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O PROGRAMA DO PT E AS “REFORMAS NECESSÁRIAS” Eduardo Maldonado Filho 1[1] Se há, nos dias de hoje, um consenso na sociedade brasileira, este diz respeito à necessidade e à urgência de se implementarem reformas estruturais na economia brasileira. Assim, concordamos todos que a retomada do crescimento econômico, com expansão de empregos e redistribuição de renda, só será possível com a aprovação das “reformas necessárias”. Mas quais são as “reformas necessárias” para se atingirem esses objetivos? É justamente na resposta a essa questão que acaba o aparente consenso sobre as “reformas necessárias”. Para os neoliberais, as “reformas necessárias” são aquelas que ampliam o papel dos mercados na coordenação das atividades econômicas. Em outras palavras, sob o ponto de vista neoliberal, as “reformas necessárias” são aquelas que atuam no sentido de promover o livre funcionamento dos mercados e o livre comércio entre as nações 2[2] . Para a esquerda em geral, e para o PT em particular, as “reformas necessárias” sempre significaram, pelo menos até muito recentemente, tanto promover o rompimento “com o atual modelo econômico, fundado na abertura e na desregulamentação radicais da economia nacional e na conseqüente subordinação de sua dinâmica aos interesses e humores do capital financeiro globalizado” quanto “propor para o Brasil um novo modelo de desenvolvimento economicamente viável, ecologicamente sustentável e socialmente justo” (Programa do PT para o Brasil, 2002, p. 15) 3[3] . Portanto, estamos, na verdade, diante de um falso consenso: as chamadas “reformas necessárias” correspondem a diferentes agendas e visam a atingir diferentes objetivos. Por isso, a afirmação genérica de que as “reformas são necessárias” é, na verdade, enganadora; afinal, tanto a consolidação do modelo neoliberal que está sendo implementado no Brasil quanto a mudança de rumo em direção a um modelo alternativo de desenvolvimento, proposta pelo PT durante a campanha eleitoral, requerem a implantação de diferentes agendas de "reformas necessárias". Infelizmente, não podemos deixar de reconhecer que os defensores da agenda neoliberal, pelo menos até o presente momento, têm sido vitoriosos no debate público. 1[1] Professor do Departamento de Economia da UFRGS, membro do Núcleo dos Economistas do PT/RS (NUCLEC) e Presidente da Agência Gaúcha de Fomento e Diretor de Desenvolvimento do Banrisul no Governo Olívio Dutra (1999-2002). 2[2] A força política, ideológica e financeira da agenda neoliberal não pode ser, de forma alguma desconsiderada. Esta agenda é impulsionada não só pelo FMI e Banco Mundial, mas também diretamente pelo próprio governo Americano. Por exemplo, no documento sobre a nova estratégia de segurança nacional, o tema da promoção do crescimento econômico através do livre mercado e do livre comércio é tratado como um dos instrumentos para o aumento da segurança nacional dos EUA (capítulo VI - Ignite a New Era of Global Economic Growth Through Free Markets and Free Trade). Ver US (2002). 3[3] “Para quem defende, (...) uma verdadeira transformação inspirada nos ideais éticos da radicalização da democracia e do aprofundamento da justiça social, não pode restar dúvida de que um governo popular e democrático precisará operar uma efetiva ruptura global com o modelo existente, estabelecendo as bases para a implementação de um novo modelo de desenvolvimento alternativo”. (p. 27).

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Page 1: O PROGRAMA DO PT E AS “REFORMAS NECESSÁRIAS” · legitimidade e não representam mais o ideário do partido. No caso do PT, como foi demonstrado por João Machado Borges Neto

O PROGRAMA DO PT E AS “REFORMAS NECESSÁRIAS”

Eduardo Maldonado Filho1[1]

Se há, nos dias de hoje, um consenso na sociedade brasileira, este diz respeito à necessidade e à urgência de se implementarem reformas estruturais na economia brasileira. Assim, concordamos todos que a retomada do crescimento econômico, com expansão de empregos e redistribuição de renda, só será possível com a aprovação das “reformas necessárias”. Mas quais são as “reformas necessárias” para se atingirem esses objetivos? É justamente na resposta a essa questão que acaba o aparente consenso sobre as “reformas necessárias”. Para os neoliberais, as “reformas necessárias” são aquelas que ampliam o papel dos mercados na coordenação das atividades econômicas. Em outras palavras, sob o ponto de vista neoliberal, as “reformas necessárias” são aquelas que atuam no sentido de promover o livre funcionamento dos mercados e o livre comércio entre as nações2[2]. Para a esquerda em geral, e para o PT em particular, as “reformas necessárias” sempre significaram, pelo menos até muito recentemente, tanto promover o rompimento “com o atual modelo econômico, fundado na abertura e na desregulamentação radicais da economia nacional e na conseqüente subordinação de sua dinâmica aos interesses e humores do capital financeiro globalizado” quanto “propor para o Brasil um novo modelo de desenvolvimento economicamente viável, ecologicamente sustentável e socialmente justo” (Programa do PT para o Brasil, 2002, p. 15)3[3]. Portanto, estamos, na verdade, diante de um falso consenso: as chamadas “reformas necessárias” correspondem a diferentes agendas e visam a atingir diferentes objetivos. Por isso, a afirmação genérica de que as “reformas são necessárias” é, na verdade, enganadora; afinal, tanto a consolidação do modelo neoliberal que está sendo implementado no Brasil quanto a mudança de rumo em direção a um modelo alternativo de desenvolvimento, proposta pelo PT durante a campanha eleitoral, requerem a implantação de diferentes agendas de "reformas necessárias".

Infelizmente, não podemos deixar de reconhecer que os defensores da agenda neoliberal, pelo menos até o presente momento, têm sido vitoriosos no debate público.                                                             1[1]

Professor do Departamento de Economia da UFRGS, membro do Núcleo dos Economistas do PT/RS (NUCLEC) e Presidente da Agência Gaúcha de Fomento e Diretor de Desenvolvimento do Banrisul no Governo Olívio Dutra (1999-2002).

2[2]A força política, ideológica e financeira da agenda neoliberal não pode ser, de forma alguma desconsiderada. Esta agenda é impulsionada não só pelo FMI e Banco Mundial, mas também diretamente pelo próprio governo Americano. Por exemplo, no documento sobre a nova estratégia de segurança nacional, o tema da promoção do crescimento econômico através do livre mercado e do livre comércio é tratado como um dos instrumentos para o aumento da segurança nacional dos EUA (capítulo VI - Ignite a New Era of Global Economic Growth Through Free Markets and Free Trade). Ver US (2002).

3[3]“Para quem defende, (...) uma verdadeira transformação inspirada nos ideais éticos da radicalização da democracia e do aprofundamento da justiça social, não pode restar dúvida de que um governo popular e democrático precisará operar uma efetiva ruptura global com o modelo existente, estabelecendo as bases para a implementação de um novo modelo de desenvolvimento alternativo”. (p. 27).

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É verdade que, como reflexo do fracasso das reformas pró-mercado em proporcionar crescimento econômico e maior justiça social, tem havido, no mundo todo, uma crescente oposição política e ideológica a este projeto, de tal forma que nos dias de hoje, claramente, os proponentes do modelo neoliberal estão na defensiva. No Brasil esse fato ficou evidente no próprio processo eleitoral, pois mesmo o candidato do governo FHC não defendia, caso fosse eleito, a continuidade do projeto neoliberal. Por isso, o próprio candidato Lula, na Carta ao Povo Brasileiro, podia corretamente afirmar que "o sentimento predominante em todas as classes e em todas as regiões é o de que o atual modelo esgotou-se. Por isso, o país não pode insistir nesse caminho, sob pena de ficar numa estagnação crônica ou até mesmo de sofrer, mais cedo ou mais tarde, um colapso econômico, social e moral". Mais ainda, Lula também afirmava, de forma enfática, que o crescimento de sua candidatura estava associado ao projeto de mudança de rumos para o Brasil que a sua candidatura representava4[4].

Existe já um consenso na sociedade brasileira de que a política econômica e a agenda de reformas estruturais que estão sendo implementadas pelo Governo Lula da Silva são muito diferentes daquelas propostas defendidas historicamente pelo PT. Esta "guinada histórica", segundo lideranças petistas, teria ocorrido durante o processo eleitoral, com a divulgação, em 22 de junho de 2002, da Carta ao Povo Brasileiro pelo candidato Lula. Na Carta, Lula teria apresentado as linhas gerais da política econômica e reformas estruturais que estão sendo implementadas pelo seu governo. O Ministro da Fazenda, Antônio Palocci, afirmou recentemente que "as teses foram defendidas durante a campanha e praticamos exatamente o que estava escrito" (Correio do Povo, 22/jun/2003, p. 2). Não restam dúvidas de que qualquer governo eleito tem a obrigação de implementar as teses defendidas durante a campanha eleitoral5[5], mas a questão é justamente saber se é isto que está acontecendo. Estariam os críticos equivocados por

                                                            4[4]"A crescente adesão à nossa candidatura assume cada vez mais o caráter de um movimento em defesa do Brasil, de nossos direitos e anseios fundamentais enquanto nação independente. Lideranças populares, intelectuais, artistas e religiosos dos mais variados matizes ideológicos declaram espontaneamente seu apoio a um projeto de mudança do Brasil. Prefeitos e parlamentares de partidos não coligados com o PT anunciam seu apoio. Parcelas significativas do empresariado vêm somar-se ao nosso projeto. Trata-se de uma vasta coalizão, em muitos aspectos suprapartidária, que busca abrir novos horizontes para o país. O povo brasileiro quer mudar para valer. Recusa qualquer forma de continuísmo, seja ele assumido ou mascarado".

5[5]Também é verdade que as teses defendidas pelo candidato durante a campanha eleitoral têm que ser aquelas que foram aprovadas pelas instâncias partidárias, do contrário elas são desprovidas de legitimidade e não representam mais o ideário do partido. No caso do PT, como foi demonstrado por João Machado Borges Neto (2003), as teses defendidas tanto na Carta quanto no programa Um Brasil para Todos não são inconsistentes com as propostas aprovadas no Encontro Nacional do PT, de dezembro de 2002. Portanto, a "guinada histórica" não ocorreu nem no âmbito do PT e nem durante o período eleitoral, mas sim após as eleições. Muitos órgãos de imprensa e analistas econômicos têm argumentado que a atual política macroeconômica do Governo Lula da Silva se constitui num 'necessário período de transição para o novo modelo'. Pela análise a ser apresentada a seguir, consideramos essa interpretação equivocada. No entanto, apenas para examinarmos algumas de suas implicações, vamos assumir que essa interpretação esteja correta. Como se explicaria, então, o entusiástico apoio dos "mercados", e do próprio Presidente Bush, à atual política econômica do PT? Estariam eles equivocados sobre os objetivos últimos da política econômica adotada pelo Governo Lula? Ou, alternativamente, teriam eles mudado, estando agora a defender as teses históricas do PT? No entanto, se considerarmos essa hipótese como estando equivocada, a implicação é que a política macroeconômica atual está sendo saudada de forma entusiasmada pelos "mercados" e pelos organismos financeiros internacionais simplesmente porque esta é a agenda deles, e não a agenda histórica do PT.

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desconsiderarem o fato de que a atual política econômica, mesmo que ela represente uma "guinada histórica" do PT, consiste apenas na implementação das teses defendidas durante o processo eleitoral? Ou seja, a política econômica e as reformas estruturais que estão sendo implementadas pelo Governo Lula da Silva são, de fato, consistentes com as teses defendidas durante a campanha eleitoral, em especial com as teses apresentadas na Carta6[6]? A Carta representou, de fato, uma guinada histórica nas teses defendidas pelo PT?

O objetivo deste documento é o de examinar essas questões. A política econômica defendida pelo candidato Lula durante o período eleitoral representou de fato uma "guinada histórica" do PT, conforme tem sido defendido pelo governo e repercutido por muitos veículos de comunicação? A agenda de reformas do governo Lula se constitui no "necessário período de transição para o novo modelo", conforme pensa o presidente nacional do PT? Se as teses defendidas na campanha são diferentes das ações que estão sendo implementadas pelo governo, ao contrário do que afirma o Ministro Palocci, qual é então o embasamento econômico desta agenda? Quais são os resultados econômicos — crescimento do produto, do emprego e redução das desigualdades sociais e dos níveis de pobreza — que podemos esperar, tendo em vista outras experiências históricas, da implantação deste modelo pelo Governo Lula da Silva? A agenda econômica do Governo Lula da Silva é consistente com seus objetivos de retomada do crescimento sustentável da economia brasileira com inclusão social?

O documento está organizado em quatro seções. Na primeira seção, apresentamos, inicialmente, a estrutura geral do modelo neoliberal e, portanto, quais são as "reformas necessárias" para sua consolidação e, a seguir, examinamos a experiência internacional, em termos de desempenho econômico, da implementação destas reformas. Depois dessa análise de caráter mais geral, analisamos o processo de implementação do modelo neoliberal no Brasil, especialmente a partir do Plano Real. As "reformas (ainda) necessárias" para a consolidação definitiva do modelo neoliberal no Brasil serão também discutidas nesta seção, bem como o que se deve esperar, em termos de desempenho econômico, se a agenda neoliberal de política econômica e de reformas estruturais tiver continuidade. A segunda seção trata do diagnóstico dos entraves ao crescimento econômico contido nos documentos do PT, apresentados durante a campanha eleitoral, e nela se explicita qual seria a agenda econômica necessária para implementação de um modelo de desenvolvimento alternativo, capaz de propiciar a retomada do crescimento econômico com inclusão social. Na terceira seção, analisamos o argumento econômico que embasa a política econômica e as reformas estruturais que estão sendo implementadas pelo Governo Lula da Silva e o comparamos tanto com as propostas do PT quanto com aquelas que defendem a necessidade de se dar

                                                            6[6]"Genoíno observou que quando Lula apresentou a Carta ao Povo Brasileiro na campanha eleitoral muitos acharam que ela não seria cumprida e não passava de 'esperteza política'" (Correio do Povo, 22/jun/2003, p.2). Conforme o Correio do Povo (22/jun/2003, p. 2) informa: "Em quase seis meses de gestão, Palocci, também a quem o PT cobra alterações nas metas econômicas, repete que as garantias feitas na campanha não tiveram o objetivo de ganhar as eleições, mas se destinaram a governar o país. 'Os que não acreditavam que o documento não era para valer erraram, pois as diretrizes orientarão todas as ações do governo', disse. (...) 'As tese foram defendidas durante a campanha e praticamos exatamente o que estava escrito', afirmou [Palocci]". Esta avaliação do Ministro Palocci está correta? Na nossa avaliação, esta argumentação não procede. Como será demonstrado neste documento, política econômica e a agenda de reformas estruturais que estão sendo implementadas são radicalmente diferentes daquelas defendidas durante a campanha eleitoral.

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continuidade ao projeto que estava sendo implementado pelo Governo FHC. Finalmente, na última seção, apresentamos as principais conclusões da análise.

1 - Brasil e as “Reformas Necessárias”: a ótica do modelo neoliberal

1.1 - O Modelo Neoliberal: uma visão geral

A visão neoliberal parte do princípio de que a regulação das atividades econômicas deve ser feita fundamentalmente pelo livre funcionamento das forças de mercado. A crença na eficiência dos mercados se constitui num dos pilares do modelo neoliberal. O processo recente de globalização teria, segundo esta visão, tornado inevitável a adoção das reformas neoliberais por parte de todos os países - ou seja, não existiriam mais outras alternativas ao modelo neoliberal (esta idéia ficou conhecida pela expressão TINA, cunhada pela Sra. Thatcher, que significa que "There Is No Alternative" ao modelo neoliberal). Em outras palavras, o único caminho viável para a retomada do crescimento econômico — e a conseqüente redução do desemprego e melhoria na qualidade de vida dos trabalhadores —, principalmente nos países em desenvolvimento, passaria pela desregulamentação dos mercados (em especial do mercado de trabalho), pela liberalização financeira e do comércio externo e pela privatização (o que implica uma drástica redução da participação do Estado na esfera econômica). O objetivo dessas reformas é o de dar ao capital a maior liberdade possível para que possa atuar no sentido de obter o lucro máximo.

Além da implementação das reformas neoliberais, a retomada do crescimento também demandaria que os governos adotassem políticas macroeconômicas que tenham credibilidade junto aos investidores internos e externos. A credibilidade das políticas macroeconômicas, no contexto do modelo neoliberal, se constitui numa das premissas centrais para a promoção do crescimento econômico com estabilidade dos preços.

As políticas macroeconômicas devem ser implementadas de forma criar um clima favorável aos investimentos, especialmente aos investimentos externos. Isso implica implementar políticas macroeconômicas que sejam amigáveis para com os mercados e que tenham credibilidade junto aos investidores nacionais e estrangeiros. A obtenção de credibilidade junto aos investidores requer, por exemplo, que a política fiscal seja conduzida de forma a que se obtenha um equilíbrio orçamentário estrutural, ou, pelo menos, que os déficits sejam vistos como sustentáveis no longo prazo. A política monetária, por sua vez, deve estar centrada na obtenção da estabilidade dos preços, estando outros possíveis objetivos (por exemplo, a redução da taxa de desemprego) subordinados à missão do banco central de controlar o processo inflacionário.

Outro aspecto importante do modelo neoliberal está relacionado com a sua orientação para a crescente integração das economias nacionais com o mercado externo. As exportações devem se constituir numa das principais fontes de dinamismo da demanda agregada; a poupança externa, supõe-se, deve ser uma fonte importante de financiamento da economia; os investimentos externos diretos, por sua vez, alavancariam o processo de modernização da economia, uma vez que eles trariam know-how, tecnologia e canais de comercialização e, finalmente, as importações colocariam

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os produtores domésticos sob pressão competitiva, resultando em aumentos na produtividade e de pressão adicional no combate ao processo inflacionário.

Assim, os defensores do neoliberalismo argumentam que, no contexto atual do processo de globalização, apenas com a implantação das reformas estruturais neoliberais e da adoção de políticas macroeconômicas que gerem credibilidade junto aos investidores internos e externos é que será possível obterem-se elevadas taxas de crescimento econômico, redução do desemprego e da pobreza e estabilidade dos preços e do próprio sistema econômico.

1.2 - As Reformas Neoliberais e o Desempenho Econômico: revendo a experiência internacional

Desde o início dos anos 1980 que vêm sendo implementadas, em muitos países, as reformas institucionais e as políticas macroeconômicas necessárias para consolidação do modelo neoliberal. Portanto, existem nos dias de hoje informações suficientes para avaliarmos os resultados, em termos de desempenho econômico, da implantação do regime neoliberal. Mais especificamente, é importante saber se: (1) a implantação do modelo neoliberal tem resultado em elevação das taxas de crescimento econômico e na redução das taxas de desemprego; (2) esse modelo tem sido capaz de reduzir os níveis de pobreza e tornado as sociedades menos desiguais e (3) o processo inflacionário tem sido controlado. Essas e outras questões podem ser agora avaliadas a partir da experiência concreta dos (muitos) países que adotaram o modelo neoliberal.

Diversos estudos empíricos demonstram que a implantação das reformas neoliberais resulta, na verdade, numa redução significativa das taxas de crescimento econômico (Easterley, 2001; Weisbrot, Naiman e Kim, 2001; Weisbrot, Baker, Kraev e Chen, 2001) e no aumento da concentração de renda (Krugman, 2002; Phillips, 2002; Aizcorbe, et al., 2003). Pela sua importância, cabe destacar o estudo recentemente realizado pelo economista William Easterley (2001), do Banco Mundial, que demonstra que "o crescimento nas décadas de 80 e 90 foi cerca de 2,3 pontos percentuais menor do que nas décadas de 60 e 70.” (p. 14). As principais variáveis explicativas para a desaceleração do crescimento foram a razão juros/produto e a desaceleração do crescimento nos países da OCDE7[7]. O autor conclui seu estudo afirmando que "o que é claro é que a estagnação dos países menos desenvolvidos foi uma grande decepção depois de toda a política de reformas dos anos 80 e 90.” (p. 22, tradução do autor, EMF). Por sua vez, a liberalização do mercado de capitais obteve o resultado esperado de elevar as taxas reais de juros (Duménil e Lévy, 2001 e 2002; Epstein, 2002a e 2002b; Kahn e Farrel, 2002), mas, por outro lado também implicou um aumento significativo

                                                            7[7]O trabalho de Frankel e Roubini (2001) corrobora esta conclusão. Ou seja, a análise mostra que os movimentos das taxas de juros e, em menor escala, das taxas de câmbio dos países capitalistas avançados exercem influência decisiva sobre o movimento de capitais para os países em desenvolvimento. Os estudos econométricos mostram que essas variáveis são mais importantes na explicação dos movimentos de entrada e saída de capitais para os “mercados emergentes” do que as variáveis internas. Os autores (2001, p.6) afirmam que “the most important identifiable factors behind the flows were US interest rates and other macroeconomic variables external to the emerging market countries. Capital was heading South because low rates of return were on offer in the North”.

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da volatilidade cambial e, também, da freqüência das crises financeiras (Eichengreen e Bordo, 2001; Delargy e Goodhart, 1999; Wyploz, 2001).

Ressalte-se também que a evidência empírica não dá suporte à hipótese de que os países que adotam o regime de metas inflacionárias obtenham um melhor desempenho no combate à inflação do que aqueles que não o adotam (Epstein, 2002a e 2002b; Bernanke, et al., 1999). A adoção do regime de metas inflacionárias não implica uma redução dos custos (medidos em termos de redução do PIB) quando da implementação de uma política monetária restritiva para combater a inflação (Epstein, 2002a; Bernanke, et al., 1999). A evidência empírica também não dá suporte à hipótese de que países com bancos centrais independentes obtenham menores taxas de inflação ou taxas mais elevadas de crescimento econômico (Daunfeldt e Luna, 2002; King, 2001; Epstein, 2002a e 2002b; Fuhrer, 1997). Portanto, a idéia de que a promoção do crescimento econômico com a manutenção da estabilidade dos preços requer que o regime de metas inflacionárias seja complementado com a concessão legal de autonomia ao BACEN não tem suporte na evidência empírica8[8].

A liberalização do movimento de capitais — que supostamente transferiria poupança e investimentos dos países industrializados para os “mercados emergentes”, permitiria a redução das taxas de juros, transferiria tecnologia e desenvolveria o sistema financeiro nacional — não tem resultado no aumento das taxas de crescimento econômico; ao contrário, o desempenho econômico declinou. Em um trabalho recentemente publicado, o FMI realizou uma avaliação da evidência empírica existente sobre os efeitos da globalização financeira sobre o desempenho econômico dos países em desenvolvimento. A principal conclusão foi de que "while financial globalization can, in theory, help to promote economic growth through various channels, there is as yet no robust empirical evidence that this casual relationship is quantitatively important. This point to an interesting contrast between financial openness and trade openness, since an overwhelming majority of research papers have found a positive effect of the latter on economic growth" (Prasad et al., 2003, p. 9)9[9].

Por outro lado, a evidência empírica demonstra o sucesso das reformas e políticas neoliberais no controle do processo inflacionário. No entanto, este sucesso tem sido obtido às custas, como vimos acima, da elevação do desemprego e do aumento das desigualdades sociais.

Parece-me importante mencionar o caso da África do Sul. Após muitos anos de luta por parte das forças democráticas e populares, o regime do apartheid foi forçado a participar de negociações políticas que levaram ao término deste regime com a realização de eleições democráticas em 1994. Como resultado dessas eleições, a coalizão liderada pelo Congresso Nacional Africano assumiu o poder, com um imenso apoio popular e com mandato para implementar profundas transformações na sociedade

                                                            8[8]Para uma crítica da proposta do Governo Lula de conceder autonomia operacional ao Banco Central ver Maldonado Filho (2003).

9[9]Essa conclusão também é apresentada da seguinte forma: "Thus, an objective reading of the vast research effort to date suggests that there is no strong, robust and uniform support for the theoretical argument that financial globalization per se delivers a higher rate of economic growth" (Prasad et al., 2003, p. 8).

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e na economia, caracterizada não só pelo apartheid político, mas também por um verdadeiro apartheid social e econômico. Em 1996, o governo sul-africano apresentou sua nova estratégia de desenvolvimento denominada de “Crescimento, Emprego e Redistribuição” (Growth, Employment and Redistribution — GEAR). A estratégia proposta consistiu basicamente na adoção do modelo neoliberal; ou seja, na liberalização do comércio externo, dos controles cambiais, na flexibilização do mercado de trabalho, na redução dos déficits orçamentários e na adoção de políticas monetárias restritivas e também num amplo programa de privatização.

Os resultados obtidos pela estratégia neoliberal do governo sul-africano foram decepcionantes, tanto em relação as previsões do GEAR mas principalmente em relação às expectativas da população de que a antiga oposição, agora no governo, seria capaz de implementar uma nova estratégia de desenvolvimento que resultasse em crescimento econômico, redução do desemprego e da pobreza; ou seja em desenvolvimento econômico e social para a sociedade sul-africana10[10]. Na verdade, os resultados da implantação do modelo neoliberal na África do Sul foram o de aumentar o desemprego, a pobreza e as desigualdades sociais. A comparação destes resultados com a experiência internacional comentada acima, mostra que o desempenho da economia sul-africana está plenamente de acordo com os estudos empíricos realizados sobre a implantação do neoliberalismo.

Outro aspecto importante sobre a experiência sul-africana se relaciona com a estratégia política adotada pelo governo do Congresso Nacional Africano. Por um lado, o governo adotou uma política de desmobilização da população e, por outro lado, passou a haver um cerceamento das críticas internas à adoção do modelo neoliberal. Um caso lamentável foi o da autocrítica que Cronin, uma das lideranças do Partido Comunista Sul-Africano (e que faz parte do governo), foi obrigado a fazer depois de ter criticado, numa entrevista a um jornal irlandês, a política neoliberal adotada pelo governo. Na verdade, a implantação do neoliberalismo na África do Sul por parte de um governo de esquerda só está sendo possível justamente porque foram adotadas essas duas estratégias políticas11[11].

1.3 - O Plano Real: plano de estabilização monetária e de continuidade das reformas institucionais neoliberais12[12]

                                                            10[10]Segundo as metas do GEAR, a partir do ano 2000 a economia sul-africana deveria crescer por volta de 6% ao ano e gerar cerca 400.000 novos empregos por ano. Em desacordo com as expectativas dos proponentes do modelo neoliberal, mas em conformidade com a experiência histórica passada e com a evidência empírica recente, a taxa de crescimento econômico, no período 1996-2002, foi de apenas 2,4% a.a. e o nível de emprego declinou nesse período, elevando ainda mais a taxa de desemprego. Em relação ao objetivo de reduzir as desigualdades sociais, os resultados obtidos também estiveram em conformidade com a experiência histórica passada e recente, a saber: houve um aumento das desigualdades sociais. (Ver, por exemplo, Heintz, 2003).

11[11] Sobre este tema ver Saul (2001) e o debate entre Saul (2002) e Cronin (2002).

12[12]Para uma análise crítica do Plano Real ver Saad Filho e Maldonado Filho (1998).

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Cabe relembrar que o Plano Real foi implementado no contexto do processo de implementação das reformas neoliberais (liberalização dos mercados e privatização) que tiveram início no governo Collor. No dia 7 de dezembro de 1993, através da Exposição de Motivos nº 395, o então Ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, apresentou o Programa de Estabilização Econômica, que ficou conhecido como Plano Real. Este documento apresenta, inicialmente, um breve diagnóstico da crise fiscal e, a seguir, as proposições para a estabilização da economia brasileira. As proposições foram agrupadas em três frentes de atuação, a saber: (a) medidas visando a obtenção de equilíbrio orçamentário no biênio 1994-95; (b) sugestões à revisão constitucional e (c) a implementação de uma reforma monetária. O diagnóstico que embasa a agenda do Plano Real era de que a principal causa da inflação no Brasil estava no desequilíbrio estrutural das contas públicas13[13], enquanto que a sua persistência estava associada à inércia inflacionária devida à indexação.

Numa primeira fase, o governo atuaria no sentido de obter um equilíbrio orçamentário de curto prazo. Para tal, a equipe econômica propôs medidas para elevar a arrecadação tributária, especialmente o aumento de impostos e a criação do fundo social de emergência, e para reduzir os gastos públicos. O sucesso destas iniciativas, pelo menos no curto prazo, eliminaria a causa primária da inflação. Uma vez tendo obtido sucesso (ainda que temporário) no controle do déficit público, o plano entraria na sua segunda fase, cujo objetivo básico era o de desindexar a economia e, assim, eliminar a inércia inflacionária através do uso generalizado da URV. Com a eliminação da inércia inflacionária, o plano entraria na sua terceira fase, através da introdução da nova moeda (o real), cuja estabilidade seria garantida pela adoção de regras rígidas para a emissão monetária. Com isso, a equipe econômica do Governo Itamar Franco acreditava que o processo inflacionário brasileiro seria controlado, pelo menos no curto prazo.

A garantia do seu controle definitivo, no entanto, dependeria da implantação das reformas institucionais que permitissem tanto a redução da participação do Estado na economia quanto o adequado funcionamento dos mercados. Assim, em primeiro lugar, seria necessária a realização daquelas reformas estruturais que permitissem a obtenção de um ajuste definitivo das contas públicas14[14]. Complementando o ajuste estrutural do

                                                            13[13]"2) O país sabe da firmeza do compromisso de vossa excelência com as aspirações nacionais de consolidação da democracia, crescimento econômico sustentado e justiça social. É também testemunha da tenacidade com que este governo tem perseguido o equilíbrio fiscal como meta prioritária consciente de que a desordem financeira e administrativa do Estado é a principal causa da inflação crônica que impede a sustentação do crescimento, perpetua as desigualdades e mina a confiança nas instituições" (Exposição de Motivos nº 395, 7/dez/1993).

14[14]"8. Embora suficiente para imprimir confiabilidade ao REAL, o equilíbrio fiscal obtido, para ser duradouro, requer mudanças adicionais no arcabouço administrativo e financeiro do Estado brasileiro, envolvendo alterações da Constituição no que respeita a organização federativa, sistema tributário, elaboração do orçamento, funcionalismo, previdência social e intervenção no domínio econômico. O Governo de Vossa Excelência encaminhou ao Congresso Nacional um conjunto de sugestões nesse sentido, com vistas à revisão constitucional prevista pelo art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. O fim da revisão, sem a apreciação dos pontos mencionados, deixa para o Presidente e o Congresso a serem eleitos o desafio de viabilizar as reformas necessárias. Não se recusará ao Governo de Vossa Excelência, entretanto, o crédito de haver contribuído decisivamente para difundir na sociedade brasileira a consciência de que o equilíbrio fiscal duradouro é condição fundamental para que a estabilização da economia frutifique em desenvolvimento sustentado a longo prazo" (Exposição de Motivos Interministerial nº 205, de 30/jun/1994, ênfase adicionada).

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setor público, seria dada continuidade às reformas de liberalização e flexibilização dos mercados - em especial, a continuidade da abertura do comércio exterior, da liberalização em relação à entrada e saída de capitais, da flexibilização do mercado de trabalho e do "aperfeiçoamento e ampliação do programa de privatização das empresas estatais".

Vale a pena reproduzir aqui a análise apresentada por Saad Filho e Maldonado (1998), sobre as razões do sucesso do Plano Real em controlar o processo inflacionário.

"Um dos aspectos mais interessantes do plano real é o fato de que a queda da inflação não está estritamente relacionada com a sua implementação - e nem, portanto, com o seu diagnóstico do processo inflacionário. Esta afirmação pode parecer estranha, pois a inflação caiu drasticamente a partir de 1994. Entretanto, (i) o déficit público (que, segundo o neomonetarismo, é a causa básica de qualquer processo inflacionário) não só não foi controlado, como tem crescido aceleradamente; mesmo assim, a inflação está controlada; (ii) a URV cujo objetivo era o de acabar com a inércia, não foi capaz de eliminar as pressões inflacionárias; ao contrário, houve inflação em URV; (iii) o controle rígido da expansão da oferta monetária nunca saiu do papel. Não é surpreendente que os políticos do governo atribuam a estabilização ao plano real, mas esta afirmação deveria ser criticada pelos economistas, o que não tem acontecido" (p. 99).

"De fato, o 'sucesso do plano real' se deve, por um lado, a uma conjuntura favorável nos mercados financeiros internacionais e, por outro lado, à forte elevação das taxas de juros internas, que atraíram grandes massas de recursos externos provocando a sobrevalorização cambial. Esta, conjuntamente com a aceleração da abertura comercial, explica não só a estabilidade dos preços, mas também a crise de amplos setores industriais e agrícolas e seus reflexos na perda de postos de trabalho, a precarização dos empregos, e a perda de competitividade das empresas nacionais. O problema deste caminho é que não só o custo social é altíssimo, tanto em termos de crescimento econômico quanto em perda da competitividade das exportações e, portanto, desemprego, mas também que ele tende a levar a uma crise do balanço de pagamentos, cujas conseqüências são gravíssimas para a sociedade, como bem ilustram a crise asiática atual e a experiência recente do Chile, Argentina e México (ver, por exemplo, Gontijo, 1995)" (pp. 99-100).

O Plano Real teve continuidade no segundo mandato do Governo FHC. Já em 28 de outubro de 1998, o governo recém eleito apresentava o seu Programa de Estabilidade Fiscal, cujo objetivo era o de dar continuidade às reformas institucionais que, dentro da concepção neoliberal que embasa o Plano Real, seriam imprescindíveis para a obtenção do ajuste definitivo das contas públicas15[15]. Como foi visto acima, a retomada do crescimento econômico da economia brasileira só seria possível, segundo o diagnóstico das autoridades econômicas do Governo FHC, com a obtenção do equilíbrio definitivo das contas públicas16[16]. Outro aspecto fundamental do modelo neoliberal que está

                                                            15[15]“O equilíbrio fiscal sempre foi uma das prioridades do processo de reformas por que vem passando o país desde a implantação do Plano Real” (Plano de Estabilização Fiscal, p. 1).

16[16] “O equilíbrio das contas públicas representa um passo decisivo na redefinição do modelo econômico brasileiro. Trata-se, em essência, da introdução de mudanças fundamentais no regime fiscal

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sendo implementado no Brasil desde o Governo Collor, diz respeito à implementação de reformas institucionais que permitam o adequado funcionamento dos mercados.

O Programa de Estabilidade Fiscal se subdividia em dois conjuntos de iniciativas: (i) a Agenda de Trabalho e (ii) o Plano de Ação 1999-2001. O primeiro conjunto de iniciativas visava atacar "na raiz as causas estruturais do desequilíbrio das contas públicas. Compreende a regulamentação da reforma Administrativa já aprovada pelo Congresso Nacional; a aprovação e a regulamentação da Reforma da Previdência Social e a instituição da Lei Geral da Previdência Pública; as reformas tributária e trabalhista, imprescindíveis para promover a competitividade do setor produtivo e estimular o crescimento e a geração de empregos; e a Lei de Responsabilidade Fiscal, capaz de instituir ordem definitiva nas contas públicas do conjunto dos Poderes e níveis de governo" (ver Programa de Estabilização Fiscal - resumo). O Plano de Ação, por sua vez, tinha como objetivo "assegurar o êxito da transição para a estabilização definitiva das contas públicas até que o novo ambiente de equilíbrio fiscal promovido pelas reformas estruturais esteja estabelecido". Mais especificamente, o Plano de Ação previa "a elaboração de programa fiscal de médio prazo visando à obtenção de superávites primários crescentes e suficientes para estabilizar, ao final do período, a relação entre dívida líquida consolidada do setor público e o Produto Interno Bruto17[17]" (Programa de Estabilização Fiscal - resumo), sendo que o "Plano de Ação concentra-se na redução das despesas dos dois principais focos do desequilíbrio — o déficit dos Sistemas de Previdência e os gastos do Governo Federal" (Programa de Estabilização Fiscal - resumo).

1.4 - As “Reformas (Ainda) Necessárias” para a consolidação do modelo neoliberal no Brasil

Conforme visto acima, o Governo FHC foi capaz de desenvolver um amplo programa de reformas estruturais (privatizações, liberalizações do sistema financeiro, do comércio externo, etc.) com o objetivo de dar maior capacidade de coordenação das atividades econômicas aos mercados. Em relação à política fiscal, importantes progressos, do ponto de vista do neoliberalismo, foram feitos. Outro exemplo, da mesma forma como ocorreu em outros países, foi a aprovação de uma lei de responsabilidade fiscal impondo limites aos gastos e ao endividamento público. Graças à adoção de uma política fiscal fortemente restritiva, o governo foi capaz de obter significativos superávites primários, conforme previsto no Plano de Ação 1999-2001. No entanto, do ponto de vista do modelo neoliberal, esses resultados, ainda que importantes, não foram suficientes para a obtenção do equilíbrio estrutural da contas

                                                                                                                                                                              do país, com o objetivo de promover o equilíbrio definitivo das contas públicas na velocidade necessária para permitir a consolidação dos três objetivos básicos do Plano Real: estabilidade da moeda, crescimento sustentado com mudança estrutural e ganhos de produtividade, e a melhoria progressiva das condições de vida da população brasileira" (Plano de Estabilização Fiscal).

17[17] “O Programa de Estabilidade Fiscal estabelece uma trajetória crescente de produção de superávites primários ao longo do triênio 1999-2001, assim distribuída: 2,6% em 1999, 2,8% em 2000 e 3,0% no ano 2001. Estes resultados primários serão suficientes, dadas as hipóteses macroeconômicas utilizadas, para estabilizar a relação dívida/PIB em torno de 44% do PIB a partir de 1999" (Plano de Estabilização Fiscal).

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públicas e, por conseguinte, para gerar o necessário grau de credibilidade junto aos investidores. Apenas com a realização de um "ajuste fiscal definitivo" — o que pressupõe a aprovação das reformas tributária e da previdência social que, evidentemente, precisam não só equilibrar as contas públicas mas, também, e isso é não menos importante, estar em conformidade com os interesses dos mercados — será possível obter-se o equilíbrio macroeconômico estrutural da economia brasileira e, portanto, a necessária credibilidade junto aos mercados financeiros. No caso da reforma da previdência, um aspecto importante a ser destacado se relaciona com o grande interesse dos agentes financeiros, nacionais e internacionais, em gerirem os imensos recursos financeiros da previdência social. Assim, a “reforma previdenciária necessária”, sob a ótica do modelo neoliberal, precisa atender duas condições básicas: atuar como instrumento para se obter o equilíbrio definitivo das contas públicas e, igualmente importante, possibilitar que essa imensa massa de poupança participe do processo de valorização do capital financeiro privado.

A avaliação da implementação do Programa de Estabilidade Fiscal durante o Governo FHC mostra que, apesar dos significativos avanços realizados para a estruturação do modelo neoliberal no Brasil, importantes reformas que foram propostas neste documento acabaram não sendo implementadas. Em relação à Agenda de Trabalho, as reformas da previdência social e tributária, que são consideradas fundamentais para a obtenção do equilíbrio definitivo das contas públicas, não avançaram. O Plano de Ação, por sua vez, apesar do seu sucesso na geração dos superávites primários, não conseguiu estabilizar a relação dívida/PIB, considerada como sendo "o principal indicador de solvência a longo-prazo do Setor Público. A trajetória dessa relação entre dívida pública e o Produto Interno bruto é, portanto, a variável tomada como indicador básico de médio e longo prazos do Programa de Estabilidade Fiscal". Assim, a realização de um conjunto fundamental de "reformas necessárias" para a consolidação definitiva no modelo neoliberal no Brasil — ou seja, a Agenda de Trabalho — ficou paralisada no Congresso Nacional. Além disso, durante a campanha eleitoral, esta Agenda de Trabalho ficou praticamente esquecida.

Importantes economistas liberais do Brasil, preocupados com a possibilidade de que a "revolução neoliberal ficasse inacabada" — ou seja, de que as "reformas necessárias" para a consolidação do modelo econômico que vinha sendo implementado no Brasil pelos Governos Collor e FHC não mais se efetivassem — elaboraram um documento (denominando-o de "Agenda Perdida") propondo a retomada da agenda de "reformas necessárias" à obtenção do equilíbrio definitivo das contas públicas e ao adequado funcionamento dos mercados. Segundo esse documento:

"É verdade que diversos dos itens discutidos neste documento estiveram presentes, ainda que de forma pouco sistemática, nos debates sobre a política econômica brasileira no período que se seguiu à estabilização, entre eles a reforma tributária e a regulamentação do mercado de trabalho. Essa agenda de reformas, contudo, não tem tido papel central na atual campanha presidencial".

"Desse modo, um dos principais objetivos deste documento é retomar essa agenda a partir de uma análise integrada de diversas características estruturais da economia brasileira. Além dessa retomada, o documento procura oferecer uma perspectiva alternativa para diversos problemas da economia brasileira que são freqüentemente tratados como decorrentes das políticas macroeconômicas de curto prazo. Diversas evidências sugerem que esses problemas, ao contrário,

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estão associados a características estruturais dessa economia. Suas baixas taxas de crescimento datam de mais de vinte anos e, como veremos, há várias décadas ela apresenta, em comparação com a economia de outros países, baixa taxa de investimento como fração da renda nacional. Ademais, a economia brasileira apresenta, nas últimas décadas, baixo volume de crédito e taxas de juros elevadas em relação às demais nações. Não apenas a taxa básica do Banco Central, como também o diferencial entre esta e as taxas cobradas no mercado privado de crédito" (Lisboa, pp. 5-6).

A consolidação definitiva do modelo neoliberal no Brasil (e que faz parte das "condicionalidades" do FMI) também requer a institucionalização da concessão legal de autonomia operacional ao Banco Central18[18]. Sob a ótica neoliberal, o objetivo central da política monetária é o de obter, de uma forma consistente no tempo, a estabilidade dos preços. Para que este compromisso tenha credibilidade junto aos investidores é necessário o estabelecimento de dispositivo institucional que assegure não só que o BACEN tenha autonomia em relação às instâncias democráticas da sociedade, mas, também, que o único compromisso efetivo da política monetária será com a estabilidade dos preços.

Finalmente, outra reforma fundamental para a consolidação do modelo neoliberal no Brasil se relaciona com o mercado de trabalho. Conforme afirma o Programa de Estabilidade Fiscal, "a reforma trabalhista é fundamental para adequar o funcionamento do mercado de trabalho ao processo de reestruturação econômica por que vem passando o País, com os seguintes objetivos básicos: preservação e geração de empregos; redução da rotatividade da força de trabalho; crescimento da produtividade [e] redução da informalidade." Ou seja, o objetivo central das modificações da legislação trabalhista é o de aumentar a “flexibilidade” do mercado de trabalho formal, reduzindo tanto o custo da mão de obra quanto os incentivos à informalidade.

Portanto, do ponto de vista da concepção neoliberal, as “reformas (ainda) necessárias” para a consolidação do modelo neoliberal no Brasil são, principalmente, as seguintes: tributária, previdenciária, trabalhista e a concessão institucional de autonomia operacional ao BACEN.

Segundo a concepção neoliberal, a aprovação dessas reformas no Congresso Nacional permitirá ao Brasil obter maiores níveis de credibilidade junto aos mercados financeiros, condição esta imprescindível para a redução das taxas de juros e, portanto, para a retomada do crescimento econômico. Enquanto isso não ocorrer, a economia brasileira continuaria vulnerável a uma crise de confiança por parte dos investidores. Esta é argumentação, por exemplo, de economistas do Banco Central do Brasil quando afirmam que a não realização do "ajuste fiscal definitivo" implicou que o "Brazil remained vulnerable to a confidence crisis, which became a reality when the international financial turmoil culminated with the Russian moratorium in August 1998. The confidence crisis generated a large capital flight from emerging markets." (Bogdanski, et al., 2000, pp. 6-7).

                                                            18[18]Ver Maldonado Filho (2003).

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1.5 - O Modelo Neoliberal e Desempenho Econômico: conclusões

A avaliação da extensa bibliografia empírica e histórica sobre o desempenho econômico e social resultante da implantação do modelo neoliberal demonstra o seguinte: (i) baixas taxas de crescimento econômico; (ii) tendência ao aumento das taxas de desemprego e da pobreza; (iii) grande volatilidade das taxas de câmbio; (iv) crises financeiras e cambiais freqüentes; (v) elevadas (em relação ao padrão histórico) taxas de juros reais e (vi) aumento das desigualdades sociais.

A análise do modelo neoliberal que estava sendo implantado no Brasil pelos governos Collor e FHC mostra que a consolidação do modelo neoliberal no Brasil ainda requer: (i) a implementação das reformas tributária e previdenciária que são essenciais para a obtenção de um "ajuste fiscal definitivo" (a obtenção deste ajuste definitivo é fundamental para que o Brasil obtenha credibilidade junto aos investidores); (ii) a aprovação de lei instituindo a autonomia operacional, mandatos fixos para a diretoria do Banco Central do Brasil e estabelecendo mandato para que o objetivo principal e permanente da Instituição seja com a manutenção da estabilidade dos preços. Com isso, criando condições para que o Brasil obtenha "níveis mais elevados de credibilidade" junto aos mercados financeiros; (iii) a implementação de reformas que tornem o mercado de trabalho mais flexível19[19].

2 - O Programa do PT e as “Reformas Necessárias”

                                                            19[19] É interessante ressaltar o tratamento diferenciado com que os economistas liberais abordam a questão do respeito aos contratos. O descumprimento dos contratos, quando afeta o capital, é visto não só como sendo inaceitável do ponto de vista jurídico e ético, mas também trazendo resultados negativos para o funcionamento dos mercados financeiros e, por conseguinte, afetando negativamente a credibilidade do país. Por outro lado, o não cumprimento dos contratos de trabalho é visto como indicador da rigidez nas normas que regulamentam o mercado de trabalho e, portanto, da necessidade de flexibilização das mesmas. O fato de haver, sistematicamente, descumprimento dos contratos de trabalho não é visto nem como gerando problemas de credibilidade nem atrapalhando o bom funcionamento dos mercados; muito menos como sendo inaceitável do ponto de vista ético ou jurídico. Ao contrário, neste caso os economistas liberais defendem a necessidade da renegociação, que deve ser melhor realizada fora da esfera judicial. Assim, por exemplo, no documento "A Agenda Perdida", encontramos as seguintes argumentações em relação a esse tema: “Como visto na seção sobre mercado e Justiça do Trabalho, segundo as leis em vigor, os contratos trabalhistas são renegociáveis a posteriori, o que incentiva a informalidade e aumenta a possibilidade de evasão de outros impostos. Note-se agora que o problema não é a existência de negociação, mas sim o locus e o momento em que ocorre. A negociação deve existir e ser incentivada. Deveria ocorrer, contudo, ao longo da relação de trabalho e não após ela ter terminado. A proposta, portanto, é deslocar a negociação da Justiça do Trabalho, onde ocorre depois que a relação de trabalho acabou, para as empresas e os sindicatos de trabalhadores, enquanto a relação de trabalho está em andamento” (p. 27). Por outro lado, quando trata do não cumprimento dos contratos para com os capitalistas, o ponto de vista muda. Nesse contexto os autores deste documento afirmam que “A politização da Justiça, ao contrário, manifesta-se muitas vezes na tendência de alguns magistrados em proteger grupos considerados a parte mais fraca nas disputas levadas aos tribunais, de tal modo que, levados a optar entre o respeito aos contratos, independentemente de sua repercussão social, e sentenças que, violando os contratos, buscam justiça social, escolhem a segunda alternativa” (p. 38). Mais ainda, “No entanto, como mostram Pastore e Pinotti (2002), não há qualquer evidência empírica de que a taxa SELIC, nominal ou real, cause aumento do risco-Brasil, e, portanto, de que o risco-Brasil seja causado por políticas monetárias excessivamente conservadoras. O elevado nível do risco-Brasil se deve antes à fragilidade do ajuste fiscal e a um triste histórico de políticas fiscais expansionistas e de descumprimento de contratos” (p. 41).

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O Partido dos Trabalhadores apresentou à sociedade brasileira, durante a campanha eleitoral, três documentos explicitando suas propostas para governar o Brasil, a saber: (i) Concepção e Diretrizes do Programa de Governo do PT para o Brasil (março de 2002), que foi aprovado no XII Encontro Nacional do PT realizado em Recife em dezembro de 2001; (ii) Carta ao Povo Brasileiro (Silva, 22 de junho de 2002) e (iii) Programa de Governo 2002 da Coligação Lula Presidente, Um Brasil para Todos (julho de 2002). Uma análise detalhada desses documentos mostra que eles basicamente reafirmam muitas das proposições históricas defendidas pelo PT20[20]. Em particular, Borges Neto (2002, p. 11) mostra que "Levando em conta o programa Um Brasil para Todos no seu conjunto, podemos concluir que ele representou um movimento na direção de maior moderação, mas que isto não aconteceu tanto por ele defender uma concepção diferente do texto das Diretrizes, e sim por não explicitar algumas das conseqüências mais ‘radicais’ da concepção defendida. A própria idéia de ‘transição’ é vinculada à busca de um modelo de desenvolvimento muito diferente daquele do governo de F. H. Cardoso”.

2.1 - O Programa Econômico do PT

Portanto, o programa de governo apresentado à sociedade brasileira durante a campanha eleitoral parte de uma visão crítica do modelo neoliberal que estava sendo implementado pelo governo FHC e assume o compromisso de construir um modelo de desenvolvimento alternativo, capaz de promover o crescimento econômico, a justiça social e que seja ecologicamente sustentável. No entanto, para a construção desse novo modelo de desenvolvimento “será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica” (Silva, 2002).

Vejamos então, de uma forma breve, o argumento econômico básico que está presente nos documentos apresentados pelo PT durante a campanha eleitoral:

1. A partir de uma avaliação crítica do modelo neoliberal implantado no Brasil durante os governos Collor e FHC, conclui-se que o mesmo não foi capaz de gerar crescimento econômico, empregos e que resulta num crescente aumento da exclusão social. Por exemplo, Lula afirma que “Se em algum momento, ao longo dos anos 90, o atual modelo conseguiu despertar esperanças de progresso econômico e social, hoje a decepção com os seus resultados é enorme. Oito anos depois, o povo brasileiro faz o balanço e verifica que as promessas fundamentais foram descumpridas e as esperanças frustradas. Nosso povo constata com pesar e indignação que a economia não cresceu e está muito mais vulnerável, a soberania do país ficou em grande parte comprometida, a corrupção continua alta e, principalmente, a crise social e a insegurança tornaram-se assustadoras” (Silva, 2002).

2. Diante deste fracasso, o programa do PT reafirma a necessidade de se romper com o modelo neoliberal. A continuidade na implementação desse modelo levará à estagnação econômica e pode mesmo resultar numa grave crise — "o país não pode

                                                            20[20]Para uma análise detalhada dessas propostas, ver Borges Neto (2003).

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insistir nesse caminho, sob pena de ficar numa estagnação crônica ou até mesmo sofrer, mais cedo ou mais tarde, um colapso econômico, social e moral" (Silva, 2002).

3. A mudança do modelo atual para o novo modelo de desenvolvimento requer um período de transição, durante o qual as políticas econômicas e as "reformas necessárias" para a construção do novo modelo serão implementadas de forma gradual e através de uma ampla negociação nacional, com o respeito aos contratos e obrigações já assumidos pelo país. Assim, afirma-se que “o esforço pelo crescimento será estruturado simultaneamente a uma criteriosa e responsável transição entre o que temos hoje e o que a sociedade brasileira reivindica. Mesmo porque o agravamento da vulnerabilidade de nossa economia não se originará da mudança do atual modelo econômico, mas sim da sua continuidade” (Um Brasil para Todos, 2002, p. 38).

4. Segundo a avaliação do programa de governo do PT, o principal entrave à retomada do crescimento econômico está na sua vulnerabilidade externa (e não no desequilíbrio das contas públicas, conforme a avaliação da área econômica do governo FHC, dos investidores e do FMI). Por isso, os objetivos das políticas macroeconômicas e das "reformas necessárias" estarão direcionados para a superação da vulnerabilidade externa. Essa concepção está expressa, por exemplo, na seguinte afirmação: “Superando a nossa vulnerabilidade externa, poderemos reduzir de forma sustentada a taxa de juros. Poderemos recuperar a capacidade de investimento público tão importante para alavancar o crescimento econômico. Esse é o melhor caminho para que os contratos sejam honrados e o país recupere a liberdade de sua política econômica orientada para o desenvolvimento sustentável” (Silva, 2002).

5. Na avaliação dos formuladores do programa de governo, a liberalização financeira e a do comércio externo, combinada com a sobrevalorização cambial do período 1994-98 (o chamado “populismo cambial”), acentuaram, ainda mais, a tradicional vulnerabilidade externa da economia brasileira. Por exemplo, em Um Brasil para Todos (p. 26) afirma-se que “As políticas ativas de liberalização promovidas pelo atual governo fragilizaram as contas externas do País e desequilibraram as contas públicas. A abertura financeira executada aumentou a vulnerabilidade externa e reduziu a capacidade de financiamento das atividades produtivas, em especial no que se refere ao investimento.” Esta avaliação é importante por que ela implica, necessariamente, a proposição de que é imprescindível estabelecer um maior controle sobre a conta de capitais do balanço de pagamentos.

6. Portanto, a partir deste diagnóstico sobre os principais entraves à retomada do crescimento econômico, o objetivo central da política econômica e das “reformas necessárias” fica claramente estabelecido, a saber: recuperação do controle das contas externas; ou seja, com a redução da dependência do fluxo de capitais externos. Em outras palavras, o programa de governo do PT afirma que a retomada do crescimento econômico passa pela implementação de políticas econômicas e de reformas estruturais que promovam a elevação das exportações, a substituição de importações (permitindo, assim, que se crie um amplo mercado interno de massas) e, também, que resultem na redução do déficit das transações correntes do balanço de pagamentos. Esta idéia está expressa, por exemplo, na Carta de Lula quando

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afirma que: “O povo brasileiro quer mudar para valer. Recusa qualquer forma de continuísmo, seja ele assumido ou mascarado. Quer trilhar o caminho da redução de nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas”.

7. Finalmente, o programa do PT reconhece a importância de se obter um equilíbrio. definitivo das contas públicas. Mas este “ajuste estrutural das contas públicas” só será possível através da redução da vulnerabilidade externa, o que permitirá, por sua vez, a redução das taxas de juros. Ou seja, na visão dos formuladores do programa do PT, o principal determinante do desequilíbrio fiscal está relacionado com as elevadíssimas taxas de juros, cujas causas decorrem da vulnerabilidade externa da economia brasileira. Mais ainda, a visão neoliberal de que a obtenção de um “ajuste fiscal definitivo” se constitui no principal entrave ao crescimento econômico é repudiada, pois levaria, na verdade, a uma nova armadilha: controle inflacionário com estagnação econômica. Esse entendimento é clara (e fortemente) expresso tanto na Carta quanto no Programa Um Brasil para Todos. Na Carta Lula afirma que “Lembrem-se todos: em 1998, o governo, para não admitir o fracasso do seu populismo cambial, escondeu uma informação decisiva. A de que o real estava artificialmente valorizado e de que o país estava sujeito a um ataque especulativo de proporções inéditas. Estamos de novo atravessando um cenário semelhante. Substituímos o populismo cambial pela vulnerabilidade da âncora fiscal. O caminho para superar a fragilidade das finanças públicas é aumentar e melhorar a qualidade das exportações e promover uma substituição competitiva de importações no curto prazo". Por sua vez, no documento Um Brasil para Todos afirma-se que "É preciso evitar que se consolide uma segunda armadilha, que estabiliza, mas impede o crescimento econômico do País. Já tivemos a armadilha cambial. Saímos dela em 1999 com muitas dores, mas sobrevivemos. Agora, temos o dilema da âncora fiscal. A questão é como superá-la, sem atentar contra a estabilidade da economia. Nosso governo vai preservar o superávit primário o quanto for necessário, de maneira a não permitir que ocorra um aumento da dívida interna em relação ao PIB, o que poderia destruir a confiança na capacidade do governo de cumprir seus compromissos. Mas vai trabalhar firmemente para reduzir a vulnerabilidade externa e com ela as taxas de juros que hoje asfixiam as contas públicas e o setor empresarial produtivo".

Portanto, o programa do PT para governar o Brasil, apresentado durante a campanha eleitoral, entende que a construção do novo modelo de desenvolvimento para a sociedade brasileira tem como pressuposto básico a retomada do crescimento econômico e tem na dimensão social o seu eixo central de estruturação.

2.2 - As Medidas Necessárias para Implementar o Programa do PT

As principais medidas para implementar o programa econômico do PT seriam as seguintes:

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1. política monetária de redução das taxas de juros21[21]:

tendo em vista a grande dependência da economia brasileira em relação aos fluxos de capitais externos, esta política monetária precisaria ser acompanhada por medidas que dessem ao BACEN um maior grau de controle da conta de capitais do balanço de pagamentos e por medidas que reduzissem o déficit das transações correntes do balanço de pagamentos;

2. política fiscal continuaria, num primeiro momento, restritiva:

conforme visto acima, o governo Lula continuaria com a política fiscal comprometida com a geração de superávites primários com vistas a evitar que a relação dívida pública/PIB aumentasse. Mas, assim que as condições das contas externas e da dívida pública melhorassem, a política fiscal também deveria tornar-se expansionista;

3. política agressiva de promoção das exportações e de substituição das importações:

além de uma política ativa de promoção das exportações, a política cambial também teria um papel fundamental para atingir o objetivo de elevar de forma significativa o saldo da balança comercial. Adoção de uma política industrial de incentivo aos setores exportadores e aos setores de substituição de importações;

4. "reformas necessárias":

as "reformas necessárias" para a construção do novo modelo de desenvolvimento são aquelas que permitirão promover o crescimento econômico e as exportações e que resultarão em maior equidade social. Em outras palavras, as reformas estruturais serão realizadas no sentido de que "democratizem e modernizem o país, tornando-o mais justo, eficiente e, ao mesmo tempo, mais competitivo no mercado internacional. O caminho da reforma tributária, que desonere a produção. Da reforma agrária que assegure a paz no campo. Da redução de nossas carências energéticas e de nosso déficit habitacional. Da reforma previdenciária, da reforma trabalhista e de programas prioritários contra a fome e a insegurança pública" (Silva, 2002).

Finalmente, cabe ressaltar a crítica apresentada pelo programa de governo do PT à estratégia de que o "ajuste fiscal" seja o pressuposto para a retomada do crescimento econômico sustentável:

                                                            21[21]"Nosso governo terá uma atitude ativa no sentido de buscar a redução das taxas de juros. Para tanto, vai concentrar esforços para diminuir de forma rápida e continuada o déficit em transações correntes, com a obtenção de saldos comerciais crescentes e a melhora na conta de serviços. O regime de câmbio flutuante constitui um instrumento relevante, ainda que insuficiente, para acelerar a resolução da restrição externa, mas a retomada do desenvolvimento depende, sobretudo, da concentração de esforços nas políticas industriais e de crescimento" (Um Brasil para Todos, p. 38).

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"A questão chave para o País é voltar a crescer com equilíbrio em todos os ramos de atividade, na agricultura, na indústria, no comércio e nos serviços. A volta do crescimento é o remédio para impedir que se estabeleça um círculo vicioso entre juros altos, instabilidade cambial e aumento da dívida pública em proporção ao PIB. O atual governo estabeleceu um equilíbrio fiscal precário, criando dificuldades para a retomada do desenvolvimento. O resultado é que a âncora fiscal que procura evitar o crescimento acelerado da dívida pública interna, pela via dos superávites primários, exige um esforço enorme de todos os brasileiros, afetando especialmente a viabilidade dos programas sociais do poder público. A âncora fiscal, ao ter como um de seus fundamentos uma carga tributária amplamente baseada em impostos cumulativos, acaba tendo um efeito limitador da atividade econômica e das exportações. Entretanto, esta é, do ponto de vista objetivo, a realidade que o futuro governo vai herdar e que não poderá reverter num passe de mágica. O problema de fundo é que o atual governo colocou o Brasil num impasse financeiro, que nos obriga, com freqüência, a contrair empréstimos novos para pagar empréstimos velhos. A superação desses obstáculos à retomada do crescimento acontecerá por meio de uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica" (Um Brasil para Todos, p. 10).

3 - Política Econômica e Reformas Estruturais no Governo Lula da Silva: a proposta do Ministério da Fazenda

A eleição de Lula para a presidência da República foi inicialmente saudada por muitos, especialmente pelas forças populares, pela perspectiva de que, finalmente, seria possível dar início a um processo de mudança da sociedade brasileira - mudanças em direção a uma sociedade mais justa, solidária e economicamente dinâmica. A eleição de Lula mostrou que, na sociedade brasileira, a "esperança tinha vencido o medo". O programa apresentado durante a campanha eleitoral indicava que o novo governo adotaria uma nova política econômica e uma nova agenda de reformas, com vistas a realizar uma transição entre “o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica”: um novo modelo de desenvolvimento, tendo como objetivos centrais o crescimento econômico, a geração de empregos, a maior participação popular nos processos de decisão, em especial na área econômica, e de crescente justiça social.

No entanto, se por um lado as medidas iniciais de política econômica e as propostas de reformas institucionais apresentadas pelo governo Lula rapidamente geravam ansiedade e frustração entre seus apoiadores, por outro lado essas medidas traziam euforia e aprovação entre as forças conservadoras que haviam sido derrotadas eleitoralmente. Os "mercados", o FMI, o governo americano (que, como vimos, consideram que a disseminação da liberdade dos mercados e do comércio internacional também se constituem em importantes instrumentos na sua luta contra o terrorismo) não se cansam de elogiar a responsabilidade e competência do novo governo nas questões econômicas22[22]. Afinal, eles têm argumentado há já algum tempo que não existem

                                                            22[22]O seguinte comentário de Galbraith (1983, p. 110) não deixa de ser verdadeiro e pertinente ao momento atual: "A capacidade dos ricos e dos seus acólitos de ver a virtude social no que servia aos seus interesses e conveniências, e considerar ridículo ou tolo o que não servia, nunca foi melhor manifestado do que em seu apoio ao ouro [i.e., ao padrão ouro, o que significa a defesa de uma política monetária independente e comprometida unicamente com a estabilidade dos preços — para uma análise crítica da

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outras alternativas viáveis às reformas neoliberais e à adoção de políticas macroeconômicas “responsáveis”. Dentre as muitas questões suscitadas por essa mudança de rumo, queremos aqui abordar apenas as seguintes: (i) qual o diagnóstico sobre os problemas da economia brasileira? (ii) a partir deste diagnóstico, quais são as políticas e reformas econômicas prioritárias à retomada do crescimento econômico com redução das desigualdades sociais?

A análise realizada anteriormente permite concluir que a agenda econômica que está sendo implementada pelo Governo Lula da Silva difere daquela defendida no processo eleitoral. A questão, portanto, é saber qual o diagnóstico que orienta a atual política econômica e de reformas estruturais. Felizmente, é possível responder a estas perguntas de uma forma objetiva, já que o Ministério da Fazenda publicou o documento Política Econômica e Reformas Estruturais (2003) onde são apresentadas "as prioridades da agenda econômica do Ministério da Fazenda para este ano e aponta[-se] como estas prioridades se inserem no contexto de mudança do País".

3.1 - Política Econômica e Reformas Estruturais: a agenda econômica do Ministério da Fazenda

Segundo o documento do Ministério da Fazenda, as três idéias essenciais do programa de governo apresentadas durante o processo eleitoral foram: (i) a retomada do crescimento em bases sustentáveis; (ii) período de transição durante o qual seria realizado "um processo de ajuste das condições macroeconômicas e a implementação de reformas estruturais" (p. 4); e (iii) a inclusão social como eixo central do projeto de desenvolvimento. O documento também afirma que, no programa de governo do PT, os seguintes aspectos são considerados inseparáveis do projeto de desenvolvimento: "[i] a retomada do crescimento econômico em bases sustentáveis, [ii] o fortalecimento das instituições essenciais à participação social e ao adequado funcionamento dos mercados23[23] e [iii] a melhoria da distribuição de renda, que deve ser compatível com a                                                                                                                                                                               proposta de autonomia do banco central ver Maldonado Filho, 2003] e sua condenação do papel-moeda. A tendência paralela dos economistas de encontrar virtude no que os indivíduos ricos e respeitáveis aplaudem era igualmente evidente".

23[23] A afirmação de que o "fortalecimento das instituições essenciais ao adequado funcionamento dos mercados" se constitua num dos aspectos inseparáveis do projeto de desenvolvimento defendido pelo PT não deixa de ser surpreendente. Mesmo considerando o processo de moderação que vem ocorrendo no PT mais recentemente, as críticas ao "adequado funcionamento dos mercados" e à crescente mercantilização da vida social sempre estiveram presentes, tanto na história do PT quanto na tradição da esquerda a nível internacional. Mais ainda, esta visão histórica do PT em relação aos mercados continua a ser destacada. Isso ocorre, por exemplo, no próprio documento do XII Encontro Nacional do PT quando afirma que "o ideal do mercado auto-regulador, que tende a submeter a natureza e a vida das pessoas à lógica do mercado, induz à proposta do Estado mínimo" (Concepções, p. 17). No entanto, uma busca meticulosa nos dois documentos da campanha eleitoral referidos pelo trabalho do Ministério da Fazenda mostra que não existe qualquer defesa, nem mesmo qualquer indicação indireta de apoio, de que, na visão do PT, o "adequado funcionamento dos mercados" se constitua num dos aspectos inseparáveis do projeto de desenvolvimento proposto para o Brasil. Dada a relevância deste tema para a construção de um modelo de desenvolvimento alternativo — o próprio documento balizador das políticas macroeconômicas e das reformas estruturais que estão sendo implementadas pelo Ministério da Fazenda ressalta esta importância ao afirmar que "um tema unificador das reformas propostas é a ênfase na importância do desenho institucional e legal para o adequado funcionamento dos mercados e das políticas públicas" —, seria importante que o Ministério da Fazenda mostrasse, por um lado, como que as condições para o "adequado

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igualdade de acesso dos diversos grupos sociais aos bens e serviços básicos, como saúde e educação, assim como oportunidades de emprego" (p. 4-5).

Os problemas centrais apresentados pela economia brasileira — baixas taxas de crescimento econômico e elevado grau de concentração de renda — estão associados aos seus problemas estruturais, sendo o principal deles o desequilíbrio das contas públicas24[24]. Este desequilíbrio, por sua vez, implica altas taxas de inflação, ou elevação da relação dívida/PIB. Ambos resultados têm efeitos negativos sobre o crescimento econômico e a distribuição de renda. Coerentemente com este diagnóstico, o documento propõe que, neste período inicial de transição, sejam assentadas as bases (i.e., sejam implementadas as reformas estruturais) que permitirão a retomada do crescimento econômico; ou seja, sejam realizadas aquelas “reformas necessárias” à obtenção do equilíbrio estrutural das contas públicas25[25].

Portanto, segundo o documento do Ministério da Fazenda, os principais entraves à retomada do crescimento econômico em bases sustentáveis encontram-se no desequilíbrio das contas públicas e no funcionamento inadequado dos mercados. A partir deste diagnóstico, o documento define como objetivos principais para a política econômica a obtenção de um ajuste fiscal definitivo e a implementação das reformas estruturais que garantam o funcionamento adequado das instituições e dos mercados. Além dessas medidas essenciais, o Ministério da Fazenda também propõe a adoção de algumas políticas econômicas específicas que podem auxiliar na retomada do crescimento econômico (tais como, incentivo ao desenvolvimento tecnológico e à inovação, redução dos incentivos à informalidade no mercado de trabalho26[26], redução dos custos de logística e transporte, unificação e coordenação das políticas de comércio exterior e investimentos em infra-estrutura).

                                                                                                                                                                              funcionamento dos mercados" se compatibilizam com um projeto de desenvolvimento tendo como eixo a inclusão social e baseado numa crescente democratização da vida social e política e, por outro, onde se encontra a defesa desta idéia nos documentos apresentados durante o processo eleitoral.

24[24] Assim, o documento afirma que "nesse sentido, o novo governo tem como primeiro compromisso da política econômica a resolução dos graves problemas fiscais que caracterizam nossa história econômica, ou seja, a promoção de um ajuste definitivo das contas públicas" (p. 8). Mais ainda, curiosamente considera que "O esforço empregado na busca do equilíbrio fiscal, com a fixação de uma meta de superávit primário de 4,25% do PIB, sem contar com novos aumentos de impostos, representa, porém, uma mudança estrutural em relação ao governo anterior" (p. 9, ênfase do autor, EMF).

25[25] "O ajuste saudável das contas do setor público – necessário à redução da relação dívida/PIB e conseqüente recuperação da capacidade de investimento dos setores público e privado – tornam imprescindíveis as reformas estruturais. Algumas delas, como a reforma da Previdência, tendem a produzir impactos diretos sobre as contas do setor público. Outras reformas e projetos – reforma tributária, autonomia operacional do Banco Central e reforma do mercado de crédito – trarão reflexos positivos para o funcionamento da economia, acelerando o ritmo do crescimento do produto” (p. 10).

26[26]“O desenho tributário brasileiro incentiva a informalização do mercado de trabalho. Os impostos e contribuições sobre folha de pagamento aumentam o custo relativo de contratação de trabalhadores formalmente, acarretando a informalização ou a utilização de técnicas de produção que poupem mão-de-obra. A cunha fiscal atual entre o que gasta a empresa formal e o que recebe o trabalhador de baixa renda está em cerca de 27% sobre os gastos da empresa e 37% sobre a remuneração recebida pelo trabalhado” (p. 34).

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Cabe destacar, finalmente, a proposta de reforma do mercado de crédito. O objetivo dessa reforma é o de modificar o marco institucional de forma a permitir a expansão deste mercado, trazendo efeitos positivos tanto sobre o bem-estar das famílias e sobre a aceleração das taxas de crescimento econômico. Adicionalmente, o documento argumenta que a expansão do mercado de crédito aumentaria a efetividade da política monetária. A reforma a ser proposta prevê a aprovação de uma nova lei de falências "cujo objetivo seja permitir tanto a redução dos spreads bancários, quanto evitar a destruição dos empregos e ativos de empresas em graves dificuldades financeiras. Além disso, também são propostas diversas medidas com o objetivo de fortalecer o sistema de garantias existentes que permitirão a redução dos spreads bancários” (p. 14). A aprovação desta lei se constitui num "projeto prioritário na agenda de reformas" (p. 89) e sua aprovação no Congresso Nacional ainda neste ano faz parte dos compromissos do Governo Lula com o FMI27[27].

3.2 - A Agenda Econômica do Ministério da Fazenda: a recuperação da "Agenda Perdida"

Como foi visto na seção 2 deste documento, a agenda econômica proposta pela Coligação Lula Presidente durante a campanha eleitoral teve como base o diagnóstico de que o principal entrave à retomada do crescimento econômico estava relacionado com a vulnerabilidade externa da economia brasileira, e não com o desequilíbrio das contas públicas. Por decorrência deste diagnóstico, os objetivos prioritários das políticas macroeconômicas e das "reformas necessárias" estariam direcionados para a superação da vulnerabilidade externa. A breve análise realizada acima demonstrou que a proposta de política econômica defendida durante o processo eleitoral pelo Programa de Governo do PT e a agenda econômica apresentada no documento do Ministério da Fazenda são muito diferentes. Portanto, a base das políticas e reformas econômicas que estão sendo implementadas pelo Governo Lula da Silva não são aquelas dos documentos divulgados durante a campanha eleitoral. Qual é, então, o documento que embasa a agenda econômica do Ministério da Fazenda?

A agenda das reformas econômicas que está sendo implementada pelo Ministério da Fazenda tem, na verdade, como base o documento "A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social"28[28].

                                                            27[27] "All performance criteria for this review have been met and progress has been made in discussions aimed at bringing a new Bankrupcy Law to vote in Congress later this year" (FMI, Brazil's Intent Letter, june 2003).

28[28] Este documento foi redigido por Marcos de Barros Lisboa a partir das discussões realizadas em setembro de 2002 com a participação dos seguintes economistas: Affonso Celso Pastore (EPGE/FGV); Aloísio Pessoa de Araújo (IMPA e EPGE/FGV); André Urani (IE/UFRJ e IETS); Armando Castelar Pinheiro (BNDES); José Alexandre Scheinkman (Universidade de Princeton); José Marcio Camargo (Departamento de Economia/ PUC-RJ); Leandro Piquet Carneiro (Ciência Política/USP); Marcos de Barros Lisboa (EPGE/ FGV); Maria Cristina Pinotti (APC); Maria Cristina Trindade Terra (EPGE/FGV); Naércio de Aquino Menezes-Filho (FEA/USP); Pedro Cavalcanti Ferreira (EPGE/FGV); Pedro Olinto (IFPRI); Reynaldo Fernandes (FEA/USP); Ricardo Paes de Barros (IPEA); Rozane Bezerra Siqueira (IBRE/FGV) e Samuel de Abreu Pessôa (EPGE/ FGV). Curiosamente, apesar de claramente servir de

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4 - Conclusões

Durante a campanha eleitoral Lula reafirmou muitos dos compromissos históricos do PT, em especial com a retomada do crescimento econômico, com a criação de empregos e com a implementação das mudanças necessárias para construção de um outro modelo de desenvolvimento, baseado no dinamismo econômico e na justiça social29[29]. No discurso de posse, o Presidente Lula da Silva reafirmou o compromisso de seu governo com o crescimento econômico e com a construção de um outro modelo de desenvolvimento. No entanto, a política econômica e a agenda de reformas estruturais que estão sendo implementadas pelo seu governo, como foi visto acima, são de continuidade em relação aos Governos Collor e FHC — e não de mudança de rumo.

O principal obstáculo à retomada do crescimento econômico, segundo o diagnóstico apresentado nos documentos da campanha eleitoral, decorria da vulnerabilidade externa da economia brasileira. Mas agora no governo, conforme foi mostrado nesse documento, o diagnóstico é diferente: os principais entraves à retomada do crescimento econômico em bases sustentáveis são atribuídos ao desequilíbrio das contas públicas e ao funcionamento inadequado dos mercados. A mudança de diagnóstico implica, evidentemente, mudanças na política macroeconômica e na agenda de reformas. Infelizmente, o documento do Ministério da Fazenda não explicita os motivos dessa mudança de rumo. Ou seja, as razões que levaram a esta drástica mudança de diagnóstico e, conseqüentemente, de implementação das políticas macroeconômicas e das “reformas necessárias” não foram, pelo menos que seja do nosso conhecimento, tornadas públicas. Certamente, a equipe econômica do Governo Lula da Silva irá expor, em breve, essas razões.

A análise realizada nesse documento — apesar de desconhecermos os motivos que levaram a atual equipe econômica a abandonar o programa de governo defendido durante a campanha eleitoral para adotar, como base para a sua política econômica e de reformas estruturais, a “Agenda Perdida” proposta por importantes economistas liberais — permite descartar os seguintes argumentos que têm sido apresentados no debate público: (i) que o programa econômico proposto durante o período eleitoral representou uma “guinada histórica” do PT; (ii) e, portanto, que a política econômica atual representa apenas a implementação das teses defendidas durante a campanha eleitoral e (iii) que a agenda de reformas do governo Lula se constitui no "necessário período de transição para o novo modelo". Ao contrário, a política econômica e as reformas estruturais que estão sendo implementadas pelo Governo Lula da Silva implicam, na verdade, a continuidade da consolidação do modelo neoliberal no Brasil.

                                                                                                                                                                              base para a elaboração do documento do Ministro da Fazenda, a "Agenda Perdida" não consta nas referências bibliografia do mesmo.

29[29] “O povo brasileiro quer mudar para valer. Recusa qualquer forma de continuísmo, seja ele assumido ou mascarado. Quer trilhar o caminho da redução de nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas. (...) O caminho das reformas estruturais que de fato democratizem e modernizem o país, tornando-o mais justo, eficiente e, ao mesmo tempo, mais competitivo no mercado internacional” (Carta).

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Apesar dessa radical mudança nos rumos da política econômica (ou justamente por conseqüência dessa revisão da interpretação sobre os problemas da economia brasileira), será possível ao Governo Lula da Silva atingir os objetivos propostos: retomada do crescimento econômico, redução significativa das taxas de desemprego e redução das desigualdades sociais e dos níveis de pobreza? Ou seja, a agenda econômica do Governo Lula da Silva é consistente com seus objetivos de retomada do crescimento da economia brasileira com inclusão social?

A partir da farta evidência empírica sobre o desempenho econômico e social dos países que implementaram as reformas neoliberais podemos afirmar que o Governo Lula da Silva não será capaz de atingir seus objetivos30[30]. Ao contrário, podemos esperar — a exemplo da África do Sul — que o Governo Lula da Silva terá sucesso no controle do processo inflacionário, mas esse sucesso será obtido ao custo de baixas taxas de crescimento econômico, manutenção ou elevação das taxas de desemprego, aumento da concentração da renda e da riqueza, aumento da pobreza e recorrentes crises cambiais.

Na nossa opinião, o programa de governo proposto pelo PT durante o período eleitoral oferece uma base consistente para a implementação de políticas macroeconômicas e de reformas estruturais que seriam capazes de promover a retomada do crescimento econômico com inclusão social. Existem diversas contribuições importantes para a construção dessa nova estratégia de desenvolvimento econômico e social31[31], mas que infelizmente foram abandonadas em favor de se dar continuidade à implantação de um modelo que vem sendo implantado no Brasil desde o Governo Collor. Não deixa de ser surpreendente que nesse momento histórico — quando os efeitos perversos para o desenvolvimento e a inclusão social que resultam da implantação do modelo neoliberal já são bem conhecidos —, o Partido dos Trabalhadores, numa verdadeira “marcha da insensatez”, resolva adotar como sua esta estratégia fracassada. A retomada das propostas defendidas durante a campanha eleitoral ainda é possível. Cabe a todos os eleitores do Presidente Lula da Silva, principalmente os militantes dos movimentos sociais, lutarem para que o governo comece a implementar o programa econômico defendido durante a campanha eleitoral, dando, assim, início efetivo a "uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica".

Bibliografia Citada

                                                            30[30] Essa afirmação, baseada na história e na evidência empírica internacional, é corroborada pelo estudo de Gonçalves (2003) para a economia brasileira.

31[31] Ver, por exemplo, Batista Jr. (2002) e Saad Filho (2003).

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