o processo psicodiagnóstico e as técnicas projetivas cap 1 e 2

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 " Capítulo I  O processo psicodiagnóstico Caracterização. Objetivos. Momentos do Processo.  Enqua drame nto. María L. S. de Ocampo e Maria E. García Arzeno

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    Captulo I O processo psicodiagnsticoCaracterizao. Objetivos. Momentos do Processo.Enquadramento.

    Mara L. S. de Ocampo e Maria E. Garca Arzeno

  • A concepo do processo psicodiagnstico, tal como o postulamos nesta obra, relativamente nova.

    Tradicionalmente era considerado a partir de fora, como uma situao em que o psiclogo aplica um teste em algum, e era nestes termos que se fazia o encaminhamento. Em alguns casos especificava-se, inclusive, que teste, ou testes, se deveria aplicar. A indicao era formulada ento como fazer um Rorschach ou aplicar um desiderativo em algum.

    De outro ponto de vista, a partir de dentro, o psiclogo tradicionalmente sentia sua tarefa como o cumprimento de uma solicitao com as caractersticas de uma demanda a ser satisfeita seguindo os passos e utilizando os instrumentos indicados por outros (psiquiatra, psicanalista, pediatra, neurologista, etc.). O objetivo fundamental de seu contato com o paciente era, ento, a investigao do que este faz diante dos estmulos apresentados. Deste modo, o psiclogo atuava como algum que aprendeu, o melhor que pde, a aplicar um teste, O paciente, por seu lado, representava algum cuja presena imprescindvel; algum de quem se espera que colabore docilmente, mas que s interessa como objeto parcial, isto , como aquele que deve fazer o Rorschach ou o Teste das Duas Pessoas. Tudo que se desviasse deste propsito ou interferisse

  • 6 0 processo psicodiagnstico e as tcnicas projetivas

    em seu sucesso era considerado como uma perturbao que afeta e complica o trabalho.

    Terminada a aplicao do ltimo teste, em geral, despedia-se o paciente e enviava-se ao remetente um informe elaborado com enfoque atomizado, isto , teste por teste, e com uma ampla gama de detalhes, a ponto de incluir, em alguns casos, o protocolo de registro dos testes aplicados, sem levar em conta que o profissional remetente no tinha conhecimentos especficos suficientes para extrair alguma informao til de todo este material. Este tipo de informe psicolgico funciona como uma prestao de contas do psiclogo ao outro profissional, que sentido como um superego exigente e inquisidor. Atrs desse desejo de mostrar detalhadamente o que aconteceu entre seu paciente e ele, esconde-se uma grande insegurana, fruto de sua frgil identidade profissional. Surge, ento, uma necessidade imperiosa de justificar-se e provar (e provar para si) que procedeu corretamente, detalhando excessivamente o que aconteceu, por medo de no mostrar nada que seja essencial e clinicamente til. Esses informes psicolgicos so, luz de nossos conhecimentos atuais, uma fria enumerao de dados, traos, frmulas, etc., freqentemente no integrados numa Gestalt que apreenda o essencial da personalidade do paciente e permita evidenci-lo.

    O psiclogo trabalhou durante muito tempo com um modelo similar ao do mdico clnico que, para proceder com eficincia e objetividade, toma a maior distncia possvel em relao a seu paciente a fim de estabelecer um vnculo afetivo que no lhe impea de trabalhar com a tranqilidade e a objetividade necessrias.

    Em nossa opinio, o psiclogo freqentemente agia assim e ainda age - por carecer de uma identidade slida que lhe permita saber quem e qual seu verdadeiro trabalho dentro das ocupaes ligadas sade mental. Por isso tomou emprestado, passivamente, o modelo de trabalho do mdico clnico (pediatra, neurologista, etc.) que lhe dava um pseudo-alvio sob dois

    aspectos. Por um lado, tomou emprestada uma pseudo-identi- dade, negando as diferenas e no pensando para no distinguir e ficar, de novo, desprotegido. O preo deste alvio, alm da imposio externa, foi a submisso interior que o empobrecia sob todos os pontos de vista, ainda que lhe evitasse um questionamento sobre quem era e como deveria trabalhar. A no-indagao de tudo o que se referia ao sistema comunica- cional dinmico aumentava a distncia entre o psiclogo e o paciente e diminua a possibilidade de vivenciar a angstia que tal relao pode despertar. Assim, utilizavam-se os testes como se eles constitussem em si mesmos o objetivo do psicodiagnstico e como um escudo entre o profissional e o paciente, para evitar pensamentos e sentimentos que mobilizassem afetos (pena, rejeio, compaixo, medo, etc.).

    Mas nem todos os psiclogos agiram de acordo com esta descrio. Muitos experimentaram o desejo de uma aproximao autntica com o paciente. Para p-lo em prtica, tiveram de abandonar o modelo mdico enfrentando por um lado a desproteo e, por outro, a sobrecarga afetiva pelos depsitos* de que eram objeto, sem estarem preparados para isso. Podia acontecer ento que atuassem de acordo com os papis induzidos pelo paciente: que se deixassem invadir, seduzir, que o superprotegessem, o abandonassem, etc. O resultado era uma contra-identificao projetiva com o paciente, inconveniente porque interferia em seu trabalho. Devemos levar em conta que escassa a confiana que podemos ter em um diagnstico em que tenha operado este mecanismo, sem possibilidades de correo posterior. Devido difuso crescente da psicanlise no mbito universitrio e sua adoo como marco de referncia, os psiclogos optaram por aceit-la como modelo de trabalho, diante da necessidade de achar uma imagem de identificao que lhes permitisse crescer e se fortalecer. Esta aqui-

    O processo psicodiagnstico______________________________ _

    * Depositar ser usado no sentido de colocar no outro e deixar. (N. do E.)

  • sio significou um progresso de valor inestimvel, mas provocou, ao mesmo tempo, uma nova crise de identidade no psiclogo. Tentou transferir a dinmica do processo psicanaltico para o processo psicodiagnstico, sem levar em conta as caractersticas especficas deste. Isto trouxe, paralelamente, uma distoro e um empobrecimento de carter diferente dos da linha anterior. Enriqueceu-se a compreenso dinmica do caso mas foram desvalorizados os instrumentos que no eram utilizados pelo psicanalista. A tcnica de entrevista livre foi super- valorizada enquanto era relegado a um segundo plano o valor dos testes, embora fosse para isso que ele estivesse mais preparado. Sua atitude em relao ao paciente estava condicionada por sua verso do modelo analtico e seu enquadramento especfico: permitir a seu paciente desenvolver o tipo de conduta que surge espontaneamente em cada sesso, interpretar com base neste material contando com um tempo prolongado para conseguir seu objetivo, podendo e devendo ser continente de certas condutas do paciente, tais como recusa de falar ou brincar (caso trabalhasse com crianas), silncios prolongados, faltas repetidas' atrasos, etc.

    Se o psiclogo deve fazer um psicodiagnstico, o enquadramento no pode scr esse: ele dispe de um tempo limitado; a durao excessiva do processo torna-se prejudicial; se no se colocam limites s rejeies, bloqueios e atrasos, o trabalho fracassa, e este deve ser protegido por todos os meios. Em relao tcnica de entrevista livre ou totalmente aberta, se adotamos o modelo do psicanalista (que nem todos adotam), devemos deixar que o paciente fale o que quiser e quando quiser, isto , respeitaremos seu timing. Mas com isto cairemos numa confuso: no dispomos de tempo ilimitado. Em nosso contrato com o paciente falamos de algumas entrevistas e s vezes at se especifica mais ainda, esclarecendo que se trata de trs ou quatro. Portanto, aceitar silncios muito prolongados, lacunas totais em temas fundamentais, insistncia em um mesmo tema, etc., porque o que o paciente deu, funcionar com uma

    ___________ ___O processo psicodiagnstico e as tcnicas projetivas O processo psicodiagnstico 9

    identidade alheia (a do terapeuta) e romper o prprio enquadramento. Daremos um exemplo: se o paciente chega muito atrasado sua sesso, o terapeuta interpretar em funo do material com que conta, e esse atraso pode constituir para ele uma conduta saudvel em certo momento da terapia, como, por exemplo, no caso de ser o primeiro sinal de transferncia negativa em um paciente muito predisposto a idealizar seu vnculo com ele. No caso do psiclogo que deve realizar um diagnstico, esses poucos minutos que restam no lhe servem para nada, j que, no mximo, poder aplicar algum teste grfico mas sem garantia de que possa ser concludo no momento preciso. Pode ocorrer ento que prolongue a entrevista, rompendo seu enquadramento, ou interrompa o teste; tudo isto perturba o paciente e anula seu trabalho, j que um teste no concludo no tem validade. Esse mesmo atraso significa, nesse segundo caso, um ataque mais srio ao vnculo com o profissional porque ataca diretamente o enquadramento previamente estabelecido.

    No resta a menor dvida de que a teoria e a tcnica psi- canalticas deram ao psiclogo um marco de referncia imprescindvel que o ajudou a entender corretamente o que acontecia em seu contato com o paciente. Mas, assim como uma vez teve de se rebelar contra sua prpria tendncia a ser um aplicador de testes, submetido a um modelo de trabalho frio, desumanizado, atomizado e superdetalhista, tambm chegou um momento (e diramos que estamos vivendo este momento) em que.teve de definir suas semelhanas e diferenas em relao ao terapeuta psicanaltico. Todo este processo se deu, entre outras razes, pelo fato de ser uma profisso nova, pela formao recebida (pr ou antipsicanaltica) e fatores pessoais. Do nosso ponto de vista, at a incluso da teoria e da tcnica psi- canalticas, a tarefa psicodiagnstica carecia de um marco de referncia que lhe desse consistncia e utilidade clnica, especialmente quando o diagnstico e o prognstico eram realizados em funo de uma possvel terapia. A aproximao entre

  • O processo psicodiagnstico e as tcnicas projetivas

    a tarefa psicodiagnstica e a teoria e a tcnica psicanalticas realizou-se por um esforo mtuo. Se o psiclogo trabalha com seu prprio marco de referncia, o psicanalista deposita mais confiana e esperanas na correo e na utilidade da informao que recebe dele. O psicanalista se abriu mais informao proporcionada pelo psiclogo, e este, por seu lado, ao sentir-se mais bem recebido, redobrou seus esforos para ^iar algo cada vez melhor. At h pouco tempo, o fato de o informe psicolgico incluir a enumerao dos mecanismos defensivos utilizados pelo paciente constitua uma informao importante. No estado atual das coisas, consideramos que dizer que o paciente utiliza a dissociao, a identificao projetiva e a idealizao dar uma informao at certo ponto til mas insuficiente. Possivelmente, todo ser humano apela para todas as defesas conhecidas de acordo com a situao interna que deve enfrentar. Por isso, pensamos quet o mais til descrever as situaes que pem em jogo essas defesas, a sua intensidade e as probabilidades de que sejam eficazes. Consideramos que o terapeuta extrair uma informao mais til de um informe dessa natureza.

    O psiclogo teve de percorrer as mesmas etapas que um indivduo percorre em seu crescimento. Buscou figuras boas para se identificar, aderiu ingnua e dogmaticamente a certa ideologia e identificou-se introjetivamente com outros profissionais que funcionaram como imagens parentais, at que pde questionar-se, s vezes com crueldade excessiva (como adolescentes em crise), sobre a possibilidade de no ser como eles. Pensamos que o psiclogo entrou num perodo de maturidade ao perceber que utilizava uma pseudo identidade que, fosse qual fosse, distorcia sua identidade real. Para perceber esta ltima, teve de tomar uma certa distncia, pensar criticamente no que era dado como inquestionvel, avaliar o que era positivo e digno de ser incorporado e o que era negativo ou completamente alheio sua atividade, ao que teve de renunciar. Conseguiu assim uma maior autonomia de pensamento e prtica, com a qual no s se distinguir e fortalecer sua identidade prpria,

    O processo psicodiagnstico. 11

    como tambm poder pensar mais e melhor em si mesmo, contribuindo para o enriquecimento da teoria e da prtica psicolgica inerente a seu campo de ao.

    Caracterizao do processo psicodiagnstico

    Institucionalmente, o processo psicodiagnstico configura uma situao com papis bem definidos e com um contrato no qual uma pessoa (o paciente) pede que a ajudem, e outra (o psiclogo) aceita o pedido e se compromete a satisfaz-lo na medida de suas possibilidades. E uma situao bipessoal (psi- clogo-paciente ou psiclogo-grupo familiar), de durao limitada, cujo objetivo conseguir uma descrio e compreenso,o mais profunda e completa possvel, da personalidade total do paciente ou do grupo familiar. Enfatiza tambm a investigao de algum aspecto em particular, segundo a sintomatologia e as caractersticas da indicao (se houver). Abrange os aspectos passados, presentes (diagnstico) e futuros (prognstico) desta personalidade, utilizando para alcanar tais objetivos certas tc-

    V nicas (entrevista semidirigida, tcnicas projetivas, entrevista \ d e devoluo).

    Objetivos

    Em nossa caracterizao do processo psicodiagnstico adiantamos algo a respeito de seu objetivo. Vejamo-lo mais detalhadamente. Dizemos que nossa investigao psicolgica deve conseguir uma descrio e compreenso da personalidade d~pciente. Mencionar seus elementos constitutivos no satisfaz nossas exigncias. Alm disso, mister explicar a dinmica do^caso tal como aparece no material, recolhido, integrando-o num quadro global. Uma vez alcanado um panorama preciso e completo do caso, incluindo os aspectos patolgicos e

  • os adaptativos, trataremos de formular recomendaes teraputicas adequadas.(terapia breve e prolongada,InHivdl^ de casal, de grupo ou de grupo familiar; com que freqncia; se recomendvel um terapeuta homem ou mulher; se a terapia pode ser analtica ou de orientao analtica ou outro tipo de terapia; se o caso necessita de um tratamento medicamentoso paralelo, etc.).

    Momentos do processo psicodiagnstico

    / W Segundo nosso enfoque, reconhecemos no processo psi- vf (codiagnstico os seguintesjjassos:

    1?) Primeiro contato e entrevista inicial com o paciente.2?) Aplicao de testes e tcnicas projetivas.3?) Encerramento do processo: devoluo oral ao pacien

    te (e/ou a seus pais).4o) Informe escrito para o remetente.No momento de abertura estabelecemos o primeiro con

    tato com o paciente, que pode ser direto (pessoalmente ou por telefone) ou por intermdio de outra pessoa. Tambm inclumos aqui a primeira entrevista ou entrevista inicial, qual nos referiremos detalhadamente no captulo II. O segundo momento consiste na aplicao da bateria previamente selecionada e ordenada de acordo com o caso. Tambm inclumos aqui o tempo que o psiclogo deve dedicar ao estudo do material recolhido. O terceiro e o quarto momentos so integrados respectivamente pela entrevista de devoluo de informao ao paciente (e/ou aos pais) e pela redao do informe pertinente para o profissional que o encaminhou. Estes passos possibilitam informar o paciente acerca do que pensamos que se passa com ele e orient-lo com relao atitude mais recomendvel a ser tomada em seu caso. Faz-se o mesmo em relao a quem enviou o caso para psicodiagnstico. A forma e o contedo do informe dependem de quem o solicitou e do que pediu que fosse investigado mais especificamente.

    12_____________ O processo psicodicignstico e as tcnicas projetivas

    Enquadramento

    J nos referimos necessidade de utilizar um enquadramento ao longo do processo psicodiagnstico. Definiremos agora o que entendemos por enquadramento e esclareceremos alguns pontos a respeito disto.

    Utilizar um enquadramento significa, para ns, manter \ constantes certas variveis que intervm no processo, a saber:

    Esclarecimento dos papis respectivos (natureza e limite da funo que cada parte integrante do contrato desempenha).

    Lugares onde se realizaro as entrevistas./ Horrio e durao do processo (em termos aproxima- / dos, tendo o cuidado de no estabelecer uma duraoC nem muito curta nem muito longa).

    \ Honorrios (caso se trate de uma consulta particular ou \ de uma instituio paga).

    ^ No se pode definir o enquadramento com maior preciso porque seu contedo e seu modo de formulao dependem, em muitos aspectos, das caractersticas do paciente e dos pais.

    \ Por isso recomendamos esclarecer desde o comeo os elementos imprescindveis do enquadramento, deixando os res-

    I tantes para o final da primeira entrevista. Perceber qual o en- C quadramento adequado para o caso e poder mant-lo de ime

    diato um elemento to importante quanto difcil de aprender na tarefa psicodiagnstica. O que nos parece mais recomendvel uma atiUide permevel e aberta (tanto para com as necessidades do paciente como para com as prprias) para no estabelecer condies que logo se tornem insustentveis (falta de limites ou limites muito rgidos, prolongamento do processo, delineamento confuso de sua tarefa, etc.) e que prejudiquem especialmente o paciente. A plasticidade aparece como uma condio valiosa para o psiclogo quando este a utiliza para se

    O processo psicodiagnstico_____________________________

    situar acertadamente diante do caso e manter o enquadramen-

  • to apropriado. Tambm o quando sabe discriminar entre uma necessidade real de modificar o enquadramento prefixado e uma ruptura de enquadramento por atuao do psiclogo induzida pelo paciente ou por seus pais. A contra-identificao projetiva com algum deles (paciente ou pai) pode induzir a tais erros.

    14_____________ O processo psicodiagnstico e as tcnicas projetivas

    Captulo II A entrevista inicial

    Maria L. S. de Ocampo e Maria E. Garcia Arzeno

  • 1C^aracterizamos a entrevista inicial como entrev ista semi- dirigida. Uma entrevista semidirigida quando o paciente tem liberdade para expor seus problemas comeando por onde preferir e incluindo o que desejar. Isto , quando permite que o campo psicolgico configurado pelo entrevistador e o paciente se estruture em funo de vetores assinalados pelo ltimo. Mas, diferindo da tcnica de entrevista totalmente livre, o entrevistador intervm a fim de: a) assinalar alguns vetores quando o entrevistado no sabe como comear ou continuar. Estas perguntas so feitas, claro, da maneira mais ampla possvel; b) assinalar situaes de bloqueio ou paralisao por incremento da angstia para assegurar o cumprimento dos objetivos da entrevista; c) indagar acerca de aspectos da conduta do entrevistado, aos quais este no se referiu espontaneamente, acerca de lacunas na informao do paciente e que so consideradas de especial importncia, ou acerca de contradies, ambigidades e verbalizaes obscuras.

    Em termos gerais, recomendamos comear com uma tcnica c^retiva no primeiro momento da entrevista, correspondente apresentao mtua e ao esclarecimento do enquadramento pelo psiclogo e, em seguida, trabalhar com a tcnica de entrevista livre para que o paciente tenha oportunidade de expres-

  • sar livremente o motivo de sua consulta. Finalmente, no ltimo momento desta primeira entrevista, devemos, forosamente, adotar uma tcnica diretiva para poder preencher nossas lacunas. Esta ordem recomendada funciona como um guia, e cada psiclogo deve aprender qual , em cada caso, o momento oportuno em que deve manter a atitude adotada ou mud-la, para falar ou calar e escutar.

    Para recomendar esta tcnica de entrevista semidirigida"\ levamos em conta duas razes: a primeira que devemos conhecer exaustivamente o paciente, e a segunda responde neces- > sidade de extrair da entrevista certos dados que nos permitam / formular hipteses, planejar a bateria de testes e, posterior- / mente, interpretar com maior preciso os dados dos testes e da y entrevista final. A correlao entre o que o paciente (e seus pais) mostra na primeira entrevista, o que aparece nos testes e yo que surge na entrevista de devoluo, oferece um importan- I te material diagnstico e prognstico.

    /D o nosso ponto de vista, a entrevista clnica uma tcnica, no a tcnica/ insubstituvel enquanto cumpre certos objetivos do processo psicodiagnstico, mas os testes (e nos referimos particularmente aos testes projetivos) apresentam certas vantagens que os tomam insubstituveis e imprescindveis. Mencionaremos entre elas sua padronizao, caracterstica que d ao diagnstico uma maior margem de segurana, a explorao de outros tipos de conduta que no podem ser investigadas na entrevista clnica (por exemplo, a conduta grfica) e que podem muito bem constituir o reduto dos aspectos mais patolgicos do paciente, ocultos atrs de uma boa capacidade de verbalizao.

    Em sntese, os testes constituem, para ns, instrumentos fundamentais. J esclarecemos que nos referimos aos testes projetivos. Estes apresentam estmulos ambguos mas definidos (pranchas, perguntas, etc.). Operam de acordo com instrues que so verbalizaes controladas e definidas que transmitem ao paciente o tipo de conduta que esperamos dele neste momen-

    ___________ _O processo psicodiagnstico e as tcnicas projetivas A entrevista inicial._ 19

    to ante este estmulo. A maioria dos testes inclui um interrogatrio. Fazer perguntas e receber respostas um trabalho em que colaboram ambos os integrantes do processo, numa tarefa igualmente comum. Tambm a entrevista se inclui neste contexto. Est enquadrada dentro destas mesmas linhas, j que no inclumos em nossa tcnica a interpretao. Quando nos achamos diante de uma situao de bloqueio, no nos limitamos a assinal-la como nico indicador til para o diagnstico, j que restringir-nos a isso ocasiona srias conseqncias. Ao empobrecimento de nosso diagnstico se soma a total ignorncia em relao ao que tal bloqueio encobre.

    Necessitamos mais informaes e as obtemos fazendo indicaes para mobilizar o paciente durante a entrevista clnica e aplicando testes apropriados. Se quisermos marcar uma diferena entre a entrevista clnica e a dedicada aplicao de testes, diremos que a primeira oferece uma tela mais ambgua, semelhante prancha em branco do T.A.T. ou do Phillipson. Por isso extrai uma amostra de conduta de tipo diferente da que se tira na aplicao de testes. Os critrios gerais que utili- ,amos para interpretar a entrevista inicial coincidem com os

    que aplicamos para os testes. A inclumos: o tipo de vnculo que o paciente estabelece com o psiclogo, a transferncia e a con- tratransferncia, a classe de vnculo que estabelece com outros em suas relaes interpessoais, as ansiedades predominantes, as condutas defensivas utilizadas habitualmente, os aspectos patolgicos e adaptativos, o diagnstico e o prognstico.

    Para obter toda esta informao devemos precisar quais so. os objetivos da entrevista inicial:

    1 ?) Perceber a primeira impresso que nos desperta o paciente e ver se ela se mantm ao longo de toda a entrevista ou muda, e em que sentido. So aspectos importantes: sua linguagem corporal, suas roupas, seus gestos, sua maneira peculiar de ficar quieto ou de mover-se, seu semblante, etc.

    2?) Considerar o que verbaliza: o que, como e quando verbaliza e com que ritmo. Comparar isto com a imagem que trans

  • O processo psicodiagnstico e as tcnicas projetivas

    mite atravs de sua maneira de falar quando nos solicita a consulta (geralmente por telefone). Avaliar as caractersticas de sua linguagem: a clareza ou confuso com que se expressa, a preferncia por termos equvocos, imprecisos ou ambguos, a utilizao do tom de voz que pode entorpecer a comunicao a ponto de no se entender o que diz, ainda quando fale com uma linguagem precisa e adequada. Quanto ao contedo das verbalizaes, importante levar em conta quais os aspectos de sua vida que escolhe para comear a falar, quais os aspectos a que se refere preferencialmente, quais os que provocam bloqueios, ansiedades, etc., isto , tudo que indica um desvio em relao ao clima reinante anteriormente. Aquilo que expressa como motivo manifesto de sua consulta pode manter-se, anu- lar-se, ampliar-se ou restringir-se durante o resto desta primeira entrevista ou do processo e constitui outro dado importante. Por outro lado, o paciente inclui em sua verbalizao os trs tempos de sua vida: passado, presente e futuro, dados que sero depois confrontados com sua produo, por exemplo, no teste de Phillipson. E importante que nem o paciente nem o psiclogo tentem restringir-se a um ou dois destes momentos vitais. Isto til para apreciar a capacidade de insight do paciente com referncia a unir seu passado com seu presente e seu futuro. Promovido pelo psiclogo (que, por exemplo, recorre persistentemente a perguntas do tipo: o que aconteceu antes? Aconteceu-lhe algo similar quando era pequeno? De que voc gostava de brincar quando era criana?) ou trazido espontaneamente pelo paciente, a persistncia na evocao do passado pode converter-se em uma fuga defensiva que evita ter insight com o que est ocorrendo no aqui e agora comigo. Podemos diagnosticar da mesma forma a fuga em direo ao futuro. A atitude mais produtiva centrar-se no presente e a partir da procurar integrar o passado e o futuro do paciente. Deste modo poderemos tambm apreciar a plasticidade com que conta para entrar e sair de cada seqncia temporal sem angustiar-se demais. Isto por si s um elemento indicador de boa capacidade

    A entrevista inicial 21

    de integrao e, como tal, de bom prognstico. Na entrevista inicial devemos extrair certas hipteses da seqncia temporal: como foi, e ser o paciente. Uma vez confrontadas com o que foi extrado dos testes e da entrevista de devoluo, sero ratificadas, ou no.

    3?) Estabelecer o grau de coerncia ou discrepncia entre tudo o que foi verbalizado e tudo o que captamos atravs de sua linguagem no-verbal (roupas, gestos, etc.). O que expressa no verbalmente algo real mas muito menos controlado do que as verbalizaes. Tal confronto pode informar-nos sobre a coerncia ou discrepncia entre o que apresentado como motivo manifesto da consulta e o que percebemos como motivo subjacente. Poderamos exemplificar isto do seguinte modo: um paciente pode estar nos explicando que est preocupado com seus fracassos intelectuais e acompanhar estes comentrios com gestos claramente afetados. Num caso assim observamos desde a primeira entrevista a discrepncia entre o que o paciente pensa que est acontecendo com ele e o que ns pensamos. O diagnstico ser baseado no grau de coerncia ou discrepncia entre os dados obtidos na primeira entrevista, nos testes e na entrevista de devoluo. E interessante comparar as caractersticas das verbalizaes do paciente nestas trs oportunidades to diferentes.

    4?) Planejar a bateria de testes mais adequada quanto a: a) elementos a utilizar (quantidade e qualidade dos testes escolhidos); b) seqncia (ordem de aplicao), e c) ritmo (nmero de entrevistas que calculamos para a aplicao dos testes escolhidos).

    5?) Estabelecer um bom rapport com o paciente para reduzir ao mnimo a possibilidade de bloqueios ou paralisaes e criar um clima preparatrio favorvel aplicao de testes.

    6.) Ao longo de toda a entrevista importante captar o que o paciente nos transfere e o que isto nos provoca. Referimo-nos aqui aos aspectos transferenciais e contratransferen- ciais do vnculo. E importante tambm poder captar que tipo

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    de vnculo o paciente procura estabelecer com o psiclogo: se procura seduzi-lo, confundi-lo, evit-lo, manter-se a distncia, depender excessivamente dele, etc., porque isto indica de que maneira especfica sente seu contato com ele (como perigoso, invasor, maternal, etc.). Contratransferencialmente surgem no psiclogo certos sentimentos e fantasias de importncia vital para a compreenso do caso, que permitem determinar o tipo de vnculo objetai que opera como modelo interno inconsciente no paciente.

    7?) Na entrevista inicial com os pais do paciente importante detectar tambm qual o vnculo que une o casal, o vnculo entre eles como casal e o filho, o de cada um deles com o filho, o deste ltimo com cada um deles e com o casal, o do casal com o psiclogo. Outro vnculo o que procuram indu- zir-nos a estabelecer com o filho ausente e ainda desconhecido (o que dizem dele), que pode facilitar ou perturbar a tarefa posterior. Por isso pode ser til, em alguns casos, trabalhar com a tcnica de Meltzer, que v primeiro o filho e depois os pais.

    8?) Avaliar a capacidade dos pais de elaborao da situao diagnostica atual e potencial. interessante observar se ambos ou um e, nesse caso, qual deles podem promover, colaborar ou, pelo menos, aceitar as experincias de mudana do filho caso este comece uma terapia. E importante detectar a capacidade dos pais de aceit-las na medida, qualidade e momento em que se dem, pois disso depende muitas vezes o comeo e, especialmente, a continuidade de um tratamento.

    J que nos referimos entrevista com os pais, queremos esclarecer que a presena de ambos imprescindvel. Consideramos a criana como emergente de um grupo familiar e podemos entend-la melhor se vemos o casal parental. Entendemos que mais produtivo romper o esteretipo segundo o qual a entrevista com a me se impe somente pelo estreito vnculo que se estabelece entre ela e o filho. Isto certo e plenamente vlido nos primeiros meses de vida da criana. Mas, na histria do filho, o pai desempenha freqentemente um papel to

    A entrevista inicial

    importante quanto o da me, mesmo quando uma figura praticamente ausente da vida familiar. O filho introjetou algum tipo de imagem paterna que, seguramente, ter ligao com sua sintomatologia atual e a problemtica subjacente: da a necessidade de sua presena. Pedir-lhe que venha e criar condies para tal valoriz-lo, colocando-o no seu papel correspondente. E evidente que trabalhamos com o conceito de que o filho o produto de um casal (no somente da me) e que ambos devem vir s entrevistas, a menos que se trte de uma situao anormal (pai que viaja constantemente, doente, internado por longo tempo, pais separados, etc.). Quando chamamos s a me, parece que a estamos destacando do resto do grupo familiar, mas isto tem sua contrapartida: atribumos unicamente a ela a responsabilidade por aquilo que seu filho . No garantir a presena do pai equivale a pensar que ele nada tem a ver com isso. Por outro lado, se recomendamos uma terapia, ambos devem receber esta informao, encarar esta responsabilidade e adotar uma resoluo. Entendemos que informar tudo isto apenas me significa transferir-lhe o que responsabilidade do psiclogo. Dado que o pai no foi includo em nenhum momento prvio do processo que culmina com tal informao (por exemplo, necessidade de terapia), no est preparado para receb-la e, corttudo, ele pode ser o responsvel por um elemento muito importante para sua concretizao, tal como sua aceitao, o pagamento dos honorrios e a continuidade do tratamento. De acordo com o aspecto dissociado e projetado no marido, aspecto que ficou marginalizado na entrevista pela ausncia deste, enfrentar-se- maiores ou menores dificuldades. Pode acontecer que o aspecto dissociado e depositado no ausente seja o de uma sria resistncia em relao ao tratamento. A me se mostrar, por exemplo, receptiva, colaboradora e complacente, mas, em seguida, poder racio- nalizar:#Meu marido no quer. Deste modo no marido atua um aspecto de resistncia mudana que parece caracterizar este grupo familiar sem que o psiclogo possa ter oportunidade

  • 24 O processo psicodiagnstico e as tcnicas projetivas

    de trabalhar com esse aspecto includo nas entrevistas, provocar uma tomada de conscincia da sua dinmica. Em relao resistncia diante da manipulao da culpa dizemos: entrevistar somente a me facilita a admisso de toda a culpa pela doena do filho; a presena de ambos permite dividi-la e, portanto, diminu-la. Por outro lado, se pensamos que a devoluo de informao procura certos benefcios psicolgicos, por que d-los somente me e no ao casal? freqente acontecer que, devido a uma consulta pelos filhos, os pais acabem reconhecendo a prpria necessidade de um tratamento e o procurem.

    Vamos agora mudar de perspectiva e nos situar no ponto de vista do psiclogo. Entendemos que a presena do pai e da me lhe til e indispensvel por vrias razes. A incluso de ambos implica a observao in situ de como so, que papis desempenha cada um deles em relao ao outro, em relao ao psiclogo, o que cada um traz, que aspectos do filho mostram respectivamente, como vivenciam o psicodiagnstico e a possibilidade de uma psicoterapia. Muitas vezes um desempenha o papel de corretor do que o outro diz. Se a atitude de um de muita desconfiana e inveja, o outro pode equilibr-la com sinais de maior agradecimento e confiana. Se exclumos um dos membros do casal das entrevistas, perdemos um destes dois aspectos do vnculo com o psiclogo. Como produto do interjogo de emergentes que existem, h maiores possibilidades de detectar vcios e corrigi-los. Por outro lado, a presena de ambos evita o perigo de aceitar o ausente como bode ex- piatrio, isto ; como depositrio.de todo o mal do vnculof-e o presente como representante do que bom e bem-sucedido.. No incluir o pai trat-lo como terceiro excludo e, deste modo, negar o complexo edipiano, que um dos ncleos bsicos da compreenso de cada caso. Isto estimula cimes e rivalidade no excludo. H pais que no reagem em protesto por sua no-incluso, mas depois, de uma forma ou de outra, atacam o psicodiagnstico ou a terapia (interrompem, negam-se a pagar o estipulado, interferem constantemente, etc.). Acaba-

    A entrevista inicial 25

    mos de nos referir a um aspecto do enquadramento, o econmico, que outra razo para a incluso do pai. ele que geralmente paga os honorrios. Se atribumos a este aspecto no s o significado monetrio mas tambm reparatrio do vnculo com o psiclogo, de quem se recebeu algo (tempo, dedicao, orientao, esclarecimento, etc.), devemos incluir o pai para que assuma a responsabilidade econmica e para que tenha a oportunidade de sentir-se como reparador do filho e do psiclogo, e no como algum que deve assumir uma mera obrigao comercial. Se o psiclogo insiste em considerar prescindvel a presena do pai, est excluindo-o, implcita ou explicitamente, mostrando assim um aspecto regressivo prprio, pois evita a situao de ficar transformado em terceiro excludo ante um casal unido contra o psiclogo-filho. A visualizao de um casal muito unido, seja a aliana s ou patolgica, pode mobilizar inveja e desejos de destru-lo. A insistncia em ver somente a me ou a ambos os pais, porm separados, uma ttica evasiva que pode encobrir estes sentimentos. Nesse caso, o psiclogo, atravs de seus aspectos infantis, no suporta funcionar como terceiro excludo com a fantasia de ser espectador obrigatrio da cena primitiva invejada. Se no curso da entrevista comeam as discusses e as reprovaes, o psiclogo enfrenta uma cena primitiva sdica, que reativa nele a fantasia de ter conseguido separar o casal. Em tais casos pode acontecer que um dos pais - ou os dois alternadamente - o procure como aliado para transformar o outro em terceiro excludo. Se o psiclogo no est alerta, pode estabelecer diferentes tipos de alianas perigosas para o filho, para os pais e para ele mesmo. Isto vlido para os pais de crianas e de adolescentes.

    Queremos nos deter em outro tema que pode provocar dvidas em relao ao seu manejo tcnico: o casojjeJ&lhas-de... pais separados. O psiclogo deve aceitar os fatos consumados pelo casal. Se este casal j no existe como tal, suas tentativas de voltar a uni-lo, alm de infrutferas, poderiam resultar numa sria interferncia em seu trabalho. Podemos dizer que se con

  • O processo psicodiagnstico e as tcnicas projetivas

    tra-identificou projetivamente com o filho em seus aspectos negadores da realidade (a separao) e que, pela culpa de ter conseguido concretizar suas fantasias edipianas e pela dor frente a essa perda real, trata de junt-los, seja mediante tentativas efetuadas diretamente por. ele ou transferidas a outros (neste caso, o psiclogo). Se desejam vir juntos s entrevistas, teremos um caso em que a tcnica no ser diferente do que foi dito anteriormente. Se, pelo contrrio, desejam vir separadamente, temos de respeit-los. Pode acontecer tambm que desejem vir separados e com seus respectivos novos companheiros. Neste caso, a realidade se mostra mediante esses dois casais atuais que representam (cada um dos pais da criana) dois aspectos irreversivelmente dissociados. Devemos tambm advertir o psiclogo a respeito de seus impulsos contrrios aos de unir o casal. Referimo-nos aos casos em que, contratrans- ferencialmente, sente que no sintoniza bem com o casal, que essa mulher no para esse homem ou vice-versa. Se atua* o que eles lhe transferiram, procurar conseguir uma separao pedindo, explicitamente, que venham separados, ou manipulando a dinmica da entrevista de tal maneira que se acentuem os pontos de divergncia entre o casal, em vez de efetuar um balano justo dos aspectos divergentes e convergentes que realmente existem.

    Outro tema a ser considerado e que mereceria um desenvolvimento muito mais amplo do que podemos realizar aqui o dos filhos adotivos. Segundo nossa experincia, geralmente so as mes que esto dispostas a pedir a consulta e iniciar o processo, transmitindo a sensao de que tudo deve transparecer o mnimo possvel. O psiclogo deve procurar fazer com que venham ambos os pais pelas razes j expostas e, alm disso,

    * O termo atuao ser utilizado no sentido de passagem ao ato (acting out) empregando-se atuar como o verbo correspondente: passar imediatamente ao sem intermediao do pensamento crtico, segundo definio de M. L. S. de Ocampo. (N. do E.)

    A entrevista inicial 27

    porque necessita investigar elementos essenciais, tais como as fantasias de cada um a respeito da adoo (no se sentir inferior aos outros por no ter filhos, no estar s agora ou no dia de amanh, ter a quem deixar uma herana, etc., podem aparecer como motivos manifestos da adoo, alm das motivaes inconscientes que tambm devem ser investigadas). Outros dados que devem ser levados em conta so: como sentem atualmente a situao de pais adotivos, se esto de acordo com a deciso tomada, se puderam comunic-la ao filho e a outros. Quando a adoo no foi esclarecida, centramos o fato da adoo como motivo real e subjacente da consulta, sem desvalorizar o que tragam como motivo da mesma. Todos os demais motivos que apaream, sejam mais ou menos graves, dependem, para sua soluo, da elaborao prvia, por parte dos pais, de sua condio de pais de filhos adotivos. Por isso, recomendamos que, no momento em que surgir a informao de que o filho adotivo, o psiclogo se dedique a elaborar este ponto de urgncia com os pais. Dever esclarec-los sobre o fato de que o filho deve saber a verdade porque tem direito a ela, que diz-lo no constitui, como eles crem, um dano, mas, pelo contrrio, um bem que a prpria criana pode estar reclamando inconscientemente atravs de outros conflitos (roubos, enu- rese, problemas de aprendizagem, problemas de conduta, etc.). Pensamos que a situao do filho adotivo constitui um fenmeno que fonte de possveis conflitos, que pode chegar a ser em si mesma um conflito, de acordo com a forma com que os pais manipulam e elaboram esta situao. Geralmente, indispensvel ter algumas entrevistas do tipo operativo* nas quais se veja^o-melhQr..possveJL,Q que est impedindo os pais de dizer_a. yerdade ou fazcndo.com que se oponham terminantemente a. esta idia.. Freqentemente, pensam que o psiclogo

    "r ).......... #

    * Entrevista na qual se adota a tcnica operativa proposta por Pichon Rivire; ver Jos Bleger, Temas de psicologia, So Paulo, Martins Fontes, 1980. (N. do E.)

  • 28 __O processo psicodiagnstico e as tcnicas projetivas

    quer destruir as fantasias que alimentaram durante anos, tirar- lhes o filho, em suma, castig-los. Mas tudo isso est relacionado com as fantasias anteriores, concomitantes e posteriores adoo. O fato de o filho ser ou no adotivo to essencial identidade que a soluo de todos os conflitos em torno dessa situao tem primazia sobre as outras. Por isso, continuar o processo psicodiagnstico centrado no motivo trazido pelos pais algo assim como cair numa armadilha. Seja qual for o caminho de abordagem do caso, encontrar-nos-emos, no fundo, com o problema centrado na prpria identidade. Se os pais, apesar da interveno teraputica, ainda resistem a esclarecer a criana (eles devem assumir esta responsabilidade), devemos adverti-los a respeito das dificuldades que surgiro no trabalho psicodiagnstico com a criana, no tanto durante a aplicao dos testes, mas na entrevista de devoluo. Nesse momento deveremos dar nossa opinio verdadeira a respeito do que ocorre com ela. Se aceitamos previamente o limite imposto pelos pais no sentido de no incluir a verdade (a adoo), deixaremos de lado ou omitiremos por completo uma temtica que, sem dvida, deve ter aparecido no material e que, se o ego da criana suficientemente forte, deveramos incluir na devoluo. Se aceitamos a limitao imposta pelos pais, estabelecemos com eles uma aliana baseada no engano e na impostura, enganamos e decepcionamos a criana e podemos at transmitir-lhe a sensao de que um doente que desconfia de todos, ocultando-lhe que, inconscientemente, ela percebeu algo real e objetivo (sua adoo) e o conflito surge por causa dessa realidade. Entrar no jogo dos pais significa tambm dar-lhes um pseudo-alvio, j que perceberam certos sintomas do filho e consultaram o psiclogo. Aparentemente, eles cumpriram seu dever c ns cumprimos o nosso. Mas o filho duplamente enganado, e, por isso, no seria estranho que sua sintomatologia se agravasse.

    E interessante registrar em que momento os pais comunicam esta informao: se surge espontaneamente, se deixam que

    A entrevista inicial 29

    seja percebida de alguma forma (lacunas mnmicas quando se pergunta a respeito da gravidez e do parto, expresso muito culposa acompanhada de verbalizaes incompletas, mas que permitem suspeitar) ou se a escondem at o ltimo momento e ela surge s na entrevista de devoluo. Neste caso pode acontecer que o digam em um momento de insight devido a alguma coisa que o psiclogo lhes est explicando. Podemos tom- lo ento como um dado de bom prognstico porque implica uma maior abertura em relao atitude inicial. Estavam ocultando a verdade ao psiclogo at o momento em que o sentiram como um bom continente com quem se pode compartilhar a verdade. E a expresso de um impulso reparador.

    Em outros casos, os pais esperam que o psiclogo faa uma pergunta direta. Esta pode surgir graas a uma certa percepo inconsciente do psiclogo ou de dados claramente expressos pelo filho no material que forneceu. Lembramos, por exemplo, o caso em que uma menina tinha desenhado uma casa e duas rvores de cada lado. Como apareciam outros elementos recorrentes aluso de ter dois casais de pais e uma famlia muito grande, formulou-se aos pais uma pergunta direta e estes responderam que, de fato, a menina era filha adotiva. Em situaes como estas, em que os pais escondem a verdade at o final, no podemos deixar de inclu-la de forma direta.

    9?) Outro ponto importante que deve ser investigado na primeira entrevista o motivo da consulta. Retomamos aqui os conceitos expressos em outro trabalho nosso1.

    No motivo da consulta deve-se discriminar entre motivo manifesto e motivo latente. O motivo manifesto o smtoma que preocupa a quem solicita a consulta, a ponto de tomar-se um sinal de alarma. Isto , algo o preocupou, reconhece que no

    1. Ocampo, M. L. S. de e Garca Arzeno, M. E., El motivo de consulta y su relacin con la devolucin de informacin en el cierre dei proceso psicodiagnstico, trabalho apresentado no I Congresso Argentino de Psico- patologia Infanto-Juvenil, Buenos Aires, 1969.

  • pode resolv-lo sozinho e resolve pedir ajuda. Em alguns casos o receptor do sinal de alarma um terceiro (parente, amigo, pediatra, etc.), que quem solicita a consulta ou mobiliza o paciente a faz-lo. Este dado nos indica por si s um grau menor de insight com referncia prpria doena. Na maioria dos casos o motivo manifesto , dentro de um nmero mais ou menos extenso de sintomas que afligem o paciente, ou aqueles que convivem com ele, o menos ansigeno, o mais incuo, o mais fcil e conveniente de ser dito ao psiclogo, a quem, geralmente, acaba de conhecer. Este, por seu lado, enquanto escuta e pensa sobre o caso, pode elaborar algumas hipteses a respeito do verdadeiro motivo que traz o paciente (ou seus pais) consulta. Geralmente o motivo outro, mais srio e mais relevante do que o invocado em primeiro lugar. Denominamo- lo motivo latente, subjacente ou profundo da consulta.

    Outro elemento diagnstico e prognstico importante o momento em que o paciente toma conscincia (se puder) desse motivo mais profundo. Se o faz durante o processo psicodiag- nstico, o prognstico melhor. Deve-se esclarecer se possvel ou no incluir esta informao na entrevista de devoluo. Caso ela seja includa, a reao do paciente ser outro elemento importante: se recebe a informao e a aceita como possvel, o prognstico melhor. Se se nega totalmente a reconhec-la como prpria, cabe pensar que as resistncias so muito fortes e, portanto, o prognstico no muito favorvel.

    Esta discrepncia surge como conseqncia de um processo de dissociao intrapsquica que ocorreu no paciente. importante que aquilo que foi dissociado intrapsiquicamente pelo paciente no seja tambm dissociado pelo psiclogo no material recolhido e no informe final. Como veremos mais adiante, esta uma das razes pelas quais nos parece imprescindvel a devoluo de informao: a o p o r tu n id a d e que se d ao paciente para que integre o que aparece dissociado entre o manifesto e o latente. Em certos grupos familiares, o grau de dissociao tal que o membro que trazem consulta o

    30_____________ O processo psicodiagnstico e as tcnicas projetivas

    menos doente, ficando assim oculto o verdadeiro foco do problema, a menos que o psiclogo possa detectar e esclarecer esta situao^ Por isso, importante saber se o sintoma trazido egossintnico ou egodistnico para o paciente e seu grupo familiar. Saber primeiro se o paciente trazido consulta (ou o que veio por sua conta) sente que sofre pelo sintoma ou se este no o preocupa nem o faz sofrer. Caso no sofra, deve-se investigar se devido sua patologia especial (projeo do conflito e dos sentimentos dolorosos em outro membro do grupo que os assume) ou se. o que acontece que ele se converteu no depositrio dos conflitos de outro ou outros membros do grupo familiar que no vieram se consultar ou que vieram como pai, me, cnjuge, etc. O grau de dissociao, o aspecto mais doente do paciente (ou de seu grupo familiar), influir no tempo e na quantidade de energia necessrios para o processo de integr-lo conscientemente. A dissociao tanto mais acentuada e mais resistente melhora, quanto mais intensos forem os sentimentos de culpa, ansiedade, represso, etc., que tal conflito mobiliza no paciente e que funcionam como responsveis por esta dissociao.

    Uma atitude recomendvel para o psiclogo a de escutar o paciente, mas no ficar, ingenuamente, com a verso que ele lhe transmite. O paciente conta sua histria como pode. Centra o ponto de urgncia de seus problemas onde lhe parece menos ansigeno. Esta atitude ingnua, e no fundo de pre- julgamento, impediu muitas vezes o psiclogo de escutar e julgar com liberdade. Diante de um dado que no encaixa com o esquema inicial do caso, surpreendeu-se muitas vezes pela aparente incoerncia. Por exemplo: se a histria do caso muito sinistra, esforar-se- para achar todo tipo de transtornos, tendo como certo que ficou uma grave seqela. Parecer-lhe- impossvel diagnosticar que esta criana apresenta um grau de sade mental aceitvel, apesar de todos os males que padeceu. Pode tambm acontecer o contrrio, isto , que ante um caso apresentado como um simples problema de aprendizagem, limite-

    A entrevista inicial____________________________________

  • 32 O processo psicodiagnstico e as tcnicas projetivas

    se a investigar a dificuldade pedaggica, eliminando a possibilidade de existncia de outros conflitos que podem ser mais srios. Tomemos como exemplo o caso de um jovem que foi trazido para a consulta porque no podia estudar sozinho; mas, na entrevista inicial, surgiu a seguinte informao: ele gostava de passear nu e de se encostar na me cada vez que o fazia. Se o psiclogo no centra estes ltimos dados como ponto de maior gravidade e urgncia do caso e se restringe ao primeiro problema, cai na mesma atitude negadora dos pais e reduz ao mnimo as possibilidades de ajuda efetiva ao paciente. s vezes, so os pais ou o paciente que dissociam e negam importncia ao que mais grave. O prprio psiclogo, influenciado pela primeira aproximao do paciente ou de seus pais, se fecha a qualquer outra informao que no coincida com a do comeo da entrevista e minimiza ou nega francamente a relevncia dos dados que vo surgindo medida que o processo avana. O momento e a forma como emergem os aspectos mais doentes fazem parte da dinmica do caso, e deve-se prestar muita ateno a eles.

    Analisaremos em seguida outro aspecto relacionado ao motivo da consulta. Trata-se-de^investigar se p paciente funcio- na como terceiro excludo ou includo em relao ao motivo do incio do processo psicodiagnstico. comum acontecer que os pais de uma criana ou de um adolescente no esclaream ao paciente o motivo pelo qual o levam a um psiclogo. Neste caso, trata-se o paciente como terceiro excludo. Se lhe esclarecem o motivo, funciona como terceiro includo, mas preciso observar at que ponto os pais (ou quem intervm como encaminhante) o fazem participar desta informao. Em alguns casos comunicam-lhe um motivo real, mas no aquele que mais os preocupa. Para que tenham tomado esta deciso, devem existir certas fantasias a respeito do que ocorreria se lhe contassem toda a verdade. Diramos, ento, que estes pais transmitiram ao filho o motivo manifesto mas ocultaram o motivo profundo. Em outros casos, em face da recomendao do psi

    A entrevista inicial 33

    clogo de que esclaream o paciente sobre o motivo real de sua presena no consultrio, aceitam e o fazem, mas nem sempre conseguem ater-se verdade. Surgem ento distores, negaes, etc., que na realidade confundem o paciente e aumentam os seus conflitos ainda mais que o conhecimento da verdade. Exemplificaremos isto com um caso. Trata-se de uma criana de sete anos, com um irmo gmeo, um irmo maior, de nove anos, e uma irmzinha de trs anos. Desde o primeiro momento os pais disseram que estavam consultando porque este filho gostava de disfarar-se de espanhola, de danar, rejeitava os esportes masculinos como o futebol, comia menos que seu irmo gmeo e era muito apegado me. No entanto, resistiram a dizer-lhe a verdade e lhe falaram que o estavam trazendo porque comia pouco. A fantasia que atuava como inibidora do motivo real da consulta procedia especialmente do pai e consistia em que dizer a verdade criana podia criar-lhe um trauma. Analisaremos, a partir deste exemplo, as conseqncias que sobrevm se o psiclogo no modifica isto e segue o processo sem retificaes.

    Em primeiro lugar, o processo se inicia com um enquadramento em que se deslocou o verdadeiro ponto de urgncia. No exemplo, deveramos nos centrar na investigao de um caso de perturbao da identidade sexual infantil, mas o destaque recaiu na oralidade do paciente.

    Em segundo lugar, complica-se a tarefa de estudo do material recolhido na hora de jogo e nos testes. O paciente controla melhor o motivo apresentado por quem o trouxe, mas, inconscientemente, percebe a incongruncia ou o engano e o transmite ou projeta no material que nos comunica. Nesta criana doente surgiram sentimentos de surpresa, j que sua recusa a comer preocupava os pais mais do que todos os seus amanei- ramentos e demais traos homossexuais, que provocavam reaes negativas em todos, especialmente no pai. Esta atitude dos pais tambm mobilizou sentimentos de estafa e at de cumplicidade. Se o psiclogo aceita tudo isto, entra neste jogo

  • perigoso, no qual finge estar investigando uma coisa mas, sorrateiramente, explora outra socialmente rejeitada e sancionada. Quando trabalha, por exemplo, com o material dos testes, deve, por um lado, estudar como aparece o motivo apresentado pelos pais (oralidade), pois ter de falar sobre isso com a criana e com os pais na entrevista final. Por outro lado, dever investigar o que realmente preocupa os pais e tambm a criana. Esta situao introduz novas variveis, torna o panorama confuso e produz uma sensao de estar trabalhando em duas pontas. Se os pais aceitam e reconhecem o motivo real da consulta e o transmitem fielmente ao psiclogo e ao filho, o panorama que se abre ao psiclogo mais coerente.

    Em terceiro lugar, criam-se dificuldades muito srias quando o psiclogo deve dar sua opinio profissional na entrevista de devoluo. Neste momento pode optar por no falar, entrando assim em cumplicidade com os pais e, em ltima instncia, com a patologia; pode manter uma atitude ambgua, sem calar totalmente nem falar claro, ou dizer a verdade, na medida em que a fora egica dos pais e do paciente o permitam.

    Em quarto lugar, o destino de uma possvel terapia futura, caso seja necessria, muito diferente conforme tenha havido esse clima de ocultamento e distores ou de franqueza dosada durante o processo psicodiagnstico. Indubitavelmente, esse clima pode ter criado uma relao transferencial peculiar com o psiclogo que realizou a tarefa. Na medida em que este vnculo esteja viciado, predispe o paciente a trabalhar com a fantasia de que a mesma experincia se repetir com o futuro terapeuta. Em muitos dos casos em que o paciente se perde na passagem do psicodiagnstico para a terapia, este foi um dos fatores decisivos.

    Por todas estas razes recomendamos especificamente detectar a coincidncia ou discrepncia entre o motivo manifesto e o motivo latente da consulta, o grau de aceitao, por parte dos pais e do paciente, daquele que se revela ser o ponto de maior urgncia assim como a possibilidade do paciente, e de seus pais,

    34_____________ O processo psicodiagnstico e as tcnicas projetivas A entrevista inicial 35

    de conseguir um insight. Sem dvida, esta dinmica surge porque o motivo da consulta o elemento gerador da ansiedade que emerge na primeira entrevista (ou mais adiante). Em outro trabalho referimo-nos importncia da instrumentao desta ansiedade dentro do processo2.

    Em geral, aquilo que os pais (ou mesmo o paciente) dissociam, adiam ou evitam transmitir ao psiclogo o mais an- sigeno. Em outros casos verbalizam o que deveria ser muito ansigeno para eles mas no assumem a ansiedade como sua, transferindo-a ao psiclogo. Assim acontece, por exemplo, quando os pais se mostram preocupados porque o filho enu- rtico mas, apesar de inclurem o fato de que tambm se mostra passivo, que busca o isolamento, que no fala e prefere brincar sozinho, no do sinais de que isto seja uma preocupao para eles. Nestes casos procuram fazer com que algum profissional ratifique suas fantasias de doena herdada ou constitucional ou, pelo menos, da base orgnica do conflito psicolgico. Estas teorias atuam em parte como redutoras da ansiedade, na medida em que desligam os pais de sua responsabilidade no processo patolgico mas, por outro lado, incrementam-na porque supem um maior grau de irreversibilidade do sintoma.

    Alguns pais relatam com muita ansiedade um sintoma que, ao psiclogo, parece pouco relevante. Nestes casos pode-se pensar que a carga de ansiedade foi deslocada para um sintoma leve mas que, no entanto, provm de outro mais srio do qual os pais no tomaram conscincia ou que no se atrevem a encarar, e cuja transcendncia se expressa atravs da quantidade de ansiedade deslocada ao sintoma que chegam a verbalizar.

    2. Ocampo, M. L. S. de e Garcia Arzeno, M. E., El manejo de la ansiedad en el motivo de consulta y su relacin con la devolucin de infor- macin en el cierre dei proceso psicodiagnstico en ninos, trabalho apresentado no I Congresso Latino-americano de Psiquiatria Infantil, Punta dei Este, Uruguai, novembro de 1969.

  • 36 O processo psicodiagnsico e as tcnicas projetivas

    Relataremos um caso para mostrar isso mais detalhadamente. Jorge uma criana de nove anos, que levada por sua me ao Hospital de Clnicas porque tem certas dificuldades na escola: confunde o M e o N, o S e o C, o V e o B. No apareceu nenhum outro dado como motivo da consulta durante a admisso e nem ao se realizar a primeira entrevista com a me. Antes de prosseguir com a superviso do material dos testes da me e da criana, detivemo-nos em algumas questes: E esta a maneira pela qual comumente uma me encara um problema de aprendizagem to simples como este? Por que no recorreu a uma professora particular? O que haver por trs desta dificuldade escolar que justifique a mobilizao da me e da criana para aceitar o processo psicodiagnstico, geralmente desconhecido e, portanto, ansigeno?

    Como resposta cabe pensar na existncia de algum outro problema to mais srio quanto mais minimizado foi o motivo da consulta e mais categoricamente negado, para manter afastada a intensa ansiedade persecutria que sua emergncia mobilizaria. Continuando com a superviso do caso, descobrimos que a criana havia sofrido uma cranioestenose, em razo da qual foi operada aos seis meses e esteve hospitalizada durante um ano e meio. Aos seis anos fez uma amigdalectomia. Nessas oportunidades, nada lhe foi explicado, nem antes, nem durante, nem depois das intervenes. A isto somava-se a intensa ansiedade da me por fantasias de morte durante a gravidez e parto deste filho e pela morte real de vrios familiares. Me e filho compartilhavam da fantasia de que este havia sido parcialmente esvaziado na primeira operao, de que tinha sido transformado em um microcfalo (isto visto com clareza nos grficos da me e do filho) e de que, da, era torpe, incapaz, impotente. Desta perspectiva, pudemos compreender o sintoma trazido para a consulta como expresso do alto nvel de exigncia e a margem de erro mnima permitida pela me ao filho (eram erros de ortografia bastante comuns) ante seu constante temor da realizao de tais fantasias de castrao em todos

    A entrevista inicial

    os nveis, ao mesmo tempo que uma espcie de necessidade permanente de reasseguramento de que sua cabea funcionava bem. Pedia-nos, indiretamente, que revisssemos a cabea do filho e a sua e tirssemos suas incgnitas. Esta ttica obedeceu, pois, do ponto de vista do mais doente, a um ocultamento do que era mais patolgico, por medo de entrar em pnico. Do ponto de vista adaptativo, por outro lado, respondeu a uma necessidade sentida, mas no conscientizada, pela me e pelo menino de que fossem submetidos a um trabalho de assepsia mental que, na oportunidade certa, no foi feito, e que estava interferindo no desenvolvimento sadio dos dois.

    A acomodao do paciente e/ou de seus pais ao sintoma faz com que diminua o nvel de ansiedade (qualquer que seja a sua natureza) e fique facilitado o seu depsito macio no psiclogo, que dever discrimin-la e reintegr-la com maiores dificuldades na entrevista de devoluo. Pelo contrrio, uma conduta cujos elementos latentes alarmam o ego do paciente, e fundamentalmente seus pais, poderia mobilizar outro tipo de ansiedade e culpa, o que, por sua vez, condicionaria outro tipo de manejo tcnico desde o comeo do processo e uma devoluo de informao mais fcil.

    Os primeiros sinais de ansiedade aparecem, normalmente, na primeira entrevista, quando os pais comeam a relatar a histria do filho. Se o psiclogo no adota uma atitude ingnua, no pode esperar registrar uma histria ordenada e completa. Os pais transmitem a histria que querem e podem dar. Por seu lado, o psiclogo entende a histria que pode entender. Na primeira entrevista importante registrar o que diz cada um dos pais, como e quando o dizem, o que lembram e como o fazem, o que esquecem, de maneira a poder reconstruir posteriormente, com a maior fidelidade possvel, o dilogo e os elementos no-verbais do encontro. As amnsias so sempre muito significativas porque supem um grande volume de ansiedade que determinou uma inibio no processo mnmico. Um indcio favorvel da boa comunicao entre os pais e o psi

  • 38 O processo psicodiagnstico e as tcnicas projetivas

    clogo o decrscimo desse volume de ansiedade, a supresso da inibio e o aparecimento do dado esquecido.

    til averiguar, desde o princpio, que fantasias, que concepo da vida, da sade e da doena tm os pais e/ou o paciente; o conhecimento destes esquemas referenciais permite compreender melhor o caso e evitar a emergncia de ansiedades confusionais ou persecutrias. Conhecendo estes esquemas poderemos, por exemplo, entender melhor por que estes pais pensaram que o filho est doente, como deveria estar para que eles o considerassem curado e o que deveria fazer o terapeuta para consegui-lo. Muitas vezes esses dados permitem prever interrupes do tratamento (confuso por parte dos pais entre uma fuga na sade ou um estado manaco e a verdadeira sade mental, ou crena de que um acesso de fria um maior indicador de doena do que o acesso de asma anterior ao tratamento).

    Ao mesmo tempo, o esclarecimento destes pontos permite ao psiclogo determinar se os prprios pais necessitaro de assistncia psicolgica ou no, e, caso a necessitem, qual a tcnica mais apropriada (terapia profunda individual de um dos dois, terapia de casal, grupo de pais, terapia familiar, etc.).

    Outro elemento digno de ser levado em conta quando se trabalha com a tcnica de entrevista livre a seqncia de aspectos do filho que os pais vo mostrando ou dos aspectos de si que o paciente adulto vai mostrando. Quando se trata de pais que vieram por seu filho (criana ou adolescente), podemos registrar alternativas distintas: um mostra os aspectos sadios do filho e o outro os mais doentes, e isto se mantm ao longo da primeira entrevista e de todo o processo. Os papis se alternam, e quando um dos dois mostra algo sadio o outro mostra um aspecto doente. Ambos mostram o mesmo, s o sadio ou s o doente.

    possvel, tambm, que a nfase v passando, ao longo da entrevista, do mais sadio ao mais doente ou vice-versa. Como, neste sentido, o psiclogo outorga aos pais a mais ampla liberdade, tem direito a considerar tal seqncia como significativa.

    A entrevista inicial

    Consideremos em primeiro lugar o caso de pais que comeam pelos aspectos mais sadios e gratificantes do filho, incluindo paulatinamente o mais doente. Se esta a seqncia escolhida, pensamos que se trata de pais que se preparam e preparam o psiclogo para receber gradualmente o mais ansi- geno. Alm disso, pode-se dizer que adotam uma atitude mais protetora e menos devastadora em relao ao filho externo e em relao a seus prprios aspectos infantis. Isto leva a diagnosticar a possibilidade de uma boa elaborao depressiva da ansiedade, com o que se pode prever tambm uma colaborao positiva com o psiclogo durante o processo psicodiagnstico e com o terapeuta, se a criana necessitar de tratamento.

    Pode ocorrer que os pais mostrem exclusivamente os aspectos positivos do filho, at um ponto em que o psiclogo se pergunte a razo da consulta e deva pergunt-lo aos pais. Alguns necessitam que o psiclogo lhes mostre que ele parte do princpio de que algo anda mal, que se deve encarar o que est falhando e que esta atitude no pressupe a invalidao do que funciona bem. O que mais difcil para o psiclogo diante de casos como estes conseguir que os pais considerem os aspectos mais doentes do filho como algo que deve ser mostrado e que devem integrar com o positivo, sobretudo na ltima entrevista. Como evidente, estes pais necessitam idealizar o filho, negar maniacamente a doena porque a sentem como algo muito ansigeno e porque, no caso de admiti-la, devero arcar com uma dose excessiva de culpa persecutria. justamente essa probabilidade de cair alternativamente em ambos os estados de nimo que torna difcil o contato com os pais e a consecuo de um dos principais objetivos do psicodiagnstico: mos- trar-lhes uma imagem mais completa possvel do filho.

    Em outros casos, a seqncia escolhida a inversa: aparecem primeiro os aspectos mais doentes e depois, ocasionalmente, inclem o adaptativo. Consideramos isto, em termos gerais, como um indicador do desejo de depositar no psiclogo, de forma rpida e macia, o mais ansigeno, para prosseguir a entre

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    vista com maior tranqilidade e soltura. Em muitos casos, este recurso evacuativo serve para os pais estimarem o poder do psiclogo como continente da doena do filho. E algo assim como um desafio ao ego do psiclogo, que se v, desde o comeo, crivado por relatos muito angustiados. Nesta dinmica podemos prever dificuldades na entrevista de devoluo, j que estes pais dificilmente podero tolerar o insight dos aspectos mais doentes do filho.

    Assim como nos referimos antes ao caso dos pais que idealizam o filho, encontramos tambm o caso oposto, o daqueles que no conseguem resgatar nada de positivo e tratam-no como a caixa de resduos que lhes serve para no assumir seus prprios aspectos doentes e a culpa pela doena do filho. Nestes casos a devoluo de informao tambm difcil pois os pais no toleram a incluso de aspectos sadios e adaptativos do filho devido culpa que isto lhes suscitaria. A culpa e a ansiedade concomitantes seriam de tipo depressivo, sentimentos esses que estes pais no suportam. muito frustrante trabalhar com pais assim em psicodiagnstico ou em psicoterapia, j que se eles no recebem a assistncia teraputica para que haja uma mudana positiva, resistiro sempre a admitir a melhora e os progressos do filho.

    O psiclogo espera que ambos os pais, indistintamente, tragam, associando livremente, aspectos positivos e negativos, que formem uma imagem do filho, que se completa medida que a entrevista vai transcorrendo. Esta expectativa nem sempre se realiza. D-se o caso de pais com papis francamente contrrios (no complementares, que so os mais prximos normalidade). Um dos pais assume o papel de advogado de defesa e o outro de acusador do filho. Um relata algo positivo e o outro imediatamente associa algo negativo que invalida o que foi relatado antes. Suponhamos, por exemplo, que a me diga: muito ordeiro e o pai acrescente: Sim, mas ontem deixou tudo jogado, seu quarto estava desarrumado. Em alguns casos, cada um destes dois papis fixo e desempenhado por

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    um dos pais ao longo de toda a primeira entrevista e, inclusive, de todo o processo. Em outros casos o que vemos que so papis intercambiveis e que o que esses pais necessitam no a funo que determinado papel lhes confere e sim a existncia de ambos os papis, no importando quem os desempenhe. No toleram estar de acordo, no suportam que o filho seja algum que mostra coerentemente a mesma coisa a todos, no podem concordar com o que vem e, s vezes, o que vem no tem muito valor para eles, empenhados numa luta permanente, direta ou indireta. Na entrevista, o psiclogo se sente como o filho do casal, como espectador obrigado das brigas contnuas e com dificuldades para entender as mensagens, pois estas so permanentemente contraditrias. Estes pais chegam entrevista final com a fantasia de que, por fim, saber-se- qual dos dois tinha razo. Quando percebem que o psiclogo no toma partido de ningum, mas que compreende os dois, costumam aliviar-se ou irritar-se, de acordo com o caso. O alvio surge quando conseguem um insight do tipo de casal que constituem, quando no se sentem recriminados por isso, quando compreendem que entender-se um com o outro lhes permite entender melhor o filho. No h dvida de que nestes pais h uma reserva de sentimentos depressivos que se movimentam quando o psiclogo lhes mostra os efeitos do tipo de vnculo que estabeleceram entre si e com o filho. A irritao, manifesta ou encoberta, surge quando sentem o que o psiclogo diz como uma reprovao ou um castigo pelas lutas contnuas. O castigo consiste em sentir-se tratado como terceiro excludo que recebe as admoestaes do casal parental, representado ento pelo psiclogo aliado com o outro. Por esta razo to importante abster-se de entrar na atitude de tomar partido ou de desautorizar francamente um dos pais do paciente. O mais saudvel mostrar aquilo em que cada um est certo e os efeitos que os erros de cada um produzem no filho. Portanto, no recomendvel entrar no jogo de trs que, inconscientemente, propem ao psiclogo, mas sim mostrar-lhes que eles consti-

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    tuem um casal e que o terceiro o filho, a quem se deve dar nfase em tudo o que se fala.

    Outra dificuldade que pode se apresentar j desde a primeira entrevista deriva da semelhana entre a patologia do filho e a de um de seus pais. Neste, uma reao defensiva comum pode ser a de diminuir a importncia de tal patologia reforando isto com racionalizao do tipo: Eu era igual quando pequeno, e agora estou bem. Os dados que apontam para esta patologia no aparecem como motivo manifesto ou no se lhes d primazia. o psiclogo que deve capt-los, perguntar mais exaustivamente sobre isso e unir os dados do filho com o material verbal e pr-verbal do pai, da me ou de ambos (gestos de contrariedade, nervosismo, desejos de ir embora, verborragia invasiva ou moderao extrema e todo tipo de tentativas de convencer o psiclogo de que melhor no perguntar mais a respeito daquilo). muito importante, ento, que o psiclogo no se submeta a tais imposies para poder obter todo o mate

    s' rial necessrio, sem se aliar patologia do grupo familiar, arcan- y v

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    tornar uma barreira impenetrvel na comunicao. Esta dificuldade transmitida mais atravs da forma do que atravs do contedo daquilo que se diz. Este ltimo mais bem controlado do que um tom de voz cortante, seco, agressivo e indiferente.

    Alm da ansiedade, a culpa desempenha um papel preponderante tanto nos pais e no paciente quanto no psiclogo. Quanto maior a ansiedade que detectamos na entrevista, maior tambm a culpa subjacente. Em alguns casos os pais verbalizam- na dizendo: Que terei feito de errado? Independentemente da quantidade e da qualidade da culpa, quase sempre aparece nos pais a fantasia de irreparabilidade, quando se enfrentam com uma histria mais real que inclui seus aspectos amorosos e destrutivos. Enfrentar-se com sua qualidade de pais no perfeitos di, e se o psiclogo no o compreende, pode aparecer como figura censora que os castigar como a filhos surpreendidos em falta. Esta dor nem sempre elaborada favoravelmente; para alguns pais o fracasso de sua onipotncia algo to intolervel que preferem evitar ou suspender a consulta. Se a ansiedade e a culpa forem encaradas adequadamente desde a primeira entrevista, assegurar-se- uma maior garantia da qualidade do trabalho diagnstico do psiclogo e, sobretudo, dei- xar-se- o terreno bem preparado para a entrevista devolutiva e para a elaborao de um plano teraputico correto, se necessrio.

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