o quebra-nozes e os quatro reinos: o segredo dos reinos · 2020. 7. 9. · dados internacionais de...
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UniversodosLivrosEditoraLtda.RuadoBosque,1589–Bloco2–Conj.603/606CEP01136-001–BarraFunda–SãoPaulo/SP
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MEREDITHRUSU
ENREDOASHLEIGHPOWELL
ROTEIROASHLEIGHPOWELLETOMMCCARTHY
BASEADONOCONTO“OQUEBRA-NOZESEOREIDOSRATOS”,ESCRITOPORE.T.A.HOFFMAN,ENO“BALÉ
QUEBRA-NOZES”,ESCRITOPORMARIUSPETIPA
TheNutcrackerandtheFourRealms–theSecretoftheRealmsCopyright©2018DisneyEnterprisesInc.Allrightsreserved.
©2018byUniversodosLivros
TodososdireitosreservadoseprotegidospelaLei9.610de19/02/1998.Nenhumapartedestelivro,semautorizaçãopréviaporescritodaeditora,poderá
serreproduzidaoutransmitidasejamquaisforemosmeiosempregados:eletrônicos,mecânicos,fotográficos,gravaçãoouquaisqueroutros.
DIRETOREDITORIAL:LuisMatosGERENTEEDITORIAL:MarciaBatista
ASSISTENTESEDITORIAIS:LetíciaNakamuraeRaquelF.AbranchesTRADUÇÃO:CristinaCalderiniTognelli
PREPARAÇÃO:GuilhermeSummaREVISÃO:MarinaConstantinoeTássiaCarvalho
ARTE:ValdineiGomes
DadosInternacionaisdeCatalogaçãonaPublicação(CIP)AngélicaIlacquaCRB-8/7057
R936q
Rusu,MeredithOQuebra-nozeseosquatroreinos:osegredodosreinos/MeredithRusu;traduçãoCristinaCalderiniTognelli.–SãoPaulo:UniversodosLivros,2018.320p.
ISBN:978-85-503-0371-0Títulooriginal:TheNutcrackerandtheFourRealms–Thesecretoftherealms
1.Literaturainfantojuvenil2.Inventores-Literaturainfantojuvenil3.
CDD028.5
Mágica-LiteraturainfantojuvenilI.TítuloII.Powell,AshleighIII.McCarthy,TomIV.Hoffman,E.T.A.V.Petipa,MariusVI.Tognelli,CristinaCalderiniV.WaltDisneyCompany
18-1800
ParaGabe,MattheweLuke
CAPÍTULO1
CLARA
Pinhas.Canela.Castanhas assadas e lenhacrepitandona lareira.Osaromas semisturavamnoar,subindoegirandoemfiosdefumaçadachaminéeflocosdeneve.Porummomento,elespermaneceramlogoabaixodasnuvenspesadasdeneve,parecendoformarseuprópriosoproencapeladodeespíritonatalino.Então,com uma lufada, os cheiros, a fumaça e a neve se espalharam com a batidapoderosadasasasdeumacoruja.Acorujadesciadasnuvensemdireçãoàcidadeabaixo.Senotouoscheiros
quevinhamdasruasdepedra,nãodemonstrou.Emvezdisso,acorujapercorreuo seu caminho com determinação e vigor, mergulhando mais e voando comtamanha rapidez que sua sombra parecia deslizar pelos telhados cobertos deneve. A fumaça saía das chaminés enfileiradas das construções. O Tâmisacongeladodançavacomcriançaspatinandonogeloàdistância.E,àmedidaqueosolsepunhanohorizonte,acendedoresusavamvarascompridasparailuminaros postes de rua, de modo que as fachadas das lojas e os mascates ficassemabrigadosporumaluzsuaveeacolhedora.Velastremulavamnasjanelas.Donosdelojasajeitavamasfitasnasguirlandas
emsuasportas.Homensemulheresseaninhavamdentrodoscasacosconformeiamnessaounaqueladireção,carregandopresentesearrastandocriancinhasderostosrosadosdevoltaparacasa.E,então,maisaolonge,osinodeumaigrejatocou,sinalizandooiníciodanoitemaismágicadetodas.VésperadeNatal,Londres.Agoraacorujajánãoestavamaisinteressadaemtodaaquelamovimentação.
Tinhaolhosapenasparaumacoisa:umlanchinhovespertino.Ali!Encontrouseualvo–umpequeninoratinhocorrendonopeitorildajanela
deumsótão.PapaiNoelviriaaquelanoiteàesperadebiscoitos,masacorujaconsideravaumpetiscopeludoarefeiçãoideal.A coruja voou para mais perto. Sua sombra cobriu o ratinho. A coruja
arremeteu…
Eoperdeu!Na última hora, o ratinho disparou para dentro de um buraco na parede de
tijolosaoladodajanelaedesapareceu.Acorujachirrioudesanimada.Pousounobeiraldajanelaeesperou.Piscou.Masoratinhonãovoltouaaparecer.Depoisde um tempo, a coruja chirriou de novo e alçou voo para longe,mantendo osolhosatentosparaoutrolanchinhoapetitoso.Dentro da parede de tijolos, o ratinho se apressou ao longo de um túnel
estreito, porém largo o bastante para um rato passar. Ele também estava àprocuradeumpetiscoparasi.EnossótãosempoeiradosenosporõessombriosdeLondres,enquantofamíliasfelizessedivertiameprestavampoucaatençãoaoque as rodeava, sempre havia algo que valesse a pena caçar pouco antes doanoitecer.O buraco se alargou e uma luz fraca apareceu na extremidade. O ratinho
desembocouemumsótãoamplo.Squick! Ali! Bem no meio do cômodo havia um biscoito com aparência
apetitosa.Omotivopeloqualumpetiscorecém-assadoestaria largadobemnomeio do piso sujo de um sótão bagunçado nem sequer passou pela cabeça doratinho. Ele só sabia que havia um jantar delicioso a poucos metros e não odeixariaescaparpelassuaspatinhas.Enquantofoiseaproximandodobiscoito,oratonãosedeucontadosolhos
curiososqueoobservavamdassombras.Olhosmuitomaisinteressadosemuitomaisperspicazesdoqueosdacoruja.–Quermesmoapanharesserato,Fritz?–ClaraStahlbaumsussurrouparao
irmãozinho. Com os cabelos despenteados e o vestido amassado, ela estavainvisívelnocanto.Masseusolhoscastanhoseinteligentesbrilhavam.–Sim!–Fritzinsistiucomentusiasmo.Clarasorriu.Apanharoratoqueouvirampassearnosótãoànoiteeraaúnica
coisasobreaqualFritzfalava–desdeastrêsdatarde.Elaacendeuumfósforo,iluminandoorostodosdois.– Então, é assim que se faz – ela disse com confiança. – Com ciência,
mecanismoseumpouquinhodesorte.Comcuidado, acendeuumpequenocastiçal.Brincar com fogoemqualquer
partedacasa–aindamaisnosótão–eraestritamenteproibido.Masaquilonãoerabrincadeira.Aquiloeraciência,eelasabiaoqueestavafazendo.Claramoveuavelacomcautelaatéembaixodeumbalãodearemminiatura
– o primeiro componente do seu brilhante dispositivo. Espalhados pelo sótãoestavam uma série de alavancas, polias e rampas ativadas por balões, bolas ebrinquedos, todos posicionados com cálculos precisos. Na ponta final do seuinventohaviaumcesto,prontoparacair sobreo ratinhodesavisadoassimque
elemordesseobiscoito.Eraperfeito.Seuinventosóprecisavadotoquecertoparaseracionado.–Primeiro,temosaenergia–elasussurrouparaFritz.–Ocalordavelafará
comqueobalãosuba.Fritz observou maravilhado quando o balão se elevou e bateu na bola que
aguardavanotopodeumarampademadeira.–Teremosoimpulsoprovocadopelabola–Claraexplicou.Toc.Aboladerrubouummacacodebrinquedo.–Quebatenomacaco,queacionaofole.–Quesopraobarco.–Fritzmalcontinhaaanimaçãoquandoofoledalareira
começou a expulsar ar, empurrando o barquinho de brinquedo sobre rodas aolongodocômodo.–Demonstrando-nosa terceira leideNewton–Claraconcluiu.–Paracada
açãoexisteumareaçãodeigualintensidade,masqueatuanosentidooposto.Ecomumpoucodesorte…Toc! O barco colidiu com o cesto, fazendo com que caísse sobre o rato, o
biscoitoetudomais!–Ratoeira!–Fritzbateuasmãos.Clara ficou radiante de orgulho quando ela e Fritz se aproximaram para
observar o ratinho capturado debaixo do cesto. Seu invento fora um sucessoabsoluto,modéstiaàparte.–Fantástico–sussurrou.–Malpossoesperarparamostrarpara…Claraparoudefalarderepente.Felizmente,Fritzestavatãopreocupadocom
seu novo prisioneiro peludo que não percebeu. Não notou a palidezfantasmagórica de tristeza que atravessou o rosto de Clara, nem o indício depalavraqueaindanãotinhapassadopelosseuslábios.–Mamãe–Claraterminouafraseparasimesmacomsuavidade.Faziapoucosmesesqueamãedascrianças,Marie,falecera.Adordaperda
aindaeramuitoforte,aindamaisparaameninadecatorzeanos.Clarasemprefora incrivelmente próxima da mãe. A ausência de Marie ainda era bastanterecentee,àsvezes,Claraseesqueciaeachamavadeoutrocômodo,ouficavaansiosa em lhemostrar um novo invento seu como o que acabara de fazer, eentãopercebiaquenãopoderia.De todasascriançasStahlbaum–Louise,amaisvelha;Clara,adomeio;e
Fritz,ocaçulacheiodeenergia–,Claraforaaquedefatoseguiraospassosdamãe.Marie havia sido uma inventora bem-sucedida, uma criadora, como suafamíliacarinhosamenteachamava.EnquantoLouiseherdaraagraciosidadeeoequilíbriodamãe,eFritzoamorpeloriso,somenteClarareceberasuadestrezainventiva. Rodas e engrenagens, pistões e polias, alavancas e contrapesos e
mecanismos – tudo isso fazia sentido para Clara. Comominúsculas partes domundoqueelapodiaseguraremanipulareconstruirparafazergrandescoisas.Massuamãetinhasidooverdadeirogênio.Elaeracapazdefazercomqueatéamenordasengenhocasganhassevida.Aolongodosanos,ensinouaClaratudooque sabia. Com paciência. Com amor. Peça por peça, engrenagem porengrenagem.Uma das maiores alegrias de Clara era terminar um invento novo e ver a
expressão de orgulho damãe quando ele funcionava corretamente na primeiratentativa.Mas,agora,emboraosensinamentoseasferramentaspermanecessem,Claranãopodiadeixardesentirqueaalegria–acentelhaquedavavidaatudo–desaparecerajuntocomamãe.– Acha que papai vai me deixar ficar com ele? – Fritz perguntou ansioso,
aindacompletamenteabsortopeloratinho.–Comobichinhodeestimação?Clara deu um meio-sorriso. O pai deles decididamente não permitiria que
Fritzmantivesseoroedorpeludocomobichinhodeestimaçãodafamília.Mas,vendooirmãozinhotãofeliz,esabendoquepelomenosseuinventolhetrouxeraalegria naquele feriado, que pareceria tão diferente este ano, Clara não tevecoragemdelhedizerquenão.Derepente,oalçapãonopisodosótãoselevantou,inclinandoocestodelado
e libertando o rato. O bichinho guinchou e tratou de escapulir, passando porbaixodeumengradadoevoltandoparaoburaconaparede.–Puxa!–Fritzgemeudesapontado.–Quaseopegamos!Podemostentarde
novo?Podemos?AntesqueClarapudesseresponder,umacabeçaapareceupeloalçapão.Eraa
senhoraAshmore,acozinheiradafamília.– Aí estão vocês! – a cozinheira corpulenta ralhou. – Procurei por vocês,
danadinhos,emtodososcantos.Comoestoucansada!Acozinheirafarejouoar.Pensandorápido,Claraescondeuosfósforosatrás
desi,foradasvistas.Observounervosaenquantoacozinheirapassavaosolhospelosótão,àprocuradesinaisdetravessuras.–Sóestávamoscaçandoumrato–Fritzexplicou.Acozinheiraenxugouatesta.–Bem,eunãoasseiseusbiscoitosfavoritosparaqueelesficassemesfriando
sozinhosnamesadasala.–Biscoitosdegengibre?–Fritzperguntouencantado.–Sim,patrãoFritz.–AsenhoraAshmoreassentiu.–Biscoitosdegengibre.
Vamos,andando.Temosmuitoafazerantesdeanoitechegar.Clara e Fritz fizeram um estardalhaço ao saírem do sótão pela escada de
acesso e irem para o corredor.Desceram a longa escadaria, onde a irmãmais
velha,Louise,osaguardava.–Olhemparaoestadodevocês–Louiseralhou.Limpouumamanchagrande
depoeiradascalçasdeFritz.– Estávamos no sótão! – Fritz exclamou. – Tentando apanhar um rato com
brinquedoseimpulsoefósforos…–Fósforos?–Louiseperguntoubrava.Clarapuxouoar.–FoiideiadaClara–Fritzseapressouemacrescentar.ClaralançouumolharparaFritzenquantoorostodeLouiseficavasério.–ClaraStahlbaum,você sabe dos perigos de brincar com fósforos na casa,
aindamaisnosótão–Louisearepreendeu.Claranãorespondeu.Claroqueconheciaosperigosdosfósforos.Masnãoera
inexperiente – era uma criadora. E sempre tomava medidas de segurançaadequadas quando usava ferramentas perigosas nos seus dispositivos. Comofósforos. Ou facas. Às vezes uma serra (o que, sua mãe lhe prometera,permaneceriaumsegredoentreelas).Mas,poralgummotivo,LouisepensavanostrabalhosmanuaisdeClaracomo
brincadeiradecriança,quando,naverdade,erammuitomaisdoqueisso.EraverdadequeClaratinhaohábitodesemeteremconfusões.Àsvezes,suas
engenhocas mais complexas ocupavam um cômodo inteiro da casa. Ou suasferramentas acabavam acidentalmente sendo deixadas em lugares nos quais aspessoaspodiampisarousesentarsobreelas.Erabatata:nãoraramente,Louiseindicava asmanchas de graxa nos cabelos deClara ou o óleo arruinando seuvestido pouco antes de a família supostamente ter que ir a algum lugarimportante.EranessashorasqueLouise insistiaqueera insensatezumajovemmocinhacomoClaradesperdiçartantotemponessenegóciodecriações.Masmamãenuncafezcomqueeumesentisseenvergonhada,Clarapensou.
Em vez disso, a mãe sempre sorrira e gentilmente ajudara Clara a limpar asujeira dos cabelos, e fora paciente quando um cômodo ficava intransitáveldevidoauminventoemprogresso.Amãeacompreenderadeumamaneiraquemaisninguémconseguia.SerrepreendidaporLouisecomosefosseumacriançabrincandodeformaimprudente,quandosuasinvençõesestavamlongedeseremdebrincadeira,magoava.–Não houve nenhum prejuízo – a senhoraAshmore intercedeu por eles. –
Certifiquei-medisso.Louisefranziuocenho.– Para início de conversa, eles nem deveriam estar lá. Venham. Papai nos
aguardanasaladeestar.Comumgritinho,Fritzsaltitoupelocorredor.ClaraeLouiseoseguiramlogo
atrás, comumpoucomaisdedecoro.Clara lançouumolhardeesguelhaparaLouise.A irmãmais velha não parecia zangada de verdade. Parecia, antes detudo,preocupada.O ressentimentodeClara seatenuou. ImaginouoquedeviaestarpassandopelacabeçadeLouise:quesurpresadeNatalopaiteriareservadoparaelesalgunsaposentosadiante?Amãesempretiverajeitoparacriarumaflorestanatalinanasaladeestarda
família. Pendurava guirlandas de pinheiro na cornija da lareira e nasmesas, ecriava decorações vermelhas brilhantes nos galhos da árvore de modo quebrilhassemcomosefossemvaga-lumesreluzentes.–Écomoumailustraçãoemumlivro!–Clarasempreexclamava.Amãeacariciavaoscabelosdamenina,beijava-lheacabeçaedizia:–Sim,minhaquerida.Éaimaginaçãoganhandovida.Esteano,ClaranemsequertinhacertezadequedecorariamparaoNatal.Há
poucohaviamretiradoacoroadelutodaportadafrenteeumarendanegraaindacobria o espelho da penteadeira da mãe.Mas o pai lhes prometera cuidar detudo:montaraárvore,pendurarasmeiaseatédisporosfestõesdo jeitoqueamãesemprefizera.PrometeraaosfilhosqueoNatalaindaseriamágico,porqueissoeraalgoqueamãedelesiriaquerermuito,muitomesmo.Ebememseuíntimo,Claradesejouque,dealgumamaneira,opaiestivesse
certo.Fritz correu para as portas da sala de estar e entrou num rompante.Clara e
Louiseoseguiram.–Ora,ora!–CharlesStahlbaumcumprimentouosfilhosdacadeiradeondese
empoleiravaprecariamente,prendendoaestrelanotopodaárvore.–Quetal?Eledesceucomumpuloeapontouparaaárvorecomumfloreio.Claraeosirmãospararam.Eencararam.Nãoera…exatamenteoqueClaraestiveraesperando.Festões e fitas estavam pendurados na sala,mas demaneira dispersa, nada
parecidocomumaflorestainvernal.Umaguirlandasolitáriasedependuravanacornijadalareiradebaixodoretratodafalecidamãedascrianças.Aárvoretortapendia demais para a esquerda. Os enfeites estavam distribuídosdesorganizadamente na árvore. Clara sabia que o pai se esforçara. Mas tudoestavaumpouco…mal-acabado.–É…lindo,papai!–Louiseforçouumsorriso.OsenhorStahlbaumolhouumpoucopesarosoparaaárvore.–Bem,comalgunspoucosajustes…–Nãoeraassimqueamamãefazia–Fritzdissedepronto.Clarafez“shhh”paraqueFritzsecalasse.Masjáeratardedemais.Osombros
dosenhorStahlbaumdesabaram.TodossabiamqueFritzestavacerto.
As crianças se reuniram ao redor da árvore e ajudaram o pai a arrumar osenfeitesdelicados ao longodosgalhos.Louise subiuna cadeira e endireitou aestrela, e Clara arrumou os festões e as fitas em todo o ambiente. Em poucotempo,asalaficoumuitomaisapresentável,senãoperfeita.–Agora,crianças.–OsenhorStahlbaumbateuaspalmasdasmãos.–Tenho
algunspresentes.–Presentes!–Fritzcomemorou.–MasaindanãoéNatal.–Louiseinclinouacabeça.Claraobservoucomcuriosidadequandoopaiapanhoutrêscaixaslindamente
embrulhadasdebaixoda árvore.Era esseomododopai deles tentar alegrar anoite?– São presentes especiais – ressaltou o senhor Stahlbaum lentamente. –Da
mãedevocês.Silêncio.–Amãedevocêsqueria…queriaquevocês tivessemalgoespecialpara se
lembraremdela.–OsenhorStahlbaumseesforçavaparaencontraraspalavrascertas.–EelamepediuquelhesentregassenavésperadeNatal.Ascriançasreceberamhesitantesospresentes.Clarasentiuumadescargade
emoçãocomopesodoseupresentenasmãos.Seráquefoiamamãemesmoqueo embrulhou?, perguntou-se.Ela segurou isto em suasmãos, sabendo que eutambémofariadepoisqueelasefosse?Fritz abriu o seu presente primeiro. Rasgou o papel, revelando dez
soldadinhos de chumbo de brinquedo. A tristeza do momento sumiu do seurosto, sendosubstituídapor risadinhasdesatisfação.Aqueleseramexatamenteos soldadinhos de chumbo que elemostrara para amãe na vitrine da loja debrinquedos!Eleosarrumouemfileira,preparando-osparaumabatalha.Em seguida, foi a vezdeLouise.Ela se sentou comgraciosidadeno sofá e
abriuacaixadepresente.Quandoviuoquehaviadentro,arfou.–Oqueé?–Claraperguntou.–Éoprediletodamamãe–Louise respondeu, tirandoda caixaumvestido
verde-clarocomasbarrasdecoradasporumarendadelicada.Os olhos de Clara se arregalaram. Era o vestido que amãe usara noNatal
anterior.Seuolharseperdeuquandoalembrançadamãesurgiu–omodocomoentrara ruidosamente na sala ao lado de Fritz, carregando cestos de enfeites.Encontraramamãeesperandoporeles ao ladodaárvore,usandoaquele lindovestido.Eleganteemagnífica,comoumarainha.–Émesmo–osenhorStahlbaumdisseaLouise.–Maseunãoposso,posso?–Louiseperguntou.–Vocêpode–opailheassegurou.–Elaqueriamuitoquevocêousasse.
Louiseficoudepéesegurouovestidoadorávelcontraocorpo.–Ah,eleélindo!Devousá-loparairàfesta?Clarasentiuopeitoapertar.Afesta.Sódeouviramençãoàfesta,tudoparecia
ficarmaisreal:daquiapouco,seguiriamparaacasadopadrinhoDrosselmeyerparaobaileanualdeNatal.–Achoqueopresenteéexatamentepara isso–osenhorStahlbaumdissea
Louise.Clarasuspirou.Comoeuqueriaquenãotivéssemosqueir,pensou.Geralmente,Claraansiavaporessafestaoanointeiro.Afinal,acomemoração
era algo que amãe e o padrinho criaram juntos, quandoMarie ainda era umameninasendocriadaporDrosselmeyeremsuapropriedade.Defato,Drosselmeyererauminventorrenomadomundialmente,enãoapenas
de festividades. Era um inventor de todo tipo de coisa, pequenas e grandes.Carruagenssemcavalos,brinquedosmecanizados,atémesmoaparatosvoadores– toda a sua propriedade era uma coleção de maravilhas mecânicas, tudocuidadosamentecriadoporeleepelasuaprotegida,Marie.EleensinaratudooqueMariesabiaarespeitodeinventividade,e,porsuavez,ambosensinaramaClara. Clara passara muitas, muitas horas felizes com a mãe e o padrinhoDrosselmeyer,aprendendoostruquesdoofícioemsuaformidáveloficina.MasafestadeNataleraaépocamaisespecialdetodas.Eraaúnicanoitedo
anoemquecentenasdeconvidadoseramrecebidosemseumajestososalãodebaileparaseadmirarcomsuacoleçãoesedeliciarnafarrafestiva–umanoiterepleta de maravilhas e de alegrias, e de até um pouco de magia. Era acelebraçãoqueClaramaisamavapartilharcomafamília,especialmentecomamãe.Massemmamãe,comopoderiaserigual?,Clarapensou.Elaengoliuemsecoefezcaradecoragem.Todosestavamseesforçandotanto
para tornar aquela noite especial. Seu pai estava tentando. Louise estavatentando. Até mesmo Fritz parecia se segurar a um fio dourado invisível demagiaqueimpediaanoiteinteiradedegringolar.Claratambémtinhaquetentar.Poreles.Nervosa,virouopresentequetinhanasmãos.Eraisso.Oderradeirotesouro
queamãepoderialhedar.–Vamos,Clara–opaiaencorajou.–Estátudobem.Prendendo a respiração, Clara desfez o embrulho. O papel se abriu com
facilidadeeflutuouatéacadeira.Edentrodelehavia…havia…–Umovo?–Claraperguntou,desconcertada.Seupresenteeraumovodemetaldecorado.Umpadrãoelaboradodeespirais
edefloreiosestavagravadonorevestimento.E,nomeio,ajunçãoqueocortava
estavatrancadacomumafechaduraemformadeestreladeseispontas.–Nãoélindo,Clara?–Louiseperguntou.Claranãosabiamuitobemoquepensardaquilo.Sim,oovoera lindo.Mas
elanãoconseguiudeixardesesentirdesapontadapornãoseralgo…mais.Nãomaisvalioso.Masmaissignificativo.Poruminstantefugidio,eladesejouqueoúltimo presente da mãe fosse uma mensagem ou uma lembrança ou até umagravaçãodasuavoz–talvezalgoemqueestivessemtrabalhandojuntasantesdeMarie ter adoecido. A caixa em formato de ovo era adorável. Mas não lhepareciacerta.–Sim.Sim,élindo–Claradisseporfim.Tentouabri-lo.–Masestátrancado.–Devehaverumachaveemalgumlugar–Louisesugeriu.Vasculhouopapel
de embrulho. Ao fazer isso, um envelope fechado caiu no chão. EstavaendereçadoaClara,naletramanuscritadamãe.Clarapegouoenveloperapidamenteeoabriu.Paraminha lindaClara, ele dizia.Tudo o que necessita está dentro.Amor,
mamãe.O coração de Clara deu um salto. Amãe lhe deixara algomais. O próprio
bilhete dizia isso – tudo de que ela precisava estava dentro daquela caixaadornada!Oquepoderiasertãovalioso,tãosignificativo,parasertudooqueamãepoderialhedar–emesmoassimcabernaqueleminúsculoeperfeitoovo?Sóhaviaumamaneiradedescobrir.Clarasaiucorrendodasala.–Clara?–opaiachamou,preocupado.MasClaranãoparou.Disparousubindopelaescada,virou-senoaltoecorreu
paraosegundolance.Correuecorreu,atéoquartodospais,indodiretoparaapenteadeira da mãe. Abriu a gaveta e começou a procurar em meio àsferramentas da mãe, tomando cuidado para não deslocar a renda negra quecobriaoespelho.Estavatãoconcentradaqueignorouabatidasuavenaportaabertaatrásdesi.–Clara?–opaiachamoucomsuavidade.–Estouprocurandopelachave–Claradissesemlevantaroolhar.Mas enquanto vasculhava mais fundo na gaveta sem ter sucesso, Clara foi
ficando frustrada. A chave não estava ali. A mãe sempre guardava as coisasimportantes naquela gaveta. Era onde ficavam todas as ferramentas que elausavaemseusinventos.Achavedeveriaestarali.Então,porquenãoestava?Clara apanhou algumas das ferramentas e se sentou na cama. Começou a
forçá-lasumaaumanafechaduradoovo.Masafechadurateimosaserecusavaaceder.–Nada?–opaiperguntou.
Clara sacudiu a cabeça. Lágrimas ardiam nos cantos dos olhos. Ela passouumamãopelorostoecontinuoutentando.Alicatesdebico.Umachavedefendaminúscula.Pinçasdepontafina.Nadafuncionava.– Papai – Clara perguntou, desencorajada –, por quemamãeme daria uma
caixasemchave?–Não sei – ele respondeu.–Tenhocertezadeque existeummotivomuito
bomparaquererquevocêficassecomela.–Tenhoqueveroquehádentro–Clarainsistiu.–Tenhoquever.Oquequerquehouvessealidentro,qualquerquefosseotesouroqueamãe
tivesseguardadonominúsculoepreciosoovo,eraoúltimofragmento ligandoClaraàpessoadequemelasentiafaltamaisdoquetudo.Aúltimacoisaqueamãepoderialhedar.OquequerquehouvessealidentroeratudoparaClara.Opaisesentounacamaaoseulado.–Posso?–ElepegouobilheteendereçadoaClaraeoleu.–Ah,entendo.Ah,
minhaquerida.Enenhumadasferramentasfunciona?Clarameneouacabeça.–Éumafechaduradepinos.– E isso é algo ruim, minha pequena mecânica? – o senhor Stahlbaum
perguntoucomumsorrisodequementende.–Muito.–Claraassentiu.Nãoconseguiamaisconteras lágrimas.–Qualo
sentidodeumNatalsemela,papai?OsenhorStahlbaumpassouobraçopelosombrosdafilha.–Seiqueédifícil,meubem.Eusei.Bemnessahora,LouiseentrouusandoolindovestidodeMarie.–Puxa!–osenhorStahlbaumexclamou.Claraficousurpresa.Senãoconhecessearealidade,teriajuradoqueaquelaali
paradanasoleiraeraumaversãomaisjovemdamãe.OvestidocaíaàperfeiçãoemLouise, cingindoa cinturadelgadada irmãe agraciandoosbraços comasdelicadasmangasderenda.–Oh,minhaquerida–osenhorStahlbaumsuspirou.–Vocêestátãoadorável
quantosuamãe.–Achamesmo,papai?–Louiseperguntou,cheiadeesperança.Virou-separa
Clara.–Vocêtambémachaisso?Claraenxugouosolhos.NãoqueriaqueLouisevissequeestiverachorando.–Acho–concordou.–Mamãeestavacertaemdeixá-loparavocê.Vocêestá
perfeita.Todosacharãoisso.Louise percebeu o resquício das lágrimas no rosto de Clara. Envolveu a
irmãzinhanumabraço.–Evocêtambémestaráperfeita–elainsistiu.–Vouarrumá-laparaafestade
Natal de Drosselmeyer e nós duas estaremos tão adoráveis quanto mamãegostariaqueestivéssemos.Clararetribuiuoabraçodairmã.Mas,pordentro,sentiacomoseestivessese
despedaçando.O ovomudou de posição, pesado em seu colo.Clara relanceou para baixo.
Ainda havia uma esperança de receber uma última mensagem da mãe, se aomenosconseguissedestrancaroovo.Tinhaqueseateraessaesperança.Precisavaencontrarachave.– Venha – Louise disse a Clara com carinho. – Vamos encontrar um lindo
vestido para você, pentear os seus cabelos e escolher o seu melhor par desapatos.Temosumafestaparair.
CAPÍTULO2
CLARA
Poucodepois,ClaraeafamíliatrotavampelasruasdepedradeLondresnumacarruagem puxada por cavalos. Clara observava os flocos de neve seavolumarem na beirada da janela da carruagem. Passaram por um grupo decoralistas natalinos cantarolando para umamãe e sua filhinha nos degraus dacasadelas.Ninguémmaisteriaprestadoatenção,masClarapercebeuocarinhocomqueamãeacariciavaoscabelosdafilha.Clara suspirou e voltou a atenção de volta para a caixinha adornada que
carregava no colo.Apesar de a carruagem sacolejar, as pregas encapeladas deseu vestido de festa cor de lavanda mantinham o delicado tesouro no lugar.LouiseescolheraumdosseusvestidosmaisbelosparaemprestaraClaraparaafestadeDrosselmeyer.Tambémescovaraeprenderaàperfeiçãooscabelosdela.Claratateoualateraldacabeça.Oscabelospareciamdiferentesdomodocomoamãecostumavaprendê-los–umtantinhopuxadosdemais.EseuspésestavamdesconfortáveisnossapatosdesaltoaltoqueLouiseinsistiraqueusasse.QuandoamãeaajudavaasevestirparaafestadeDrosselmeyer,sempreconseguia,dealguma maneira, pentear a floresta de cabelos emaranhados da garota com omais suave dos toques. E secretamente permitia que Clara calçasse sapatosconfortáveis de festa demodo que seus pés nunca ficavam combolhas.Claraperguntava à mãe se estava bela, e a mãe respondia:Claro, minha garotinhainteligente.Vocêébelapordentroeporfora,comosomentevocêconsegueser.Clarasentiatantassaudadesdotoquereconfortantedasmãosdamãe.Delicado,masfirme,comootoquedeumainventoradeveriaser.Naqueledia,emvezdisso,Clarase tranquilizoucomopesodabolsinhade
ferramentas que carregava consigo em segredo. Puxou uma das pinças ecomeçouacutucarafechaduradacaixinhaumavezmais.–Clara,estálevandoferramentasparaafesta?–Louisenotoudeimediato.– Preciso abrir isto – Clara respondeu, manuseando a ponta da pinça na
diminutafechadura.Não.Nadaainda.Virouoovodelicadonasmãoseoergueu
contraaluzdeumdospostespelosquaispassavamparamelhorinspecioná-lo.FoientãoquepercebeualetraDmanuscritagravadanabase.– Drosselmeyer! Esta é a assinatura dele! – Clara inspirou fundo. Se o
padrinhocriaraisto,entãocertamenteteriaachaveparadestrancá-lo.–Chegamos!–Louiseanunciouderepente.As três crianças enfiaram as cabeças pelas janelas da carruagem para ver a
magnífica vista da mansão de Drosselmeyer, decorada em toda a suagrandiosidadeparaaépocadoNatal.Astorrespontudasdamansãoestavamdecoradascomfestõesviçosos,presos
dosbalcõesaoscontrafortes.Cadaumadasjanelasestavainundadapelobrilhoque emanavam do interior, e lanternas chinesas vermelhas e douradasiluminavamocaminhodosportõesdeferroforjadogravadoscomaletraDdaassinatura de Drosselmeyer. Àquela altura a neve cessara, deixando moitas earbustos cobertos por uma camada de brilhantes cristais de gelo. Era como ocenáriodeumcontodefadas.Clarapensouquenãoeradeseadmirarqueamãetivesse uma imaginação tão vívida, tendo crescido num lugar como aquele.Comogostavadefazertodososanos,ameninalevantouoolharparaobservaraquasedúziadechaminésperfiladasnostelhados.Cadaumadelassoltavafumaça– um sinal de que o coração da casa pulsava, como umamáquina diligente econfiável.A carruagem parou diante dos portões. Não havia criados em serviço
aguardandoempé.Emvezdisso,osportõescomeçaramaseabrirsozinhos.–Olhemparaoportão!–Fritzexclamoumaravilhado.–Comoelesabeque
estamosaqui?–Pneumática–Claralhedisse.–Pneuoquê?–Fritzperguntou.ClaraseinclinousobreFritzeapontouparaforadajanela.–Consegueveraquelamáquinaaliatrás?Elaestáligadaabraçosmecânicos,
que controlam as dobradiças dos portões.O peso da carruagemna plataformadiantedoportãoativaomecanismo.OsolhosdeFritzsearregalaramdeadmiração.–Mágica!–suspirou.– Francamente, Clara, de onde você tira essas coisas? – Louise perguntou
quandoafamíliadesceudacarruagem.Claraiarespondercominsolênciaqueelaaprenderaissoemumdoslivrosde
Drosselmeyer. Mas, felizmente, toda a conversa a respeito de pneumática sedissipounomomentoemqueentraramnacasa.AdecoraçãodapropriedadedeDrosselmeyersópoderiaserdescritadeuma
maneira:eclética.Paredesdeumvermelhovibranteeramsalpicadascomtoques
folheadosaouroetesourosdasviagensdopadrinhopelomundotodo:tapeçariaindiana,cerâmicaafricana,cortinaschinesas.Dragõesdejadeserpenteavamaolongodeprateleirasepergaminhosantigospermaneciamenroladosemmesasecubículos pintados decorativamente. Atémesmo a entrada de sua propriedadeeraumverdadeiromuseude arte continental ede excentricidades, que, paraoNatal, fora decorada com as tradicionais guirlandas de azevinho e fitasvermelhas. Era uma mistura dos tesouros do mundo inteiro com a vistosadecoraçãonatalinaquehipnotizavaatodosquetestemunhavamaquilo.Criados recolheram os casacos de Clara e da família e prontamente os
penduraramemganchosligadosaumaesteirarolante.Omecanismolevoucomrapidezoscasacosparaoutrocômodomaisinternodacasa.–Uau–Fritzsuspirou.Criados com luvas brancas estavam diante das portas do salão principal
anunciando as famílias conforme entravam.Muitos dos convidados já haviamchegado.Osalãoestavavivo,compessoassemisturandoedançandoemseuselegantes trajes de festa, sorvendo goles de vinho do Porto e divertindo-se.Criados passavam carregando travessas douradas com docinhos e champanhe.Criançasriramquandoumtrenómecânicocheiodepresentesapareceuvoandograçasaoitorenasmecanizadas.Nocentrodoambiente,haviaumaimponenteárvore deNatal enfeitada de vermelho e dourado resplandecentes.Era a únicafontede luzde todoo salão,masbrilhavamaisdoquequalquer lustre jamaisconseguiriacomsuasmilminúsculaslamparinasagás.–Incrível–osenhorStahlbaummurmurou.–Drosselmeyersempresesupera.–Conseguevê-lo?–ClarasussurrouparaFritz,perscrutandoamultidão.–Drosselmeyer?–Fritzperguntou.–Não.Espere…Nãoéaquele?Ele apontou para um homem alto com uma cabeleira crespa e grisalha que
rapidamentedesapareciaemmeioàmultidãodeconvidados.–Temrazão–Clararespondeu.Dito isso, ela escapou da família, passando de fininho pelos criados e por
grupos apertados de convidados. Ouviu ao longe o nome da família seranunciado,inclusiveoseu,maselanãotinhatempoparaapresentações.Estavanumamissão.Desuamãe.Alguns convidados lhe lançaram olhares reprovadores quando ela
acidentalmente pisou em seus pés antes de, finalmente, alcançar o homemgrisalho.–Padrinho?–chamou,tocandoemsuamanga.Ohomemsevirou,eClarasedecepcionou.Eraumconvidadoderostorosado
e peruca mal ajustada, que, à luz das velas, assemelhava-se aos cabelos deDrosselmeyer.Aquelenãoeraseupadrinho.
–Ah,milperdões–desculpou-se.Ohomemaencarouperplexoantesdeseafastar.Clara suspirou. Não era do feitio do padrinho manter-se afastado das
festividades. Sempre era um anfitrião amável, regalando os convidados comhistóriasfascinantesdassuasviagensaoexterior.Ondeelepoderiaestar?Estava prestes a retomar sua busca quando, de repente, alguém falou atrás
dela.–Concede-meestadança?Clarasevirou.Eraseupai,comamãoestendida.–Ah,souumapéssimadançarina,papai–Clarainsistiu.Elaestavafalandoa
verdade. Clara adorava música, mas parecia estar sempre tropeçando nosprópriospésduranteumavalsa.–Eutambém!–OsenhorStahlbaumsorriu.–Faremosumaduplaperfeita.Aindaassim,Clarahesitou.–Porfavor?–osenhorStahlbaumpediu,esperançoso.–Apenasumadança.
ÉNatal.Claracedeueassentiu.Segurouamãodeseupai,queaconduziuàpistade
dança.Mas,noinstanteemqueoquartetodecordascomeçouavalsaseguinte,Clara sentiu o aperto no peito de novo. Aquela melodia era familiar demais,perturbadoraebela,emuitomaisdoqueconseguiriasuportar.Eraamúsicapreferidadesuamãe.E, de um momento para o outro, Clara não quis mais estar naquela festa.
Todosestavamagindocomosenada tivesseacontecido.Masalgoacontecera.Suamãesefora.Comopodiamcontinuarcelebrandosemela?Clarasevirouedisparoupelaescadariamaispróxima.–Clara,minhaquerida,espere…–osenhorStahlbaumsuplicou.MasClaranãoparou.Precisavasaberagora,maisdoquenunca,oqueamãe
lhedeixaradentrodaquelacaixinha.Passouraspandoporsaiaslongasdebabadoeresvalouemternosdelã,saltou
por cima de pés de crianças e virou na escada de canto para a sacada queenvolvia o salão. Quando chegou ao topo, virou à esquerda, cruzando umenormeconjuntodeportasduplasqueaconduziamparalongedafesta.Algunspoucos convidados perambulavam por esse corredor, mas Clara passouapressada por eles, atravessando outro par de portas, até chegar à bibliotecaescuraefresca.Suspirou de alívio e se apoiou contra a parede. Inspire, expire, disse a si
mesma.A recente fonte de tristeza provocada ao ouvir amelodia predileta damãefoidiminuindo.Opeitorelaxou.Nãohaviaconvidadosali.Estavasozinha.Umacorujaestavaempoleiradanoencostodeuma imponentepoltronanum
doscantosdasala.Chirriouparaela,seusolhosamarelosbrilhandoàluzdoluarvindodeumajanelapróxima.ClaraolhouparaoanimalcomcuriosidadeantesdecaminharatéoutropardeportasquedavamparaoqueelaconsideravaomaismagníficodoscômodosemtodaamansãodeDrosselmeyer:suaoficina.–Padrinho?–elaochamou.A conversa dos convidados da festa ecoava baixa vinda do grande salão,
abafada pelos sons das invenções que emitiam bipes e cliques na oficina.Engrenagensgiravamepistõesbombeavam.Bugigangasesuveniresde todoomundo estavam espalhados em pilhas categorizadas. Clara sempre se sentiuseguraali,cercadapormáquinasbemlubrificadaseomovimentoincessantedosmecanismos.Alitudofaziasentido.Acorujachirrioudenovoepassouplanandoporela.Pousounumabancadade
trabalhonapontaopostadocômodo,ondeumhomemnumternoimpecável,depele escura e cabelos rebeldes grisalhos, estava sentado encurvado. Ele olhoupara a coruja e depois para Clara quando ela se aproximou. Sorriu. Um olhoestavacobertoporumtapa-olho,masooutroeracastanho-escuroegentil.–Olá,Clara–eleacumprimentou.–Eutinhaesperançasdequevocêfosse
aparecer.Nãoconsigofazercomqueestacoisadanadafuncione.Mostrou-lhenoqueestiveramexendo:umcomplexomodelodouradodeum
lago com dois cisnes de cerâmica. Abaixo da superfície, apoiado em quatropilares também dourados, havia um complicado conjunto demecanismos quenitidamente foram feitos para que os cisnes mecânicos movessem as patas ebatessemasasas.Mas,quandoDrosselmeyergirouachavedomodelo,oscisnesbateramasasasaocontrário.–Provavelmentesóprecisareverteromecanismo–Clarasugeriu.Drosselmeyerafitoudelado.–Éexatamenteissooqueestoutentandofazer,minhaquerida.Masapesarde
haver duzentas pessoas lá fora, nenhuma delas trouxe uma chave de fenda depontaestrela.Claravasculhouabolsinhaetirouaferramentanecessária.Drosselmeyersorriu.–Eusabiaquepodiacontarcomvocê.Pegue, tentevocê.Minhasmãossão
mesmograndesdemaisparacaberemaí.Entregou a máquina a Clara. Sem pestanejar, ela começou a refazer o
mecanismo,mudandode lugar rodasdentadasesubstituindoengrenagens.Ummomentodepois,levantouoolhar.–Tenteagora.Drosselmeyer girou a chave e, desta vez, as asas dos cisnes bateram na
direçãocorreta.
–Meninabrilhante!–Elebateupalmas.–Vocêmelembraalguém.Claranãopôdeevitarsorrir.UmprofessorcomoDrosselmeyertinhaumjeito
defazercomquevocêquisessedeixá-loorgulhoso.–Agora,minha jovem–Drosselmeyer prosseguiu –, conte-mepor quenão
estáaproveitandoafesta?–Precisodasuaajuda,padrinho.Comisto.Claramostrouacaixinhaemformatodeovo,eDrosselmeyerinspiroufundo.–Ah,fizissoparaasuamãe.Quandoelachegouaqui,eunãofaziaamínima
ideia do que fazer com umamenina órfã, um velho como eu; portanto, fiz aúnicacoisaqueeusabiafazer.Inventeiissoparaela.Drosselmeyeradmirouoovocomoseestivesserefletindoa respeitodeuma
lembrançaantiga.Clarapresumiuqueeledeviaestarpensandoemtodosaquelesanos distantes, até o dia em que a mãe dela aparecera na propriedade deDrosselmeyer. Ouvira a história tantas vezes da suamãe:muito jovem ainda,quandoospaisdelamorreramnumincêndiotrágico,MariechegaraàsoleiradeDrosselmeyernaneve,semnadaanãoserumasacola,umabonecaeasroupasquetrazianocorpo.– E agora parece que ela o deu para você – Drosselmeyer ponderou. –
Interessante,nãoacha?–Massemumachave–Claralhecontou.–Mesmo? – Drosselmeyer espiou a fechadura. – Hum. Uma fechadura de
pinos.Drosselmeyerinteligente.Vocênãoconseguiráabriristocomumachavedefendadepontaestrela.–Eusei–Claradisse.Suavozvacilouumpouco.–Eutentei.Drosselmeyer interpretou a expressão no rosto de Clara. A sua própria se
suavizou.–Vocêdevesentirmuitassaudadesdela–comentou.Claranãodissenada.Apenasassentiu.–Àsvezes,conversarajuda,Clara.–Drosselmeyer lhedevolveuoprecioso
ovo.–Deixeatristezasairdoseucoraçãoparaqueelepossasecurar.Clarapensounissoolhandoparaolindo,misteriosoederradeiropresentede
Nataldamãe.BONG!Orelógiodepêndulonogrande salãobadaloude repente.Começoua tocar
umamelodiaextraordinária,diferentedequalqueroutrorelógio.Drosselmeyerselevantou,omomentoforainterrompido.–Estánahoradaapresentaçãodospresentes–eledisse.–Osconvidadosnão
podem esperar. Minha querida, você me daria esta honra? – Ele ofereceu obraço.
Clarasegurouobraçodopadrinhoeoacompanhouparaforadaoficina.QuandochegaramàalegriadacomemoraçãodeNatal,Claranãopôdedeixar
de imaginar o que amãe pensara ao ver aquilo pela primeira vez, sendo umacriançaórfãque,derepente,ficarasozinhanomundo.Sentiraalegria?Tristeza?Curiosidade?Eseráqueseperguntou,assimcomoClaraofaziaagora,seoNatalvoltariaa
sertãomágicoquantoforaumdia?
CAPÍTULO3
MARIE
Marie fitou pasma a mansão imponente diante de si. A neve compactada seesmagavadebaixodesuasbotas,eelamudouopesodeladoenquantoagarravaasacolasurradaeabonecajuntoaopeito.Doispoliciaisconversavamcomoproprietáriodamansão–umhomemalto
depeleescuraecomumtapa-olho.Mariejáoviranarelojoariadospais,masapenasde seuesconderijodebaixodobalcãoondecostumavabrincarcomsuabonecaenquantoospaistrabalhavam.Ouvira-osdizeronomedelemuitasvezes:Drosselmeyer.Isso foraantesdo incêndio.Agoraa lojae seu larnãoexistiammais,assim
comoseuspais.Passaraaúltimasemanasesentindomuitoassustada,chorandobastante a princípio, mas agora estava desprovida de lágrimas. A busca daScotlandYardporumparentepróximoseuforainfrutífera.MasMariesabiaquenãotinhamaisninguém.Sempreforamapenaselaeospais,trabalhandotodosos dias na relojoaria e se recolhendo à noite para o apartamento de um únicocômodo no andar de cima.Mas, por algummotivo, toda vez que um policialsugerialevá-laparaumorfanato,sussurrosdonome“Drosselmeyer”surgiam.Eagoraaquiestavaela,aoladodosdoispoliciais,paradananevedianteda
soleiradeentradanapropriedadedeDrosselmeyerapoucosdiasdoNatal.Oquetudoissosignificava?–Éterríveloqueaconteceu–Drosselmeyerdisseparaosoficiaisdepolícia.–
Masnãocompreendo.Ospaisdelaadeixaramparamim?Comoseuguardião?–Bem,nãoexatamente–umdospoliciaisrespondeu.Eleerabaixoerotundo,
com um nariz vermelho e congestionado com o qual não parava de fungarruidosamente no frio. – Seu nome estava por toda parte nos livros contábeisdeles, contudo.“Drosselmeyer” issoe“Drosselmeyer”aquilo.Umadasúnicascoisasquesobreviveramaoincêndio,alémdamenina.–Eraumadasúnicaspistasquetínhamosparaseguir–ooutropolicial,um
homem alto de bigode tão escuro como seu quepe escuro de policial,
acrescentou.EleolhouderepenteparaMarie,queescondeuorostonoscabelosdaboneca.–Conteaeleoquenoscontou–opolicialaltoainstruiu.Marieofitou.Suarespiraçãoformounuvenzinhasdevaporacimadacabeça
daboneca.–Estátudobem–opoliciallhedissecommaisgentileza.–Conteaeleoque
osseuspaislhedisseram,sobreoslivroscontábeis.Marieengoliuemseco.–Elesdisseramqueeramimportantes–elafaloubaixinho.–Quandoa loja
pegoufogo,nóscorremosparafora.Papaiosentregouparamim.Dissequeeuosmantivesseasalvo,paraosenhorDrosselmeyer.Depoisdisso,elesvoltaramaentrar na loja para tentar conter o fogo. –O que ela não acrescentou foi que,nessahora,otetodesabouantesqueosbombeiroschegassem,equeospaisnãoconseguiramescapardoincêndio.–Elanãotemfamíliapróxima–opolicialaltoexplicou.–Ospaispareciam
ser pessoasmuito reservadas, e quase tudo o que possuíam foi destruído pelofogo. Mas a criança mencionou que o senhor os conhecia, e considerando asua…hum…posição,pensamosquevaleriaapenaaveriguar.–Seeuaassumiriacomominhaprotegida?–Drosselmeyeresclareceu.–Hum…Sim.–Opolicialtossiu.–Nósoteríamosprocuradoantes.Masseu
criadonosinformouqueosenhorestariaemumaexpediçãoatéoNatal.–Éterrível–Drosselmeyermurmurounovamenteemseutomgrave.–Que
tragédia. Sou cliente deles hámuitos anos. –O homemvelho folheou o livrocontábil. – Ele dizia que eram clientes como eu, que tinham um apreço pelabelezadaantigamecânica,quemantinhamsualojafuncionandonummundoemconstantemudança.–Então,vocêserampróximos?–opolicialtentouextrairainformação.–Sim,decerta forma–Drosselmeyer respondeu.–Ospaisdelaerammais
instruídos do que amaioria. E a relojoaria deles era a única emLondres quevendiaasferramentasdequeeunecessitavaparameusinventos.– Inventos, é?–Opolicial rosado riu.–Oquevocêandapreparandonesse
seucastelo?AlgummonstrotipoFrankenstein?Drosselmeyerlhelançouumolhardesoslaioantesdeprosseguir:– Eu tinhamuita estima pelos pais deMarie. O pai dela e eu chegamos a
trabalharjuntosemalgunsprojetos.Masumacriança…Nuncaconsiderei…Elanãotemninguémmesmo?Marieouviaaconversacominteresse.Drosselmeyersevirouparafitá-lacom
o olho descoberto, e ela afundou o rosto na sacola, agarrando ainda mais aboneca.– O que acontecerá com ela? – ele perguntou. – Se nenhum parente for
encontrado?– Não existe mais um “se” a esta altura – o policial de bochechas róseas
fungou.–Buscamosomáximoquepudemos.Agoraelairáparaoorfanato.–Nãoprecisafalartãoalto–Drosselmeyeroadmoestou.–Elatemouvidos.– Não faz diferença – retrucou um tantinho mais baixo o policial alto. –
Reginaldestácerto.Osenhoreraanossaúltimapista.AScotlandYardnãopodemais abrigá-la. Nós a levaremos para o orfanato antes que escureça. – OlhouparaMarie e suspirou. –Mas éumapena.Detesto esse tipode trabalhonestaépocadoano.Étriste,muitotriste.–ChamouMarie:–Venha,criança.Devoltaàcarruagem.OsombrosdeMariedesabaram.Nãotinhacertezadecomoseriaoorfanato,
masentendia,pelasexpressõesnosrostosdoshomens,queprovavelmentenãoseria nadabom.Voltou a esmagar a nevebatida, comas botas deslizandonosmontinhosgelados.AopassarporDrosselmeyer, escorregou, aterrissandocomforçanogelo.Ofrioardiaduramenteaoencontrodasmeias.–Cuidado, criança. –Drosselmeyer a ajudou a se levantar. –Émuitomais
difícilconsertarossosdoqueengrenagens.–Foientãoquenotouobrilhodeumrelógiodebolsonasacoladela.NapartedetrásdelehaviaumaadornadaletraDgravada.Eleopegoueoabriucomcuidado,revelandoumminúsculorelógioparado
dentrodele.– Lembro-me de quando dei isto ao seu pai – disse ele. – Como um
agradecimento por ter me ajudado a consertar um relógio de pêndulo muitoteimoso.DrosselmeyerfitoufixamenteosolhosdeMarie.Elaretribuiuogesto,semter
a intenção disso. Por algum motivo, sentiu um conforto ao fazê-lo. Ele era,afinal,aúltimapessoarestantequeconheceraverdadeiramenteseuspais.Talvezeleestivessepensandoamesmacoisa.OhomemvelhodeucordanorelógioeodevolveuaMarie.Depois,pegoua
mãozinhapequeninadelanasua.–Venha–Reginaldordenou.–Paraacarruagem.–Nãohánecessidadedisso–Drosselmeyerdisse,semsoltaramãodeMarie.–Masjálhedissemos–opolicialaltoinsistiu.–AScotlandYardnãopode
maisabrigá-la.–Poisbem.–Drosselmeyer sorriu comgentilezapara amenina.– Imagino
queesteteráqueseronovolardela.
NamanhãdeNatal,váriosdiasdepois,ajovemMarieestavasentadaàmesadocafédamanhã,usandoumvestidonatalinosimples,porémbelo,devorandouma tigela de mingau. Era cremoso e estava bem quente, como sua mãecostumavaprepará-lo.– Vá devagar aí, ou acabará com dor de barriga! – A cozinheira estalou a
língua.–Osseuspaisnuncalhederamcomida?–Sim–Marierespondeubaixinho.–Maselesmorreram.Aexpressãodacozinheiramudoudepronto.–Desculpe,minhacriança–disseela.–Não tivea intençãode tocarnesse
assunto, ainda mais na manhã de Natal. Tome. – Ela depositou um cesto debiscoitosdegengibrequentinhosnamesadiantedeMarie.Orostodameninaseiluminou.–Euiriaservi-losmaistarde–acrescentouacozinheira–,masquemalháem
dar uma ou duas mordidas antes? Só não coma o cesto inteiro, ou você vaiacabarvirandoumafadinhadeaçúcar!– Isso é o que aminha boneca é! –Marie levantou a boneca de porcelana.
Estiverasegurando-acomumamãonocolodebaixodamesa.Naverdade,nãosoltaraabonecadesdequechegaraàpropriedade.Oadorávelbrinquedoforaumpresente de Natal dos pais e seguramente custara mais do que eles poderiamgastarnumbrinquedo.Aqueleeraseubemmaisprecioso.–Éumalindaboneca.–Acozinheirasorriu.–Assimqueterminardecomer,
podeiràbiblioteca.OpatrãoDrosselmeyerestáesperandoporvocê.Duastigelasdemingaueváriosbiscoitosmaistarde,Mariecaminhouaolado
do mordomo escada acima até a grandiosa biblioteca da mansão deDrosselmeyer.Mesmocomomordomoaoseulado,elanãoconseguiadeixardese sentir pequena emuito só naquela vasta imensidão que os cercava. Nuncaantesviraumacasatãoelaborada–sequerimaginaraqueumlugarassimpodiaexistirforadoslivrosdehistóriasinfantis.Asescadariaslargasestavamcobertasporpassadeirasricamentedesenhadas,eimensoslustresbrilhavamacimadeles,cada um com, pelo menos, uma centena de minúsculas lâmpadas a gás. Atémesmoopapeldeparedeexóticoquerevestiaoscorredoreseraimponente.Atéentão,Mariepassaragrandepartedoseutemponamansãoenfurnadanoquarto,lendoerelendodiversoscontosdefadasqueoscriadosencontraramparaelanabiblioteca.Todososfuncionáriosa trataramcommuitagentileza,ajudando-aaencontrar roupas pequenas que coubessem em seu corpinho e preparando-lheumacamamaciaeadorável.Mas,pormaisgrataqueMarie estivessepornãoestar numorfanato, nada daquilo lhe parecia real.O quarto, a propriedade, oscriados,eatéopróprioDrosselmeyer–tudopareciaumailusãoqueMarietemiaque fosse desaparecer a qualquer instante. Mesmo protegida em sua cama,
aquecidapelasbolsasdeáguaquenteparaquenãoprecisasseacendera lareiradoquarto,elanãoconseguiadeixardesesentirperdida.Asúnicascoisasquelhepareciamreaiseramabonecaeashistóriasqueliaereliarepetidamente,comosuamãecostumavafazerparaela.Pelomenoselaseramfamiliares.Todoorestoemsuavidapareciatão…desconhecido.Quelugarumacriançacomoela–filhade um modesto relojoeiro, sem ninguém nem nada no mundo – poderia ternaquilotudo?NãoviraDrosselmeyermuitasvezesdesdequeeledisseraaospoliciaisque
ela poderia ficar. Soube, pelos criados, que ele frequentemente percorria omundoemsuasexpedições.Masagoraqueeleestavaemcasaparaasfestasdefimdeano,disseramaelaqueelepassavaboapartedo seu temponum lugarchamado“oficina”.Marieouviraospaisdizeremqueeleerauminventor.Ficouimaginandoqueespéciedecoisasinventava.Então, quase que como uma resposta mágica à sua pergunta não feita, um
inventoapareceumisteriosamentedoladodeforadoseuquartonaquelamanhã– namanhã deNatal.Quase não ouvira a leve batida à porta. Foi algomuitosutil, quase hesitante. Curiosa, ela fora até a porta e a entreabrira só umpouquinhoparaespiarparafora.Ocorredorestavadeserto,masnochãohaviaumreluzenteovodemetal.Sua
cascaerafeitadeintricadascurvasepadrões,eocentroestavaseladoporumafechaduraemformatodeestreladeseispontas.Pareciaumaespéciederelíquiamecânica remendada.Havia uma etiqueta presa a ele comuma fita de veludovermelha,comumamensagemescritanumaletramanuscritacheiadevolteios:ParaMarie.FelizNatal.Elaficoumaravilhada,imaginandooquesignificava.Então, os passos cadenciados e familiares da cozinheira se aproximaram.A
mulherforaverseMarieestavasesentindocorajosaobastanteparaseaventuraradesceretomarocafédamanhãnasaladejantar,damesmamaneiraqueforaverificar todas asmanhãs. E, pela primeira vez, a curiosidade se sobrepôs aomedo;Marieseaventurouparaforadoquarto.Agoraameninapassavapelasgrandesportasduplasdabiblioteca,segurando
oovocomcuidadonasmãoseabonecaenfiadadebaixodobraço.Drosselmeyerestava ali, sentado numa poltrona estofada. Uma grande ave – uma coruja? –estava empoleirada no encosto da poltrona.Omordomo se curvou e deixou ocômodo.–Ah,jovemMarie!–Drosselmeyerdissefechandoolivroqueestavalendo.–
PermitaqueeusejaoprimeiroalhedesejarumFelizNatal.–FelizNatal,senhor–Marieretribuiucomtimidez.–Masacozinheirajáme
desejouFelizNatal.
–Osegundo,então–elesecorrigiu.–Eomordomo–Marieacrescentou.Drosselmeyerriu.– Bem, então quem sabe ele será de fato feliz. Vejo que encontrou o seu
presente?Marieestendeuoovo.–Recebi–respondeu.–Obrigado,senhor.Masoqueéisto?– Tudo será explicado – garantiuDrosselmeyer, com um brilho no olhar. –
Mas primeiro o mais importante. Venha cá, deixe-me olhar para você. MeuDeus, quase não a reconheci.A senhoraRosmund decerto encontrou um belovestidonatalinoparavocê.Estaaindaéafilhadorelojoeiroqueeucostumavaverescondidadebaixodobalcãodaloja?–Soueumesma,senhor–Marierespondeu.–Oscriadosatêmtratadobem,então?–Drosselmeyerperguntou.– Sim, senhor –Marie respondeu. Prendeu a boneca, Fada Plum, junto ao
peito.–Obrigada,senhor.–Ora,vamos.–Drosselmeyerriu.–Eulhepareçotãovelhoparaserchamado
de“senhor”comtantafrequência?Mariesemexeudesconfortavelmente,masnãorespondeu.Drosselmeyerriunovamente.–Não tem importância.Nãoprecisa responder.Masvistoqueestámorando
aquiagora,deveexistiruma formade tratamentomenos formalquepossamosusar.Nãoconcorda?– Sim, senh… – Marie começou a dizer. – Hum, eu poderia chamá-lo de
“senhorDrosselmeyer”?Drosselmeyermeneouacabeça.–Não,não,issonãovaifuncionar.Vejamos.Trabalheicomseupaicomoum
sócionosnegócios.Portanto,suponhoquesepodedizerqueéramosirmãosderamoprofissional.Talvez“tio”sejaumtítulomaisadequado?Oquelheparece?Marie sorriu ao pensar em Drosselmeyer ligado ao pai, como se fosse da
família.–Gostodisso.TioDrosselmeyer.– Fantástico. – Drosselmeyer bateu as palmas das mãos. – Então, jovem
Marie,estábemacomodada?–Estou,sim,senh…Tio–Mariesecorrigiu.–Suacasaébemgrande.–É?–Drosselmeyercorreuosolhospelabiblioteca.–Passotantashorasaqui
dentroquesuponhojáfazerumtempoquenãoandoporaí.–Tambémtenhoficadonomeuquarto–Marieacrescentou.–Eu…nãoquero
meperder.
Drosselmeyerinclinouacabeçadelado,comumtoquedetristeza.–Vocêjamaisseperderá,criança–elelheassegurou.–AsenhoraRosmund
mencionou que não havia conseguido arrancá-la dos livros de histórias. Elamento não ter estado mais disponível para você desde que chegou. Meutrabalhoconsomemuitodomeutempoe…temosernovatonisto.Nuncafuipai,entende?Viajeidemaisparatertempoparaumafamília.Estoucertodequeistodevelheparecermuitodiferentetambém.–Sim–Marieconcordoubaixinho.–Parece.AempatiaseapossoudoolhardeDrosselmeyer.–Vocêdevesesentirmuitotriste.LágrimasarderamnosolhosdeMarie.Desdeamortedospais,ninguémde
fato mencionara seus sentimentos. Houve muitos sussurros discretos ao redordela,todosterminandocom“pobremenina”.Todomundofalavadela,masnãocomela.Nãoatéagora.–Sintotantassaudadesdeles–confessoucomsuavidade.Drosselmeyer permitiu que Marie enterrasse o rosto no ombro dele,
manchandooternodoinventorcomsuaslágrimas.–Seiqueédifícil.–Eleacariciouacabeçadela.–Masvocêsuperaráisso.Eu
lheprometo.–Acreditamesmonisso?–Mariefungou.–Acredito.–Drosselmeyerassentiu.–Venha,tenhoalgoalhemostrar.Eleestendeuamão,eMarieoseguiuporoutroconjuntodeportasduplasaté
suaoficina.Assimqueentrou,Mariearfou.Oambienteeracavernoso,tomadodotetoao
chãopormecanismosedispositivos.– Veja, Fada Plum! – sussurrou para a boneca. – É como se tivéssemos
entradonumamáquinadotempo!Drosselmeyer a conduziu até um canto do cômodo, onde um relógio de
pêndulo dourado e ornamentado estava instalado.Marie observou amagníficapeça.Mesmosendofilhadeumrelojoeiro,nuncaviranadacomoaquilo.Apartesuperior do relógio quase se parecia com um globo, com números grandespintadosnovidrocraquelado.Ocompartimentoinferioreraoco,comjanelasdemolduradouradadandolivrevisãoaomecanismointerno.Rodaseengrenagensse encaixavam umas nas outras e estrondos graves marcavam a passagem dotempo.Masondeopêndulodeveriaestarhavia,emvezdisso,aimagemdeumamulher comuma saia enorme feita toda de ouro.A saia estava esculpida comumafendanabase,efigurasaindamenoressaíamdali.Elasgiravamaoredordeumapequenapista,cadaumadelasdandoumpassoàfrenteacadasegundoquepassava.ParaMarie, elas separeciamcomminúsculasbonequinhasdebarriga
redonda.–Sabeoqueéisso?–Drosselmeyerlheperguntou.–Éumrelógio–Marierespondeu.Drosselmeyerassentiu.– Sim, mas não é um relógio qualquer. É a engenhoca mais intrincada,
traiçoeira e desconcertante que já encontrei. Foi esse relógio que seu pai meajudouaconsertar.–Meupai?–Marieperguntou.– Sim – confirmou Drosselmeyer. – Quando ninguém mais em Londres
conseguiu fazer comque ele funcionasse comodevia, seupai teveo toquedegênio.Desconheço a origemdo relógio, já estava na propriedadequando aquicheguei. Mas não importava o quanto tentasse, eu não conseguia fazer seumecanismofuncionar.Oseupai…Ah,oseupaieradeterminado.Trabalhouporsemanasnesterelógioatéelefuncionardireitoassim.DrosselmeyerseajoelhoudiantedeMarie,apoiandoasmãosnosombrosda
garota.–Vejo seu pai emvocê – disse ele. –O seu pai e a suamãe.Apenas uma
garotinhadeterminadaconseguiriachegaratéaqui.Vocêserá forteporeles?Epormim?Mariefungoueassentiu.–Boamenina. –Drosselmeyer enxugou as lágrimas dela com suavidade. –
Agora,chegadechorar.ÉmanhãdeNatal.Seexisteumacoisa importantenamanhãdeNataléaalegria.Epresentes.Drosselmeyer estendeu a mão para o topo da bancada e pegou uma chave
brilhante.Entregou-aaMarieeapontoucomacabeçaparaafechaduradoovo.–Receioqueinventossãoasúnicascoisasqueseifazer–observouele.–Mas
esperoquegoste.FelizNatal.Marieusouachavinhaparaabrircomcuidadooovo.– Puxa! – exclamou. Dentro dele havia um pequeno mecanismo feito de
engrenagensminúsculasquecercavamumcilindrocomlombadas.Asengrenagenscomeçaramarodareocilindrogiroulentamente.Umaum,
ospinosdemetalseesticavamaolongodaslombadasprecisamentedispostasdocilindro,produzindoumamelodiadelicada.– É uma caixinha de música! –Marie percebeu encantada. Não conseguiu
conter uma descarga de emoção enquanto amúsica bonita tocava. –Você fezisto?Paramim?–Fiz,sim–Drosselmeyerconfirmou.–Seupaiumavezmedissequecada
engrenagemoucadapistãotinhaumahistóriaparacontarsobreapessoaqueosfez.Eugostariaquevocêficassecomestacaixinhademúsica,Marie,paraque
selembredosseuspais.Elesaamavammuito.Equandoaouvir,lembre-sedequeoamordelestambémestádentrodevocê.Sempestanejar,MarielançouosbraçosaoredordeDrosselmeyereoabraçou.–Obrigada–disse.Drosselmeyerdeutapinhasnacabeçadela.–Nãoémuitacoisa.Mas,denada.Marievirouacaixinhademúsicanasmãos,maravilhada.Eralinda–perfeita.
Aindamaiscomplicadadoqueosrelógiosnosquaisviraospaistrabalharem.–Possofazeralgoassimtambém?–elaperguntou,esperançosa.–Poderiame
ensinar?–Ah, isso é algoqueeu sei fazer–Drosselmeyer respondeu.–Gostariade
aprenderaserumainventora?Marieassentiu.–Eugostariamuitodisso.–Entãovocêserá–Drosselmeyerafirmou.Marieficouradiante.Olhouaoredorparatodasasrodasquegiravamepara
todasasgeringonçasemitindocliquesnoambiente.Paraela, aquilo separeciacommagia.Magiaqueelaaprenderiaafazer.
CAPÍTULO4
MARIE
OsmesespassaramrápidonapropriedadedeDrosselmeyer.Anevedoinvernoderreteu, cedendo lugar às chuvas frescasdaprimavera e àsbrisas cá-lidasdoverão. Marie se acomodou em sua vida nova. Logo descobriu que o tioDrosselmeyeradministravaapropriedadecomoumamáquinabem lubrificada.Refeições, aulas e atémesmoo tempo livre erammeticulosamente planejadospeloscriados.Marie,porém,nãoseimportava.Oscriadoseramsempregentis,eelasesentiagrataporaquelaestrutura.Sempresabiaoqueesperar.Os momentos silenciosos à noite quando ela permanecia a sós com seus
pensamentos eramosmais difíceis. Sentia saudades imensas dos pais.O sonochegavaagitadoounãovinhadejeitonenhum,tomadoporpesadelosnosquaiselagritavachamandoporelesnoescuro,masdepoissóouviaosprópriosgritosecoando de volta. Contudo, ela se abstinha de contar isso aos criados,preocupando-secomapossibilidadedeelesaconsideraremingrata.–Marie,estácomolheirasdenovo–elesdiziam.–Estoubem–eraasuarespostacostumeira.–Obrigada.Àsvezes,enquantobrincavanojardim,Mariesentiaoperfumedasrosaseera
assolada pela lembrança das flores das quais o pai cuidara com tanto zelo emseusvasosbanhadospelosol.Oupodiajurarquesentiaalguémpousaramãoemsuascostasenquantobrincavacomaboneca,domodocomoamãecostumavafazerquandochegavaahorado jantar.EranessesmomentosqueMariecorriaparaapreciosacaixinhademúsicaqueDrosselmeyerlhedera.Elaaabria,ouviaabelamelodiaeimaginavaoamordospaisalidentro.–Tambémamovocês–sussurravadevolta.OqueMariemais gostava emmorar na propriedadedeDrosselmeyer eram
suas aulas regulares do ofício de inventor. Tratava-se de algo completamentediferente, por isso seus pensamentos nunca se desviavam para coisas tristesenquantotrabalhava.Drosselmeyerainiciaracomobásico:relógiosdepulso,deparede, bonecos de corda e engenhocas. Mas Marie aprendia rápido, e cada
habilidade era dominada com facilidade. Não demorou para que passasse aajudar Drosselmeyer em seus mais recentes protótipos: vagões motorizados;balõesdearquentemecanizados;eatéumaesteiratransportadoraqueabrangiatoda a extensãoda propriedade, possibilitandodeslocar itens de umcômodo aoutrosemanecessidadededarumúnicopasso.–Meninainteligente–Drosselmeyeraelogiavaaofimdecadalição.–Senão
forcomcalma,logovocêestaráensinandoamim.MasMarienãoiacomcalma.Asinvençõeslhetraziamumpropósito–epaz.
Acadanovoinvento,eracomoseelativesseumpoucomaisdecontrolesobreomundo.E, paraumamenininha cujos sonhos eramassombradospor chamas efumaça,essaeraumasensaçãodefatomuitopoderosa.Overãosetornouinverno.ONatalveioesefoi.Edepoismaisum,eoutro.A
cadaano,DrosselmeyerperguntavaaMarieoqueeladesejavacomopresente.“Uma festa!” era sempre a resposta. Assim, ele pedia aos cozinheiros quepreparassem seus pratos prediletos e solicitava aos criadosmaismusicais quetocassemalgumacanção.Emseguida,levavaMarieatéograndesalãoedançavacomelaaoredordaárvoredeNatal,fingindoqueestavamnumelegantebaile.Marie ficou mais alta, e suas mãos, mais firmes ao trabalharem. Sua
preceptora apromoverado ensinobásicoparamatériasmais específicas.Numpiscardeolhos,trêsanoshaviamsepassado,eMariejátinhadezanosdeidade.AcabaraporsentircomosetivessemoradonamansãodeDrosselmeyeravidatoda.A única coisa de que sentia falta, contudo, era de outras crianças. Poucos
amigos de Drosselmeyer eram jovens o bastante para terem filhos com idadepróximaàdeMarie.Epormaisqueelativesseautorizaçãoparaseaventurarnacidade com os criados sempre que os estudos e os inventos lhe permitissem,fazer amigos não era fácil. Morar na casa de Drosselmeyer trazia um ar demistério.Aspessoasficavamintrigadascomela–fascinadas,naverdade–,masospaissemostravamcircunspectosemsugeriremaumhomemtãoimportantequanto Drosselmeyer algo tão trivial como um encontro para as criançasbrincarem. E visto que as crianças não visitavam a propriedade por vontadeprópria,Marieseviapraticamentesempresozinha.Mas ela não se importava, não de verdade.Contanto que tivesse o tio e os
inventos,ficavacontente.Equandonãoestavaestudandonembrincandocomaboneca no jardim, os criados sabiam onde podiam encontrá-la: na oficina deDrosselmeyer.Certa tarde,depoisdasaulas,Marie trabalhavanuminventoparticularmente
complexo.FaziadiasqueDrosselmeyerseausentaraatrabalhoesóvoltariaparacasa no dia seguinte.Marie aproveitou a oportunidade para completar o novo
mecanismoqueeleestiveraaperfeiçoando:umabailarinaquefaziapiruetasnumpalco de fantoches dourado. Para olhos destreinados, pareceria umamarionetenormal. Mas, observando melhor, descobririam que aquela bailarina dançavasemfios.Marieespiouatravésdalupacomsuportearticulado,fazendooajustefinodos
últimosparafusosemminiatura.– Quase pronto, Fada Plum – disse à sua boneca, que estava sentada na
bancadaaoseulado.Abonecaeraoapoioqueelatrouxeradesuavidaanterior:Marienuncaiaa
parte alguma sem ela. Um ou dois anos antes, cometera o erro de levá-laabertamente para as aulas regulares. A preceptora ralhara com ela com tantaseveridade queMarie não voltou a cometer omesmo erro.Agora, escondia aamada companheira em sua bolsa escolar ou atémesmo embaixo das saias sefosse necessário.Marie sabia que isso era um pouco infantil.Mas Fada Plumsempreestiveracomela,desdeantesdoincêndio.– Pronto. –Marie deu um último aperto e se endireitou.A bailarina estava
completa.Elaretiroualupadafrentedoolhoedeucordanaminúsculaalavancanascostasdadançarina.A bailarina ganhou vida com graciosidade, girando ao longo do palco de
fantochessobreduassapatilhasdepontadesedacor-de-rosa.– Está perfeita. – Marie sorriu com orgulho. – Tio Drosselmeyer ficará
satisfeito.Marie olhou para onde Fada Plum estava sentada curvada. Os braços de
porcelanadabonecaestavamapoiadosnabancada,os cabelosde sedacor-de-rosaestavampresosnoaltodacabeça.Linda,masaindaassimestática.– Bem que eu gostaria de fazê-la dançar também – Marie desejou
melancolicamente.–Vocêficariaadorável.–Relanceouosdiversosbrinquedosmecânicosespalhadospelaoficina.Haviaursosesoldadinhosebandasdeumsómacaco.Eramfascinantes,mascomcertezanãotãobelosquantoFadaPlum.Nesse meio-tempo, a corda da bailarina acabou. Ela inclinou a cabeça e
abaixouosbraços,parandodevez.Marie avaliou a bailarina.Depois, olhou para Fada Plum. Sua boneca tinha
articulações de tecido nos cotovelos, joelhos e pulsos. Será que não seriasimples,Mariepensou,substituirotecidoporengrenagens?Ameninaolhouparaabailarina.EolhouparaFadaPlum.–Será?
Bemcedonamanhãseguinte,Drosselmeyerentrounaoficina.Estavacansadodaviagemepretendiadeixar suas ferramentas ali antesde se retirarpara seusaposentos.Mas, para sua surpresa, as lâmpadas a gás ainda estavam acesas eMarieestavaadormecidasobreabancada,comacabeçaapoiadanosbraços.–Marie?–eleachamou,acordando-acomsuavidade.–Dormiuaquianoite
toda?Marieseespreguiçouepigarreou.–Desculpe, tio.–Avozsaiurouca.–Nãotiveaintençãodeadormecer.Eu
estavatrabalhando.Drosselmeyervoltousuaatençãoparaabancadadetrabalho,ondeumalinda
bonecamecanizadadançavasemfios.–Estouvendo–ele respondeu.–Conseguiufazerabailarinadançar.Muito
bem…Ohomemvelhoparou.Observouabonecadecabeloscor-de-rosadançando
aolongodamesa.–Mas esta não é a bailarina na qual estávamos trabalhando. – Ele pareceu
surpreso.ParaDrosselmeyer,issoerabastanteincomum.Abonecadeuumapiruetaperfeitaenpointe.–Estaé…asuaboneca?–Drosselmeyerperguntou,maravilhado.–Sim–Marierespondeucomorgulho.–Nãoémagnífica?–Mascomoéquevocêconseguiumecanizá-la?–Drosselmeyerquestionou
enquantoaassistiaexecutarumprimorosoarabesque.–Leveianoiteinteira–Marieexplicou.Sentia-setotalmentedespertaagora.
–Masasarticulaçõesdelaeramdetecido,sabe.Euassubstituíporengrenagens.O interior da porcelana dela era oco, proporcionando-me espaçomais do quesuficiente para a parte mecânica. Foi bem simples, na verdade, depois quecomecei.Quasecomoseotempotodoelaestivessedestinadaadançar.–Incrível–Drosselmeyersussurrou.–Achamesmo?–Marieperguntou,radiantedeorgulho.–Claroquesim–Drosselmeyerrespondeu,osolhosfixosnaboneca.FadaPlumvirouorostoparaele.Acabeçainclinou.–Seeunãosoubesseoquevocêfez–disseele–,seriacapazdeacreditarque
elaganhouvida.
CAPÍTULO5
CLARA
Amultidão bateu palmas quando a bailarina se curvou e deixou o palco comgraciosidade.–Incrível!–umconvidadoexclamouaudivelmente.–Simplesmenteincrível!–Bis!–puxouumhomemdesmoking.Drosselmeyerobservavada lateral.Clara estava ao seu lado.Todosos anos
sempre havia uma apresentação grandiosa de coral natalino para entreter osconvidadosantesdo fimdanoite.Contudo,esteano,DrosselmeyeroptaraporumbalédeNatalcompleto,comasbailarinasvestidasdefadaseosbailarinos,dequebra-nozes.–Asdançarinasestavammaravilhosas,padrinho–Clarasussurrou.Drosselmeyersorriu.–Defato,estavam.Masamelhorparteaindaestáporvir.Ohomemvelhofoiparaopalcosobumburburinhodeexpectativa.– Senhoras e senhores – anunciou ele –, chegou a hora da minha parte
predileta do Natal, minha parte favorita desta noite. Permitam-me lhesapresentar…seuspresentes!Com um floreio, criados abriram as grandiosas portas de vidro que davam
paraojardimdamansão.Criançascomemoraramcomgritosecorreramparaoargélido.O terreno dos jardins da propriedade de Drosselmeyer era um verdadeiro
espetáculo: um labirinto intricado de flores e arbustos, alguns ainda floridosmesmonofrioinvernal.Imensasesculturasromanasmantinhamvigíliaenquantoascriançascorriamemtodasasdireções,passandopeloslaguinhoscongeladoseao redor do adornado gazebo. Bem ao estilo de Drosselmeyer, tudo erailuminado por raras lanternas chinesas, que emitiam um brilho vermelho edourado.Masoquemaischamavaaatençãoeraacolorida teiadecordasquepartiadocentrodogazeboecobriatodoojardim.–Umafestadeteiadearanha!–exclamouumadascrianças,encantada.
Osfiossecruzavamparaláeparacá,rodeandoesculturaseseentrelaçandoporentregalhosearbustos.Eemcadaumadascordashaviapresaumaetiquetacomonomedeumconvidado.–Meuscarosamigos–Drosselmeyeranunciou–,criançaseeternascrianças.
Encontremacordacomoseunome,eelaoslevaráaoseupresente.Énecessárioumpoucodeesforço,comopodemver.Nãohádúvidasdequeavidapodeserumdesafio.Maseu lhesgaranto,existesemprealgo interessantenofinal.Boasorte!Umavigorosaaclamaçãoseelevoudamultidãoenquantovelhosejovensse
entregavam à diversão, à procura do seu nome, escorregando e deslizando naneve,erindodeleitados.Drosselmeyerficouobservando,assentindosatisfeito.Então,notouqueClara
aindaestavaaoseulado.–Háumpresenteparavocêtambém,Clara–eleaencorajou.–Obrigada–Clararespondeu,hesitante.–Maspossoirmaistarde?Drosselmeyerbateuaspalmasdasmãos.– Minha querida Clara, é véspera de Natal! Uma época de mistério e de
expectativa.Quemsabeoquepodeacontecer?Eunãoesperariasefossevocê.Com isso, Clara deu um amplo sorriso. Se Drosselmeyer dizia que era
importante,entãocertamentedeveriaser.Seguiuparaojardimcomossaltosaltosdosseussapatosdefestaesmagando
a neve. Alguns convidados já haviam encontrado seus presentes e brincavamcom eles no centro do gazebo. Crianças mordiscavam doces em forma debengalinhas.Adultos semaravilhavam comminúsculas bugigangasmovidas acordaenquantoasfaziammarcharaolongodosmurosdojardim.Umacriançaatépuxavaumcavalodebrinquedodemadeiracomrodinhas.Mas logoClarapercebeu que, na verdade, a criança não o estava puxando – o cavalo debrinquedoeramotorizado!Clara passou amão ao longo da colorida teia de cordas. Como encontraria
aquelacomoseunome?Haviatantas.Foientãoqueelanotouumacordadiferentedetodasasoutras–eradourada,
brilhante sob a luz das lanternas. Somente ela parecia intocada pelamultidão.Caminhouemsuadireção,saltandosobreumgrupodecriançasquebrincavadecincomariasnaneve,atéchegaraofimdacordadourada,queenvolviaaestátuadeumanjo.Aetiquetacomoseunomeestavalá.Clara,lia-senumacaligrafiatodarebuscada.Deuumlevepuxãonacorda,eelasedesprendeudaestátuacomfacilidade,
indicandoocaminhodevoltaàmansão.Que estranho, pensou. A sua corda era a única que conduzia para fora do
jardim.Elaaacompanhou,enrolandoapontasoltacuidadosamenteaoredordapalma da mão conforme avançava. A corda atravessava as portas duplas dograndesalão,subiapelaescadariaeseguiaaolongodeumcompridocorredor.–Meupresentedeveestarescondidoemalgumlugarnamansão–disseasi
mesma.O corredor estava praticamente deserto.Algumas poucas crianças passavam
porali,perseguindoumasàsoutrasebrincandocomseuspresentes.Claraseguiusuacordacomatenção.Derepente,umbonecoquebra-nozesapareceudonada.–Veja!–umavozjovemexclamou.Era Fritz, sacudindo seu presente. Drosselmeyer o presenteara com um
soldadinho quebra-nozes feito à mão com um lindo uniforme e um chapéuimponente.–Umsoldadoquebra-nozes!–Claraexclamou.–Quelindo!–VoumostrarparaopapaieparaLouise!–Fritzexclamouantesdedescera
escadariaapressado.Clarariu, felizemverqueFritzestavasedivertindo.Depois,voltouaolhar
para a sua corda.Ficou imaginandoque truqueopadrinho tinha escondidonamanga. Sorrindo, estendeu a mão para segurá-la e continuou em sua busca.Seguiu-acontornandoasacada,passandoporumsalãoeprosseguindoporumcompridoedesertocorredor.Claraolhouparatrás.Estavasozinhaagora,distantedaalgazarradafesta.Por
ummomento,ficouimaginandosenãohaviapegadoocaminhoerrado.Nuncaestiveranaquelapartedapropriedade.Masnão,suacordadouradaaindaestavaesticadaàsuafrenteportodaaextensãodocorredor.Extremamentecuriosaagora,Claraprosseguiu.Aquelecorredoreradiferente
de todos os outros da mansão. Seu piso era axadrezado, com hexágonosvermelhos,pretosedourados, eumestranhopapeldeparedeo revestia.Claraolhou com mais atenção para o padrão do desenho. O papel de parede eratotalmente decorado com a silhueta de pequenos ratinhos sobre um fundovermelho.Ao fim do corredor, havia uma pesada porta de madeira fechada. A corda
passavaporbaixodela.–Meupresentedeveestaraídentro–Claraconcluiu,perplexa.Oquepoderia
haveraídentro?,perguntou-se.Umestúdio?Quemsabeoutraoficina?Sóhaviaummododedescobrir.Girou amaçaneta e empurrou a porta, abrindo-a. Ela rangeu como se suas
dobradiçasnãofossemlubrificadashámuitotempo.Alémdaporta,haviaoutrocorredor,envoltoemescuridão.Acordadouradacontinuavapelassombras.–Qualseráopresentedopadrinhoparamim?–Claraseperguntou.
Casoestivesseemqualqueroutrolugar,elaestariacomeçandoaficarnervosa.MasaquelaeraamansãodeDrosselmeyer.Elaconfiavanele,assimcomoamãeconfiara. Sim, ele era excêntrico, mas engenhoso e gentil. Como um grandeinventor deveria ser.Qualquer que fosse a surpresa que ele tivesse planejado,certamenteseriaextraordinária.Claraseaventurounoescuro,cadavezmaisdistantedobrilho tremeluzente
das luzes do salão. Segurava o cordão dourado com firmeza com uma mãoenquanto a outra deslizava pela parede do corredor, de modo que ela não sedesequilibrasse.Queestranho,pensou, farejandooar.Operfumedasagulhasdepinheirosa
envolvia,muitomaisfragranteefrescodoqueodasguirlandasquedecoravamograndesalão.Uma rajada de ar frio passou por ela, forte o bastante para levar os fios de
cabelosoltosàfrentedorosto.–Devehaveralgumajanelaabertaporaqui.–Claraestreitouoolhartentando
enxergarnaescuridão.Masdenadaadiantou.Nãohavialuznocorredor.Aúnicacoisaqueamantinhafirmeeraamãoqueresvalavanaparede.Derepente,sentiualgoestranho.Aparedequeatéummomentoatrásestivera
tãolisaagoraestavaáspera,comomadeiranãolixada.Deumaisalgunspassosàfrente e estendeu amãonovamente.Sentiu algonodoso e retorcidodesta vez.Emseguida,amãodeClarapassouporcimademusgo.Eraotroncodeumaárvore.Onde estou?, Clara pensou surpresa. Como posso estar do lado de fora
quandoaportaaofimdocorredorficavanosegundoandar?Agulhasdepinheiroresvalaramemseurosto.Umgalhoseprendeuaosseus
cabelos.Elaavançou,segurandocomforçaacordadourada,atéque,finalmente,saiudaescuridãodocorredorparaobrilhosuavedaluzdoluar.Clarainspiroufundo.Jánãoestavamaisnumcorredor.NemnapropriedadedeDrosselmeyer.Estavanumaflorestacobertadeneve,cercadaporpinheirosatéondeavista
alcançava.
CAPÍTULO6
MARIE
–Tio,porquenãousamosestecorredor?MarieestiveraajudandoDrosselmeyeracarregarummontedepartesvelhas
de máquina e de invenções não terminadas de um corredor de depósito damansão.Eraumcorredorestranho,compisoxadrezvermelho,douradoepreto.Umdesenhopeculiardecoravaopapeldeparede,mas,comtodoaquelepóeasteiasdearanhaqueocobriam,Marienãoconseguiadeterminaroqueera.Drosselmeyerbateuasmãos,limpando-as,tomandocuidadoparanãosujaras
calças. Mesmo carregando quinquilharias, ele ainda estava impecavelmentevestido.–Minhaquerida–eledisse–,quandochegaràminhaidade,vocêdescobrirá
quepossuimuitascoisasdequenãonecessariamenteprecisa.–Olhouaoredorparaasparedeseotetodocorredor,comoseoobservassepelaprimeiravez.–Moronestamansãohámuitosanos.Masnemmesmoeuconheçotodososseussegredos. Talvez, quando eu era um homem jovem, teria explorado todos oscantosdestelugar.Hojeprefiropassarmeutemponaoficina,ondesintoqueéomeular.–Masistoépartedoseular–Mariedestacou.–Verdade–disseele.–Masserviumelhorcomoumlarparaosinventosem
quenãoestoutrabalhando.Marie se maravilhou ante os aparelhos há tempos intocados ali deixados.
Máquinas de costura com engrenagens e pistões ligados aos pedais. Umabicicleta com um apêndice em fole ligado a um forninho a lenha. E aquelesseriampatinsmovidosavapor?–Osenhorinventoutudoisso?–elaperguntou.– Sim e não – Drosselmeyer admitiu. – Alguns eu criei. Outros, reuni em
minhasviagens.Masmexiem todoseles,evocêpode tercertezadequecadaumdelestemumahistória.–Equantoàquele?–Marieapontouparaumbalãoemminiaturapendurado
numganchocurvilíneo.Umacestinhaminúsculacomumacorreiadetransporteestavaligadaaobalãoporbarbantes.–Umbalãodearquentemovidoporratos–Drosselmeyerexplicou.–Assim,
atémesmoosnossosmenoresamigospodemapreciarumavistadoalto.Mariedeuumarisadinha.–Eaquele?–Indicouoquepareciaserumpardeasasmecanizadas.–Ah.Agrandiosafugaaérea–Drosselmeyerdissecomumbrilhonoolho.–
Umahistóriadosmeusanosmaisjovens,masnãoumrelatoparahoje.–Equantoàquilo,alino fundo?–Elaapontouparao fimdocorredor.–A
invençãodourada.Oqueéaquilo?Com o brilho fraco da lamparina, Marie e Drosselmeyer só conseguiam
enxergaroreluzirdouradodoaparelhonaextremidadedocorredor.–Minhanossa–Drosselmeyerdissebaixinho.–Oqueissoestáfazendoaqui?Elecomeçouaabrircaminhoemmeioàsquinquilharias, indonadireçãodo
fundodocorredor.Quandochegouaoinventodourado,parou.–Oqueé, tio?–Marieperguntou, tambémabrindoespaço,desajeitada,em
meioàbagunça.–Parece-secom…Oh!Diantedeles estavaobelo relógiodepênduloqueDrosselmeyermostrara a
Marieemsuaoficinalogodepoisdachegadadelaàpropriedade.Mas,agora,orelógio inteiroestavacobertoporumagrossacamadadepoeira, eosnúmerosestavamdesbotados.Eracomoseapeçatodativesseescurecido,esperandoparaseracesapordentrocomumaluzdourada.– Esse não é… o relógio que o meu pai o ajudou a consertar? – Marie
perguntou.–Éelemesmo.–Drosselmeyerassentiulentamente.–Masnãoentendooque
eleestáfazendoaqui.Eupoderiajurarqueeleaindaestavanaminhaoficina.–Tambémpensei que estivesse –Marie acrescentou. –Eu costumavaolhar
para ele todas asmanhãs.Mas está tão empoeirado, deve estar aqui hámuitotempo.Estranho,tio.Nãomelembrodeterdadopelasuafalta.–Eeunãomelembrodetê-lomudadodelugar–disseDrosselmeyer.–Que
estranho.MarienuncaouviraDrosselmeyerfalardessamaneira.Relanceouorostodele.
Umaexpressãoindefinidacruzavasuasfeições.Espanto?–Então,paraondeaportaleva?–elaperguntou.Drosselmeyerbaixouoolharparaela,confuso.–Porta?–elequestionou.–Sim.–Marieapontou.–Aportademadeiraatrásdorelógio.Drosselmeyer voltou a atenção para a parede diante deles. Seu olho
descoberto se arregalou. Uma pesada porta de madeira estava logo atrás do
relógio,imponenteetrancada.– Ora, ora, isso sim que é estranho – disse. – Não sei para onde ela leva,
porquenuncapasseiporela.–Devemos…devemosabri-la?–Marieperguntou.–Sim–Drosselmeyerrespondeu.–Achoquedevemos,sim.Comcuidado, ele eMarie empurraramo relógiodepênduloparao lado.A
basedapeçagemeuemprotesto,deixandomarcaslargasnapoeiradochão.–Oh!–Marieexclamou.Algosemoverapordetrásdorelógio.Squick!Eraumgrandecamundongo.Oroedorcorreuemumcírculoantesde
fugirdesaparecendodebaixodaspilhasdeinvençõesempoeiradasnocorredor.– Talvez nosso amigo peludo já saiba o que há detrás dessa porta –
Drosselmeyer disse comuma risada. –Vamosdescobrir também. –Segurou amaçaneta.–Notrês?–perguntouaMarie.Contaramejuntosempurraramapesadaportademadeira.A poeira se ergueu. Depois da soleira, havia uma escuridão povoada de
sombras. Nada de janela nem de iluminação. Passar por ela seria como pisarnumabismo.–Nãogosto disso, tio –Marie confessou, começando a se sentir umpouco
incomodada.–Achaquepodeserperigoso?–Venha,vamoslá–Drosselmeyeraencorajou.–AMariequeconheçoestá
sempre pronta para uma aventura. Contanto que eu esteja com você, prometoqueestarásegura.Ele apoiou uma mão em seu ombro para tranquilizá-la, e juntos eles
adentraramnodesconhecido.A princípio, não conseguiam enxergar muita coisa. Contudo, quanto mais
avançavam, mais os olhos se ajustavam à escuridão. Viram-se num corredorinacreditavelmente comprido. Ele seguia e seguia, cada vez mais distante docorredordepisoaxadrezado.UmabrisafortesubitamentesoprouoscabelosdeMariedorosto.Devehaverumburaconaparededamansão,elapensou.–Vejoalgo–eladisse.–Maisadiante.Umbrilhosuavenofimdotúnelsetornouvisível–rosadoaprincípio,depois
laranjaeamarelo.–Tio,asparedessãofeitasdecascadeárvore.–Marieestendeuamãopara
tocaraslateraisdocorredor.Drosselmeyerfezomesmo.–Sãomesmo–confirmouele.–Muitocurioso.Elesprosseguiram,ealuzfoisetornandomaisforte.Asparedesdocorredor
pareceramsumir,dandolugaratroncosdeárvoreindividuais.Ecomonascerdosol,tantoMariequantoDrosselmeyerperceberamondeestavam.
–Tio,estamosnumafloresta!–Marieexclamou.Ela estava certa. Estendendo-se diante deles havia uma vastidão de árvores
perenes. Caminhos gramados cobertos de orvalho se intercalavam com asárvores.Eoarestavafrescocomoperfumedospinheiros.–Aportanostrouxeparaoladodefora!–Marieconcluiu.MasDrosselmeyermeneouacabeça.–Nãohánenhuma florestaemLondres.Parecequeviajamos…paraalgum
outrolugar.–Comoissoépossível?–Mariequissaber.–Nãotenhocerteza–ohomemvelhorespondeu.–Venha,vamosavançarum
poucomaisparaversearespostaestálogoadiante.Juntos, embrenharam-se nas árvores. Mas não importava o quanto
avançassem,sódescobriammaisperguntas.Aflorestapareciadensa,repletadecaminhos tortuosos que se entremeavam pelos pinheiros gigantescos, todos seerguendomajestososparaocéuazul-claro.MarieeDrosselmeyersealternavamem escolher que direção seguir, atentando para o trajeto que tomavam edeixando pinhas pelo caminho para, assim, evitar que se perdessem. Era umlugar incrível, Marie pensou. As árvores eram de um verde extraordinário,vibranteevivo,enãohaviasequerumgalhonemumaagulhadepinheirocaídono chão. Nunca pensara que uma floresta pudesse ter uma aparência tão…perfeita.Continuaramvagandoporquaseumahorasemteremnenhumindíciodeonde
estavam.Então, por fim,bemquandoo estômagodeMarie começoua roncaransioso pela hora do chá, as árvores começaram a ficar esparsas, e ameninaouviuosomdeáguacorrente.–Estáouvindoisso,tio?–perguntou.–Achoqueéumrio.– Talvez – considerou Drosselmeyer. – Mas, para mim, mais parece uma
queda-d’água.Avançarampelasúltimasárvoresechegaramaolimitedafloresta iluminado
intensamentepelosol,osomtrovejantedeáguaficandocadavezmaisaltoatéqueelesoviram:ofimdaflorestaeocomeçodetudo.–Tio!–Marieexclamou.–Écomosefosseoutromundo!MarieeDrosselmeyerchegaramaumprecipíciogramadocomvistaparauma
paisagemmaravilhosa, interminável até onde se podia ver, e de tirar o fôlegotamanha a sua pureza. Campos de flores se estendiam por quilômetros,ondulando em cores suaves.Montanhas distantes brilhavam com o indício depicosnevados.Ediantedeles,poucosmetrosalémdogramado,haviaumafendaimensa que despencava centenas de metros até o rio caudaloso abaixo. Odesfiladeiroserpenteavaaoredordeumailhacentral,separadadoscamposedas
montanhascomoumsantuárioperfeito,comumacascatafuriosasederramandonoprecipício e ligada à terra firmeporumaúnicapontedepedrasque cobriatodaasuaextensão.Nenhumapessoaouanimalsemovianaquelavistaincrível.Eracomosetodo
aquelecenáriofosseinabitado,anãoserporumdetalhebemnotório:–Umpalácio–Drosselmeyersussurrou.Erguendo-seemesplendornailhahaviaummagníficopalácio,umacintilante
construçãoempedracoloridaetorreõescirculares.Janelassalpicavamastorres,brilhandocomcristaisevidros.Eosdomosornamentaisnotopodecadaespiralpareciam,paraMarie,quaseperfeitasbolasdesorvetesobrecasquinhas.Sentiuocoraçãodispararanteabelezaimpossíveldetudoaquilo.Eracomoumavisãode um livro de histórias, um sonho transformado em realidade.A imaginaçãoganhandovida.–Ondeestamos,tio?–foisóoqueelaconseguiudizer.–Eunãosei–Drosselmeyerrespondeu,igualmenteatordoado.–Nãoeraisso
oqueeuesperavaveraopassarporaquelaporta.Mas,agoraqueestamosaqui,issopede…umaexploraçãomaisdetalhada.
Efoiexatamente issoqueMarieeDrosselmeyer fizeram.Todososdiasporquaseummês,entreinvençõeselições,elesvoltaramparaaquelaportanofimdo corredor e entraram nomundomágico além dosmuros da propriedade. Apaisagem parecia se estender infinitamente, com incontáveis quilômetros decampos e vales e riachos para transpor.Atémesmoo palácio central continhamaiscômodosdoquesepoderiaexplorarnumúnicodia.Eracomoseumnovoreino inteiro se abrisse através da porta de um corredor empoeirado eabandonado,eeraassimqueMarieeDrosselmeyerchamavamaquele lugar:oReino.Elesnão faziamamínima ideiadeonde oReino ficava, exatamente.Tendo
viajado o mundo, Drosselmeyer tinha bastante certeza de que aquela terramisteriosanãoexistiaemmapaalgum.Masdescobriramtrêscoisas.Primeiro, oReino era inabitado, desprovido de quaisquer animais ou outras
pessoas.Emboraalguémevidentementetivesseconstruídoaquelepalácio,quemou o que quer que fosse há tempos fora embora. Os cômodos cavernososestavamvazios,semmobílianemdecoração.Eracomoseestivessemesperandosilenciosamenteporumnovohóspede–ouumnovoproprietário–paraenchê-losdevidaedelembranças.Segundo,otempopassavamuitomaislentamentenoReinodoquenomundo
exterior. Horas passadas nos campos pareceriam meros minutos quandovoltavam à mansão. Marie e Drosselmeyer podiam passar um dia inteiroexplorandoeaindaassimretornariamàhoradochá.E terceiro, coisas que existiamnoReino não podiam ser levadas aomundo
real.Mariedescobrira issoporacaso.Umdia,enquantoelaeDrosselmeyersedivertiamcomumpiqueniquenagramamacia, ela teceraumacoroade floressilvestres.–Ah,Marie,masquelindo!–Drosselmeyeraelogiara.– Não se preocupe, tio –Marie rebateu. – Farei uma coroa para o senhor
também.Ohomemvelhodeuumarisada.–Osmelhoresinventoresjamaisperdemolampejodeumasurpresadivertida.
Lembre-sesempredisso.Mais tarde,Marie e Drosselmeyer regressaram à mansão, ambos com suas
coroas.Mas nomomento em que passaram pela soleira da porta do corredor,entrandonomundoreal,osdelicadosgalhosprimaverisdesapareceramcomopóàluzdosol.–Ah!–Marieexclamara.–Paraondeforam?Drosselmeyerdeuumtapinhanacabeça.–Nãosei.–Olhouatravésdaporta.–NuncapenseiemtrazernadadoReino
aomundoreal.Curioso.– Mas as flores não eram reais? – Marie perguntou. – Eram bem reais
enquantoeutrabalhavacomelas.Embora…–Fezumabrevepausa.–Lembro-medeterpensadoquequeriafloresazuisparaasuacoroa,massótinhafloresrosacomigo.E,então,derepente,noteialgumasazuisbemondeestivesentadaotempo inteiro. Foi estranho, porque tinha certeza de que antes só havia florescor-de-rosa.– Então, você imaginou flores azuis e, de repente, elas apareceram? –
Drosselmeyerquestionou.Mariedeudeombros.–Nãotenhocerteza.Talvez?Ohomemvelhoassentiulentamente.–Aindamaiscurioso.–Masoqueissosignifica?–Marieinsistiu,repentinamentepreocupadaque,
talvez,aqueladescobertafantásticadelestivessesidosempreumamerailusão.–Acreditoquesignificaquecoisasquenãosãopossíveisaquisãopossíveis
noReino–elerespondeu.–Entãonãosãoreaisdeverdade?–Marieperguntou,desapontada.Passaraa
amaroReinoeosmomentosfelizesquetranscorriamexplorando-ocomotio,e
nãolhepareciacertoqueaquilotudofossefalso.Drosselmeyervirou-separaela.–Oquea fazdizer isso?Pelocontrário,éextraordinárioemuito reala seu
modo,feitodamaispuraimaginação.–Ah.–ComissoMariesealegrou.–Então,achaque…talvezeupossacriar
maiscoisasnoReino?Comoasflores?Drosselmeyerponderouarespeitodaperguntaporumtempo.– Creio que não vejo mal algum nisso – respondeu por fim. – Afinal, a
imaginaçãoéberçodasinvenções.UmsorrisoamploseespalhoupelorostodeMarie.– Ah, obrigada, tio! Muito obrigada! Pense em como será divertido fazer
coisasnovasnoReino.Veroqueépossível!OhomemgargalhouaoverMarietãoradiante.–Creioqueéoiníciodeumagrandeaventura–disseele.Então,pousouas
mãosnosombrosdela.–Apenasselembredoseguinte.Somentevocêpodedarvidaaosseussonhosnavidareal.Esóháumavocênomundoreal.Nãosepercaapontodeseesquecerdevoltar.–Nãofareiisso,tio–Mariedisse.–Euprometo.
CAPÍTULO7
CLARA
Clara não acreditava no que via. A corda dourada a levara através de umapassagematéumaflorestadeinvernoencantada.Mas onde fica isto?, ela pensou. Estive em toda Londres e nunca vi uma
floresta. E por que há tanta neve mais aqui do que no jardim? Houve outratempestade enquanto eu seguia o cordão? Essa neve toda poderia ter seacumuladotãorápido?AsperguntaspercorriamamentedeClara,parecendoecoarsemrespostasem
contraste com o silêncio pacífico da floresta. A única coisa certa era que ocordãodouradocontinuavaatravésdasárvoresgrossas,oquesignificavaqueopresentedeDrosselmeyeraindaestavaàsuaesperaemalgumlugar.–Imaginoquesóhajaumacoisaafazer.–Clarainspiroufundoeseguiuem
frente.Passoupelosgalhosespinhososdospinheiros,seuspassosesmagandoaneveseguindoofiodouradoqueaconduziaaumaclareira.Claraarquejou.No centro da clareira havia amaismaravilhosa das vistas – uma árvore de
Natal, alta e imponente, reluzindo com pingentes de gelo e frutos vermelhosreluzentes.Que lindo! Clara olhou estupefata para os ramos da árvore.É… é como a
árvore que mamãe costumava decorar em nossa sala, só que real. Frutos deverdadeepingentesdegelodeverdade.Clarasesentiuincrivelmenteemocionada.Comofoiqueopadrinhofezisto?,perguntou-se.Deveterlevadoséculospara
decorá-la.Encantada,Claraseaproximoudaárvoreetocounumdosfrutos.–Ah!–exclamou.Afrutavoouparalonge!Nãoeraumfrutodeverdade.Eraumvaga-lumetãocoloridoquantoumdoce,
piscando magicamente contra o céu noturno. O minúsculo inseto pousou no
narizdeClara, fazendocomqueela ficassevesgaao fitá-lo.Depois, zuniudevoltaparaaárvore.Encantada,Clara deu umchacoalhão na árvore.Umenxamede vaga-lumes
luminosos encheu o ar, dispersando-se pela floresta em milhares de pontosluminosos.–Incrível!–Clarabateupalmas.Comadispersãodosvaga-lumes,aárvoreficousemdecoraçãoanãoserpor
um objeto dourado que brilhava num galho alto. O enfeite estava ligado aocordãodamesmacordeClaraetinhaaextremidadenaformadeumaestreladeseispontas.Achavedacaixinhadesuamãe.Clarasentiuocoraçãosaltar.–Eujádeveriasaber.Estendeuobraçoparaoalto,ficandonaspontasdospésparaapanharachave.
Osdedosestavamprestesatocá-laquando…Umratosujodeslizoupelogalhodonadaeapanhouachavecomosdentes!E
fugiucorrendo.–Ei,issoémeu!–Claragritou.Masoratojáhaviapartido,disparandoparaafloresta.–Volteaqui!–Claraberroucomveemência.Segurouasaiadovestidoese
lançouatrásdoratofugitivoomaisrápidoquepôde.Opequenolarápioestavafugindocomopresente–seupresente–,aúnicacoisaquepoderiadesvendarosegredodoovoerevelaramensagemfinaldesuamãe.OspésdeClaraestavamse machucando nos desconfortáveis sapatos de festa que Louise a obrigara acalçar,maselanãolhesdeuatenção.Tinhaquerecuperaraquelachave!Galhosdepinheirosarranhavamseurostoeraízesretorcidasafaziamtropeçar
enquantoelacorria.Elasentiavergõesseformandonasbochechas,estragandoopóqueLouiseaajudaraaaplicar.Tinhacertezadequeairmãralhariadenovocomelaassimquevoltasseparaafesta.PeloamordeDeus,Clara,olhesóoseuestado!Oqueandoufazendo?Claraquaseconseguiaouvi-ladizendoisso.Masseguiuemfrentemesmoassim.Nãoperderoratodevistaeraaúnicacoisaqueimportava.Felizmente,opelomarromsedestacavacontraabrancuradaneve.EClaraoseguiacomoaumfarol,semdesacelerarpararecobrarofôlego.Oratocorreuatéofimdafloresta,equandoeleirrompeudasárvoresparao
campo aberto, Clara teve certeza que conseguiria persegui-lo. Mas quandochegouaolimitedafileiradeárvores,Claraarquejoueinstintivamenteparouderepente.Havia um cenário nebuloso diante de si. Nas sombras, ela só conseguia
vislumbrar a silhueta de construções decadentes. Paredes caídas e máquinas
quebradas. As ruínas de uma cidade, abandonadas para o musgo e para avegetação.Clara não gostou daquilo. Não lhe parecia certo. Um canto abandonado de
Londrescertamentenãoeraumlugarparaoqualopadrinhoaconduziria.Eladevia ter se perdido.Afinal, o rato a fizera se desviar do caminho commuitarapidez.MasClaratinhaquerecuperarachave.Eraoúnicomododedescobriraúltimamensagemqueamãelhedeixara.Noslimitesdasruínashaviaumaárvoreretorcidaefeia.Acascapendiatorta
e apodrecida ao longo do tronco. Há tempos não devia mais ter folhas nemramos.Oratoestavanumdosgalhosnus,observandoClara.Umdosolhosdebola de gude era fechado por uma cicatriz. A chave dourada pendia em seusdentes.–Essa chavemepertence–Claradeclarou.Moveu-senadireçãodo ladrão
peludo.Mas,então,muitodeleve,aárvoreinteiratremulou.Elasemexeu.Claraestacouquandomilolhosseabrirameaencararam.Aárvoreestavacobertaporratos.Ameninarecuouderepulsa.Ratoeirasmecanizadaspodiamserumadassuas
especialidades, mas ela nunca vira tantos roedores reunidos antes em um sólugar.Ainda assim, recusou-se a ir embora. Nada a faria ir embora sem aquela
chave.Um dos ratos avançou na sua direção, estalando os dentes.Depois outro, e
mais um. Clara se manteve firme… mas um rato saltou e aterrissou no seuombro!Elaberrou,afastando-ocomumtapa.–Xô!Váembora!Maisratospularam.Maispatinhasseagarraramaoseuvestido.Váriosratos
seemaranharamemseuscabelos!–Saiamdecimademim!Saiam!–Claragritou.Elagolpeavaeagarravaos
ratosàmedidaqueseacumulavamsobreela,maselescontinuavamavançando,forçando-a a se distanciar da floresta, na direção da cidade arruinada. – Porfavor!–implorou.–Eusóqueroaminhachave!Subitamente, o som ribombante de cascos ecoou na escuridão. Um jovem
vestindouniformemilitarsurgiugalopandopelaneblina,brandindoumaespada,comacabeçaerguida.–Emguarda!–eledesafiouosratos.Osoldadovalentegolpeou,cortandoumaretorcidamassaderatosqueatacava
Clara.Osratosguincharamfuriosos,espalhando-seanteaferroadadaarmadosoldado.Muitossemoveramnadireçãodeledenovo,masosoldadoarremeteunovamente,obrigandoosratosarecuaremnanoite.
Clarapassouumamãopeloscabelos,certificando-sedequenãorestavamaisnenhumroedorali.Virou-segrataparaosoldado.– Capitão Phillip Hoffman. – O soldado guardou a espada e fez uma
reverênciaaClara.–Nãoseioquefazaqui,massuba.Precisamosirembora.EsticouamãoparaajudarClaraamontarnocavalo.Elahesitou.–Irembora?–elarepetiu.–Nãoposso.Aqueleratoestácomaminhachave.–Souumgrandeadmiradordebravura emcircunstânciasnormais–Phillip
respondeu.–Mas,acrediteemmim,estenãoéolugarparaficarparadaàtoaemumvestidodefesta.–Evocêmedizisso?–Clarabufou,olhandoparaouniformeestranhodele.
Sabia que muitos dos conhecidos do padrinho vinham de diversas partes domundo,maso trajedesse soldadonão separecia comnenhumoutrouniformemilitarqueelajátivessevisto.Parecia-sequasecomouniformedosoldadinhoquebra-nozes de Fritz! –Eu não li as palavras “festa à fantasia” no convite –disse.Phillipfranziuocenho.–Queconvite?–ParaafestadeNatal,éclaro–Claralheesclareceu.–Nãovouemborasem
aminhachave!Bemnessahora,ClaraePhillipouviramos inconfundíveisguinchosagudos
demilratos.Elesseviraram.Naneblina,osroedoresestavamsereagrupando,escalandounsporcimadosoutrosechicoteandojuntossuascaudasnumamassagiganteeondulante.–Oqueelesestãofazendo?–Claraperguntouenojada.Os ratos continuaram a se agrupar, subindo uns sobre as costas dos outros,
suas garrasmergulhando nos pelos um dos outros. O rato com a cicatriz queroubaraachavedeClaraestavabemnomeio.Amassainteiraoscilou,tomandoaformadeumratogigantecompatascruéisedentesrangentes.–EstãoformandooReiRato–Phillipavisou.–Temosquesairdaqui.Agora!Mas não haviamais tempo.OReiRato deu umpasso desajeitado à frente,
chicoteandocomsuacaudarastejanteformadapormilroedoresdeolhosnegrose brilhantes. O cavalo de Phillip empinou e disparou aterrorizado. O valentesoldado empunhou a espada, mas era muito tarde. O Rei Rato o golpeou,arremessando-odecostassobreummontedeneve,atordoadoedesarmado.OReiRatoberrou.Pairouacimadele,prontoparaatacar.Claraassistiu,congelada.Oquepoderiafazer?Tinhaquesalvá-lo!Olhoufreneticamenteaoredor,buscandoporalgumacoisa–qualquercoisa!–
que pudesse usar como arma. Mas as únicas coisas que eram remotamenteafiadas eram a espada de Phillip, que estava fora de alcance, e seusmalditos
sapatosdefestapontudos.Seussapatos!Semrefletirsobreissodefato,Claraarrancouumdossaltosdo
péeoatiroubemnocentrodoretorcidoReiRato.Bemnoalvo!Osaltoafiadoatingiuo ratocomacicatriz, lançando-opelos
ares.Eleguinchouderaivaenquantodesapareciananeblina.AchavedeClarasaiuvoandodabocadoroedoredesapareceuemmeioàsruínasdacidade.OenormeReiRatocambaleou.Semseulídercentralparacontrolá-lo,osratos
perderam o equilíbrio. Esforçaram-se para se reagrupar, mas a distração deutempo para que Phillip se recompusesse. Apanhando a espada, ele atacou acriaturacomvontadeatéquemaisemaisratosfossemseparadosaosgolpesdoamontoado.Desorientados,elesrecuaramparaafloresta.Os últimos chiados de ratos desapareceram por entre as árvores e, simples
assim,ClaraePhillipforamdeixadossozinhosnosilêncio.Clararecuperouseusapato.Olhouparaelecomnovosolhos.–Servemparaalgumacoisa,nofimdascontas–murmurou.Phillip bateu no uniforme para tirar o pó, aproveitando-se de ummomento
paraserecompor.Depois,lançouummeiosorrisoirônicoparaClara.–Omeuprimeiroresgatedeumadamaemapuros,curiosamente.–Eu,umadamaemapuros?–Claraquestionouincrédula.–Nãofuieuquem
resgatouvocê?– Bem, imagino que tenha sidomeio ameio. Você é boa empunhando um
sapato.FoiavezdeClarasorrir.GostoudafranquezadePhillip.Elenãoeracomoos
garotosdesordeirosqueestavaacostumadaavernacidade,comsuasbolasdegudeetruquesdecartas.Eele,certamente,eraosoldadomaisjovemcomoqualelajáhaviadeparado.–SouClara–apresentou-se.–Eachoqueminhachavefoipararemalgum
lugarporali.Começou a caminhar mais para o interior da cidade em ruínas. Phillip a
seguiu.–Não,espere!–exclamouele.–Estenãoéumlugarparaficarprocurando
porchaves.Elesvãovoltar,enãosóeles.–Éimportante–Clarainsistiu,perscrutandoassombras.–Importanteobastanteparaarriscarasuavida?–Phillipperguntou.Claraofitoucomestranheza.–Queespéciedesoldadopermitequealgunsratosodetenham?–Algunsratos?–Phillipperguntouchocado.–Ouvocêémuitocorajosaou
nãofazideiadoque…Eleparou,comoseumpensamentoterríveltivesselheocorrido.
–Oh,não.VocênãoédosReinos,é?Clarafranziuocenho.–QueReinos?Nummovimento ligeiro, Phillip agarrou Clara e a puxou para trás de uma
grandepedracaída.Cobriu-lheabocacomamão.Claradeuumgritoabafadodeprotesto,maseleaseguroufirme.–Fiqueparada,imóvel–Phillippediubaixinho.Clara estavaprestes a sedebaterquando, ao longe, elesouviram.De leve a
princípio, depois foi ficando mais alto. Era uma gargalhada maníaca etagarelante,comoseumadúziadedesagradáveisbobosdacorteestivessemsemovendonadireçãodelespelocéu.AntesqueClaraconseguissedescobriroqueestava acontecendo, uma fileira inteira de galhos de árvores mortas pairandoacimadasruínasdacidadeseergueu,comosepuxadaporumacriaturaimensa.Algoprocuravaporeles.–Oque…?–Claraengasgouhorrorizada.–Quandoeumandar–Phillipsussurrou–,corraparaafloresta.Acoisaquepuxavaasárvoresparatrásavançounadireçãodeles.Foisóentão
que Clara percebeu o que era – uma mão! Uma mão de porcelana brancainacreditavelmente grande. Ela deslizou pela neblina, passando a poucoscentímetrosdeles!–Corra!–Phillipordenou.Ele e Clara dispararam para longe do esconderijo, correndo para a fileira
formada pelas árvores.A gargalhada alucinada os seguiu.O soldado levou osdedosàbocaeassobioue,numpiscardeolhos,seucavaloveiogalopandodassombras.PhilliplançouClaraemseudorso,eosdoisgaloparamtrovejandoemmeio às árvores. Folhas rodopiaram. Galhos se partiram. E, durante todo otempo,agargalhadamaníacaecoouàscostasdeles.O que está acontecendo?, Clara pensou desesperadamente enquanto
cavalgavam,oventofrioaçoitandosuapeleetrazendolágrimasaosolhos.Estousonhando?Comoissotudopodeserpossível?PhillipeClaracavalgarampormuito,muitotempo.Porfim,quandoocavalo
ficousemfôlegoesemforças,Phillipdiminuiuoritmodocorcel,fazendocomquecaminhasse.–Achoqueosdeixamosparatrás–elearfou.–Oqueeraaquilo?–Claraperguntou,incrédula.–AquiloeraMãeGinger–Phillip respondeu.–Ummonstroquegovernao
QuartoReino.Motivopeloqualninguémvaiatélá.Vocêtevemuitasorteporeuter avistado domeu posto de vigia que estava comproblemas.No que estavapensandoaoficarlásozinha?
–Maseuestavanacasadomeupadrinho–Clarainsistiu.–EmLondres.–VocênãoestámaisemLondres–Phillipassegurou.– Não estou em… Espere, pare. – Clara pulou do cavalo, extremamente
frustrada. Nada daquilo fazia sentido. – Primeiro aqueles ratos, depois MãeGinger,eagoranãoestavaemLondres?Phillipaencarou,parecendosempalavras.–Sim–respondeuapenas.Clarabalançouacabeça.–Estoucomeçandoapensarqueminha irmã temrazãoeque soumesmoa
malucadafamíliaStahlbaum.–Stahlbaum?–Philliparquejou.Deprontodesmontouefezumareverência.
–VossaMajestade.NãosabiaqueerafilhadeMarie.OcoraçãodeClarasaltouanteamençãodonomedamãe.–Vocêaconheceu?–perguntou,incrédula.–Claro–asseverouPhillip.–Estaéaterradela.ElacriouosQuatroReinos.
E se você é filha dela, então temos que nos apressar. Não está segura aqui.Precisamoscorrerparaopalácio.–Mas,Phillip,porfavor–Clarasuplicou.–Nãoestouentendendo.Oqueé
istotudo?–Venha!–Phillipaajudouamontarnovamenteemseucavaloeoincitouase
mover.–Eulhemostrarei!
CAPÍTULO8
CLARA
Clara mal acreditou no que viu quando ela e Phillip escaparam da floresta,surgindoemplena luzdodia.Eranoiteháapenaspoucos instantesnacasadopadrinho.Masaqui,osolestavaaltonocéu,brilhandocomosefossemeio-dia.A névoa e as sombras do decrépito Quarto Reino se afastavam atrás deles, ePhillip fezocorcelpararnabeiradeumprecipícioquedavaparaamajestosagrandiosidadequeeram…–OsReinos–Phillipanuncioucomorgulho.– Oh! – Clara suspirou. Estendendo-se diante deles havia terras como
nenhumaoutraqueelajátivesseimaginado–umvastocaleidoscópiodepujantebelezaevida.–AliestáoReinodasFlores–explicouPhillip.Apontouparaumvalecomumaexplosãodecores.Fileirasintermináveisde
rosas,líriosenarcisoscresciamemjardinsplanejadoscuidadosamente.Chalésemoinhossalpicavamapaisagem,cobertosporlavandaehera.Alegrespássaroscanorosadejavam,sobrevoandooscamposdeflores,fazendocomqueosbrotosse abrissem em toda a sua glória antes de, suavemente, voltarem à forma dedelicadosbotões.– E o Reino dos Flocos de Neve. – Phillip apontou para os picos das
montanhasacimadovale,osegundoreino.Além dos picos havia um cintilante vilarejo invernal de gelo e de neve,
centralizadosobreumageleiracongelada.Aspontasdastorresdeumaigrejaeos tetosbrilhavamcomageada, e o cenáriogélido era tão lustrosoquequasepareciarefletirobrilhantecéuazultalqualumespelhoperfeito.–E,porfim,oReinodosDoces–anunciouPhillip.Claraacompanhouoolhardele.Oterceiroreinoeraumacidadeinteiramente
feita de doces deliciosos. Casas de biscoito de gengibre. Pontes de bengalasdoces. Paralelepípedos de balas de hortelã. Até mesmo os telhados eram decobertura de bolo e as chaminés emitiam lufadas de fumaça feitas de
marshmallow.– São incríveis – disse Clara, hipnotizada. Mal conseguia encontrar as
palavrasparadescreveroquesentia.Essemundo–essesreinos–eraumcenáriosaído diretamente de um conto de fadas. E, naquele instante, ela teve umaestranhasensaçãodedéjàvu.Umalembrançaantigaacutucavanosrecessosdamente,flutuanteeesquiva,algoqueelanãoconseguiacaptaraocerto.Floreseflocosdeneveedoces–opadrãolhepareciafamiliar,maselanãoconseguiaselembrar de onde ouvira aquilo.Talvez numahistória, hámuito tempo?Talvezfossedeondeamãetirarasuainspiração?Minhamãe,pensourepetidamente.Minhamãecriou isto,secretamente,sem
quesoubéssemos.Pelaprimeiraveznavida,Claraseviusemfala.– Lá está o palácio – Phillip disse ao seu lado. Apontou para um castelo
magníficonomeiodos reinos.Ele contemplava tudo, assomando-se comoumguardiãorégio.Quatropontescompridasligavamopátiodocasteloacadaumdos reinos, apesar de a que o ligava ao desolado Quarto Reino fosseinterrompidaporumaimensapontelevadiçaerguida.Debaixodopalácio,umaimensa cascata ressoava, cujas águas poderosas se despejavamnumprecipícionebuloso.–É para lá que temos que ir – explicou ele. –Os regentes vão ficarmuito
ansiososporconhecê-la,ClaraStahlbaum.–Osregentes?–elaperguntou.Phillipsorriu.–Oscompanheirosmaispróximosdasuamãe.Clarainspiroufundo.Companheirosmaispróximos?Comopodiahavertantosobresuamãequeelajamaissoubera?Phillipincitouocorcelcomoscalcanharese,juntos,elesatravessaramaponte
da sombria floresta cavalgando rumo à beleza repleta de luminosidade dosReinos.Osguardasbaixaramamaciçapontelevadiça,concedendo-lhesentradaatéo
pátiodopalácio.–Apontelevadiçaéaúnicacoisaquenosmantémasalvo–Phillipexplicou.
– Enquanto estiver erguida, Mãe Ginger e seus ratos não poderão deixar oQuartoReino.AscabeçasdosaldeõesseviraramquandoClaraePhillippassaramtrotando,
curiosos ao verem a nova visitante. Clara se maravilhou com as vestimentasdeles. Vestidos feitos com fios de caramelo. Laços e meias-calças coloridoscomo arco-íris. Para Clara, pareciam-se com lindas bonecas de uma loja debrinquedosqueganharamvida.Phillipprendeuocavalonopátio,eosdoisentraramnopalácio.Claranunca
vira nada como aquilo. Enfeites complicados representavam cada um dos trêsreinos remanescentes. Arbustos de flores rodeavam esculturas de geloperfeitamente entalhadas. Um imenso lustre feito completamente de fios decaramelosedependuravadoteto.Ealuzdosolseinfiltravaatravésdejanelasdedocecristalizado,projetandoreflexossobreopisoespelhadodegelo.Phillip conduziu Clara ao longo de uma larga escadaria, e uma trombeta
anunciou a chegada deles. Guardas abriram duas portas enormes, permitindo-lhesaentradanosalãodostronos.Ládentro,quatrotronosestavampropositadamentedispostosdiantedequatro
janelas, cada uma com vista para um dos reinos. Três dos tronos estavamocupados; o quarto permanecia ostensivamente desocupado.No centro da salahavia uma redoma de vidro com uma delicada coroa repousando sobre umaalmofadadeveludo.–VossasExcelências–Phillipdisseparaosregentes.–Permitam-mequeeu
lhesapresenteasenhoritaClaraStahlbaum?Apesar de costumeiramente Clara permanecer tranquila quando examinada,
seu coração deu um pequeno salto quando os regentes se voltaram para ela.Estava prestes a conhecer as pessoas que a mãe considerava seus melhoresamigos – e tomara conhecimento da existência deles há apenas poucosmomentos.OsolhosdeClarasearregalaramquandoosregentesseviraram.Nuncavira
uma realeza como a deles. Em um dos tronos estava sentado o regente dosFlocosdeNeve,envolvidoempelesespessas.Oscabelosestavamenroladosemespiraisbrancoscomoneveaoredordasfeiçõesesculpidas,epingentesdegelosependuravamemsuatestacomosefossemumafranjacongelada.O tronoopostoestavaocupadoporumhomemmuitomenos imponente–o
regentedasFlores.Seu terno era feito inteiramentedepétalas eumelaboradoarranjo floral coroava sua cabeça.Osolhosverdes reluziamcomummistodeexcitaçãoecuriosidade.– É verdade? É verdade? – o regente das Flores exclamou subitamente,
saltandodotrono.–Queesplêndido,que…– Hawthorn, por favor – o regente dos Flocos de Neve o interrompeu. –
Acalme-se.–Desculpe,desculpe–disse.–Hawthorn,regentedoReinodasFlores,aseu
dispor.HawthornagarrouamãodeClaraeabeijou.–Ah–Claraexclamou,surpresa.OregentedosFlocosdeNevedeuumpassoàfrente.– Shiver, regente do Reino dos Flocos de Neve – apresentou-se com uma
elegantereverência.–Senhorita,éumahonra.–Eu…Obrigada–respondeuClara.–Ea regentedoReinodosDoces–Shiverprosseguiu,gesticulandopara a
terceiraregentesentadaemseutrono.–AFadaPlum.ClaraobservouquandoFadaPlumseergueucomgraciosidade.Sentiucomo
se, de alguma maneira, já tivesse conhecido essa bela mulher, apesar de tercerteza de que isso jamais acontecera.A regente dosDoces era uma visão daperfeição – uma beleza além de qualquer comparação. A pele de porcelanaparecia extremamente macia em contato com o deslumbrante vestido rosa.Açúcarcristalizadobrilhavanocorpeteenosombros.Oslábioseramvermelhoscomofrutosdobosque,osolhos,castanhoscomochocolate.Eoscabeloscor-de-rosaseenrolavamnumdelicadopufeacimadacabeçacomoalgodão-doce.–Éumprazerconhecê-la–disseClara.FadaPlumdeuumpassoàfrente,deleve,comoumabailarina.Apoiouambas
asmãosnosombrosdeClaraeaestudou,fitando-aprofundamentenosolhos.–Jamaispenseiqueestediafossechegar–declarouFadaPlumbaixinho.Claraabriuabocapararesponder,masdepoisafechou.Nãotinhacertezado
quedizer.–Conte-me,estamosansiosospornovidades–continuouFadaPlum.–Como
estáanossarainha…nossaqueridaMarie?–Minhamãe?–Claraperguntou,pegadesurpresa.FadaPlumassentiu.–Sentimostantassaudadesdela.–Eu…–Claragaguejou.–Vocêsnãosabem?Osregentesolharamparaelanaexpectativa.Evidentemente,nãosabiam.–Minhamãeestá…Elamorreu–contouClara.Osregentesarquejaram.–Marie,morta?–Hawthornbalbuciou.Shiverbalançouacabeça,ospingentesdegelotilintando.–Lamentamosmuitoasuaperda.–Anossaperda–Hawthorncorrigiu.Lágrimasseformaramcomogotasde
orvalhonoscantosdosolhos.–Aperda,meucaro, éde todos.Masespecialmentedestamoça–Shivero
admoestou.–Sim,sim,claro.–Hawthornseesforçouparaserecompor.Nesse meio-tempo, o rosto de Fada Plum permaneceu congelado de
descrença. O olhar ficou distante, refletindo, talvez, sobre uma lembrançaremota.–Deixaravidatãojovemassim–sussurrouela.–Ah,Clara,elaeraamais
linda, amaismaravilhosa…Ela significava tudopara nós.E nunca tivemos aoportunidadedenosdespedirmos.UmalágrimadelicadadeslizoupelafacedeFadaPlum.– Lamento muito – disse Clara. Acostumara-se com os sussurros de
condolênciasquecercavamsuafamília,mas,pelaprimeiravez,nuncapensounoquedizerparaalguémtomadopelomesmolutoqueela.OsolhosdeFadaPlumvoltaramaseconcentrar.–Minhadocemenina.–TocounorostodeClara.–Confortando-nosquando
devíamossernósaconfortá-la.– Então, veio nos guiar, Clara? – Hawthorn perguntou na expectativa. –
Assumiracoroadasuamãe?–Eu…Não –Clara começou a dizer. – Sinto dizer que não sabia de nada
disto tudo.Vim parar aquimais por um acidente, na verdade.MinhamãemedeixouumpresentedeNatal.Umacaixinha.Clara retirou o ovo de sua bolsinha. Ao vê-lo, os olhos de Fada Plum se
arregalaram.–Possovê-lo?–pediu.FadaPlumoapanhoucomdelicadezaaindaqueprecipitadamente,vistoque
Claraaindanãotiveraachancederesponder.Virou-onasmãos.–Notável–suspirou.–Tãotípicodesuaqueridamãe.–E,noentanto,acabeiindopararnoQuartoReino–Claraprosseguiu.–Um
ratonojentocomumacicatrizpegouachavequeabreacaixae…–Uma chave! –Hawthorn exclamoude súbito. –Ouviu isso, Shiver?Uma
chave!Umachave!Éamesmachave,FadaPlum?FadaPlumestudouoovo.Passouodedodelicadopelafechaduraemformade
estreladeseispontas.–Poderiaserachave?–Shiverperguntouansioso.
CAPÍTULO9
MARIE
O verão se transformou em outono na propriedade deDrosselmeyer enquantoMariecontinuavacomsuasaventurasdiárias.AsestaçõesdoanopareciamnãoexistirnoReino.Láfaziasempreamesmatemperaturaperfeitaeomesmoclimaperfeito,oquetornavafácilperderanoçãodotempo.Depoisdadescobertadasflores,Marieficouansiosaemverqueoutrascoisas
extraordináriasconseguiriafazer.Contudo,pormaisquetentasse,descobriuquenãopodiacriar coisasquandobemqueria.Amagiaparecia surgir e sumirporvontade própria, e quando ela menos esperava. Se estivesse com um humorespecialmenteaventureiroenquantoiaemfrenteexplorando,camposinteirosdefloresdeprontoseabriamnumbrilhantecaleidoscópiodecores,acolhendo-anoiníciodasuajornada.Outrasvezes,seumpensamentoouumalembrançatristeocorriam aMarie enquanto estivesse lá – como quando pensava nos pais, ouquando se sentia frustrada por conta de algum projeto de invenção que nãoestavadandocerto–,océuseescureciadeleveeumagotadechuvacaía.Masseelatentasseforçaralgoaacontecer,oudesejassepropositadamenteque
existisse…Bem,amagiasimplesmentenãofuncionavadessamaneira.De volta em casa, os negócios começaram a afastar a atenção de
DrosselmeyerdassuasvisitasaoReinocomMariecombastantefrequência.Asinvenções requeriam sua concentração, e ele descobriu que seus pensamentoseramsemprelevadosdevoltaaotrabalho.Comisso,MariecomeçouavisitaroReinosozinha,levandoabonecaFadaPlumconsigosemprequeialá.Pouco a pouco, ela foi transportando seus aparelhos da oficina do tio para
serem aperfeiçoados no Reino. Uma vez que o tempo passava muito maislentamente lá, ela descobriu que conseguia trabalhar por séculos na plena luzdouradaqueseinfiltravapelasjanelasdopaláciosemterquesepreocuparporestarpassando tempodemaisafastadadosestudos.Eraumplanoexcelenteatéque,umdia,voltouparacasaapósumaextravagânciade24horasconstruindonoReinoedescobriuqueaindaeraomeiodamanhãequeportantoelatinhaum
diainteirodeatividadesescolarespelafrente.Depoisdemuitosbocejosedeumcochilonahoraerradapelosquaisrecebeuumabroncaseveraporpartedesuapreceptora,MariedeterminouqueprecisariadeumquartoadequadonoReinosepretendiacontinuarapassartantotempotrabalhandoali.–TemcertezadequepatrãoDrosselmeyerrequisitouqueessamobíliafosse
levada para o fim deste corredor? – os criados perguntaram a Marie, muitoconfusos,quandoaajudaramacarregarumacamaextraparahóspedesatéofimdocorredoraxadrezadoemcimadeumcarrinhodemão.–Sim–Marieassentiucomseriedade.–Émuitoimportante.Crucialparao
sucessodosseusinventos.Oscriadosseentreolharam,aindamaisconfusos.Masnenhumdelespareceu
quererquestionarasordensdeDrosselmeyer.Marie fitouacama,comapenasumacolcha simpleseum travesseiro sobre
ela.–Eeledissequeprecisaremosdemaistravesseiros–declarou.LogoMarie criara sozinha um quartinhomuito aconchegante no palácio do
Reino.Foranecessárioummontantedecentedeesforçosparamontá-lo,desdeprender um mecanismo ao carrinho de modo a poder transportar a mobíliasozinhapelafloresta,atéinventarumelevadormovidoapoliaparasuspendê-laatéoaltoda torredopalácio.Masvaleraapena.Tudopareciaperfeito.Haviaum lindo dossel e uma colcha confortável. Todos os travesseiros que“emprestara”damansãolhederamumaaparênciamajestosa.Chegaraadecoraras janelas do quarto do palácio com cortinas cor-de-rosa e pintara flores nasparedescomosefosseumpapeldeparededeaquarela.– Está perfeito – disse alegre para Fada Plum, admirando seu trabalho. –
Agorapossopassarquantotempoquiseraqui.Dias,semanas.Talvezatémais.–Relanceou ao redor de seu pacato quarto e através da janela que dava para avastapaisagemdoReino.–Umapenaque titionãoestejaaquiparaver isto–lamentou, comumapontadademelancolia.–Fico imaginandooqueeleandafazendonomundorealagora.Bemnessahora, algochamouaatençãodeMariepelocantodoolho.Algo
quefezcomquevirasseacabeçalentamenteeprovocouumasensaçãoestranhaemseupeito.–FadaPlum…oqueéaquilo?–perguntou.Visível na parede do quarto, bemonde pintara umbuquê de flores, havia o
leve contorno de uma porta. Estava quase escondida, mas com os fachosdouradosdatardeentrandopelasjanelasdatorrenaqueleângulo,ocontornoerainconfundível.–Outraporta–Mariesussurrou.–Comofoiquenãoaviantes?
Ficou imaginando o que esse novo bocado de mistério do Reino poderiasignificar.Aportasimplesmenteapareceraali?Sempreestiveraali?SeráqueoReinosomenteagoradesejouqueelaavisse?E,maisimportantedoquetudoisso,paraondeelalevaria?A luz do sol mudou de posição, refletindo-se no vidro dos olhos de Fada
Plum.Marieinspiroufundo.–Sóháumamaneiradedescobrir.
–Nãovaiacreditar,tio!Nãovaiacreditar!MariearrastavaDrosselmeyeraolongodoReino,indodiretoparaopalácio.– Devagar, criança. – Drosselmeyer afrouxou o colarinho. – Não sou tão
jovemquantopareço,sabe.–Masosenhornãoentende…Istoéincrível!–Marieopuxoupelosalãodo
palácio e escada acima até uma das torres mais altas, onde montara seuaconchegantequarto.– Este é o seu quarto? – Drosselmeyer perguntou surpreso quando viu o
ambiente.–Adorável.Eunãofazia ideiadequevocêmesmavinhadecorandoquart…essestravesseirossãomeus?–Esqueçaostravesseiros,tio–Marieinsistiu.–Isto…Éistooquequerolhe
mostrar!Marie escancarou a porta que aparecera misteriosamente na parede do seu
quartoeconduziuDrosselmeyerporumcurtolancedeescadasatéumcômodocavernosocheiodeengrenagens, rodasdentadasepistões.Marieobservouseumentor semaravilhar ante osmecanismos que os cercavam, quase damesmamaneiracomqueelasemaravilharaaoveraoficinadelepelaprimeiravez.– Incrível –Drosselmeyer sussurrou. –Você criou um quarto de invenções
dentrodopalácio.–Não, tio,melhordoqueisso!–Marieexclamou.Guiou-oatéaparedeem
queváriasjanelasestavamcobertasporcortinaspesadas.–Olhe!Abriuascortinas.Drosselmeyer olhou pela janela. Através de um vidro craquelado, ele mal
conseguiu enxergar a vista do lado de fora. Havia uma imagem gravada najanela,distorcidaeembaçada.Avaliou-amaisdeperto–eraaimpressãodeumnúmero, escrito ao contrário, sobre o vidro. Então, ele olhou para além dessenúmeroepercebeuquenãoestavamvendoatravésdeumajanelacomvistaparaapaisagemexterna.
–Issoé…aminhaoficina?–perguntou,incrédulo.Marieassentiucomentusiasmo.–Tambémcusteiaacreditarquandoviissopelaprimeiravez!– Mas onde… – Drosselmeyer olhou ao redor para os mecanismos e as
engrenagens que semovimentavam. Em seguida, ouviu o toque conhecido deumcarrilhão.–Estamosdentrodorelógiodepêndulo?–perguntou.–Sim!–Marieexclamou.–Lembra-sedequandoolevamosdevoltaàsua
oficina?Dealgumamaneira,oReinotornoupossívelquenósenxergássemosomundorealatravésdele!Comoseelefosseumajanela!–Ou umportal –Drosselmeyer sussurrou. –Extraordinário.Você fez isso?
Construiu o mecanismo do relógio de pêndulo dentro do quarto para quefuncionassecomoumportal?–Não.–Mariebalançouacabeça.–Eu…euachoqueaportapodeterestado
aquiotempotodoeeuapenasnãoahavianotado.–Issoseaplicaanósdois–Drosselmeyerdisse.–Porqueeudecertonuncaa
noteiantes.–Defato,fiqueipensandonoqueestariaacontecendonomundorealquando
viaportapelaprimeiravez.–Mariesedeuconta.–Talvez…talveztenhasidoissoquemeajudouavê-la.Seráqueissoépossível?Drosselmeyerrefletiusobreaperguntaporumtempo.–Talvez – respondeudevagar – você tenhadesenvolvidouma ligaçãomais
profunda com o Reino. Uma muito singular. – Retornou a atenção para osmecanismosquegiravamaoredordeles.–Ousodizerqueexistemmuitomaismistériosaseremdescobertosnestelugarespecial.
OsurgimentodoportalnorelógiodepêndulorenovouoanseiodeMariederetornar ao Reino com aindamais frequência na esperança de descobrir maisfragmentos de magia escondidos. Mas, assim como antes, o Reino tinha ummodo próprio de manter seus segredos para si. Nenhuma outra revelaçãoinesperada surgiu, apesar deMarie semanter atenta aomínimo indício ou terpensamentos bem concentrados para depois verificar se sua imaginação deravidaaeles.Comotempo,voltouaoseupadrãonormal.Começavaodiatomandocaféda
manhãnapropriedadeedepoisseapressavaparaaoficinadeDrosselmeyerparaapanharsuamaisrecenteengenhocaparaaprimorá-lanoReino.Sóqueagoraelatinhaavantagemdeespiaromundorealcomfrequênciaparasemanterciente
dequantotempoestiveraausente.Osquartosdopaláciocomeçaramaficarentulhadoscomsuasferramentase
bugigangas, peças e engrenagens de diferentes máquinas e dispositivos. Suashabilidadesaumentaram– ficaramaindamelhoresdoqueasdeDrosselmeyer,comonotou o próprio homem.Ela criara uma esteira que corria ao longo dasparedesdopalácio,igualàdamansão.(Paraocasodealgumconvidadochegarparaumgrandebaile,elafantasiava.)Elacolocougeladeirasmovidasavapornacozinhaefornosalenhaautoalimentados.Apósumrompantedeinspiraçãoemparticular,atécriouumabicicletamotorizada,perfeitaparairevircomrapidezdopalácio,aolongodaponte,atéaportaquedavaparaomundoreal,demodoanãoterqueandar.Toda vez que completava um invento novo, Marie espiava pela janela do
relógiodepênduloseDrosselmeyerestavanaoficinaparacorreratéeleetrazerseumentoratéasuamaisrecentecriação.Mas,comapassagemdotempo,tãolentanoReinocomparadaaomundoreal,Marienotouque,comcadavezmaiorfrequência,seutioestavaausenteparaconcluiralgumoutronegócio.Emumadessasocasiões,Marieestavasozinhanoquartodopaláciocomsua
boneca.–Ébemtranquiloaqui,não,FadaPlum?–Marieperguntou,umpoucotriste.
Deu corda nas costas de Fada Plum. A boneca começou a dançar comgraciosidadeaolongodacama.Marie relanceouoquarto,decoradocom flores e adornos, e comprateleiras
repletasdeamigosdebrinquedoparanãosesentirsozinha.Só que… ela estava se sentindo sozinha. Era sempre apenas ela no Reino.
Aindanãotinhaamigosreaisláemsuacasa.Suapreceptoracomentaramaisdeuma vez que ela se beneficiaria em brincar com crianças da sua idade.Mas,considerando-seosestudos,asaulasde invençõese todoo tempoquepassavacriando coisas no Reino, não havia muitas oportunidades de conhecer novascrianças. E Drosselmeyer era a única outra pessoa que sabia sobre o Reino.Ambosconcordaramhámuitotempodequeaqueleeraumsegredoquedeveriapermanecerentreeles.Nãofaziamideiadoqueaconteceriacasopessoasdemaissoubessemsobreomundosecretoescondidonasparedesdamansão.Iriamatrásdele?Tentariamtirá-lodeles?Destruiriam-no?Talvezporegoísmo,nemelanemDrosselmeyerqueriamforasteirosmexendonamaiordascriaçõesdeles–puraimaginação.Ainda assim,Marie às vezes desejava ter alguémmais com quem partilhar
aquiloalémdotio.Alguémdasuaidade,quepudessebrincarcomelanomundoquecriara.Alguémqueoamassedamesmamaneiraqueelaamava.–Pelomenoseutenhovocê–Mariedisseàboneca.Acordachegouaofim,e
FadaPlumparou coma cabeça inclinada de lado comonumapergunta, comosemprefazia.–Vocêestácomigodesdeoinício–Marieprosseguiubaixinho.–Nãoseria
maravilhososevocêtambémfossedeverdade?FadaPlumpareceuencararMariecomseusolhossempiscar.– Se você fosse real… – Marie repetiu pensativamente para si mesma.
RelembrouaspalavrasdotionaprimeiravezemqueviramoReino.CoisasquenãosãopossíveisnomundorealsãopossíveisnoReino.Marierelanceouaportaquedavaparaoportaldorelógiodepêndulo.Talvez você tenha desenvolvido uma ligação mais profunda com o Reino.
Ouso dizer que existem muito mais mistérios neste lugar especial a seremdescobertos.Marie segurou a boneca.Olhoupara suas engrenagens, para a chavededar
corda. De súbito, lembrou-se da caixinha de música que Drosselmeyer lheconfeccionaratantosanosantes,quandoelaeraumaórfãsolitáriaquepassaraamorarnapropriedade.Umamáquinaminúsculaeperfeita,repletadeamoredelembranças,etudoissooperadoporumachave.– Tenho uma ideia, Fada Plum – Marie disse devagar. – Mas, para isso
funcionar,precisareidemuitasoutraspartes.Osmesesseguintestranscorreramnumborrão.Mariepassousemanasinteiras
no Reino trabalhando em seu invento. Até mesmo Drosselmeyer começou apercebersuaausêncianomundoreal,oquesignificavamuito.– O que anda aprontando, Marie? – ele perguntava, intrigado, quando ela
marchava de sua oficina com mais uma braçada de mecanismos e partesmetálicas.–Aindanãoestápronto–elasemprelherespondia.–Masnãovaidemorar.Nasprofundezasdopalácio,embaixodamais longadasescadaseprotegida
atrásdeportasdeferropesadas,numcômodocavernosocercadopormáquinas,Marie trabalhava.E trabalhava.E trabalhava.Atéque, finalmente,umdia, elaapertouoúltimoparafuso.Prendeuaroldanarestante.Ajustouaúltimaalavancaefocoualentefinal.–Estápronto–disse,enxugandoatesta.Recuou um passo e admirou sua criação. Uma máquina enorme de rodas
dentadas e pistões que bombeavam. Turbinas movidas a água rodavam,expelindo vapor que acionava correias ligadas a roldanas que giravamengrenagensligadasaumimensotubodevidroapontadoparaumaplataformanomeiodasala.UmaplataformanaqualestavaFadaPlum.Amáquinaestavapronta.Sóprecisavadeumachave.
Marie se aproximou de uma fechadura em forma de estrela posicionada nalateral da máquina. Retirou a preciosa chave da caixinha de música da suabolsinha.–Lávamosnós–sussurrou.Inseriuachaveeagirou.Amáquinachiou.Zumbiu.Houveumbrilhanteclarãodeluz.
CAPÍTULO10
CLARA
FadaPlumvirou a caixinha em formato de ovo deClara nasmãos.Os dedosdeslizaram pela fechadura de estrela de seis pontas, e um sorriso esperançosoatravessouseuslábios.–Acreditoqueseja–respondeu.–Sim,definitivamenteéachave!Hawthorndeupulinhosdealegria.–Achave!Achave!–exclamou.–Ouviuisso,Shiver?Finalmente,temosa
chave!AnteaspalavrasdeHawthorn,aexpressãodeShiverdeprontoseanuviou.–Masnãoatemos–eledisse,desanimado.–Podeserachave,mas,comoa
jovemClaramesmadisse,elaestáperdida.OrostodeHawthorntambémseentristeceu.–Oh–murmurou.–VocêaperdeunoQuartoReino?–Shiver sevirouparaClara.–Paraum
ratocomumacicatriz?SópodeserMouserinks.–Elemesmo,senhor–assentiuPhillip.Shiverpassouumamãotrêmulapelorosto.–Ah,issosignificaqueMãeGingerestácomelaetudoestáperdido.–Sepermite aminha intromissão–Phillip sugeriu–,podemos formaruma
expedição,VossaExcelência.–Achoumaexcelente ideia–Claraopinou,gratapelasugestão imediatade
Phillip.–Precisorecuperaraquelachave.– Todos nós precisamos,minha cara, todos nós precisamos. –Hawthorn se
apoioupesadamentenumpilar.–MasvocênãopodevoltaraoQuartoReino.Láéumlugarhorrendo.Émuitasortetersaídodeláviva.–Hawthorn tem razão – Shiver acrescentou. –Não podemos nos arriscar a
perderanossaprincesabemquandoelaacaboudechegar.– Falando em chegar – Hawthorn prosseguiu –, onde estão nossos modos,
regentes?Precisamosorganizarapeçaparacelebrarasuachegada.
–Creioquesejaumaideiaexcelente–concordouFadaPlum.– Mas a chave… – Clara pressionou. Sentia as chances de recuperá-la
escapandopelosdedos.–Não,não.–Shivermeneouacabeça.–Issoestáforadequestão.OrostodeClaraseentristeceu.Eladesabousobreumdostronosvazios.–Hã…EsseéotronodeMãeGinger…–Phillipdisse,nervoso.FadaPlumdeslizouparaoladodeClaraeaseguroupelamão.–Seudiafoilongoecansativo.Deixe-melevá-laaosseusaposentos.AntesqueClarapudesseprotestar,FadaPlumaconduziuparaforadasalados
tronos.ClaraolhouparatráselançouumolharconfusoparaPhillipantesdeasportasduplassefecharematrásdelas.–MãeGingertemumtrono?–Claraperguntouaocaminharemaolongodo
corredorforradoportapeçarias.Elanãoentendiacomoumacriaturatãohorrívelpoderiaterumassentoreservadonopalácio.– Mãe Ginger costumava ser a regente do Quarto Reino – Fada Plum
explicou.–Antesdeserbanida.–Oqueaconteceu?–Claraperguntou.– Quando Marie… não voltou – Fada Plum disse devagar –, Mãe Ginger
tentoucontrolartodososReinosàforça.AsuamãenosconfiouocontroledosReinos na ausência dela. Ela confiou emMãeGinger.MasMãeGinger tinhaoutrosplanos.Elaqueriagovernartudooqueasuamãecriara,sozinha.FadaPlumguiouClaraatéuma janelaquedavaparaoQuartoReino.Dali,
Claraconseguiaverumailhaenvolvidaemneblinaesucumbidaemruínas.– São tempos assustadores agora – Fada Plum disse com gravidade. –
ForçamosMãeGingeraoexílio,maselacriouomonstroquequaseaapanhouedestruiuoQuartoReino.ApontouparaapontelevadiçapelaqualClaraePhillippassaramparaentrar
no terreno do palácio. Estava erguida agora, impedindo que os inimigos doQuartoReinoatravessassemparaoladoemqueestavam.–Aquelapontenãomanteráosratosafastadospormuitotempo–FadaPlum
explicou.–Nãocreioquea suamãe iriaquererquevocêvoltasse lá.Tenhoodeverdemantê-laasalvo.Claraencarouapontelevadiça.Epensarqueeratudooqueestavaprotegendo
a maior criação da mãe da completa ruína… Não conseguia acreditar. Comoalguémemquemamãeconfiarapodiatersetornadotãocruel?FadaPlumpegouamãodeClaracomsuavidade.–Venha.A bela regente conduziu Clara através dos corredores do palácio e escada
acimaatéumquartonoaltodeumatorre.Aoentrar,Claraarquejou.
–Que quarto lindo! – exclamou.O cômodo era de fato adorável, decoradocomcetim,rendaeflores.Umquartodignodeumarainha.–Eradasuamãe–revelouFadaPlum.–Eagoraéseu,sequiser.Clarapassouosdedoscomsuavidadesobreamaciaefofacolcha.Umretrato
damãeestavapenduradonaparede.FadaPlumestavanoretratoao ladodela.Asduasgarotaspareciamestarrindo,aproveitandooentardeceriluminadonumcampodeflores.Clarafitouoretratoporbastantetempo.Amãepareciajovem.Felizecheiadevida.Clarasentiuofamiliarapertonopeito.Eracomoseamãeestivesseemtodaa
sua volta na beleza delicada daquele quarto, próxima o bastante para poderconversarcomela,parato-cá-la,mas,aindaassim,foradoseualcance.–Porfavor,FadaPlum–pediuClara.–Conte-mearespeitodaminhamãe.FadaPlumsorriu.–Íamosatodapartejuntas–disseela.–Éramosinseparáveis;patinandonas
margensdosrios,dançandonopátio,tirandodocesdascasasquandonãohavianinguém olhando. Ficávamos acordadas a noite inteira nomeio das flores dojardim,apenasconversandoeconversando.Ah,queépocafeliz.Os cantos dos lábios de Fada Plum se curvaram para baixo enquanto ela
falava. Clara pensou que ela devia estar muito triste, constatando que essaslembranças jamaisseriamrevividas.Claraentendiaporquesesentiadamesmamaneira.Derepente,FadaPlumolhouparaClara.–Clara,querida,consegueguardarumsegredo?–perguntouconfabulatória.Clara assentiu. FadaPlum a tomou pelamão e a conduziu através de outra
porta, subindo um lance curto de escadas até entrarem num lugar repleto demáquinas. Engrenagens giravam lentamente, estalando a cada segundo. Dozejanelascomcortinasfechadasseenfileiravamnasparedes.– Sua mãe e eu adorávamos nossas excursões para o outro mundo – Fada
Plumdissecomumsorrisotravesso.–Ooutromundo?–Claraperguntou.–Oseumundo–FadaPlumrespondeu.Elaafastouumacortina,revelandoovidrocraqueladodeumajanelacomum
número grande pintado ao contrário. Através do vidro embaçado, Claraconseguiu distinguir o salão de festas de Drosselmeyer logo abaixo delas,decoradocomosenfeitesdeNatal.–Éosalãodebailedomeupadrinho!–exclamou.–Estamosnorelógiodele!
Mas…Como?Omaquinárioatrásdelasderepentecomeçouachiarmaisaudivelmente.Algo
estavaparaacontecer.
–Está na hora – FadaPlum a apressou. FezClara subir rapidamente numaplataformamóvel.–Espere…espere…ok,agora!Suba!Juntas, Clara e Fada Plum subiram na plataforma móvel impulsionada por
umaesteirarolantequepercorriaaextensãodasaladorelógio.Elaasdeslocoucom rapidez em direção a uma porta, que se abriu numa explosão de luz,conduzindoa…–Estamosdoladodefora!–Claraexclamouaoavançaremparaaluzeparao
somdo salãodebaileda festadeNatal.Doaltodo relógiodepêndulo,Claratinha uma visão panorâmica de toda a celebração. Mas não estava em seutamanho normal – estava minúscula como uma estatueta de brinquedo. Clarabaixou o olhar para as mãos. Ela era uma estatueta! Ela e Fada Plum setransformaramemversõesemminiaturadesimesmas,movendo-separaoladoexterno do relógio de pêndulo numa pequenina esteira rolante como doisadornosdandoashoras enquanto o relógio ressoava.Clara olhoumaravilhadaenquantoamagiadosReinostremeluziaaoseuredor.–Comoistoépossível?–perguntouincrédula.FadaPlumapenassorriu.–Eraavistaprediletadasuamãe.Eaminha.Claraobservouimpressionadaafestaalegreabaixodelas.–Láestápapai,eFritzeLouise!–exclamouderepente.Claraapontouparaa
famíliadepénomeiodafesta.Fritzbrincavacomseuquebra-nozes,tentandofazeropairir.Enquantoisso,
umbelorapazconversavacomLouise.–Elaétãolinda,nãoacha?–ClaradissedeLouise,notandomaisumaveza
semelhançadelacomamãenaquelebelovestidoverde.–É?–FadaPluminquiriu,inclinandoacabeça.–Ah,sim,éumadoçura.Mas
nãoseesqueça,asuamãeescolheuvocêparaviraosQuatroReinos.Nãoela.Clara não pôde deixar de se sentir inundada de orgulho. Fada Plum estava
certa.Amãeescolheraaelaparaestaaventura.Mesmonãosendograciosa,oualinhada,nemsabendoascoisascertasadizernahoraadequada,amãeconfiarao bastante nela para partilhar aquele segredo maravilhoso. E isso significavatudo.Aesteirarolantefoiseguindoemfrente,levandoClaraeFadaPlumaolongo
dorelógioeconduzindo-asatéumaportaautomática.Poucoantesdepassarem,FadaPlumseinclinouesussurrounoouvidodeClara.–Eucostumavaobservarvocêcrescendodaquidecimaeficavaimaginando
quandoasuamãeatrariaparanosconhecer.Entrarampelaporta,voltandoaoquartoescuroefrescodointeriordorelógio.–Foioqueelafez–Clarasorriu, levantandoopreciosoovo.–Elamedeu
istoeaquiestoueu!–Finalmente–FadaPlumconcordou.–Elaeratãointeligente!–Mas…Aminhafamílianãosepreocuparácomomeusumiço?–Clarase
deucontaderepente.–Não, não –FadaPlum a tranquilizou. –O tempopassamuito lentamente
aqui.Vocêestarádevoltaantesquepercebam.Serealmentequiservoltar.–Nãopossovoltaratéterencontradoachave–Claradisse,determinada.–Euentendoissomuitobem–assegurouFadaPlum.–Mas,atélá,vocêéa
convidada de honra da nossa peça. Todos os cidadãos do nosso mundo vãoquerervê-la!FadaPlumumavezmaissegurouamãodeClaraeaguioudevoltaaolindo
quartodesuamãe.Abela regenteseapressouatéumguarda-roupadouradoeescancarou as portas. Fileiras e fileiras de lindos vestidos de festa estavampenduradosemcabidesdecetim.–Então,qualdelesvocêescolheparaasuaapresentação?–perguntouela.Clarahesitou.–Nãosei–respondeu,incerta.–Nãosoumuitoboacomvestidosecabelose
sapatos, bem… – A voz de Clara foi sumindo. Ela sabia que os regentes sóestavam tentando acolhê-la. Mas ela não tinha certeza se queria serhomenageadanumapeçaonde todososolhos sevoltariamparaela.Claranãoera tímida,masali, nosReinos,ondeamãe fora tão reverenciadae adoradaeperfeita…E se ela não estivesse à altura das expectativas?E se eles ficassemdesapontados? Clara desejava mais do que tudo poder conversar com a mãe.Queriaachaveparapodersabersuamensagemfinal.FadaPlumseaproximouportrásdela.–Semepermiteaousadia,possoofereceraminhaajuda?–Vocêfariaisso?–Claraperguntou,aliviada.–Claro!–exclamouFadaPlum.–Éoquemaisgostodefazer.Pouco depois, Clara estava diante de um espelho, com os olhos fechados.
Pilhasdevestidosacercavam,eFadaPlumlheaplicavaosúltimosretoquesnocabelo.–Semespiar–FadaPlumalembrou.–Vocêestáquasepronta.Claraassentiu.Omodocomoelapenteavaeprendiaseuscabeloseramuito
maisdelicadodoqueotoquedeLouise,masaindaassimnãoeraomesmoqueodamãe.–Minhamãefalavademim?–Claraperguntoubaixinho.–Ah,sim,otempointeiro–FadaPlumrespondeu.O último grampo a ser colocado espetou acidentalmente a cabeça de Clara
comumpouquinhodeforçademais,masameninanãodissenada.
–Tantoqueàsvezespareciaquevocêestavabemaquiconosco.–FadaPlumterminou.–Agora,abraosolhos.Clarafezoquelhefoipedidoeencarouseureflexonoespelho.Arquejou.–Puxa!Clara estava…magnífica! Fada Plum escolhera ummaravilhoso vestido de
invernobrancodecoradocompenasefloresparaqueusassenapeça.Brocadosdouradoscircundavamocorpeteeasmangas,eoscabelosestavamtrançadosdeumaformacomplexacomfitasbrilhantesepérolas.Claranuncaantestinhasevistotãoadorável.Porumbrevemomento,defato
sesentiutãolindaquantoamãe.–Gostou?–perguntouFadaPlum.–Amei–Clararespondeu.–Pareçotão…diferente.FadaPlumsorriu.–Comoafilhadeumarainha.
CAPÍTULO11
FADAPLUM
Umbrilhantefachodeluz.Depoisumsom,umacoreumrosto.–Funcionou!–ameninadiantedelaexclamou.–Funcionou?–FadaPlumperguntou.–Minhamáquina–ameninarespondeu.–Vocêérealagora.–Eusou?–FadaPlumbaixouoolharparaasprópriasmãos.Eramsuaves,
lisasebrancas.–Sim–asseverouamenina,puxando-aparaumabraço.Foioabraçomais
calorosoecheiodealegriaqueFadaPlumjamaissentiu.–Evocêéperfeita.Essa foiaprimeira recordaçãodeFadaPlumsobreMarie,daépocaemque
eramapenasasduasnoReino.Agoraelatinhatantaslembranças!EoReinojánão era mais apenas um, mas quatro, cada um deles repleto de brinquedostrazidosàvidapelainvençãoengenhosadeMarie–aMáquina.Coma jubilosadescobertadequeaMáquinaeraumsucesso,MarieeFada
Plumcriaramdezenasedezenasdeamigosparabrincarcomelas.Bonecasdeporcelana,fantoches,atémesmoestatuetas,todoselestransformadosempessoasperfeitas,muitocontenteseávidasemexplorarseunovolar.E,vistoquehaviatantos habitantes, evidentemente eles precisaram de casas. E de lojas. E delugaresondebrincaresedivertir.Portanto,juntas,FadaPlum,MarieetodososoutroshabitantesdescobriramformasdeusarasengenhosasinvençõesdeMariepara construir cidadezinhas inteiramente novas em toda a linda paisagem. Foifácil,naverdade,depoisquederaminício.InventossimplesqueMarieelaboravanomundorealpodiamserusadosnosReinosparacriartantasoutrascoisas.Umamáquinacriadaparasoltarlufadasdevaporenviavanuvensfofasnocéu.Umfogãocomumcomalgunsajustesmecânicoseumbotãode“assarrápido”
podia produzir cookies suficientes para pavimentar doces ruas deparalelepípedos.Um arado para horta artesanal podia lavrar acres de terras em questão de
minutos.Umageladeiramecânicaproduziagelosuficienteparaformargeleirasinteiras. E o predileto de Fada Plum – o protótipo de umamáquina de fazeralgodão-docequeMariedissetersidotrazidaporDrosselmeyerdeumadesuasviagens ao exterior – produzia algodão-doce suficiente para moldar qualquerformatoimaginávele,aomesmotempo,reluzentecomovidro.Marie disse a Fada Plum que tudo que ela criava tinha um objetivo ou
lembrança especial associado a eles. E, junto comos novos cidadãos, as duasamigastransformaramapaisagemdoReinonaterradasmaravilhassaídadeumcontodefadasqueviraramosQuatroReinos.– Conte-me a história de novo? – Fada Plum costumava pedir a Marie
enquanto as duas fitavam o esplendor que se estendia além das janelas dopalácio.–Oquecadareinosignifica?Mariesorriaeseguravaamãodaamigaaoapontarparacadaumdeles.–OReinodasFlores.–Indicavaovalecobertodefloresnumaexplosãode
cores.–Comoojardimquemeupaitinhaforadasuarelojoaria.DirecionavaaatençãodeFadaPlumparaasmontanhasao longe,ondeuma
catedraldegeloseaninhavaemmeioachaléscongeladosecaminhosdegelo.–OReinodosFlocosdeNeve–Marieexplicava–,paramelembrardodia
emquevimparaapropriedadedeDrosselmeyer.Fada Plum se inclinou na janela para espiar o reino na direção oposta.
Atrações de parque de diversões se destacavam por entre as copas sempreverdejantesdasárvoresimponentes:rodas-gigantes,carrosséis,tendasdecircoetorres rotatórias. No chão da floresta, magníficas mesas de piquenique,arrumadascomlouçaparaahoradochá.–OReinodoDivertimento–Mariedizia–,emhomenagemaminhamãe.– E o nosso reino favorito? – Fada Plum insistia com avidez, os olhos
cintilantescomoaçúcar.Asduasamigasseviraramparaveroreinomaispróximoaopaláciofeitode
doces.Eraumvilarejomovimentado,pujantedevidaecorespastel.Viasfeitasdebaladehortelãsecruzavamentrecasasdebiscoitodegengibre,postesderuadepirulitoseatémesmoumafontedeaçúcardeconfeiteiro.–OReinodosDoces–Mariedizia,cutucandooombrodaamiga–,parame
lembrardevocê.AsbochechasdeFadaPlumcoravamdeorgulhotodavezqueMarielhedizia
isso.PoucoimportavaquantaspessoasMarietrouxesseàvidacomaMáquina–padeirosalegresevendedoresdefloreseatémesmocoralistasdeNatalqueiamdeporta emporta cantando suascanções festivas, sendoNatalounão–,FadaPlum sabia que era a mais especial de todas. Fora a primeira e, comoMariedizia,eraperfeita.
FadaPlumsimplesmente adoravaasvisitasda amigaaosReinos.Àsvezes,Marie trazia o senhorDrosselmeyer com ela também.A primeira vez que elevisitara,pareceuatordoadoaoveroesplendorqueMarieeFadaPlumcriaramjuntas.– Bom Deus, minha criança! – ele exclamara. – Há quanto tempo tem
trabalhadonistoaqui?–Háumtempo–Mariederaumarisadinha.–Mas,estranho,nãomeparece
tantotempoassim.–Porqueelatemanós!–FadaPlumlançaraosbraçosaoredordosombrosda
amiga.–Fizemosistojuntas.Marieéanossarainha!– Sua rainha? – Drosselmeyer perguntara, erguendo uma sobrancelha. –
Marie,eunãofaziaideiadequearealezaeraalgoqueainteressasse.Mariesorriucomtimidez.–Bem,comopalácioetodooresto,pareceu-meadequado.–Ecomtodoodireito–Drosselmeyerconcedera.–Afinal,estemundovem
da sua imaginação. É no mínimo apropriado que você cuide dele. –Drosselmeyer olhou ao redor, para o cenário espetacular, completamenteperplexo.–Éverdadeiramenteformidável.Seuspaisficariammuitoorgulhosos.FadaPlumpodiaverqueMarieestavafelizpor ter impressionadoohomem
velho.AúnicacoisamelhordoquecriarvidanosReinos,segundoaopiniãodeFada
Plum, era brincar neles. Sempre que Marie estava ali as duas meninas eraminseparáveis,rindoebrincandojuntasdemanhãatéanoite.Emcertamanhã,muito cedo, antesqueo sol chegasse anascer,FadaPlum
entrounumrompantepelasgrandiosasportasdopalácio.– Venha comigo! – exclamou para Marie. – Se não se apressar, nós
perderemos!–Estou indo, estou indo! –Marie replicou.Os patins de gelo se chocavam
contraseusombrosnapressaemalcançá-la.Escorregouedeslizoupelaponte,dirigindo-separaoReinodosFlocosdeNeve.FadaPlum,porsuavez,pareciaplanarporelacomalevezadeumapluma.–Poraqui!–FadaPlumaincitou.–Depressa!As duas meninas passaram pelo túnel que dava para a escadaria de mil
degraus até o topo da geleira doReino dos Flocos deNeve.Marie arfava embuscadear,acompanhandoFadaPlumpassoapasso.–Por…que…há…tantos…degraus?–resfolegou.–Nãopergunteamim–FadaPlumlherespondeu.–Foivocêquemfezassim.–Lembre-medefazerumaescadariacommenosdegrausdapróximavez!–
Marieriu.
Asmeninassubiramesubiram,correndoatéocumeparanãoperderemsuachance.– Estamos quase lá – Fada Plum a encorajou. – Apresse-se! Mais trinta
degraus… vinte… depois dez… até que, finalmente, asmeninas chegaram aocume do reino invernal. Flocos de neve brilhantes se avolumaram em seuscabelos e ombros enquanto continuavam a se apressar pelo gelo e pela neve.Galgaramumbancodeneveegritaramnotopoantesdeescorregarempeloladooposto,derrapandonumlagocongeladoqueficavaabaixo.–Conseguimos!–Marieresfolegava.–Nãoacheiqueconseguiríamos.–Bematempo–disseFadaPlum.–Veja!Envolveu os ombros de Marie com um braço e apontou para o céu. Os
primeirosraiosdeluzdoamanheceracabavamdesurgirporcimadasmontanhascobertasdeneve.Manchasrosaelaranjaseespalhavampelohorizonte,masbemnoalto,ondeoiníciodaauroraaindanãoalcançava,redemoinhosnebulososemamarelo,verdeeroxocomeçaramadançarpelocéu.–Quelindo–FadaPlumsussurrou.–Conte-medenovooqueéisso?–Issosechama“auroraboreal”.–Mariesorriucomorgulho.–Pelomenos,é
assimqueissoéchamadonomundoreal.Luzescoloridasqueaparecemdevidoadescargasmagnéticasnocéusetentrional.–Eaqui?–perguntouFadaPlum.–Aqui,ésimplesmente…magia–Marierespondeu.–Sempredesejeiveras
luzessetentrionaisdesdequesoubedelas,masnãoacheiqueissofossepossível.Entãomedei contadeque tudoépossível aqui.Comciência,mecânica eumpouquinhodeimaginação.Asduasamigassesentaramnanevefofa.FadaPlumserecostounomontede
neve.Obrilhodasluzescoloridasserefletianasuapeledeporcelana.–Ecomvocê–disseela.–Nadadisto seriapossível semvocê.–Abraçou
Mariecomforça.Asmeninasassistirammaravilhadasenquantoasluzescontinuavamadançar
com suavidade no alto. Por fim, as cores sumiram com o sol que surgia. Amanhãsetornouclara,eoverde,olaranjaeoamarelosumiramcompletamentenocéuazul.–Venha–FadaPlumsussurrou–,vamospatinar.As meninas riram e prenderam os patins. Levantaram-se para o lago
congelado, onde patinaram oitos perfeitos e praticaram saltos de balé sobre ogelo.Marie caiu com frequência,masnãoFadaPlum.Seusmovimentos eramtãoprecisosedelicadosquantoosdesuaépocacomobonecadecorda.FadaPlumajudouMarie todas as vezes emque ela tropeçou e lhemostrou
como fazer arabesques equilibrando-se nos patins. Giraram e rodopiaram até
que,porfim,oestômagodasduascomeçouaroncar–oquesignificavaqueerahoradoprazerprediletodelas:umavisitaàpadariadoReinodosDoces.Demãosdadas,desceramosmildegrausaospulosefizeramumalvoroçoao
longodasviasdebalasdehortelã.Osaromasdoscroissantsdechocolateedosdonutsdecanelapermeavamoar.Mariepegoudoismuffinsdemaçãcomnozesda bandeja da padaria e os colocou na cesta enquanto Fada Plum despejavachocolate quente de um imenso bule de cobre. Depois foram para o pátio dopalácioparasedeliciaremcomocafédamanhã.Reclinaram-senumgramado,tagarelandosobreabelezadasnovastrepadeirasdeflores,ecomoosguardasdesoldadinhos de chumbo eram tolos, e não seria divino sobrevoaremosReinosnumbalãodearquentemaistardenaquelemesmodia?–Adoroquandoestamosjuntas–FadaPlumconfessoucomalegria.–Como
eugostariaquevocêpudesseficaraquiotempotodo.–Àsvezestambémdesejoisso–disseMarie.Fada Plum muitas vezes pensava em como devia ser a vida de Marie no
mundoreal.Elatinhaumlindoquartolá também?Tantosbelosvestidoscomotinhaaqui?Todososbiscoitosdegengibrequepudessecomer?FadaPlumnãoguardavanenhumalembrançadasuaépocalá.Eraapenasumabonecanaquelestempos.MasgostavaquandoMarielhecontavahistóriasdecomobrincaracomela desde que eramuito pequena. De certa forma, Fada Plum sentia como sefossemmelhoresamigasdesdeocomeço.–Porquevocêtemquevoltar?–FadaPlumlheperguntou.–Porquenãofica
aqui,comigo?–Suabocaaindaestavameiocheia,maselalhelançouumsorrisoradiante, tentandoconvencê-laaficar.–Poderíamosbrincarepularedançarefazertudojuntasotempointeiro.Nuncateriaqueacabar!Mariegargalhou.–Seriamaravilhoso.–Sorveuumgoledochocolatequente.–Masomundo
realtambéméomeulugar.–Porquê?Vocênãoé rainha lá.–FadaPlumempurrouoombrodaamiga
numabrincadeira.–Masaquivocêé!–Seidisso.–Mariedeuumarisadinha.–Masexistemcoisasdequepreciso
cuidarnomundoreal.Aulaseliçõesescolares.Efizumapromessaaomeutio.–Quepromessa?–quissaberFadaPlum.–Queeusemprevoltariaparalá–respondeuMarie.– Puxa. – Fada Plum pensou nisso por ummomento. – Podeme prometer
também?–Prometeroquê?–Marieperguntou.–Quesemprevoltaráparacá?–pediuFadaPlum.–Claro!–Marieaabraçouapertado.–Jamaisadeixarei.
Fada Plum sorriu, tomada de felicidade. Levantou num salto, deixando asmigalhasdomuffindemaçãcaíremdocoloparaagrama.–Vamosverquemchegaprimeiroaocampodeflores!–exclamou.– Não é justo! – Marie riu quando Fada Plum disparou na frente. – Você
semprecomeçanafrente.As duas correram para o Reino das Flores, onde a aventura seguinte as
aguardavalogoalémdohorizonte.EassimforamtodososdiasnosReinosparaMarieeparaFadaPlum.Duas
melhores amigas, como irmãs, brincando juntas semnenhumapreocupaçãonomundo.
Certa tarde,naSaladaMáquina,FadaPlumassistiacuriosaenquantoMarieseguravaumbrinquedonovonasmãos.OvelhoDrosselmeyerestavacomelas.Todavezqueelevinha,algonovoouexcitantenormalmenteestavareservado.–Émagnífico, tio–Marieadmirouo lindoquebra-nozesqueDrosselmeyer
lhederadeaniversário.–Muitoobrigada.–Admito,meupresente tambémserve amim–Drosselmeyer respondeu. –
Estouansiosoemveroseuinventofuncionardenovo.–Claro!–disseMarie.–Eeleseráumguardaperfeitoparaopalácio.–Bem,perfeitonão–FadaPlumbrincou.–Sim,claro.–Marieencostouonariznodela.–Sóvocêéperfeita.As meninas riram, tendo partilhado dessa piada em particular tantas vezes
antes.Marie depositou o quebra-nozes na plataforma da Máquina. Depois, subiu
paragirarachaveemformadeestrelanaenormemáquina.Zuum.Clique.Vruuuuuuuuum.Amáquinazuniuganhandovidae,comumaluzbrilhante,obonecoquebra-
nozes desapareceu. Em seu lugar surgiu um soldado em tamanho real: alto eimponente,comapelemorenaeumuniformedeveludovermelhoescovado.Osoldadoquebra-nozespiscou.–Ondeestou?–perguntou.Marieapoiouumamãoemseuombro,comofaziacomcadabrinquedoaque
davavida.–Estáemcasa–disse-lhe.–MeunomeéMarie.Eoseu?OsoldadofitouosolhosdeMarie.–Phillip.–Deuumpassovacilanteàfrente.Marieoequilibrou.–Cuidado–advertiu-o.–Ganharvidarequerumpoucodeprática.
FadaPlumobservouosoldadorecobraroequilíbrio.TodavezqueMariedavavidaaumbrinquedo,seusprimeirospassoseramsempredesengonçados.Masosdelanãoforam.Orgulhava-seemsertãograciosaquantoumabailarinadesdeoinício.Nesse meio-tempo, Drosselmeyer estendeu a mão para tocar no metal da
Máquina.–Aindanãoconsigoacreditar–disseaMarie.–Asuamáquinanãousanada
alémdeenergiaavapor?– Sim. As turbinas ligam as esteiras que transportam as diferentes
engrenagensnecessáriasparamecanizarcadabrinquedo–Marieexplicou.–Ládentro, eles são montados da forma que precisariam ser combinados parapermitirquecadabrinquedosemovesse.MascomamagiadosReinos,elafazmaisdoqueisso.Elalhesdá…–Vida–FadaPlumcompletouporela.Drosselmeyer sorriu com orgulho, como um pai testemunhando um grande
feitodeumfilho.– Minha querida Marie, somente você poderia ter pensando em algo tão
inteligente.–Elaébrilhante,nãoé?–FadaPlumpegounobraçodeMarie.–Nãoseinadasobreserbrilhante.–Mariegargalhou.GesticulouparaPhillip.
–Cadabrinquedoqueganhavidaéúnicoaseumodo.–Talvezeusejaobrinquedomágicoquepermitiuqueamáquinafuncionasse!
–sugeriuFadaPlum.–Fuiaprimeira,afinal.–Talvezvocêtenharazão–considerouMarie.–Eujamaisteriapensadona
Máquina,parainíciodeconversa,senãofosseporvocê.Vocêéaminhamelhoramiga.IssodeixouFadaPlummuitofeliz.– O queme faz lembrar – Drosselmeyer anunciou de súbito. –Marie, sua
professorapediuquenosencontrássemoscomela,juntos.–Pediu?–Marieperguntoucomumaexpressãosurpresa.–Fizalgoerrado?–Não, não –Drosselmeyer a tranquilizou. –Muito pelo contrário, os seus
estudos estão exemplares. Mas ela anda um pouco preocupada com a suaexposiçãosocial.–Exposiçãosocial?–FadaPlumrepetiucomavozsufocada.– Issoparece
muitosério.–Oqueelaquerdizercomisso,tio?–Marieperguntou.– Não tenho muita certeza – Drosselmeyer respondeu. – Vamos descobrir
juntos.Estápronta?–Claro,tio.–MariesoltoudobraçodeFadaPlum.–Ireicomosenhoragora.
–Mas…–FadaPlumcomeçouadizer.Nãoqueriaqueaamigapartisseainda.–Penseiquefaríamosanjosnaneve.Edepoisanjoscomflores.Edepoisanjosdedoces.Mariedeuumarisada.– Ainda podemos fazer isso, bobinha. Voltarei assim que tiver terminado.
Enquantoeuestiverausente,porquenãomostratudoaPhillip?Vocêpodelevá-lo à fábrica de doces ou aos jardins floridos! Os lírios-de-um-dia estãoflorescendo…osseusfavoritos!Fada Plum ficou vendo Drosselmeyer guiar Marie para fora da Sala da
Máquina.– Ela está sempre tão ocupada – Fada Plum disse para Phillip. – Fico
imaginandoseaspessoasnomundorealpercebemoquantoelaéinteligente.–Eladevesermuitointeligenteparatercriadotalcoisa.–Phillipolhouparaa
Máquina.–Devemos,então,irparaafábricadedoces,comodisseMarie?FadaPlumdeudeombros.– Imagino que sim. – Francamente, estava mais interessada em começar a
fazer os adoráveis anjos de neve para surpreenderMarie quando ela voltasse.Mas depois olhou para o uniforme de Phillip e começou a rir. – Talvezencontremosalgumasnozesparavocêquebrar.Phillipbaixouosolhosparaasmãoseouniformeetambémriu.–Creioquenãosereimaisdegrandeajudanisso–admitiu.
No ano seguinte, as festividades de Natal chegaram uma vez mais àpropriedadedeDrosselmeyer.Eesseeraumanomuitoespecial,MariedisseaFada Plum. Sempre pedira uma festa no Natal ao tio, mas, este ano,Drosselmeyerforaalém.Estariaoferecendoumgrandebaileparacelebrar–pelaprimeiravezemsuamansão!–Podemeajudarcomomeucabelo?–MarieimplorouaFadaPlum.–Nunca
consigocomquefiquetãobeloquantovocêodeixa.Sepudesse,FadaPlumteriacintiladodefelicidade.–Masclaro!–respondeualegre.–Fareicomquesepareçadarealeza.Noaltodatorredopalácio,FadaPlumtrabalhoucomafincoparaprenderos
cabelosdeMariedojeitocerto.Enrolouastrançascastanhas-escurasnumcoqueelaboradonabasedanuca.DepoisteceugalhinhosdeazevinhoedefrutosqueMarie trouxera do mundo real consigo ao redor da cabeça como uma coroanatalina.–Estámaravilhoso–Marieadmirouopenteadonoespelho.–Ah,FadaPlum!
Oqueeufariasemvocê?–Oseucabeloseriaumninhoemaranhado!–FadaPlumbrincou.Marieseaproximou,comosefossepartilharumsegredo.–Venha–disse.–Vamosnosesgueirarnafestapelorelógiodepêndulo.Juntas,correramatéasaladorelógiomecanizadoesubiramnaesteirarolante.
Numpiscardeolhos,aesteiraaslevouparaoladoexterno,ondeficaramcomoduasestatuetasdelicadasnotopodorelógioalto.Nãomuito tempo antes, as duasdescobriramqueo relógiodepêndulo lhes
permitia espiar o mundo real como se fossem estatuetas pertencentes aomecanismo. Outro mistério dos Reinos descoberto por acaso. Depois disso,Mariepediraaotioquemudasseorelógioparaograndesalão,demodoqueelaeFadaPlumpudessemobservarasfestividadesanuaisdeNatalapartirdeseupontodevistasecreto.ElasabiaqueFadaPlumadoraria todaacomemoração,mesmonãopodendoparticipardelapessoalmente.–Não é fantástico?–Marie perguntou, olhandopara a festa logo abaixo. –
Tãoalegre!Tãoanimada!Nuncavitantaspessoasnumsólugar.–TambémpodemosdarumafestanosReinos!–exclamouela.–Comtodos
oscidadãosreunidosnopalácio.–Queideiamaravilhosa!–Mariebateupalmas.–Podemosterumaárvoree
presentese…ah!Marieparouderepentecomosolhosfixosnumpontoespecíficodosalãode
bailelogoabaixo.FadaPlumseguiuseuolhar.DiversascriançasdançavamaoredordaárvoredeNatal.Riameconversavam
enquantogiravam.–Crianças!–Mariearquejou.–Titionãodissequehaveriacriançasnafesta.
Penseiqueseriamapenasadultos.Masolhe!Euosconheço!Jáosvinacidade,sãodaminhaidade!Ah,quedivertido!–Achamesmo?–FadaPlumpressionouoslábios.–Imaginoquepareçam…
simpáticos. – Na verdade, achou que as crianças pareciam bem comuns. Asroupas eram simples, e os cabelos não estavam ajeitados tão elegantementequanto os de Marie, que ela arrumara. Qualquer que fosse a dança queexecutavampareciaboba,mastalvezfosseassimqueascriançasnomundorealbrincavam. Jamais encontrara outra, a não serMarie. Então, não havia comosaber.–Titiodeve terqueridome surpreender–Marie continuouansiosa.–Devo
meapressarparadesceratélá,paranãoper-dê-losantesquevãoembora.–Ah…Masjávaiemboratãocedoassim?–FadaPlumperguntou,umtanto
decepcionada.–Penseiquefosseficarumpoucomais.– Mas eu… –Marie começou a dizer. A esteira rolante seguiu em frente,
deixando-as de volta na sala do relógio. – Pensei que o motivo de você terarrumadomeuscabeloseraparaqueeufosseàfesta.–Eé!–FadaPluminsistiu.Esforçou-separaencontraraspalavrascertaspara
explicar o que sentia. – É só que…o tempo passa diferente aqui. Parece quevocê se ausenta por séculos quando vai embora. Eu queria brincar um poucomaisantesdevocêir.ÉvésperadeNatal.Mariepareciasurpresaanteaconfissãodaamiga.–Parecemesmotantotempoassimquandonãoestouaqui?–perguntou.FadaPlumassentiu.–Podeficar,porfavor?Sóumpouquinho.Prometo,ascriançasaindaestarão
nobailequandovocêvoltar.Marie olhou com anseio através do vidro embaçado que dava para o salão
abaixo.Ascriançasestavamdançandoemcâmeralenta.EntãosuspirouesorriuparaFadaPlum.– Acho que posso ficar um pouquinho mais. Sinto muito. Eu sabia que o
tempo semovia de umamaneira diferente aqui, mas jamais pensei em comovocêsesentiaenquantoeumeausentava.Oquegostariadefazer?Ah!Talvezpossamosbrincardetrocarderoupa!Possoatéfazeralgunsvestidosnovosparanóscomamáquinadecosturadebrinquedoque trouxedaoficinadomeu tio.Podemostervestidosdegala!–Quedivertido!–FadaPlumbateuaspalmasdasmãos.Pordentro,sentiao
alívioseespalharporqueMarieconcordaraemficar.–Vamosficarlindas.–Comoirmãs.–MarieencostouonariznodeFadaPlum.–Comorainhas–concordouela.
CAPÍTULO12
CLARA
Uma trombeta soou, anunciando o início da peça.Centenas demoradores dosReinosestavamreunidosnoimensoteatro,sentadosdiantedeumenormepalco.Mas todos os olhos estavam concentrados não no palco,mas no terraço ondeClaraestavasentadaaoladodeFadaPlumedePhillip.– Neste dia significativo na história dos Quatro Reinos – anunciou Shiver
audivelmente –, temos o orgulho de lhes apresentarClara Stahlbaum, filha daRainhaMarie!Uma enorme aclamação se elevou da multidão. Cidadãos acenaram em
adoração,epaisseguraramosfilhosnosombrosparaveremmelhoraprincesa.Clara retribuiu os acenos, sentindo-se um pouco constrangida. Não estava
acostumadaatertodasasatençõesvoltadasparasi,muitomenosadeumreinointeiro.–Oqueestãoencarando?–sussurrouparaFadaPlum.–Você–FadaPlumrespondeucomumsorriso.–Vocêéparecidacomsua
mãedospésàcabeça.Clarasentiuumaondadeorgulho.As luzes diminuíram de intensidade, e um coro de “shhhh” percorreu a
multidão quando as cortinas se levantaram.Uma bailarina solitária vestida deprincesa surgiu com graciosidade sob a luz dos holofotes. Começou a dançar.Pirouettes,arabesqueseattitudes.Seusmovimentoseramadoráveis,mastristes.AmúsicasooumelancólicaparaClara,comoseabailarinaestivessesolitária.FadaPlumseinclinouparapertodela.–ApeçacontaahistóriadosQuatroReinos–explicounumsussurro.–Como
suamãecriouonossomundo.Naorquestra,umflautimcomeçouatocarmaisalto,eospassosdabailarina
princesaseaceleraram.Seusbourréssetornarampirouettes.Seuspassos, jetés.Amúsica se avolumou, e, com o suave crescendo de um címbalo, o palco seencheu de faíscas mágicas. A expressão da princesa foi da tristeza à alegria
quandoergueuosbraçosgraciososemdireçãoaocéu.Flocosdenevecintilantescaíramdecima.–OReinodosFlocosdeNeve–FadaPlumsussurrouparaClara.Abailarinachutouoar.Florescoloridasbrotaramdochão.–OReinodasFlores–prosseguiuFadaPlum.Então,umpanodefundocomdocessedesenrolouatrásdabailarinaprincesa.–OReinodosDoces!–exclamouClara.Abailarinacontinuoua saltareadançarao longodopalco.Acadachutee
pirueta,maisenfeitesgloriosossurgiam.Então, um grupo de bailarinos entrou pelas laterais, todos vestidos como
brinquedos e bonecas. Seus figurinos eram incríveis: rosa e dourado giravamdelicadamente com as flores e açúcar e cristais.Mas, pormais adoráveis quefossem,seusmovimentosnãoeram.Chavesdedarcordaseprojetavamemsuascostas,eadançadeleserarígidaemecanizada.–Éassimquecomeçamos–sussurrouFadaPlum.–Comobrinquedossem
vida.No palco, a princesa flutuou até um dos dançarinos. Ele estava vestido de
vermelho e preto: um soldadinho de brinquedo robótico.Comummovimentoelegante,abailarinaarrancouachavededarcordadassuascostas.Nomesmoinstante,osmovimentossetornaramgraciososefluidos.Elesegurouamãodabailarinae,juntos,executaramumdelicadopásdedeux.Então, a bailarina começou a retirar a chave das costas de todos os
brinquedos!Elesganharamvida,dançandocomalegriaàmedidaqueamúsicaiaseintensificando.Derepente,amúsicamudou.Violinoseflautassecalaram,eumoboésinistro
ecoou em todo o teatro. Uma nova dançarina entrava no palco. Ela avançavacom pernas de pau compridas, os cabelos cacheados ruivos pendiam numatorrenteaoredordorosto.Elavestiaumacrinolinaeumamáscaraassustadora.Osoutrosbailarinosseacovardaramcommedo.–MãeGinger?–Claraperguntoubaixinho.–Aprópria–FadaPlumconfirmou.Enquanto os dançarinos se escondiam, somente a princesa permaneceu sem
medo.Aproximou-se da assustadoraMãeGinger e removeu sua chave de darcorda. No mesmo instante, a mulher horrenda ganhou vida. Derrubou a belaprincesanochão!Minúsculosbailarinosvestidosderatoseespalharamapartirdasaiadela,atacandoosdemaisdançarinosdopalco.–FoiessaabatalhadeMãeGingeredosratos?–perguntouClara.–Sim.–FadaPlumassentiusolenemente.–Mulherabominável.Nãohánada
dematernalnela.Elacomeçouessaguerra.–FadaPlumseaproximoumaisdo
ouvidodeClaraparasussurrar:–Esperoquesejavocêaquelaaacabarcomela.A bela princesa bailarina escapou pela lateral do palco, e os dançarinos de
brinquedo se reuniram na valente guerra dançante contra Mãe Ginger. Ratospularam aqui e acolá, alguns se lançaram ao ar de forma acrobática, outrossaltaramsobrebrinquedosenquantoelesatacavam.Umaneblinacobriuopalcoatéqueapenasassilhuetasdosbailarinosficaramvisíveis.Então,numostentosotoquedetrombetasMãeGingereseusratosrecuaramenquantoosdançarinosdebrinquedo comemoraram. Saíram vitoriosos!A regentemaligna e seus lacaiosforambanidosparaasruínasdoQuartoReino.A multidão ficou de pé, comemorando e aplaudindo. Clara também bateu
palmas,masestavaconfusacomoqueFadaPlumhavialhedito.–Nãoentendo–disse.–Oquequisdizercom“esperoquesejavocêaquelaa
acabarcomela”?FadaPlumolhouaoredor.Todososcidadãos,atémesmoShivereHawthorn,
estavamdistraídosaplaudindo.Osbailarinosnopalcosecurvaram.FadaPlumrelanceouPhillipeassentiu.–Venhacomigo–sussurrouelaparaClara.
CAPÍTULO13
FADAPLUM
– Venha comigo! – Marie encorajou Fada Plum certa manhã nos Reinos. –Tenhoumasurpresaparavocê!–Umasurpresa?–FadaPlumperguntoucom…bem,surpresa.– Isso! –Marie subiu puxando a amiga pelos largos degraus do palácio. –
Umacoisaquefizparavocênopalácio.–Mascomo?–FadaPlumtropeçavaaotentaracompanhar.Nãoeracomum
queMariefossemaisrápidadoqueela.–NãoestivemosjuntasotempointeirosemprequevocêveioaosReinos?Mariepiscouparaela.–Istoéespecial.Quismantersegredoatéestarpronto.ChegaramaumconjuntodeportasduplasqueFadaPlumjamaisviraantes,e
Mariesevirouparaela.–Fecheosolhos–sussurrou.–Nãoosabraatéeumandar.Fada Plum fez como lhe foi dito, e Marie a guiou para dentro da sala
misteriosa.–Muitobem–disseMarie.–Agora!FadaPlumabriuosolhosearquejou.Estavamnumaimensasaladostronos,
novíssima no palácio. Marie deve ter passado séculos aperfeiçoando-a. Nasparedeshaviadesenhoselaboradosdereluzentesmecanismoseengrenagensdeouropuro.Colunasdemármoresustentavamarcosecontrafortesdecorados.Oespaçotodoera iluminadopela luzdevelas,refletindomilharesdeminúsculoscristais pensos em lustres majestosos. E precisamente posicionados diante dequatrojanelasqueiamdotetoaochãohaviaquatrotronosimponentes,defrenteparacadaumdosreinos.–Oqueéisto?–perguntou,maravilhada,FadaPlum.–Oquevocêcriou?–Nãoconsegueadivinhar?–Marieperguntouanimada.–Éasaladostronos!–Paramim?–FadaPlumestavaconfusa.–Masporquê?Vocêéarainha.–Porque–Marieexplicou,batendoaspalmasdasmãos–vocêmerecealgo
especialegrandioso!Umasalaàalturadarealeza!As facesdeFadaPlumseenrubesceramdeprazer.Marieplanejava torná-la
rainha também, para que pudessem governar os Reinos juntas? Fada Plumjamais pensara em simesma como rainha.Mas agora que o fazia, ah, pareciaalgomaravilhoso!–Queadorável!–exclamouparaMarie.–Nãoconsigoacreditarque…Mas,depronto,secalou.–Masporqueháquatrotronos?–perguntou.Foi então que Fada Plum notou três figuras na sala com elas. Novos
brinquedosqueganharamvidaequeelajamaisviraantes.Estavamsentadosemcadaumdostronosdefrenteparaasjanelase,paraFadaPlum,elespareciam…diferentes.–Podemviragora!–Marieoschamou.–VenhamconhecerFadaPlum.– Ah, finalmente! – disse o primeiro, descendo do trono. Ele era jovial e
corpulento, coberto por mantos feitos inteiramente por flores vibrantes. Atémesmodeseuscabelosbrotavamrosas.–Hawthorn,aseudispor–apresentou-separaFadaPlum,segurando-lheamãoparaapertá-lacomvigor.–Umprazer,éumprazerconhecê-la.–Estou…encantada,comcerteza–FadaPlumgaguejou.Asegundafiguraseaproximouparacumprimentá-la.– Shiver – disse, apresentando-se com uma reverência pronunciada,
permitindoqueacasacaprateadaresvalassenochão.Ondequerqueeletocasse,cristaisdegeloseformavam.–Éumahonraconhecê-la,FadaPlum.Marienoscontoutantascoisasaseurespeito.–Contou?–FadaPlumperguntou.Oque estava acontecendo?Quemeram
essaspessoas?Por fim,aúltimafiguraapareceu.Essaeraumamulher,comumvestidode
babadoslaranjaevinhocomabarradecoradacomborlasdecortinas.Oscabelosencaracoladosruivoseramfofoseestavampresoscomumafitaamarela.–EeusouMãeGinger–amulheranunciou.Avozpareciamaisvelha,mais
direta.–Émaravilhosoconhecê-la,querida.VocêétãoadorávelquantoMarieadescreveu.FadaPlumolhouparaostrêsedevoltaparaMarie.–Sintoque…desculpe,masnãoestouentendendo–confessou.–Estessãoosseusnovosamigos!–exclamouMarie.–Euoscrieiparaque
sejamosregentesdosquatrodiferentesreinos!–Regentes?–FadaPlumperguntou.MariesegurouasmãosdeFadaPlum.Pareciaresplandecerdefelicidade.– Venho pensando já há algum tempo… Você me ajudou a dar vida aos
Reinos,equeroqueoadministrecomigo.Masnãosereicapazderetornarcomafrequência que fazia, eme pareceu injusto pedir a você que governe todos osReinossozinha.Porissocrieitrêscompanheirosparavocê.Éperfeito,entende?MariesevirouparaHawthorn.–Hawthornéo regentedoReinodasFlores.Eleéum jardineiroexcelente,
assimcomoofoimeupai.AsbochechasdeHawthorncoraram.–Ah,não,parecomisso.Decertonãopossosertãohabilidosoquantoseupai!–Vocêé,sim–Marieinsistiucomumsorriso.Virou-separaShiver.–Shiver
éoregentedoReinodosFlocosdeNeve.– Que faz com que se lembre do dia em que chegou à propriedade de
Drosselmeyer. – Shiver assentiu, satisfeito. –Estou ansioso por conhecer essesenhorDrosselmeyer,apessoaemcujahomenagemvocêmecriou.– E logo o conhecerá, prometo! – disseMarie. Virou-se para a mulher de
cabelos ruivos.–EMãeGingeréa regentedoReinodoDivertimento.Penseinesse nome porque minha mãe sempre fazia biscoitos de gengibre para asminhasfestinhasnahoradochá.Eramosmeusprediletos.–Sãoosmeustambém–MãeGingerrespondeucomafeto.MarieseaproximoumaisdeFadaPlum.–Sabeoqueissoatorna?–perguntou.FadaPlum abriu a boca,mas nenhum som saiu. Pela primeira vez na vida,
estavasempalavras.– Isso a torna a regente do Reino dos Doces! –Marie gritou, abraçando a
amigaedandopulinhos.–Nãoéperfeito?Ah,FadaPlum,vocêserátãofeliz.Faremosumapeçadeteatroeumbaileetudoomais!EsteéumnovocapítuloparaosReinos,comvocêbemnocentrodetudo!A mente de Fada Plum girava enquanto Marie a empurrava. Queria muito
estarfelizpelaamiga.Masnadadaquilofaziasentido.–Aindanãocompreendo–disselentamente.–Nãoserámaisanossarainha?–Ah,não!Não,não,não.Aindasereiasuarainha–Marieatranquilizou.–É
que,comovoucomeçarnocolégionesteoutono,nãopodereivoltaraosReinoscomtantafrequência,eeu…–Colégio?–FadaPlumainterrompeu.–Vaiparaumcolégio?Masporquê?Marieriu.–Para aprender, claro.Todos frequentamo colégio.Bem, talvez não todos.
Mas todos vão à escola. Para aprender e para trabalhar e para educar suasprópriasfamíliasumdia.–Ah.–FadaPlumpensounissoporummomento.–Vocênão…Nãogostoudasurpresa?–MarieconfundiuahesitaçãodeFada
Plum com desaprovação. –Não está feliz?Ah, por favor, diga que sim, FadaPlum.Penseinistotudoporvocê!–Claroquegostei.–FadaPlumnãoqueriadesapontaraamiga.–Équetudo
issoé…tãoimpressionante.–Vocêiráamar,podeacreditar.–Marieaabraçoudenovocomforça.–Você
seráabelaregentedoReinodosDoces.– Bela, de fato! – Hawthorn entoou. – A mais bela regente dos Reinos! –
Cobriuabocacomumamão.–Semquererofender,claro,MãeGinger.MãeGingerergueuumasobrancelha.–Nãomeofendeu,meubomhomem.Aliviado,Hawthornprosseguiu.–Serámuitodivertido!OsQuatroReinosficarãobememnossasmãos.–Hawthornestácerto.–ShivertocounobraçodeFadaPlum.Osdedosdele
eram como gelo. – Juntos, nós quatro devemos cuidar dosReinos enquanto anossarainhaestiverausente.–Eéoquefaremos.–MãeGingerseaproximouesegurouasmãosdeMarie
nassuas.–NósficaremosfelizesemcuidardosReinosnasuaausência.Fada Plum fitou os três novos regentes. Eles de fato pareciam amigáveis,
concluiu.Sóprecisariaseacostumar.MasseMarieacreditavamesmoqueseriamelhor assim, com certeza ela poderia fazer dar certo.Afinal, era a primeira.Perfeita, comoMarie sempre dizia. Que dificuldade teria em ensinar aos trêsregentesosdetalhesenvolvidosnoscuidadosdosReinos?MãeGingerpareceusentiroolhardeFadaPlumsobresi.Amulherseviroue
lhelançouumsorrisoestranho.FadaPlumrapidamentedesviouoolhar.Dariaomelhordesi.
CAPÍTULO14
CLARA
FadaPlumconduziuClaraePhillipporumaescadaespiralada.Aaclamaçãoeos aplausos da plateia do teatro ficaram para trás à medida que desciam edesciamcadavezmais,atéquetudooqueconseguiamouvireramapenasseuspassos nos degraus de pedras. Lâmpadas de gás tremulavam nas paredes,fazendocomquesuassombrasdançassem.Láembaixo,chegaramaumapesadaportade ferro.FadaPlumsubitamente
agarrouobraçodeClara.– Não pode contar a ninguém o que vou lhe mostrar – sussurrou com
veemência.Claraassentiu.–Prometo.–Suamãenãoeraapenasanossarainha–FadaPlumexplicounumtomde
vozbaixo.–Elatambémfoianossacriadora.Elanosfez.Clarafranziuocenho.–Nãoestouentendendo.– Éramos apenas brinquedos antes – Fada Plum continuou. – Objetos sem
vida com que as crianças como você brincavam. Então, sua mãe apareceu emudoutudo.Elanosdeuvida.Comisto.FadaPlumempurrouapesadaporta,abrindo-a,easdobradiçasrangeramnum
protesto.Logoatrásdelahaviaumasalacavernosarepletademaquinários.Clarajamais vira algo semelhante antes. Passar por aquela soleira foi omesmo queentrarnasengrenagensdeumaimensamáquina.Mastudoestavaestranhamentesilencioso. Pistões e rodas dentadas estavam de prontidão; correias e poliaspermaneciaminertesdemaneiraatípica.Asúnicascoisasquesemoviameramumasériederodas-d’água,girandomuitodevagar.Enocentrodetudohaviaumtubo cônico comprido apontado para uma plataforma. A máquina sibilavasoltandovapor,àesperadealguém,dealgoqueaativasse.–AMáquina–anunciouFadaPlum.
Claraobservouocômododeolhosarregalados.–Istofoi invençãodaminhamãe?–perguntouincrédula.Clarasabiamuito
bemoquantoamãeforatalentosacomsuasinvenções.Masomecanismodiantedelesera tãocomplexo,visivelmentepoderoso.Clara não fazia ideia deque amãeforaumainventoratãoengenhosaapontodecriar…aquilo.–AMáquinanostornoureais.–FadaPlumpassouamãopálidaaolongodo
metallisodamáquina.–Nosdeuvidaehumanidade.Tudooquevocêtem,nóstemos.Sentimentos:alegria,tristeza,raiva…–Amor–Phillipintercedeudesúbito.ClaraeFadaPlumofitaramsurpresas.Envergonhado,Phillipdeuumtapinha
nometaldamáquina.Ela acionouumaválvula,que soltouumvapor sibilantenele.Philliptossiu.–Ah, sim,meubomcapitão,amor também–FadaPlumconcordou.–Mas
nãotemosmaisaúnicacoisadequeprecisamosparaqueelafuncione.–Achave–disseClara.– Como pode ver. – Fada Plum apontou para uma pilha enorme de chaves
descartadasaoladodopaineldecontrole.–Semachave,aMáquinapermaneceadormecida; os Reinos, paralisados. Mãe Ginger está na fronteira e os ratos,prontosparaentrar.OqueaconteceucomoQuartoReinopodeaconteceraqui.Tudooquesuamãecrioupodeserdestruído!–Não!–Claraexclamou.–Issonãopodeacontecer.ClaraestudouafechaduraqueoperavaamaravilhosaMáquina.Pegouacaixa
emformatodeovodabolsaeolhouparasuafechadura.Combinavam.–Éamesma!–Claraconstatou.–Minhamãenãopodiavoltar,porissome
deuachave!Talvez essa seja a mensagem dentro da caixa!, Clara pensou desvairada.
TalvezmamãesoubessequeosReinoscorriamperigoemeenviouparasalvá-los.Obilhetedizia:“Tudooquenecessitaestádentro”.SeráqueelasereferiaatudodequeeunecessitavaparasalvarosReinos?– Esperamos e esperamos pela volta de suamãe para podermos reiniciar a
Máquina–disseFadaPlumcomgravidade.–Maselanuncaretornou.Eagoratemoqueessachaveestejaperdidaparasempre.–Não!Nóspodemosrecuperá-la.Temosquerecuperá-la–Clarainsistiu.FadaPlummeneouacabeça.–Éextremamentecontraoprotocoloseoporaosdesejosdosregentes.–Masequantoaosdesejosdeminhamãe?–Claraargumentou.IssofezFadaPlumpararparapensar.–Bemobservado,minha querida – disse depois de um tempo demorado. –
Muitobemobservado.
Clara e Phillip aguardaram ansiosos enquanto Fada Plum parecia ponderarsobre as palavras de Clara. Por fim, a bela regente sorriu. As faces coradasbrilhavamnaumidadedovaporemanadopelaMáquina.–Oprotocoloestásuspenso!–declarou.–Ah,obrigada,FadaPlum!–Claraaabraçou,contente.–Phillip?Osoldadobateuoscalcanhares,emposiçãodesentido.–VossaMajestade?–Virácomigo?–Clarapediu.–AoQuartoReino?Phillipassentiu.– Uma dúzia dos meus melhores homens estará reunida no pátio ao
amanhecer.Entraremosesairemos,amissãoestarácumpridaatéocairdanoite.Claradeuumsorrisoamplo.Conseguiriam!Recuperariamachavedamãe!MasFadaPlumaindapareciapreocupada.–Clara,estádispostaaarriscarsuavidapornós?Claraassentiu,determinada.–Temosquepegaressachave.Pelobemdetodosnós.Aoouvirisso,FadaPlumsegurouorostodeClaraentreasmãos.Seutoque
eragentil,masfirme.ApeleerafriacomomármorenasfacesdeClara.–Vocêtambémtemabravuradela–disseFadaPlumcomadmiração.–Que
orgulhoelateriadafilhacorajosa.Umasensação imensadegratidãoseapossoudeClara.Hánão tanto tempo,
eladesconheciaaexistênciadetudoaquilo.Masagora,dependiadeles–dela–salvá-los.Fazeroqueamãehaveriade
quererfazer,masjánãopodia.Manterseusonhovivo.IriamsalvarosQuatroReinos.
Clara ePhillip estavamdiantedaponte levadiça.Atrásdeles, umadúziadeseusmaisvalentes soldados, todosprontos.E, à frentedeles,dooutro ladodaponte, jazia o seu destino: o Quarto Reino destruído, envolvido em neblina eincerteza.– Eu gostaria de ir com vocês – sussurrou Fada Plum para Clara. –
Compreendequenãopossoservistaindocontraasordensdosoutrosregentes?Claraassentiu.Vestiacomorgulhoouniformedeumsoldadoemmissão.–Compreendo–disseaela.–Mas tenho um emissário para auxiliá-los em sua busca – continuou Fada
Plum.–Umexcelentenavegadoraquemconfiominhavida.FadaPlumolhouaoredor.
–DewDrop?–chamou.–Ah, não – Phillip gemeu quando umaminúscula fadinha flutuou até eles
numcrepitanterastrodefaíscas.–Vocêdissealgumacoisa?–DewDropperguntou,jogandoneleumborrifo
deáguamágico.–Nãoconseguiouvir.–Quelinda!–exclamouClara.Nuncaviraumafadadeverdadeantes.DewDroppousounoombrodela.AvaliouorostodeClara.–Nãopossodizeromesmo–replicou.–Oquedisse?–Claraperguntou,surpresa.–DewDrop–FadaPlumadvertiu–,comporte-se.–Oquê?–DewDropreclamou.–Acheiqueelaseriamaisalta!FadaPlummeneouacabeçaesevirouparaClaraeparaPhillip.Mesmona
luzfracadoiníciodamanhã,alindapeledeporcelanadaregentereluziacomopoeiraestelar.–Rezopeloregressoemsegurançadevocês–disseaClara.–Cuidem-se,e
cuidadocomaMãeGinger.–Podedeixar–Claraprometeu.
CAPÍTULO15
FADAPLUM
Comopassardotempo,FadaPlumacabouseacosumandocomapresençadosoutros regentes. Cinco anos já haviam se passado desde queMarie começaraseusestudosnocolégioemLondres.SuasvisitasaosReinossetornarammenosfrequentes, apesar de Fada Plum parecer sentir sozinha o impacto total daausênciadesuaqueridaamiga.NuncamaisascoisasforamasmesmasdesdeosvelhostemposemquehaviaapenasFadaPlumeMarie.MasacompanhiadosregentestornouosperíodosentreasvisitasdeMariemenossolitáriose,devezem quando, Fada Plum se esquecia por alguns instantes de que eles nãoestiveramsempreali,administrandoosReinoscomela.Defato,FadaPlumsesentiusurpreendentementegratapelopapelnaturalde
líderquecumpria.Apreciavaseurecém-adquiridoprestígio.OstrabalhadoresdoReinodosDocesatendiamseuspedidosdepronto,construindonovoscaminhosde balas de hortelã, preparando banquetes abundantes de doces, até mesmorepintando a padaria predileta deMarie para combinar com as cores de FadaPlum.Eficavamfelizesporfazê-lo!Todosospedidoseramrecebidoscomumsorriso alegre e satisfação por serem capazes de agradar à bela regente deles.Fada Plum deduziu que devia ser uma líder natural para ser amada de talmaneira.Os outros regentes executavam suas tarefas com semelhante decoro.
Hawthorneraumpoucoestabanado,FadaPlumconsiderava,mastinhamesmoum toque mágico com as flores. Botões floresciam sob seus passos todas asvezes em que ele caminhava em ambientes externos. E, apesar de serincessantementeexaltado,tratavaFadaPlumcomomaiorrespeito.Atéchegaraacriarumaflorapenasparaela–umcruzamentoentreumapetúniaeumaflorde ameixeira que batizou de Petúnia Açucarada. Fada Plum se sentira tãohonradaqueordenaraquebuquêsdasuaflorespecialfossementreguesnosseusaposentostodasasmanhãs.Shiver, eladeduziu, eramais reservado.Eleobservava seu reino apartir do
tronoporhoras ehoras, fitandoohorizonte,perdidoempensamentos.Devezem quando, apontava um dedo numa direção e redirecionava uma nuvem deneveparaaspergirumanovaáreacomflocosfrescos.Mas,emgrandeparte,elepermanecia quieto e pensativo – exceto na vez em que foi patinar com ascriançasecaiunumburaconogelo.Depoisdisso,ficoureclamandoporhorasafio sobre a experiência humilhante. Custara-lhe muito para que desgastasse oexcessodepingentesdegelodemodoanãoarrancaracidentalmentepartesdeseuscabelosebarbacongeladas.FadaPlumsedivertiraporumasemanainteiracomatolicedesseincidente.AúnicaregentecomaqualelanuncasesentiraàvontadeforaMãeGinger.A
velhamulhererabastanteinofensiva.Cuidavadosseusafazeres,gerenciandoosjogos e os festivais no Reino do Divertimento, ainda que Fada Plum nãoconseguisseselembrardeumdiaemqueMãeGingerlhepareceraremotamentedivertida.MasoqueFadaPlumnãoconseguiasuportareraaatitudedamulhertodavezqueMarievisitavaosReinos.EnquantoFadaPlumsesentiaextasiadaem ter a amiga de volta, mesmo que por poucas horas, Mãe Ginger sempreparecialoucaparaqueMarieregressasseàsuavidanomundoreal.–Vocênãotemqueestudar?–perguntava.Ou:–Emqueinvençõesvocêtem
trabalhado?Decerto elas exigem sua total atenção. – E o pior era quando elapressionava Marie sobre possíveis pretendentes: – Ninguém conquistou seucoração ainda? – Mãe Ginger a atormentava com insistência. – Uma moçaadorávelcomovocênãodeveriapassaravidasozinha.–Elanãoestásó.–FadaPlumsempreintervinhaparadefenderMarie.–Ela
temanós.EaosReinos.Comoumarainhapodesesentirsó?MãeGingerapenassacudiaacabeçaemdesaprovação.FadaPlumnãopodia
deixardepensarqualseriaomotivoquealevavaafazertantasperguntassobreavidadeMarienomundoreal.Oquehaveriadesertãointeressantenissoparaavelhamulhersemostrarsempre tãoávidaemmandarMariedevoltapara láomaisrápidopossível?Noentanto,bemnoíntimo,FadaPlumsabiaquehaviaumfundodeverdade
nas palavras de Mãe Ginger. Marie tinha crescido e se tornado uma moçaadorável. Mesmo quando não trajava roupas majestosas, uma aura pareciacircundá-la.Suamerapresençaerainspiradora,gentilegenerosa.Seaspessoasdos Reinos adoravam Marie tanto assim, o que as pessoas no mundo realpensavamdela?–Comoé lá?–FadaPlumperguntouumanoite, quandoMarie estavapara
começarsualongacaminhadapelocorredornointeriordacascadaárvore.–Nomundoreal?– É maravilhoso – respondeu Marie. Refletiu por uns instantes. – Mais
concreto, imagino.Mais sério. Aqui, nos Reinos, eume sinto ilimitada.Mas,quando estou lá, sinto como… se estivesse trabalhando para algo. Para umafinalidade.FadaPlumfitouolongocorredor.Oqueeraaquelepontodeluzaofimdele?–Possoircomvocê?–pediu.–Gostariadevercomoé.Mariemeneouacabeça.–Nãocreioquevocêpossa–admitiupesarosamente.–Massempresaímospelorelógiodepêndulo–FadaPlumobservou.–Parao
salãodebaile.–Issoédiferente–Mariedissecomtristeza.–Acreditoque,quandoestamos
olhandopeloportaldorelógio,naverdadesomospartedele.AmagiadosReinosnos protege.Mas sair pelo corredor é diferente. Tentamos uma vez, hámuitotempo,levaralgodaquiparalá.Nãodeucerto.AscoisascriadasnosReinosnãopodemexistirnomundoreal.Creioquevocêvoltariaaserumaboneca.–Umaboneca?–FadaPlumrepetiucomdesgosto.–Puxa.Marietocounasfacesdaamiga.–Oseulugaréaqui–tranquilizou-a.–Ondeébeloeperfeito.Omundoreal
podeserconfusoàsvezes.Seulugaréaqui,ondesempretudoéfeliz.FadaPlumapoiouasmãossobreasdeMarie.– Sou mais feliz quando você está comigo – confessou. – Sinto-me…
diferente. Sinto saudades do passado, quando costumávamos brincar juntascomoirmãs.ApreocupaçãoatravessouorostodeMarie.–Não está contente comosoutros regentes?Pensei que ficaria.Euos criei
paraquelhefizessemcompanhia.–Ah,sim,elesfazem.–FadaPlumrefletiu.–Aomododeles,suponho.Mas
elesnãosãovocê.Nãosãoaminhafamília.–Asuafamília?–Marierepetiu.–Isso.–FadaPlumassentiu.–Écomovocêdisse:estivemosjuntasdesdeo
início.AntesmesmodosReinos.AntesatédacasadeDrosselmeyer.UmaexpressãodistantesurgiunosolhosdeMarie.–Parecequefoitantotempoatrás–sussurrou.–Umavidadiferente.Umabadaladasoouemalgumlugaraolonge.Talvezatémesmonorelógiode
pêndulonosalãodebailedeDrosselmeyer.MarieolhouparaofimdocorredoredepoissegurouasmãosdeFadaPlum.–Tenhoqueiragora.Masprometo,voltareilogo.JáéquaseNatal!Eteremos
umagrandecomemoração,comoasfestasnacasadetitio.–Deuumapiscadela.–Talvezeuatépossapensarnumasurpresa,emhomenagemaopassado.
AvésperadeNatalchegou.Anevecaiucomsuavidadenasjanelasdopalácio,cobrindoosQuatroReinoscomummantodeserenidadeinvernal.Marieacabarade retornar, como havia prometido. Usava um lindo vestido de baile verde edourado,prontaparaparticipardascomemoraçõesnatalinasdeDrosselmeyer.Mas antes reunira os regentes na sala dos tronos com a promessa de um
presenteespecial.FadaPlumreluziadeexpectativa.AvésperadeNatalsempreeraumaépoca
mágica,anoitepelaqualmaisansiava.Nãoporcausadaárvoreoudaneve,nemmesmo pelos presentes, mas porque sabia que, nessa noite, dentre todas asnoites,Mariesempreretornava.E por mais que Marie ainda não soubesse, Fada Plum tinha uma surpresa
especialparasuaqueridaamigatambém.– Tenho presentes! – Marie exclamou para os regentes reunidos, com um
sorriso afetuoso e o rosto corado. – Presentes especiais que projeteiexclusivamenteparavocês.Entregouumpresentebelamenteembaladoparacadaumdeles.Hawthornabriuoseucomgosto.–Sementes!–exclamou,segurandoumfrascorepletodesementesdeflores
dascoresdoarco-íris.–Nãosãosementescomuns–explicouMarie.–Sãosementesexóticasque
meu tio Drosselmeyer trouxe de suas viagens aos distantes países tropicais.EssasfloresnãoconseguemflorescernoclimafriodaInglaterra.Masaqui,nosReinos,penseique…–Seráumahonra!–prontificou-seHawthorn.–Cuidareidelaspessoalmente
emseucantinhopróprionoReinodasFlores.ElascrescerãomaislindasdoquequalqueroutraflordosReinos!Mariesorriucomalegria.–Eusabiaquevocêficariacontente–disse.Shiverfoioseguinte.Abriuseupresentecomcuidado,revelandoumdelicado
relógiodebolsodevidro.Acaixabrilhavacomogeloeomecanismodointeriordopequeninorelógio,clicandoegirandosemparar,eravisívelatravésdovidrotransparente.–Eumesmaofiz–Marieexplicou.–Ovidromefazlembrardogelo.Não
consigotrabalharcomgelonomundoreal.Masconseguilhedaralgoqueaindapareçamágicocomo…– O Reino dos Flocos de Neve – Shiver concluiu a frase por ela. Uma
minúsculalágrimacongeladaseformounocantodoseuolho.–Élindo,minha
Rainha.Obrigado,obrigado.Euoguardareicomcarinhoparasempre.MãeGingerolhouparaMarie.–Éaminhavez,querida?–perguntou.–Sim–Marierespondeu.–Porfavor.MãeGinger abriu a caixa e oglitter do delicado embrulho de brocado saiu
voandoatéochão.Dentrodelehaviaumamatriosca.MãeGingeraabriucomcuidado,revelandomaisumabonecadentrodela,edentrodessamaisumae,emseguida,mais uma – cinco bonecas no total, cada uma delasmenor do que aanterior.Asmaiores estavam pintadas demãe e de pai e asmenores eram osfilhos,ummeninoeumamenina,eoúltimo,umbebê.–Encontrei-asnumalojadebrinquedos–Marieexplicou.–Nãoseiporque,
mas me fizeram pensar em você. São tão lindas. Algo que minha mãe teriaadorado.Gostou?PelaprimeiravezemqueFadaPlumpodiaselembrar,viuaexpressãodeMãe
Gingersesuavizar.–Sim–declarou,evidentementeemocionada.–Obrigada.FadaPlumfoiaúltima.Abelaregentevirouopresentenasmãos.Pequenos
alfinetesestavamespetadosemsuaslaterais.–Abra–Marieaencorajou.–Vamos.FadaPlumlevantouatampa.Numalufadadebrilhoefaíscas,umapequenina
criaturavoou!–Ah,puxa!–FadaPlumarquejou.–Umafada!–Nãoapenasuma fadaqualquer!– a fadinha reclamou.–Amaisdocedas
fadas!DewDropéomeunome.–Vocêareconhece?–MarieperguntouaFadaPlum.FadaPlumolhoumaisatentamenteparaafada,queretribuiuoolhar.–Elaé…apresilhadecabelosquefizparavocê?–FadaPlumperguntou.–
Deaçúcarcristalizado?Marieassentiuebateupalmas.– A própria. Precisou ser mexida um pouco, mas consegui engrenagens
pequenasobastanteparafazercomqueaMáquinalhedessevida.Penseiqueelaseria a companhia perfeita para você…uma amiguinha que nós duas criamosjuntas.Comoumafamília.UmsentimentoqueFadaPlumnãosentiahátemposainvadiu.Comoocalor
do qual se lembrava do primeiro abraço deMarie ou a alegria que sentira aoveremaauroraborealjuntas.Umsentimentodepazeamor.–Elaéperfeita–FadaPlumsuspirou.–Euaamo.DewDropaterrissoucomlevezanoombrodeFadaPlum;inclinouacabeça.–Amar é umapalavramuito forte,Rosadinha.Acabamosde nos encontrar.
Vamosnosconhecermelhorprimeiro.FadaPlumergueuumasobrancelhaeolhouparaMarie,quedeudeombros.–Elaacabouficandoumpouco…atrevida.Maspenseique,talvez,comseu
toquegracioso…–Nãosepreocupe,AbelhaRainha.–DewDropflutuouedeuunstapinhasno
rostodeMarie.–TenhocertezadequeaRainhadoAçúcareeunosdaremosmuitobem.– Também temos um presente para Vossa Majestade – Shiver anunciou. –
Umapeçareal,aprimeiradotipo.–ElenarraahistóriadecomovocêcriouosReinos!–FadaPluminterpelou,
incapazdecontersuaempolgaçãopormaistempo.–Éumlindobalé.Eumesmaocoreografei.Vocêficará tão impressionada!Ele temfloresvalsantese flocosdeneverodopiantesetudoomais!Éabsolutamenteperfeito!Umapeçaàalturade uma rainha. Mas, primeiro, preparamos um maravilhoso banquete em suahomenagem.Com todos os seus doces prediletos!Chocolate quente e laranjaspicantesebiscoitosdegengibre.Venha!Acomidaestápronta!FadaPlumdeuumsaltoepuxouobraçodeMarie,masMariepermaneceu
sentada.–Ah,meusqueridos–lamentouela.–Comoeugostariadepoderficar.Mas
prometiatioDrosselmeyer…–Não!–FadaPlumainterrompeusempensar.–Estanoitenão.Évésperade
Natal!OsoutrosregentesolharamsurpresosparaFadaPlum.– Fada Plum, sinto muito – Marie gaguejou. – Mas… a festa de titio já
começou.Há uma pessoa que ele quer que eu conheça…Um rapaz chamadoCharles.Eleésobrinhodeumqueridoamigodafamília,etitioestavaprestesameapresentaraelequandoimploreiquemedeixasseviraquiparalhesdarseuspresentes.Eledissequeeupoderia,masseeuficasseapenasalgunsminutos.Seeudemorardemais,serárudedeminhaparte.Tenhoqueir.– Mas… – Fada Plum sentiu toda a alegria e o conforto anterior serem
drenadosdela.Emseulugar,infiltrou-seapontadafriaeamargadadecepção.–Claroquevocêdeveir,minhacriança–interveioMãeGinger.–Nãodeve
deixarseutioesperando.–Elanãoéumacriança!–FadaPlumbradou.–Elaéanossarainha.–Eanossarainhatemdeveresacumprir–argumentouMãeGinger.–Elanos
criou para cuidarmos dos Reinos em sua ausência. E é isso o que faremos.MesmonavésperadeNatal.–Eu…–Mariepareceudividida.–Eusinto…– Está tudo bem, Vossa Majestade – assegurou Shiver. – Mãe Ginger tem
razão.Seu tempoéprecioso, e ficamoshonradosque tenhavindopassar estesmomentos conosco. Estamos imensamente gratos pelos seus generosospresentes.– São deveras extraordinários! – Hawthorn elogiou, esfuziante. – Tenho
certezadequepoderemos remarcar apeçaparao seu regresso.Nãopodemos,FadaPlum?TodosolharamparaaregentedosDoces.FadaPlumnãodissenada.Esforçara-setantonaquelapeçadeteatroparaMarie.Demodoinacreditável.
Passara horas ensinando às bailarinas os movimentos da dança, sem jamaisaceitar nada menos que a perfeição. Houve dias em que as fez ensaiar noiteadentroatéosolbrilharsobreosReinoseasbailarinasmalconseguiremmanteros olhos abertos de tanto sono. Aperfeiçoara cada canção, fizera ela própriatodososfigurinoscomamaquininhadecosturaqueMarielevaraaosReinoshátantosanos.Porquenestanoite,dentretantasoutras,FadaPlumquerialembrá-lado quanto os Reinos eram mágicos. Do quanto os cidadãos a amavam eprecisavamdesuarainha.Masenquantoosregentesaencaravam,comolhosarregaladosecríticos–e
enquantoMariefitavacomtristezaasportasdopalácio,jácomumpénadireçãodesuacasa–,FadaPlumsentiuseuplanointeirodesmoronando.Tudooqueelaalmejaraterminadoantesmesmodequepudessetentar.–FadaPlum?–Hawthornrepetiu.–Podemosremarcar,não?Numtorpor,FadaPlumcerrouamandíbulaeassentiu.–Ficarátudobem,Rosadinha!–DewDropfarfalhouatéoscabelosdeFada
Plum e se sentou de pernas cruzadas no penteado cor-de-rosa. – Voltando aoassunto,alguémmencionoularanjaspicantes?Gostodosmeusdocespicantes.–Voltareilogo–Mariejurou.–Eu…–Prometo–FadaPlumterminouafraseporela.–Eusei.Osregentessedespediramdarainha.MasassimqueMariesefoi,FadaPlum
saiucorrendo.Lágrimasescorriamporseurostocomomelaço.PorqueMariesempretemquepartir?,pensoucomtristeza.Porqueestamos
sempre em segundo plano? Quem é tão relevante no mundo real que acabasendomaisimportantedoquenósnavésperadeNatal?Doqueeu?FadaPlumdisparouaté a torremais alta, subindodoisdegrausde cadavez
comseusgraciosos saltosdebailarina.EntrouapressadanoquartodeMarieeempurrouasportasquedavamparaasaladorelógiodepêndulo.Comumpuxãoforte,afastouascortinasepressionouorostonajanelaembaçada.Suaslágrimasquentesformaramvaporcontraovidroenquantoelaobservavaosalãodebaileabaixo.Marie chegara à celebração. Em câmera lenta, Drosselmeyer a guiou até a
árvoredeNatal.ObelorapazchamadoCharlesestavalá,imponenteegarboso.OcoraçãodeFadaPlumsedespedaçouquandoMarieaceitouamãodohomem.Mesmoemcâmeralenta,elaviuqueMariecorava.–Vocênãopodedeterotempo.–AvozdeMãeGingerecoouatrásdela.FadaPlumsevirou.Avelhamulherestavaparadanasoleira.Caminhouaté
ficaraoladodeFadaPlumeseguiuoolhardelaatravésdajanela.–É por isso que estamos aqui – disseMãeGinger. –Marie não pode ficar
conoscoparasempre.–Issonãoéverdade–FadaPluminsistiuentrelágrimas.CharleseMariecaminharamatéapistadedança.Ospassosdelesdemoraram
umaeternidade.–Mas ainda podemos deixar os Reinos perfeitos –MãeGinger prosseguiu
apesardeFadaPlumnãoterditonada.–Sozinhos.–Elesjásãoperfeitos–murmurouFadaPlum.–ContantoquetenhamMarie.MãeGingerbalançouacabeça.Abaixo,MarieeCharlescomeçaramadançar.–Todasasmocinhasprecisamcrescer.
CAPÍTULO16
MARIE
–Estálinda,querida.Comosóvocêseriacapazdefazer.Charles apoiouumbraçoamoroso sobreosombrosdaesposa.Ladoa lado,
elesadmiraramaárvoredeNatalnasalafestivamentedecoradadeles.Eraaltaeadorável,apiècederésistencedashabilidadesdedecoradoradefestasdeMariecomseusenfeitesdevidrotremeluzentes,laçosdeveludovermelhoeatémesmoperaseameixascaramelizadas.Marie se apoiou em Charles, balançando o bebê gorducho que trazia nos
braços.Apesar de estarem casados há quase uma década, ela ainda adorava amaneiracomqueomaridosealegravatodavezqueelarevelavaoresultadodosesforçosempregadosparadarvidaaoespíritonatalinonacasa.Erasemprecomoseestivessevendoaquilopelaprimeiravezatravésdosolhosdeumacriança.–Comoconseguefazercomquealgotãosimplespareçatãomágicotodosos
anos?–Charlesperguntou.Mariesorriu.–Nãoémagia–respondeuela.–Éapenasimaginação.Obebêesticouumamãozinhaansiosanadireçãodeumenfeitebrilhante, e
Mariegentilmenteoafastou.–Não,não,Fritz.–Elaestaloualíngua.–Vocêépequenodemaisparaesses.
– Fungou na bochecha dele, fazendo-o rir. Embora tivesse apenas um ano,farelos de seu primeiro bocado de biscoito de gengibre estavam grudados aoredordaboca.De repente, as portas da sala foram escancaradas. Clara, de seis anos, e
Louise,deoito,entraramaospulosnasala.–Mamãe!Papai!–Claraexclamou.–JáéNatal?É?Umacadeiadecontasmetálicasconectadasporumfiosebalançavamemsua
mão. Elas tilintavam pela sala de estar enquanto Clara corria na direção daárvoredeNatal.–Quase,minhaqueridamecanicazinha!–MarieentregouopequenoFritza
CharleseabraçouClara.–Agora,vejamos,quepresenteinventadovocêtrouxeparamim?– Fiz um trenó de Papai Noel! – Clara ergueu sua obra. As contas
dependuradasaolongodofionaverdadenãoeramcontas,masminúsculasrenasmontadascomengrenagensefios.Naextremidade,haviaumtrenódepapelcomuma almofada vermelha em miniatura para o Papai Noel se sentar. Não eraperfeito,masparaumacriançadeseisanos,erabemengenhoso.–Quelindo!–Marieexclamou.–PapaiNoelficarámuitosatisfeito.OcoraçãodeMarieseaqueceuaoverointeressedeClarapelainventividade.
Suasduasfilhasdeixavam-namuitoorgulhosa.LouiseherdouaconfiançatranquilaeaforçadeCharles–osmesmostraços
que fizeram Marie se apaixonar por ele há tantos anos. Amigos da famíliacomentavam sobre como Louise se portava com impressionante graciosidadeparaumacriançada sua idade.Marie semaravilhavacomo fatodecomosuaprimogênitajáestavasetornandoumajovemmocinha.Àsvezes,secretamenteobservavadeumcantoLouisebrincandocomsuasbonecaseoaparelhodechá.Afilhanuncadeixavaespirrar sequerumagotadechánemcairumamigalha.MariechegouaterquecontersuarisadaquandoLouiseinstruiuosbichinhosdepelúciaquantoaoqueditavamasboasmaneiras.Comoseumursinhopudesseatentarparaondecolocavasuaspatinhascobertasdelama…Mas Clara – sua pequena e preciosa Clara – herdara a engenhosidade
mecânica da mãe. Marie reconhecera essa centelha de pronto quando, comapenas três anosde idade,Clara pegouo relógiodebolso reluzente dopai deumamesaeperguntara:“Comofunciona?”.AgoraqueClaraestavamaisvelha,Mariecomeçaraaensinar-lheosconceitosbásicosdamontagemdos inventos.Maslogoteriaquepassarparaliçõesmaiscomplexas.ClaranãosecontentariapormuitotempocommodelosdetrenósparaoPapaiNoel.Equandoforahoracerta,Mariepensoucomalegria,eumostrareiosReinos
paraClara.Aindanão.Masumdia.MarieencostouonariznodeClara,eagarotinhadeuumarisadinha.–Clara,otrenóépequenodemaisparaoPapaiNoel.–Louisesesentounum
sofáealisouovestido.–Elenãovaicaber.– É de mentirinha. – Clara revirou os olhos. –Mas Papai Noel é mágico.
Talvezelepudessecaber.–Aindaassim,eleétãograndequantonós–Louiseobservou.–Então,comoelepassapelachaminé?–Claramostroualíngua.–Deixemissopara lá,minhasqueridas.–Charles riu.–Estoucertodeque
PapaiNoelconseguirácabermuitobem tantonoseu trenóquantonachaminéesta noite. Agora venham! É véspera de Natal. E sua mãe e eu temos uma
surpresaparavocês.UmpresenteparacadaumaabrirantesdeirmosàfestadopadrinhoDrosselmeyer.–Eba! –Clara eLouise exclamaram, esquecendo-se das engrenagens e das
chaminésedequalquerdiscussão.A família se reuniu diante da árvore, com saias e pernas cruzadas sobre o
tapete.–Estoutãofelizporpodermoslhesdaristo–Mariesussurrouparaomarido
enquanto as meninas abriam os presentes. – Significa tudo para elas. E paramim.–OsseuspaisadeixavamabrirumpresentenavésperadeNatalquandovocê
erapequena?–Charlesperguntou.Marieapoiouacabeçanoombrodele.–Bemqueeugostariademelembrar.–Aslembrançasdasuavidaantesdo
incêndioeramdistanteseconfusas,osdetalhesseperderamcomapassagemdotempo.–Masmelembrodasensação.Doamor.Semprequisisto.Umafamílianossa com a qual compartilhar a véspera de Natal. Você tornoumeus sonhosrealidade.Charlesabeijoudelevenacabeça.–Fizemosistojuntos–disseele.Claraderepentesaltouparaocolodamãe.Seguravaumbrinquedodecorda
que acabara de abrir, e Marie viu que sua garotinha inteligente já espiava ointeriordopequenoaparatoparaentendercomoelefuncionava.MarieabraçouClarajuntoasi,aspirandoocheirosuavedosseuscabelos.–Fizemosmesmo–sussurrouparaCharles.
PilhasdepeçasmecânicasestavamespalhadaspelaoficinadeDrosselmeyer.Marie observava com ansiedade enquanto Clara, agora com doze anos,agachava-se diante de um painel de controle aberto e mexia dentro de umenormecilindromecânico.Oaparelhointeiroestavamontadoemcimadeumaplataforma circular com estatuetas de animais de tamanho natural parados emseu perímetro. Clara estava profundamente absorta nos fios e engrenagens,batendoeestalandosuasferramentas.–Nãoestáfuncionando–Claradeclaroubrava.–Nãoconsigodescobrir.–Nãodesista,minhamecânicaastuta–Marieaencorajou.– Você dificultou desta vez – Clara insistiu. – Mal consigo descobrir com
quais fios estou trabalhando, quanto menos reconfigurá-los. Estão tãoemaranhadosquantoumninhoderatos.
–Existeummododedescobrir–Marieatranquilizou.–Sempreexisteumamaneira.Drosselmeyer estava comelas, observando ao ladodeMarie os esforços de
Clara.–Talvezsevocêreverteromecanismo…–sugeriutentandoajudar.–Psiu!–Marieocalou.–Nãolhedêpistas.Drosselmeyerdeudeombros.–Acreditoquemelembrodeumajovemmecânicaquesefrustravaquandoeu
nãolhedavapistas.– Ela conseguirá – Marie disse confiante. – Ela é a minha garotinha
inteligente,afinal.Nessemeio-tempo,Claragrunhia ao forçar umparafuso teimoso a se soltar
bem no interior da engenhoca. Ele bateu no chão com um ruído e elarapidamente se abaixou para apanhá-lo e guardá-lo em sua bolsinha deferramentas.Depois,comatençãoselecionoudoisfios,umvermelhoeumazul,domeiodolabirintoemaranhadodecaboselétricosetrocousuasposições.Comum giro da chave de fenda, voltou a prendê-los e se inclinou para trás paraenxugaratesta,acidentalmenteasujandocomóleoaofazerisso.–Issodevefazerfuncionar–dissepensativamente.–Achaquesim,mamãe?–Sóexisteumamaneiradesaber–Mariedisse.–Vireamanivela.Clara esticou-se para virar a manivela do lado do cilindro e, com esforço
visível,forçou-aagirar.Faíscas voaram dentro do cilindro. Um som de rangido ecoou debaixo da
plataforma. E, então, devagar, ela começou a rodar. Os animais subiam edesciam,algunsgirandonolugar,eumamúsicaanimadacomeçouatocar.Era um carrossel perfeito – não tão grande quanto um que seria visto num
parquedediversões,masaindagrandeobastanteparaacomodarumpunhadodepassageiros.–Funcionou!–Clarabateupalmas.–Funcionou!–Eu sabia que você conseguiria! –Marie saltou para a base do carrossel e
rodopioucomela,semseimportarcomamanchadeóleodasmãosdafilhaemseubelovestido.–Parabéns!–Drosselmeyerassentiuemaprovação.–Bomtrabalho!–Apistadopadrinhoajudou–Claraadmitiu.–Tolice–Mariediscordou.–Euavimexendonaquelesfiosantes.Sabiaque
vocêdesfariaqualquertraquinagemqueeutivessefeito.Tudooquenecessitavaestavadentro.–Dentrodopaineldecontrole?–Claraperguntou.–Claro.Eusónãotinha
certezadecomoreconfigurarosfiosparadarapartida.
– Não, meu amor. – Marie deu tapinhas na testa de Clara, deixando umaimpressãodigitalborradanatestaadoráveldafilha.–Aquidentro.Tudooquevocênecessitavaestavabemaquidentro.Claraficouradiante.Mariesabiaqueafilhaestavamuito,muitoorgulhosa.Em seguida, Clara voltou a atenção para o carrossel que girava com
suavidade.–Oquefaremoscomisso?Égrandedemaisparaficarnaoficinadopadrinho.–Comovenhodizendoháváriosmeses.–Drosselmeyergargalhou.–Vocês
duas,mocinhas,apossaram-sedaminhaoficinacomsuasaulas.OvislumbredeumsorrisoatravessouoslábiosdeMarie.–Achoquetenhoolugarcertoparaele–eladisse.–Onde?–Claraperguntou.–Ah. –Marie balançou a cabeça. –Terá que confiar emmim.Essa é uma
liçãoparaoutrodia.
–Lembra-sedecomoeranaquelaépoca?FadaPlumperguntouaMariecertanoitenosReinos.Estavam sentadasnos
bancosdenevejuntoaolagodepatinação,olhandoparaasestrelasaolonge.Osmoradores doReino dos Flocos deNeve há tempos haviam se recolhido parasuascamas.Mas,sóaquelanoite,Mariequisficaracordadaomáximoquefossepossível.Paracompensarotempoperdido.–Sim–Marierespondeu.–Lembro-medaanimação,oquantoeramágicoo
momento em que eu entrava pela passagem. Você estava sempre lá para mereceber.FadaPlumouviu,masnãorespondeu.Faziamuito,muitotempodesdequeMarievisitaraosReinospelaúltimavez.
Tempo demais, Marie percebeu. Não tivera a intenção de deixar passar tantotempo desde sua última visita, mas com o marido e os filhos e as aulas deClara…Osdiaspassaramvoandoantesqueela sedessecontadequehaviampassado. Sabia que não era justo deixar Fada Plum por tanto tempo semnenhumaexplicação.Portanto,comoumasurpresaespecial,planejarapassarumdiainteirocomelaenquantotioDrosselmeyercuidavadascrianças.ElaeFadaPlumpoderiampatinarnogelooucorrerpeloscamposdefloresouassardocesde gengibre – fazer qualquer coisa que Fada Plum desejasse, de fato.Drosselmeyer prometera encobrir a ausência de Marie, para que ninguém anotasse.Mas Fada Plum parecia… diferente,Marie pensou. Distante, como se uma
máscaralhecobrisseasfeições,eMarienãoconseguiaenxergaralémdela.–Doquevocêmaisselembra?–Marielheperguntou.–Daquelaépoca.FadaPlumdeudeombros.–Nãomuitacoisa–respondeu.–Mesmo?–Marieperguntou,magoada.–Jápassoutantotempo–FadaPlumreplicou.–Édifícillembrartantotempo
atrásassim.Umsilêncioconstrangedorse fezpresenteentreelas.Marienãosabiaoque
dizer.–Tudotem…andadobemcomosoutrosregentes?–perguntou,porfim.–Imaginoquesim–respondeuFadaPlum.–Bem,excetoporMãeGinger.–
Mariefranziuocenho.–Oquequerdizer?–ElaestásemprevagandopelopalácioemvezdesepreocuparcomoReino
doDivertimento.–FadaPlumpronunciouaspalavrascomsarcasmo.–Nãosepassaumdiasemqueeladêumapolidanasuacoroa.–Puxa–Mariecomeçou–,eu…podeserqueeutenhapedidoaelaparafazer
issoumavez.Elatinhamaisjeitodoqueeuparadeixá-labrilhando.Foisóumpedidobobo.Eunãosabiaqueelaaindafaziaisso.MarieolhouparaFadaPlum,masoolhardaamigacontinuouconcentradonas
estrelas.–Possopediraelaqueparedefazerisso,sevocêquiser–Marieofereceu.FadaPlumdeudeombrosdenovo.–Nãoétãoimportanteassim.Sóimagineiqueelagostavadeexperimentá-la
quandonãohouvesseninguémobservando.Marieabriuabocapararesponder,masnãoconseguiuencontraraspalavras.
HátemposdesejaraqueFadaPlumtivesseseaproximadodosoutrosregentes,eque tivesse começadoumavidaunida àsdeles e àde todososmoradoresdosReinos. Foi por isso que ela criara os regentes e Dew Drop para início deconversa:paraestaremláparaFadaPlumquandoelanãoestivesse.Osregentes,afinal, eramsemelhantes aFadaPlum:nãoenvelheciam, todosganharamvidaatravés da Máquina. Marie envelhecia, e não estaria ali para sempre. MasdecertoFadaPlumdeviaperceberisso.– Fada Plum – começou com hesitação –, existe algo que venho querendo
conversarcomvocê…–Leve-mecomvocê–FadaPlumdissederepente.–Paraonde?–Marierespondeu.–Podemosiraondevocêquiser.Esteéoseu
diaespecial.– Para omundo real – Fada Plumdisse, pressionando. –Quero voltar com
você.Vocêestásempreláenuncaaqui,equeroestarondevocêestiver.Mariebalançouacabeça.–Sabequenãoposso.–Devehaverummodo–FadaPluminsistiu.–UmaMáquinaquevocêpossa
construir no mundo real. Eu fui o brinquedo mágico que fez a Máquinafuncionar,afinal.Poderiadarcertodenovo!Comcertezavocêconseguepensaremalgoassim?Mariequeriamuitodeixaraamigafeliz.Masoqueelapediaeraimpossível.–Nãoseicomo–confessouela.–Enãoseioqueaconteceriacomvocê.–Nãomequerlá?–FadaPlumsussurrou.–Ah,não!–Marieexclamou.–Euqueriamuitolevá-ladevoltacomigo.As
criançasadorariamconhecê-la.Comisso,aexpressãodeFadaPlummudou.–Adorariam?–perguntou.–Ah,sim–Mariedeclarou.–EspecialmenteClara.Vejotantodemimnela.
Elaémuitointeligente.Acreditoquevocêsduasseriamboasamigas.FadaPlumnão respondeu.Marie sabia que a amiga estava aborrecida.Não
queria que fosse assim.Aquele era omomento especial delas.Queria que elefossefeliz,comonosvelhostempos!–Talvez–eladissedevagar.–Eupossa tentar inventaralgo.Umamáquina
para levá-la de volta.Masnão sei como fazer isso.Nãoposso sequer garantirquesejapossível.Mas,quemsabe…Inesperadamente, Marie tossiu, e as palavras ficaram presas na garganta.
Tossiu de novo. Antes que entendesse o que estava acontecendo, um terrívelacessoadominou.Comumamãocobriaabocaecomaoutraseguravaopeitoenquantosedobravasobreogelo,incapazderecuperarofôlego.–Oquefoi?–FadaPlumperguntouansiosa.–Oqueestáacontecendo?–Eu…estou…bem–Mariearquejou.–Eu…–Ascostelasdoíam.FadaPlumaseguroupelosombros,tentandosustentá-la.–Voupegarumpoucodeágua!–Ummomentodepois,aproximavaumcopo
degelodoslábiosdeMarie.–Bebaisto–instou-a.Mariebebeu.Aáguafriaentorpeceusuagargantaedesceupelopeito.Depois
dealgunsgoles,opiordatosseestavacontrolado.–Obrigada.–Marieserecompôs.–Àsvezescomeçoatossirforte.Nãosei
porquê.–Nuncaaviassim–FadaPlumreconheceuassustada.Porummomento,a
máscara fria sumiu, e o rosto de Fada Plum voltou a ser aquele de que selembravaMarie.Gentileatencioso,masencobertopelomedo.–Tenhocertezadequeficareibem–Marieatranquilizou.–Issopassará.
– Eu me lembro dos velhos tempos – Fada Plum se apressou em dizer. –Lembro-medetudo,desdeoinstanteemquevocêmefez.Ah,Marie,diga-measuapromessa.Repita-a.–Promessa?–Marieperguntou,confusa.–De que você sempre voltará –FadaPlum insistiu. –Prometa que sempre
retornará,nãoimportaoqueaconteça.–Eu…–Mariecomeçouadizer.–Porfavor!–FadaPlumainterrompeu,desesperada.Marieolhouparaorostodaamiga.Adorremanescentepeloacessodetosse
apertava-lheopeito.–Euprometo.
CAPÍTULO17
CLARA
Phillipbateuoscalcanhares,eseussoldadossepuseramemposiçãodesentido.Apontelevadiçacomeçouaseabaixar.Faixasdeneblinasemoviamaolongodafronteira,espalhando-sepeloterrenodopalácio.FadaPlumtocoudeleveobraçodeClara.–MãeGingernosenganouantescomsuaspráticasardilosas–sussurrou-lhe
noouvido.–Nãodeixequeelaaenganeagora.Aponteseencaixoucomumressonantetume,simplesassim,oabismoque
separavaoQuartoReinodosoutrosfoiselado.Clarainspiroufundo.Nãohaviacomorecuaragora.Amissãoestavaemcurso.Tinhaquesercorajosa–tinhamqueserbem-sucedidos.Porsuamãe.Atropacomeçouamarcharaolongodaponte.Assimqueseuspéstocaramas
terras do Quarto Reino, uma névoa os envolveu, mascarando tanto a visãoquanto os passos. Mas, ainda assim, marcharam à frente, determinados. Nãodemorouachegaremnoslimitesdafloresta.Árvoressinistrasseelevavamaltas,muitas com galhos apodrecidos e despidos, pensos em ângulos estranhos.Pinheirosseaninhavammuitopróximos, suasagulhas tãounidasquequalquercoisapoderiaseocultarali,despercebida.Apenasaguardandoparaatacar.Algunsdossoldadoscomeçaramasussurrarnervosamenteunsparaosoutros.–Poraqui.Andem,andem!Rápido!–DewDroposimportunou,voandode
umladoaooutronanévoa.–Mantenhamsuasposições–Phillipencorajousuatropa.Umventorepentinopassouagourento.DewDropcapotounoar,desviando-se
doseucurso.–Condiçõesdevooperigosasàfrente–resmungou.–Talvezeudevaretornar
paraabase.–Não fará tal coisa – Phillip a orientou. –Esta não será comodas últimas
quatrovezesemqueresolveutomarchácombiscoitosemvezdecompletarsuatarefa.
–Porfavor,fiqueconosco–Clarasuplicou.–Precisamosdevocê.DewDropzombou.–Pidona, não?Nãoé sempre assimcomasprincesas? “Meus cabelos,meu
vestido,minha…”–Chave–Claraainterrompeu.–Ésódoquepreciso.Daminhachave.–Assim como todos nosReinos. –Phillip lançouumolhar penetrante para
DewDrop.–Inclusivevocê.Um ribombar distante subitamente surgiu debaixo dos seus pés. Clara não
tinhacerteza,masachouqueochãohaviasemexido.–Ouviramisso?–Phillipsussurrou.Todosaguçaramosouvidosnoterrívelsilêncio.Guinchossutisecoavam…de
algumlugar.Masnaneblinaespessa,eraquaseimpossívelveroqueoscercava.Três soldados ao lado de Clara sussurram de medo. Quaisquer histórias
assustadoras que tivessem ouvido a respeito de Mãe Ginger e seus ratosfuncionouafavordavelhamulher.Adeterminaçãodelesestavasedissolvendo.Claranãopodiadeixarissoacontecer–elaePhillipnãopoderiamfazeraquilosozinhos.Tinhamquemanterossoldadosfortes.–Seguremistodiantedevocês.–Claraacendeudiversastochasecomeçoua
passá-lasparaopelotãonervoso.–Ratosnãogostamdefogo.–Temcertezadequequercontinuar?–PhillipsussurrouparaClara.– Não sairei do Quarto Reino até estar com a chave na minha mão –
respondeu.–Portanto,aondevocêfor,euirei.Derepente,houveumgritoabafadonaescuridão.Clarasevirou.Nãohavia
trêssoldadosatrásdela?Agorahaviaapenasdois.–Tenhocertezadequeeramtrês–dissehesitante.Outrogritoecoouàdireitadeles.–Oqueestáacontecendo?–Claraperguntou.–Fiquempróximos,homens–Phillipordenou.–Emformação.A neblina espessa e ondulante se afastou de súbito, permitindo que o luar
tocasse o chão. Brilhou sobre algo na escuridão – ummonstro horrendo comdentesafiadosebrancosquereluziamnaluzdastochasdossoldados.–Háalgoali!–Claraberrou.–Paratrás,VossaMajestade!–umdossoldadosexclamou.Eleinvestiucoma
espada contra a criatura ameaçadora num golpe direto em seu diabólico olhoamarelo.Mas,estranhamente,acriaturanãogritounempiscou.Nemsequersemoveu.Claraesticouamãocomcautela.Naluztremeluzentedatocha,eladistinguiu
asescamasdacriatura, as asas, a caudapontuda.Em seguida… tinta lascada?Umposteatravessando-o?
–Umcarrossel?–elaperguntou.Os soldados elevaram as tochas. De fato, estavam diante de um carrossel
arruinado, tomadopor trepadeiras e raízes.Cisnes, tigres edragões entalhadosestavamlargadosnaneblina,compedaços lascadosemembrosarrancados.Aslâmpadas do carrossel há tempos foram apagadas e seus controles foramencobertosporferrugemesujeira.Conheçoestecarrossel,pensouClaraquandoumalembrançalheretornou.É
o carrossel em que trabalhei na oficina do padrinho… aquele com o qualmamãemetestou!Clarasempreseperguntaraoqueamãefizeracomocarrosselquandoele,por
fim,sumiudaoficinadeDrosselmeyer.DeduziraqueopadrinhoajudaraMarieatransportá-loparaumporãoemalgumlugardapropriedade.Ouqueotivessemvendidoparaumparquedediversões.Maségrandedemais,Clarasemaravilhou.Comofoique…?Então,aspalavrasdamãelhevieramàcabeça:Achoquetenhoolugarcerto
paraele,amãedissera.Essaéumaliçãoparaoutrodia.OsReinos,Claraconcluiu.Elao trouxeparaosReinoseo tornoumaior.E
elaqueriamemostrarcomofazerissoumdia.Juntas.Clara fitou com tristeza a obra de arte mecânica destruída. Seu coração
tambémsepartiuumpoucoaovê-loempedaços.Partiu-seumpoucopelaliçãoquejamaispartilhariacomamãe.Quemhaveriadepensar?Ochão tremeu debaixo deles de novo, e todos, instintivamente, subiramna
basedocarrossel.ClaraviuPhillipfazerumarápidacontagemdecabeças.–Estamossemquatrohomens–avisouele.–Jamaisosencontraremosnesta
neblina.Clararelanceouoscontroles.Eramexatamentecomoselembrava.–Talvezpossamosguiá-losaténós.Rapidamente se agachou em meio aos fragmentos de cerâmica e de vidro
quebradosecomeçouamexernomecanismoenferrujado.Desenterroudoisfiosdesencapados.Perfeito,pensou.Tudoqueprecisaédeumafaísca.Encostou-osechamouPhillip.–Vireamanivela!–Apontouparaumamanivelagrandequeseprojetavada
colunacentraldocarrossel.Phillipfezoquelhefoipedido.Aogirá-la,umafaíscavooudosfiosnasmãos
deClara.Nomesmoinstante,asluzesdocarrosselganharamvida,eossoldadosconseguiramver,pelaprimeiravez,oquerestavadoQuartoReino.Emvoltadeleshaviaumaterradevastadacombrinquedosdetamanhonatural
enferrujados e abandonados. O esqueleto de uma roda-gigante estava apoiado
inclinado numa árvore, com uma locomotiva tombada de lado em sua base.Vestígios despedaçados de conjuntos de chá de porcelana emesas lascadas seamontoavamporperto.Carruagensestavamdepontacabeça,semrodas.Eraumcampodebatalhadebrinquedosinfantishátemposesquecido.Claraencaroutudoaquilo,consternada.–Oqueaconteceuaqui?–MãeGinger–Philliprespondeucomseveridade.Ochãovoltouachacoalhar,sóque,destavez,ostremorespareciamestarmais
próximos. Então, com uma inclinação assustadora, o carrossel começou aafundar.–Corram!–Phillipgritouparaseussoldados.Atropaseespalhounaneblina,correndoemmeioàsárvoresetropeçandonos
restosdosbrinquedospelocaminho.Buracoscomeçaramaseabriremtodasaspartes do chão. O guincho inconfundível de mil ratos soou agudo, vindo dasprofundezas.–Osratosestãofazendoburacos!–Phillipconstatou.–Todosvocês,cuidado
ondepisam!Mas já era tarde demais. Um a um, os soldados desapareceram sob a
superfície.Assimquesedesviavamdeumburaco,outroseabriadiretamenteàfrentedeles.Claraolhouaoredorhorrorizada.Ogrupointeiroestavadesaparecendo.Tinhamquechegaraumlugarseguroesereagrupar!Clara correu direto para uma árvore alta, pronta para saltar.Mas antes que
conseguissealcançá-la,umenormeburacoseabriudiantedesi.Deuumpulo…masumsegundoburacoseabriuexatamenteondeaterrissaria!–Não!–Claraberrou.–Clara!–Phillipgritou,percebendooqueestavaprestesaacontecer.Parou
derrapando na beira do buraco e estendeu amão apressado.Agarrou-a bem atempo!–Segure-se!Clara olhou para baixo. Os pés estavam pendurados acima de um abismo
negroinfinito.–Nãoconsigo…–exclamou.–Nãoconsigosegurar!AmãodeClaraescorregou…eelacaiu.–Clara!–Phillipexclamouenquantoelacaía,caía,caíanodesconhecido.Ela
arranhou freneticamente as paredes de terra do buraco, tentandodesesperadamentedesacelerarsuaqueda.Asmãosrasparamemrochaseraízesreviradas.Masnadaretardousuaquedaatéque,porfim,elaaterrissoucomumbaquenoquelhepareceuumtapetemaciocobrindoochão.Claraolhouparabaixo.Gritouderepulsa.
O “tapete” era, na verdade, um mar de ratos peludos e desprezíveis. ElesrastejaramporcimaeaolongodaspernasedosbraçosdeClara,enroscando-seemseuscabelos!–Saiamdecimademim!–berrou.–Saiam!Os ratos se moveram debaixo dela, transportando-a numa onda dos seus
dorsos peludos ao longo do túnel subterrâneo. O movimento prosseguiu,levando-aparaoutrocorredoreparacima,emdireçãoàsuperfícieatéque…Tump!Os ratos a lançaram para o ar nebuloso, de volta à superfície. Ela rolou na
terrafriaedura,respirandocomdificuldade.Inexplicavelmente,osratossaíramde baixo dos seus braços e dos cabelos e se espalharam pelas sombras. Derepente,Claraseviucompletamentesozinha.Ficoudepé,incerta.–Phillip?–chamoualto.–DewDrop!–Então,mocinha!–umavozribombouacimadesuacabeça.Aneblinasedissipou,revelandoumaimensamarioneteimpondo-seacimade
Clara.Orostoretorcidosecurvavanumsorrisohorrendo,asaiaeraamplacomoatendadeumcirco.MãeGinger,Clarapercebeucomumfrioseinstalandoemseuestômago.AcriaturaassustadoraapanhouClaraemsuapalma,erguendo-aaoníveldos
olhos.–Ousaviraomeureino?–avozestrondou.–Quemvocêpensaqueé?Clarasabiaquedeveriaestarassustada,masalgonofatodeestarenfrentando
asinistraMãeGinger–estarcaraacaracomacriaturaquedestruírapartedacriação de sua mãe e que ameaçava o restante – a enfureceu. Aprumou osombros,ficandofirme.Tinhaquepensarnachave,enosReinos.Eemsuamãe.–SouClaraStahlbaum–proclamou.–Émesmo?–avozdeMãeGingerecoou.Elavinhadamarionete,masseus
lábiosnãosemoviam,permanecendoretorcidosnumsorrisogrotesco.– Sim – Clara declarou. – Eu vim recuperar aquilo que tirou demim e da
minhamãe.Aminhachave.MãeGingergargalhoucomumaforçatãograndequeClarasedesequilibrou
napalmadamarionete.–Nãotenhomedodevocê!–Claragritou.–Vocêéapenasumboneco!Ante isso, a marionete inteira começou a tremer. Antes que Clara
compreendesse o que estava acontecendo, amão que a segurava a desceu e adepositoudebaixodasaiadeMãeGinger!Elatomboudepontacabeça,rodandoerodandoatépararnaterraempoeirada.
Tossiuelevantouacabeça.Camadasecamadasdefilórasgadoformavamointerior da saia de Mãe Ginger, estranhamente coloridas em comparação aodesolamentotristedoQuartoReino.E,então,algosurgiudofiló.Umpalhaçocomdoisolhosamarelosbrilhantes.
CAPÍTULO18
MARIE
–Precisolhepedirumfavor.Marie estava apoiada no trono de Mãe Ginger no palácio. Mais tempo se
passara –muito tempo, tempo demais. Os filhos deMarie cresceram fortes eadoráveis:duasmocinhasinteligenteseumrapazinhotravesso.Mas,enquantootempo fortalecera seus entes queridos, para ela pareceu simplesmenteenfraquecê-la.TentaraplanejarsuasvisitasaosReinosquandosuaconstituiçãoestavamelhor.Masessespequenosintervalosdesaúderenovadapareciamcadavezmenores.Agora,depénasaladostronos,elaseguravaumlençomanchadojuntoàboca.– Fico feliz em fazer qualquer coisa que deseje, Vossa Majestade – Mãe
Ginger respondeu.–Mas, semepermiteperguntar,porqueosoutros regentesnãoestãoaqui?–Porqueeuqueria conversar apenas comvocê–Marie explicou.–Eu…–
Tossiu,numacessoviolentoquefezseucorpointeirosacudir.–Vocênãoestábem,minhaquerida.–MãeGingerapoiouumamãofirmeno
ombrodela.–Talvezsejamelhorvocêretornarparaasua…– Não, estou bem –Marie insistiu. Enfiou o lenço no bolso do vestido. –
Mas…averdadeéque…TalvezeunãoconsigavisitarosReinosporumtempo.Eu não… não estou tão forte quanto era. Os médicos me aconselharam adescansar.Oquesignificaquepodelevarumtempoatéeuconseguirvoltarparacá.–Claro–disseMãeGinger.Houveumapausademorada.Marielevantouoolhar.Aregentedecabelosruivosafitavademodoestranho.
Foi então que Marie percebeu que não fizera contato visual durante toda aconversa–estiveraencarandoochão,praticamentelargadasobreotronodeMãeGinger.–Ésério?–MãeGingerporfimperguntou.
Marieassentiu.–Quemderanãofosse.Mashácoisasqueferramentasnãopodemconsertar.–Masvocêserecuperará?–MãeGingerpressionou.Nessahora,Mariefezumesforçoparaficarmaisereta.–Sim,claro.–Refreouatosse.–Comotempo.Eusóprecisodetempo.Mas,
comosabe,umlongotempoemcasa…–Éumaeternidadeaqui–MãeGingerconcluiua fraseporela.Seusolhos
subitamentebrilharamaopensaremalgo.–ContouaFadaPlum?Mariebalançouacabeça.–Aindanão.Nãoqueropreocupá-la.–Entãoéesseofavor.–MãeGingerassentiu.–Querqueeuconteaela.–Ah,não.–Mariemeneouacabeça.–Nadadisso.Eucontareiaela.Masnão
hoje,nãoenquantopareçotãomal.–Suaexpressãoseembaçouporuminstante,depois recuperou a clareza. – Eu espero que possa me ajudar assumindo umpapelmaisativonaliderançadosReinos.OsolhosdeMãeGingerbrilharamumavezmais.–Governar,vocêquerdizer?–Nãoexatamente–Marieesclareceu.–Querodizer, trabalharjuntocomos
outros.–Nãoentendo.–MãeGingerfranziuocenho.–Játrabalhamosjuntos,não?Marieacaboudesistindoeselargounotrono.Apoiouacabeçanamão;estava
doendodemais.–HátemposdesejeiqueFadaPlumseaproximassedevocêstrês.Quevocês
todos trabalhassem juntos e cuidassem dos Reinos. Quando os criei, eu eraapenasumamenina.Nuncapenseinaresponsabilidade…deserumarainha.Eusóqueriacriarbeleza,eimaginação,eesperança.OsReinossãoilimitados.Maspercebo agora que fiz mais do que posso prometer cuidar. Os Reinos nãodeveriamterapenasumlíder.Nuncadeveriamtertido.OlhouparaMãeGinger.Amulherpermaneciaimóvel.–Crieiosquatroregentesporquesabiaquepoderiaconfiaremvocês–disse
Marie.–Paratrabalharemjuntos,comoumafamília.Cadaumdevocêséumaparte de mim. E enquanto estou… me recuperando… eu me sentiria muitoaliviada em saber que vocês todos estão trabalhando juntos para manter osReinosasalvo.–Compreendo–MãeGingerrespondeu.–Euteriapedidoapresençadosoutrosaquitambém–Marieacrescentou.–
Masvocêmelembratantoaminhamãe.Sentiquedeverialhecontarprimeiro.Receioquemeverassimospreocuparádemais.MãeGinger aproximouMarie de si, confortando-a como umamãe o faria.
Deu-lheunstapinhasnacabeça.–Nãosepreocupe,minhaquerida.Ela olhou para fora das janelas de cada um dos Quatro Reinos, fitando o
ReinodoDivertimento,passandooolharpeloscamposdefloresepelageleiraantesdedepositá-lonoReinodosDoces.–Cuidareidetudodireitinho.
CAPÍTULO19
CLARA
O palhaço de corpo arredondado olhou de soslaio paraClara, com seus olhosamarelosperturbadores.Loucos.Então,umafendaseabriunomeio,revelandoumsegundopalhaçomenor.O
segundo palhaço saltou para fora, e o primeiro voltou a fechar o zíper daabertura central com um horrível som de arranhar. O segundo palhaço fez omesmo,emaisemaiscriaturasdebarrigaredondasurgiram,umamenordoqueaoutra,saltandoparaforacomobonecasmatrioscas.SaíramrolandoaoredordeClara,gargalhando.Polichinelos.Clara recuou instintivamente,masnãohaviaparaonde fugir.Eles ahaviam
cercado.Os palhaços comprimiram sua formação, aproximando-se dela. Então,
atacaram! Um saltou por cima da cabeça dela, batendo no seu ombro. Elacambaleoupara foradocírculo,masoutrocolidiucontraela,empurrando-adevoltaàarmadilha.OsPolichinelosrapidamenteasubjugaramcomseusataquesacrobáticos.Balbuciavameriamenquantosobrevoavam–arisadamaníacaqueClaraePhilliptinhamouvidoquandoelachegaraaosReinos.–Yidongta!Pasado!Eyyazdespodprygivayu!ClaraseesquivouquandoumPolichinelosaltounasuadireção,masacabou
tropeçando em outro que passava por seus pés. Um terceiro saltou direto nabarrigadeClara,quecaiunochão,semar.Daquelasuaposiçãonoterrenoempoeirado,derepente,elapercebeualgoque
não havia visto antes: cordas estavam amarradas até o meio do chão, todaslevandoaotroncodagigantescamarionete.ElánomeiodaenormesaiadeMãeGinger havia um poste com corte espiralado, tal qual um parafuso. Umacadeirinhaestavapresaàbase.Alguém–oualgo–estavausandoessascordasparaoperaramarionete!– Você não é um monstro! – Clara exclamou quando os Polichinelos se
enfileiravamparaoutrainvestida.–Alguémaestácontrolando!Pensandorápido,ClaracaiuparaaesquerdaesedesvioudosPolichinelosque
vinham pela direita, que tropeçaram em outros dois. Isso lhe deu temposuficiente.Saltounacadeirinhaepuxouumaalavancapróxima.Então,fechouosolhos
quandooassentofoilançadoparaomeiodotroncodaboneca,espiralandoparacima.Acadeirinhaparouderepente,deixandoClaratontaenauseada.Maselalogo
se recobrou, olhando ao redor. Agora estava no tronco da marionete, no queparecia ser uma grande sala de controle. Manivelas e maçanetas estavamafixadasàsparedes,comoobjetivodeoperarosmovimentosdamarionete.E pendurada acima do meio da sala, presa a uma corda dourada, estava a
chave.Suachave.Clara esticou o braço para pegá-la. Seus dedos quase a resvalavam quando
umavozaassustou:–Tireasmãos,menina!Elasevirou.Paradaatrásdelahaviaumamulhermaisvelhadecabelosruivos
revoltos.Elausavaumvestidovinhocombordasdebrocadodourado.Amulhera encarou firme, não demodomaligno,mas imponente.Como uma figura degrandeimportância.–VocêéMãeGinger?–Claraperguntou.–Evocêé filhadaRainhaMarie,pelovisto–avelhamulher respondeu.–
Diga,oquetrazafilhadaRainhaMarieaoQuartoReino?Claraaprumouosombros.–Vimpegaroquemepertence.Aquelachave.Sem hesitar, Clara estendeu amão para a chave.Mas amulher era rápida.
Puxouumadasalavancasdamarionete,fazendocomqueabonecaseinclinasse.Clarafoiderrubadaparatrás,comasmãosvazias.–Ah, ah. –MãeGinger estalou a língua. –Mas isso não é verdade, não é
mesmo?Seessachavepertenceaalguém,essealguéméasuamãe.–Elaabreumacaixinhaquefoideixadaparamim–Claradeclarou.–Depois
queminhamãemorreu.UmacentelhamomentâneadeconfusãoatravessouasfeiçõesdeMãeGinger.–Marieestámorta?–perguntou.Claraassentiu.MãeGingerficoucomoolharperdidoporuminstante.–Eunãosabia.– Como se você se importasse com isso! – Clara replicou. – Está tentando
destruirtudooqueminhamãecriou!UmsorrisoamargocurvouoscantosdoslábiosdeMãeGinger.–Ah,certo.ÉissooqueadoceFadaPlumandoulhecontando?–Consigover commeusprópriosolhos–Clara rebateu.–OQuartoReino
estádestruído,graçasavocê.–Masestávendoporumaperspectivacor-de-rosa–MãeGingerrespondeu.–
Eseeulhedisserqueachavedasuamãedestravamaisdoqueasuacaixinha?Ese eu lhe contar exatamente o que aconteceu depois que suamãe nos deixougovernandosozinhos?Poruminstante,Clarahesitou.Então,aspalavrasdeFadaPlumecoaramemsuacabeça.Nãodeixequeelaa
enganeagora.–Porqueeudeveriaacreditaremvocê?–perguntouClara.–Vocênãotemqueacreditaremmim.–MãeGingerdeuumpassonadireção
dela. – Mas por que não me ouvir mesmo assim? – Outro passo. – Depois,decida o que fazer com a chave. –Mais um passo. –Decida como a históriaterminará,quetal?Mãe Ginger estava próxima o bastante para tocar em Clara. Mas antes de
conseguir fazer isso, Clara puxou uma das alavancas. A boneca inteira seinclinou,fazendocomqueMãeGingersechocassedecostascontraopaineldecontrole.AchavependeuparaoladodeClara,eelaaapanhou.–Não!Clara,espere!–MãeGingersuplicou.–Porfavor!MasClaranãolhedeuouvidos.Saltoudacadeirinhaepressionouobotãode
soltar.Vuush!Comumúltimoolharparaosolhospenetrantes deMãeGinger,escorregoupara baixo emespiral, descendo e descendo, até chegar aopisodaenormemarionete.Parasuasurpresa–edeleite–,Phillipestavaali.Eleconseguirasubjugaros
Polichinelos.–Clara!–exclamou.–Poraqui!Seuvalenteamigoaconduziuporumafendaqueeleentalharanaenormesaia
deMãeGinger.Correramomaisrápidoquesuaspernasconseguiamtransportá-los,saltandoporcimadeburacosderatoeavançandonaescuridão.–Vocêestábem?–PhillipgritouparaClaraenquantofugiam.– Sim! – Clara saltou por cima de um buraco enorme. –MasMãeGinger
estava…diferente.–Nãoconseguiaesqueceraexpressãoqueviranoolhardamulherconformedeslizavaemespiralpelopostedacadeira.Nãoerafúria,nemmaldade,mas…Medo,concluiu.OsolhosdeMãeGingerestavamtomadospormedo.–Nãosedeixeenganarpelofingimentodaquelavelhota–Phillipaadvertiu.–
Elaétraiçoeira.Derepente,avozdeMãeGingerecoounaescuridão.–Atrásdeles,ratos!–Viu?–Phillipgritou.Juntos, Clara e Phillip correram pela floresta, chocando-se em galhos e
moitas,Claraapertandoachavenamãootempointeiro.Porfim,chegaramaolimitedasárvores,surgindonumímpetonocampocobertodeneblinaquedavaparaaponte.Agrandiosidadedosoutrostrêsreinosseestendiadiantedelesaolonge.Conseguiram.Escaparamdanévoa,doQuartoReino.Etinhamachave.DewDropderepenteapareceusobrevoandopróximaaoombrodePhillip.–Jáerahora!–exclamou.–Estavamnumafestaládentro?–Nãoéhoraparasuastravessuras–Phillipvociferou.–Temosachave.Mas
MãeGingernãoserácontidapormuitotempo.– E quanto aos outros soldados? – Clara perguntou, preocupada. – Não
podemosdeixá-losparatrás.–DewDrop,vocêéanavegadora.–Phillipolhouparaafada.–Guie-ospara
foradaflorestaesejarápida.MãeGingernãoestámuitoatrásdenós.–Estábem,estábem–DewDropconcordou.–Massegurembemessachave,
entenderam?Zumbiuparaanévoa,deixandoumrastrodefaíscasatrásdesi.Ainda parcialmente sem fôlego, Clara caminhou até o limite do precipício,
fitandoaáguacaudalosanasprofundezasdafenda.Sentou-se.–Precisamosretornarparaopalácio–Phillipachamou.–Nãoéseguroaqui.– Só um segundo –Clara insistiu. Retirou a caixinha da bolsa e segurou a
chavedourada.Enfim havia chegado. O momento pelo qual vinha esperando. O momento
peloqualenfrentararatosemarionetesegrandesperigos.Finalmente conheceria a mensagem final da mãe. Talvez ela a ajudasse a
salvarosReinos.Claraprendeua respiraçãoe inseriua chavena fechaduradoovo.Suamão
tremiaaogirá-la.Achaveemitiuumclique.Malrespirando,elaabriuadelicadacaixinha.Umamelodiaadorávelcomeçouasoar.–Uma caixa demúsica? –Clara piscou, confusa. –Não estou entendendo.
Pensei…Derepente,Clarasentiuoapertofamiliardentrodopeito.Oovonãoestava
tocando uma música qualquer. Era a melodia predileta da mãe – sua cançãofavorita.Aquelaqueoquartetodecordastocaranobailedopadrinho.Aquelaqueseupaiquiseradançarcomela.
Claraencarouacaixinhademúsica,virando-anasmãos.Estavavazia.Nadaalémdemecanismosdeumacaixinhademúsicaenvoltos
porminúsculasparedesespelhadas.Olhouemcadacantinho,emtornodecadaengrenagem.Masnãohavianada.Nenhumamensagem.Nenhumalembrança.Nada.Oqueaquilosignificava?Amensagemseperdera?Foraextraída?Ou talvez, Clara pensou com lágrimas se formando, talvez não houvesse
nenhumamensagemparainíciodeconversa.Talveznão tivessecompreendidobemobilhetedamãe.Talvezestivesseerradaotempointeiro.Clarafechouacaixinhademúsica,fazendoamelodiaparar.–Oquefoi?–Phillipseajoelhouaoladodela.–Minhamãemedisseque tudooqueeunecessitavaestavadentro–Clara
dissecomtristeza.–Masestávazia.Phillipesticouobraçoeapanhouacaixinhademúsica.Abriu-a,fazendocom
queamelodiavoltasseatocar.–Feche-a,porfavor–Clarapediu.–Porquê?–Phillipperguntou,confuso.–Eraacançãoprediletadaminhamãe–Clararespondeu.OlhouparaPhillip.Eleaindapareciaconfuso.–Fazcomqueeume lembredela–Claraexplicou.–Edequantoeusinto
saudadesdela.Dói.–Ah–Phillipdisse.–Nuncativeninguémdequemsentirsaudades.Os ombros deClara desabaram.Ter chegado até ali… ter descoberto tantas
coisas que jamais soubera sobre sua mãe… só para descobrir que não haviamensagemalgumaparaela,nofimdascontas.– Pensei que haveria algo dentro – admitiu para Phillip. – Alguma coisa
bonita, pessoal, útil… qualquer coisa. Mas vim até aqui para nada. Não faznenhumsentido.– Para nada? – Phillip ergueu uma sobrancelha. –Você fez o que ninguém
maisaquiconseguiu.Encontrouachave.Achavequepodesalvaratodosnós.Clarapensousobreisso.–Sim,imaginoqueissosejaverdade.–E,aomesmotempo,provouqueédestemida,forteeleal.–Phillippegouo
chapéudesoldadodeClara,bateuapoeira,limpando-o,eodevolveuaela.–Háalgumsentidonisso.Clarasorriu.–Obrigada,Phillip–disse,agradecida.Poralgunsbrevesinstantes,nãotrocaramnenhumapalavra.Apenasaluzdo
solnascenteseinfiltrouporentreasnuvens.
Então,Phillipacutucou.–Venha,soldado–disseele.–TemosqueirsalvarosReinos.
CAPÍTULO20
MARIE
Drosselmeyerseapressouescadaabaixo,pulandodedoisemdoisdegraus.Nãoacreditavaemseusolhos.–Marie,oqueestáfazendoaí?Marie cambaleou na base da escadaria. Suas tossidas ecoavam por todo o
vestíbulo.Numpiscardeolhos,Drosselmeyerestavaaoladodela,conduzindo-aatéumacadeirapróxima.– Você não deveria estar fora da cama – Drosselmeyer insistiu. – Precisa
descansar.–Eutivequevir,tio.–Marielevouolençoàboca.Jánãohaviamaiscomo
esconderasmanchasvermelhas.–Éimportante.– O que poderia ser mais importante do que a sua saúde? – Drosselmeyer
questionou.–Doqueasuarecuperação?– Tio, não estou me recuperando. – Marie olhou para seu mentor. A
costumeiracentelhaestavaausenteemseusolhos,omistérioemsuaexpressãoenvelhecida, desvanecido. Em vez disso, seu rosto estava tomado por umaemoção que ela jamais vira nele: pesar. Sabia tão bem quantoMarie que elaestavamorrendo.– Não há nada que possa ser feito? – Drosselmeyer perguntou, com a voz
graveeséria.Mariemeneouacabeça.–Quantotempoainda?– Não muito – Marie respondeu. – As crianças… – Olhou para além de
Drosselmeyer,nadireçãodeseusalãodefestas.Aindanãoestavadecoradoparaa festa deNatal,mas logo estaria. –Eu tinha esperançasdepoder comemorarmaisumNatalcomeles.Ela estremeceu, e Drosselmeyer a segurou. A mão dele praticamente
conseguiaenvolverseubraçoporcompleto,detãomagraqueelaestava.– Talvez ainda consiga – Drosselmeyer disse, encorajando-a. – Sempre há
esperança.–Não,tio.–Mariecolocouamãonabolsaeretiroudaliumachavedourada.
Ela refletiu a luz do lampião do salão de festas, as engrenagens singulares dotoporeluzindo.–PrecisoquedêistoparaClarapormim–orientou-o.–NoNatal.Jáseparei
presentes deLouise e de Fritz.Mas este presente… preciso que ele venha dosenhor. Ela já tem idade o suficiente agora, é mais velha do que eu quandoencontreiosReinos.Evejotantodemimnela.Issosignificarámaisparaela,vaiajudá-ladepois…depoisqueeutiverpartido.Elaestápronta.Drosselmeyersegurouachavecomhesitação.–Temcerteza?–eleperguntou.–Nãoprefeririaircomela?Paraguiá-la?Marie assentiu, o que desencadeou outro acesso de tosse. Drosselmeyer a
confortou quando ela se dobrou, permanecendo ao lado dela até que o piorpassasse.LágrimasardiamnosolhosdeMarie.–Euquis,tanto,tanto…Masespereidemais.Penseiqueficariamelhor,mas
sófuipiorando.Nãoquerolevá-laparalánesseestado.OsReinosdeveriamseralgomágico.Eladeveriavivenciá-loscomodevemser: comalegria.Nãocomtristeza.Drosselmeyerseajoelhoudiantedela.–Seéesseo seudesejo, entãoéoque farei–elea tranquilizou.–Foiaos
Reinosparalhescontar?Osregentessabem?– Foi o que vim fazer. – Marie se levantou, o desejo se impondo à sua
fraqueza.–Tenhoqueiragora,antesquenãoconsigamais.Postergueiistoportempodemais…éminhaculpa.Tive receiodecontar aFadaPlum.Ela ficarádevastada.Nuncaquisistoparaela.Abandoná-la.–Vocênão a está abandonando,minha criança–Drosselmeyerdisse. –Ela
entenderá.Marienãoconseguiuconterosorrisopálidoquesurgiuemseuslábios.–Mesmodepoisdeeutertidotrêsfilhos,aindamechamade“criança”.Então,ohomemvelhotambémsorriu.–“Criançainteligente”,então,seassimpreferir.Venhaagora,euaajudarei.Começaramasubirosdegraus.MasaspernasdeMarienãosustentaramseu
peso. Ela perdeu as forças, desabando sobre si mesma na escadaria. Ataquesviolentosdetossetorturaramsuafrágilestrutura.–Estanãoéumaboaideia–Drosselmeyeradvertiupreocupado.–Temosque
levá-laparacasa.–Não.–OpeitodeMariechiava.–Tenhoquecontarparaeles.–Elesentenderão–Drosselmeyerrepetiu.–Vocêdeveriaestaremcasacoma
suafamíliaagora.Marieergueuoolhar,eseusolhosestavamvidrados.–Ah,tio.DrosselmeyerapoiouMarieatéoladodeforadacasa,chegandoaoarfresco
outonal.Nenhum deles vira – nenhum deles tinha como saber – que dois olhos os
estiveramobservandodoaltodorelógiodepêndulo.Umaminúsculatestemunhaviratudo,masnãoconseguiraouviraspalavrastrocadasentreeles.Era uma pequena estatueta com um tufo de cabelos cor-de-rosa e lágrimas
raivosasescorrendocomoaçúcarderretidopelasfacesbrancasdeporcelana.
CAPÍTULO21
CLARA
–Estamoschegando!–exclamouDewDrop.–Baixemaponte!Guardassepuseramemposiçãodesentido, imediatamentegirandoagrande
rodaparaabaixarapontelevadiçaquedavaparaoterrenodopalácio.PhillipeClaraatravessaram-nacorrendo,seguidospelatropaqueDewDropguiaraparaforadodesolamentodoQuartoReino.Conseguiramvoltar.Sãosesalvos.Eestavamcomachave!– Clara? – Fada Plum a chamou, saindo das sombras em que estivera se
escondendo.Nãopoderiadeixarqueosoutros regentes soubessemque tomarapartenaquelamissãotraidora.–Estoucomela!–Claraexclamoucomorgulho.–Tenhoachave!Levantouachavedouradabrilhantequeamãefizeratantotempoatrás.OrostodeFadaPlumseabriunumenormesorriso.– Menina maravilhosa! – comemorou, rodopiando com Clara, em êxtase.
Puxou-a para um abraço caloroso e, por apenas um instante fugidio, Claraimaginouestarsendoabraçadapelamãe,orgulhosadoseusucesso.SequernotouqueFadaPlumpegaraachavedesuamãologoantesdedizer:–Rápido,vamosparaaSaladaMáquina!FadaPlum,Phillip eClara percorreram apressadamente o castelo, descendo
pelaescadasecretaquedavaparaaSaladaMáquina,comDewDropnorastrodelesemitindoumachuvadefaíscas.Guardasaguardavamporeles,prontosparaabrir a porta da Sala daMáquina. Fada Plum passou por eles e saltou para opaineldecontrole,comachavedouradanamão.–Insiraachave!–DewDropexclamou,zunindodeumladoaoutro.FadaPlumsegurouachavenoalto.Elareluzianaluzdolampião.–Finalmente–sussurrou.–OsReinosterãooqueprecisam.Aquilopeloque
esperamoshátantotempo.Nummovimentofugaz,elainseriuachavenafechadura.Masachavenãofuncionouquandotentouvirá-la.Nemsequersemexia.Fada
Plum tentou novamente. Nada. Permaneceu firme no lugar. A expressão daregentefoidaeuforiaàfúriaenquantotentavaforçarachavesemsucesso.–Elanãovira!–exclamoucomraiva.–Grrr!Atirouachavenapilhajuntocomtodasasoutrasdescartadasnopassado.MasClaranãoestavaprontaparadesistir.–Temqueserachavecerta–insistiu.–PorqueMãeGingeririaquerê-lase
nãofosse?Clara apanhouo diminuto tesouro douradoda pilha e o examinou.O apoio
tinhaformadeumlaçodecorado.Masoqueeraaquilo?Olaçogirava,mudandoaposiçãodosdentesdachave.–Veja!–exclamou.–Temdentesmóveiseocontroleestánolaço.Achoque
pode…Sim!Veja,FadaPlum,achavemudadeformato!O rosto de Fada Plum de imediato se transformou na figura da máxima
perfeição.–Venha,Clara.Rápido!OexércitodeMãeGingerlogochegará.Clara subiu no painel de controle e encaixou a chave. Mas, desta vez, ela
girouolaçoatéqueosdentescombinassemcomosegredodafechadura.Comum clique gratificante, ela se encaixou. Clara a girou, e ela se moveu comsuavidadeparaadireita,semoferecerresistênciaalguma.Todosobservaram.Eaguardaram.Por um momento enervante, nada aconteceu. Então, muito devagar,
engrenagens começaram a girar, chiando como se há tempos não fossemlubrificadas.Pistõescomeçaramabombear,vapor sibilouecorrentes rodaram.UmsomprofundodeengasgoecooudealgumapartedointeriordaMáquina.ClaraobservoucomorgulhoaMáquinazunirdevoltaàvida.Omaiorinvento
desuamãevoltandoafuncionar.Fada Plum também observava, com um sorriso estranhamente transtornado.
Então, caminhou até um balde e o levantou. Carregou-o até a plataforma edespejouseuconteúdo.Soldadinhos de chumbo – pelo menos duas dúzias deles – espalharam-se
debaixodotubodaMáquina.– Hum… acho que ele foi projetado para criar um de cada vez – Clara
comentou.–Ah,masnãotemostempoparaisso,lamentodizer–FadaPlumdissecom
suavidade.–Apenasaperteobotão,minhaquerida.–Mas…–Claraprotestou.– Os Reinos estão em jogo, Clara, querida! – Os olhos de Fada Plum
brilharam.–Aperteobotão.Hesitante,Clarafezoquelhefoidito.Aproximou-sedopaineldecontrolee
pressionouumgrandebotãovermelho.Um facho ofuscante de luz foi lançado na plataforma, atingindo todos os
soldadinhosdeumasóvez.Umaum,elescresceram,ganhandovida!Mashaviaalgoerrado.EmvezdeseremsoldadosemtamanhonaturalcomoPhillipouosguardas, esses brinquedos estavam se transformando emcriaturas commetadedotamanho,deformadosecomrostossinistros.–Viu?–Claradisse.–Nãodevemoscolocarmaisdoqueum…– Vejo exatamente – Fada Plum retrucou, calando-a, completamente
concentrada no crescente exército de grotescos soldadinhos de chumbo. –Atenção!Oexércitoseviroudefrenteparaela,sorrindoefazendocaretas.–Marchemrápido!–FadaPlumordenou.Ossoldadinhosmarcharamparaforadaplataforma,seguindoparaaportaque
davaparaaescada.ClaraassistiuconfusaFadaPlumpegarumbaldeaindamaiordesoldadoseo
despejarnaplataforma.–Muitoobrigada,Clara–FadaPlumdissecomdoçura.–Guardas,prendam-
nos.–Oquê…?–Clara gaguejouquandoos guardas queos conduzirampara a
SaladaMáquinaseguraram-napelosbraços.–Tiremsuasmãosdecimadela!–Phillipexigiu.Empunhouaespada,mas
um guarda rapidamente a arrancou de suamão usando o punho de sua arma.BateunascostasdePhillip, subjugando-o.OsguardasprenderamosbraçosdePhillipedeClaraàscostaseosforçaramairnadireçãodaporta.Enquantoisso,Fada Plum continuou derramando balde após balde de soldadinhos naplataforma.–FadaPlum,porfavor…Oqueestáfazendo?–Claraimplorou,girandopara
olharparaaamigadamãe.– Sua mãe era a favor de deixar que todos decidissem as coisas juntos,
abençoada seja ela – Fada Plum zombou. Toda a doçura e decoro fingidosdesapareceramdosseusmodos.Avozestavacarregadadedesdém.–Deixandoos quatro regentes para “trabalharem juntos” enquanto ela permanecia ausenteocupada demais com sua doce família para se dar ao trabalho de fazer umavisita.Fuiaprimeiracriaçãodasuamãe–eu.Eueraperfeita.SealguémdeveriagovernarosReinos,essealguémeraeu.Nãoaquelesidiotasatrapalhados,ShivereHawthorn.EseguramentenãoMãeGinger.ClaraobservouhorrorizadaFadaPlumapertarobotãodaMáquinadenovo.Ecompreendeuaterríveledoentiaverdade.Elamentiu.AmentedeClara ficouatordoadaenquantofileirasapósfileiras
de soldadinhos feios e retorcidos ganhavam vida comomedonhos duendes debrinquedo.Forammentiras!FadaPlumnuncadesejousalvarosReinos.Elasóqueriaqueeupegasseachaveparacriarseupróprioexército.Paragovernar!MãeGingertentoumeavisar,maseunãolhedeiouvidos.–FoivocêquemdestruiuoQuartoReino,nãofoi?Claratentouselibertardosguardas.–MãeGingernãoéatraidora…Vocêé!FadaPlumcaminhouatéelaesegurouoqueixodeClaraentreosdedos.–Garotinhainteligente–caçoou.–Nãoeraassimqueasuamãeachamava?
“Garotinhainteligente”?Evidentemente,nãotãointeligenteassim.Oqueelaviuemvocêestáalémdaminhacompreensão.Mastodososerrosserãoconsertadosagora.FadaPlumpegououtrobaldedochãoedespejouseuconteúdonaplataforma.
Pressionouobotão.–Levemelesdaqui.
CAPÍTULO22
FADAPLUM
–Elanosabandonou!FadaPlumcaminhavafuriosadeumladoaoutronoquartodeMarie,agarrada
àcoroadarainhacomtantaforçaquemachucavasuapalma.Mãe Ginger estava num canto do quarto. A velha mulher observava
pacientementeenquantoFadaPlumdesafogavasuafrustração.–Nossarainhanãoabandonouninguém–disseemseutípicotomsério.–Se
estáausenteéporquetembonsmotivos.–Elanuncamaisveioaqui!–FadaPlumberrou.–Elanãoseimporta.–FadaPlum,vocêtemqueentenderqueelanãoécomonós–ponderouMãe
Ginger.–Elanãoéumbrinquedo.Éhumana,e frágil.Adoençadelaégrave.Elanãoestábemobastanteparanosvisitarcomafrequênciaquevocêdesejaria.–Estavabemobastanteparavisitarovelhote–FadaPlumescarneceu.MuitotempohaviasepassadodesdequeFadaPlumtestemunharaaconversa
deMariecomDrosselmeyernosalãodebaile.Defato,Marienãolhepareceratão bem. Tossira e tropeçara na escada, mas o velho a ajudara a se levantar,portanto a situação não poderia ser tão ruim assim, poderia? Fada Plum nãoconseguiraouviroqueosdoisconversaram.Sósabiadeumacoisacomcerteza:Marieviera–eforaembora–semvisitá-los.Eagora, eracomose tivesse sumido.Semnenhumapalavra,nenhumaviso.
Simplesmentedesaparecera.–Elaestavabemali!–FadaPlumexclamou.–E,mesmoassim,elanãoveio.– Talvez estivesse doente demais para fazer isso – Mãe Ginger
contemporizou.–Entãoovelhodeveriatê-lacarregado.–Issoéumabsurdo–MãeGingerlhedisse.–Estávendoaquiloquequerver.–Viobastante.–Oquevocêesperava,minhaquerida?–MãeGingerperguntou.–QueMarie
permanecessenosReinosparasempre?
– Ela tem uma obrigação conosco – Fada Plum insistiu. Gesticulou com acoroadeMarie.–Elaéanossarainha.Nãopodesimplesmentenoscriarenosdeixardelado,comose…comosefôssemos…–Brinquedos?–MãeGingerconcluiuporela.AsfacesdeFadaPlumcoraram.–Bem,nãosomosbrinquedosagora,somos?–Você tem razão – concordouMãeGinger. –Não somosmais brinquedos.
Somos regentes. E Marie nos confiou a segurança dos Reinos. Ela está nostratandocomolíderes.–Então,estádizendoqueissonãolheimporta?–FadaPlumquestionoucom
amargura. – Não a incomoda nem um pouco que a nossa rainha, a nossacriadora,tenhaseesquecidocompletamentedenós?– Você fala com muita amargura, Fada Plum. – Mãe Ginger balançou a
cabeça. – Não creio queMarie tenha se esquecido de nós.Mas ela tem umafamíliaefilhosqueprecisamsercuidados.Então,orostodeFadaPlumtornou-sesombrio.–Nóssomosafamíliadela.Nãoaquelascriançassujaseremelentas.Euestive
comeladesdeocomeço.Eusouperfeita.–Vocêpodeparecerperfeita.–Mãegingerfranziuocenho.–Masestáagindo
comoumacriançamimada.–Comoousa!–FadaPlumseaproximoudeMãeGingeratéficarcaraacara
comela.–Vocênão faz ideia da vida inteira de lembrançasquepartilho comMarie.–Vocêtemrazão,eunãofaço.–MãeGingernãofraquejou.–Masseiqueo
queMariemaisqueriaparavocêeraasuafelicidade.QuevocêseaproximassedosoutrosnosReinos.Queformasseumafamíliaconosco.SeFadaPlumnãoestivessetãofuriosa,teriagargalhado.– Como? Com você? – ela zombou. – E com Shiver e Hawthorn? Tolos
estabanados.Queespéciedefamíliaéessa?–AfamíliaqueMariecriouparavocê–MãeGingerrespondeu.FadaPlumbufouelhedeuascostas.Olhouparaacoroaquesegurava.–Muito bem. SeMarie está tão ocupada com sua querida família para ser
rainha,entãoeugovernareinolugardela.– Os cidadãos dos Reinos não aceitarão isso – Mãe Ginger a advertiu. –
Supõe-sequedevamostrabalharjuntos.AcatandoasordensdeMarie.–MasMarienãoestáaqui!–FadaPlumatirouacoroanochão.Osombros
tremiamderaiva.Nuncasentiratantafúria,tantodesespero,emsuaexistência.PorqueMarienãopodiasimplesmenteretornar?MãeGingerseaproximoucomcalmaeapanhouacoroa.
–Temos que trabalhar juntos agora – repetiu. –Nenhum regente foi criadoparasermonarca.Fada Plum permaneceu de costas de modo que a velha mulher não
conseguisseveraslágrimasamargaspinicandoseusolhos.–Então,euireiprocuraranossarainha–sibilou.–Eatrareiparacasa.
CAPÍTULO23
CLARA
A porta da torre de observação do palácio bateu com força, fechando-se edeixandoClaraePhillippresosalidentro.Phillipesmurrouaporta.–Elanosenganou,Phillip–Claradissecomtristeza.–Elasóqueriaachave
paraassumirocontrole.Penseiquefosseminhaamiga.Phillipbalançouacabeça.–Elaenganouatodosnós.Derepente,umbarulhoensurdecedorvindodopátiochamouaatençãodeles.
Phillip e Clara correram até a varanda da torre de observação. Lá do alto,conseguiram distinguir uma legião de soldadinhos de chumbo malvadosmarchando direto pelos guardas da ponte levadiça até a ponte que levava aoQuartoReino.–Elesvãoatacar–Phillipconcluiu.–ÉissooqueFadaPlumquisdizercom“consertar”oserrosdaminhamãe.–
OsolhosdeClarasearregalaram.–ElavaidestruirMãeGingerdeumavezportodaseassumiráocontroledosReinos!Nesse instante, a porta da torre de observação foi escancarada. Guardas
atiraramShivereHawthornnochãosemnenhumacerimôniaantesdevoltarematrancaraporta.– Shiver? Hawthorn? – Clara se apressou e ajudou os regentes a se
levantarem.–Oh,tambémforamcapturados,minhaquerida?–Shiverperguntou.–Sintoquetudoissotenhasidominhaculpa–Clararespondeucomremorso.
–Euosdesapontei.Desaponteiminhamãe.–Aindahá tempoparadeterFadaPlum–Phillip insistiu.–Precisamossair
daqui.EleeClaravoltaramaolharpelavaranda,paraadistânciavertiginosaatéo
chão lá embaixo. Devia ter bem mais do que trinta metros. A menos quevoassem,nãotinhamcomofugir.
–Nãohácomo.–Claraselargounochão.Comopossotersidotãocega?,pensouangustiada.Comonãoenxergaraantes
oteatrodeFadaPlum?Tudooquequeriaerasaberamensagemfinaldamãe.Mas,talvez,aofazerisso,tivessesidoansiosademaisparareaverachavesemfazerasperguntascorretas, comoqualquer inventor teria feito.Comosuamãelheensinara.Seuprópriodesejoegoístaprovocaraessatragédia?TalpensamentodeixouClaracheiadeculpa.Claraenterrouorostonasmãos.Então,donada,amelodiaprediletadamãecomeçouatocar.Todosolharamaoredor,confusos,antesdeperceberemqueamúsicaabafada
vinhadovestidodeClara.Eraacaixinhademúsicadamãe.Claratirouotesourocomcuidadodobolsoeoabriu.Osespelhosdemoldura
douradabrilhavamemseuinterior.Seaomenoshouvesseumamensagemsua,mamãe,Clarapensoucomtristeza.
Seaomenosvocêpudessetermeditooquequeriaqueeusoubesse.Umraiodesolserefletiuemumdosespelhos,iluminandoorostodeClara.
Elaestudouseureflexo,desejandopoderveramãeali.Mas era apenas ela própria no espelho. Clara. Osmesmos olhos castanhos
fitando-adevoltacomosemprefizeramemtodaasuavida–osolhosquesuamãecostumavadizerquecintilavamcomobrilhodeumamecânicainteligente.Tudooquevocênecessitaestádentro.Efoientãoqueelaentendeu.Umsorrisoseespalhoupeloseurosto.–Tudooquevocênecessitaestádentro.Clarasepôsdepé,comumadeterminaçãorenovadacrescendodentrodela.–Eujásei!–exclamoutriunfante.–Tudooquevocênecessitaestádentro.–Masnãoestávazio?–Phillipperguntou,confuso.–Nãoexatamente–Clararespondeu.–Háespelhosnele.Nãovê,Phillip?Ela
estavafalandosobremim!Clarapercebeuqueamãe,defato,deixaraparaelaumamensagemnofimdas
contas.QuiseraqueClarasoubessequeacreditavanela.EagoraClaratinhaqueacreditaremsiprópria.TodootempodespendidoporClaranosinventos,osdiasdebruçada nas ferramentas e engrenagens e peças metálicas – tudo o queaprenderacomamãe,aslições,seustruques,seustestes–,tudoculminavanisto.AmãedelacriaraaMáquina.OquesignificavaqueClarapoderiadescobrirummododedetê-la.Comumaondadeenergia,rasgouumpedaçodeseuvestidoeseguiuparao
telescópiomaispróximo.Rapidamente,desatarraxouaslentes.Depois,virou-separaPhillip.–Sintomuito,masprecisareidosseusbotões.
–Meusbotões?–Phillipquestionou.–Clara,oqueestáfazendo?–Montandoumconjuntodeferramentas–elaexplicou.–Seicomodetê-la.
Leve-meatéaSaladaMáquinaeeupodereiimpedirFadaPlum.Hawthornmeneouacabeça.–Issoéadoráveldasuaparte,minhaquerida,mas…–Oseucinto,porfavor,Hawthorn.–Claraestendeuamão,aguardando.–E
essealfinete,Shiver.Os regentes compartilharam um olhar de dúvida, mas obedeceram. Clara
colocou as ferramentas no tecido da bolsinha improvisada e a fechou comfirmeza.–Mascomosairemosdaqui?–Phillipperguntou.–Háumjeito–Claradisse,determinada.–Sempreháumjeito.Olhouaoredordatorredeobservação.Haviatelescópiosebússolas.Mapase
astrolábios.E,penduradoacimadeles,umlustrepesado,presoaumacordacomprida.–Éisso–sussurrouClara.Elateveumaideia.Poucodepois,olustreestavanochão,acordaenroladaaospésdeles.Phillip
prendera uma ponta da corda ao suporte central da varanda enquanto Claradesatarraxavaumpesadolustre.Entregou-oaPhillip.Seuplanoestavapronto.–Voueu?–Phillipperguntou.Clarameneouacabeça.–Primeiroasdamas.–Estareilogoatrásdevocê–Phillipprometeu.Claraamarrouaoutrapontadacordaàsuacintura.Depois,inspiroufundoe
passouaspernasporcimadagradedavaranda.Comcuidado,começouadescerpelalateraldatorre,segurandoacordacommuitafirmeza.Procurounãoolharparabaixo,paranãodeixarsuaspalmassuadasdemaisdevidoaonervosismo.Devagar,masininterruptamente,elasedirigiuatéoseudestino:omastrode
umabandeiraqueseprojetavadedentrodatorre.Equilibrou-sesobreeleefoicaminhando centímetro por centímetro. Assim que chegou à ponta, balançouprecariamenteeolhouparaPhillip.Eleseguravaacorda frouxa.Rapidamente,desprendeu a extremidade que estava presa à varanda e a prendeu ao pesadolustreparaservircomocontrapeso.–Maisparatrás–elaorientouPhillip.–Mais.– Mas que diabos?! Clara! – Hawthorn gritou de dentro da torre de
observação.Shiverpartilhoudoseuhorror.–Minhaquerida,issomeparecemuitoprecário!
–Precário?Precário?–Hawthornbradou.–Voltejáparacá,menina!MasClarasótinhaolhosparaPhillip.–Pareaí–ordenou.–Estápronto?–Pronto.–Phillipassentiunervoso.–Temcertezadisso?–Sãoapenasasleisdafísica–Claraasseverou.–Eelassemprefuncionam,essasleis?–Phillipperguntou.Clararelanceouopátioláembaixo,tãodistante.Engoliuemseco.–Sempre…atéondeeusei.–Depois,afastouomedo.–Naminhacontagem?Phillipassentiu.Eleseguravaocontrapesocomfirmeza.–Três…Clarainspiroufundo.–Dois…Pensounamãe.–Um…Esesoltou.
CAPÍTULO24
FADAPLUM
AgulhasdepinheirosarranhavamapeleimpecáveldeFadaPlumenquantoelacorria pela floresta. Estava escuro – escuro demais para a regente dos DocesficarcorrendopeloQuartoReino.Poderiatropeçarnumaraizou,pior,chocar-secontraoquerestaradochádatardeeestragarseuvestidoperfeito,bagunçarseupenteadoperfeitoou,machucarsuapeleperfeita.MasFadaPlumestavanumamissão.E,pelaprimeiravez,aperfeiçãonãoia
ajudararealizá-la.Acima, faixas de nuvens arroxeadasmarcavamo céu noturno.Uma imensa
roda-gigante pairava acima das árvores, imponente, tal qual um monstro. OsmoradoresdoReinodoDivertimentohátemposhaviamseretiradoparaocentroda cidade, deixando os resquícios dos jogos e da festança largados comoescombrosnanoite.Por queMarie criou este reino?,Fada Plum pensou comdesgosto.Atémesmoosanimaisdocarrosselsãogrotescos.Seguiuemfrente,eaflorestaficavacadavezmaisdensaatéque,finalmente,
chegou ao lugar que apenasMarie e Fada Plum conheciam.A entrada para ooutromundo.Para o olho destreinado, não parecia nada mais do que um velho pinheiro
caído, podre e esquecido.Mas além das raízes retorcidas, nas profundezas dotúneloco,haviaapassagemparaomundorealdoqualMarieviera.FadaPlumagarrouabeiradaásperadeumaraizsecaeespiouatéondeavista
alcançava dentro do túnel. Foi inútil, só conseguiu enxergar um negrumeaveludado. A passagem secreta só podia ser revelada se ela adentrasse odesconhecido.CoisasqueexistemnosReinosnãopodemexistirnomundoreal.Aspalavras
deMarieaatormentaramenquantoelapesavasuasescolhas.Comocoraçãoaossaltos,FadaPlumpisoudentrodaárvore.Esperou,masnadaaconteceu.Elaestavabem…atéentão.Não pode vir comigo. A advertência ecoou quando ela avançou mais um
passo.Edepoismaisum.Achoquevocêvoltariaaserumaboneca.MasFadaPlumfoiemfrente,resvalandoamãosedosapelaparededaárvore
oca para se equilibrar.Não se sentia diferente.TalvezMarie estivesse errada,pensou.Talvezelapudesseatravessarparaomundoreal.Elaeraespecial,afinal.O primeiro brinquedo ao qual Marie dera vida. Decerto isso devia significaralgumacoisa.Então, surpresa, percebeu que a parede áspera começara a ficar lisa, como
madeirapolida.Estavadooutrolado.CoisasqueexistemnosReinosnãopodemexistirnomundoreal.–Talvezeusejaespecial–sussurrouparasimesma.Ocontornoindistintodeumaportasurgiu.Nãopodevircomigo.–Talvezeupossa.Estendeuamão.Resvalounumamaçanetafria.Achoquevocêvoltariaaserumaboneca.–Comopodetercerteza?FadaPlumgirouamaçanetaeabriuaporta.Umaluzamareladailuminouocorredor.FadaPlumprotegeuosolhos.Nãoentendiamuitobemoqueestavavendo.Pareciaqueaportaseabriapara
um corredor. Mas… era um corredor perturbador. Nada parecido com oscorredoresdopalácio,comseuslustresperfilados,comseusarbustoscoloridoseesculturas de gelo. Aquele corredor era sombrio e empoeirado, com pisoaxadrezadovermelhoedouradoepapeldeparedecomfileirasde silhuetasderatos. Lamparinas a gás tremulavam, sua luz lúgubre iluminando cadaimperfeiçãoaindamaislúgubre.FadaPlumexaminou tudo,permanecendoparada, imóvel.Umpassomais e
elaestarianomundoreal.Aquelelugarfeionãoparecianadaespecial,contudo.Nãosepareciacomumlugaraoqualelagostariadepertencer.MasMarienãolhedeixaranenhumaescolha,deixara?Abandonaraa todoseles.EagoraFadaPlumtinhaquearriscartudoparalevararainhadelesparacasa.Estendeuumamãohesitantelogoalémdasoleira.Oque foiaquilo?, pensou, recuandonovamente.Suamãocintilara?Apenas
porummomento,pareceuqueamágicaflutuaraparaforadasuapele.Mas,quemsabe,tivesseapenasimaginadoisso?Voltouapassaramãopelasoleira.Achoquevocêvoltariaaserumaboneca.Retraiuamão,comoseelaqueimasse.EseMarieestivessecerta?Eseelavoltassemesmoaserumabonecaassim
queatravessasseasoleira?Caberiaaeladesistirdoseutrono–dasuaexistência
inteira–porqueMarienãoseimportavamaiscomeles?Balançouacabeça.Issoétolice,pensou.Éevidentequesouúnica.Claroque
tenho poderes. Se eu desejar combastantevontade, posso fazer com que issoaconteça.Eusouaimaginaçãoqueganhouvida.Recuouumpasso,inspiroufundoecomeçouaavançarpelasoleira.Masantesquesequertivessetranspostoumfiodecabelo,elaabriuosbraços,
batendonamolduradaportaeimpedindoasimesmadeterminardecruzá-la.Issoéinjusto!Cerrouosdentes.Porqueeudeveriaarriscartudoparalevar
Marieparacasa?DeveriaserHawthorn,ouShiver,ouaquelaabominávelMãeGinger.Qualquerummenoseu!Encarouraivosaohorrendopisoxadrez.Lágrimasamargasmancharamsuas
bochechas.Tenho certeza de que Mãe Ginger adoraria isso. Seus pensamentos se
tornaram sombrios.Aquela mulher desprezível simplesmente adoraria que eununca mais voltasse. Que eu desaparecesse, assim comoMarie desapareceu.Assim, ela e Hawthorn e Shiver e o restante do povo lamuriento poderiam“trabalharjuntos”emcomplacênciavergonhosaporqueninguém–ninguém!–sabe como governar os Reinos tão bem quanto eu. Se alguém deveria serdestruído,essealguéméMãeGinger,enãoeu!Encarouadiante,consumidapeloódio.Efoinesseinstantequeviu.Umdos
ratosdodesenhodaparedesemoveu!Elagritoueseretraiudeaversão.Masoqueeraaquilo?Oroedordeolhospequenosepretossaiucorrendo,mas
o desenho na parede permaneceu intacto. Será que saíra mesmo da parede?Estiveraaliotempointeiro?–Omundorealérepulsivo–FadaPlummurmurou.Então…o rato começou a semover na direção dela. Fada Plum recuou no
corredorescuro.Todavia,oratoseguiuadiante–passoupelasoleiraefoidiretoparaospésdela!Ganhouvelocidadeesubiudiretosobreosapatoaçucarado.FadaPlumguinchou.–Afaste-se,seuroedorimundo!–Chutouoanimal.Seugolpeafastouorato,
atordoando-o,massóporummomento.Eleserecuperouevoltouairnadireçãodela.Paraseuhorror,maisratossereuniramatrásdele.Elanãofaziaamínimaideiadeondetinhamsurgido–sedopapeldeparedeoudeburacosoudealgumoutro canto nojento domundo real.Mas eles todos farejavam com atenção oaçúcardoseuvestido.Estavamsendoatraídospelosdoces.– Malditos roedores – Fada Plum vociferou, pronta para bater a porta no
caminhodeles.–Nãoédeseadmirarquenãotenhamoscriaturasvulgarescomovocês nosReinos.Vocês devorariam tudo, destruiriamnossomundo com seus
dentesnojentose…Derepente,elaparou.Observouos ratosseempilhandonasoleira,ansiosos
porumbocadodos seusdoces, docesdeliciososque apenasum reino comooReinodosDocespoderiafornecer.– Sim, vocês destruiriam tudo, não é mesmo, meus docinhos? – disse
baixinho.Se não soubesse do contrário, poderia até achar que os ratos estavam
prestandoatenção.Então uma ideia lentamente lhe ocorreu. Uma ideia terrível, horrenda. De
justiça.Devingança.Dealgoqueelanuncapensaraemfazer,mas,narealidade,queescolhaelatinha?QueescolhaMarielhedeixara?FadaPlumseinclinounadireçãodosratosbarulhentoserastejantes.–Deixem-me lhes contar uma historinha,meus queridos – sussurrou. –De
umaterraondevocêspodemcomerdocesàvontade,contantoquefaçamaquiloqueeudisser.
–Nãopode ser. –Hawthorn andavadeum ladoaoutrona salados tronos,nervoso.–Temabsolutacerteza?–Shiverperguntou,batendoaspontasdosdedosde
umamãonaoutra.–Lamentodizerquesim.–AexpressãodeFadaPlumeraaimagemdamais
perfeitapreocupaçãoquandoseencontrousecretamentecomShivereHawthornnanoite seguinte.–Ouvi commeusprópriosouvidos.MãeGingernão teveaintenção de que outra alma a ouvisse. Mas suas palavras foram claras comocristal:“EugovernareiosReinos”.–EeladisseissonosaposentosdanossaqueridaRainhaMarie?–Hawthorn
perguntou,consternado.FadaPlumassentiu.–Enquantousavaacoroa.Shiverzombou.– Isso é impensável.Queuma regente trameuma revolta é simplesmente…
simplesmente…–Maldade?–FadaPlumsugeriu,prestativa.–Exato!–Shiverexclamou.–Então,meuscarosregentes,talvezvocêsprecisemsesentarparaouviroque
tenhoalhesdizer.–FadaPlumguiouosdoishomensparaseustronos.–PorqueeuestivenoQuartoReinooutrodiaevialgoverdadeiramentehorrível.
–Oquê?Oquevocêviu?–Hawthornperguntou,comumsussurrorouco.–FuiconversarcomMãeGinger–FadaPlumexplicou–,paraversepoderia
dissuadi-ladeseusempreendimentossombriosantesdelevá-losàsuaestimadaatenção. Mas, infelizmente, não cheguei a encontrá-la porque, ao passar pelafloresta,eudepareicom…com…Cobriuoslábiosemformatodepétalaedesviouorosto.–Comoquê,minhaquerida?–Shiverapressionou.FadaPlumseviroudefrenteparaeles.–Umrato.–Umrato!–osdoisregentesgritaramalarmados.– Seguramente Mãe Ginger não pode ser tão descuidada – Hawthorn se
agitou.–Umacriaturacomoessapodedestruironossomundo.–Shiverpassouuma
mãotrêmulapelorosto.–Mariemecontouhistóriassobreosanimaisselvagensdomundoreal–Fada
Plum admitiu. – Eu nem sequer saberia o que é um rato se não fosse pelasorientações expressas deMarie de que, caso uma criatura como aquela fosseavistadaaqui,nósdeveríamosalertá-ladeimediato.–Elanosdeuomesmoaviso–Hawthornconcordou.–Elaavisouatodosnós!–exclamouShiver.–Masagoranãotemosnenhumarainhaaqualavisar.–Hawthornse largou
emseutrono.– E, sem ela, temo que a segurança dos Reinos esteja em risco – concluiu
Shiver.Fada Plum retornou para a bela caixa no centro da sala dos tronos, onde a
antigacoroadeMarieforacolocadadelicadamenteàmostra.–Nãonecessariamente–disse-lhes.–Oquequerdizer?–Shiverperguntou.–Sim,oquetememmente?–Hawthornacrescentou.Nenhumdos regentesviuo sorriso fugidioquepassoupelos lábiosdeFada
Plum.–Algumdevocês,caroscavalheiros,jáouviufalarem…pontelevadiça?
CAPÍTULO25
FADAPLUM
–Ratos!–pessoasberraramaoviremcorrendopelaponte,distanciando-sedoQuartoReino.–Ratosestãovindo!Estãodestruindotudo!O caos ecoou atrás dos cidadãos em fuga enquanto legiões de roedores
peludoscobriamoReinodoDivertimento,devorandoosquitutesdahoradochá,cobrindo como um enxame tanto brinquedos de parques de diversões comoconstruções.Todoscorriamparaaponteempânico,desesperadosparaescapardoataqueviolento.–O que está acontecendo? –MãeGinger gritou alarmada, a única ficando
paratrásnoQuartoReino.–Comoistoépossível?Comoistoaconteceu?Elaolhouhorrorizadaenquantoondasde ratospassavam…comendo tudoo
quehaviapela frente!Seu reino inteiro estava sendodevorado,desmoronandobemdiantedosseusolhos.Enquanto isso, a certa distância, Fada Plum estava na varanda da torre de
observação.Do alto, observava a devastação através do telescópio.DewDropestava sentada em seu ombro, mordiscando pipocas de um saquinho emminiatura.Viram quando a velhamulher gritou em desespero enquanto suas adoradas
rodas-gigantescomeçavamacair,derrubandoárvorescomgemidosestrondosos.FadaPlumsorriu.–Bemfeito–sussurrouparaDewDrop.–Éumespetáculo,issosim!–DewDropconcordou.Claro, o que ninguém percebeu foi que, apenas horas antes, Dew Drop
completaraumamissãoespecialparaFadaPlum:apequenina fadasalpicaraopóIniciadordeAçúcarao redordabasedecadaconstrução,cadabrinquedoecadabarracadejogodoReinodoDivertimento.Defato,algomuitoengenhoso.Umadascriações inventivasdeMarie, seéqueFadaPlumpoderiadizer isso.Quando Marie o inventara, ficara tagarelando sem parar sobre química ecompostoseummontedetolicesdo“mundoreal”paraasquaisFadaPlumnão
deramuitaatenção.MasoqueFadaPlumsabiaeraqueospadeirosdoReinodosDocesregularmenteusavamopóparatransformarqualquercoisaemaçúcarcristalizado,desde lampiõesevasosatémesmoa laçose rosas.Quandousadoadequadamente, os resultados eram adoráveis. Todavia, se aplicadoinadequadamente – comonos blocos das fundações de uma cidade inteira – edepoisexpostosabocasdevoradorasderoedores loucosporaçúcar…Bem,osresultadospoderiamserdevastadores.Mas,claro,porquealguémpensariaemalgotãohorrendo?Atravésdotelescópio,FadaPlumviuMãeGingerlamentardecoraçãopartido
enquantoseubeloreinoiaaochão,colunasdepódeaçúcarededetritosvoandopelos ares ao mesmo tempo em que os guinchos inconfundíveis dos ratosecoavamnumadistânciaemqueatéaquelesnopátiodopalácioconseguissemouvir.Então,avelhamulhersevirou.Eracomoseestivesseencarandodiretamente
FadaPlum.FadaPluminclinouacabeçaparasedirigiraDewDrop.–Mande-oslevantaremapontelevadiça.–Sim,sim,Rosadinha.–DewDropvooudeixandoumrastrodefaíscas.Lentamente, Fada Plum desceu da torre. Desceu os degraus do palácio,
atravessouopátioesubiuparaasnovastorresdeobservaçãoerigidasemambasaslateraisdapontelevadiça.ShivereHawthornesperavamaliumaoladodooutro.Juntos,testemunharam
aelevaçãoinauguralbemquandoMãeGingersurgiucorrendodafumaçaedasruínasdoQuartoReino,aúnicacidadãanãofugir.– O que é isso?! – Mãe Ginger bradou em fúria, derrapando ao parar na
beiradadaponte.Aáguadacascatatrovejavabemdistanteláembaixonafenda.–Oquevocêsfizeram?–Issoéobrasua–FadaPlumanunciousolenemente.–Asconsequênciasdo
seuplanomaligno.–Meuplano?–MãeGingerexclamou.– Fada Plum tem razão – Shiver disse. – Não podíamos permitir que você
trouxesseratosparaosReinos.–Olhe o que fez com o seu próprio reino! –Hawthorn exclamou. – Essas
criaturasmalignasdestruíramtudo!Teriamfeitoomesmocomosnossosreinostambém.Shiverbalançouacabeçacomgravidade.–Nenhumregentejamaisfoifeitoparaserarainha.–Nenhumregente…–MãeGingergaguejou.Então,encarouFadaPlum,os
olhos queimando de fúria. – Você provocou isto! Encheu a cabeça deles de
mentiras!Vocêdeixouqueosratosentrassemedestruíssemomeureinosóporcausadasuaimpertinênciainfantil!FadaPlumsuspirou.– Eu gostaria de poder perdoá-la, Mãe Ginger – disse ela. – Mas a sua
obsessão com o poder a cegou, enlouqueceu-a. E agora o seu reino pagou opreço.– Não percebem que ela os enganou? – Mãe Ginger suplicou a Shiver e
Hawthorn.–Eladeve ter atraídoos ratos comapromessadedoces,domodocomoapenasumaregentedosDocespoderia.FadaPlumestáportrásdisto.ElaficoudesesperadadesdequeMariefoiembora.ElaqueriagovernarosReinosnolugardeMarie.Porvingança!Por um breve momento, Shiver e Hawthorn pareceram considerar a
possibilidade.Adúvidasemanifestouemsuaexpressão.– Ela está tentando nos enganar – Fada Plum sussurrou para eles. –
Separando-nosatravésdadesconfiança.Nãodeixemqueelaosengane.FadaPlumfixouoolharemHawthorn.–Ouosratospodempisoteareesmagarsuasflores.Depois,olhouparaShiver.–Eracharasuageleira,lançandooseureinonoabismo.Umalágrimaperfeitadesceupelafacedelicadadela.–Eelesdevorarãoomeu lindoReinodosDoces,atéque tudooqueMarie
criouparanósnãoexistamais.Reduzidoacinzas.Segurouasmãosdeles.–Nãopodemosdeixarqueelanosdivida.ShivereHawthornrecuperaramaconfiança.Viraram-separaMãeGinger.–MãeGinger,daquipordiante,vocêestábanida–Shiverproclamou.–Você
permanecerá noQuartoReino; sua destruição será um lembrete constante dasconsequênciasdasuaambiçãoegoísta.–Eessesroedoresjamaisdevempôrospés,oumelhor,aspatas,nosnossos
reinos,jáquenãotemosmaisnadaadizersobreisso!Enquantoelesfalavam,osolhosdeMãeGingernãosedespregaramdorosto
deFadaPlum.Somenteparaavelhasenhora,FadaPlumlançouumsorriso.Numpiscarde
olhos,elesumiu,comosejamaistivesseaparecido.– Gostaríamos muito que não fosse assim – Fada Plum lhe disse. – Se ao
menos você tivesse se contentado em trabalhar conosco, juntos, como Mariedesejava.
CAPÍTULO26
CLARA
Claramergulhouemdireçãoaopátionumavelocidadevertiginosa.ShivereHawthorncobriramosolhos.Decertoelanãosobreviveria.–Vai,vai–Phillipsussurroucomurgência.Ocontrapesochicoteouaoredordomastrodabandeira–umavez,duas,três,
girandomaisrápidoemaisrápidoenquantoacordaficavacadavezmaiscurta.A corda enrolada começou a deslizar pelomastro, esticando-se entre os pesosopostosdeClaraedopesado lustre.E, então, exatamentecomoClaraprevira,aconteceu:asleisdafísicaficaramaparentes.Africçãodacordadesacelerouaqueda de Clara. Ela desceu trinta metros, depois quinze e então dez, sempreperdendovelocidadeatéque,porfim,parou,comospésquasetocandoochão.O processo todo durou apenas alguns segundos. Mas, para Clara e para osoutros,foiemoçãosuficienteparaumavidainteira.–Deucerto!–ShivereHawthornderampulinhos,abraçando-se.Phillipsuspiroudealívio.–Muitointeligentemesmo–sussurrou.Clara desamarrou a corda da cintura e acenou para Phillip. Era a vez dele
agora.Elerapidamentesegurouacordaecomeçouadescerderapelpelalateralda
torre.Claraobservou,impressionada.–Aprendeuafazerissonoseutreinamentodesoldado?–elagracejouquando
eleaalcançounochão.Phillipdeuumapiscada.–Nemtodosnóspodemosusaromeiomaisfácilparadescer.Venha!Temos
quenosapressar.Osamigosabriramcaminhopeloterrenodopaláciosorrateiramente,ficando
longedasvistaseprocurandoummododeentrarem.Mas todososacessosaocasteloeramguardadospelossoldadinhosmalvadosdeFadaPlum.
–Nãohácomoentrar–Clarasussurrou.Derepente,umguinchochamouaatençãodeles.UmratoestavaempoleiradonumbeiralbematrásdoombrodePhillip,quese
retraiu.–Paratrás!–eleavisouClara.–Ratos!–Espere…Achoqueestá tudobem.–Claraolhoumaisatentamenteparaa
criaturapeluda.Nãoeraumratoqualquer–eraaquelequeelahaviaconfrontadoquandochegaraaosReinos.Aquelecomumacicatrizprofundaatravessandoumolho.–ÉMouserinks!–Claraexclamou.Arriscando-se, esticou a mão. Mouserinks farejou, e suas feições se
suavizaram.Correuparaapalmadela,eelaoacaricioucomsuavidade.Simplesassim,elepassouaparecerumratinhofofo.–Achoqueeleestáaquiparaajudar–ClarasussurrouparaPhillip.–Nãoé
verdade,Mouserinks?Opequenino ratodeumaisumguinchoedesceudamãodela.Correuatéa
tampadeumaescotilhaornamentadanomeiodocaminhodepedras.–Elesabeumjeitodeentrarmos–Phillipdisse,ocorrendoaconstatação.Clarasorriu.–Osratossempresabem.
AescotilhaconduziuClaraePhillipporumalongaescadaemumpoçoqueparecianãoterfim.Desceramedesceram,atéfinalmentechegaremaumtúnelcomprido.Osomdeáguacorrenteecoounasprofundezas.Mouserinkscorreuàfrente.–Poraqui–Claradisse,incitandoPhillipacontinuar.Juntos,elespercorreramocorredorescuroatéchegaremaumportãovelhoe
enferrujado.Abriram-no…eforamrecepcionadosporumavistasurpreendente:uma perigosa borda rochosa que dava para o rio caudaloso que cercava opalácio.ClaraePhillipespiaramláembaixo…eengoliramemseco.Aquedaeratraiçoeira,eoparedãodepedra,escorregadioefragmentável.Nãodistantedali,umacascatarugia,fazendogirarosmoinhosimensosqueforneciamenergiaparaopalácio.EparaaSaladaMáquina,Clarapercebeu.Devia ser isso o que Mouserinks queria que eles encontrassem. Se ela
conseguissechegaratéaspásdosmoinhos,esseeraoseucaminhodeentrada.Tinhaqueser.
Muito acima deles, a ponte que dava para oQuartoReino estava em plenavista. Phillip e Clara observaram os soldados de chumbo de Fada Plummarchando ao longo dela, lutando contra os ratos e os Polichinelos de MãeGinger.Ossoldadoseramfortes,eestavamemnúmeromuitomaior–estavamganhando.SeClaraePhillipnãoseapressassem,nãohaveriaumQuartoReinoasersalvo.–Você temquevoltar–Clara instouPhillip.–Temquedeteroexércitode
FadaPlum.–Como?–Phillipperguntou.–Encontreumamaneira,Phillip–Clarainsistiu.–Vocêconsegue.Acredito
emvocê.Gratidão misturada a preocupação cruzou o rosto de Phillip quando Clara
pisounatraiçoeirabordarochosa.–Equantoavocê?–elequissaber,preocupado.–Tenhotudodequepreciso.–Claraseseguroufirmenoparedãodepedra.–
Soueuquemtemquefazeristo.Vá!Philliplhelançouumúltimoolhar.–Boasorte–desejouele.Entãoelesefoi,correndopelotúnel.EClaraficousozinha.Olhou para o seu destino e continuou pelo rochedo perigoso. Seus pés
escorregaram várias vezes, mas ela conseguiu se segurar, as mãos semachucandonaspedrasásperas.Elasubiumaisemais,osbraçoseosombrosdoendocomoesforço.Derepente,sentiualgosepartindosobseuspés.Deuumsalto à frente, agarrando-se com firmeza à parede enquanto um pedaço dabeirada desmoronava bemonde estivera pouco antes.Não haviamais onde seapoiarali–enãohaviaumcaminhodevolta.Muitolentamente,elafoiseaproximandodomoinho.Bonsapoiosparaospés
e para as mãos estavam rareando. Ela cravou as unhas, a rocha estavaescorregadiaporcontadaáguaespirrada.Segurando bem firme com uma mão, ela tateou com a outra, tentando
encontrarumlugarparaseapoiarcomsegurança.Amãodeslizouparadentrodeumafendaprofunda…Eumarevoadadepássarossurgiudali.Assustada, ela gritou, e sua voz foi suplantada pelo rugido das águas. A
pegadaescorregou,eelabalançounoar,segurando-seapenascomumamão,ospésdependurando-sesoltossobreoabismoruidosoabaixo!Os pássaros voavam para o alto quando Clara recuperou o equilíbrio,
miraculosamenteencontrandodenovoumpontonoqualsesegurar.Abraçouoparedãodepedra,respirandocomdificuldade.
–Tudooquevocênecessitaestádentro–repetiuparasi,vezessemconta.–Tudooquevocênecessitaestádentro.As pás do moinho estavam diante dela agora. Cortinas de água se
derramavam.Trêmula,elaolhouparacimaparaavaliarorevestimentodaroda.DeviahaverumaentradaparaaSaladaMáquinaemalgumlugarali.Tinhaquehaver…–Ali! – Clara exclamou. No pináculo do moinho havia uma abertura. Era
isso!AquelaeraaentradaparaaSaladaMáquina.Sóquenãohavianenhumarochanoparedãoparaelaescalaratélá.Oúnico
mododesubirera…Claraobservouaspásdomoinhosemovendocomvelocidade.–Sópodeserbrincadeira–murmurou.Seucoraçãoacelerou.Maselaficoufirmeondeestava.–Possofazerisso–disse.Aspáspassavamrápido.Ummovimentoerrado–qualquermovimentoerrado
–eelaserialançadanumaespiralatéofundodoabismo.–Notrês–sussurrouparasi.–Um…dois…três!Lançou-separaafrente,quasenãoconseguindoagarrarumapáquepassava
zunindo.Apásemoveuparacima,carregando-acomela.Seuscabelos foramjogadosparatrás–seuestômagoserevirou–e,então,poralgummilagre…Tum!Clara voou pela abertura da Sala daMáquina, aterrissando no piso frio de
pedra.Ficoudeitadaaliporummomento,molhada,arfanteeexausta.Masconseguira.Engoliu em seco e se sentou.Todososmúsculosdo seu corpogritaramem
protesto.Maselaignorouador.–Horadetrabalhar–disse.
Momentos preciosos se passaram. Clara trabalhou com afinco no painel decontrole daMáquina.Suas ferramentas estavamespalhadas pelo chão, tendo-aajudadoacompletaraprimeirapartedoseuplano.Passaraumfiocompridoaoredordasala,próximoaochão.EleseligavaaumpinoqueseguravaacordadopesadolustredaSaladaMáquina.Isso tinha sido fácil. Agora vinha a parte difícil: repensar a operação da
própriaMáquina.Claradesembaraçouosfioscomagilidade,tentandoentenderotrabalhofeito
pelamãe.– Como posso mudar isto, mãe? – sussurrou baixo. – Como reverter este
mecanismo?Seguiuumdosfiosfinosatéondeeleseconectavaaoblocomagnético,assim
comooimãquealimentavaomodelomecânicodecisnesdeDrosselmeyersobreumlago,masnumaescalamaior,muitomaior.–A-há!–sussurrou.PegouoalfinetedeShiver,queestiveraseguroentreseuslábios,eousoupara
soltaroparafusoqueprendiaofioaobloco.Encontrouofioopostoeosestudouentreaspontasdosdedos.–Esperoquedêcerto–murmurouparasimesma.Derepente,umestrondosobarulhoaassustou.Maselenãovieradedentrodo
palácio;vieradefora,daaberturapelaqualelaentrara,alémdaágua.Eraosomdealgoimensodespencando!Correuparaaaberturaquedavaparaomoinhoeespiouatravésdacortinade
água.Arquejou.Atravésdatorrente, testemunhouaponteparaoQuartoReinodesmoronando.EossoldadinhosdeFadaPlumcaindojuntocomela!–Phillipconseguiu!–Clarapercebeucomorgulho.–Eledeteveoexército!Bateupalmasdealegria.Mas,então,deu-secontadealgoterrível.– Isso significa que Fada Plum voltará para fazer mais soldados. – Seu
coraçãobatiaforte.–Nãotenhomuitotempo.Correuàspressasparajuntodopaineldecontroleetrabalhoucomfervor.Um
fioaqui–outroacolá.Cruzadoseredirecionadoseatarraxadosdevoltaaosseuslugares.Acabaradeprenderaúltimapeçaquando…Tum!AportadaSaladaMáquinafoiescancarada.Eumafigurapairounasoleira.
CAPÍTULO27
CLARA
–Você!–FadaPlumgritoucomfúria.AregentedosDocesentrounasalaapassoslargos,comDewDropvindologo
atrás.Ascentelhasdafadanãoestavamtãobelasagora–eramdeumvermelhovibrante.–Achamesmoquepodemedeter?–FadaPlumavançouemClara.–Quando
umexércitointeiramentenovoestásemprenapontadosmeusdedos?Estava prestes a atacar quando, de repente, tropeçou no cabo que Clara
passarapelocômodo.Elepuxouopinoqueprendiaolustreàparede,eoaparatointeirodesabou.Clarapulouparatrásbematempo.OlustreaterrissouaoredordeFadaPlum,prendendo-acomoseelaestivessenumapesadagaioladeouro.Por ummomento, ela pareceu assustada. Então, seu rosto ficou tomado de
fúria.–Criançatola!–elaberrou.–Euacrediteiemvocê–Clararebateu.–Todosnósacreditamos.Evocênos
traiu!FadaPlumagarrouasbarrasdagaioladolustre.– Acredita mesmo que pode me deter? A mais bela criação da sua mãe?
Aquelaqueaouvia,queacompreendiaequeaamavamais?Mesmoquandoelanosabandonouemfavordosfilhosdela?–Setivessemesmoamadoaminhamãenãoteriadestruídotantodacriação
dela–Clararevidou.–Masissoagoravaiterumfim,FadaPlum.Inesperadamente,FadaPlumsorriu,umsorrisoenjoativamentedoce.–Ouviu isso,DewDrop? – ela zombou. –ApequeninaStahlbaumdiz que
esteéofim.–Ah,bobinha–DewDropcaçoou,sobrevoandoagaiola.–Quando,naverdade–osolhosdeFadaPlumbrilharam–,esteéapenaso
começo.Semqualqueraviso,elaabriuduas imensasecintilantesasasde fada.Clara
arquejou,recuando.FadaPlumbateuasasas,lindaseaterrorizantes,erguendo-sedochão…paraforadagaioladolustre!Nesse instante, Clara percebeu o perigo que corria. Disparou para o lado e
rolou por baixo do mecanismo da Máquina. Nesse meio-tempo, Fada PlumlevantoudoisbaldesevoouparaopaineldecontroledaMáquina.Virouachavee depois aterrissou na plataforma, derrubando pelo menos uma centena desoldadosaosseuspés.–Isso,esconda-se,minhadoçura–FadaPlumsegabou.–Issonãoasalvará
agora.Quedesapontamento vocêdeve ser, pequenaClara.Você e seusmodosdesajeitados, tropeçandonosprópriospés, semprecomalgumachavede fendana mão, graxa nos cabelos… céus! Como a observei pelo relógio. Você?Comparadaamim?FadaPlumgargalhou.–NoqueMarieestavapensando?Clara rastejoupara foradoseuesconderijo,semdespregarosolhosdeFada
Plum.–Ela tinha orgulho demimpelo que sou –Clara declarou, acreditando em
cada palavra do fundo do coração. – Ela me amava por isso. – Avançou emdireçãoaopaineldecontrole.–Cadapedacinhomeu.–Maisumpasso.–Eessafoiaúltimacoisaqueelamedisse.Umpassomais.Claraestavaquaselá.FadaPlumestavabemondeprecisava
estar.–Vocêtemrazão,FadaPlum–disseClara.–Souumacópiaexatadaminha
mãe.Numrompante,elavenceuadistânciafinal,correndoatéopaineldecontrole,
epressionoucomumtapaforteobotãodeligar.– Cuidado! – Dew Drop exclamou, zunindo para cima do ombro de Fada
Plum.Masjáeratardedemais.FadaPlumpercebeuseupróprioreflexonoespelho
queClaracolocaranumânguloprecisodiantedotubodaMáquinapoucoantesdeofeixedelasersoltarumclarão.Clara protegeu os olhos.O feixe rebateu no espelho e foi direcionado para
FadaPlumeDewDrop–umgolpecerteiro.Ambas foramengolidasporumaexplosãobrilhantedeluz.Então,Claraouviuosomdealgosechocandocomochão.Deuumaespiadadevagar.FadaPlumeDewDrophaviamdesaparecido.Sobreaplataformarepousavaumapequeninapresilhadecabelosnoformato
defada.
Eumalindabonecadeporcelana.
CAPÍTULO28
CLARA
–Temcertezadequenãopodemosconvencê-laaficar?Phillip e Clara estavam na varanda do palácio, observando os cidadãos
comemorando no pátio abaixo. Bailarinas dançavam, lançando uma chuva depétalas de flores sobre as vias de paralelepípedos enquanto crianças riam etentavamapanhá-las.Padeirosdistribuíamdoces;fadas,vestidascomoanjosdeneve, sopravam pó brilhante no ar como se fosse confete; e, no jardim, atémesmo os ratos estavam contentes, com mesinhas em miniatura postas comdocesebolossóparaeles.–Nãoseráomesmosemvocê–Phillipprosseguiu.Umraiodesolreluziuna
coroasobreacabeçadele.PhillipforarecentementenomeadoregentedoReinodosDoces.– Bem que eu gostaria – Clara respondeu, agora vestindo com orgulho o
vestido de gala real damãe.Mouserinks estava em seu ombro. – Tudo é tãomágicoaqui–refletiu.–Éa criaçãoda suamãe–Phillipobservou.–E sua também, sequiser.O
Quarto Reino poderia ser beneficiado por sua inspiração. O toque de umainventora.Clara olhou além do abismo para o Quarto Reino. Guardas já trabalhavam
para restaurar a ponte.Mas, desta vez, estavamconstruindo-a comoumapeçasólida–nadadeponte levadiça.Haviamuito trabalhoa ser feitonoReinodoDivertimento. Casas a serem construídas, brinquedos de parque de diversão ebarracas de jogos, e uma cidade para ser trazida de volta à vida. Mas, porenquanto,pelomenosaneblinasedissipara,enovosbrotoscresciamnasárvoresdafloresta.Poderialevarumtempo,masorisoretornariaaoQuartoReino.AtrásdeClaraePhillip,ShivereHawthornderamaMãeGingersuacoroa.A
velha mulher estava novamente trajando suas vestes de regente, os cabelosruivoseencaracoladospresosemdoiscoquesrégios.–MãeGinger chegoua lhe contarporque fez aquelamarionete terrível? –
PhillipsussurrouparaClara.–E…aquelespalhaços?Clarabalançouacabeça.–Naverdade,não.Tinhaalgoavercomumanecessidadedeseprotegerdos
ratos e, depois, de Fada Plum. Ela disse que com o passar do tempo os ratosperceberamqueFadaPlumosenganaraesetornaramleaisaela,emvezdisso…Maselanãopareceuquererfalarmuitosobreisso.MãeGinger deve ter entendido sobre o que conversavam porque se voltou
paraClaraeassentiu.Nãocomumsorriso,exatamente,masmaiscomumolhardeaprovação.– Creio que ela queira superar isso – Clara sugeriu a Phillip. – Para se
esquecerdaescuridãoeaproveitaraluz.–Comotodosnós–Phillipconcordou.Bemnessemomento,Shiver,HawthorneMãeGingerseaproximaram.Shiver
seguravaacoroadeMarie.–Clara,osregentesdosQuatroReinosficariammuitohonradossevocêfosse
anossarainha–Shiveranunciou.Clarapegouacoroacomcuidadoeaadmirou.–Éistooqueminhamãeusava?–perguntou.–Claro–Shiverrespondeu.Clara observou a coroa por um longomomento. Era linda e decorada, seus
delicadosarabescosprateadosmuitobem-feitos àmão,damaneiraqueapenasumainventorafaria.Aideiadeserumarainhaeratentadora…mas…–Receioquenãopossa–Claradeclarou.–Emboraeuametantoestelugar,e
amevocêstodos,tenhoquevoltarparaolugardeondevim.Sintomuito.DevolveuacoroaaShiver.–Entendam,hápessoasemcasaqueprecisamdemimmaisdoquevocês.–Masoquefaremossemumarainha?–Shiverquestionou.–Esseéodilemadacoroação–Hawthornacrescentou.MasClaraapenassorriu.–MinhamãecrioucadapartedosReinos,ecadapartedevocês–disse-lhes.
–Elavivenas suas lembranças enos seus corações.Portanto, de certa forma,vocêsnãoestãosemumarainha.Comisso,todososregentessealegraram.Clara voltou o olhar para o horizonte. Quase sentia a presença da mãe
cercando-os. E, tomada por esse calor, já não se sentia mais perdida, nemconfusa. Por mais que a dor da saudade da mãe jamais fosse embora, elafinalmente aprendera o completo significado da mensagem da caixinha demúsica: Marie quisera, mais do que qualquer outra coisa, que a família dela
fosse feliz. Ela lhes dera todos os presentes de que precisavam para seremcompletos,eClaraagoraentendiaqueorisoeaalegriadamãe,aengenhosidadeeagraciosidade, agentilezaea tranquilidadeeoamorviviamem todoseles.Atravésdela.Tudooqueelanecessitavadefatoestavadentro.–E,decertaforma,eutambémnãoestousemumamãe–Claraconcluiu.ShivertomouasmãosdeClara.Phillipatocounoombro.–Adeus,então,ClaraStahlbaum–Shiverdisse.–FilhadosReinos.
Pouco depois, Phillip estava em pé junto à base da imensa e desenraizadaárvorecaídanoQuartoReino–apassagemdevoltaaomundoreal.Claraestavade volta em seu vestido para a festa deNatal. O cabelos estavam presos, umpoucotortos,tentandoimitaromodocomoLouiseosprendera.Osamigosespiarampelalongaeescurapassagem.–VocêvoltaráparaosReinosalgumdia?–PhillipperguntouaClara.–Claroquevoltarei– respondeu.Euma ideiasúbita lheocorreu.–Equem
sabeumdiavocêtambémpossairparaomeumundo!–Issoépossível?–Phillipperguntou.Claradeudeombros.– Creio que qualquer coisa seja possível, com um pouco de imaginação.
Talveznóspossamostrabalharnuminventoparatornarissopossível,juntos.–Eugostariadisso–Phillipconcordou.–VocêpoderiaconhecerFritzeLouiseeomeupai!–Claraexclamou.Phillipinclinouacabeça.–Elessãocomovocê?–Hum…Sãoumpoucodiferentes–Claraadmitiu.– Imagino que sim. – Phillip segurou a mão de Clara. – Nunca conheci
ninguémcomovocê,emlugarnenhum.–Issoébom?–Claraperguntou.–Émaravilhoso–Philliprespondeu.–Vousentirmuitoasuafalta.– Também sentirei saudades. – Clara o abraçou com força. –Mas quando
sentir saudades de mim, você se lembrará de mim. E essa lembrança o farásorrir.–Mesmo?–Phillipsussurrou.–Mesmo–Claramurmuroudevolta.–Adeus,Phillip.MantenhaosReinosa
salvo.–Fareiisso–eleprometeu.–Adeus,Clara.E,comisso,Claraentrounapassagem,caminhandocadavezmaisemdireção
aoseuinterior,atésumirdevista.
CAPÍTULO29
MARIE
Pinhas.Canela.Castanhas assadas e lenhacrepitandona lareira.Osaromas semisturavam, entrando pela janela do quarto de Clara, entreaberta apenas umtantinhoparapermitiraentradadafragrânciadoespíritonatalino.Marieinspirouprofundamenteedepoisfechouajanela.–Conte-meahistóriadenovo!–apequeninaClarapulounacamadela.Os
olhosdamenininhacintilavam,muitolongedeestaremsonolentos.–PapaiNoel logoestaráaqui–Mariea incitoubaixinho.–Vocêprecisa se
apressarparairdormir.–Porfavor,conte-meahistóriamaisumavez.–Clarapuxouascobertasatéo
queixo.–Prometodormirdepoisdisso.–Estábem,minhaquerida.–Marieseaninhoujuntoaela.–Eraumavezum
reinomaravilhoso,feitointeiramente…–Apartirdaimaginação!–Claramemorizaraahistóriaeasabiadecor.Marieassentiu.–Issomesmo.Apartirdaimaginação.Láerampossíveiscoisasquenãoeram
possíveisemnenhumoutrolugar,sabe.Ecadapartetinhaoseupropósito.Haviaum Reino das Flores, para a beleza. Um Reino dos Flocos de Neve, para asrecordações.UmReinodosDoces,paraaalegria.EumReinodoDivertimento.–Paraqueeraesse?–Claraperguntou,jásabendoaresposta.–Esse reino,minhaquerida,eraparaoamor.–Marieafagouoscabelosde
Clara,apreciandoocalordacabecinhadafilhacontraseupeito.–EaspessoasdosReinoseram todasmuitoespeciais–Mariecontinuou.–
Pois, na verdade, não erampessoas,mas brinquedos que ganharamvida. Elasdançavamebrincavamodiatodo,domodocomoapenasosbrinquedossabemfazer.Eumalindarainhacuidavadetodoseles,tãolindaquantoumabonecadeporcelana.AspálpebrasdeClaracomeçaramapesar.Elabocejou.–Existemesmoumlugarassim,mamãe?–elaperguntou.
–Seguramentepoderiaexistir–Mariesussurrou.–Qualquercoisaépossívelcomumpoucodeimaginação.–Jáestevelá?–Claraquissabersonolenta.Mariesorriu.–Quandoeuerapequena, àsvezes tinhamedooume sentia solitária.Mas,
então, eu sonhava que ia para o meu próprio mundo especial, onde tudo eraadorável e perfeito. E, todas as vezes, eu imaginava algo novo para o meumundo:umanova flor, jogoouamigo.Enquanto eu estivesse lá, eume sentiasegura.ClaraficoumaispesadanoombrodeMarie.Afilhajácochilava.–Eagoraéasuavezdeterdocessonhos,minhaquerida.Marieseafastoucomcuidado,eClaraseacomodounotravesseiro.Seusolhos
jáestavamfechados.–Possoirparalátambém?–Claraperguntou,meioadormecida.–Umdia?MariebeijouatestadeClara,admiradapelotantodeamoreorgulhoqueuma
pessoinhatãopequenapodiaprovocar.Suagarotinhainteligente.–Eugostariamuitodisso.
CAPÍTULO30
CLARA
Claracaminhoupelapassagemescuraemdireçãoaocontornodaportadistante.Suamãosegurouamaçanetafriaeagirou.E,simplesassim,estavadevoltaàpropriedadedeDrosselmeyer,ondeopiso,opapeldeparedeeoslampiõesagáseramosmesmosdeantes.MasClaranãoeramaisamesma.Viveraumaaventura.Umagrandeaventura,tornadapossívelpelaimaginação
damãe.Epeloamor.Claralevantouabarradasaiaeseapressoupelocorredor,atravésdasportas
duplasedescendoasescadasatéosalãoprincipal.AfestadeNatalaindatranscorriaatodovapor.Convidadosdançavameriam.
Crianças brincavam com seus presentes. Era como se Clara tivesse ficadoausenteapenasporalgunsminutos.Drosselmeyer estava na base da escadaria, fitando o relógio de pêndulo.
Virou-sequandoClaraseaproximou.– Clara! Aí está você – disse ele. – Presumo que tenha encontrado o seu
presente?Claraassentiuelhemostrouachavedourada.–Obrigada,padrinho–agradeceu.–Muitoobrigada.OolhodeDrosselmeyerbrilhou,umapistadosegredoqueagorapartilhavam.–Fechadurasdepino–ponderouele.–Danadinhoscomplicadosesses.–Euadecifrei–Clararespondeucomalegria.–Nofimdascontas.–Eusabiaquevocêconseguiria–disseDrosselmeyer.Apoiouumamãono
ombrodeClaraesevirouparaorelógiodepêndulo.–Asuamãeeraainventoramaisinteligentequeconheci.Masnuncahouvedúvidasquandolheperguntavaqualhaviasidosuamaiorcriação.–OsReinos?–Claraperguntou.DrosselmeyerbaixouoolharparaClaraesorriu.–Você–eleassegurou.
Clara estufou o peito de orgulho.Guardoumuito bem a chave no bolso dovestido,aoladodapreciosacaixinhademúsica.–Eagora–Drosselmeyerprosseguiu–,acreditoquealguémmaisestáàsua
esperaestanoite.Clara acompanhou o olhar dele ao longo do salão. Seu pai estava de pé,
sozinho,olhandotristeparanenhumacoisaemparticular.Elaseaproximoudeleeinspiroufundo.–Papai?–chamou-o.OsenhorStahlbaumsevirouassustado.–Céus,Clara,deondevocêsurgiu?Estiveàsuaprocuraemtodososlugares.–Sintomuitopeladança–Clarasedesculpou.Opailhedeuumtapinhanobraço.–Euentendo.Eutambémnãoestavacommuitadisposiçãoparadançar.–Veja, encontrei a chave. – Claramostrou seus dois tesouros: a chave e a
caixinhademúsica.Opaigentilmenteasapanhoueabriuacaixinha.AmelodiaprediletadeMariecomeçouatocar.Elerapidamenteafechou,osofrimentoatravessandosuasfeições.– Ouça-a – Clara o incentivou, esperançosa. – Não fique mais triste. Ela
queriaqueamúsicanoslembrassedequemelaera.–Cheiadevida–osenhorStahlbaumrememorou.–Edealegria.–E ela queria que a caixinha nos lembrasse de que temos sorte – explicou
Clara.–Sorte?–perguntouosenhorStahlbaum.–Sim,papai–Claraconfirmou.–Portermosunsaosoutros.Aemoçãoaindamarcavaorostodopai,massuaexpressãosealegrou.–Sim,temosmuitasorte–eleconcordou.Clara voltou a abrir a caixinha com delicadeza e a depositou sobre uma
mesinhapróxima.Amelodiatocouumavezmais.–Elaestavanosdizendoquepodemosdançardenovo.–Clara levantouos
braços.–Então,podemos?Seupaipensouporuminstante,oolhardistantedevidoàslembranças.–Porquenão,minhamecanicazinha.Porquenão?TomouClaranosbraçose, juntos,elesdançaram.Passaramdiantedaárvore
de Natal, por Fritz e por Louise, e pelos convidados, pelos presentes e pelafestividadedosalãodebaile.Paie filha,valsandosuaprópriamelodiamágicatocadapelotesourodeumainventoramuitoespecial,bemcomoMarieesperavaquefizessem.Aimaginaçãoganhandovida.