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1 O QUE MUDA NO CHÃO DA ESCOLA APÓS A DÉCADA DA ALFABETIZAÇÃO? Edwiges Zaccur Texto apresentado no III SENAL Campus de Itabaiana UFS Por uma nova sociedade, que sendo sujeito de si mesma, tenha no homem e no povo sujeitos de sua história. (...) por uma sociedade que se descolonize cada vez mais. Que cada vez mais corte as correntes que as faziam e fazem ser objeto de outras que lhe são sujeitos. (Paulo Freire) Para discutir a questão que o título introduz, me proponho a fazer um cerco epistemológico, problematizando a Década da Alfabetização lançada na ONU em fevereiro de 2003, dobrando-me sobre heranças recebidas de décadas anteriores e rebatendo-as sobre o que está acontecendo no chão de nossas escolas, por trás do propalado declínio dos índices de analfabetismo e de melhorias nos índices do Ideb. Para que se tenha uma dimensão do problema, o Brasil ocupa um lastimável 54º. lugar entre 59 países, quando se trata de educação, e uma vergonhosa 4ª. colocação entre os países com maior desigualdade na América Latina, muito embora sejamos a sexta economia do mundo. i Diante dessa situação contraditória, proponho começar fazendo algumas perguntas que convidam à reflexão. O que significou o lançamento da Década da Alfabetização na sede das Nações Unidas? A favor de quem se elaboraram políticas nesta década em que uma vez mais o combate ao analfabetismo voltou à cena? A década se pautou pela produção de novos conhecimentos ou se limitou a recondicionar conhecimentos antigos? Que avanços e retrocessos as ações desenvolvidas

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O QUE MUDA NO CHÃO DA ESCOLA APÓS A DÉCADA DA

ALFABETIZAÇÃO?

Edwiges Zaccur

Texto apresentado no III SENAL

Campus de Itabaiana UFS

Por uma nova sociedade, que sendo sujeito de si

mesma, tenha no homem e no povo sujeitos de sua

história. (...) por uma sociedade que se descolonize

cada vez mais. Que cada vez mais corte as correntes

que as faziam e fazem ser objeto de outras que lhe são

sujeitos. (Paulo Freire)

Para discutir a questão que o título introduz, me proponho a fazer um

cerco epistemológico, problematizando a Década da Alfabetização lançada

na ONU em fevereiro de 2003, dobrando-me sobre heranças recebidas de

décadas anteriores e rebatendo-as sobre o que está acontecendo no chão de

nossas escolas, por trás do propalado declínio dos índices de analfabetismo

e de melhorias nos índices do Ideb. Para que se tenha uma dimensão do

problema, o Brasil ocupa um lastimável 54º. lugar entre 59 países, quando

se trata de educação, e uma vergonhosa 4ª. colocação entre os países com

maior desigualdade na América Latina, muito embora sejamos a sexta

economia do mundo.i

Diante dessa situação contraditória, proponho começar fazendo

algumas perguntas que convidam à reflexão. O que significou o

lançamento da Década da Alfabetização na sede das Nações Unidas? A

favor de quem se elaboraram políticas nesta década em que uma vez mais

o combate ao analfabetismo voltou à cena? A década se pautou pela

produção de novos conhecimentos ou se limitou a recondicionar

conhecimentos antigos? Que avanços e retrocessos as ações desenvolvidas

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produziram no chão das escolas brasileiras? Ou, ainda, o que é possível

dizer a respeito da alfabetização consolidada e da diminuição da pobreza

em países como o Brasil?

Afinal, a Década da Alfabetização foi proposta, tendo como

prioridades: aumentar os níveis de alfabetismo; promover o

empoderamento de todas as pessoas em todos os lugares, e contribuir para a

erradicação da pobreza, como parte dos esforços para a paz num mundo

globalizado onde a alfabetização de todas as pessoas é do interesse da

comunidade internacional. Dez anos depois do seu lançamento a com

pompa e circunstância, a década chega ao seu final sem alarde. Pelo menos

não encontrei nenhum documento da UNESCO sobre um possível balanço

entre o que foi proposto e o que foi realizado na década no Brasil ou em

outros países do sul.

Mas, para não atropelar os fatos, voltemos a 2003. Vale lembrar que

o engajamento do Brasil nos esforços da Década da Alfabetização

coincidiu com um momento histórico que não poderia ser mais propício:

Lula, um sindicalista oriundo do sertão nordestino, assumia a presidência,

consagrado pelo voto popular. Três meses depois foi assinado, no

Congresso Nacional, um acordo entre a UNESCO e o Ministério da

Educação, no valor de 200 mil euros, para o desenvolvimento de um Plano

Nacional de Alfabetização. Naquela oportunidade, Cristóvam Buarque,

então ministro da educação, assumiu o compromisso de alfabetizar vinte

milhões de brasileiros, entre jovens e adultos, em quatro anos.

No entanto, entre pensar, propor e concretizar metas existe um largo

fosso em que naufragam muitas das propostas mais mobilizadoras. Que o

diga Cristóvam Buarque que viu minada a sua influência política no

Governo Lula e esvaziado o seu programa à frente do MEC. Se ao

ministro faltaram apoio e tempo, já que permaneceu no cargo apenas onze

meses (entre 2003 e 2004), as metas tampouco foram muito além dos belos

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discursos publicados no documento editado pela UNESCO em parceria

com o MECii, sob um título de muito apelo – Alfabetização como

liberdadeiii

.

O documento é aberto com uma apresentação assinada pelo ministro

Cristóvão Buarque e pelo representante da UNESCO no Brasil. Nela se

justifica o engajamento do país na Década da Alfabetização, em razão dos

seguintes argumentos:

A alfabetização universal de crianças e adultos

continua sendo um desafio.

A alfabetização é um direito humano fundamental,

uma necessidade básica de aprendizagem e a chave

para aprender a aprender, condição indispensável

para o exercício pleno da liberdade.

A alfabetização requer esforços sustentados,

intensivos e focalizados, além de programas, projetos e

campanhas de curto prazo.

A alfabetização favorece a identidade cultural, a

participação democrática, a cidadania, a tolerância

pelos demais, o desenvolvimento social e a paz.

Como se constata, nenhum desses motivos faz qualquer alusão à

perversidade do modelo capitalista em que os interesses do capital

atropelam direitos acordados em diferentes fóruns internacionais. É

como diagnosticar males e prescrever remédios paliativos, sem que as

causas sejam devidamente atacadas. Empunhar a bandeira da alfabetização,

sem discutir politicamente o que faz perdurar o binômio analfabetismo e

pobreza, significa ignorar 500 anos de colonização / exploração /

ideologização. Como se sabe, mesmo com a criação da ONU em meados

do século XX, certos países continuam mais iguais do que outros. A

Organização das Nações Unidas continua praticamente cega, surda e muda

em relação a intervenções e guerras promovidas pelos mais fortes contra

os mais fracos, em prol dos interesses econômicos daqueles em detrimento

destes. Não é, pois, de se estranhar que seja eclipsada, no documento da

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UNESCO, a íntima relação entre regiões exploradas e empobrecidas e altos

índices de analfabetismo.

Se a dupla face político-pedagógica da prática educativa não ganhou

ênfase no documento, tampouco são feitas referências consistentes aos

alfabetizandos, a uma epistemologia outra, a uma pedagogia dialógica e

emancipatória. Pouco se investe no cerco epistemológico realizado por

Freire, em sua práxis revolucionária porque emancipatória, desconstruindo

um conjunto de dicotomias tais como, sujeito-objeto, teoria-prática,

transmissão-recepção, conhecimento-ignorância. Também não se insiste na

diferença abissal entre uma educação bancária, com base na transmissão, e

outra com base no diálogo, uma educação emancipatória. Como o diálogo é

uma relação de eu-tu, como tantas vezes Paulo Freire enfatizou, implica

necessariamente a relação de dois sujeitos. Porém, muito frequentemente,

em se tratando de educação para os esfarrapados do mundo, o tu da

relação é convertido em mero objeto. Nesse caso, como denuncia Freire:

se terá pervertido o diálogo e já não se estará educando, mas deformando.

(Freire, 2011,151)

Denúncias tão radicais estão praticamente ausentes do documento

oficial. Continuou prevalecendo a alfabetização em si mesma, pouco

levando em conta os sujeitos, suas inserções culturais e experiências e,

sobretudo, seus saberes e suas existências históricas. Como no passado,

sobressai o desafio já “enfrentado” ao longo de muitas décadas e governos

sucessivos, acrescido da necessidade de novos esforços e investimentos,

tendo em vista favorecer quase miraculosamente a participação, a

identidade cultural, o desenvolvimento etc, etc, etc. No avesso dos

discursos, leio uma desejável acomodação à ordem vigente como garantia

da paz mundial e tranquilidade das nações.

Além disso, no documento citado, é possível colher indícios da

desqualificação dos saberes dos deserdados da terra. Tomo como exemplo

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um argumento politicamente correto, mas nem tanto, em que a

alfabetização é enfatizada como um direito humano fundamental, uma

necessidade básica de aprendizagem e a chave de aprender a aprender.

Que a alfabetização seja um dos direitos humanos fundamentais ninguém

discorda, ainda assim é possível perguntar: qual alfabetização, uma que

acomode ou outra que invista na emancipação? Paulo Freire alerta afirma

que “a opção, por isso, teria que ser, também, entre uma “educação”

para a “domesticação”, para a alienação, e uma educação para

a liberdade. “Educação” para o homem-objeto ou educação para o homem-

sujeito.”(Paulo Freire, 2011, 52)

Ao apresentar uma alfabetização pretensamente neutra, oferecida

como chave do aprender a aprender, e não como chave da cultura escrita,

são desqualificados os saberes advindos da leitura de mundo dos

alfabetizandos e das aprendizagens cotidianas decorrentes de sua inserção

cultural. Tal postura é inaceitável, por desumanizar os educandos. Situá-

los num grau zero de aprendizagem os despotencializa para enfrentar o

desafio de se apropriarem da cultura escrita. Além disso, a absolutização

da ignorância, que perpetua a dicotomia ignorância X saber, é

fundamental para a manipulação exercida pelas elites sobre os oprimidos,

como denunciou Freire. Revolucionário é instigar “os condenados da

terra” a descobrir a relatividade de ambas, como no jogo proposto por

Paulo Freire a colonos, com base na troca de perguntas a partir de seus

respectivos conhecimentos, revelando desconhecimentos de ambos os

lados (Freire, 2002). Objetivo de Freire era justamente mostrar que ele

ignorava o que os colonos sabiam e os colonos ignoravam o que ele sabia.

Diversamente, o Diretor Geral da UNESCO, Sr Koichiro Matsuura,

em seu discurso no lançamento da década, reforçou a tese de absolutização

da ignorância ao dizer: “Por meio da alfabetização, os pobres podem

aprender a aprender” (2003, 11). No avesso dessa falsa generosidade é

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possível ler: sem a alfabetização, os pobres não podem aprender a aprender.

Por esse caminho, implicitamente, o analfabetismo é usado para justificar a

pobreza e vice-versa. Em contraponto a essa retórica equivocada, convoco

Ciço, sujeito da pesquisa de Brandão, quando diz que a escola que é dada

aos pobres ensina o mundo como ele não é (Brandão, 1998). Ensina que

eles nada sabem e que o fato de não saber ler e escrever o transforma em

seres menorizados, incapazes de refletir e gerir seu próprio destino.

No entanto, outro sujeito da pesquisa realizada por mim também

nega Matsuura, confirmando Brandão e Freire. Refiro-me a Aguinoir, um

analfabeto letradoiv

que se evadiu da escola e se encontrou no saber-fazer.

Marceneiro dos melhores, que se autonomeava “artista da madeira” , ele

compreendeu o quanto era explorado na marcenaria em que trabalhava.

Planejou e se preparou para trabalhar por conta própria, adquirindo, aos

poucos, os meios de produção, realizando o sonho de poder dizer com

justificado orgulho: eu sou meu próprio patrão. Trabalhava numa pequena

oficina no fundo da casinha de fundos em que morou muito tempo de

aluguel e da qual se tornou finalmente proprietário, reformando-a e

transformando-a em sobrado. Não sabia fazer conta no papel, mas era

imbatível nos cálculos mentais, revelando possuir, entre outros, o

conhecimento matemático indispensável ao exercício de sua profissão.

Quando necessitava registrar detalhes dos projetos recebidos, criava um

código que funcionava para a sua leitura, embora fosse indecifrável para os

demais.

Aguinoir poderia repetir as palavras que um alfabetizando do sul do

país disse a Paulo Freire: “eu tenho a escola do mundo”. Palavras muito

diferentes das proferidas pela mulher que sintetizou seu desejo de aprender

a ler e a escrever “para deixar de ser a sombra dos outros” . Mal

comparando, o primeiro construiu sua identidade, graças a seu ofício

criativo, fazendo de cada cliente, senão um amigo, um divulgador, de modo

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que ele costumava dizer: “ minha obra é a minha propaganda”. Quando

veio a falecer, seu filho não teve como avisar ninguém: a agenda de

telefones do pai existia apenas na sua memória. Quanto à mulher, ela

buscava a aprendizagem da leitura e da escrita como uma possível

redenção, que a livrasse de ser apenas uma sombra alheia, sombra que a

sociedade letrada projetou e que ela incorporou, penosa e ideologicamente,

como a pena que se paga por não saber ler.

Não estou aqui fazendo uma apologia do analfabetismo o que seria

uma contradição com minha história, ainda e sempre preocupada com a

apropriação da leitura e da escrita, historicamente negada aos mais pobres.

O que rechaço vivamente é a anulação de saberes de toda uma existência,

justificada por não saber ler. Mesmo porque o pobre para sobreviver

necessita aprender a cada dia, precisa engendrar soluções e invenções para

viver na escassez, precisa “matar um leão por dia”, em condições as mais

adversas. E para isso, precisa recorrer a muito engenho e arte somados a

um tanto de astúcia, que é “a arte do fraco”, como teorizou Certeau.

Aquelas astuciosas estripulias da dupla formada por João Grilo e Chicó,

imortalizadas por Ariano Suassuna em seu Auto da compadecida, são

fortemente inspiradas pela sabedoria popular.

No entanto, quando são invisibilizados os saberes dos oprimidos,

como partir do já sabido para aprender o não sabido? E como sacudir o

peso de se ver negado, tendo sua cultura desrespeitada pelas monoculturas

dominantesv que se pretendem universais, eclipsando outras culturas?

(Santos, 2007: 29-31)

Pincelar esse cenário ajuda a problematização do que aparece apenas

sob a chancela do pedagógico, contrariando a contribuição de Paulo Freire

de que o político e o pedagógico não se separam, como faces que são da

mesma moeda. O próprio Paulo Freire é citado na apresentação do

documento de forma atenuada, quando se diz que a influência de Paulo

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Freire acrescentou dimensões políticas, situando o aluno não mais como

beneficiário, mero objeto, mas como sujeito de um processo de

alfabetização crítica entendida como possiblidade de participar. Mas

Paulo Freire não reformou a educação, acrescendo uma nova dimensão a

que já existia. Ele a revolucionou com sua práxis dialógica e emancipatória,

instigando os educandos a descobrir a face política do pedagógico, antes

oculta. Tampouco a alfabetização crítica se limita à mera possibilidade de

participar sem que se explicite o complemento desse verbo. Antes se abre

à transformação do sujeito que se assume criador de cultura e crítico e,

portanto, capaz de participar efetivamente da transformação do mundo.

Na minha leitura, além de manter a dicotomia entre o pedagógico e

o político, o documento procura escamoteá-la por meio da junção das

palavras do título: Alfabetizaçãocomoliberdade impressa na capa. Essa

releitura do lema da Década da Alfabetização sugere um amálgama

inseparável entre alfabetização e liberdade, indiciando tanto um diálogo

implícito com o livro de Paulo Freire: Educação como prática de

liberdade, como um explícito, através da inclusão no documento de duas

páginas extraídas do livro Educação e política, de Paulo Freire. Porém,

quem fizer uma leitura atenta, poderá perceber o jogo tão peculiar à política

hegemônica: capturar, filtrar o conteúdo revolucionário e, assim subtraído

do que incomoda o sistema, disseminá-lo em seu próprio discurso. Por esse

caminho, sobram apenas ecos longínquos do revolucionário giro

epistemológico de Freire, em que as pessoas não são libertadas por outrem,

mas se libertam em comunhão.

Acresce que aos colonizadores não basta que os pobres sejam pobres,

é preciso que estejam tão desqualificados que aceitem injustiças de todo

tipo, inclusive as cognitivas, cometidas contra eles. A práxis freireana, ao

contrário, assume claramente a favor de quem se coloca. No livro

Educação como prática da liberdade, Paulo Freire explicita que, nos

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círculos de cultura, o trabalho se iniciava a partir da pesquisa do universo

vocabular, derivado do universo existencial. As situações existenciais eram

codificadas em imagens, para instigar a discussão abrangente da cultura e

de daqueles sujeitos como fazedores de cultura. Com essa proposta, Paulo

Freire conta que em duas noites são discutidas essas situações, motivando-

se intensamente os homens. A seguir são apresentadas as palavras

geradoras ligadas à vida daquele grupo, representadas pela escrita, mas

inseridas em situações existenciais acompanhadas do debate de dimensões

da realidade. E assim, coletivamente, dialogando, debatendo e refletindo,

homens sem letras, mas com leitura de mundo, se motivam e se

alfabetizam. Como enfatiza Freire: Só assim, nos parece válido o trabalho

da alfabetização em que a palavra seja compreendida pelo homem na sua

justa significação: como força de transformação do mundo. Só assim a

alfabetização tem sentido.(Freire, 2011,181).

Fora do jogo dialógico que desafia a refletir, pouco se aprende e se

ensina, sobretudo quando se trata de se apropriar a modalidade escrita da

língua materna. Como sintetiza Geraldi, a língua só tem existência no jogo

que se joga na sociedade, na interlocução, e é no interior de seu

funcionamento que se pode estabelecer as regras de tal jogo” (Geraldi,

1984, p.43). Vale dizer que, no jogo que se joga na sociedade, as relações

de poder tem importância vital, e compreendê-las faz toda a diferença.

A meio caminho, ficaram os objetivos, entre idealistas e

funcionalistas, traçados pela UNESCO para a década da Alfabetização

com ênfase em ações sem sujeitos:

a) colocar a alfabetização no centro de todos os

níveis dos sistemas educacionais nacionais e de

todos os esforços visando ao desenvolvimento;

b) adotar uma abordagem dupla, conferindo igual

importância tanto às modalidades de educação

formal quanto às de educação não-formal, criando

sinergia entre elas;

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c) promover, nas escolas e nas comunidades, um

ambiente que propicie os usos da alfabetização e

uma cultura de leitura;

d) assegurar a participação comunitária nos

programas de alfabetização, bem como apropriação

desses programas pelas comunidades;

e) construir parcerias em todos os níveis,

particularmente em nível nacional, entre governo,

sociedade civil, setor privado e comunidades locais; e

também nos níveis sub-regional, regional e

internacional;

f) desenvolver, em todos os níveis, processos

sistemáticos de acompanhamento e avaliação,

embasados por resultados de pesquisa e bases de

dados.

Em contraponto a esse conjunto difuso de ações sem sujeitos, sem

homens, sem mulheres, sem crianças, e sem conflitos, proponho o resgate

de sementes de utopia e experiências que fizeram diferença na Educação

Popular, destacando entre outras: a Paulo Freire, por sua histórica luta

pela emancipação dos mais excluídos e a de Darcy Ribeiro por ter

ousado, a partir da semente lançada por Anísio Teixeira, pensar uma

escola de tempo integral para as crianças de classes populares, os CIEPs,

Recordo que, em 1990, ao iniciar meu Mestrado em Educação,

encontrei a UFF em fértil ebulição iniciada na década anterior. Discutiam-

se, entre outros temas, a aprendizagem como processo, a alfabetização

como continuum e, paralelamente, a avaliação e o fracasso escolar, temas

interconectados aos anteriores que mobilizavam e ainda mobilizam

professoras empenhadas em ensinar melhor. No ano seguinte, uma reforma

curricular foi feita na Faculdade de Educação da UFF, a partir de ampla

discussão, apostando na formação da professora-pesquisadora chamada a

refletir sobre seu fazer. Havia também um candente debate teórico em que

se polarizavam estudiosos do construtivismo de Piaget e do sócio-

interacionismo de Vygotsky, cada grupo empenhado em defender qual

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suporte teórico explicaria melhor questões relativas aos processos de

aprendizagem, com vistas a contribuir para a diminuição do fracasso

escolar. Outras discussões paralelas denunciando a escola dual que,

grosso modo, pode ser sintetizada na escola de qualidade para os ricos e

uma escolinha, que não muda a vida, para os pobres.

Paralelamente as pesquisas justificavam a busca de alternativas que

explicassem como crianças de classes populares, potentes para responder

aos desafios da vida, se tornavam impotentes para aprender a ler e a

escrever na escola. Em síntese, cresciam os incômodos gerados pela

persistência do fracasso escolar que se mantinha, a despeito da querela dos

métodos que atravessara três décadas, de 1950 a 1970, quando vigorava o

tecnicismo e se apostava em seguir passo a passo métodos de

alfabetização em disputa. Na verdade, se tratava de mais do mesmo, pois,

prevalecia a educação bancária sob a batuta do silenciamento, oposto ao

diálogo.

Foi contra este quadro que Darcy Ribeiro idealizou o Programa dos

CIEPs no 1º.Governo Brizola (1983-1986) e o retomou com mais ímpeto

no segundo mandato (1991-1994). Com uma proposta de escola de tempo

integral e sua organização em ciclos, respeitando o tempo da criança e

evitando confrontá-la com o desestímulo de uma reprovação inicial, os

CIEPs alimentavam amplo debate contra e a favor.

Pude conviver em dois lugares distintos com as políticas

educacionais que atravessaram as décadas de 1980 e 1990. Na primeira

delas, era ainda uma professora da rede estadual que se perguntava porque

os CIEPS recebiam tamanha atenção em detrimento das demais escolas da

rede estadual. Ainda não compreendia o alcance de uma proposta piloto e

não conseguia ver o caráter seminal da experiência. Na década de 1990,

como mestranda, pude alargar minha compreensão e começar a ver o

alcance do projeto arquitetado e reeditado por Darcy Ribeiro no segundo

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governo de Leonel Brizola. Participando de debates e lendo o Livro dos

CIEPs, compreendi a dimensão política de um projeto que denunciava

nunca ter havido desejo e vontade política de que o nosso povo se

educasse, se alfabetizasse, pois educação implica em dividir, em

reconhecer o outro, em ouvir e ser ouvido, e convivendo com a riqueza da

diferença partilhar com todos o que é direito de todos (Ribeiro, 1986,

p.62). Mas, ao denunciar velhas mazelas de uma sociedade excludente ,

Darcy Ribeiro anunciava que o projeto do CIEP:

contribui para resgatar uma velha dívida da escola,

pois impede que as crianças a abandonem por não

suportarem situações críticas, e pode trazer para seu

interior aquelas que nem procuram matricular-se, por

perceberem a educação como algo que não pertence a

seu mundo. (Ribeiro, 1986, p. 131)

Ainda em 1991, pude ouvir Darcy e Freire dialogarem no encontro -

CIEP: Crítica e Auto-crítica, realizado em Niterói. Se bem me lembro,

aquela era a primeira oportunidade em que se encontravam dois

revolucionários incansáveis, cada qual em seu espaço, após a ditadura

militar e o retorno de ambos do exílio. Eis que recorrendo ao Google, me

emocionei ao encontrar o texto O encontro das águas: diálogos entre

Paulo Freire e Darcy Ribeiro e nele pude ouvir, emocionada, essas vozes

em prol educação popular, generosamente transcritas pelas autoras Lia

Faria e Rosemaria J. Vieira Silva. A luta de cada um se dera em diferentes

espaços e instâncias, mas isso não impediu a sintonia de ambos em prol da

educação popular. Paulo Freire aplaudiu a proposta de tempo integral dos

CIEPs, enfatizando que:

o CIEP, ao mesmo tempo em que ele propõe a

compreensão e o uso diferente do tempo, nesta

proposta ele reeduca, ele forma diferentemente a

própria educadora. É isso que certos intelectuais

metidos a progressistas não entendem. E inclusive

nisso é muito dialético, quer dizer, o CIEP está

convencido de que a teoria passa pela prática e vice-

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versa; não é possível dicotomizá-las. (...) A escola é o

espaço e o tempo em que se deve conhecer o

conhecimento que já existe, em que se deve trabalhar

para experimentar a possibilidade de criar o

conhecimento que ainda não existe. Isso afinal é a

educação. Do tempo que a criança precisa para

participar da produção do saber, e não para receber

pacote de saber. (Freire)

Ao tomar a palavra, Darcy Ribeiro além de enfatizar que Paulo

Freire é a consciência, a emoção e a sabedoria da educação brasileira,

soube reconhecer que o traço fundamental da vida e obra de Freire é esse,

é de um respeito de educador pelo educando. Um respeito largo que se

estendia à sua luta para realizar a vocação humana para aprender.

Contribuições que fazem parte, como sublinhou Darcy, de ideias

encarnadas movem o mundo. Inclusive, acrescento eu, porque sementes

grávidas de utopia perduram e podem ser retomadas. Nesse sentido, Darcy

fez questão de dizer de onde veio a inspiração para a criação dos CIEPs,

retomando um experimento realizado por Anísio Teixeira. Nas palavras

de Darcy:

Anísio fez um experimento, que foi pra nossa geração

uma coisa comovedora, que é a Escola Parque da

Bahia, no bairro mais miserável da Bahia. Era um

bairro de palafitas, na lama, na merda. Naquele bairro,

o Anísio fez a Escola Parque da Bahia. (...) e a escola

era para quê? Para receber as crianças quatro horas

antes ou quatro horas depois da escola classe. E ele

tentou melhorar as escolas classes, os meninos tinham

suas aulas na escola classe, e iam pra Escola Parque.

A partir da semente lançada, Darcy foi além, criando os Centros

Integrados de Educação Popular. Já não se tratava de dispor de um

complexo educacional, com espaços e atribuições complementares, mas

distintas. Nos CIEPs, a proposta era integrar a cultura da escola com a

cultura da comunidade, inclusive com a mediação de animadores culturais,

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que deviam realizar um trabalho capaz de articular as demais atividades da

escola, explorando diferentes e possibilidades de criação (arte, música,

dança teatro).

Com a experiência seminal dos CIEPs, dentro e fora deles, o

fracasso escolar ganhou também o sentido de fracasso da escola.

Problematizou-se a produção do analfabetismo no interior das escolas,

onde muitas crianças eram sistematicamente reprovadas até que se

evadissem ou fossem transferidos para o noturno. Isso tudo vi acontecer,

razão por que me comoveu tanto ouvir a forte denúncia de Darcy: Nós

estamos produzindo agora os analfabetos do futuro. Além de denunciar a

escola pensada para e pela elite, Darcy implicitamente relacionou o

fracasso da escola também ao esvaziamento da carreira docente:

a professora ganha hoje uma sexta parte do salário que

recebia. Havia uma profissão que era marido de

professora: casar com professora era um grande

negócio. Minha mãe viúva podia criar dois filhos dela,

eu e meu irmão, e os irmãos dela (...) Quer dizer, uma

professora podia manter, como o médico também.

Insisto em trazer as vozes entremeadas de Paulo Freire e Darcy

Ribeiro, uma vez que a questões ali presentes continuam sem respostas e

ainda se insiste em negar, na intimidade da escola, o conflito social .

Dessa forma, como denuncia Freire, incorrem profundamente num atraso:

Essa gente não quer mudar nada. Pior que isso: essa gente parece querer

retroceder às décadas de 1950 a 1970 quando prevalecia a querela dos

métodos e o tecnicismo.

Se não estivemos andamos em círculos, como me parece, o faro é

que a “Década da Alfabetização” se encerra com parcos avanços, o que

instiga a analisar as distâncias entre as prioridades anunciadas e o que

efetivamente se priorizou entre nós. Aponto algumas: o código e não a

alfabetização ganhou centralidade; os conteúdos escolarizados recobraram

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força, relegando a um segundo plano a leitura freireana da palavramundo; a

síndrome dos testes encobriu a discussão de processos de avaliação; a

discussão dos processos de aprendizagem foi recalcada pela busca de

resultados; as ONGs cresceram sobre a fragilização da escola pública de

tempo integral; os gestores técnicos tomaram o lugar de humanistas, e

segue por aí um rol de distorções.

E mais, na chamada Década da Alfabetização, foram descartadas

contribuições da psicologia, da sociolinguística, da antropologia filosófica,

da psicolinguística e da linguística, em favor de um foneticismo estreito

que privilegia o código, reduzindo o signo ao significante e reafirmando

conteúdos escolares menores em detrimento da palavramundo. Ou seja,

“jogou-se fora o bebê com a água do banho”.

Posso estar sendo injusta com a década, até por me limitar apenas ao

que pude acompanhar no Brasil. Posso ser acusada de saudosismo, mas não

posso deixar de me indignar diante dos legados descartados em favor de

um neotecnicismo que combina em tudo com neocolonialismo e promove

os retrocessos a que se tem assistido. A alfabetização, defendida por Paulo

Freire como ponte entre a leitura de mundo e a leitura da palavra,

distendendo-se na leitura da palavramundo, viu-se novamente reduzida à

aquisição do código.

Como justificativa teórica para amesquinhar a alfabetização que se

complexificara com Freire, discute-se crescentemente a especificidade da

alfabetização, a par do conceito de letramento que se alarga nas funções

sociais da escrita na sociedade letrada. Emilia Ferreiro tomou posição

contra essa dicotomia:

Há algum tempo, descobriram no Brasil que se poderia

usar a expressão letramento. E o que aconteceu com a

alfabetização? Virou sinônimo de decodificação.

Letramento passou a ser o estar em contato com

distintos tipos de texto, o compreender o que se lê. Isso

16

é um retrocesso. Eu me nego a aceitar um período de

decodificação prévio àquele em que se passa a perceber

a função social do texto. Acreditar nisso é dar razão à

velha consciência fonológica. (2003, p. 30)

A alfabetização saiu de foco e as luzes se acenderam sobre a

discussão do letramento cuja disseminação começou com Mary Kato em

1986. Paulo Freire, que só faleceu onze anos depois, ignorou solenemente

essa discussão que passava ao largo do político como reverso do

pedagógico, questão maior que o mobilizava. Depois de sua morte, não

faltam os que tentam associar o letramento à leitura da palavramundo de

Paulo Freire. Porém Moacir Gadotti, Presidente de Honra do Instituto

Paulo Freire, cioso do legado recebido, além de concordar com Ferreiro, na

denúncia do retrocesso conceitual, vai mais longe, denunciando uma

lamentável tentativa de esvaziar o caráter político da educação e da

alfabetização, uma armadilha na qual muitos educadores e educadoras

hoje estão caindo. (2010, p. 9)

Na contramão dos avanços conquistados nas décadas anteriores,

assiste-se a uma espécie de revanche da educação bancária tão longamente

combatida por Paulo Freire. Mais que nunca as crianças e suas professoras

recebem pacotes prontos que pouco ou nada têm a ver com sua cultura, sua

história, sua experiência. Tais pacotes não levam em conta os sujeitos dos

processos de aprendizagem e atropelam as professoras, cuja prática é

reduzida ao fazer pensado por outros. Enquanto isso, cartilheiros,

especialistas em marketing, com suas técnicas de antanho embaladas nas

tecnologias de agora ganham espaço crescente na mídia e são

contemplados pelas nas políticas públicas.

Para seguir tais pacotes não é preciso ser pedagoga, nem professora-

pesquisadora, nem sujeito que pensa o seu fazer. Basta ser boneco do

ventrículo que, por sua vez, forma bonequinhos de ventrículo que, no

máximo se alfabetizam mecanicamente o que não significa se credenciar a

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fazer uso da alfabetização e se tornar um leitor confirmado. Cientes de que

a melhor defesa é o ataque, tais cartilheiros atacam, desqualificando o

trabalho de pedagogas, como estratégia de venda ao poder público de

pacotes pretensamente salvadores, compostos de muitos itens, de manuais

coloridos a CDs e até computadores fantasiados de mesas alfabetizadoras,

tudo isso a custos exorbitantes. Em meio a tanta parafernália, a professora

mal paga e desqualificada é posta no final da linha, condenada a

retransmitir acriticamente os pacotes que recebe prontos para consumir.

Nesse sentido, deixa-se de lado tudo o que já foi produzido a respeito

da educação emancipatória e da práxis alfabetizadora de Freire. Ignora-se

por extensão a integração prática-teoria, o fazer pensado, a experiência

refletida, a práxis em construção da professora-pesquisadora que reflete

sobre seu fazer e sobre as respostas que colhe dos alunos, buscando

compreender o compreender deles para ensinar melhor. É tamanha a

imbricação entre ser professora e ser pesquisadora que Paulo Freire

também se posicionou a esse respeito:

Fala-se hoje, com insistência, no professor

pesquisador. No meu entender o que há de

pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma

forma de ser ou de atuar que se acrescente à de ensinar.

Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a

busca, a pesquisa. O de que se precisa é que, em sua

formação permanente, o professor se perceba e se

assuma, porque professor, como pesquisador.”

(FREIRE, 2000 p.33).

Mas quando se dicotomizam o fazer e o pensar, a teoria e a prática, é

possível perguntar: Como a professora pode se assumir pesquisadora, a

despeito dessa política dos pacotes? Direi que se uma professora não se

demite de pensar a sua prática e de compreender como suas crianças

compreendem, ela se desvencilha das amarras dos pacotes e do controle a

que é submetida. Se a professora consegue ver sentido no que faz, instiga

as crianças à descoberta e à criação e, sobretudo, as convida a ampliar a

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leitura da palavramundo. Mas como fazer isso, se existe, em muitos

municípios, uma política posta e imposta com controle semanal das

atividades do pacote?

Nesse ponto entra em cena a astúcia da professora. O uso da astúcia

foi teorizado por Certeau como a arma do fraco e, consequentemente, a

arma do pobre. Mas pode ser também a arma da professora desqualificada e

subalternizada por esses pacotes. Recentemente, participei de um dos

encontros do Fórum de Alfabetização e Leitura na UNIRIO em que uma

professora relatou como driblava o controle a que era submetida. Como a

supervisora só comparecia à escola em determinado dia da semana, a

professora resolveu que apenas nesse dia usaria o material do pacote. Nos

demais dias da semana, exploraria outras possibilidades de ler e produzir

conhecimentos com sua turma. Um belo dia, a supervisora apareceu fora do

dia combinado, encontrando a professora vivendo práticas muito distintas

das que estavam previstas para a semana. Questionada, a professora

respondeu que variava as aulas para ir ao encontro dos interesses das

crianças e que estas estavam aprendendo. Não importa saber se a

supervisora agiu com sabedoria, aplaudindo a ação da professora. O

importante é ressaltar que a professora foi além do relato, discutindo a

cartilha e exercícios mecanizantes nela propostos, confrontados com outros

momentos em que o conteúdo da alfabetização incluía o código, sem se

reduzir a ele.

Mas os percalços impostos às professoras não param aí. Além dos

pacotes pedagógicos prontos para transmitir, na última década se

disseminaram políticas de avaliação, que mobilizam verbas substanciais e

um grande aparato sob a alegação de que os testes nacionais e

internacionais em larga escala contribuem para alcançar a almejada

qualidade da educação. Angel Barriga problematiza essa argumentação,

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não hesitando em denunciar que tal avaliação tem negado a complexidade

pedagógica subjacente aos atos educativos. Para Barriga essa politica:

Longe de abordar os temas substantivos destes

problemas, promoveu um maior formalismo na

educação. Se algum resultado teve este

estabelecimento de sistemas de avaliação, foi o

aumento do formalismo e do simulacro nos actos

educativos. (Barriga, 2009, 28)

Volto ao documento Alfabetização como Liberdade e encontro um

discurso ambíguo sobre alfabetização e avaliação. De um lado, ressalta-se

que a alfabetização serve a propósitos múltiplos, é adquirida de diversas

maneiras, razão por que deve ser encarada, não como um conceito único,

mas sim plural: as alfabetizações. Por outro lado, sinaliza que os métodos

de avaliação da alfabetização (novamente no singular) não são confiáveis,

necessitando uma complexificação (2003, p.35-36). O reconhecimento das

alfabetizações múltiplas, a par da necessidade de complexificar a avaliação,

não foi além das boas intenções. Na prática, acabou desembocando em

testes nacionais e internacionais em larga escala que inverteram o processo:

em vez da avaliação subsidiar a investigação dos processos de

aprendizagem; o ensino e a pretendida aprendizagem passaram a se pautar

pela matriz estreita dos testes em larga escala.

Esse retorno a testes pretensamente objetivos, capazes de apurar

médias em várias instâncias, mas incapazes de compreender os sujeitos e

suas lógicas, me faz lembrar o tempo em que se aplicava o teste ABC nas

escolas. Como o teste era vendido em papelarias, muitas mães compravam

e treinavam seus filhos em casa para se saírem bem. Eram, assim, bem

classificados, ficavam nas melhores turmas para as quais nunca havia falta

de professora. Astúcia de mães que entendiam o jogo da escola capitalista

onde muitas vezes quem mais precisa é quem menos recebe. Se o teste

ABC pretensamente prognosticava, com muitos discrepâncias, quem já

atingira a maturidade necessária à alfabetização, os testes de agora, do tipo

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provinha Brasil e assemelhados, se pretendem capazes de aferir

objetivamente os resultados ao final de dois anos de escolaridade. São

talhados a perfeição para alardear que o investimento feito gerou

resultados “comprovados”. Servem também para justificar a “eficácia” da

opção por novos gestores da educação, que não são poetas como Cecilia

Meirelles, nem antropólogos como Darcy Ribeiro e nem educadores como

Anísio Teixeira e Paulo Freire. São técnicos que lidam com pessoas como

se fossem números, que administram a educação como se fosse empresa,

que acenam com gratificações como se fossem cenouras para atrair

docentes como se fossem coelhos.

Enquanto isso, parcerias entre governo e sociedade civil,

estimuladas no documento da UNESCO/MEC, vêm crescentemente se

proliferando. As Ongs que se multiplicam atendem a objetivos específicos

voltados ora para as artes, ora para os esportes, ora para a sustentabilidade,

ora para a saúde etc, etc, etc. Não vou entrar no mérito da qualidade

discutível de muitas delas, que recebem vultosas doações do Estado,

eximindo-o de tarefas que seriam suas. Mas o fato de trabalharem com

crianças e adolescentes em horários alternativos ao da escola, exime o

Estado de sua responsabilidade com a educação das crianças em tempo

integral nas escolas. Mas, sobretudo, distanciam-se da complementaridade

pensada por Anísio Teixeira entre escolas base e Escola Parque da Bahia, e

da integração entre cultura da escola e cultura da comunidade defendida no

programa dos CIEPs criado por Darcy Ribeiro. O frouxo nexo entre as

escolas e essas ONGs não vai além do controle de assiduidade e da

aprovação, o que não basta para transformar a escola que temos. Mais um

retrocesso.

Recentemente dados do Ideb-2911 revelaram discreta melhora de 0,4

pontos nos anos iniciais do ensino fundamental e um discretíssimo avanço

de 0,1 nos anos subsequentes e no ensino médio. Tudo dosado e medido

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com parâmetros genéricos de aferição de avanços, em que ecoam uma

antiga brincadeira infantil: - Mamãe posso ir? – Pode. _ Quantos pontos? –

Menos que meio de formiguinha. O quadro torna-se ainda mais

preocupante, se levarmos em conta que as dificuldades de leitura e escrita

se estendem pelo ensino fundamental, atravessam o ensino médio e

chegam mesmo à universidade. Evidência de que os testes não vão além de

simulacros, enquanto a educação brasileira continua derrapando no que é

essencial.

Diante disso, denúncias suficientemente alardeadas pela imprensa,

sinalizam que, vencido o problema de metas quantitativas, permanece o

desafio de uma educação de qualidade para todos. Jornais estampam

manchetes anunciando problemas crescentes para a economia brasileira

por falta de profissionais com formação adequada. Já vem sendo

recrutados estrangeiros para atender as demandas de mão de obra

qualificada que o modelo educacional que temos não consegue atender.

Temos uma escola que não atende à formação humana e sequer responde

às demandas ditadas pela economia no século XXI. Segundo José Pastorevi:

O mundo do trabalho não quer apenas canudo, apenas

diploma. A escola de hoje ensina, na melhor das

hipóteses, a passar no exame. Não ensina a pensar. E o

trabalho moderno exige o pensamento. Nós vivemos

numa sociedade do conhecimento em que se demanda

muito mais neurônio do que músculo.

Ou seja, em se tratando de educação popular, quando se consegue

ensinar o código, não se consegue avançar em direção à educação de

qualidade. Aliás, temo que se desabilitem atividades leitoras em que o

cérebro humano se aplica desde o nascimento, para desenvolver

competências cognitivas que permitem aos bebês ler o mundo, imaginar e

pensar, processar e incorporar a linguagem oral sem que esta lhes seja

formalmente ensinada.

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O que constatei, em quase cinco décadas, tanto como professora que

se foi construindo professora-pesquisadora, quanto como pesquisadora-

professora, é que a alfabetização é crucial para a permanência das crianças

de classes populares na escola. Para mim, discutir alfabetização em

qualquer tempo e espaço, pressupõe necessariamente articulá-la à questão

maior da leitura e da formação de leitores críticos. Essa é a bandeira que

abraço desde longa data, sobretudo a partir do final da década de 1980,

quando integrei o grupo de sete professoras de língua portuguesa que,

lideradas por Luzia de Maria, se responsabilizaram por uma ação pioneira:

o lançamento do jornal-revista PRAvaLER, sob o seguinte lema: “Educar

para a leitura, ler para educar”.

O primeiro artigo que escrevi para esse jornal, há quase 25 anos, já

trazia minha preocupação maior em seu título: “Alfabetização – onde a

escola se reprova?”. O texto problematizava a precariedade de nosso

sistema escolar, incompetente não só para alfabetizar todas as crianças –

nenhuma a menos, como também para conseguir alfabetizar, formando

leitores.

Não por acaso, o saldo minimamente positivo da Década da

Alfabetização, a meu ver, diz respeito ao objetivo de promover, nas

escolas e nas comunidades, um ambiente que propicie os usos da

alfabetização e uma cultura de leitura. Pelo menos, a importância da

leitura tem sido difundida na mídia e nas mensagens publicitárias

institucionais. Nesse cenário a FLIP chega à sua décima edição, as bienais

do livro vêm tendo vendas recordes e minifeiras de livros já acontecem em

escolas. Tudo isso é muito bom e tem produzido boas respostas de um

público que dispõe de poder aquisitivo para colocar livros em sua cesta

básica.

No entanto, como construir uma cultura de leitura, tenda onde

entrem todos, se falta uma alfabetização popular que se abra efetivamente

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ao prazer da leitura, que instigue ao prazer de se emocionar, de sonhar e

de conhecer? Como construir uma cultura de leitura se ainda é quase uma

exceção um trabalho que se inicie em sala de aula e se distenda nas

bibliotecas das escolas? Ou como fazê-lo, quando não se tem uma política

de leitura capaz disseminar livros acessíveis como artigos de primeira

necessidade para todos? O problema é que as classes populares só contam

com as escolas. Estas, muitas vezes, são induzidas a treinar estudantes para

aparecerem em programas de TV para soletrar, quando o que há de mais

importante é a leitura, a produção escrita e o poder de dizer sua palavra.

Por certo, uma cultura de leitura não se improvisa. Construí-la é um

desafio das escolas e das famílias, das políticas públicas e do país, com

vistas à construção da sociedade aprendente que o século XXI está

exigindo, para além da Década da Alfabetização. Entendo que uma cultura

da leitura abre horizontes, indo ao encontro de uma educação

emancipatória em prol de uma sociedade que se descolonize cada vez mais

como fala Freire, na epígrafe com que abri esse texto. E desse modo,

possamos confirmar as palavras esperançosas de Darcy Ribeiro:

Estamosnosconstruindo na luta para florescer

amanhã como uma novacivilização, mestiçae

tropical, orgulhosadesimesma. Mais alegre, porque

maissofrida. Melhor, porqueincorporaemsimais

humanidades. Maisgenerosa,porqueaberta à

convivência com todas as raças e todas as

culturas... (Ribeiro, 1995, 455)

Mas para nos mobilizarmos em direção a esse belo horizonte de

futuro anunciado por Darcy, um movimento coletivo de indignação, contra

os retrocessos na educação popular, mas não só, se faz mais do que

necessário, se faz urgente.

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i Ver Carta Capital de 21/08/2012 – Brasil 4º. país mais desigual da América Latina ii O referido documento, publicado no Brasil em maio de 2003 em parceria UNESCO/MEC,

materializa a proposta Década da Alfabetização das Nações Unidas aprovada na 54ª Sessão da

Assembleia-Geral da ONU, por meio da sua Resolução A/RES/54/122 e efetivamente lançada na 56ª.

Sessão da Assembleia-Geral da ONU realizada dia 3 de fevereiro de 2003. iii Este é o título que consta da ficha catalográfica. Porém, capa o título vem com todas as

palavras escritas sem espaço entre elas. iv O termo analfabeto letrado foi cunhado por Magda Soares e se aplica a quem, mesmo não

sabendo ler formalmente, convive a seu modo com práticas sociais de leitura e escrita. Prefiro empregá-lo

a classificar o sujeito da pesquisa realizada por mim como um caso típico do alfabetismo funcional, por

considerá-lo um leitor que vai além, pela leitura crítica e criativa que faz. v Boaventura de Souza Santos denuncia que a racionalidade ocidental reduz a riqueza do mundo,

recorrendo a cinco monoculturas como maneiras de produzir a ausência do que difere de sua matriz: a

monocultura do saber e do rigor, a monocultura do tempo linear, a monocultura da naturalização das

diferenças, a monocultura da escala dominante e a monocultura do produtivismo capitalista. Ver obra

sitada os 29-31. vi Ver entre outras a matéria de 15/8/2012 em O Globo: Dificuldade de encontrar mão de obra qualificada

afeta economia brasileira