o que e a teoria do reconhecimento[luiz philipe de caux e julia valente]

3
O QUE É A TEORIA DO RECONHECIMENTO? por Júlia Leite Valente e Luiz Philipe De Caux O conceito de reconhecimento ganhou status filosófico a partir da obra de G.W.F. Hegel, tornando-se célebre com a passagem sobre a Dialética do Senhor e do Escravo na Fenomenologia do Espírito. Mas é principalmente de sua obra anterior à Fenomenologia, dos ditos “escritos de Jena” (isto é, do período em que Hegel residia e lecionava em Jena, de 1801 a 1806), que vêm as idéias reatualizadas contemporaneamente e reintroduzidas no debate filosófico e das ciências sociais e políticas. Assim, a palavra reconhecimento é a tradução do alemão Anerkennung. É importante ter isso em mente, pois Anerkennung tem um sentido mais estrito do que o português reconhecimento. “Podemos dizer que o conceito filosófico de reconhecimento não significa simplesmente a identificação cognitiva de uma pessoa, mas sim, tendo esse ato como premissa, a atribuição de um valor positivo a essa pessoa, algo próximo do que entendemos por respeito”, explicam Bethânia Assy e João Feres Júnior (2006, p. 705). Paul Ricoeur (2006), no entanto, entra na discussão do reconhecimento justamente para ressaltar a “polissemia regrada” do termo (reconaissance, no francês), cuja amplitude semântica vai da simples identificação até a gratidão. Em 1992 surgem duas obras que marcam a atual reformulação de uma teoria do reconhecimento: o ensaio “The Politics of Recognition”, do canadense Charles Taylor (1994) e o livro “Luta por Reconhecimento”, do alemão Axel Honneth (2009). Taylor chama a atenção para a importância do conceito de reconhecimento para compreender uma série de conflitos e demandas do nosso mundo, como nos casos de movimentos nacionalistas, dos conflitos culturais e religiosos, das causas feministas, das minorias políticas. Sua tese é de que “nossa identidade é em parte formada pelo reconhecimento ou pela falta dele, e muitas vezes pelo reconhecimento errôneo (misrecognition) por parte dos outros, e assim uma pessoa ou grupo de pessoas pode sofrer um dano real, uma distorção real, se as pessoas ou a sociedade em torno lhe espelharem em retorno uma imagem limitada, aviltante ou desprezível dela própria” (TAYLOR, 2009, p. 25, tradução nossa). Por isso, “o devido reconhecimento não é apenas uma cortesia que nós devemos às pessoas. É Programa Pólos de Cidadania Faculdade de Direito | UFMG Av. João Pinheiro, 100 | Prédio 1 | 6o andar 31.3409.8676 [email protected]

Upload: andrea-vaz

Post on 27-Dec-2015

28 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

Teoria do reconhecimento

TRANSCRIPT

Page 1: O Que e a Teoria Do Reconhecimento[Luiz Philipe de Caux e Julia Valente]

O QUE É A TEORIA DO RECONHECIMENTO?por Júlia Leite Valente e Luiz Philipe De Caux

O conceito de reconhecimento ganhou status filosófico a partir da obra de G.W.F. Hegel,

tornando-se célebre com a passagem sobre a Dialética do Senhor e do Escravo na Fenomenologia do

Espírito. Mas é principalmente de sua obra anterior à Fenomenologia, dos ditos “escritos de Jena” (isto

é, do período em que Hegel residia e lecionava em Jena, de 1801 a 1806), que vêm as idéias

reatualizadas contemporaneamente e reintroduzidas no debate filosófico e das ciências sociais e

políticas.

Assim, a palavra reconhecimento é a tradução do alemão Anerkennung. É importante ter isso

em mente, pois Anerkennung tem um sentido mais estrito do que o português reconhecimento.

“Podemos dizer que o conceito filosófico de reconhecimento não significa simplesmente a

identificação cognitiva de uma pessoa, mas sim, tendo esse ato como premissa, a atribuição de um valor

positivo a essa pessoa, algo próximo do que entendemos por respeito”, explicam Bethânia Assy e João

Feres Júnior (2006, p. 705). Paul Ricoeur (2006), no entanto, entra na discussão do reconhecimento

justamente para ressaltar a “polissemia regrada” do termo (reconaissance, no francês), cuja amplitude

semântica vai da simples identificação até a gratidão.

Em 1992 surgem duas obras que marcam a atual reformulação de uma teoria do

reconhecimento: o ensaio “The Politics of Recognition”, do canadense Charles Taylor (1994) e o livro

“Luta por Reconhecimento”, do alemão Axel Honneth (2009).

Taylor chama a atenção para a importância do conceito de reconhecimento para compreender

uma série de conflitos e demandas do nosso mundo, como nos casos de movimentos nacionalistas, dos

conflitos culturais e religiosos, das causas feministas, das minorias políticas. Sua tese é de que “nossa

identidade é em parte formada pelo reconhecimento ou pela falta dele, e muitas vezes pelo

reconhecimento errôneo (misrecognition) por parte dos outros, e assim uma pessoa ou grupo de pessoas

pode sofrer um dano real, uma distorção real, se as pessoas ou a sociedade em torno lhe espelharem em

retorno uma imagem limitada, aviltante ou desprezível dela própria” (TAYLOR, 2009, p. 25, tradução

nossa). Por isso, “o devido reconhecimento não é apenas uma cortesia que nós devemos às pessoas. É

Programa Pólos de Cidadania

Faculdade de Direito | UFMG

Av. João Pinheiro, 100 | Prédio 1 | 6o andar

31.3409.8676

[email protected]

Page 2: O Que e a Teoria Do Reconhecimento[Luiz Philipe de Caux e Julia Valente]

uma necessidade humana vital” (ibid, p. 26).

“Luta por Reconhecimento”, de Axel Honneth, é a principal sistematização de uma teoria do

reconhecimento. Honneth, ao contrário de Taylor, não simplesmente aplica uma definição acabada de

reconhecimento aos fenômenos políticos, mas busca fundamentar solidamente, a partir dos escritos do

jovem Hegel, a idéia de que é a luta por reconhecimento (e não a luta por autoconservação, como

sustenta toda a filosofia social moderna, de matriz maquiaveliana-hobbesiana) que constitui, como diz

o subtítulo de sua obra, a “gramática dos conflitos sociais”, uma gramática não utilitarista, mas moral.

Este é o grande avanço teórico da obra de Honneth: retirando da obra de Hegel todo elemento

transcendental a partir de sua conjugação com a imanência da psicologia social de G.H. Mead, Honneth

constrói a hipótese fundamental de que a experiência do desrespeito (isto é, de não-reconhecimento) “é

a fonte emotiva e cognitiva de resistência social e de levantes coletivos” (HONNETH, 2009, p. 227).

Assim, deve-se entender a luta social como “o processo prático no qual experiências individuais de

desrespeito são interpretadas como experiências cruciais típicas de um grupo inteiro, de forma que elas

podem influir, como motivos diretores da ação, na exigência coletiva por relações ampliadas de

reconhecimento” (HONNETH, 2009, p. 257). As lutas por reconhecimento ganham a dimensão de

fundamento dos avanços normativos sociais.

Honneth propõe, com Hegel, uma tipologia progressiva de formas de reconhecimento: amor,

direito e solidariedade. A esfera do amor permite ao indivíduo uma confiança em si mesmo,

indispensável para os seus projetos de auto-realização pessoal; na esfera jurídica, a pessoa individual é

reconhecida como autônoma e moralmente imputável, desenvolvendo uma relação de auto-respeito; na

esfera da solidariedade, a pessoa é reconhecida como digna de estima social. A esses três padrões de

reconhecimento intersubjetivo correspondem três maneiras de desrespeito: a violação, a privação de

direitos e a degradação, respectivamente. É em resistência a essas formas de não-reconhecimento que

se desencadeiam os conflitos sociais, tendo por resultado sua paulatina superação.

As últimas contribuições significativas ao debate foram de Nancy Fraser (2003), filósofa

política americana. A autora problematiza a diferença entre lutas por redistribuição e lutas por

reconhecimento – aquelas motivadas pela desigualdade de classe social e estas pela subordinação de

status – considerando a luta por reconhecimento uma resposta genuinamente emancipatória para

Programa Pólos de Cidadania

Faculdade de Direito | UFMG

Av. João Pinheiro, 100 | Prédio 1 | 6o andar

31.3409.8676

[email protected]

Page 3: O Que e a Teoria Do Reconhecimento[Luiz Philipe de Caux e Julia Valente]

Programa Pólos de Cidadania

Faculdade de Direito | UFMG

Av. João Pinheiro, 100 | Prédio 1 | 6o andar

31.3409.8676

[email protected]

algumas questões de injustiça social, mas não para todas. Fraser propõe uma concepção de justiça que

integre essas duas dimensões, ao que Honneth (2003) responde que o conceito de reconhecimento, se

bem compreendido, já é capaz de acomodar as demandas por redistribuição econômica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSY, Bethânia; FERES JÚNIOR, João. Reconhecimento. In: BARRETTO, Vicente de Paulo

(coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribution or recognition?: a political- philosophical

exchange. London: Verso, 2003.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. São

Paulo: Ed. 34, 2009.

RICOEUR, Paul. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006.

TAYLOR, Charles. The politics of recognition. In: GUTMANN, Amy (Ed.). Multiculturalism:

Examining the politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994. p. 25-73.