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O processo transexualizador no SUS como paradoxo entre o reconhecimento da existência da pessoa transexual e a sua invisibilidade institucional

Schramm, FR1; Barboza, HH2; Guimarães, A3

Resumo

A Portaria 1707/2008, do Ministério da Saúde, instituiu no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) o Processo Transexualizador (PrTr), reunindo os mais recentes avanços biotecnocientíficos1. Dentre as suas diretrizes, figura aquela que reconhece que o desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto, com as características constitutivas de sua subjetividade, é determinante no processo de sofrimento e adoecimento, o que constitui uma questão de saúde pública. Não obstante, a inclusão do PrTr no SUS representa o atendimento de apenas parte das especificidades e demandas do segmento transexual2: ao não ter reconhecido o seu direito à requalificação civil – isto é, a troca de nome e de sexo - permanece a sua invisibilidade para o poder público. Assim, ao constatar uma espécie de paradoxo na atitude do Estado brasileiro, constituído pela “existência e invisibilidade” da pessoa transexual, investigamos quem seriam os verdadeiros beneficiados com o PrTr no SUS. Palavras-chave: Transexual, SUS, Saúde Pública, Biotecnociência, Requalificação Civil.

1 Fermin Roland Schramm: Doutor em Ciências, Pós doutor em Bioética pela Universidade do Chile, Pesquisador-titular da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP-Fiocruz). Contato: [email protected] 2 Heloisa Helena Barboza: Doutora em Direito (UERJ), Professora-Titular da Faculdade de Direito da UERJ. Contato: [email protected] 3 Aníbal Guimarães: Doutorando e Mestre em Ciências (ENSP/Fiocruz), Especialista em Bioética (IFF/Fiocruz). Contato: [email protected]

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A Portaria, seus conteúdos e possíveis conseqüências

No Brasil, a Portaria 1707/2008, do Ministério da Saúde (MS), – que institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o Processo Transexualizador (PrTr) -, assegura à pessoa transexual o direito à realização da cirurgia de transgenitalização (CTr), atendidas as considerações da Resolução 1652/2002, do Conselho Federal de Medicina (CFM). Por um lado, essa Resolução busca salvaguardar o exercício da profissão médica quando afirma que a CTr “não constitui crime de mutilação previsto no artigo 129 do Código Penal, visto que tem o propósito terapêutico específico de adequar a genitália ao sexo psíquico”; por outro, considera “a transformação da genitália” (CTR) como “a etapa mais importante no tratamento de pacientes com transexualismo”. Se, à primeira vista, pode parecer que todas as pessoas transexuais desejam realizar intervenções em seus corpos para estabelecer a coerência socialmente exigida entre gênero e sexo, para Bento (2006), o que essas pessoas buscam nas CTr’s é o reconhecimento de seu pertencimento à humanidade. Diz a autora que, em relação à CTr, “é a busca por inserção na vida social o principal motivo para pleiteá-la” (2006, p.182). Dito de outra forma, para muitas pessoas transexuais, no processo de construção de sua subjetividade, o reconhecimento oficial de sua nova identidade seria suficiente, ao invés da sua submissão à cirurgia. A corroborar com seus argumentos, diz a autora que “a humanidade só existe em gêneros, e o gênero só é reconhecível, só ganha vida e adquire inteligibilidade, segundo as normas de gênero, em corpos-homens e corpos-mulheres. Ou seja, a reivindicação última dos/das transexuais é o reconhecimento social de sua condição humana” (2006, p.230). Nesse ponto preciso, constatamos a existência de uma espécie de conflito entre o que preconiza o texto da Resolução e o direito de cada pessoa a construir a sua identidade de acordo com a sua subjetividade e seus legítimos interesses, que incluem a transformação de sua genitália, ou não, pois se algumas pessoas transexuais não apenas têm repulsa a sua genitália e a caracteres secundários como, também, têm o desejo de ganhar caracteres do sexo oposto, outras se dizem satisfeitas com sua genitália e não desejam se submeter à CTr.

Considerando que a Resolução CFM 1652/2002 (i) afasta a tipificação de crime de mutilação para as CTr’s quando lhes atribui caráter terapêutico; (ii) que também “visa fomentar o aperfeiçoamento de novas técnicas, bem como estimular a pesquisa cirúrgica de transformação da genitália”; (iii) que, para o diagnóstico de transexualismo (Resolução CFM 1652/2002), deverão ser observados os critérios de “desconforto com o sexo anatômico natural” e “desejo expresso de eliminar os genitais”; (iv) que o PrTr, da forma como atualmente instituído, não privilegia a redução do sofrimento da pessoa transexual, em atendimento ao conceito ampliado de saúde; (v) que Bento (2006), em suas pesquisas, aponta que não é a CTr a meta de toda pessoa transexual; (vi) que é o diagnóstico de transexualismo a condição sine qua non para

que a pessoa transexual possa ter o direito a pleitear ao Poder Judiciário a sua requalificação civil; (vii) o caráter estigmatizante do transexualismo, já que é considerado “desvio psicológico permanente de identidade sexual”, como consta na Resolução CFM 1652/2002; resta saber quem são os verdadeiros beneficiados com o PrTr, quando são ressaltados possíveis interesses profissionais e não nos parece igualmente privilegiada a construção/restituição do sentido de humanidade da pessoa transexual, como é por ela desejado.

O Processo Transexualizador como renascimento ou morte social da pessoa transexual

Após a edição da Portaria MS 1707/2008, que institui o “Processo Transexualizador” no âmbito do SUS, a Portaria 457/2008, da Secretaria de Atenção à Saúde, determinou as providências necessárias a sua plena estruturação e implantação. Considerando que esta segunda Portaria (re)afirma a natureza terapêutica do processo transexualizador, e que a Lei 8080/1990, ao dispor “sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde”, amplia o próprio conceito de saúde, parece-nos que alguns dos aspectos da Portaria 457/2008 devem

ser melhor examinados. O Anexo III do referido documento reconhece que a situação de transexualismo3

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“é determinante para um processo de sofrimento e de adoecimento”. Igualmente, é afirmado naquele ato que as suas diretrizes buscam “garantir a eqüidade do acesso e orientar as boas práticas assistenciais, primando pela humanização e pelo combate aos processos discriminatórios como estratégias para a recuperação e a promoção da saúde”. Seu item 5, referente à “Atenção Continuada”, estabelece que “[a] transgenitalização implica na atenção pós-cirúrgica, [a qual] não restringe seu sentido à recuperação física do corpo cirurgiado, mas também à própria pesquisa dos efeitos da medida cirúrgica na qualidade de vida do (a) transexual operado (a)”. Se um dos princípios que orienta o PrTr é a integralidade na atenção à saúde da pessoa transexual, essa mesma idéia de integralidade não pode significar desconhecer – ou não reconhecer – a differance (ou “deslocamento dessa lógica oposicional”), como aponta Derrida (2007, p.13) – de cada pessoa transexual em sua subjetividade. Da mesma forma, cabe esclarecer o sentido de “atenção integral” aqui mencionado, tendo em vista a indefinição conceitual da idéia de integralidade. Ensina Costa (2004) que o debate sobre a integralidade em saúde remonta aos anos 1960, quando surgiu em função da demanda pela denominada “medicina integral”. Para o autor, criticava-se, então, a excessiva especialização na formação médica, que acabava por ressaltar as dimensões

exclusivamente biológicas em detrimento das considerações psicológicas e sociais acerca do indivíduo e do processo de adoecimento. O discurso inaugural da integralidade compreende um conjunto de atitudes éticas e técnicas desejáveis para os médicos, e que estão relacionadas às necessidades dos indivíduos, consideradas de modo abrangente, não limitando-as às dimensões biológicas. Segundo Costa (2004), esse entendimento constituiu, posteriormente, uma das bases do movimento sanitário que se consolidou na década dos anos 1980.

Em consonância com os argumentos expostos, é preocupante que “o acompanhamento do processo jurídico da mudança de nome de registro e de como a pessoa tem lidado com isso”, mencionado no Anexo I-B, da Portaria 457/2008 - “Formulário para acompanhamento terapêutico de transexuais”, na parte relativa aos seus “Aspectos Psicossociais” -, não seja alvo de maior atenção das autoridades em saúde, na medida em que constitui parte essencial do processo transexualizador e, principalmente, por ser fonte de ansiedade e sofrimento para a pessoa transexual. Embora se reconheça a incompetência legal da Secretaria de Atenção à Saúde para determinar ou promover a nova qualificação civil da pessoa transexual, acreditamos que uma recomendação expressa e/ou o esclarecimento circunstanciado da importância dessa medida, no âmbito institucional, seria capaz de contribuir decisivamente para o cumprimento dessa etapa fundamental da atenção integral à saúde da pessoa transexual. Com efeito, se o que se pretende é dar atenção integral à saúde do transexual, de modo compatível com o conceito ampliado de saúde, o reconhecimento da nova qualificação civil da pessoa transexual é parte essencial e prioritária para a recuperação de sua saúde. Sob essa perspectiva, chama-nos a atenção - na Portaria MS 457/2008 - a recomendação para que se dê o acompanhamento da “inserção no mercado de trabalho”, com o objetivo “[da] promoção da autonomia e do direito ao trabalho como fundamentais ao bem-estar da pessoa” transexual. Como será possível o atendimento dessa recomendação, se a inserção no mercado de trabalho está diretamente subordinada à obtenção de uma nova identidade civil, e de toda nova documentação dela decorrente? Como não admitir “agravos decorrentes dos processos discriminatórios a que estão sujeitos” (Portaria MS 457/2008, Anexo III), se o “homem” ou a “mulher” não tem nome e/ou documentos adequados ou, pior, se os que apresenta não condizem com sua pessoa? Alguns outros pontos da Portaria MS 457/2008 são igualmente embaraçosos para a pessoa transexual. Como desconsiderar o processo de estigmatização a que estão sujeitas as pessoas transexuais se persistem “aspectos conflituosos sociais e psicológicos (...) da vivência do papel feminino ou masculino nos diversos grupos sociais dos quais ela faz parte”? Se “a aceitação e a presença da família são fundamentais no bom andamento do processo transexualizador, uma vez que significa a recuperação da matriz psicológica do(a) paciente transexual”, como não pensar na repercussão familiar que terá o fato de esta mesma pessoa continuar qualificada civilmente como alguém de seu sexo anterior? Dito de outra forma, que conseqüências no processo sucessório, por exemplo, podem daí decorrer? Se o “acompanhamento dos aspectos de aceitação de um novo corpo, como lidar com ele, uma vez que a pessoa transexual não foi criada, desde a infância, para viver com o corpo de seu sexo oposto” se faz necessário, a relevância da atribuição de uma nova identidade e de um novo sexo, condizentes com a sua realidade, é igualmente evidente.

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Coerentemente com a lógica biomédica que parece fundamentar a Portaria MS 457/2008, é indicada, neste documento, a necessidade de se fazer o “acompanhamento conjunto com os diversos profissionais da equipe multiprofissional como o assistente social, o médico endocrinologista, o médico cirurgião, o psicólogo e, se possível, o fonoaudiólogo”. A complexidade de que se reveste o PrTr para a pessoa transexual deve representar uma espécie de passaporte para o seu “renascimento psicológico e social”. Essa idéia de “renascimento psicológico e social” para a pessoa transexual deve implicar na recuperação do sentido de sua humanidade e de sua alteridade – enquanto um direito à diferença -, das quais estaria privada ao longo de sua existência, uma vez

que lhe é sentenciada uma espécie de “morte social” 4.

Não obstante, o reconhecimento tardio da existência da pessoa transexual na área da saúde pública caminha pari passu com a sua invisibilidade para o poder público. Para o poder instituído, até o momento de realização da CTr, a pessoa transexual apresenta “coerência” entre corpo-sexo-gênero e a sua qualificação civil, já que está preservado o elemento diferenciador no regime de sexo-gênero: a sua genitália original. Nesse sentido, pouco importa o gênero de pertencimento alegado pela própria pessoa transexual. Parece-nos razoável supor que, nessas condições, a pessoa transexual se veja em meio a sérios transtornos em sua vida cotidiana, inclusive quanto ao questionamento da legitimidade de seus documentos, atribuindo-se-lhe falsidade ideológica. A questão não é simples e de fácil solução, uma vez que assumir-se na condição de transexual é, para muitas dessas

pessoas, algo difícil de ser admitido, seja pela discriminação e transfobia5 a que estão sujeitas, seja pelo estigma

que considera a transexualidade uma psicopatologia. Contudo, a inclusão do PrTr no SUS pode representar para a pessoa transexual o seu afastamento de práticas consideradas clandestinas, como é o caso da autoprescrição de hormônios e da aplicação de silicone industrial, uma vez que essas práticas têm trazido diversos problemas de saúde para esse segmento.

Consideramos que a disponibilidade do PrTr via SUS deve ser um dos meios de satisfação de desejo de construção de subjetividade, e não uma forma de punição para uma população historicamente marginalizada e segregada, na medida em que não assegura a requalificação civil automática da pessoa diagnosticada como transexual, e condiciona a sua obtenção à realização da CTr. Como bem aponta Bento, não é a CTr o que fundamentalmente pleiteia aquele segmento mas, sim, o reconhecimento oficial de sua nova identidade e sexo. Dito de outra forma, na medida em que o processo transexualizador, em sua concepção, implantação e implementação, não prevê mecanismos legais para a concessão automática de uma nova qualificação civil para a pessoa diagnosticada como “transexual”, corre-se o risco de ver o

PrTr ser utilizado como um poderoso dispositivo biopolítico6 a serviço da normalização dessa mesma

população transexual. Quando apreciam os pedidos de alteração de nome e de sexo que lhes são submetidos, os juízes, muitas vezes, podem entender ser impossível a requalificação civil de uma pessoa que apresenta incoerência entre corpo, sexo e gênero. A compreensão de Derrida (2007, pp. 7-8) para o problema representado pelo poder coercitivo da lei – a “força de lei” -, ou seja, de que o direito é sempre uma força autorizada [que] se justifica ou que tem aplicação justificada, mesmo que essa justificação possa ser julgada, por outro lado, injusta ou injustificável. Não há direito sem força, Kant o lembrou com o maior rigor. A aplicabilidade (...) é a força essencialmente implicada no próprio conceito de justiça enquanto direito...”

é, por ele mesmo, questionada em sua legitimidade quando pergunta “como distinguir entre essa força da lei [e] a violência que julgamos sempre injusta? (...) O que é uma força justa ou uma força não violenta?” (p. 9). Justifica-se a preocupação de Derrida quanto à legitimidade da lei quando constatamos que algumas das questões que movem o debate atual se dão em torno da decisão judicial de se fazer anotar, no Registro Civil, a condição “transexual”. Para alguns, a justificativa é que terceiros não devem ser iludidos em sua boa fé, como no caso de eventual casamento; outros alegam que as conseqüências, no plano jurídico, são inimagináveis, e que um estudo bem mais aprofundado se faria necessário.

Não obstante a incompreensão de muitos magistrados para as questões que, relacionadas à transexualidade,

podem acarretar em um processo de sofrimento e adoecimento, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), de maneira

inédita, decidiu, em outubro de 2009, pelo reconhecimento do direito “de um transexual de São Paulo de alterar o

seu nome e o sexo para o feminino na certidão de nascimento, após ter passado por cirurgia de mudança de

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sexo”. Na mesma decisão, os ministros daquela Corte “determinaram também que na nova certidão civil do

transexual não conste as anotações sobre a decisão judicial, ficando apenas restrita aos livros do cartório” 7. Dois

meses depois, em dezembro de 2009, outra decisão daquela mesma Corte também determinou “pela

expedição de uma nova certidão civil a um transexual de São Paulo [que realizou a CTr] sem que nela

constasse anotação sobre a decisão judicial” 8. A corroborar com o que se afirma ao final do parágrafo

anterior, nesse caso específico, o ministro relator do Recurso determinou que deve constar, em livro próprio

do Registro Civil, que as modificações procedidas decorreram de sentença judicial em ação de retificação de

registro civil, haja vista que “tal providência decorre da necessidade de salvaguardar os atos jurídicos já

praticados, objetiva manter a segurança das relações jurídicas e, por fim, visa solucionar eventuais questões

que sobrevierem no âmbito do direito de família (casamento), no direito previdenciário e até mesmo no

âmbito esportivo”. Diante de argumentos que, em sua essência, não contemplam o sofrimento psíquico do

outro, mas privilegiam a futilidade, recorremos às reflexões de Derrida. Para o autor (2007, p.32),

“endereçar-se a outrem na língua do outro é, ao mesmo tempo, a condição de toda justiça possível, ao que

parece, mas isso parece não apenas rigorosamente impossível (...), mas até mesmo excluído da justiça

como direito...". É de reconhecer o outro em sua humanidade que trata Bento (2006), é de alteridade que

trata Derrida quando diz “endereçar-se a outrem na língua do outro”.

A depender da qualidade dos argumentos utilizados para coibir o reconhecimento da nova identidade da pessoa transexual, não afastamos a idéia de que essa negação constitua uma espécie de punição aos detratores da

heteronormatividade9. Em resumo, o processo transexualizador autorizaria o “ser mulher” ou o “ser homem”

apenas parcialmente – em seu aspecto físico -, posto que apresenta um diferencial qualitativo fundamental: a exigência de autorização judicial para que o processo de transformação se complete e efetive. Dentro desta lógica corpo-sexo-gênero, se não autorizada judicialmente a requalificação civil, e uma vez concluído o processo transexualizador, a pessoa transexual não somente jamais atingirá a condição plena de ser uma “mulher”, como, também, deixará de ser um “homem” igualmente pleno (e vice-versa). Cabe aqui lançar mão da contundência de Derrida (2007, p.42) quando aponta que

Levinas fala de um direito infinito naquilo que ele chama de “humanismo judaico”, cuja base não é “o conceito de homem”, mas o de outrem: “a extensão do direito de outrem” é a de “direito praticamente infinito”. A eqüidade, aqui, não é a igualdade, a proporcionalidade calculada, a distribuição eqüitativa ou a justiça distributiva, mas a dissimetria absoluta.

Considerações finais

Compreendemos que a inclusão do processo transexualizador no sistema oficial de saúde representa não somente o desenvolvimento de uma política pública, mas, também, a efetivação de parte dos compromissos pactuados entre a sociedade civil e o Estado brasileiro. O reconhecimento da legitimidade das demandas dos movimentos em defesa dos direitos das pessoas LGBT – no caso das pessoas transexuais –, bem como a sua implementação e efetivação, robustecem e reiteram a prevalência dos direitos humanos em nosso país. Embora o PrTr não contemple na íntegra as especificidades e demandas do segmento das pessoas transexuais, para algumas delas, a CTr pode ser compreendida como o único caminho para que se dê o reconhecimento de sua humanidade e alteridade. Não obstante, ainda que se dê o reconhecimento automático do direito à requalificação civil como parte do PrTr, a depender de suas disposições, aquele mesmo direito pode se constituir em um poderoso dispositivo biopolítico. As restrições legais ao reconhecimento do direito à requalificação civil da pessoa transexual, por sua vez, podem – e devem – ser questionadas em sua legitimidade. Nesse aspecto, a “força de lei” de que trata Derrida nos conduz à reflexão quando o autor sugere que "é preciso ser justo com a justiça, e a primeira justiça a fazer-lhe é ouvi-la, tentar compreender de onde ela vem, o que ela quer de nós [sabendo] que essa justiça se endereça sempre a singularidades, à singularidade do outro, apesar ou mesmo em razão de sua pretensão à universalidade" (p. 37).

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Notas de fim

1 Biotecnocientífico é adjetivo derivado do substantivo “biotecnociência”, termo criado por Schramm com o sentido de “(p)adrão de

competência em adaptar [a] ‘natureza’ humana aos desejos e projetos humanos (...) para aliviar o sofrimento, prevenir doenças, melhorar as condições de vida, programar a qualidade de vida dos descendentes, programar o fim da vida [e] em superar os limites impostos pela dimensão orgânica à condição humana [graças à] reprogramação da própria natureza humana. [Ela é] essencialmente [uma] recusa dos limites impostos pela evolução biológica.” (Schramm, 1996, pp. 114-115). 2 Transexual – de maneira muito breve, podemos dizer que é a pessoa que se identifica com um gênero diferente do seu gênero

biológico, sendo essa a sua reivindicação central, dado que o mesmo “estaria em discordância com suas genitálias” (Bento, 2006, p.16). 3 Transexualismo – reproduzimos aqui as considerações de Arán (2006, p.49), a qual aponta que o transexualismo “é considerado uma

patologia por ser definido como um ‘transtorno de identidade’, dada a não-conformidade entre sexo e gênero. Por outro lado, ele também pode ser considerado uma psicose graças à suposta recusa da diferença sexual. O que define este diagnóstico é uma concepção normativa dos sistemas de sexo-gênero, a qual se converte em um sistema regulador da sexualidade”. 4 Pierre Bourdieu, em um breve prefácio da versão francesa de Les chômeurs de Marienthal - estudo coordenado por Paul Lazarsfeld

sobre o desemprego e seus efeitos -, trata da morte social enquanto “o sentimento de desamparo, às vezes de absurdo, que se impõe ao conjunto desses homens repentinamente privados não só de uma atividade e de um salário, mas também de uma razão de ser social e, assim, lançados à verdade nua de sua condição. A saída, a aposentadoria, a resignação, o indiferentismo político (os romanos o chamavam de quies) ou a fuga no imaginário milenar são algumas das muitas manifestações - todas igualmente surpreendentes pela expectativa do sobressalto revolucionário - desse terrível descanso, que é o descanso da morte social” (grifo nosso). 5 A transfobia pode ser compreendida como um grave quadro de hostilidade e violência contra pessoas transexuais e travestis,

tenham elas se submetido, ou não, à CTr, independentemente de sua subjetividade masculina ou feminina, seja essa mais ou menos inteligível. A transfobia desencadeia e realimenta processos discriminatórios, representações estigmatizantes, processos de exclusão, dentre outros, voltados contra tudo aquilo que remeta, direta ou indiretamente, às práticas sexuais e identidades de gênero discordantes do padrão heterossexual e dos papéis estereotipados de gênero. 6 Nossa concepção de biopolítica é aquela desenvolvida por Foucault, para quem, deveríamos falar de biopolítica “para designar

o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana” (2007, p.155). 7Fonte: Superior Tribunal de Justiça – Recurso Especial nº 1.008.398 - SP (2007/0273360-5) https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=6666092&sReg =200702733605&sData=20091118&sTipo=5&formato=PDF (acesso em 27/01/2010). 8 Fonte: Superior Tribunal de Justiça – Resp 737993

http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=94939&tmp.are a_anterior=44&tmp.argumento_pesquisa=transexual (acesso em 27/01/2010). 9 A heteronormatividade pode ser compreendida como a presunção, em indivíduos ou instituições, de que todas as pessoas são

heterossexuais, e que a heterossexualidade é superior à homossexualidade e à bissexualidade.

Referências bibliográficas

BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo. Sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond. 2006. COSTA, AM. Integralidade na atenção e no cuidado a saúde. Saúde e Sociedade. 2004; 13-3: 5-15. DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Martins Fontes, 2007, 1a ed. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1. A vontade de saber. 18ª edição. São Paulo: Edições Graal. 2007. GUIMARÃES, Anibal. A Bioética da Proteção e a População Transexual Feminina. Dissertação de Mestrado apresentada na Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz). Orientador: Fermin Roland Schramm. Rio de Janeiro, 2009.