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III Semana de Ciência Política Universidade Federal de São Carlos 27 a 29 de abril de 2015 O QUÃO SINGULAR É O PROCESSO CONSTITUINTE BRASILEIRO DE 1987-88? Lucas N. F. Costa 1 RESUMO: A elaboração de novas constituições é registrada pela literatura como um momento de intensa mudança institucional, em geral, precedida por crises de grande magnitude. No Brasil, o processo constituinte de 1987-88 foi um período de refundação das instituições democráticas, que foram minadas a partir da constitucionalização do aparelho repressivo do regime militar. O caso brasileiro é peculiar em vários aspectos: tamanho e detalhamento da constituição, duração da constituinte, nível de participação pública e importância da agenda social. O objetivo deste artigo é discutir o quão singular é o caso brasileiro em relação ao cenário internacional moderno (a partir da década de 1970). Meu interesse central se dá na relação entre as características dos processos constituintes e os tipos de constituições que deles resultam. A análise é feita a partir da metodologia comparativa e levando em conta os direitos sociais e do trabalho. Utilizo o amplo banco de dados disponível pelo Comparative Constitution Project (CCP). A partir dos dados e inspirado na literatura sobre o tema, propomos uma agenda de pesquisa baseada em duas hipóteses: (1) processos constituintes com amplo envolvimento do público, como o brasileiro, resulta em constituições com alto nível de detalhamento; (2) o modelo constitucional brasileiro influenciou alguns processos constituintes sul- americanos (Equador, Venezuela, Colômbia e Bolívia). PALAVRAS-CHAVE: Constitucionalismo, processos constituintes, Constituição de 1988, política comparada. Introdução A elaboração de novas constituições é registrada pela literatura como um momento de intensa mudança institucional, em geral, precedida por crises de grande magnitude (Elster, 1995). No Brasil, o processo constituinte de 1987-88 foi um período de refundação das instituições democráticas, que foram minadas a partir da constitucionalização do aparelho repressivo do regime militar. O caso brasileiro é peculiar em vários aspectos: tamanho e detalhamento da constituição, duração da constituinte, 1 Doutorando em Ciência Política na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: [email protected].

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III Semana de Ciência Política

Universidade Federal de São Carlos

27 a 29 de abril de 2015

O QUÃO SINGULAR É O PROCESSO CONSTITUINTE

BRASILEIRO DE 1987-88?

Lucas N. F. Costa1

RESUMO: A elaboração de novas constituições é registrada pela literatura como um

momento de intensa mudança institucional, em geral, precedida por crises de grande

magnitude. No Brasil, o processo constituinte de 1987-88 foi um período de refundação

das instituições democráticas, que foram minadas a partir da constitucionalização do

aparelho repressivo do regime militar. O caso brasileiro é peculiar em vários aspectos:

tamanho e detalhamento da constituição, duração da constituinte, nível de participação

pública e importância da agenda social. O objetivo deste artigo é discutir o quão singular

é o caso brasileiro em relação ao cenário internacional moderno (a partir da década de

1970). Meu interesse central se dá na relação entre as características dos processos

constituintes e os tipos de constituições que deles resultam. A análise é feita a partir da

metodologia comparativa e levando em conta os direitos sociais e do trabalho. Utilizo o

amplo banco de dados disponível pelo Comparative Constitution Project (CCP). A partir

dos dados e inspirado na literatura sobre o tema, propomos uma agenda de pesquisa

baseada em duas hipóteses: (1) processos constituintes com amplo envolvimento do

público, como o brasileiro, resulta em constituições com alto nível de detalhamento; (2)

o modelo constitucional brasileiro influenciou alguns processos constituintes sul-

americanos (Equador, Venezuela, Colômbia e Bolívia).

PALAVRAS-CHAVE: Constitucionalismo, processos constituintes, Constituição de

1988, política comparada.

Introdução

A elaboração de novas constituições é registrada pela literatura como um

momento de intensa mudança institucional, em geral, precedida por crises de grande

magnitude (Elster, 1995). No Brasil, o processo constituinte de 1987-88 foi um período

de refundação das instituições democráticas, que foram minadas a partir da

constitucionalização do aparelho repressivo do regime militar. O caso brasileiro é peculiar

em vários aspectos: tamanho e detalhamento da constituição, duração da constituinte,

1 Doutorando em Ciência Política na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

E-mail: [email protected].

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nível de participação pública e importância da agenda social. O objetivo deste artigo é

discutir o quão singular é o caso brasileiro em relação ao cenário internacional moderno

(a partir da década de 1970). Meu interesse central se dá na relação entre as características

dos processos constituintes e os tipos de constituições que deles resultam. Em especial,

como o nível de participação pública e a duração da constituinte se relaciona com o nível

de detalhamento e progressismo da constituição. Para buscar estas relações, escolhi as

áreas dos direitos sociais e do trabalho por serem frequentemente as mais associadas com

as críticas de parte da literatura que entende que estes direitos, avaliados como policies,

não deveriam ser matéria constitucional (Arantes e Couto, 2009; Sartori, 1996).

A análise é feita a partir da metodologia comparativa. Utilizo o amplo banco de

dados disponível pelo Comparative Constitution Project (CCP), além da consulta de

documentos históricos relacionados ao processo constituinte de cada país. A partir da

análise dos dados encontramos evidências que sugerem duas hipóteses: (1) processos

constituintes com amplo envolvimento do público, como o brasileiro, resulta em

constituições com alto nível de detalhamento; (2) o modelo constitucional brasileiro

influenciou alguns processos constituintes sul-americanos (Equador, Venezuela,

Colômbia e Bolívia). Os resultados deste artigo são preliminares, encontramos dados que

apontam para as hipóteses sugeridas, mas a comprovação ou negação das mesmas

necessitará de uma análise qualitativa mais robusta, sobretudo, sobre a influência do

envolvimento público em cada processo constituinte.

O artigo é dividido em três partes. Na primeira parte exponho as principais

características do processo constituinte de 1987-88 no que diz respeito, sobretudo, à

importância da agenda social. Mostro também que a Constituição de 1988 foi um marco

na história constitucional brasileira no que diz respeito à inserção destes direitos. Na

segunda parte mostro a existência de padrões de relação entre os processos constituintes

e as constituições que se resultam. Estes padrões permitiram encontrar constituintes e

constituições de países que se assemelham com o caso brasileiro. Na terceira parte analiso

os países selecionados sugerindo uma agenda de pesquisa baseada em duas hipóteses, (A)

o processo constituinte brasileiro influenciou as experiências constitucionais em alguns

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países sul-americanos e (B) há uma correlação entre o maior nível de participação popular

nos processos constituintes e constituições mais detalhadas e mais progressistas.

1. O Processo Constituinte de 1987-88 e a agenda social

Comparada a ampla literatura sobre a Constituição de 19882, os trabalhos que

interpretam o processo constituinte de 1987-88 ainda são muito poucos. A partir desta

literatura é possível traçar três abordagens teóricas. A primeira delas é uma análise sobre

a Constituinte a partir dos eventos externos a ela, por exemplo, o estudo da participação

efetiva da sociedade civil através das Emendas Populares3. Esta primeira abordagem

constitui uma clara agenda de pesquisa, no entanto, ainda conta com poucos estudos,

especialmente na Ciência Política. São estudos4 importantes porque indicam o cenário de

mobilização popular que caracterizou os anos 1980. Os trabalhos que partem desta

abordagem, costumam priorizar a análise dos movimentos sociais, indicando suas

reivindicações, no entanto, não mostram como influenciaram na definição de direitos na

Constituição, tampouco como negociaram com atores internos na Constituinte.

A literatura enfatizou a segunda abordagem, que consiste em uma análise

endógena da Constituinte. Isto é, que leva em consideração os eventos ocorridos dentro

da ANC, assim como seus atores internos (partidos políticos e constituintes) sem, no

entanto, atribuir grande atenção às pressões externas a ela e ao papel das entidades civis

representantes de grupos em conflito.

2 Entres estes trabalhos, se destaca o debate já mencionado sobre o caráter detalhista da Constituição de

1988. De um lado há os autores que são muito críticos ao que consideram um excesso de inserção de policies

na Carta (além dos já mencionados, ver, por exemplo, Couto (1997)). Outra abordagem importante sobre a

Constituição se esforça mais em buscar uma explicação sobre seu formato do que fazer uma crítica ao fato

dela ser detalhista. São os casos, por exemplo, do livro de Melo (2002), no qual o autor interpreta tanto a

Constituinte quanto a reforma constitucional no cenário político brasileiro e de Noronha; Costa; Troiano

(2014), no qual é descrito e analisado a evolução dos direitos sociais e do trabalho desde a Constituição de

1934 até a de 1988. Outros trabalhos importantes que analisaram as mudanças produzidas pela Constituição

de 1988: Couto, 1998; Koerner, 1998; Souza, 2001; Pessanha, 2002; Bercovici, 2004; Couto e Arantes,

2006 e Arantes e Couto, 2010. 3 Sobre isso ler, por exemplo: Michiles, 1989. 4 Ver, por exemplo: Pinheiro (1991); Santos, 2004; Gonçalves, 2005.

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A terceira abordagem combina a análise endógena do processo com os eventos

externos à ANC, partindo da premissa de que a compreensão do processo constituinte é

incompleta ao menos que considere a influência de grupos de pressão e seus lobbies. A

institucionalidade interna da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) traz variáveis

fundamentais para compreender o processo, sobretudo, no que diz respeito às opções

estratégicas de seus atores internos. Mas explicam apenas parcialmente, pois sozinhas não

conseguem equacionar a influência da ação de grupos externos.

Dois bons exemplos de trabalhos que parte de uma abordagem endógena à

Constituinte são a de Coelho (1999) e a de Pilatti (2008). Embora as duas teses sejam

classificadas como endógenas ao processo, partem de diferentes focos de análise. Coelho

(1999), ao mostrar a importância dos partidos políticos na tomada de decisões na

Constituinte, contraria a tese que os partidos teriam sido organizações amorfas. O autor

apresenta várias evidências de disciplina partidária e consistência dos votos. Ou seja,

Coelho sustenta que houve coesão partidária nas decisões dos atores políticos, na

Constituinte. Além disso, é demonstrado em sua tese como os interesses particulares de

cada constituinte influenciaram na composição das comissões e subcomissões temáticas.

Os constituintes, vistos como agentes racionais, tendiam a se organizar de modo a

participar dos debates sobre os quais podiam trazer maior proveito para o eleitorado que

representavam (interesses regionais e/ou ideológicos) e assim conseguir a manutenção do

poder (reeleição).

A tese de Pilatti enfatiza as regras do jogo dentro do processo constituinte. Ele

observou a formação de uma divisão ideológica entre dois blocos que chamou de

progressistas e conservadores. O autor considera como progressistas, em geral, os

partidos políticos da bancada de esquerda, isto é, uma coalizão minoritária formada pelas

bancadas do PCB, PCdoB, PDT, PSB e PT, além de uma fração minoritária do PMDB,

que depois se desligaria do partido formando o PSDB. Como bloco conservador é

apontado, de modo geral, a fração majoritária do PMDB, as bancadas do PFL, PDS e PL,

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além de, com algumas exceções, o PDC e o PTB. Este bloco formaria, na fase final, o que

foi chamado de Centrão.

O autor considera a institucionalidade do processo como a variável de maior peso

para explicar a configuração que se concluiu com a definição dos trabalhos constituintes

e a promulgação da Constituição. Há, portanto, uma análise dos mecanismos que guiam

os trabalhos Constituintes. Segundo o autor, a Constituição de 1988 foi

surpreendentemente progressista do ponto de vista dos conservadores, principalmente se

levarmos em conta a configuração majoritariamente conservadora da bancada que

formava a ANC.

Compreendo a Constituição de 1988 como a materialização de um processo de

mudança institucional. Mudança que se deu ao longo da transição, mas, sobretudo,

durante a Constituinte de 1987-88, que marca os elos entre o passado (regime militar) e

o futuro (governos Fernando Henrique Cardoso (FHC), Luiz Inácio Lula da Silva (Lula)

e Dilma Rousseff). Isto é, em suma, parto da premissa de que a Constituição de 1988 foi

uma negação de parte do passado e projeção de futuro. Entendo que a convocação de uma

nova Constituinte se explica por características do regime militar e a necessidade se

superá-las: a negação do passado militar com o estabelecimento de uma democracia só

poderia ser feita a partir de uma nova constituição, pois o regime burocrático-autoritário

de 1964 preocupou-se em institucionalizar as normas antidemocráticas através dos Atos

Institucionais (AIs) e depois constitucionalizá-las. Assim, foi necessária uma

desconstitucionalização a partir de uma nova constituição, o que passaria necessariamente

por uma constituinte (Bonavides e Andrade, 2006 apud Noronha, 2010: 8-9).

Além da passagem de uma ditadura para a democracia, a nova constituição se

baseou também em um segundo consenso negativo: a superação da desigualdade social,

vista como um legado do regime militar. Deste modo, a ampliação dos direitos sociais foi

uma importante agenda da Constituinte. Segundo Noronha (2010: 10), “nas décadas de

1970 e 1980 o tema da pobreza e principalmente da desigualdade social rivalizaram com

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o tema da democratização como principal demanda popular.”. Em Noronha, Costa,

Troiano (2014) elaboramos um método para comparar e analisar a evolução dos direitos

sociais e do trabalho nas constituições de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988, mostrando a

expressiva expansão destes direitos na Carta de 1988.

(...) a Constituição Cidadã marca o processo final de superação da "cidadania

regulada”, tal como definida por Santos (1979)5 em seu clássico trabalho, bem

como pela preponderância do livre arbítrio do empregador (materializado no

mercado informal de trabalho ou “semi-informal”) frente à lei ou ao contrato

coletivo (NORONHA, 1999).” (Noronha, Costa e Troiano, 2014: 2).

Em resumo, a Constituição de 1988 apresenta, em relação às constituições

anteriores, dezesseis novos direitos do trabalho e trinta e cinco novos direitos sociais. Há,

ainda, muitos direitos sociais e do trabalho que foram aprimorados, nenhum foi reduzido

(Noronha; Costa; Troiano, 2014)6. Estes dados mostram a importância que foi atribuída

à agenda social na Constituição de 1988. O ambiente político-institucional também foi

propício para uma ampla participação popular: duas importantes agendas no período –

social e democrática – moldaram uma institucionalidade própria da Constituinte, marcada

por um Regimento Interno (RIANC7) profundamente inclusivo do ponto de vista

5 Entendemos o conceito de “cidadania regulada” cujas “raízes encontram-se, não em um código de valores

políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional, e que, ademais, tal sistema de estratificação

ocupacional é definido por norma legal. Em outras palavras, são cidadãos todos aqueles membros da

comunidade que se encontram localizados em qualquer uma das ocupações 'reconhecidas e definidas em

lei'. A extensão da cidadania se faz pois via regulamentação de novas profissões e/ou ocupações, em

primeiro lugar, e mediante ampliação do escopo dos direitos associados a estas profissões, antes que por

expansão dos valores inerentes ao conceito de membro da comunidade. A cidadania está embutida na

profissão e os direitos do cidadão restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal

como reconhecido por lei." (SANTOS, 1979, p.75). 6 Estas categorias comparativas foram elaboradas em nosso artigo (Noronha; Costa; Troiano, 2014). No

que diz respeito aos direitos do trabalho, quatorze direitos foram aprimorados em relação à Constituição de

1934 e seis em relação a de 1967. Na área dos direitos sociais, doze foram aprimorados em relação à 1934

e seis em relação à 1967. 7 O RIANC (Regimento Interno da Assembléia Nacional Constituinte) definiu as regras do jogo dentro da

ANC e foi alvo de impasses entre os constituintes em diferentes momentos, chegando a ser alterado em

fase decisiva da Constituinte devido manobra do Centrão, grupo supra-patidário de centro-direita formado

com o objetivo principal de frear os elementos mais progressistas que vinham consagrando o texto

constitucional.

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democrático. Destacam-se os procedimentos de democracia direta a partir das emendas

populares e das audiências públicas nas subcomissões da ANC.

As duas ferramentas de participação foram amplamente exploradas por grupos de

pressão e organizações de mobilização popular. Outras duas características institucionais

incentivaram a participação pública: (1) o fato da Constituinte não ter utilizado

formalmente nenhum anteprojeto de constituição8, o que, em tese, gerava possibilidades

ilimitadas de inserção de direitos e, portanto, criava-se a percepção entre grupos de

interesse sobre a possibilidade de contemplar suas agendas. (2) A estrutura

descentralizada da ANC, organizada a partir de comissões e subcomissões temáticas, o

que permitiu que os lobbies atuassem diretamente em suas áreas de interesse, facilitando

a inserção de suas propostas.

De fato, estudos de caso sobre a atuação de grupos de pressão nas áreas dos

direitos sociais e do trabalho confirmam a importância dos espaços institucionais criados

pelo RIANC. Talvez, um dos grupos de pressão que melhor adaptou sua estratégia de

atuação às possibilidades abertas pelas regras do jogo da ANC foi o DIAP (Departamento

Intersindical de Assessoria Parlamentar). A organização encaminhou, junto com CUT e

CGT, uma emenda popular com propostas para os direitos dos trabalhadores. Esta emenda

contou com mais de 272 mil assinaturas (o requisito mínimo para uma emenda popular

era de 30 mil). O DIAP também atuou na elaboração do Regimento Interno, defendendo

que a votação fosse aberta, que a Comissão de Sistematização não elaborasse um

anteprojeto inicial antes do começo dos trabalhos das Comissões Temáticas e que os

trabalhos da Constituinte fossem transmitidos pela televisão, numa espécie de Jornal da

Constituinte (a proposta chegou a ser submetida a votação, mas não foi aprovada). Além

8 Em julho de 1985 foi instituída a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, que ficou mais

conhecida como “Comissão Afonso Arinos”, por ter sido presidida pelo consagrado jurista Afonso Arinos

de Melo Franco. Desta comissão resultou um anteprojeto constitucional que foi entregue ao presidente

Sarney. Este anteprojeto, no entanto, não foi oficialmente usado como base dos trabalhos constitucionais.

Segundo Pilatti (2008), a Comissão Arinos foi criticada pela esquerda e por entidades civis e religiosas que

desempenharam papel importante na resistência ao regime militar a partir dos anos 1970.

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de elaborar e submeter emenda popular, atuar na elaboração de um Regimento Interno

que permitisse maior transparência e participação pública, o DIAP também utilizou as

audiências públicas para expor e defender as suas propostas. Foi notável a influência da

organização que conseguiu inserir praticamente todas suas propostas no anteprojeto da

Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos, se aproveitando da

descentralização estrutural da ANC. Esta estratégia do DIAP foi fundamental para manter

estas propostas ou reduzir as perdas nas fases posteriores da Constituinte, conforme Costa

(2013, 2014).

A Constituinte de 1987-88 abriu uma janela de oportunidades para a participação

popular. Ginsburg, Elkins, Blount (2009: 215) defendem a tese de que o público, diante

da percepção de que as oportunidades são episódicas, busca constitucionalizar direitos

que tradicionalmente seriam matéria de legislação ordinária. O processo constituinte

brasileiro de 1987-88 é mencionado pelos autores como um exemplo deste fenômeno e

classificado como um modelo de participação pública.

O caso brasileiro, de fato, é singular, talvez único em alguns aspectos. Um modelo

de participação pública, uma das assembleias constituintes mais longas da história e que

resultou num dos textos constitucionais mais extensos (com mais de 50 mil palavras) e

detalhistas. Mas existem casos que se assemelham ao brasileiro? Se existem, o quanto se

aproximam? O que pretendo examinar é a dimensão da singularidade do caso brasileiro.

2. O Processo Constituinte de 1987-88 em perspectiva comparada

Estudos de caso sobre processos constituintes contam com um campo rico e um

extenso número de pesquisas em desenvolvimento. O mesmo não pode ser dito sobre

estudos comparados. Em 1995 Jon Elster (1995) apontou a escassez de pesquisas

comparadas sobre processos constituintes. Duas décadas depois ainda são raras as

pesquisas voltadas à perspectiva comparada (Ginsburg, Elkins, Blount, 2009).

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De acordo com Ginsburg, Elkins, Blount (2009: 202), o que a literatura sobre

processos constituintes numa perspectiva comparada necessita é “conceptualização e

medição dos processos, rigorosa teorização sobre os efeitos dos diferentes aspectos dos

processos, e o teste destas teorias com um desenho empírico apropriado”9. A principal

preocupação dos autores é buscar padrões na relação entre processos e seus resultados,

ou seja, entre processos constituintes e constituições.

Este artigo se insere nessa agenda de pesquisa. A partir da metodologia

comparada, busco situar o processo constituinte brasileiro e sua singularidade no cenário

moderno internacional. Para isso, analisamos os dados disponíveis de constituições de

194 países, selecionando casos que se aproximam do modelo constitucional brasileiro,

seguindo os seguintes critérios: alto nível de detalhamento dos direitos (1) na área da

Saúde, (2) na área da Educação e (3) presença de outros direitos sociais e do trabalho10;

(4) processos constituintes e assembleias constituintes com longa duração. A pesquisa

para a seleção dos países usou como fonte para os critérios (1), (2) e (3) o banco de dados11

elaborado pelo Comparative Constitutions Project (CCP), que conta com as constituições

atuais de 194 países, e para o critério (4) documentos oficiais relacionados aos processos

de elaboração das constituições (leis convocatórias de assembleias constituintes, decretos,

etc), material de imprensa que registrou datas relevantes para datar o início e fim do

processo constituinte e literatura sobre o tema.

A comparação dos direitos na área da Saúde (critério 1) foi a que permitiu uma seleção

mais precisa dos casos semelhantes ao brasileiro, pois revelou uma maior variação de detalhes.

Foram usadas as seguintes estratégias para mensurar o nível de detalhe em cada caso: na área da

9 Tradução livre do original em inglês. 10 São dez os outros direitos considerados: seguridade social, proibição de diferença de salários por

trabalhos iguais, limitação de trabalho infantil, segurança no ambiente de trabalho, apoio do Estado aos

desempregados, proteção dos consumidores, garantia a um nível de vida razoável, direito de aproveitar os

benefícios da ciência, repouso e lazer e moradia.

No banco de dados do constituteproject.org são listados um total de 21 direitos sociais, incluindo os direitos

relacionados à Saúde e Educação. Na categoria “outros direitos” consideramos os 10 com ocorrência menos

frequente entre as 194 constituições. 11 Parte deste banco de dados está disponível para consulta online no site constituteproject.org.

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Saúde, considerei dois critérios. Primeiro, a partir do tamanho do texto que cada constituição

destinava ao assunto fiz uma seleção prévia de casos, e com uma análise qualitativa da existência

efetiva de direitos relacionados a saúde e/ou de mecanismos que regulam a efetividade destes

direitos defini uma lista final de doze constituições. Irei me referir a estes países, ao longo do

artigo, como grupo dos doze. Foram examinadas características destas mesmas constituições no

que diz respeito a existência e a natureza de direitos relacionados à área da Educação, assim como

o número de outros direitos sociais e do trabalho.

Essas informações são sintetizadas no Quadro 112, abaixo. Ele está ordenado em ordem

decrescente, de acordo com as constituições dos países com maior nível de detalhamento na área

da Saúde. Informações sobre direitos relacionados à Educação e outros direitos sociais e do

trabalho completam o quadro, mas não influenciam em sua ordenação. Em parênteses, está

informado o ano de cada constituição.

Quadro 1: Nível de detalhamento dos direitos sociais e do trabalho

12 Construção própria, a partir de informações examinadas no banco de dados disponível em

constituteproject.org.

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Os países listados no Quadro 1 constituem a base das comparações seguintes. As

correlações entre os níveis de detalhamento entre direitos nas áreas da Saúde (critério 1)

Saúde Acesso à educação

superior

Educação

obrigatória

Educação gratuita Outros

direitos

Equador

(2008)

SIM gratuito Básica e Secundária Direito até o ensino

superior

10

Brasil (1988)

SIM Elementar dos 4 aos

17 anos

Direito até o ensino

médio

10

Zimbábue

(2013)

SIM Básica para crianças Direito até o ensino

básico para crianças

6

El Salvador

(2003)

NÃO Infantil e básica Deve ser oferecido

por instituições

públicas13 até o nível

básico.

8

Portugal

(1976)

SIM Básica Direito até o ensino

básico.

10

Panamá

(1972)

NÃO Geral ou básica Direito até o ensino

básico. Ensino médio

público pode ter

cobrança de taxas.

8

Angola

(2010)

NÃO Nível não definido Definido por lei 8

Venezuela

(1999)

SIM Do maternal aos

diversos níveis do

secundário

Deve ser oferecido

por instituições

públicas até o ensino

médio.

10

Colômbia

(1991)

SIM

Dos 5 aos 15 anos,

com mínimo de 1 ano

de pré-escola e 9

básica

Deve ser oferecido

por instituições

públicas, mas não é

especificado em quais

níveis

7

Cuba (1976) SIM gratuito Constituição diz que

nível é definido por lei

Direito até o ensino

superior

5

Egito (2014) NÃO Até o secundário Definido por lei 8

Bolívia

(2009)

SIM Até o Secundário Deve ser oferecido

por instituições

públicas até o ensino

superior

9

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e da Educação (critério 2) enfrentam um obstáculo metodológico, por conta da natureza

das informações reveladas em cada caso. O nível de detalhe dos direitos da Saúde pode

ser distinguido de forma mais clara, enquanto no caso dos direitos relacionados à

educação a diferenciação entre as constituições se deu, em geral, mais em relação ao nível

de progressismo do que de detalhamento. Para contornar este problema, relacionei o nível

de detalhe dos direitos da Saúde com o nível de progressismo dos direitos da Educação.

Considerei mais progressistas as constituições que contam com um princípio mais

próximo do universalismo na educação, segundo os seguintes critérios: garantia de acesso

à educação superior, nível educacional no qual é garantido gratuidade do ensino e até que

nível ele é obrigatório (os mesmos critérios dispostos no Quadro 1). Atribuí diferentes

notas de acordo com a gradação de cada critério, sempre buscando satisfazer o princípio

do universalismo. As notas atribuídas se deram da seguinte forma:

a) Acesso à educação superior: SIM gratuito14 – 2; SIM – 1; NÃO – 0

b) Educação obrigatória: Secundária – 2; Infantil, geral e básica – 1; Não definido

ou definido por lei ordinária – 0.

c) Educação gratuita15: Ensino superior – 3; Ensino Médio – 2; Ensino Básico –

1; Não definido, definido por lei ou educação pública não garantida – 0.

O Gráfico 1, a seguir, traz as notas atribuídas para cada um dos países de acordo

com a metodologia mencionada:

13 Fiz uma diferenciação entre dois tipos de redação e suas possíveis implicações. Quando uso o termo

“direito”, é porque a constituição diz que isso é uma garantia aos cidadãos. Já a utilização de “deve ser

oferecido por instituições públicas” implica que a constituição apenas define que o ensino público deve

garantir o ensino gratuito, mas o acesso a este ensino público não é, necessariamente, garantido. 14 Ao atribuir um ponto para a gratuidade da garantia ao ensino superior no critério “a” e no critério “c”

estou contando esta característica duas vezes. Este “exagero” é proposital e tem a vantagem metodológica,

dado a raridade dos casos que satisfazem o critério, de atribuir maior relevância a este aspecto. 15 No caso desta categoria há uma distinção entre educação gratuita como um direito e educação pública

definida como sendo gratuita (ver nota 11). No segundo caso, a educação pública não é garantida

necessariamente para todos. Assim, como as notas são atribuídas de acordo com a proximidade do princípio

de universalismo, escolhi dar nota 0 para todas constituições que não definem claramente a educação

pública como um direito.

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Note-se, que a ordem dos países no gráfico (da esquerda para a direita) respeita o

critério de maior nível de detalhamento dos direitos da Saúde (critério 1). Isso permite

uma comparação mais clara entre este critério e o progressismo na área da Educação

(critério 2). A nota média e a mediana foi 3, nota atingida por quatro dos doze países.

Apenas três receberam notas maiores, sendo dois deles (Equador e Brasil) também os dois

melhores desempenhos de acordo com o critério 1. Dos cinco países com nota abaixo da

média, quatro estão entre os seis países com menor nível de detalhamento na área da

Saúde. As exceções mais evidentes são Cuba, que apesar da nota estar entre as três

melhores em relação ao critério 2, é apenas a décima colocada segundo o critério 1; El

Salvador (terceira no critério 1, penúltima no 2); e Angola (única a receber nota zero no

critério 2, posicionada em sétima no critério 1). A relação entre os critérios 1 e 2 trouxe

resultados esperados para a maioria dos casos, mas foi mais relevante para os casos de

Equador e Brasil.

0

1

2

3

4

5

6

7

8

Gráfico 1 - Notas Educação

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Em relação ao número de outros direitos (critério 3), é bastante expressiva a comparação

do grupo dos doze (selecionados a partir do critério 1) com o universo total de 194 constituições.

Em média, cada um dos “outros direitos” (no total são dez) está presente em 80% dos países do

grupo dos 12 e em apenas 38% do total de 194 países. No Gráfico 2, abaixo, é indicada a

proporção de países (em porcentagem) que apresentam cada direito entre o grupo de 12 países e

no universo total (194 países):

A comparação entre o grupo dos doze e o universo total mostrou que países com

nível maior de detalhamento na área dos direitos da Saúde têm uma forte tendência a

apresentar mais de outros direitos sociais e do trabalho. Considerando apenas os países

do grupo dos doze, nove apresentam pelo menos oito dos dez direitos (sendo que quatro

deles contam com todos). Mesmo os países deste grupo que contam com menos de outros

direitos sociais e do trabalho (Cuba com 5 e Zimbábue com 6) apresentam resultados

significativamente melhores que a média do universo total.

Os dados até aqui analisados permitiram selecionar constituições de países com

um alto nível de detalhamento e progressismo nos direitos sociais e do trabalho. Também

Seguridade social

Probiçãode

diferençade

salários

Limitaçãodo

trabalhoinfantil

Segurança no

ambientede

trabalho

Apoio doEstado

aosdesempregados

Proteçãodos

consumidores

Garantiaa um

nível devida

razoável

Direitode

aproveitar

benefícios da

ciência

Repousoe lazer

Moradia

Grupo dos 12 91,6 100 91,6 91,6 50 50 91,6 50 83,3 100

Universo total 52 50,5 40 42,2 30,92 30,92 41 14 42,2 36,6

91,6

100

91,6 91,6

50 50

91,6

50

83,3

100

52 50,5

40 42,2

30,92 30,92

41

14

42,236,6

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

100

Gráfico 2 - Incidência de outros direitos

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foi possível concluir que há uma correlação entre alto nível de detalhamento em direitos

da Saúde, progressismo na área da Educação e incidência de outros direitos sociais e do

trabalho. Como esperado, a constituição brasileira de 1988 é um dos principais destaques

desta lista, apenas a constituição equatoriana de 2008 contou com níveis mais altos nos

três critérios examinados.

Outra característica marcante do processo constituintes brasileiro foi sua longa

duração. Ginsburg, Elkins e Blount (2009) mediram a duração de processos constituintes

de uma amostra aleatória de 150 entre 806 casos desde 1789. Os autores encontraram que

em média as constituintes duraram 16 meses, com uma mediana de 10 meses e um desvio

padrão de 22 meses. Para medir a duração dos processos constituintes foi considerado

como data inicial do processo um dos seguintes eventos, em ordem decrescente de

prioridade: anúncio oficial da intenção de se escrever uma nova constituição, incluindo

declarações sobre a composição do corpo que irá compor a constituinte; data das eleições

do corpo constituinte, quando relevante; data da adoção de subcomissões de elaboração

de constituinte, seja nas assembleias constituintes ou nas legislaturas. A data final é a

promulgação da constituição ou, quando não disponível, a data da aprovação final.

Utilizando o mesmo método, medi a duração de cada um dos doze processos

constituintes selecionados. Também medi a duração apenas da assembleia constituinte,

para casos em que se aplica. A média de duração do processo constituinte foi de 23,5

meses, com uma mediana de 16,5 meses e um desvio padrão de 17,5 meses. Para os oito

países que contaram com assembleias constituintes, a duração média das assembleias foi

de 9,75 meses, com uma mediana de 9 meses e um desvio padrão de 5,3 meses. Os

gráficos a seguir mostram, respectivamente, a duração do processo e da assembleia

constituinte em cada um dos doze países, em ordem decrescente. Ambos gráficos foram

construídos a partir da pesquisa de documentos oficiais, de material de imprensa e da

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análise da literatura especializada, que revelaram as datas iniciais e finais dos processos

constituintes e das assembleias.

63

4339

35

23

17 1612 11

9 8 6

0

10

20

30

40

50

60

70

Gráfico 3: Duração do processo constituinte

Duração (meses)

20

16

10 10

8

6

4 4

0

5

10

15

20

25

Brasil Bolívia Equador Portugal El Salvador Egito Venezuela Colômbia

Gráfico 4: Duração da assembleia constituinte

Duração (meses)

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A duração do processo constituinte é definida pelas características da transição

política na qual ele se insere. Neste artigo analisei alguns dos doze casos selecionados,

privilegiando aqueles cuja duração da constituinte se aproxima ou se distancia muito do

brasileiro. Busquei a existência de características comuns para os processos longos, como

o brasileiro, e curtos como o venezuelano.

A longa duração do processo em Zimbábue, por exemplo, é reflexo das complexas

rodadas de negociações iniciadas em 2008, cujo principal objetivo era estruturar um

sistema partidário, buscando um consenso entre os principais partidos do país e superando

um cenário de ampla instabilidade política. Uma pauta chave das negociações era a

elaboração de uma nova constituição, resolução aprovada em dezembro de 2008. A

elaboração da constituição levou longos 63 meses, foi produto de complexas negociações

entre as lideranças partidárias do país, sobretudo, dos dois principais partidos da época –

MDC e ZANU-PF16. A constituição foi aprovada em um referendo popular, em março de

2013. Além da ampla instabilidade política, o processo também foi marcado pelo

Constitutional Outreach Program, uma iniciativa de consulta popular na elaboração da

constituição. Apesar de diversas denúncias de intimidação e atos de violência praticados

por apoiadores do ZANU-PF contra seus opositores17, o programa contou com por volta

de quatro mil reuniões, nas quais compareceram mais de 700 mil pessoas. Apenas uma

pesquisa qualitativa mais robusta poderia trazer evidências sobre a influência destas

propostas elaboradas pela participação pública, que foram recebidas, analisadas e

negociadas pelos dois partidos mencionados, responsáveis pela elaboração do texto

constitucional. No entanto, a simples existência deste mecanismo de democracia direta é

16 Movement for Democratic Change (MDC) e Zimbabwe's African National Union - Patriotic Front

(ZANU-PF). 17 A imprensa e, em especial, órgãos de defesa dos direitos humanos cobriram as reuniões do que fizeram

parte do Constitutional Outreach Program. Eventos de intimidação e violência ocorridas entre apoiadores

e opositores do ZANU-PF foram documentados. Ver, por exemplo: Voice of America (31, out. 2010),

Human Rights Watch (28, set. 2010) e BBC (19, mar. 2013).

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relevante. Seja apenas formalmente, ou efetivamente, havia a proposta de incluir a

população diretamente na reconstrução das instituições do país.

Os processos constituintes da Venezuela, Bolívia e Equador foram marcados pela

busca de mecanismos de democracia direta, reflexo das demandas dos grupos sociais que

constituíram a base de apoio na ascensão de partidos de esquerda nestes países, no final

dos anos 1990 e 2000. Segundo Cameron e Shape (2010), a invocação do poder

constituinte nestes três países é reflexo da impaciência da esquerda – que havia assumido

o poder – com as antigas instituições e a exclusão de parcelas significativas da população,

como os indígenas na Bolívia. O desejo de criar mecanismos mais democráticos de

participação, portanto, foi concretizado a partir da reforma das instituições vigentes, que

beneficiariam as antigas elites. Apesar de guardarem semelhanças, Venezuela e Bolívia

seguiram caminhos diferentes no processo de elaboração da constituição. As

características próprias de cada um dos processos explicam porque são exemplos,

respectivamente, de um curto e um longo processo constituinte18.

A duração do processo constituinte venezuelano, o segundo mais curto da

amostra, é resultado das estratégias bem sucedias que foram adotadas por Hugo Chávez,

líder carismático com amplo apoio de movimento sociais, eleito presidente em 1998 com

a proposta de reformulação da constituição do país. Uma vez eleito, sua primeira política

já sinalizava a inclinação de sua plataforma governamental em direção ao estímulo de

mecanismos de democracia direta: um referendo para convocar uma assembleia

constituinte, o qual saiu vitorioso, com ampla margem. Segundo Cameron e Shape (2010:

105), Chávez se mostrou um “formidável organizador com uma grande capacidade de

mobilizar os eleitores em favor de suas reformas19”. Outra estratégia fundamental para se

18 O processo constituinte equatoriano guarda muitas semelhanças com o venezuelano. Sua duração (17

meses) é próxima da média dos países da amostra aleatória (16 meses) e menor que a média da amostra dos

doze países (23,5 meses). Escolhermos analisar com mais detalhes os casos venezuelano e boliviano por

constituírem, respectivamente, modelos de constituintes curtas e longas. Pode-se dizer que a constituinte

equatoriana foi curta (embora não tanto quanto à venezuelana) pelos mesmos motivos do caso venezuelano,

que são examinados neste artigo. 19 Tradução minha do original em inglês.

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compreender a celeridade do processo constituinte venezuelano foi a convocação de

novas eleições para todas as cadeiras do legislativo, cujos membros também seriam

responsáveis por elaborar a nova constituição. Com a conquista de uma grande maioria,

Chávez e seus aliados não enfrentaram muitos obstáculos para aprovar, a partir de uma

assembleia constituinte que durou apenas 4 meses, uma nova constituição que satisfazia

seus interesses20.

Entre os países de nossa amostra, o processo constituinte boliviano só não foi mais

longo que o de Zimbábue, e a assembleia constituinte foi apenas mais curta que a

brasileira. Apesar de, assim como na Venezuela, o processo constituinte boliviano ter se

originado da ascensão da esquerda, também amplamente apoiada pelos movimentos

sociais, os motivos que explicam sua longa duração o aproximam muito mais da

constituinte brasileira do que da venezuelana. Bolívar Lamounier (1990), defende que a

transição brasileira se deu a partir de rompimentos, mediante eleições, ou seja, através de

uma disputa regulada. Ou seja, segundo o autor, não houve decisões formais e planejadas,

elas foram, na verdade, resultado de uma disputa de interesses que se traduziram nas

eleições. Processo semelhante se deu na Bolívia.

Evo Morales foi eleito em 2005, prometendo convocar uma assembleia

constituinte, assim como Chávez. Mas, diferente deste, Evo Morales não convocou uma

nova eleição para o congresso, e o processo constituinte se deu com a legislatura então

vigente e sobre as regras correntes da Bolívia, as quais determinavam que mudanças na

constituição necessitavam do voto de 2/3 dos membros da assembleia. Como Morales não

contava com esta maioria qualificada21, o início do processo constituinte se desenrolou

em longas e infrutíferas negociações. O impasse apenas foi resolvido quando se chegou

20 A coligação Polo Patriótico, que apoiava Hugo Chávez, elegeu 121 das 131 cadeiras em disputa. Esta

grande vitória foi influenciada pela fórmula eleitoral adotada – majoritária, ao invés do modelo

proporcional até então vigente. Esta fórmula eleitoral beneficiou Hugo Chávez que conseguiu 60% dos

votos no país, mas elegeu 95% do legislativo. (Landau, 2012)

21 Evo Morales tinha o apoio no congresso de uma maioria simples apertada: 147 das 255 cadeiras (57%).

(Deheza, 2007).

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a um consenso sobre a aplicação de um referendo revogatório em Agosto de 2008, isto é,

o presidente, vice-presidente e oito dos nove prefeitos departamentais teriam que se

submeter à ratificação de seus cargos. O referendo se mostrou amplamente favorável ao

MAS22, que confirmou a presidência de Morales e seu vice Álvaro Garcia, enquanto dois

dos prefeitos, opositores à Morales, foram revogados. Isso enfraqueceu a oposição,

forçando-a a negociar e aceitar a convocação de uma assembleia constituinte para a

elaboração de um novo texto constitucional. A Assembleia Constituinte foi marcada por

delicadas negociações e pactos entre o MAS e a oposição, cujo resultado, segundo

Cameron e Shape (2010: 116), foi um documento que representa “uma nova e inédita

tentativa de encontrar uma síntese entre a multiplicidade de tradições e culturas que

constituem a sociedade boliviana.”23. Ainda segundo os autores, esta constituição

boliviana, que combina a inclusão da população indígena com conceitos republicanos e

liberais de autogoverno, é resultado de um processo constituinte no qual, em contraste ao

venezuelano, que foi controlado por um Executivo muito forte e centralizado, Morales

não pôde comandar ou explorar uma vantagem política temporária para impor uma ordem

hegemônica.

A duração dos processos constituintes no Brasil, Venezuela, Equador e Bolívia

parece ser reflexo direto da natureza das negociações políticas entre os atores envolvidos.

Na Venezuela, onde Chávez conseguiu controlar uma maioria confortável no legislativo,

o processo constituinte transcorreu com rapidez, resultando numa constituição favorável

aos interesses do grupo hegemônico. Com menor intensidade, o mesmo se deu no

Equador. No Brasil e na Bolívia, onde os processos transcorreram sob complexas

negociações, refletindo um maior balanço entre as forças que representavam diferentes

interesses, as constituintes foram longas e resultaram em constituições que refletiram os

pactos políticos. Mas qual é a influência da participação popular na duração destes

processos? As evidências sugerem que constituintes são longas por conta da natureza de

22 Movimento al Socialismo, partido do presidente Evo Morales. 23 Tradução minha do original em inglês.

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sua negociação política, isto é, quanto menor o consenso político em torno de um projeto

de constituição, maior a necessidade de negociação entre atores com interesses

conflitantes, o que resulta num processo mais delicado e longo. E constituintes longas

tendem a ter maior participação popular, uma vez que a falta de um consenso da elite

política na condução da elaboração da constituição, abre espaço para a participação

popular. Esta por sua vez, impacta na duração da própria constituinte, pois, uma vez que

há mecanismos de participação pública nas regras do jogo, os grupos de interesse também

se tornam atores relevantes, aumentando ainda mais a complexidade do cenário de

negociações. Ou seja, processos marcados pela ausência de controle hegemônico das

decisões, criam um conjunto de características, incluindo a participação popular, que

influenciam na maior duração do processo constituinte.

O processo constituinte colombiano de 1990-91 se deu num contexto de profunda

crise do regime democrático fundado a partir do pacto consolidado pela Frente Nacional

(FN), institucionalizado pela Constituição de 1958 e que significou um fim do confronto

entre liberais e conservadores. Contudo, segundo Guardilla e Hurtado (2000), o fim deste

confronto não foi capaz de impedir a emergência de outra confrontação armada. A crise

do pacto promovido pela FN foi engatilhada por graves episódios de violência política

entre grupos do Estado e grupos paramilitares contra várias guerrilhas de esquerda. A

situação era agravada pelo poder dos narcotraficantes, que financiavam o conflito, além

de integrarem esquadrões da morte da direita.

Os partidos que fundaram o pacto ente liberais e conservadores a partir da FN se

tornaram incapazes de representar as forças sociais emergentes e, portanto, de lidar com

a escalada da violência política. Assim, a Assemblea Nacional Constituyente (ANC)

representou um esforço de mudança e uma tentativa de pacificação do cenário político.

De acordo com Guardilla e Hurtado (2000), a composição da ANC foi bastante diversa24

24 Segundo Guardilla e Hurtado (2000), dos 72 constituintes, além das duas principais forças representadas

pelos conservadores e liberais, dez eram ex-guerrilheiros, três representantes de grupos indígenas, dois de

grupos evangélicos, e quatro eram mulheres (duas delas liberais, uma conservadora e uma de esquerda).

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e contou com uma forte demanda por participação pública. Segundo Dugas (1993), foram

enviadas à ANC mais de 230 mil propostas e projetos elaborados por grupos e

organizações civis, sendo que 100 mil deles foram sistematizados por órgãos da

presidência e 131 projetos, contando com centenas de propostas, foram considerados pela

ANC na elaboração do texto constitucional. Dado este complexo cenário social e político

no qual se desenrolou o processo constituinte colombiano, cuja Assembleia Constituinte

contou com a presença de atores representando interesses tão variados, é surpreendente

sua curta duração – apenas 11 meses. Talvez ela seja explicada pela gravidade da situação

política na Colômbia, que resultou em um pacto entre as três principais forças da ANC,

com o intuito de acelerar as decisões. Segundo Guardilla e Hurtado (2000), ao invés de

um acordo entre as elites, como se deu com a FN, foi negociado um estratégico pacto

político de curta duração entre o governo, os três presidentes da ANC e o líder do Partido

Liberal, Alfonso Lopez.

Diferente dos casos mencionados, a transição política em Portugal se deu em meio

a uma revolução. O processo constituinte fez parte do pacote de medidas que foi

anunciado pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) após sua vitoriosa operação em

25 de Abril de 1974, que, a partir de um golpe de Estado, colocou fim ao regime do Estado

Novo, vigente desde 1933. Segundo Rezola (2012), a operação, que ficou conhecida

como “Revolução dos Cravos”, se pautava em três políticas bases, Democratizar,

Descolonizar e Desenvolver (Programa dos 3 Ds). Um dos principais objetivos do

Programa da MFA era reconstruir as instituições portuguesas por meio de uma nova

constituição. Foram realizadas eleições para a composição de uma Assembleia

Constituinte e, apesar da clareza do programa dos militares em substituir o governo

provisório por uma democracia civil, o papel da MFA na transição continua sendo objeto

de debates por cientistas políticos e constitucionalistas. Segundo Rezola (2012), a

literatura enfatiza o papel dos partidos políticos na Assembleia Constituinte, ignorando a

Havia, ainda um representante de grupos paramilitares e um estudante. A composição completa da ANC

pode ser vista em Guardilla e Hurtado (2000: 12).

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influência dos militares sobre ela, embora tenham sido eles quem, de fato, conduziram

todo o processo de transição. Apesar da transição brasileira também ter sido conduzida

com uma profunda influência dos militares, a realidade é muito diferente do caso

português. Os militares, no caso da transição brasileira, representavam o regime que

estava sendo substituído, enquanto no caso português, eram, ao contrário, os agentes da

mudança. Em Portugal não houve um diálogo entre o antigo e o novo regime. A

democracia que estava sendo reconstruída não foi conduzida, nem negociada com os

atores políticos do Estado Novo.

O processo constituinte português durou 23 meses, sendo a média do grupo dos

doze países, 23,5 meses. Pode ser considerado um processo longo se comparado a média

da amostra aleatória (16 meses). As características históricas das transições dos países

examinados sugerem que a duração do processo está relacionada à natureza da negociação

política. Em um extremo estão os casos de Brasil e Bolívia, com constituintes marcadas

pela inexistência de um consenso político na condução do processo, mas por complexas

negociações entre atores com interesses concorrentes. De outro lado, o caso venezuelano

(e, em menor escala, o equatoriano), marcado pela centralização do processo constituinte,

fortemente controlado por um grupo político, que facilmente conduziu a transição

segundo seus interesses. A transição portuguesa conta com elementos dos dois modelos.

Se aproxima do caso venezuelano na medida em que, por ser fruto de uma revolução,

substituiu os atores do antigo regime, assim como na Venezuela, onde o corpo legislativo

que elaboraria a nova constituição foi substituído a partir de eleições cujas regras foram

alteradas beneficiando o novo governo. Tanto na Venezuela, quanto em Portugal, não

estavam entre os principais atores na condução da transição aqueles que governavam sob

a antiga constituição. Mas se distancia do caso venezuelano na medida em que não havia

entre os atores revolucionários o mesmo consenso observado entre os apoiadores de

Chávez. Segundo Rezola (2012), o próprio Programa original do MFA foi fruto de

controvérsias, sendo constantemente alvo de ameaças de descumprimento de suas

resoluções e prazos. Depois, uma vez iniciado os trabalhos na Assembleia Constituinte,

havia uma relação complexa entre os partidos políticos e o MFA, este dividido

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internamente. Diante do papel central do MFA na transição, a dúvida era sobre seu papel

durante e após a promulgação da nova constituição: “Voltarão os militares aos quartéis?”

(Expresso, 26/10/1974). Vale registrar que houve campanhas por parte da imprensa e de

alguns líderes partidários solicitando a participação da MFA na Assembleia Constituinte,

o que foi descartado pelos próprios militares.

Considero os casos analisados relevantes para a busca de explicações sobre quais

são as principais características que determinam a duração de um processo constituinte.

Evidentemente, no entanto, ainda há muito a ser explorado. A literatura analisada, por

exemplo, pouco trata sobre a existência de mecanismos de participação popular nas

assembleias constituintes, característica importante para esta pesquisa. Além disso,

alguns casos sequer foram incluídos na análise mais detalhada, pois, devido à

complexidade do contexto em que se inserem careceriam de um extenso volume analítico

do qual ainda não disponho.

3. Duas hipóteses sobre a relação entre processos constituintes e

constituições

A comparação dos dados levantados sobre as constituições e processos

constituintes permitiu elaborar uma agenda de pesquisa baseada em hipóteses inspiradas

em estudos realizados sobre o tema. Os países, cujas constituições são semelhantes à

brasileira de 1988 no que diz respeito ao seu alto nível de detalhamento dos direitos

sociais e do trabalho, contam com realidades bastante variadas. Mas, a despeito das

significantes diferenças, seja no aspecto econômico, social ou político, padrões foram

encontrados. Alguns mais óbvios, por exemplo, o fato de serem recentes – todas as doze

constituições foram escritas a partir da década de 1970 e oito delas são mais novas que a

brasileira. Os dados também sugerem a existência de padrões compatíveis com hipóteses

sustentadas pela literatura sobre política comparada em constituições e processos

constituintes.

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Elkins (2003), ao tratar da difusão constitucional destaca a influência da

constituição americana de 1789 em constituições de outros países e argumenta que outros

modelos constitucionais também teriam impacto semelhante. Minha hipótese é que o

processo de elaboração da constituição de 1988 seria um destes casos, dado sua

singularidade e o fato de constituições posteriores em outros países, sobretudo os sul-

americanos, apresentarem características semelhantes. Não me parece acidental o fato das

quatro constituições sul-americanas que compõem a amostra (todas elas posteriores à

brasileira) apresentarem, na área social e do trabalho, textos detalhados e progressistas,

assim como dispositivos voltados à ampliação da participação popular através da

democracia direta. A inclusão do público na reforma das instituições políticas está

profundamente presente na Assembleia Nacional Constituinte (ANC) de 1987-88, como

mostrei ao longo do texto. Acredito que o modelo posto em prática na ANC pode ter

fundado uma tradição constitucional que inspirou as plataformas de governo na Bolívia,

Equador, Venezuela e Colômbia, assim como suas estratégias de reforma constitucional.

Analisar as influências e inspirações da experiência brasileira sobre os processos

constituintes de outros países não é uma tarefa fácil. A simples existência de

características comuns entre elas não comprova que de fato tenham sofrido influências

diretas e relevantes do processo constituinte brasileiro. Apenas uma pesquisa qualitativa

que leve em conta a história constitucional destes países, assim como a atuação das

principais lideranças intelectuais e políticas envolvidas no processo de elaboração

constitucional, poderia trazer evidências sobre o impacto real da experiência brasileira

em outros países, em especial nos sul-americanos.

Outra hipótese desenvolvida pela literatura envolvida nos estudos comparados

sustenta que processos constituintes com maior nível de participação popular resultam

em constituições mais detalhadas e mais progressistas (Ginsburg, Elkins, Blount, 2009;

Samuels, Wyeth, 2006). Esta hipótese se baseia na existência de janelas de oportunidade

(argumento discutido na primeira parte deste artigo). No caso brasileiro, a influência de

diversos grupos de pressão, assim como a existência de mecanismos de democracia direta

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na ANC, através dos quais estes grupos puderam atuar, são fatores que tiveram profundo

impacto sobre o alto nível de detalhamento dos direitos sociais. Baseado nesta hipótese,

sustento que outros países cujo nível de detalhamento de suas constituições é similar ao

brasileiro, também passaram por processos constituintes com alto nível de envolvimento

público.

O levantamento de estudos de caso que analisaram alguns dos processos

constituintes mencionados neste trabalho, não trouxe evidências sobre a existência ou não

de mecanismos pelos quais grupos organizados da sociedade poderiam ter atuado ao

longo do processo constituinte. No entanto, como mostramos, alguns destes processos

contaram com o apoio de uma larga base social. Mesmo em casos nos quais o partido do

governo centralizou a condução da constituinte, notadamente na Venezuela, isso se deu

sob a sustentação de importantes grupos da sociedade. Contudo, é necessária uma análise

mais profunda da relação dos partidos políticos com grupos da sociedade e a influência

destes na elaboração da constituição, como requisito para se entender melhor se, e, em

que medida, a participação pública teve, de fato, impacto no nível de detalhamento de

cada constituição.

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