o que é a montagem num filme

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    EPOIMENTO

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    O que a montagem

    num filme?Mirella MartinelliTrabalha em cinema desde 1982. montadora, editora de som, roteirista, diretora, produtorae professora. Em 1997, foi premiada pela American Cinema Editors Association, em Hollywood.E-mail: [email protected]

    Meu interesse por fazer cinema surgiu na adolescncia, no final dos anos1970, quando eu ia ao cinema de trs a quatro vezes por semana. Estudava no

    Colgio Equipe, que naquela poca se localizava no bairro do Bexiga. O cineBijou, na praa Roosevelt, fechava os olhos para o fato de que no tnhamosainda 18 anos, e admitia a ns, colegiais de 15, 16 e 17 anos, em qualquer umade suas duas salinhas onde maravilhas do cinema eram apresentadas. Saamosda aula e amos s sesses vespertinas assistir a prolas como O stimo selo1, Gritose sussurros 2, Roma, cidade aberta3, Repulsa ao sexo4, Easy rider5, Tempos modernos6,e outros filmes que marcaram nossa viso de mundo e fazem parte da minhaformao como cineasta.

    O stimo selo, Gritos e sussurros, Roma, cidade aberta, Repulsa ao sexo, Easy rider, Tempos modernos: filmes

    que marcaram poca.

    1. O STIMO selo (DetSjunde Inseglet). Direo:Ingmar Bergman. Sucia,1956. (100 min.)

    2. GRITOS e sussurros(Viskningar Och Rop). Di-reo: Ingmar Bergman.Sucia, 1972. (90 min.)

    3. ROMA, cidade aberta(Citt Aperta). Direo:

    Roberto Rossellini. Itlia,1945. (98 min.)

    4. REPULSA ao sexo (Re- pulsion). Direo: RomanPolanski. Inglaterra, 1965.(105 min.)

    5. EASY rider (Sem des-t ino ) . Direo : Denn isHopper. Estados Unidos,1969 (95 min.)

    6 . TEMPOS modernos(Modern times). Direo:Charles Chaplin. EstadosUnidos, 1936. (87 min.)

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    Naquela poca, tambm eram organizadas sesses de cinema no Equipe,onde cheguei a ver Tambm no se matam cavalos? 7 e talvez tenha sido l aoento proibido Encouraado Potemkim 8. O cinema era consistente. Os efeitos

    especiais, quando chegavam a existir, no importavam. O que importava era odrama humano e social.

    Decidi prestar vestibular para Cinema. Eu tambm queria me expressar,dizer coisas atravs da sucesso de imagens, de cenas, por meio do drama de personagens fictcios. Entrei na ECA9 e logo me interessei por montagem.

    Mas que isso: montagem?Quando assistimos a um filme, comum reparar na histria, nos atores

    e na fotografia; afinal, o que est mais em evidncia. At mesmo na direono se repara muito, talvez por ser difcil, para quem no profissional darea, delimitar o que a direo num filme. Montagem, ento, nem se fala!

    A maioria das pessoas, at os cinfilos, no tem l muita idia do que sejamontagem. E por que teriam? mesmo uma idia um pouco abstrata. Masa montagem influencia tanto no resultado final de um filme, que , de fato,interessante conhecer essa atividade.

    At hoje, 22 anos depois que comecei a montar, engraado como aindaembatuco quando as pessoas perguntam minha profisso. Sou montadora. Emgeral me olham com cara de ponto de interrogao. De cinema..., acrescento,na esperana de no parecer que trabalho numa fbrica que monta carros oualgo assim. Da passam a achar que sou a produtora, quem monta aquelecirco todo para o diretor filmar. No. Montagem ... meio parecido com ser

    editora... de vdeo, sabe?. mais ou menos isso. Talvez a idia mais prxima montagem que pessoas de outras reas possam ter seja o conceito de edio.Ento vamos comear por a.

    O dicionrio Houaiss10 tem uma definio boa de edio no contexto decinema, rdio e televiso: Seleo e coordenao de materiais filmados ougravados para elaborao de um filme ou programa. Para montagem, o mesmodicionrio diz: Processo pelo qual o montador seleciona as cenas de umafilmagem, aps o seu trmino, unindo-as em seqncia para formar um filme.O interessante que, apesar de eu preferir me denominar montadora (do queeditora) e depois explico o porqu , a definio de edio do Houaiss a

    que mais se aproxima do trabalho dos montadores de cinema. Isto porque ostermos coordenao e materiais filmados ou gravados esto presentes na definio.J a explicao do mesmo dicionrio para montagem peca por falar em seleode cenas e unir em seqncia. Essa diferena fundamental.

    Quando falamos em materiais filmados ou gravados, queremos dizer tudo oque foi captado de imagem e som. Pode ser apenas um segundo, at um foto-grama de imagem (a unidade mnima do material filmado: uma das 24 fotosque a cmera de cinema bate por segundo); pode ser apenas um som, umafrase preciosa de algum depoente, uma nota musical que se estende ao finalde uma msica gravada ao vivo, o rudo de um colcho de molas velho queguincha quando algum senta nele... Tudo isso material para o montador.

    7. TAMBM no se matamcavalos? / A noite dosdesesperados (The shoothorses / They shoot hor-ses, dont they?). Direo:

    Sydney Pollack. EstadosUnidos, 1969. (120 min.)

    8. ENCOURAADO Po-temkim (Bronenosets Po-tyomkin). Direo: SergeiEisenstein. Rssia, 1925.(74 min.)

    9. Escola de Comunica-es e Artes da Universi-dade de So Paulo.

    10. HOUAISS, Antonio.Dicionrio Houaiss da Ln-gua Portuguesa. Rio deJaneiro: Objetiva, 2004.

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    No trabalhamos apenas com a cena: alis, ns, montadores, que construmosas cenas.

    Quando falamos em unir em seqncia, pode parecer que o montador

    apenas pe na ordem o material filmado. Fazemos isso tambm, mas se pen-sarmos em coordenar os materiais, ns nos aproximaremos mais da idia doque a montagem realmente faz.

    Para dar um breve exemplo, cito um filmeficcional que montei recentemente: Contra todos11dirigido por Roberto Moreira. Apesar de o roteirooriginal ter muitas virtudes no tocante densidadeque conferia aos personagens e, pelo desenrolarda trama, no desvendar de seres mais profundos portrs de mscaras sociais , havia uma ordem em

    que a histria era contada que julgamos no fun-cionar quando o filme teve sua primeira montagem(primeiro corte). Assim, mudamos radicalmente aordem em que as cenas seriam apresentadas aoespectador, indicamos as que seriam suprimidase at quais precisavam ainda ser filmadas paraque o filme chegasse forma final.

    A montagem coordenou as cenas e planos di-ferentemente do previsto no roteiro. um exemplode como a ordem de apresent-los, mesmo havendo

    histria fatos que se sucedem, que causam con-seqncias, que geram outros fatos e reaes nos personagens , mudou radicalmentena montagem e o filme ganhou outro ritmo, deu outra compreenso a determinados personagens e aes, causando nos espectadores impacto diferente do que seria se aordem do roteiro tivesse sido obedecida mais fielmente.

    Quando fazemos a montagem de um documentrio, essa liberdade decoordenao praticamente ilimitada.

    Proponho ao leitor entender como se d o trabalho de montar para que posteriormente possa assistir a um filme conseguindo enxergar nele a monta-gem. Para tal preciso esclarecer trs pontos bsicos:

    1) O que um planoEntende-se por plano a imagem captada desde o momento em que a cmera

    ligada e comea a filmar, at ser desligada. Assim, por exemplo, o rosto de FernandaMontenegro em Central do Brasil 12, olhando para o menino que est a seu lado nobanco do nibus, um plano um trecho do plano filmado originalmente. O rosto domenino ocupando a cena enquanto ele pede a ela que escreva uma carta outro planopode ser um close. Quando vemos um ladro correr para fora do prdio da estaojunto aos trilhos de trem, temos um plano geral da estao. Todos esses planos foram

    filmados em disparos de cmera separados, e, em geral, muito mais longos do que o

    Pster de divulgao do filmeContra todos.

    11. CONTRA todos. Di-reo: Roberto Moreira.Montagem: Mirella Mar-tinelli. Brasil, 2004. (95min.). Site oficial: .

    12. CENTRAL do Brasil.Direo: Walter Salles.Brasil, 1998. (112 min.).

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    trecho que acaba por ficar na montagemfinal do filme.

    Take (ou tomada) a palavra que

    usamos para designar a repetio do mes-mo plano para uma melhor interpretaodo ator, ou melhor movimento de cmera,ou qualquer motivo pelo qual o diretorno considerou o primeiro take bom. rarssimo que num filme de fico se faaapenas um take de um plano. Geralmente

    h, no mnimo, trs, mas pode haver sete, dez ou quantos o diretor achar necessrio para obter um resultado satisfatrio.

    2) O que uma cena ou seqncia uma situao que ocorre num espao e num tempo determinados. Por exemplo,

    a cena em A cor do paraso13 (filme iraniano espetacular; se no viu, pegue na loca-dora!) em que o pai busca seu filho cego na escola. O pai observa o filho de longe,hesita em se aproximar. Finalmente seaproxima e os dois se tocam. Vo em- bora juntos. Na cena seguinte, os dois personagens so vistos caminhando narua. Como o espao j outro, outra

    a cena (no caso, a cena da rua umacena de passagem, pois no se desenrolaao dramtica). Podemos tambm vero personagem em seu quarto, luz dodia, arrumando seu armrio. Novo corte,para o mesmo quarto: noite, personagemdormindo j outra cena, pois houve passagem de tempo.

    3) Um filme no filmado na ordem da histria

    No filme Central do Brasil, vemos a personagem Dora (interpretada porFernanda Montenegro) na estao de trem diversas vezes. E algumas vezes emseu apartamento. Geralmente, por razes de praticidade, tudo o que se passana estao seria filmado num bloco consecutivo de dias e, tudo o que se pas-sa no apartamento, em outro bloco de dirias de filmagem, depois ordenadosna montagem.

    A montagem passo a passo

    Exemplo de um plano no filme Central do Brasil.

    A cor do paraso.

    13. A COR do paraso(Rang-e Khoda). Direo:Majid Majidi. Ir, 1999.(90 min.)

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    Uma vez compreendido isso, podemos entender quais so as tarefas damontagem, olhando para a atividade de forma mais ou menos cronolgica. Amontagem comea quando o montador recebe o material filmado. A quantidade

    de material varia muito. Desde dez, 20 horas do que chamamos de material bruto para um longa filmado em pelcula (material caro, pois so rolos de filme deemulso de sais de prata que precisam ser revelados em laboratrio), at 50,100 horas de material bruto; ou at mais, quando se trata de filme que utilizouo vdeo como suporte de captao (fitas de vdeo so incomparavelmente mais baratas que rolos de filme).

    Atualmente, vrios filmes, principalmente documentrios, usam uma misturados dois materiais. Podem ser filmadas determinadas imagens com pelcula, eas entrevistas gravadas em vdeo, por exemplo. Da j d para ter alguma idiade quo determinante o trabalho da montagem.

    Minha ltima experincia de montagem de longa documental foi o filmeExtremo Sul 14, de Mnica Schmiedt e Sylvestre Campe. Tnhamos 100 horas dematerial bruto para montar um produto final de 90 minutos. Seleo uma parte importante de nossa atividade.

    O advento da montagem digital j tem uns dez anos no Brasil. Em 1995,montei meu longa Terra do mar15 fazendo uso da tecnologia digital. Foi umdos primeiros filmes no Brasil a ser completado sem um copio 16 em pelcula.O negativo foi montado diretamente a partir de uma lista de cortes fornecida pelo software de edio. Hoje, quase todos os filmes so montados inteiramenteno computador e s so feitas cpias em pelcula para a distribuio comercial

    em cinemas. Assim, o material que o montador recebe est em fitas de vdeodigital que sero capturadas para os hard discs do computador (ou HDs exter-nos), trabalho feito pelo assistente de montagem. Ao ser capturado, o materialser organizado da forma que o montador solicitar.

    Quando se trata de um filme ficcional, prefiro a organizao por seqn-cias (ou cenas), isto , cada cena tem sua pasta com todos os planos referentesquela seqncia. Quando se trata de um documentrio, a varia muito. Mas,geralmente, a preferncia a organizao por assuntos. Exemplo de Terra domar: pasta com todos os planos referentes pesca feita em alto-mar; pasta dos planos da Lua; pasta dos planos de captura de caranguejo no mangue etc.Moviola: mquina utilizada para o seqenciamento dos planos em pelcula antes do advento da montagem digital.

    O material tem de ser ordenado de alguma forma. Quando a montagem ainda

    era feita em pelcula, naquela mquina cheia de rodas dentadas chamada moviola,

    14. EXTREMO Sul. Docu-mentrio. Direo: MnicaSchmiedt e Sylvestre Cam-

    pe. Montagem: Mirella

    Martinelli e Kiko Ferraz.Brasil, 2005. (92 min.). Siteoficial: .

    15. TERRA do mar. Di-reo: Mirella Martinellie Eduardo Caron. Brasil,1997. (81 min.).

    16. Cpia de trabalho dofilme impresso, com ascenas cortadas e unidasna ordem preferida pelomontador. a primeiracpia positiva feita com onegativo de um filme.

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    a ordenao do material era absolutamente imprescindvel, pois este s poderia serassistido se os planos estivessem emendados um aps o outro, em grandes rolosque iam se desenrolando, passando por uma pequena projeo, e se enrolando do

    outro lado da mquina. Hoje, a ordenao no mais obrigatria. Afinal, usando ocomputador, pode-se clicar em qualquer plano e assisti-lo na ordem que bem quiser,instantaneamente. Portanto, a organizao do material bruto vai depender muito doestilo de trabalho de cada montador e do projeto em questo. No caso da montagemde Contra todos, pedi aos assistentes que ordenassem, em cada pasta da seqncia,os planos de acordo com a ordem proposta no roteiro para cada cena, com todos osseus takes.

    No caso de Extremo Sul, eu e meu co-montador ordenamos os planos dentroda pasta de cada assunto simplesmente na ordem que haviam sido filmados. Aordem cronolgica de filmagem, nesse caso especfico, foi importantssima.

    um filme documental sobre uma expedio de alpinistas, e o desenrolar dosfatos, de acordo com a passagem dos dias e os eventos da natureza, foi espe-cialmente determinante no projeto.

    A ARTE DA HISTRIAAgora que a porca torce o rabo. E que o negcio comea a ficar interessante

    tambm. Porque at ento falamos mais de tcnica. Aqui comea a arte.O que fazer depois que o material bruto est captado e ordenado depende

    da particularidade de cada projeto e do jeito de trabalhar de cada montador

    e de cada diretor. A dupla montadordiretor precisa ter uma boa afinidade econcordar com mtodos de trabalho. Como cada caso to nico e particular,s posso continuar por via de exemplos. Utilizarei os mesmos at aqui: Contratodos e Extremo Sul por serem dois longas-metragens recentes (2004 e 2005,respectivamente), ambos muito competentes (portanto, bons filmes para oleitor mais interessado assistir e ento visualizar melhor a explanao) e bas-tante diferentes entre si, a comear pelo fato de o primeiro ser uma fico eo segundo, um documentrio.

    Em Contra todos, o diretor Roberto Moreira e eu optamos por escolher, jun-tos, quais os melhores takes a serem utilizados. Assim, assistamos cena com-

    pleta, com todos os planos e todos os takes, na ordem do desenrolar da aoe, juntos, selecionvamos a melhor interpretao. Contra todos um filme commuito movimento de cmera, principal-mente de cmera na mo; raros so osplanos de cmera fixa no trip. Assim,o movimento tambm era observado,mas nossa escolha se pautou muitomais pela excelncia da interpretaodo que pela eficcia do movimento.Dois motivos foram preponderantes:nesse filme, a interpretao realistaCena do filme Contra todos.

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    (rara nos filmes brasileiros at ento) foi muito buscada e conseguida magistralmente por meio de vrios trabalhos com os atores. Escolher o take onde se pudesse crertotalmente na veracidade daquele personagem era fundamental para dar continuidade

    a esse esforo de direo para o naturalismo; o outro fato foi que a cmera (operadapor Adrian Cooper) estava, via de regra, excelente, de forma que tivemos a liberdadede escolher os takes cuja interpretao mais gostvamos.

    Depois da seleo, Roberto me deixava s para que eu fizesse as propostase voltava dali alguns dias para ver as cenas montadas. O que quer dizer cenasmontadas? Eu escolhia o ponto de corte, isto , at que momento usaria um planoe a partir de qual utilizaria outro. Temos, por exemplo, a cena de Teodoro eWaldomiro conversando no carro. Quando vou usar Teodoro falando e em quemomento passo a mostrar Waldomiro ouvindo? Quando mais importante quea fala seja dita na tela pelo personagem e quando a reao do ouvinte mais

    importante de estar sendo observada? Quando o momento de usar um planono qual os dois apaream juntos? Alm do dilogo, que outras aes me pau-tam para essas escolhas? Quando prefervel usar um plano bem fechado, quemostre s os olhos do personagem, e quando melhor mostrar seu rosto todo?Em que momento revelar onde est esse carro (plano geral) e o movimentoque ocorre do lado de fora? Quando interromper essa cena do filme, cortando para outra? Ou, ser que, em vez de cortar, fao uma fade-out (escurecimento) para terminar a cena? Esses so alguns exemplos das inmeras possibilidadesque a montagem oferece.

    Como utilizamos a montagem digital, posso fazer mais de uma opo (oque no era possvel na montagem em pelcula, que exigia que se desmontasse

    uma opo para montar outra, uma vez que os cortes eram feitos de formafsica sobre os planos). No caso de Contra todos, tinha sempre pelo menos duasopes para mostrar ao diretor quando ele voltava sala de montagem. Eleescolhia uma ou crivamos outra montagem a partir de meus primeiros estudose com as observaes dele. Assim, fomos trabalhando as cenas e montando ofilme em sua primeira ordem, o que chamamos de primeiro corte. Em Contratodos, o primeiro corte tinha duas horas e meia de durao.

    Em um documentrio, as coisas so bem mais complexas. Em Extremo Sul,a primeira verso do filme vamos dizer assim tinha trs horas e meia e preferi cham-la de estrutura. Como sabemos que as palavras tm, sim, grande

    importncia, explico o porqu. Fazer documentrio uma caixinha de surpresas. No sabemos se aquilo que nos propomos a documentar vai acontecer mais oumenos de acordo com o previsto. No caso de Extremo Sul, no aconteceu. O ro-teiro de filmagem foi seguido bastante fielmente durante o comeo da expediodos cinco alpinistas que estavam sendo documentados ao realizar uma expedi-o para tentar atingir o cume de uma montanha gelada na Terra do Fogo17.

    Porm, quando o grupo deixou o continente, atravessou o estreito de Ma-galhes e acampou na ilha Grande, na Terra do Fogo, as coisas se modificaram.A natureza humana trouxe surpresas que os documentaristas se esforaram porcaptar da melhor forma possvel. Mas, longe de ser o previsto, quando fui con-vidada a montar o filme, a diretora me disse: No sei se tenho um filme a.

    17. A Terra do Fogo um arquiplago na extre-midade Sul da Amricado Sul, formado por umailha principal e um grupode ilhas menores. Est se-

    parado do continente peloest re i to de Magalhes .Em 1881, o territrio foidividido entre a Argentinae o Chile. A montanhaescolhida pelos alpinistas o monte Sarmiento efica no territrio do Chile,entre os oceanos Atlnticoe Pacfico.

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    J d para perceber, caro leitor, que em Extremo Sul meu papel foi radicalmentediferente de em Contra todos?

    Fiz o visionamento do material bruto de Extremo Sul em fitas de VHS e se-

    guiram-se dias de reunies das quais participaram eu, meu colega co-montador,Kiko Ferraz, os dois diretores do filme, Mnica Schmiedt e Sylvestre Campe, eo roteirista (que havia elaborado o roteiro de filmagem). Tentvamos entendero que havia se passado naquela expedio to conturbada e que filme faramosa esse respeito. Quem era cada um daqueles alpinistas? Por que tinham tomadodeterminadas decises? Um filme que seria de aventura tinha se transformadoem que gnero? Ou no havia mais gnero e, sim, um filme completamenteoriginal, sobre uma situao bizarra? O que era mais importante ressaltar das100 horas filmadas?

    Nessas reunies, sugeri verbalmente uma estrutura que foi pr-aprovada

    pelos diretores como uma tentativa de colocar em p esse filme que ningumtinha muita idia do que seria. Ela consistia em comear a mostrar a expedi-o pela travessia do perigoso estreito de Magalhes, durante a qual seriamapresentados, em flashback, os cinco protagonistas e os motivos que os levarama tentar atingir o cume do monte Sarmiento, uma montanha to difcil e to pouco explorada. Depois, iramos obedecer ordem cronolgica dos aconte-cimentos: montagem do acampamento-base, montagem do acampamento 1 eos fatos que se sucederam at o ltimo dia de expedio.

    Quando Kiko e eu, a ss na sala de montagem, comeamos a trabalharessa primeira estrutura, fomos aos poucos percebendo que no estava bem claro

    para ns o que havia ocorrido em determinadas passagens.Por mais que recorrssemos memria dos que tinham estado presentes naexpedio (a equipe de filmagem), havia muita coisa que eles mesmos no sabiam,quer por estarem em outro acam pamento, quer porque os motivos reais faziam parte

    do mundo interior de cada alpinistae no eram to facilmente reveladosnem para as cmeras, nem para osoutros integrantes da expedio.Mais do que isso, em busca de re-latar aquilo que pudssemos julgar

    mais prximo da verdade do quehavia se passado na montanha, ns,montadores, consideramos que os pontos de vista dos prprios dire-tores poderiam estar contaminadospelos acontecimentos da expedioe nem sempre retratar o lado dosalpinistas. Samos procura de ma-

    teriais filmados que pudessem evidenciar, ou pelo menos indicar, fatos e sentimentosno expressos. A comeou um verdadeiro trabalho de detetive.

    Eu anotava num caderno o que havia se passado desde que o grupo p s

    Equipe de filmagem de Extremo Sul.

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    os ps no sop da montanha, e o que tnhamos de cada dia: material em pelcula filmado pela cmera oficial, material em vdeo filmado pela equipe principal, material em vdeo filmado por um dos alpinistas e, finalmente, o

    making off18.Assim, acabamos por escarafunchar um material que nem seria utilizado

    no filme em si, mas para o material promocional. Tambm vasculhamos mate-riais de dois anos antes da filmagem, quando parte do grupo havia feito umaviagem de reconhecimento montanha.

    Fomos compondo assim nossa idia do que havia se passado l, encontrandofrases muito reveladoras no making off, em depoimentos informais, em reuniesentre alpinistas e equipe de filmagem, nas quais ningum prestou atenoao mocinho que empunhava sua modesta camereta de vdeo, e cujo materialacabou sendo de extrema valia, a despeito de sua baixa qualidade tcnica. Dia

    aps dia, amos avanando, cada vez mais com uma noo bem acurada doque tnhamos para contar, e de coisas que apenas podamos depreender sem poder mostr-las ao espectador, pois no haviam sido gravadas ou filmadas. Nopice da crise ocorrida na expedio, um nico plano de poucos segundos foifilmado pela cmera do alpinista principal: o pano do interior de sua barraca. No grau de imerso em que estvamos naquele material, sabamos muito bemo que aquilo significava, mas como contar para o espectador sem ele ter deassistir a 100 horas de filmagens?

    Outras vezes, literalmente, pulvamos da cadeira e gritvamos, exultantes, quandoencontrvamos prolas, como, por exemplo, um rpido reflexo nos culos espelhadosde um dos alpinistas, que revelava o que havia por trs das cmeras. Este processo

    demorou muito, muito tempo. Meses depois de minha contratao, estvamos prontosa mostrar aos diretores nossa primeira e surpreendente estrutura. Para no deixar pormenos, Kiko comentou que minha montagem da cena final carecia de msica paradar a inteno da emoo desejada. A referncia estava em minha mente. Procuramosna internet a msica que eu achava que ia dar o clima, aplicamos sobre a cena finale assistimos juntos. Kiko se virou para mim e disse: Tu vai fazer a alemoa chorar,referindo-se nossa querida diretora, de descendncia alem. Tentando disfarar aslgrimas que escorriam dos meus olhos, respondi: Que nada... a alemoa no man-teiga derretida como eu. No dia seguinte, eu que pensava que ela era mais dura naqueda, vi para que serve uma caixa de

    leno de papel.

    E DEPOIS QUE O FILMEEST ESTRUTURADO?

    Da muda tudo, claro! Depois queest estruturado o primeiro corte, passamosao segundo corte. Agora, assistindo a umaproposta de filme, fica bem mais fcil veros problemas e aventar as solues.

    No caso de Contra todos, a apresen-

    18 . Filmagem e acompa-nhamento do processo de

    produo e os bastidoresde um filme para o cinemaou outro meio, alm deentrevistas com os artistase diretores.

    O que a montagem num filme? Mirella Martinelli

    Monica Schmiedt, a diretora,durante as filmagens de Exremo Sul.

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    tao do primeiro corte para a produtora do filme (exibida no monitor de TV, com aimagem vinda diretamente do software de edio) veio corroborar uma idia que eutinha desde a leitura do roteiro: era preciso contar aquela histria quase toda em or-

    dem cronolgica, com pequenas excees no fim do filme, diferentemente do propostono roteiro, que era um quebra-cabea para o espectador. Essa coisa de embaralhar ahistria funciona para alguns filmes (como, por exemplo, acho que funciona muito bem em 21 gramas19), mas no caso de Contra todos, dilua a fora e a veracidadede muitas reaes e de muitas motivaes dos personagens. Alm disso, atrasava aapresentao de fatos importantes e adiantava revelaes que levariam o espectadora um pico de emoes muito no incio do filme, que no era o desejado em termosde estrutura dramtica. Assim, o segundo corte de Contra todos mudou a ordem depraticamente todas as cenas, com todas as implicaes dessa mudana. Tambm tira-mos do filme algumas cenas inteiras.

    Em Extremo Sul, no segundo corte decidimos no comear o filme pela travessiade barco, e, sim, por uma etapa anterior da expedio, alm de cortarmos 40 minutos,diminuindo a durao para duas horas e meia. Diversas cenas foram modificadas,tentando buscar sempre maior clareza na exposio dos fatos, bem como recuperaras emoes sentidas a cada etapa da expedio.

    O segundo, terceiro e todos os cortes que se seguem at o final so, na maioriadas vezese aconselhvel faz-lo, acompanhadosde sesses-teste. Algumas pessoas so convidadas aassistir ao filme ainda em montagem. imprescind-vel ouvir a impresso de quem no est em contatocom o material todos os dias, no sabe como aquelahistria vai terminar nem conhece as intenes queorientam a montagem. Com essas sesses, pode-mos perceber que certas coisas que nos pareciam bem explicadas podem estar obscuras e que outrosassuntos esto por demais insistentes aos olhos dosespectadores. Aparece que determinada cena queadoramos chata para a maioria dos outros. Poroutro lado, podemos confirmar que certa cena estsuperemocionante, que o cerne do que queremoscomunicar est sendo realmente transmitido, que o

    ritmo est bom e que ningum dorme na cadeiraetc. Tambm preciso selecionar quem se convida

    para essas sesses e saber ouvir sem o compromisso de satisfazer a gregos e troianos.Se pensarmos nas inmeras possibilidades que esto envolvidas na monta-

    gem, temos sempre a chance de fazer um filme totalmente novo, bem comoapenas mexer em detalhes ou trabalhar num meio-termo. Tudo vai dependerda reao de nossos p blicos-teste e do grau de satisfao que o diretor e omontador sentem com o filme a que esto chegando.

    19. 21 GRAMAS (21 gra-ms). Direo: AlejandroGonzlez-Irritu. EstadosUnidos, 2003. (125 min.).

    Pster de divulgao do filmeExtremo Sul.

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    O CORTE FINAL No Brasil, basicamente, quem tem a palavra final o diretor. Isso tem

    mudado e, cada vez mais, o produtor tem opinado (coisa que tambm j haviaacontecido em pocas passadas, em grandes produes). Na etapa do cortefinal, quando se decide exatamente o tamanho de cada plano (e, s vezes,ficamos a discutir por dois fotogramas, um doze avos de segundo!), se, defini-tivamente, um plano entra ou sai do filme, se o escurecimento ou clareamento de um, dois, trs segundos, dois segundos e meio... e tudo o mais que temde ser decidido. Aps esse corte, no h mais mudanas na imagem: passa-se etapa de edio de som e mixagem.

    O trabalho do dia-a-dia de montagem um trabalho muuuuito solitrio domontador, com mais ou menos visitas do diretor dependendo do estilo decada um e de eventuais projees para o produtor. O montador chega a serum co-diretor, pois a montagem a segunda direo de um filme.

    Agora que o leitor conhece um pouco sobre o que a montagem, se por acasoencontrar meu longa Terra do mar (que sempre exibido na TV Cultura, por exemplo,e pode ser achado em algumas locadoras), imagine que aquele plano da lua cheiacom as nuvens passando na frente poderia estar em qualquer parte do filme. Imagi-ne que eu poderia ter optado por mostrar o mar comendo a terra e acabando comvilarejos no comeo do filme e deixar a pesca do camaro mais para o fim. Imagineque aquele plano filmado da gua, que mostra uma ilha de mangue, poderia ter sidosubstitudo por um outro onde vemos a ilha mais de longe. Ou mais de perto. Queo plano poderia ser mais curto ou mais longo. Que a msica inicial poderia no ter

    letra... e que diferena isso faria no entendimento de todo o filme? Imagine quantasso as opes.

    Para fazer uma idia vaga, pois isso muito varivel, um longa pode ter porvolta de 600 planos (um filme de ritmo mais lento)ou 1.200 planos (ritmo rpido). A cada plano, a cadacorte, a cada cena esto envolvidas vrias decises. Porisso que gosto de me denominar montadora e noeditora. O montador precisa de tempo para assistir comcalma ao material bruto, para experimentar, discutircom o diretor e outros envolvidos, para ir chegando

    pouco a pouco a um corte final. Para mudar toda aestrutura antes pensada, se for o caso. Demorei novemeses montando Extremo Sul. No outro filme, Con-tra todos, a montagem consumiu cinco meses. umtrabalho de pacincia.

    A idia que fao de edio uma coisa maisrpida, mais ligada aos cortes em si, do que a todaa estrutura dramtica de uma histria. Soa para mimcomo algo mais tcnico e prtico. Ser montador fazero filme com o diretor. Montagem, para mim, traz a

    Terra do mar.

    O que a montagem num filme? Mirella Martinelli

  • 8/7/2019 o que a montagem num filme

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    comunicao & educao Ano XI Nmero 1 jan/abr 2006

    noo de compromisso artstico, que o que me levou a fazer Cinema.Agora assista a qualquer longa. Observe os planos. Quando comeam, onde

    terminam. O que vem depois, como se abre o filme, como se fecha uma cena.

    Solte a criatividade e imagine que outros planos ou takes poderiam existir. Queengraado deve ter sido filmar o ator caindo na piscina de terno, e quantosoutros ternos seriam necessrios para fazer outros takes. Observe uma inter- pretao intensa e o seu tempo na tela. Suficiente ou curto, justamente paradar vontade de ver mais? Ou bem longo para o que dramtico se tornarenfadonho? A histria contada de forma linear? Como so as passagens detempo? Se voc conseguir observar algumas dessas coisas, est comeando aver a montagem do filme. Fascinante, no?

    Resumo: Neste depoimento, a montadora Mirella Martinelli conta como surgiu o interesse por fazercinema, ainda na adolescncia. Lembra-se dos clssicos que marcaram sua viso de mundo e de todauma gerao, e que fazem parte de sua formao como cineasta. Foi isso que a levou a desejar seexpressar atravs da sucesso de imagens, de cenas, do drama de personagens fictcios. Descobriuque isso tinha uma funo especfica: a montagem. Mirella nomeia trs pontos bsicos para o leitordesvendar o trabalho do montador: o que um plano, o que uma cena e uma seq ncia e, porltimo, a informao de que um filme no filmado na sua ordem histrica. Tudo para que o leitor

    possa compreender o que um montador pode fazer por um filme. Exemplifica o depoimento comtrabalhos recentes e conhecidos do pblico, como Contra todos, Extremo Sul e Terra do mar.

    Palavras-chave: montagem, imagens, cinema, produo.

    Abstract: In this testimony, editor Mirella Mar-tinelli tells how emerged her interest on cinema

    still in her adolescence. She remembers classicmovies which determined hers and of all hergeneration vision of world. These movies are

    part of her formation as a cinematographer andtook her to wish to express herself trough im-ages succession, scenes and drama of fictionalcharacters. She found out that there was aspecific function for these: film editor. Mirella

    presents the reader three major points in edi-tor job: what is a plan, what is a scene anda sequence, and, at last, the information thata movie is not shoot in its final order. These

    pieces of information are important so thatthe reader should be able to understand editor

    job in a movie. She illustrates her testimonywith examples of three recent and well-knownworks of her: Contra todos, Extremo Sul andTerra do mar.

    Keywords: editor, images, movies, produc-tion.