçoado. O maisespantoso acontecimento foi o desenvol-vimento dos canhões para aeroplanos. Aprincípio, o recuo dos canhões, ao atirar,constituía a maior dificuldade relativa aosataques aéreos. Os constantes e repetidoschoques do contragolpe do disparo mes-mo de pequenos canhões, logo bambea-vam as frágeis estruturas dos aeroplanosassim utilizados, pondo-os fora de uso.Este inconveniente já está sanado. Novoscanhões foram inventados, que não pro-duzem contrachoque. Consistem em umtubo do qual são expelidos dois projéteis,

Brincando com as asas.

Evolução da assinatura.

Santos-Dumont por ele mesmo

Page 10: O reconhecimento e a gratidão com os esforços de outros pioneiros

13Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006

Fontes PrimáriasSantos Dumont. Os Meus Balões, tradução de

Dans L’Air, Paris (1904) - Fundação doProjeto Rondon, Brasília (1986). Dispo-nível em www.dominiopublico. gov.br.

Santos Dumont. O Que Vi, O Que Veremos (Edi-ção do Autor, Petrópolis, 1918). Novaedição, Hedra (2002).

Fontes SecundáriasHenrique Lins de Barros, Santos Dumont - O

Homem Voa! (Contraponto, Rio de Ja-neiro, 2002).

Henrique Lins de Barros, Santos Dumont e aInvenção do Vôo (Jorge Zahar, Rio de Ja-neiro, 2003).

Henrique Lins de Barros, Desafio do Ar: Os Pio-neiros Brasileiros da Aeronáutica: 1709-1914 (Metalivros, Rio de Janeiro, 2006).

Alexandre Medeiros, Santos Dumont e a Físicado Cotidiano (Editora Livraria da Física,São Paulo, 2006).

Notas1Étienne e Joseph Mongolfier construíram

enormes balões de ar quente e fizeraminúmeras demonstrações. O primeirovôo tripulado (um pato, um galo e

uma ovelha) foi realizado diante do reiLuís XVI da França em 19 de setembrode 1783.

2Alexander César Charles inventou o balão dehidrogênio (elemento descoberto porHenry Cavendish em 1766) e subiu pelaprimeira vez em 27 de agosto de 1783.

3Pilâtre de Rozier e o Marquês d’Arlandes reali-zaram o primeiro vôo em um balãoMongolfier, com duração de 25 minutos,em 21 de novembro de 1783.

4Henri Giffard, em 1852, dirigiu de modo pre-cário um balão alongado com um motora vapor.

5Aléxis Machuron e Henri Lachambre escreve-ram o livro de aventuras Andrée au PôleNord em Ballon que descrevia também osdetalhes técnicos da preparação e do vôode um balão exploratório rumo ao PóloNorte a ser realizado pelo cientista suecoSalomon August Andrée. A expediçãopartiu em 11 de julho de 1897 e teve umtriste fim com a morte dos tripulantesno gelo.

6Balão esférico construído pela Maison Lacham-bre e pilotado por Machuron.

7A corda-guia ou cabo pendente.

8Alexandre Medeiros no livro Santos Dumonte a Física do Cotidiano (Editora Livrariada Física, São Paulo) discute com clarezaas questões científicas que permeiam asdescrições de Santos Dumont de suasinvenções e experiências. A descrição doprimeiro vôo é rica em conceitos comoa inércia, a imponderabilidade, o vácuo,corpos em equilíbrio, atrito; princípiose leis como as de Newton e dos gasesperfeitos; e fenômenos como o efeitoDopler, o espalhamento de luz pelas nu-vens, a formação de arco-íris, a opa-lescência crítica e ilusões ópticas.

9Ver artigos de Alexandre Medeiros neste nú-mero da FnE.

10Entrevista ao jornal Le Matin em 15 de de-zembro de 1909.

11Discurso em Santiago do Chile (1916). Aofinal queixou-se: Eu tenho horror de falarem público! Prefiro uma queda de um ba-lão.

12Carta a Afrânio de Mello Franco, de Genebra(1926).

13Carta a Antônio Prado Jr., de um sanatóriosuíço em Valmont (11 de outubro de1926).

por uma única explosão. No momento deatirar, um dos projéteis, uma mortíferabala de aço, desce velozmente em direçãoao inimigo, e o outro, de areia, é descar-regado no sentido contrário; dessas duasdescargas simultâneas resulta a ausênciade contra-choque. Imaginai o poder desteterrível fogo lançado de um aeroplano!

Eu não vejo por que razão não se podeproibir aos aeropla-nos de jogar explo-sivos, quando seproíbe jogar venenona água e projeta-seproibir o uso de gasesasfixiantes. Doenteestou aqui, seguindoum tratamento paraos meus pobres ner-vos12.

Venho te pedir um grande favor: co-mo já deves saber, um senador propôs,sem me consultar, a minha nomeação degeneral! Isto parece coisa sarcástica, poisem fevereiro propus a abolição da aviaçãocomo arma de guerra. Venho pois, te pedircomo sei que és muito amigo do nossofuturo presidente, para pedir a ele quemande parar tudo isto e mais homena-

gens, pois eu, como você sabe, ando hádois anos doente dos nervos e só peço aDeus uma coisa, é que me deixem em paz.Já estou aqui há dois meses e não tenhocoragem de sair...13

PrevisõesPara fins comerciais e comunicações

internacionais, tanto as estradas de ferrocomo os automóveischegaram a um pontoem que a sua utilidadetermina. Montanhas,florestas, rios e maresentravam o seu pro-gresso. Mas o ar for-nece um caminho livree rápido para o aero-plano; para ele não háempecilhos. A atmos-fera é o nosso oceano e

temos portos em toda a parte!...

Prevejo uma época em que se farãocarreiras regulares de aeroplano, entrecidades sul-americanas, e também não mesurpreenderá se em poucos anos houverlinhas de aeroplanos funcionando entreas cidades dos Estados Unidos e a Américado Sul.

Revolução constitucionalista de 1932Meu Deus! Meu Deus! Não haverá

meio de evitar derramamento de sanguede irmãos? Por que fiz eu esta invençãoque, em vez de concorrer para o amorentre os homens, se transforma numaarma maldita de guerra? Horrorizam-meestes aeroplanos que estão constante-mente pairando sobre Santos.

Solicitado pelos meus conterrâneosmineiros moradores neste estado parasubscrever uma mensagem que reivindicao restabelecimento da ordem constitucio-nal no país, não me é dado, por motivo demoléstia, sair do meu refúgio a que forço-samente me acolhi, mas posso ainda porestas palavras escritas afirmar-lhes, não sóo meu inteiro aplauso, como também oapelo de quem, tendo sempre visado aglória de sua Pátria dentro do progressoharmônico da humanidade, julga poderdirigir-se em geral a todos os patrícios, co-mo um crente sincero em que os proble-mas de ordem política e econômica que orase debatem, somente dentro da lei magnapoderão ser resolvidos, de forma a conduzirnossa Pátria à superior finalidade dos seusaltos destinos. Viva o Brasil unido.

Prevejo uma época em quese farão carreiras regularesde aeroplano, entre cidadessul-americanas, e também

não me surpreenderá se empoucos anos houver linhasde aeroplanos funcionandoentre as cidades dos EstadosUnidos e a América do Sul

Santos-Dumont por ele mesmo