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CÂMARA DOS DEPUTADOS CENTRO DE FORMAÇÃO, TREINAMENTO E APERFEIÇOAMENTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO NILSON MATIAS DE SANTANA O PROCESSO LEGISLATIVO E A PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL: UM LIMITE À ATUAÇÃO DO LEGISLADOR. BRASÍLIA 2008

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CÂMARA DOS DEPUTADOS CENTRO DE FORMAÇÃO, TREINAMENTO E APERFEIÇOAMENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

NILSON MATIAS DE SANTANA

O PROCESSO LEGISLATIVO E A PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL: UM LIMITE À ATUAÇÃO DO LEGISLADOR .

BRASÍLIA 2008

NILSON MATIAS DE SANTANA

O PROCESSO LEGISLATIVO E A PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL: UM LIMITE À ATUAÇÃO DO LEGISLADOR .

Monografia apresentada para aprovação no curso de Especialização em Processo Legislativo da Câmara dos Deputados Orientador: Prof. João Carlos Medeiros de Aragão

BRASÍLIA 2008

O PROCESSO LEGISLATIVO E A PROBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL: Um limite à atuação do Legislador.

Monografia – Curso de Especialização em Processo Legislativo da Câmara dos Deputados (2ª edição) – 1º Semestre de 2008. Aluno: Nilson Matias de Santana Banca Examinadora: _______________________________________ João Carlos Medeiros de Aragão (Orientador) _______________________________________ Raquel Torres Cordeiro Brasília, 25 de fevereiro de 2008.

À minha mãe, In memorian. À Luciene, minha amada esposa, e aos nossos filhos, Lucas, Pedro e Felipe, dádivas de Deus em nossas vidas.

AGRADECIMENTOS : A DEUS, de quem tudo provém. À minha família, de quem soneguei algumas horas de precioso convívio para concluir este trabalho. Ao CEFOR, que, por meio de seu Programa de Pós-Graduação, vem proporcionando os meios e condições necessários ao desenvolvimento profissional e intelectual dos servidores da Câmara dos Deputados. Aos meus colegas de turma, com quem tive o privilégio de conviver nesses meses de estudo, adquirindo novos conhecimentos e fazendo novos amigos. Ao meu orientador, Prof. João Carlos Medeiros de Aragão, pela generosidade de ter me aceito como orientando.

La Constituición permite la apertura hacia adelante, hacia el futuro; institucionaliza las experiencias (apertura hacia atrás) y abre espacio para el desarollo del espíritu humano y su historia (...) la Constituición no es sólo un ordenamiento jurídico para los juristas, los que tienen que interpretala conforme a las antiguas e las nuevas reglas de la profesión, sino que actúa esencialmente también como guía para los no juristas: para el ciudadano la Constituición no es sólo un texto jurídico o un “mecanismo normativo”, sino también expresión de un estadio de desarollo cultural, medio para la representación cultural do pueblo ante sí mesmo, espejo de su patrimonio cultural y fundamento de sus esperanzas. (Peter Härbele, El Estado Constitucional)

Se as coisas são inatingíveis... ora! Não é motivo para não querê-las... Que tristes os caminhos, se não fora A presença distante das estrelas! (Mário Quintana)

Resumo

O texto investiga se o legislador, em sua atuação como produtor de normas jurídicas

por intermédio do devido processo legislativo, está adstrito ao princípio da proibição de

retrocesso social, que seria um limite constitucional implícito à atuação do Poder Legislativo.

O trabalho é desenvolvido a partir da bibliografia acerca do tema, partindo das mais modernas

concepções a respeito da teoria dos princípios, passando pela própria conceituação da cláusula

de vedação de retrocesso social, com breve incursão pelo Direito Comparado, notadamente a

abordagem do princípio em análise na Alemanha e em Portugal. Como questão preliminar,

que guarda íntima relação com a proibição de retrocesso social, traça-se um breve esboço

sobre a teoria da constituição dirigente, idéia que tornou-se difundida na obra do

constitucionalista português Gomes Canotilho. A partir dos conceitos estudados, o trabalho

conclui que o princípio da proibição de retrocesso social é um claro limite à atuação do

legislador, uma vez que impede que conquistas sociais, obtidas em cumprimento aos

mandamentos constitucionais, sejam arbitrariamente alvo de legislações corrosivas,

produzidas sob o patrocínio de maiorias ocasionais, que diminuem o grau de concretização já

obtido pelos direitos fundamentais.

PALAVRAS-CHAVES: Processo Legislativo. Direitos Fundamentais. Direitos sociais.

Constituição dirigente. Teoria dos Princípios. Princípio da proibição de retrocesso social.

Sumário

Introdução................................................................................................................................... 9 1 A proibição de retrocesso social na visão de Canotilho ........................................................ 11 2 A fundamentalidade dos direitos sociais ............................................................................... 17

2.1 Considerações iniciais ................................................................................................ 17 2.2 Direitos fundamentais – aspectos históricos............................................................... 17

2.3 Características dos direitos fundamentais ............................................................ 22 2.4 Dimensões (ou "gerações") dos direitos fundamentais .............................................. 23

2.4.1 Direitos fundamentais da primeira dimensão.................................................... 25 2.4.2 Direitos fundamentais da segunda dimensão - os direitos sociais..................... 26 2.4.3 Direitos fundamentais da terceira dimensão ..................................................... 28 2.4.4 Direitos fundamentais da quarta dimensão ....................................................... 28

2.5 Direitos sociais como espécie de direitos fundamentais ............................................29 3 A teoria dos princípios - Dworkin e Alexy .......................................................................... 32

3.1 Distinção entre regras e princípios ............................................................................. 32 3.2 Princípios - algumas classificações doutrinárias ........................................................ 36

3.2.1 Canotilho ........................................................................................................... 37 3.2.2 Jean-Louis Bergel.............................................................................................. 37 3.2.3 Jorge Miranda.................................................................................................... 38

4 O conceito de retrocesso social - doutrina e jurisprudência. ................................................. 39 4.1 No direito comparado ................................................................................................. 39

4.1.1 Alemanha........................................................................................................... 39 4.1.2 Portugal ............................................................................................................. 41

4.2 No direito pátrio ......................................................................................................... 44 5 Considerações finais .............................................................................................................. 49 Referências ............................................................................................................................... 51

9�

Introdução

O princípio da proibição de retrocesso social, algumas vezes denominado “cláusula

de vedação de retrocesso”, foi desenvolvido pela jurisprudência européia, mais precisamente

na Alemanha e em Portugal. Em linhas gerais, consiste em se afirmar que ao Estado não é

permitido, uma vez alcançado determinado grau de efetivação dos direitos fundamentais

constitucionalmente garantidos, atuar no sentido de negar a realização desses direitos.

Os direitos sociais, como direitos fundamentais, ocupam lugar de destaque na

Constituição de 1988 e é imperativo compreender os mecanismos de proteção que a Carta

Magna construiu em torno desses direitos, que são instrumentos eficazes para a realização de

uma sociedade igualitária, justa e fraterna, objetivos constitucionais expressos no texto de

1988.

A relevância do tema pode ser percebida pela própria dinâmica do processo

legislativo brasileiro, cuja produção é abundante e variada, alcançando os mais diversos

temas, sendo importante conhecer até que ponto a atividade precípua do Poder Legislativo –

produzir leis – está contribuindo para a plena realização dos princípios e fundamentos

contidos na Constituição da República, uma vez que a não-observância do princípio da

proibição de retrocesso social pode se constituir em uma agressão aos direitos fundamentais.

A idéia da pesquisa é visitar a bibliografia a respeito do tema, partindo das mais

modernas concepções a respeito da teoria dos princípios (Alexy e Dworkin), passando pela

própria conceituação da cláusula de vedação de retrocesso, tanto no direito comparado quanto

no direito pátrio.

Diante do exposto, este estudo objetiva analisar a aplicação do princípio da

proibição de retrocesso social no processo legislativo brasileiro, porque pretende demonstrar

que esse princípio pode ser considerado um limite à atuação do legislador, a fim de garantir

que o produção legislativa respeite o nível de concretização já alcançado pelos direitos

sociais.

10�

É oportuno esclarecer que as análises constantes deste trabalho têm como

pressupostos o constitucionalismo moderno – que tem por pilares a separação de poderes e a

proteção dos direitos fundamentais – e o seu resultado mais precioso: o Estado constitucional,

em que a sociedade dispõe de órgãos específicos para o exercício do poder, embora ela

própria ocupe o espaço central.

O texto foi dividido em cinco seções. Na primeira, registra-se o que diz sobre o

tema o constitucionalista português José Joaquim Gomes Canotilho, cuja obra se constitui em

verdadeiro marco teórico em língua portuguesa sobre o tema do princípio de proibição de

retrocesso social, que guarda íntima relação com a teoria da constituição dirigente, conceito

também tratado nesta mesma seção.

A segunda seção foi dedicada ao estudo da teoria dos direitos fundamentais

(aspectos históricos e características), com ênfase no caráter de fundamentalidade dos direitos

sociais, principal objeto de proteção da vedação de retrocesso social. Faz-se também breve

exposição sobre as dimensões (ou gerações, como alguns preferem) dos direitos

fundamentais.

A teoria dos princípios é o tema da terceira seção, que aborda, a partir das

concepções de Ronald Dworkin e Robert Alexy, os contornos da diferenciação entre regras e

princípios como modalidades do gênero norma jurídica.

Reservou-se a quarta seção do texto para a apresentação do arcabouço teórico acerca

do tema, na doutrina e na jurisprudência, tanto no direito comparado (Alemanha e Portugal)

quanto no direito brasileiro.

Por fim, na quinta e última seção, são feitas, à guisa de conclusão, as considerações

finais sobre o trabalho desenvolvido.

Registre-se que, quanto às citações bibliográficas, optou-se pelo sistema AUTOR-

DATA, uma das alternativas apresentadas pela norma NBR 10520, da Associação Brasileira

de Normas Técnicas (ABNT).

11�

1 A proibição de retrocesso social na visão de Cano tilho

A constitucionalização dos direitos sociais, destarte, impôs ao Estado a modificação de seu perfil mínimo, compelindo-o a assumir postura ativa no cenário econômico e na promoção do bem-estar social (...) A Constituição passa também a traçar fins públicos a serem perseguidos pelo Estado, tornando-se o que bem depois viria a ser denominado Constituição dirigente. (DEBLI, 2007, p. 19).

Quando se fala no constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho é impossível

não fazer referência à expressão Constituição dirigente, que foi bastante difundida em toda a

sua obra. Como se verá a seguir, o princípio da proibição de retrocesso social é quase uma

decorrência lógica da idéia de dirigismo constitucional (DEBLI, 2007, p. 45).

Assim, antes da apresentação do conceito de proibição de retrocesso social, faz-se

necessária uma incursão pelo tema da constituição dirigente.

A mais conhecida concepção de dirigismo constitucional foi apresentada na obra

Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, publicada por Canotilho em 1982. Para o

mestre lusitano, o que caracteriza a constituição dirigente é a presença de um conteúdo

programático-constitucional. Assim as cartas magnas desse tipo não se limitam à distribuição

de competências entre os órgãos do Estado e à proteção dos direitos e garantias individuais,

mas atribuem ao Estado a realização de fins e consecução de tarefas (cf. DERBLI, 2007).

Nas palavras do próprio Canotilho:

[...] todas as constituições pretendem, implícita ou explicitamente, conformar globalmente o "político". Se esta conformação é no sentido "conservativo", "evolutivo" ou "revolucionário", se o momento constitutivo-constitucional se impregnou de "política" e de "ideologia" (isto é: com constitucionalização de normas programáticas e de princípios definidores de fins do Estado), ou se o processo de decisão constitucional conformadora se inspira no lema da policy without law porque acredita na auto-regulação do status quo, isso em nada altera a "intenção actuante" do direito constitucional. (CANOTILHO, 2001, p. 28).

Assim, na constituição dirigente há tarefas e intenções que o poder constituinte

estabelece para o Estado. Enfrentando o assunto em trabalho recente, diz Felipe Derbli:

12�

A Constituição dirigente, de acordo com o autor luso [Canotilho], é reconhecida quando há normas constitucionais que estabeleçam o programa constitucional, definindo as tarefas e os fins do Estado (que chamaremos, segundo a classificação proposta por Luís Roberto Barroso, de normas programáticas), normas definidoras de direitos prestacionais, imposições constitucionais e a consagração de igualdade de oportunidades para os cidadãos. (DERBLI, 2007, p. 56).

Portanto, quando se falar em constituição dirigente no presente trabalho, deve-se

entender como tal a concepção que enxerga no texto constitucional, além das normas de

organização do Estado e de distribuição de competências dos órgãos que o compõem,

dispositivos que pretendem fixar também as tarefas e fins almejados pelo Poder Constituinte.

Para Canotilho (2001, p. 13-14), como todas as Constituições pretendem, de uma

forma ou outra, conformar o político, com a denominação “Constituição Dirigente” afirma-se

intencionalmente a força de direção do direito constitucional. A Constituição Dirigente busca

racionalizar a política, incorporando uma dimensão materialmente legitimadora, ao

estabelecer um fundamento constitucional para a política. O núcleo da idéia de Constituição

Dirigente é a proposta de legitimação material da Constituição pelos fins e tarefas previstos

no texto constitucional. Em síntese, segundo Canotilho, o problema da Constituição Dirigente

é um problema de legitimação.

Segundo a Teoria da Constituição Dirigente, a Constituição não é só garantia do

existente, mas também um programa para o futuro. Ao fornecer linhas de atuação para a

política, sem substituí-la, destaca a interdependência entre Estado e sociedade: a Constituição

Dirigente é uma Constituição estatal e social (BERCOVICI, 2004. p. 12).

Esclareça-se desde logo que, na 2ª edição da sua obra a respeito do tema, Canotilho

reviu o seu posicionamento inicial acerca do que entendia ser o conceito de constituição

dirigente. No prefácio da edição mais recente, de 2001, chegou, segundo o entendimento de

alguns, a decretar a "morte" da constituição dirigente:

Em jeito de conclusão, dir-se-ia que a Constituição dirigente está morta se o dirigismo constitucional for entendido como normativismo constitucional revolucionário capaz de, por si só, operar transformações emancipatórias. Também suportará impulsos tanáticos qualquer texto constitucional

13�

dirigente introvertidamente vergado sobre sí próprio e alheio aos processos de abertura do direito constitucional ao direito internacional e aos direitos supranacionais. Numa época de cidadanias múltiplas e de múltiplos de cidadanias seria prejudicial aos próprios cidadãos o fecho da Constituição, erguendo-se à categoria de "linha Maginot" contra invasões agressivas dos direitos fundamentais. Alguma coisa ficou, porém, da programaticidade constitucional. Contra os que ergueram as normas programáticas a "linha de caminho de ferro" neutralizadora dos caminhos plurais da implantação da cidadania, acreditamos que os textos constitucionais deve estabelecer as premissas materiais fundantes das políticas públicas num Estado e numa sociedade que se pretendem continuar a chamar de direito, democráticas e sociais. (CANOTILHO apud GRAU, 2004, p. 333).

A leitura cuidadosa do texto citado revela o relativismo da morte pretensamente

decretada. Na verdade, o que houve foi um amadurecimento da visão inicial do autor sobre o

tema em questão. Em outras palavras, aquela idéia de constituição dirigente como fator

revolucionário foi evidentemente abandonada, ou seja, para o autor, o dirigismo

constitucional não pode ser tido como um elemento revolucionário, capaz de, por si só,

normativamente, transformar a sociedade.

Quando da primeira edição do livro de Canotilho, justificava-se o entusiasmo acerca

da noção de constituição dirigente em virtude do momento histórico vivido, final dos anos

setenta e início dos oitenta (século XX), que coincidiu com o declínio das ditaduras tanto em

Portugal quanto no Brasil, o que favoreceu o aparecimento de manifestações do poder

constituinte consubstanciadas em textos constitucionais de natureza marcadamente

emancipatória, que refletiam a crença otimista na capacidade transformadora das normas

constitucionais, como ocorreu com as constituições de Portugal, de 1976, e do Brasil, de

1988. No caso da carta magna lusitana, esse aspecto socializante era ainda mais forte, pois a

Constituição da República Portuguesa de 1976 foi elaborada sob um influxo de um

movimento revolucionário. Daí porque, em seu texto original, proclamava a revolução

socialista e trazia expressões como "transição para o socialismo", entre outras.

No entanto, a queda dos regimes socialistas na União Soviética e nos países do Leste

europeu, apesar de toda a força de programaticidade de suas constituições, forçou a revisão

das teses do dirigismo constitucional, o que foi feito na segunda edição da sua obra A

constituição de dirigente e a vinculação do legislador, conforme o texto acima transcrito.

14�

Entretanto, embora essa dimensão revolucionária da constituição dirigente deva ser

considerada anacrônica, alguma coisa ficou do dirigismo constitucional, conforme afirmou o

próprio Canotilho.

Comentando essa concepção revisada do dirigismo constitucional, diz Felipe Derbli:

A Constituição dirigente não se pode manter mais como proposta de normativismo revolucionário, capaz, por si só, de promover a emancipação, assim também estará fadada ao fracasso se não estiver aberta ao direito internacional e aos direitos supranacionais. No entanto, ainda deve sobreviver na previsão, pelas normas constitucionais, das 'premissas materiais fundantes' das políticas públicas do Estado e da sociedade estabelecidos sobre um direito democrático e social. (DERBLI, 2007, p. 63).

Trazendo a questão para o âmbito do direito constitucional brasileiro, é importante

destacar o que afirma Bercovici, com muita segurança, sobre a constituição em vigor:

A Constituição de 1988 é uma constituição dirigente, pois define, por meio das chamadas normas constitucionais programáticas, fins e programas de ação futura, no sentido de melhoria das condições sociais e econômicas da população. (BERCOVICI, 1999,p. 36).

O Ministro Eros Grau, tratando do mesmo tema, também concorda com o caráter

dirigente da Constituição de 1988:

Deveras, a Constituição do Brasil não é um mero "instrumento de governo", enunciador de competências e regulador de processos; mas, além disso, enuncia diretrizes, fins e programas a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Não compreende tão-somente um "estatuto jurídico do político", mas sim um "plano global normativo" da sociedade e, por isso mesmo, do Estado Brasileiro. Daí ser ela a Constituição do Brasil, e não apenas a Constituição da República Federativa do Brasil. Os fundamentos e os fins definidos em seus arts. 1º e 3º são os fundamentos e os fins da sociedade brasileira. (GRAU, 2004, p. 325).

A partir desta visão do papel da Constituição, fica clara a necessidade de haver

mecanismos que preservem os valores essenciais que motivaram o poder constituinte

originário, notadamente nos aspectos que se referem aos chamados direitos sociais. Para usar

as palavras do já muitas vezes citado Felipe Debli:

O dirigismo constitucional carrega não só o dever inescusável do legislador de editar os atos que dêem concretude à Constituição – especialmente no sentido da redução das desigualdades sociais -, como também o dever de observar o padrão obtido de consecução, por impulso legislativo, do

15�

desiderato constitucional de desenvolvimento da cidadania. (DERBLI, 2007, p. 83).

Nesse sentido, Canotilho chega a indicar um dos fundamentos para a proibição de

retrocesso social. Para o constitucionalista português, o ponto de partida para esse limite ao

legislador seria o princípio da democracia econômica e social, que se consistiria em:

(...) uma autorização constitucional no sentido de o legislador democrático e os outros órgãos encarregados da concretização político-constitucional adoptarem as medidas necessárias para a evolução da ordem constitucional sob a óptica de uma "justiça constitucional" nas vestes de uma "justiça social". (CANOTILHO, 2003, p. 338).

Percebe-se claramente, no texto citado, o entendimento atualizado do que vem a ser

constituição dirigente. A partir daí, o autor lusitano expressa a sua idéia de princípio da

proibição de retrocesso nos seguintes termos:

A ideia aqui expressa também tem sido designada como proibição de "contra-revolução social" ou da "evolução reaccionária". Com isso quer dizer-se que os direitos sociais económicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo. (...) A violação do núcleo essencial efectivado justificará a sanção de inconstitucionalidade relativamente a normas manifestamente aniquiladoras da chamada "justiça social". Assim, por ex., será inconstitucional uma lei que extinga o direito a subsídio de desemprego ou pretenda alargar desproporcionalmente o tempo de serviço necessário para a aquisição do direito à reforma. (...) O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas (...) deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa "anulação", "revogação" ou "aniquilação" pura e simples desse núcleo essencial. (CANOTILHO, 2003, p. 338-340).

Em outras palavras, o princípio da proibição de retrocesso social objetiva proteger o

núcleo essencial dos direitos sociais garantido pela Constituição e concretizado no âmbito

infraconstitucional contra a ação corrosiva do legislador.

Portanto, o princípio da proibição de retrocesso social tem relação direta com a

concretização dos direitos sociais, tanto em sede infraconstitucional quanto nas normas

constitucionais, uma vez que, contextualizando o tema mais uma vez ao caso brasileiro, um

16�

dos objetivos da República Federativa do Brasil é construir uma sociedade livre, justa e

solidária, o que passa necessariamente pela efetivação dos direitos fundamentais sociais. Tal

idéia é expressa em trabalho publicado por Amílcar Fagundes Freitas Macedo:

Na verdade, a proibição de retrocesso social visa a impedir que sejam frustrados os direitos sociais já concretizados, tanto na ordem constitucional como na infraconstitucional, em atenção aos objetivos da República Federativa do Brasil, que é o de promover o bem de todos, sem quaisquer formas de discriminação, constituindo uma sociedade livre, justa, solidária, erradicando a pobreza e marginalização, reduzindo as desigualdades sociais, o que se dá através da implementação e efetivação do Estado Social de Direito. (MACEDO, 2004, p.32).

Assim, para entender corretamente a importância do princípio da proibição de

retrocesso nacional, é necessário ter a real compreensão da natureza dos direitos sociais, o que

será abordado na seção a seguir.

17�

2 A fundamentalidade dos direitos sociais

Os direitos sociais, por sua própria natureza, invocam do poder político uma demanda de recursos para sua aplicabilidade plena, o que gera fortes pressões ideológicas e envolve escolhas políticas determinantes para conseguir alcançar o ideal de uma sociedade livre, justa e solidária, objetivo consagrado em nossa Carta Magna. (ALMEIDA, 2007, p. 118).

2.1 Considerações iniciais

Dizer que para o constitucionalismo moderno a questão dos direitos fundamentais

se configura em uma idéia crucial é quase tangenciar o truísmo. Nesse sentido, convém

registrar a lição de Ingo Sarlet de que a história dos direitos fundamentais desemboca no

surgimento do Estado constitucional, que encontra a sua razão de ser no reconhecimento e na

proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais (SARLET, 2007). Na

mesma direção, Paulo Gustavo Gonet Branco ressalta que "os direitos fundamentais são hoje

o parâmetro de aferição do grau de democracia de uma sociedade". (BRANCO, 2002, p. 104).

Para os fins do presente trabalho, cuja temática está diretamente relacionada aos

direitos fundamentais sociais, convém esclarecer o que a doutrina entende como direitos

fundamentais para em seguida demonstrar como os direitos sociais podem ser considerados

uma modalidade dos direitos fundamentais.

2.2 Direitos fundamentais – aspectos históricos

É necessário, de início, um breve registro sobre a multiplicidade de terminologia

adotada pela doutrina ao se referir aos direitos fundamentais. Expressões como "direitos

humanos", "direitos do homem", "direitos civis", "direitos subjetivos públicos", "liberdades

públicas", "direitos individuais", "liberdades fundamentais", dentre outras, são amplamente

utilizadas. No campo do direito positivo, a Constituição de 1988, conforme lembra Ingo

Sarlet (2007), também recorre a diversos termos para fazer referência aos direitos

fundamentais. Assim, podem-se encontrar na Carta Magna vigente as expressões: direitos

18�

humanos (art. 4º, II), direitos e garantias fundamentais (epígrafe do Título II e art. 5º, § 1º),

direitos e liberdades constitucionais (art. 5º, LXXI), e direitos e garantias individuais (art. 60,

§ 4º, IV).

Atualmente, as expressões mais usadas são "direitos humanos" e "direitos

fundamentais". Embora muitos as usem com o mesmo sentido, há autores que fazem

distinção. Segundo assinala Sampaio (2004, p. 8), para os estudiosos que adotam a

diferenciação dos termos, "direitos humanos" seriam os direitos válidos para todos os povos

ou para o homem, independentemente do contexto social e sem limites de fronteiras

nacionais, direitos esses plasmados em documentos internacionais, tendo como ponto de

partida a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Já os "direitos

fundamentais" são considerados aqueles juridicamente válidos no âmbito de determinado

ordenamento jurídico, sob a proteção de determinada Constituição.

Nessa mesma linha de argumentação, afirma Ingo Sarlet:

Em que pese sejam ambos os termos ("direitos humanos" e "direitos fundamentais") comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para distinção é de que o termo "direitos fundamentais" se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão "direitos humanos" guardaria relação como os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional). (SARLET, 2007, p. 35-36).

Mais adiante, o ilustre professor gaúcho arremata:

À luz das digressões tecidas, cumpre repisar, que se torna difícil sustentar que direitos humanos e direitos fundamentais (pelo menos no que diz com a sua fundamentação jurídico-positiva constitucional ou internacional, já que evidentes as diferenças apontadas) sejam a mesma coisa, a não ser, é claro, que se parta de um acordo semântico (de que direitos humanos e fundamentais são expressões sinônimas), com as devidas distinções em se tratando da dimensão internacional e nacional, quando e se for o caso. Os direitos fundamentais, convém repetir, nascem e se desenvolvem com as Constituições nas quais foram reconhecidos e assegurados (...). (SARLET, 2007, p. 42).

Portanto, neste trabalho será adotada a distinção acima proposta e, ao se fazer

referência a direitos fundamentais, presume-se, a menos que se faça referência a outro

19�

ordenamento jurídico, que se estará tratando dos direitos garantidos pela Constituição de

1988.

No que se refere aos aspectos históricos, alguns autores sustentam que as primeiras

manifestações dos direitos fundamentais encontrariam eco no direito da Babilônia

desenvolvido por volta do ano 2000 a. C., havendo também quem os reconheça no direito da

Grécia Antiga e na Roma Republicana (DIMOULIS; MARTINS, 2007, p. 2).

Tais opiniões não condizem com os fatos históricos, segundo a doutrina majoritária.

Mesmo assim, é interessante a observação feita por Ingo Sarlet acerca do tema:

Ainda que consagrada a concepção de que não foi na antigüidade que surgiram os primeiros direitos fundamentais, não menos verdadeira é a constatação de que o mundo antigo, por meio da religião e da filosofia, nos legou algumas das idéias-chave que, posteriormente, vieram a influenciar diretamente o pensamento jusnaturalista e sua concepção de que o ser humano, pelo simples fato de existir, é titular de alguns direitos naturais e inalienáveis, de tal sorte que esta fase costuma também ser denominada, consoante já ressaltado, de "pré-história' dos direitos fundamentais. De modo especial, os valores da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade dos homens encontram raízes na filosofia clássica, especialmente na greco-romana, e no pensamento cristão. (SARLET, 2007, p.45).

Por sua vez, ao apontar a provável razão pela qual o mundo greco-romano, antes do

período marcado pelo advento do cristianismo, não conheceu a idéia de direitos fundamentais,

Henrique Savonitti Miranda assinala:

Mesmo as comunidades políticas das cidades gregas, que se tornaram modelos de democracias diretas, não conheceram a figura dos direitos fundamentais. Ali, o indivíduo estava dissolvido na sociedade, de tal sorte que dispunha de prerrogativas de participação política em coletivo, na praça pública, jamais sendo considerado um ser individualizado, portador de direitos e de significação, independentemente da comunidade na qual estava inserido. (MIRANDA, 2004, p. 178)

Com isso, pode-se afirmar que, na antigüidade, a idéia de liberdade estava ligada à

participação política. A liberdade consistia em possuir a faculdade de exercer os direitos

políticos de cidadão, ou seja, em participar dos negócios da polis. Tal situação marcava a

diferença entre o homem livre, dotado do privilégio de exercer a cidadania, e o escravo,

completamente órfão de direitos políticos.

20�

Já para o homem moderno, a liberdade corresponde a possuir os meios para a

realização da vida pessoal. Talvez por isso os primeiros direitos fundamentais, ligados à luta

pela liberdade, tenham seu surgimento nos séculos XVII e XVIII com o advento das teorias

contratualistas.

As teorias contratualistas ganham relevo na corrente jusnaturalista, sobretudo nos séculos XVII e XVIII, para acentuar que os soberanos deveriam exercer a sua autoridade com submissão ao direito natural. Decorria daí a primazia do indivíduo sobre o Estado. É de se destacar, nesse contexto, o nome de John Locke, pensador que, partindo do suposto de que os homens se reúnem em sociedade para preservar a vida, a liberdade e a propriedade, faz desses bens conteúdo de direitos oponíveis ao próprio soberano. A defesa desses direitos representaria a razão de ser do Estado e o seu princípio legitimador. (BRANCO, 2002, p. 105).

De fato, para os três autores clássicos contratualistas, Hobbes, Locke e Rousseau, a

idealização de um suposto estado de natureza seria a justificativa para o exercício de direitos

oponíveis aos soberanos, o que seria um embrião dos direitos fundamentais. Para Hobbes, no

estado de natureza, os homens eram todos iguais, não havendo mediador algum entre eles, o

que ocasionava o conflito e o desejo de domínio de um indivíduo sobre o outro. Era a

chamada guerra de todos contra todos, um estado permanente de beligerância. Nessas

condições, como solução para esse estado permanente de guerra que ameaçava a

sobrevivência humana, cada indivíduo estabelecia um contrato com um único soberano,

abrindo mão dos seus direitos em favor dele, que deveria possibilitar a manutenção da

existência. Assim, o indivíduo só preservava o direito à vida; e a ameaça a esse direito, por

parte do soberano, era a única possibilidade que justificava a quebra do contrato.

Já para Locke, o estado de natureza não era a guerra de todos contra todos. Os

homens já viviam em uma pré-sociedade e em relativa paz, embora uma paz instável. A

necessidade de um contrato social surge, segundo Locke, como forma de proteção à vida e à

propriedade. Diferentemente de Hobbes, Locke considera o seu estado de natureza como um

etapa real do desenvolvimento humano e cita como exemplo as sociedades primitivas

descobertas no Novo Mundo. O contrato social, para ele, poderia ser rompido quando o

soberano atentasse contra a vida ou contra a propriedade dos súditos.

O estado de natureza descrito por Rousseau representava a igualdade de todos os

homens, o que era considerado por ele um dado positivo, ao contrário do que pensava

21�

Hobbes. Nesse estado, os homens não viviam em sociedade e possuíam igualdade absoluta.

Era o conceito do "bom selvagem". Essa igualdade foi quebrada, de acordo com o filósofo

francês, com o advento da propriedade privada. Assim, o contrato social foi firmado com o

objetivo de permitir a vida em sociedade e mitigar os conflitos oriundos da desigualdade

provocada pela propriedade privada.

Em resumo, para Hobbes, com o contrato social, a propriedade era um daqueles

direitos a que o indivíduo abria mão em favor do soberano, conservando apenas o direito à

vida. Locke, por sua vez, considerava a propriedade um direito natural. Já Rousseau

enxergava na propriedade o fator que rompeu a harmonia da igualdade existente no estado de

natureza, o que forçou o estabelecimento do contrato social.

Segundo Gonet Branco, as teorias contratualistas, notadamente as idéias de Locke,

inspiraram as Declarações da Virgínia 1776 e a francesa de 1789 (BRANCO, 2002, p. 105).

A Declaração da Virgínia, proclamada em 12 de junho de 1776, enunciava direitos

tais como a liberdade, a autonomia e a proteção da vida do indivíduo, a igualdade, a

propriedade e a livre atividade econômica, a liberdade de religião e de imprensa e a proteção

contra a repressão penal (DIMOULIS; MARTINS, 2007, p. 27).

A partir daí, a idéia de direitos fundamentais seguiu o desenvolvimento do

constitucionalismo e hoje é um dos elementos integrantes do conceito moderno de

Constituição, conforme registra Canotilho:

O constitucionalismo moderno legitimou o aparecimento da chamada constituição moderna. Por constituição moderna entende-se a ordenação sistemática e racional da comunidade política através de um documento escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos e se fixam os limites do poder político. (CANOTILHO, 2003, p. 52).

22�

2.3 Características dos direitos fundamentais

Foram muitas as transformações por que passaram os direitos fundamentais, nos

mais diversos aspectos (conteúdo, titularidade, eficácia) desde que foram reconhecidos nas

primeiras Constituições (SARLET, 2007, p. 54).

Gilmar Ferreira Mendes, adotando os aspectos mais modernos do conceito de

direitos fundamentais, ensina:

Os direitos fundamentais são, a um só tempo, direitos subjetivos e elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva. Enquanto direitos subjetivos, os direitos fundamentais outorgam aos titulares a possibilidade de impor os seus interesses em face dos órgãos obrigados. Na sua dimensão como elemento fundamental da ordem constitucional objetiva, os direitos fundamentais - tanto aqueles que não asseguram, primariamente, um direito subjetivo quando aqueloutros, concebidos como garantias individuais - formam a base do ordenamento jurídico de um Estado de Direito democrático. (MENDES, 2004, p. 2).

O Prof. Paulo Gustavo Gonet Branco, por sua vez, chama a atenção para a

importância de se estabelecer as características dos direitos fundamentais. Tal tarefa é

importante como ferramenta para que sejam identificados, na ordem jurídica, direitos

fundamentais implícitos ou fora do catálogo expresso da Constituição (BRANCO, 2002, p.

115).

A primeira característica apontada é universalidade. Tal traço definidor deve ser

entendido nos seus exatos termos. Embora todas as pessoas sejam titulares de direitos

fundamentais, há desses direitos que são ligados há determinados indivíduos de acordo com

sua condição especial. Assim, há direitos fundamentais que são relativos, por exemplo,

somente aos trabalhadores.

A historicidade é outra característica dos direitos fundamentais, pois forma "um

conjunto de faculdades e instituições que somente fazem sentido num determinado contexto

histórico." (BRANCO, 2002, p. 121).

Fala-se também da inalienabilidade dos direitos fundamentais. Nem todos os

direitos fundamentais possuem tal característica, mas somente aqueles que visam resguardar a

potencialidade de autodeterminação do ser humano.

23�

Também é apontada como característica a constitucionalização. Os direitos

fundamentais estão garantidos na Constituição.

Como decorrência da constitucionalização, os direitos fundamentais geram

vinculação dos poderes públicos. Os poderes da República (Executivo, Legislativo e

Judiciário) estão constitucionalmente vinculados aos direitos fundamentais.

Por fim, os direitos fundamentais têm aplicação imediata. O Prof. Paulo Gustavo

explica:

O significado essencial dessa cláusula é o de ressaltar que as normas que definem direitos fundamentais são normas de caráter preceptivo, e, não, meramente programático. Explicita-se, além disso, que os direitos fundamentais se fundam na Constituição, e não na lei - com o que se deixa claro que é a lei que deve mover-se no âmbito dos direitos fundamentais, e, não, o contrário . Os direitos fundamentais não são meramente normas matrizes de outras normas, mas são também, e sobretudo, norma diretamente reguladoras de relações juridicas. (BRANCO, 2002, p. 134). (grifos acrescentados).

A afirmação acima destacada de que "é a lei que deve mover-se no âmbito dos

direitos fundamentais" é de de suma importância para a apreensão do significado exato do

princípio da proibição de retrocesso social, como se verá mais adiante.

2.4 Dimensões (ou "gerações") dos direitos fundamen tais

A doutrina jurídica tem se referido a gerações dos direitos fundamentais. Tal teoria

procura ligar cada grupo de direito fundamentais aos ideais difundidos pela Revolução

Francesa de 1879: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Assim, a cada um desses ideais

corresponderia um geração de direitos fundamentais. À primeira geração, corresponderiam os

direitos ligados à Liberdade; à segunda geração, os que têm conexão com a idéia de Igualdade

e, finalmente, à terceira geração, os direitos que seriam justificados pela noção de

Fraternidade. Hoje, já há quem fale em direitos de quarta e até de quinta geração.

Conforme ensina José Adércio Leite Sampaio (2004), a classificação dos direitos

fundamentais segundo gerações foi apresentada, em 1979, pelo francês Karel Vasak no

Instituto Internacional de Direitos Humanos em Estraburgo. A primeira geração,

24�

fundamentada na liberdade, teria surgido com as revoluções burguesas dos séculos XVII e

XVIII. A segunda geração seria decorrência dos movimentos sociais democratas e da

Revolução Russa, com ênfase na igualdade. Finalmente, a terceira geração de direitos

fundamentais seria fruto das duras experiências vividas pela humanidade durante a Segunda

Guerra Mundial com a conseqüente onda de descolonização que se seguiu, e procura refletir

os valores da fraternidade humana.

Embora a teoria das gerações tente retratar as transformações históricas que a idéia

de direitos fundamentais sofreu, a utilização do termo "gerações" tem sido muito criticada

pela doutrina. Tem-se preferido, em nome do rigor terminológico, falar de "dimensões" dos

direitos fundamentais.

Ingo Sarlet, ao explicar as razões por que prefere o segundo termo (dimensões),

afirma:

(...) não há como negar que o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de complementaridade, e não de alternância, de tal sorte que o uso da expressão "gerações" pode ensejar a falsa impressão de substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela qual há quem prefira o termo "dimensões" dos direitos fundamentais, posição esta que aqui optamos por perfilhar, na esteira da mais moderna doutrina. (SARLET, 2007, p. 54).

De fato, o termo "gerações" transmite uma idéia de sucessão, como se uma classe de

direitos sucedesse à outra. Dessa forma, a expressão "dimensões" - que será adotada neste

trabalho - parece mais adequada pois denota aspectos diferentes de um mesmo fenômeno, no

caso, os direitos fundamentais.

Necessário esclarecer que há autores - poucos, diga-se de passagem - que são contra

a utilização tanto do termo "gerações" quanto da expressão "dimensões". Analisando as duas

designações, Dimoulis e Martins afirmam:

(...) é inexato se referir a "gerações" dos direitos fundamentais, considerando que os direito sociais sejam posteriores aos direitos de inspiração liberal-individualista ou que estes tenham substituído, ultrapassado os direitos fundamentais clássicos da dita "primeira geraçaõ" liberal-individualista (...). Por essa razão, uma parte crescente da doutrina refere-se às categorias dos direitos fundamentais com o termo "dimensões". Essa opção evita os graves equívocos do termo "gerações", mas não será (...) em razão de uma preocupação de exatidão terminológica. Fala-se em dimensão para indicar dois ou mais

25�

componentes ou aspectos do mesmo fenômeno ou elemento. No caso aqui relevante, há grupos de direitos fundamentais cuja finalidade e funcionamento são claramente diferenciados em âmbito jurídico. Portanto, recomenda-se utilizar os termos "categorias" ou "espécies" de direitos fundamentais, da mesma forma como se classifica leis e atos jurídicos em espécies de leis ou categorias de atos jurídicos e não em dimensões do ato jurídico ou da lei. (DIMOULIS; MARTINS, 2007, p. 35-36)

A despeito desse posicionamento, a expressão "dimensões" será utilizada nesta

monografia porque cada grupo de direitos fundamentais aqui analisado, conforme foi visto,

sem que se afaste a interação entre cada classe, nitidamente é tomado a partir de um aspecto

axiológico, que dita a tônica de cada dimensão.

2.4.1 Direitos fundamentais da primeira dimensão

Esta classe de direitos é considerada um produto peculiar do pensamento liberal-

burguês do século XVIII (SARLET, 2007), cuja característica principal era o individualismo.

Assim, os direitos fundamentais da primeira dimensão surgem como afirmação dos direitos

do indivíduo perante o Estado.

Segundo a lição de Sampaio (que usa o termo "geração"), os direitos fundamentais

de primeira dimensão,

Por terem sido os primeiros que apareceram na Era dos Direitos, são rotineiramente chamados de "direitos" ou "liberdades" de primeira geração ou de "base liberal". Tais direitos se fundam numa separação entre Estado e sociedade, que permeia o contratualismo individualista dos Séculos XVIII e XIX. O Estado desempenha um papel de polícia administrativa por meio do Poder Executivo e de controle, prevenção e repressão pelo Judiciário de ameaça ou lesão. Internamente, dividem-se em (1) direitos civis e (2) direitos políticos. (SAMPAIO, 2004, p. 260).

Por sua vez, já ingressando na seara do conteúdo dessa dimensão dos direitos

fundamentais, afirma Ingo Sarlet:

Assume particular relevo no rol desses direitos, especialmente pela sua notória inspiração jusnaturalista, os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante à lei. São, posteriormente, complementados por um leque de liberdades, incluindo as assim chamadas liberdades de expressão coletiva (liberdades de expressão, imprensa, manifestação, reunião, associação etc) e pelos direitos de participação política, tais como o direito de voto e a capacidade eleitoral passiva,

26�

revelando, de tal sorte, a íntima correlação entre os direitos fundamentais e a democracia. (SARLET, 2007, p. 56).

2.4.2 Direitos fundamentais da segunda dimensão - o s direitos sociais

Os direitos da segunda dimensão são decorrência dos movimentos sociais

democratas e da Revolução Russa, cuja tônica era a igualdade. Convém transcrever, de início,

a opinião de Vicente de Paulo Barretto acerca do tema:

A idéia de igualdade social, própria do Estado Social de Direito, não se identifica com a garantia de igualdade perante a lei, mera igualdade formal. Exige, ao contrário, um outro tipo de igualdade, material, que representa exatamente a superação da igualdade jurídica do liberalismo. Pelo princípio da igualdade material, assim desenvolvido, o Estado se obriga, mediante retificação na ordem social, a remover as injustiças encontradas na sociedade. Essa obrigação, entretanto, processa-se não através da pura e simples manifestação do voluntarismo político, mas como conseqüência da elaboração legislativa, que irá refletir as demandas dos excluídos dos benefícios da sociedade liberal. (BARRETTO, 2003, p. 129)

Portanto, os direitos fundamentais da segunda dimensão são os chamados direitos

sociais, econômicos e culturais. Segundo assinala Sampaio (2004, p. 261), esses direitos

"surgem primeiramente como 'deveres' impostos ao Estado já na Constituição francesa de

1791, como secours public às crianças abandonadas, aos pobres enfermos e inválidos". Mas

somente na Constituição do México de 1917 e na de Weimar de 1919 é que haverá a

definição clara e explícita desses direitos.

A trilogia da segunda dimensão (direitos sociais, econômicos e culturais) aparece na

doutrina, via de regra, sob a designação única de direitos sociais.

Para Ingo Sarlet (2007), a justificativa para a utilização da expressão "social" é que

os direitos da segunda dimensão podem ser considerados "uma densificação do princípio da

justiça social, além de corresponderem às reivindicações da classes menos favorecidas, de

modo especial da classe operária, a título de compensação" pela desigualdade característica

das relações com a classe empregadora.

27�

Assim, "esses direitos são chamados sociais, não porque sejam direitos de

coletividades, mas, sobretudo, por atenderem a reivindicações de justiça social" (BRANCO,

2002, p. 111).

Segundo afirma José Afonso da Silva, os direitos sociais "são prestações positivas

proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais,

que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a

igualização de situações desiguais" (SILVA, 2004, p. 285).

O conteúdo dos direitos da segunda dimensão é bastante eclético, englobando não

apenas direitos a prestação. Há também algumas liberdades sociais, como a liberdade de

sindicalização e o direito de greve.

José Afonso da Silva, ao tratar dos fundamentos constitucionais dos direitos sociais,

faz a seguinte observação:

A ordem social, como a ordem econômica, adquiriu dimensão jurídica a partir do momento em que as constituições passaram a discipliná-la sistematicamente, o que teve início com a Constituição mexicana de 1917. No Brasil, a primeira Constituição a inscrever um título sobre a ordem econômica e social foi a de 1934, sob a influência da Constituição alemã de Weimar, o que continuou nas constituições posteriores. (SILVA, 2004, p. 284).

A Constituição de 1988, no art. 6º, declara que "são direitos sociais a educação, a

saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à

maternidade e à infância, a assistência aos desamparados". José Afonso da Silva, com base

nos arts. 6º a 11, sugere a seguinte classificação: a) direitos sociais relativos ao trabalhador; b)

direitos sociais relativos à seguridade, compreendendo os direitos à saúde, à previdência e

assistência social; c) direitos sociais relativo à educação e à cultura; d) direitos sociais

relativos à moradia; e) direitos sociais relativos à família, criança, adolescente e idoso; f)

direitos sociais relativos ao meio ambiente.

28�

2.4.3 Direitos fundamentais da terceira dimensão

Conforme Sarlet (2007, p. 58), os direitos fundamentais da terceira dimensão são

ligados ao princípio da solidariedade (expressão hoje utilizada preferencialmente à

"fraternidade", que foi o termo adotado pela teoria original). Dentro desta dimensão estão

incluídos os direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio

ambiente e qualidade de vida, o direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e

cultural e o direito de comunicação.

Ingo Sarlet acrescenta:

A nota distintiva destes direitos da terceira dimensão reside basicamente na sua titularidade coletiva, muitas vezes indefinida e indeterminável, o que se revela, a título de exemplo, especialmente no direito ao meio ambiente e qualidade de vida, o qual, em que pese ficar preservada sua dimensão individual, reclama novas técnicas de garantia e proteção. A atribuição da titularidade de direitos fundamentais ao próprio Estado e à Nação (direitos à autodeterminação, paz e desenvolvimento) tem suscitado sérias dúvidas no que concerne à própria qualificação de grande parte destas reivindicações como autênticos direitos fundamentais. Compreende-se, portanto, porque os direitos da terceira dimensão são denominados usualmente como direitos de solidariedade ou fraternidade, de modo especial em face de sua implicação universal ou, no mínimo, transindividual, e por exigirem esforços e responsabilidades em escala até mesmo mundial para sua efetivação. (SARLET, 2007, p. 58-59).

No texto da Constituição de 1988, podem-se identificar a presença desta dimensão

dos direitos fundamentais em vários dispostivos: art. 225 (Direito ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado); art. 219 (Direito ao desenvolvimento cultural e sócio econômico

e ao patrimônio nacional); art. 227, caput (Direitos da criança e do adolescente); art. 170, V

(Direitos dos consumidores); art. 220, caput (Direito à comunicação).

2.4.4 Direitos fundamentais da quarta dimensão

Há quem fale em uma quarta dimensão de direitos fundamentais. Tal categoria se

referiria ao direitos das gerações futuras que criariam uma obrigação para a atual geração, que

estaria vinculada a um compromisso de deixar o mundo em que vive melhor, se for possível,

ou menos pior, do que o recebeu, para as gerações futuras. Isto implica uma série de

29�

discussões que envolvem todas as três gerações de direitos, e a constituição de uma nova

ordem econômica, política, jurídica, e ética internacional.

Os seus defensores argumentam que os direitos fundamentais precisam acompanhar

a globalização que, pondo fim as fronteiras geográficas entre os países, exigem sua

universalização. O homem não pode mais ser visto “em cada Estado”, mas sim como entidade

universal.

Se não há mais fronteiras para as relações políticas, econômicas e sociais é preciso

que também não haja fronteiras para os direitos fundamentais. A tônica desta suposta nova

dimensão dos direitos fundamentais seria a universalidade.

Na verdade, ainda não há consenso na doutrina sobre a existência desta quarta

dimensão dos direitos fundamentais, conforme informa Sampaio:

Os direitos de quarta geração estão em fase de definição e ainda não despertaram consenso entre os doutrinadores. Seriam, para uns, desdobramento da terceira geração, com o destaque necessário para a vida permanente e saudável na e da Terra, compondo os direitos intergeracionais a uma vida saudável ou a um ambiente equilibrado, como se afirmou na Carta da Terra ou Declaração do Rio de 1992, repetindo-se no Manifesto de Tenerife e, incluindo-se ao lado da proteção cultural, na cláusula 9 do Documento Final do Encontro de Ministros da Cultura do Movimento dos Países Não-Alinhados, realizado em Medellín, Colômbia, entre os dias 3 e 5 de setembro de 1997. (...) Também incluiriam limites ou restrições aos avanços da ciência e especialmente da biotecnologia nos domínios da interferência com a liberdade, a igualdade e dignidade humanas. Assim, temos os direitos bioéticos ou biodireitos, referidos à manipulação genética, à biotecnologia e à bioengenharia. (...) Há pensadores, no entanto, que encartam na quarta geração os direitos de efetiva participação cidadã que alargaria as fronteiras democráticas. (SAMPAIO, 2004, p. 298).

2.5 Direitos sociais como espécie de direitos funda mentais

Os direitos sociais, conforme foi visto acima, estão inseridos na segunda dimensão

dos direitos fundamentais. A importância dos direitos sociais para a compreensão do moderno

Estado de Direito é evidente. Não obstante, ainda há doutrinadores que, calcados em uma

interpretação de cunho restritivo e literal do texto da Constituição, negam a fundamentalidade

30�

dos direitos sociais. Há quem os considerem meras normas programáticas, como, por

exemplo, Roger Stiefelmann Leal:

A inexistência, em termos práticos, de tutela judicial aos direitos sociais coloca-os em confronto com a própria idéia de direito fundamental. Afirma Loewenstein que os direitos sociais não são direitos em sentido estrito, já que não podem ser exigidos judicialmente do Estado antes de terem sido institucionalizados por uma ação estatal. Impõe-se, desta forma, o preceito inscrito no art. 75 do Código Civil de que para todo direito há uma ação correspondente que o garante. Não se está pretendendo interpretar a Constituição a partir de uma lei infra-constitucional - o que seria a priori incorreto - mas extrair a lógica intrínseca desse enunciado normativo. Ora, não há de se falar em direito se não há como assegurá-lo judicialmente, pois qualquer violação a este suposto direito não poderia ser, desde logo, sancionada ou compensada. A previsão de determinados reclamos da sociedade como direitos sociais acaba por tentar transformar metas, objetivos a serem atingidos em direitos fundamentais sem atentar para os seus elementos conceituais. Não há como qualificar objetivos como direitos, são conceitos estruturalmente incompatíveis. (LEAL, 2008, não-paginado)

A questão de se considerar ou não os direitos sociais como espécie pertencente ao

gênero direitos fundamentais tem reflexos diretos sobre o nível de proteção conferido aos

direitos sociais pela Constituição, ao menos no caso brasileiro.

De fato, o art. 60, § 4º, IV, da Constituição, refere-se apenas aos "direitos e garantias

individuais" como um dos limites materiais para a atuação do poder constituinte derivado. Ou

seja, numa interpretação literal, somente os direitos elencados no art. 5º é que fariam parte

das chamadas cláusulas pétreas.

Enfrentando esta questão, Ingo Sarlet observa:

Caso fôssemos aferrar-nos a esta exegese de cunho estritamente literal, teríamos de reconhecer que não apenas os direitos sociais (arts. 6º a 11), mas também os direitos de nacionalidade (arts. 12 e 13), bem como os direitos políticos (arts. 14 a 17) fatalmente estariam excluídos da proteção outorgada pela norma contida no art. 60, § 4º, inc. IV, de nossa Lei Fundamental. Aliás, por uma questão de coerência, até mesmo os direitos coletivos (de expressão coletiva) constantes no rol do art. 5º não seriam merecedores desta proteção. Já esta simples constatação indica que tal interpretação dificilmente poderá prevalecer. (SARLET, 2007, p. 430).

Dayse Coelho de Almeida também se posiciona desfavoravelmente a essa leitura

restritiva dos direitos fundamentais afirmando que tal interpretação traz notável prejuízo ao

cidadão por diminuir consideravelmente o seu patrimônio jurídico constitucional ao tentar

31�

enquadrar os direitos sociais como normas de cunho programático, negando-lhes a sua

fundamentalidade. E acrescenta:

O encarceramento dos direitos fundamentais sociais no conceito frágil e patético de normas programáticas não faz sentido, uma vez que os valores sociais são os pilares do Estado Democrático de Direito. E o que são as cláusulas pétreas senão o reconhecimento de que aqueles valores são de suma importância e por isto precisam ser cuidadosamente protegidos dos reveses políticos, marcados pela instabilidade e pelo jogo ou troca de interesses? (ALMEIDA, 2007, p. 119).

Encerrando a questão, Ingo Sarlet acrescenta uma reflexão de todo pertinente como

um forte argumento para incluir os direitos sociais como alcançados pela proteção das

cláusulas pétreas:

Verifica-se que todos os direitos fundamentais consagrados em nossa Constituição (mesmo os que não integram o Título II) são, na verdade e em última análise, direitos de titularidade individual, ainda que alguns seja de expressão coletiva. É o indivíduo que tem assegurado o direito de voto, assim como é o indivíduo que tem direito à saúde, assistência social, aposentadoria, etc. Até mesmo o direito a um meio ambiente saudável e equilibrado (art. 225 da CF), em que pese seu habitual enquadramento entre os direitos de terceira dimensão, pode ser reconduzido a uma dimensão individual, pois mesmo um dano ambiental que venha a atingir um grupo dificilmente quantificável e qualificável de pessoas (indivíduos) gera um direito à reparação para cada prejudicado. Ainda que não se queira compartilhar esse entendimento, não há como negar que nos encontramos diante de uma situação de cunho notoriamente excepcional, que em hipótese alguma afasta a regra geral da titularidade individual da absoluta maioria dos direitos fundamentais. Os direitos e garantias individuais referidos no art. 60, § 4º, inc. IV, da nossa Lei Fundamental incluem, portanto, os direitos sociais e os direitos de nacionalidade e cidadania (direitos políticos). (SARLET, 2007, p. 433).

E outra não poderia ser a conclusão de quem se debruça sobre a Constituição com a

visão de que se vive em um Estado Democrático de Direito. Negar o caráter de

fundamentalidade aos direitos sociais é interpretar a cidadania apenas no aspecto do

individualismo, esquecendo-se que dentre os objetivos fundamentais da Republica Federativa

do Brasil está "construir uma sociedade livre, justa e solidária" (Art. 3º, inc. I, CF).

32�

3 A teoria dos princípios - Dworkin e Alexy

No presente trabalho, aborda-se um princípio constitucional: o princípio da

proibição de retrocesso social. Assim, é importante compreender os contornos desta categoria

jurídica.

Conforme assinala Eros Grau (2004, p. 140), "a existência, no ordenamento jurídico,

de determinados princípios que, embora não enunciados em nenhum texto de direito positivo,

desempenham papel de importância definitiva no processo de interpretação/aplicação do

direito, é inquestionável". Daí a importância de se fazer uma breve incursão pela teoria dos

princípios, a fim de que se compreenda qual o alcance e as características de um princípio

jurídico.

Por outro lado, nas palavras de Letícia Amorim (2005, p. 124), "a distinção entre

regras e princípios constitui a base da justificação jusfundamental e é um ponto importante

para a solução de problemas centrais da dogmática dos direitos fundamentais".

3.1 Distinção entre regras e princípios

Na metodologia jurídica tradicional havia uma distinção entre normas e princípios.

Estes não eram considerados norma jurídica, mas apenas elementos informadores do

ordenamento. Modernamente já está pacificado o entendimento de que o princípio jurídico é

uma espécie de norma jurídica. A outra espécie que integra o gênero é a regra. Portanto, a

distinção que deve ser abordada é a que existe entre regras e princípios.

Canotilho (2003, p. 1160) sugere alguns critérios para diferenciar as duas categorias

(regras e princípios) que compõem o gênero norma jurídica.

33�

O primeiro critério seria o grau de abstração. Os princípios são dotados de elevado

grau de abstração, enquanto as regras são dotadas de um grau de abstração bem menor.

Outro critério apresentado pelo constitucionalista português é o grau de

determinabilidade na aplicação do caso concreto. Os princípios, por serem vagos e

indeterminados, necessitam de intermediação concretizadora. As regras, por outro lado,

podem ser diretamente aplicadas.

Os princípios, ainda segundo Canotilho, são normas de natureza estruturante que

desempenham papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica

no sistema das fontes de direito ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico.

As características apontadas por Canotilho para diferenciar regras e princípios e

colocá-los como integrantes do gênero norma jurídica são retiradas dos trabalhos de Ronald

Dworkin e Robert Alexy.

Para Dworkin, há um diferença lógica entre princípios e regras:

A diferença ente princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e, neste caso em nada contribui para a decisão. (DWORKIN, 2002, p. 39).

Já as colisões de princípios são solucionadas de maneira completamente distinta:

Quando dois princípios estão em colisão, um dos dois princípios tem que ceder ante o outro. Mas isso não significa declarar inválido o princípio desprezado nem que o princípio desprezado haja que ser introduzido como cláusula de exceção. O que vai determinar qual o princípio que deve ceder serão as circunstâncias. Isso quer dizer que, nos casos concretos, os princípios têm diferentes pesos e que prevalece o princípio com maior peso. (AMORIM, 2005, p. 127).

Assim, enquanto o conflito entre regras é resolvido no aspecto da validade, a colisão

de princípios resolve-se na dimensão dos pesos atribuídos a cada um no caso concreto. Ou

seja, na aplicação dos princípios, utiliza-se a ponderação.

34�

Na tentativa de sistematizar os critérios distintivos apontados pela doutrina para

diferenciar regras e princípios, Felipe Derbi (2007) aponta alguns elementos:

a) os princípios se aproximam mais da idéia de direito e se constituem em exigência

de justiça, eqüidade ou moralidade. Já o conteúdo das regras é mais variado e, em muitos

casos, indiferente à noção de moralidade;

b) os princípios extraem a sua validade do seu próprio conteúdo, enquanto as regras

buscam a validade em outras regras ou princípios;

c) em maior ou menor medida, os princípios são tidos como objetivos e

permanentes, enquanto as regras apresentam contingência e relatividade de conteúdos no

tempo e no espaço;

d) a função do princípios é explicar e justificar as regras, mantendo a unidade e

ordenação do Direito;

e) princípios e regras possuem estruturas lingüísticas diferentes. Os primeiros são

mais abstratos e aplicam-se a um número indeterminado de situações. Já as hipóteses de

aplicação das regras são identificáveis;

f) os princípios exigem maior atividade argumentativa para que encontre o seu real

sentido, que servirá de norte para a solução do caso concreto. As regras, em geral, exigem

atividade meramente subsuntiva.

Felipe Derbi arremata a sua exposição citando a lição de Luís Roberto Barroso sobre

o modo de aplicação das regras e princípios, numa síntese da posição doutrinária majoritária

acerca do tema:

Regras são proposições normativas aplicáveis sob a forma de tudo ou nada ('all or nothing'). Se os fatos nela previstos ocorrerem, a regra deve incidir, de modo direto e automático, produzindo seus efeitos. Por exemplo, a cláusula constitucional que estabelece a aposentadoria compulsória por idade é uma regra. Quando o servidor completa setenta anos, deve passar

35�

à inatividade, sem que a aplicação do preceito comporte maior especulação. O mesmo se passa com a norma constitucional que prevê que a criação de uma autarquia depende de lei específica. O comando é objetivo e não dá margem a elaborações mais sofisticadas acerca de sua incidência. Uma regra somente deixará de incidir sobre a hipótese de fato que contempla se for inválida, se houver outra mais específica ou se não estiver em vigor. Sua aplicação se dá, predominantemente, mediante subsunção. . Ocorre que, em uma ordem pluralista, existem outros princípios que abrigam decisões, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos. A colisão de princípios, portanto, não só é possível, com faz parte da lógica do sistema, que é dialético. Por isso, a sua incidência não pode ser posta em termos de tudo ou nada, de validade ou invalidade. Deve-se reconhecer aos princípios uma dimensão de peso ou importância. À vista dos elementos do caso concreto, o intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, quando se defronte com antagonismos inevitáveis, como os que existem entre liberdade de expressão e o direito de privacidade, a livre iniciativa e a intervenção estatal, o direito de propriedade e a sua função social. A aplicação dos princípios se dá, predominantemente , mediante ponderação. (BARROSO apud DERBLI, 2007, p. 108-109) (grifos acrescentados).

Robert Alexy, desenvolvendo idéia que ja estava presente em Dworkin, afirma:

El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los principios son normas que ordenan que se realice algo en la mayor medida posible, en relación con las posibilidades jurídicas y fácticas. Los principios son, por consiguiente, mandatos de optimización que se caracterizan porque pueden ser cumplidos en diversos grados y porque la medida ordenada de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades fácticas, sino también de las posibilidades jurídicas. El campo de las posibilidades jurídicas está determinado a través de principios y reglas que juegan en sentido contrario. En cambio, las reglas son normas que exigen un cumplimiento pleno y, en esa medida, pueden siempre ser sólo o cumplidas o incumplidas. Si una regla es válida, entonces es obligatorio hacer precisamente lo que ordena, ni más ni menos. Las reglas contienen por ello determinaciones en el campo de lo posible fáctica y jurídicamente. Lo importante por ello no es si la manera de actuar a que se refiere la regla puede o no ser realizada en distintos grados. Hay por tanto distintos grados de cumplimiento. Si se exige la mayor medida posible de cumplimiento en relación con las posibilidades jurídicas y fácticas, se trata de un principio. Si sólo se exige una determinada medida de cumplimiento, se trata de una regla. (ALEXY, 1988, p. 143-144).

A despeito dessas distinções, algumas vezes a fronteira entre regras e princípios

pode parecer demasiadamente tênue. Dworkin ressalta esse fato:

Às vezes, regras e princípios podem desempenhar papéis bastante semelhantes e a diferença entre eles reduz-se quase a uma questão de forma.

36�

Palavras como "razoável", "negligente", "injusto" e "significativo" desempenham freqüentemente essa função. Quando uma regra inclui um desses termos, isso faz com que sua aplicação dependa, até certo ponto, de princípios e políticas que extrapolam a própria regra. A utilização desses termos faz com que a regra se assemelhe a um princípio. Mas não chega a transformar a regra em princípio, pois até mesmo o menos restritivo desses termos restringe o tipo de princípios e políticas dos quais pode depender a regra. (DWORKIN, 2002, p. 45).

Não obstante as evidentes semelhanças entre as visões de Dworkin e Alexy sobre a

teoria dos princípios, há diferenças de conteúdo entre ambas. O próprio Alexy, em entrevista

concedida a Manuel Atienza, assinala:

No es fácil una comparación entre la teoría del Derecho de Dworkin y la mía. Ciertamente, hay muchas cosas comunes, pero el armazón conceptual de ambas teorías es bien distinto. Quizás pudiera decirse incluso que ambas teorías son relativamente semejantes en lo substancial, pero bastante distintas en lo formal. De todas formas, también hay diferencias sustanciales. Así, aunque el concepto de principio jurídico juega su papel en ambas teorías, el manejo que se hace del mismo varía. En mi concepción, los principios tienen el carácter de mandatos de optimización. Además, los bienes colectivos pueden también ser objeto de regulación de los principios. Eso lleva a que en la contestación a la pregunta de si se ha lesionado un derecho fundamental juegue un papel central el principio de proporcionalidad y, con ello, la ponderación. Las cosas son distintas en la visión de Dworkin de los derechos como triunfos («trumps»). También hay diferencias en la determinación de las relaciones entre libertad e igualdad. Yo considero la libertad y la igualdad como principios del mismo rango que pueden entrar en colisión. Pero eso queda excluido en la visión de Dworkin de la igualdad («equal concern») como la virtud suprema («sovereign virtue») de la comunidad política. Para mí, el concepto que expresa la armonía a la que se aspira no es el de igualdad, sino el de corrección. Tanto la libertad como la igualdad están subordinados a esta idea regulativa. (ATIENZA, 2001, p. 674).

Uma boa distinção entre regras e princípios e apontada pelo Prof. Inocêncio Mártires

Coelho ao afirmar que, "diferentemente das regras de direito, os princípios jurídicos não se

apresentam como imperativos categóricos nem ordenações de vigência diretamente emanadas

do legislador, antes apenas enunciam motivos para que o aplicador se decida neste ou naquele

sentido" (COELHO, 2003, p. 98).

3.2 Princípios - algumas classificações doutrinária s

37�

3.2.1 Canotilho

Segundo Canotilho, os princípios jurídicos apresentam a seguinte tipologia:

princípios jurídicos fundamentais, princípios políticos constitucionalmente conformadores,

princípios constitucionais impositivos e princípios-garantia.

São considerados fundamentais "os princípios historicamente objectivados e

progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma recepção

expressa ou implícita no texto constitucional" (CANOTILHO, 2003, p. 1165).

Designam-se como princípios politicamente conformadores os princípios

constitucionais que explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte.

São nessa espécie de princípios que se concentram as opções políticas nucleares e o viés

ideológico inspiradores da Constituição.

Já nos princípios constitucionais impositivos, ainda segundo o mestre lusitano,

"subsumem-se todos os princípios que impõem aos órgãos do Estado, sobretudo ao legislador,

a realização de fins e a execução de tarefas" (CANOTILHO, 2003, p. 1166).

Os princípios-garantia objetivam instituir direta ou indiretamente uma garantia aos

cidadãos, como, por exemplo, o princípio de nullum crimen sine lege e de nulla poena sine

lege, consubstanciado no art. 5º, XXXIX, da Constituição Brasileira.

3.2.2 Jean-Louis Bergel

Para Bergel (apud TAVARES, 2003) há duas grandes categorias de princípios no

Direito: a) princípios vinculados à filosofia política e princípios limitados a enunciar regras de

técnica jurídica.

Para o autor, a primeira categoria se refere aos princípios de tradição liberal

(princípios da igualdade e liberdades individuais e coletivas), à lógica das instituições e da

vida social e aos direitos sociais fundamentais.

38�

Já os princípios de técnica jurídica seriam os que regem a ação administrativa e a

atividade das jurisdições. Tal distinção pode ser transporta para o direito positivo: os

princípios da autonomia da vontade, da indisponibilidade do Estado ou ainda da propriedade

individual seriam princípios de filosofia política, enquanto que o princípio da derrogação dos

textos gerais e do contraditório pelos textos especiais seriam apenas princípios de técnica

jurídica. (TAVARES, 2003, p. 41).

3.2.3 Jorge Miranda

Segundo Jorge Miranda, uma das características dos princípios constitucionais é a

sua natureza, que pode ser diversa da de outros princípios igualmente constitucionais. Assim,

os princípios constitucionais seriam classificáveis em "princípios constitucionais substantivos

- princípios válidos em si mesmos e que espelham valores básicos a que adere a Constituição

material; e, de outra parte, princípios constitucionais adjectivos ou instrumentais - princípios

sobretudo de alcance técnico, complementares dos primeiros e que se enquadram as

disposições articuladas no seu conjunto "(MIRANDA apud TAVARES, 2003, p. 42-43).

O autor ainda admite uma subdivisão nos princípios substantivos, que seriam

bipartidos em princípios axiológicos fundamentais e princípios político-constitucionais. Os

primeiros fariam referência aos limites transcendentes do poder constituinte, "ponte de

passagem do direito natural para o direito positivo". Exemplos: proibição de discriminação, a

inviolabilidade da vida humana, a integridade física e moral das pessoas etc.

Os princípios políticos-constitucionais, por sua vez, correspondem aos limites

imanentes do poder constituinte, aos limites específicos da revisão constitucional, refletindo

as marcas e direções caracterizadoras de cada Constituição. Exemplos: o princípio

democrático, o princípio representativo, o princípio republicano, o princípio da separação dos

poderes.

39�

4 O conceito de retrocesso social - doutrina e jurisprudência.

Após as exposições sobre os direitos fundamentais e a posição dos direitos sociais

como dotados de jusfundamentalidade, além da breve dissertação sobre a teoria dos

princípios, assuntos diretamente ligados ao tema da presente monografia, é hora de se retomar

o tema propriamente dito, o princípio da proibição de retrocesso social, que já foi apresentado

de forma introdutória no capítulo inicial deste trabalho ao se fazer referência a Canotilho e à

teoria da constituição dirigente.

Inicialmente, faz-se relevante uma visão, ao menos sintética, do estado da discussão

do princípio da proibição de retrocesso social no direito comparado, uma vez que o tema no

direito pátrio, como será visto logo depois, ainda é incipiente.

Alemanha e Portugal foram os Estados escolhidos devido às semelhanças que os

respectivos ordenamentos jurídicos guardam com o brasileiro, além da facilidade de acesso de

bibliografia sobre os dois países.

Antes de iniciar, parece pertinente a advertência de Felipe Derbli sobre o estudo do

direito comparado:

Deve-se recordar a lição, de há muito presente na doutrina, a respeito do risco que se poderia correr com a importação acrítica de fórmulas elaboradas noutros sistemas jurídicos. Por óbvio, muito há que se aprender com o Direito Comparado, especialmente quando, como no caso vertente, se pretende realizar estudo sistemático de tema que já foi desenvolvido em outros países. (DERBLI, 2007, p. 135).

4.1 No direito comparado

4.1.1 Alemanha

Em artigo que trata da proibição de retrocesso, o Prof. Ingo Sarlet ressalta a

importância do estudo do sistema alemão:

40�

O estudo do modelo germânico, no âmbito do direito comparado, assume particular interesse por várias razões, destacando-se o fato de que a Alemanha foi não apenas o berço do socialismo científico de Karl Marx e Friedrich Engels, mas também da social-democracia (com Lassale), bem como da própria noção de um Estado social e democrático de Direito, bastando aqui a referência à Constituição de Weimar (1919), vertente do constitucionalismo social deste século. (SARLET, 2001, p. 3).

Segundo Felipe Derbli, "o tratamento da proibição de retrocesso social na

experiência alemã inicia-se ainda sob o pálio da discussão a respeito da eficácia dos direitos

fundamentais sociais, particularmente os de cunho prestacional, e da sua plena sindicabilidade

em juízo" (DERBLI, 2007, p. 137).

Para Ernest-Wolfgang Böckenförde, há necessidade de que os direitos sociais sejam

protegidos contra os ataques do Estado. Para o autor, apesar de positivados na Constituição,

os direitos sociais não geram direitos subjetivos imediatos para os cidadãos antes da atuação

do legislador na sua conformação (DERBLI, 2007). No entanto, Böckenförde admite que os

direitos fundamentais sociais tenham eficácia imediata sobre a atividade legislativa e

administrativa, de tal forma que estendam sua proteção para as situações jurídicas criadas por

ação do legislador ou pela prática administrativa reiterada, vedando a sua supressão.

Um das mais claras manifestações acerca da existência de uma vedação ao

retrocesso social por parte do autor alemão é citada por Derbli. Após assinalar que os direitos

fundamentais sociais devem ser compreendidos com mandados constitucionais, ou seja,

deveres jurídico-objetivos que possuem como destinatários o legislador e o administrador, a

quem incumbe atuar para a consecução do fim ou programa consagrado no mandado,

Böckenförde afirma:

(...) as regulações e as medidas tendentes à consecução do fim, uma vez estabelecidas, se mantêm constitucionalmente, de maneira que a via da realização do mandado nelas descrita está protegida diante de uma supressão definitiva ou de uma redução que ultrapasse os limites, chegando a uma desatenção grosseira. ( BÖCKENFÖRDE apud DERBLI, 2007, p. 139).

Tratando da ocorrência do tema na Alemanha, Felipe Derbli acrescenta:

De forma geral, o tema do princípio da proibição do retrocesso social na Alemanha esteve mais associado à crise do Estado-Providência, em

41�

especial no que concerne à proteção das posições jurídicas dos cidadãos em face da tensão entre a decrescente capacidade prestacional do Estado e da sociedade e o aumento da demanda por prestações sociais. (DERBLI, 2007, p. 140).

Diante de tal quadro, é de se compreender que fossem desenvolvidos mecanismos

jurídicos de proteção dos direitos sociais já conquistados, mormente quando se constata,

segundo informa Sarlet (2001), que a Lei Fundamental da Alemanha não contém qualquer

preceito que direta e expressamente ofereça qualquer tipo de proteção ao nível constitucional

do sistema de segurança social e dos níveis prestacionais vigentes.

Mesmo gerando controvérsias, o Tribunal Federal Constitucional da Alemanha

(Bundesverfassungsgericht) acabou por reconhecer em diversas decisões que a garantia da

propriedade alcança também a proteção de posições jurídico-subjetivas de natureza pública,

havendo atualmente um relativo grau de consenso nesta direção (SARLET, 2001). Assim, o

Bundesverfassungsgericht tem entendido que ao titular do direito social é atribuída uma

posição jurídica equivalente à da propriedade privada e que, no caso de uma supressão sem

qualquer compensação, ocorreria uma colisão frontal com o princípio do Estado de Direito,

tal como plasmado na Lei Fundamental.

Ao comentar tal posicionamento da jurisprudência alemã, Felipe Derbli afirma:

O Bundersverfassungsgericht estendeu aos direitos patrimoniais em face do Estado a vinculação entre o direito de propriedade privada e a liberdade individual, na medida em que a liberdade na esfera patrimonial é sucedânea da autonomia de cada um para conduzir sua existência. Para que a proibição de retrocesso social alcance um determinado direito subjetivo público prestacional, não se exige equivalência entre a prestação estatal e tal contraprestação do indivíduo, mas ela tem que ser (ou haver sido) ao menos relevante. (DERBLI, 2007, p. 142/143).

Do que foi exposto, percebe-se que, ao menos na Alemanha, a aplicação do

princípio da proibição de retrocesso social tem íntima conexão com o princípio da segurança

jurídica.

42�

4.1.2 Portugal

Em terras portuguesas, a concepção do princípio da proibição de retrocesso social

adquiriu conotação diversa. Diferentemente do caso alemão, a sindicabilidade jurídica dos

direitos econômicos, sociais e culturais pode ser extraída diretamente da Constituição

Portuguesa. Tais direitos apresentam uma dimensão subjetiva decorrente não apenas de sua

consagração como verdadeiros direitos fundamentais, como também advinda da concretização

subjetiva pela legislação infraconstitucional. Nesse sentido, J. J. Canotilho, conforme já

registrado no capítulo inicial, assim apresentou o princípio da proibição de retrocesso social:

O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas (...) deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa "anulação", "revogação" ou "aniquilação" pura e simples desse núcleo essencial. (CANOTILHO, 2003, p. 340).

Jorge Pereira da Silva faz interessante observação sobre o surgimento, em Portugal,

do princípio da proibição de retrocesso social:

O princípio da proibição do retrocesso social surge ligado, de forma muito marcante, a uma determinada concepção de direitos sociais e, mais concretamente, aos direitos sociais como elemento do princípio socialista presente na versão originária da Constituição de 1976. Recorde-se, por exemplo, que o artigo 50º da Constituição dizia, no seu texto inicial, que "a apropriação colectiva dos principais meios de produção, a planificação do desenvolvimento económico e a democratização das instituições são garantias e condições para a efectivação dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais". E, em comentário a este preceito, afirmava-se que a realização dos direitos em causa "supõe, assim, directamente, uma ruptura com a ordem capitalista e com a estrutura oligárquica da sociedade e do Estado". Por conseguinte, o princípio da proibição do retrocesso social - tal como o princípio da irreversibilidade das nacionalizações, em relação à apropriação colectiva dos meios de produção - apresentava-se como uma garantia dos direitos sociais enquanto instrumentos para alcançar progressivamente o socialismo. No fundo, estava em causa uma concepção de direitos sociais (e do Estado social) como "cavalo de Tróia" do socialismo. (PEREIRA DA SILVA, 2003, p. 248-249).

É claro que hoje essa carga ideológica foi quase que totalmente extirpada da idéia de

proibição de retrocesso social, até mesmo porque as diversas revisões realizadas no texto da

43�

Constituição portuguesa lhe retiraram o caráter de instrumento para implantação do

socialismo.

Jorge Miranda, outro eminente constitucionalista português, mesmo sem nominar o

princípio da proibição do retrocesso social, faz referência ao tema ao sustentar que as normas

constitucionais não exequíveis e programáticas, "uma vez concretizadas através de normas

legais, não podem ser, pura e simplesmente revogadas, retornando-se à situação anterior (...);

o legislador tem, certamente, a faculdade (...) de modificar qualquer regime jurídico, o que

não tem é a faculdade de subtrair supervenientemente a uma norma constitucional a

exequibilidade que esta tenha, entretanto, adquirido". (MIRANDA apud PEREIRA DA

SILVA, 2003, p. 252).

Assim como a doutrina, a jurisprudência portuguesa tem acolhido o princípio da

proibição do retrocesso social. O Tribunal Constitucional Português proferiu o Acórdão nº

39/84, de 11 de abril de 1984, verdadeiro leading case do tema em questão. No julgado,

alegava-se a inconstitucionalidade da revogação de um diploma legal, que, caso efetivada,

significaria a extinção do Sistema Nacional de Saúde, previsto na Constituição da República

Portuguesa. Eis alguns trechos do voto do Relator da matéria, Conselheiro Vital Moreira, que

acabou prevalecendo:

A Constituição não se bastou com estabelecer o direito à saúde. Avançou no sentido de anunciar um conjunto de tarefas estaduais destinadas a realizá-lo. À frente delas a lei fundamental colocou a "criação de um serviço nacional de saúde" (artigo 64º, nº 2). A criação de um serviço nacional de saúde é pois instrumento - o primeiro - de realização do direito à saúde. Constitui por isso elemento integrante de um direito fundamental dos cidadãos, e uma obrigação do Estado. Ao extinguir o Serviço Nacional de Saúde, o Governo coloca o Estado, de novo, na situação de incumprimento da tarefa constitucional que lhe é cometida pelo artigo 64º, nº 2 da Constituição. Que o Estado não dê a devida realização às tarefas constitucionais, concretas e determinadas, que lhe estão cometidas, isso só poderá ser objecto de censura constitucional em sede de inconstitucionalidade por omissão. Mas quando desfaz o que já havia sido realizado para cumprir essa tarefa e com isso atinge uma garantia de um direito fundamental, então a censura constitucional já se coloca no plano da própria inconstitucionalidade por acção. Se a Constituição impõe ao Estado a realização de uma determinada tarefa - a criação de uma instituição, uma alteração na ordem jurídica -, então, quando ela seja levada a cabo, o resultado passa a ter a protecção, direta da Constituição. O Estado não pode voltar atrás, não pode descumprir o que cumpriu, não pode tornar a colocar-se na posição de devedor.

44�

É que aí a tarefa constitucional a que o Estado se acha obrigado é uma garantia do direito fundamental, constitui ela mesma objecto de um direito dos cidadãos (...). As tarefas constitucionais impostas ao Estado em sede de direitos fundamentais no sentido de criar certas instituições ou serviços não o obrigam apenas a criá-los, obrigam-no também a não aboli-los uma vez criados. (apud DEBLI, 2007, p. 149/150).

Ao tratar da amplitude do princípio da proibição do retrocesso social, Pereira da

Silva (2003, p. 284) afirma que "o princípio de recriar uma omissão legislativa é mais restrito

que o princípio da proibição do retrocesso social, uma vez que não pode ter pretensões a

impedir a eliminação dos direitos sociais de natureza análoga constantes apenas na lei, como

sucede, por exemplo, com rendimento mínimo garantido". Na realidade, continua o autor

português, "considerando que este direito não foi primariamente instituído pelo legislador no

cumprimento de um dever específico de actuação, sendo antes o resultado de um opção

política claramente assumida (e contestada), a sua pura e simples supressão não redundaria

numa situação de omissão legislativa inconstitucional. Em princípio, aquilo que o legislador

dá livremente, livremente pode tirar".

4.2 No direito pátrio

Na doutrina nacional, o princípio da proibição do retrocesso social ainda é um tema

escassamente explorado e as manifestações existentes são todas muito recentes.

A referência mais remota ao tema é feita por José Afonso da Silva, ainda que de

forma indireta e sem nominar o princípio, na sua conhecida obra sobre a Aplicabilidade das

Normas Constitucionais. Felipe Derbli assim registra o pioneirismo do grande jurista de São

Paulo:

José Afonso da Silva admite, ainda que indiretamente, a proibição constitucional de retrocesso social: tratando das normas constitucionais programáticas (que, segundo o autor, compõem-se em grande parte de normas definidoras de direitos sociais), cita Balladore Pallieri para sustentar que as imposições constitucionais delas advindas dão ao legislador, se não o caminho a seguir, a indicação de qual caminho não seguir, de modo a que seja inconstitucional a lei que percorrer o caminho vedado pela Constituição e, o que ora nos interessa, a lei que voltar atrás depois na execução da norma constitucional. Para José Afonso da Silva, pois, a lei

45�

nova não pode desfazer o grau de efeitos da norma constitucional já alcançado através de lei anterior. (DERBLI, 2007, p. 168)

Não se pode negar que a vedação de "desfazer o grau de efeitos da norma

constitucional já alcançado através de lei anterior" é o próprio princípio da proibição de

retrocesso aplicado às normas programáticas.

Luís Roberto Barroso também se refere à vedação do retrocesso como "uma idéia

que começa a ganhar curso na doutrina constitucional brasileira" (BARROSO, 2006, p. 152).

Para ele, trata-se de um princípio implícito decorrente do sistema jurídico-constitucional, e

estabelece que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir

determinado direito, este passa a se incorporar ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode

ser arbitrariamente suprimido.

Em artigo recentemente publicado, Túlio Augusto Tayano Afonso, professor do

Instituto Mackenzie, afirma que o princípio do não retrocesso social "caracteriza-se pela

idéia de que os ganhos sociais e econômicos, após serem realizados, jamais poderão ser

ceifados ou anulados, passando a ser uma garantia constitucional" (AFONSO, 2006, p. 243).

O autor considera que o princípio em análise é "um importante instrumento para a

manutenção rígida" das conquistas sociais.

Nesse mesmo sentido, em outro trabalho também publicado recentemente, Dayse

Almeida afirma:

O direito à proibição de retrocesso social consiste em importante conquista civilizatória. O conteúdo impeditivo deste princípio torna possível brecar planos políticos que enfraqueçam os direitos fundamentais. Funciona até mesmo como forma de mensuração para o controle de inconstitucionalidade em abstrato, favorecendo e fortalecendo o arcabouço de assistência social do Estado e as organizações envolvidas no processo. (...) Em um país tão marcado pela desigualdade social como o Brasil, os impactos do processo de globalização econômica e as matizes neoliberais políticas fazem brotar no constitucionalismo contemporâneo a necessidade de elaborar formas de proteger os direitos sociais, em especial os trabalhistas, garantindo o mínimo necessário à dignidade da vida. (ALMEIDA, 2007, p. 122).

É provável que o autor brasileiro que mais tenha escrito sobre o princípio da

proibição de retrocesso social seja Ingo Wolfgang Sarlet, já bastante citado neste trabalho.

46�

Tendo obtido o grau de doutor pela Universidade de Munique, em sua obra apresenta com

detalhes a experiência alemã sobre o princípio da proibição de retrocesso social. Além disso,

traça uma comparação entre as experiências alemã e brasileira, destacando as semelhanças e

diferenças entre ambas no que tange à possibilidade de se sustentar a existência de um

princípio da proibição de retrocesso social. Nesse sentido, assinala Sarlet que se há de

verificar, no ordenamento constitucional pátrio, a existência de uma vedação ao menos

relativa do retrocesso, que garanta a preservação dos direitos sociais em seu núcleo essencial.

(cf. DERBLI, 2007, p. 175-176).

Para Ingo Sarlet, o alcance de tal proteção somente se verificará de acordo com as

especificidades do caso concreto, mediante a ponderação dos bens e interesses jurídicos

envolvidos, observada, para tanto, a proporcionalidade. Mas rechaça qualquer pretensão de se

conferir caráter absoluto ao princípio da proibição de retrocesso social, argumentando que se,

por um lado, não se pode outorgar ao legislador o poder de dispor livremente sobre os direitos

fundamentais sociais – vez que estão, por óbvio, subordinados à supremacia das normas

constitucionais – , há que se reconhecer, por outro lado, que o Poder Legislativo não é mero

órgão executor das decisões constitucionais, sendo necessário preservar-lhe autonomia no

exercício da função legiferante

A concepção de Ingo Sarlet sobre o princípio da proibição de retrocesso é ampla,

não se restringindo apenas aos direitos sociais, conforme consta do texto a seguir:

Vale revelar aqui, portanto, que não estamos diante de um fenômeno que se manifesta apenas na seara dos direitos fundamentais sociais (...). As diversas possibilidades que envolvem uma noção abrangente de proibição de retrocesso encontram na seara do direito ambiental uma importante e peculiar manifestação, de tal sorte que se poderá falar aqui - como acentua Carlos Alberto Molinaro - em um princípio de vedação da retrogradação, já que o direito ambiental cuida justamente da proteção e promoção dos bens ambientais, especialmente no sentido de impedir a degradação do meio ambiente, o que corresponde, por sua vez, a uma perspectiva evolucionista (e não involucionista) da vida. (SARLET, 2007, p. 447).

Como argumentos em prol do reconhecimento de um princípio implícito da

proibição de retrocesso na ordem constitucional brasileira, Ingo Sarlet cita que tal garantia é

decorrente dos seguintes princípios (SARLET, 2007, p. 457-458):

47�

a) princípio do Estado democrático e social de Direito, que impõe um patamar

mínimo de segurança jurídica, o qual necessariamente abrange a proteção da confiança e a

manutenção de um nível mínimo de continuidade da ordem jurídica, além de uma segurança

contra medidas retroativas e, pelo menos em certa medida, atos de cunho retrocessivo de um

modo geral;

b) princípio da maxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos

fundamentais, contigo no art. 5º, § 1º, e que necessariamente abrange também a maximização

da proteção dos direitos fundamentais;

c) princípio da dignidade da pessoa humana que, exigindo a satisfação - por meio de

prestações positivas (e, portanto, de direitos fundamentais sociais) - de uma existência

condigna para todos, tem como efeito, na sua perspectiva negativa, a inviabilidade de medidas

que fiquem aquém deste patamar;

d) as manifestações específicas e expressamente previstas na Constituição, no que

diz respeito à proteção contra medidas de cunho retroativo (na qual se enquadra a proteção

dos direitos adquiridos, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito) não dando conta do

universo de situações que integram a noção mais ampla de segurança jurídica;

e) princípio da proteção da confiança, na condição de elemento nuclear do Estado de

Direito, que impõe ao poder público o respeito pela confiança depositada pelos indivíduos em

relação a uma certa estabilidade e continuidade da ordem jurídica com um todo e das relações

jurídicas especificamente consideradas.

A idéia de proibição de retrocesso também é expressa com clareza em trabalho

publicado por Amílcar Fagundes Freitas Macedo:

A proibição de retrocesso social visa a impedir que sejam frustrados os direitos sociais já concretizados, tanto na ordem constitucional como na infraconstitucional, em atenção aos objetivos da República Federativa do Brasil, que é o de promover o bem de todos, sem quaisquer formas de discriminação, constituindo uma sociedade livre, justa, solidária, erradicando a pobreza e marginalização, reduzindo as desigualdades sociais, o que se dá através da implementação e efetivação do Estado Social de Direito. (MACEDO, 2004, p. 32).

48�

Merece destaque texto recentemente publicado por Felipe Derbli sob o título O

Princípio da Proibição de Retrocesso Social na Constituição de 1988, bastante utilizado

como fonte de pesquisa nesta monografia. O trabalho é resultado de dissertação de mestrado

apresentada e defendida com sucesso pelo autor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro

e teve como orientador o Prof. Luís Roberto Barroso.

Já na introdução, o autor demonstra as linhas gerais da sua concepção de princípio da

proibição de retrocesso social:

A Constituição de 1988 exige um movimento sempre contínuo em direção à maximização desses direitos [os direitos sociais], em busca da justiça social preconizada em seu texto como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. (...) Não basta que o legislador tenha competência para minudenciar o conteúdo das normas constitucionais que definem direitos sociais se, posteriormente, puder eliminar, pura e simplesmente, a regulamentação efetuada, recriando uma indesejável situação de vácuo normativo. Há que se reconhecer a existência de um comando constitucional que impeça a supressão de direitos tão arduamente conquistados ao longo da História do país. Por oportuno, recorde-se que a Constituição condenou a omissão do legislador quando previu a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º) e o mandado de injunção (art. 5º, incisio LXXI). Ora, se a inércia do legislador, por si, já mereceu a reprovação do Poder Constituinte originário, muito mais censurável será a sua atuação comissiva em sentido contrário ao desiderato constitucional, mormente em matéria tão sensível. Vale dizer, muito embora a Constituição não fixe (como, de fato, não poderia fixar) todos os detalhes para que o legislador atue na concretização dos direitos sociais, não poderia admitir que se retrocedesse na sua garantia. (DERBLI, 2007, p. 3-5).

O autor traça com segurança os contornos do seu entendimento sobre a proibição de

retrocesso:

Constitui o núcleo essencial do princípio da proibição de retrocesso social a vedação ao legislador de suprimir, pura e simplesmente, a concretização de norma constitucional que trate do núcleo essencial de um direito fundamental social, impedindo a sua fruição, sem que sejam criados mecanismos equivalentes ou compensatórios. É defeso o estabelecimento (ou restabelecimento, conforme o caso) de um vácuo normativo em sede legislativa. (DERBLI, 2007, p. 298).

A jurisprudência brasileira ainda não concedeu ao princípio da proibição de

retrocesso social a devida importância. Embora já suscitado junto ao Supremo Tribunal

49�

Federal, o tema figurou pela primeira vez em voto vencido. Foi no julgamento da ADI nº

2.065-DF, que teve como relator original o Ministro Sepúlveda Pertence.

50�

5 Considerações finais

Neste momento, apresentados os contornos do princípio da proibição de retrocesso

social, antes de se desenvolver as conclusões, pode-se perguntar se a vedação de retroceder no

arcabouço legislativo de determinado direito não seria uma ofensa à liberdade do legislador.

O problema deve ser resolvido tendo em mente o grau de discricionariedade de que

goza o Poder Legislativo para cumprir a sua função precípua.

Ora, é evidente que a liberdade do legislador não é absoluta: ele está vinculado aos

ditames constitucionais, seja nos aspectos procedimentais, seja no âmbito material. Ao

legislador compete cumprir a Constituição, o que o torna vinculado aos princípios

constitucionais.

Dito isso, e tendo em vista os aspectos estudados, podem-se elencar algumas

conclusões:

a) a Constituição Brasileira apresenta características de uma constituição dirigente

pois, dentre os seus preceitos, enuncia diretrizes, fins e programas a serem realizados pelo

Estado e pela sociedade, incluindo nesta vinculação, por óbvio, o legislador;

b) a idéia de proibição de retrocesso social está intimamente ligada ao conceito de

constituição dirigente e à concretização dos direitos fundamentais, notadamente os de cunho

social;

c) a jusfundamentalidade dos direitos sociais é inegável, tanto pela sua topologia na

Constituição, quanto pelos objetivos da República Federativa do Brasil, de construir uma

sociedade livre, justa e solidária;

d) os direitos sociais são integrantes da segunda dimensão (ou geração) dos direitos

fundamentais, que têm com fundamento a igualdade;

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e) o princípio da proibição de retrocesso social é um princípio constitucional que

impõe um limite à discricionariedade material de que goza o legislador, objetivando proteger

a concretização dos direitos sociais;

f) o princípio da proibição de retrocesso social é um claro limite à atuação do

legislador, uma vez que impede que as conquistas sociais, obtidas em cumprimento aos

mandamentos constitucionais, sejam arbitrariamente alvo de legislações corrosivas,

produzidas sob o patrocínio de maiorias ocasionais, que diminuem o grau de concretização

dos direitos fundamentais já obtido;

g) a Constituição, assim como todo o Ordenamento Jurídico, é composta por normas

jurídicas de duas espécies: regras e princípios;

h) o princípio da proibição de retrocesso social pode ser considerado um princípio

implicíto na Constituição de 1988, decorrente de vários outros princípios, tais como o da

dignidade da pessoa humana, da segurança jurídica, da vinculação do legislador aos direitos

fundamentais, todos elementos essenciais do moderno conceito de Estado Democrático Social

de Direito.

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