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O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO POLICIAL MILITAR NO QUE TANGE A ABORDAGEM AO USUÁRIO DE SUBSTANCIA
ENTORPECENTE APÓS A LEI 11.343/06, COSTA, Perla Alves Bento de Oliveira
Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4
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O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO POLICIAL MILITAR NO QUE
TANGE A ABORDAGEM AO USUÁRIO DE SUBSTANCIA
ENTORPECENTE APÓS A LEI 11.343/06
COSTA, Perla Alves Bento de Oliveira Pós- Graduada em Organização e Gestão em Justiça Criminal e Segurança - Universidade Federal
Fluminense - UFF
RESUMO Em um país onde a atuação da Policia Militar é diariamente noticiada, o uso de substância entorpecente
é passivo de sanção e as "praças" da instituição não são formados para atuar na administração de
conflitos. Sendo assim, a questão da formação no que diz respeito à abordagem ao usuário de entorpecente é essencial. Após a implantação da nova lei de drogas, o usuário deixa de ser penalizado
com a privação da liberdade, mas os policiais militares do estado do Rio de Janeiro, ao fazerem suas
abordagens associam o uso da substância entorpecente à possibilidade de cometerem alguma ilicitude e muitos confessam desconhecer a nova lei. O trabalho enfatiza, a partir de uma perspectiva
antropológica, o processo de formação do policial e suas atitudes nas abordagens aos usuários que são
vistos por eles, por vezes, como criminosos.
Palavras-chave: policia militar – formação – substância entorpecente - abordagem
ABSTRACT In a country where the work of the military police are reported daily, use of narcotic substance is
sanctioning passive and "squares" of the institution they are not trained to act in conflict resolution.
Thus, the issue of training with regard to the approach to numbing user is essential. After the
implementation of the new drug law, you no longer penalized with deprivation of liberty, but the military police of the state of Rio de Janeiro to make their approaches associate the use of narcotic
substance the possibility of committing any illegality and many confess unaware of the new law. The
work emphasizes, from an anthropological perspective, the process of training the police and their attitudes in approach to users who are seen by them as criminals.
Key-words: military police - training - narcotic substance - approach
INTRODUÇÃO
Este texto deriva de minha monografia do curso de especialização onde tratei a questão
da abordagem dos policiais militares aos usuários de substâncias entorpecentes. E o interesse
pelo tema surgiu através da minha prática como policial militar onde em diversos momentos
pude presenciar que nas abordagens aos “usuários de drogas”, os policiais partiam do
pressuposto que o usuário tratava-se de um criminoso e chamava a minha atenção,
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simultaneamente, a necessidade que tais profissionais demonstravam de esculachar o usuário,
em uma tentativa de diminuí-lo.
O texto parte então, da necessidade, prática e empírica de se analisar o processo de
formação do policial militar no que diz respeito às abordagens aos usuários de substâncias
entorpecentes em face da implantação da lei 11.343/06 que se destaca por não mais permitir a
privação de liberdade do usuário.
Este artigo fará uso de uma observação participante associada a uma aplicação de
questionário que foi aplicado a 150 policiais, cabe destacar que o intuito não foi fazer uma
pesquisa em larga escala neste primeiro momento, e sim uma análise antropológica inicial do
comportamento do policial nas abordagens aos usuários de substâncias entorpecentes. O
questionário foi aplicado aos policiais que trabalham em pontos distintos do estado do Rio de
Janeiro.
1.1 - A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) e a formação de seus
profissionais
Em conformidade com Holloway (1997) a polícia é uma das instituições fundamentais
do mundo moderno, através da qual o poder do Estado invadiu o espaço público para controlar
e dirigir o comportamento das pessoas. Atualmente a polícia se faz presente na mídia e em
grande parte por críticas públicas às atitudes e posicionamentos de seus agentes, seja em fatos
ligados à corrupção, abuso de autoridade ou erros técnicos, relacionados por vezes à falha no
treinamento. São atitudes que comprometem o nome de uma instituição bi secular cujas
práticas, em sua grande maioria, são criticadas por não atenderem de forma satisfatória aos
anseios e demandas da atual sociedade democrática de direito.
A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro foi criada em 1809. Segundo o material
didático utilizado no Curso de Formação de Soldados (CFSD) confeccionado pela instituição
em outubro de 2012, sua criação foi conseqüência da vinda da Família Real para o Brasil,
precisamente, para o Rio de Janeiro.
Nesta versão, no dia 13 de maio de 1809, aniversário do Príncipe Regente, D. João VI
criou a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia da Corte (DMGRP) formada por 218 guardas
com armas e trajes idênticos aos da Guarda Real Portuguesa.
Após o retorno da Família Real a Portugal, a Guarda Real de Polícia manteve a ordem
pública na cidade. Com a criação do Município Neutro da Corte, foi criada em 1835, outra força
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policial denominada Guarda Policial da Província do Rio de Janeiro com sede em Niterói, que
era responsável pela área atual do interior e da baixada do Estado do Rio de Janeiro.
A Polícia Militar é formada por oficiais e praças a partir de duas entradas distintas. Os
primeiros são formados a partir da sua aprovação em prova similar ao vestibular. Após esta
primeira fase, o candidato realiza prova física, antropométrica, médica, psicotécnica e pesquisa
social. Após aprovação em todas as fases, o candidato ingressa na Academia D. João VI onde
permanece pelo período de três anos, na condição de cadete. Ao terminar o curso são
denominados aspirantes a oficial e ao longo da carreira podem progredir até o posto1 de
Coronel2.
No caso das praças, a prova no ano de 2001, continha 40 questões divididas entre
português e matemática além de uma redação. As demais fases eram iguais ao concurso ao
oficialato. Após a aprovação em todas as fases, o candidato ingressa no Centro de Formação
onde permanece por seis a dez meses na condição de aluno. Ao terminar o curso são
denominados soldados e ao longo da carreira podem atingir, dentro do âmbito das praças, a
graduação de subtenente.
No concurso realizado em 2014 para soldado a prova constou das mesmas 40 questões,
agora divididas em português, sociologia, geografia, história, legislação de trânsito e direitos
humanos. E quanto às demais fase do concurso foi acrescido o exame toxicológico.
De acordo com o Estatuto dos Policiais Militares as promoções serão efetuadas pelos
critérios de antiguidade, merecimento, tempo de serviço, bravura e “post-mortem”. E de acordo
com a mesma legislação, em artigo anterior, o acesso na hierarquia fundamenta-se
principalmente no valor moral e profissional. É seletivo, gradual e sucessivo e será realizado de
modo a obter – se um fluxo regular e equilibrado de carreira para os policiais militares.
Antiguidade, segundo Silva (2011), é um valor positivo do mundo militar, que
possibilita, nos mínimos detalhes a previsão de relações assimétricas com regras que
privilegiam o superior. Bravura refere se a alguma ação que o policial teve em determinada
situação que faz com que o mesmo mereça ser promovido. A progressão na carreira das praças,
1 Posto é o grau hierárquico do oficial, conferido pelo Governador e confirmado em Carta Patente. Após Aspirante
a Oficial seguem os postos de 2º Tenente, 1º Tenente, Capitão, Major, Tenente Coronel e por fim, Coronel.
2 Coronel e o último posto do oficialato. Embora sejam militares, os oficiais não contam como o exército, marinha
e aeronáutica com o posto de General.
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no que tange ao tempo de serviço faz com que verifiquemos que independente da sua
qualificação, ao ter cumprido aquele período de tempo a praça será promovido.
No que diz respeito à promoção por merecimento, faz se necessário os concursos
internos, estes não são regulares e são caracterizados por falhas e irregularidades. Muito comum
após a aplicação de uma prova interna na instituição ocorrer processos judiciais solicitando
reparos seja porque questões foram mal formuladas, apresentaram temáticas que fugiram do
edital ou ainda por episódios de "cola". Desta forma, nota-se que a modalidade de promoção que
se destaca é a que privilegia o tempo e não o merecimento intelectual.
As falhas e irregularidades são freqüentes nos concursos internos no âmbito das praças
da instituição. Podemos salientar o concurso ao quadro de sargentos ocorrido no ano de 2006, a
prova apresentou questões mal formuladas que foram anuladas pela justiça. Desta forma um
concurso que previa certa quantidade de vagas, convocou número maior de candidatos
previstos, devido ações na justiça.
Outro concurso interno de acesso ao quadro de sargentos ocorreu em 2015, uma
situação lamentável onde os candidatos realizaram a prova em um estádio de futebol onde
metades dos candidatos realizaram a prova expostos ao sol (isto com local vago na sombra para
abrigar todos). A imprensa noticiou, à época, casos de desmaios e queimaduras (O Globo, Rio
de Janeiro, 08 de junho 2015). Antes que ações na justiça fossem acionadas, o concurso foi
anulado.
Como revela o estudo de Caruso, Moraes e Pinto (2006), a corporação falha no que diz à
formação:
A Polícia Militar não prima por uma formação qualificada e, por isso, as
praças são as mais atingidas por este descaso. Isso seria o grande erro da
corporação, visto que sua imagem está intimamente relacionada à qualidade do serviço prestado por estes soldados, cabos e sargentos, que representam
mais da metade da corporação.
Uma mudança formal relevante no contexto de formação e progressão na carreira das
praças ocorreu recentemente, quando a PMERJ atribui a um de seus princípios, presente em seu
direcionamento estratégico para os anos 2015-2018, o reconhecimento por mérito. Desta forma
o profissionalismo seria reconhecido e valorizado a partir do mérito intelectual, princípio este
que na prática não tem se apresentado de forma positiva, no âmbito das praças, tendo em vista as
falácias nos concursos internos, mas observa-se que se destaca como uma preocupação do
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Comando da instituição que atualmente conta com alguns subordinados mais qualificados,
academicamente, que seus superiores.
A praça da polícia militar é a base da pirâmide de uma instituição militar hierarquizada,
que formalmente apresenta como seus pilares a disciplina e a hierarquia. Hierarquia que com
exceção do planejamento estratégico acima mencionado, não privilegia o conhecimento
adquirido no meio acadêmico, mas aquele ocupado pela maior patente. Disciplina que
condiciona o subordinado a obedecer integralmente às regras institucionais e às ordens
superiores, visto que se trata de utilizar na polícia regras semelhantes às outras instituições
militares como a marinha, exército e aeronáutica, cujo contexto é da atuação do soldado em
situação de guerra. Esses valores se fazem nítidos durante todo o curso e se faz presentes no dia
a dia de todo policial militar.
O processo de formação, como salienta Bourdieu (1997) é um processo pedagógico que
visa trabalhar os corpos de maneira a fazer em cada um deles uma incorporação do grupo e
instalar entre o grupo e o corpo de cada um de seus membros uma relação quase mágica. No
caso da formação da praça policial militar no estado do Rio de Janeiro tal processo se resume a
uma rotina de treinamentos e ações mecânicas.
No meu processo de formação, em 2003, ouvi de um de meus instrutores: ”você tem
direito a não ter direito e a não reclamar dos direitos que não tem”. Esta colocação soa de forma
paradoxal, pois, antes de ser aluna sou cidadã, sendo assim quando assumo meu papel de aluna
onde fica minha condição de cidadã e após meu curso de formação como respeitarei a cidadania
alheia?
De acordo com o antropólogo Roberto Kant de Lima (2007) “a formação dos policiais
tem que incluir processos de socialização acadêmica e profissional que os atualizem em termos
dos procedimentos vigentes de construção da verdade e de administração de conflitos”. De
acordo com o mesmo antropólogo, os cursos administrados pela instituição privilegiam
repetição de movimentos mecânicos e treinamento com armamento quando, na verdade, após o
processo de formação, o policial irá se deparar com um maior quantitativo de ocorrências
policiais do tipo assistenciais e resolução de conflitos em detrimento de utilização de arma de
fogo.
1.2 Os dois saberes e a visão além do alcance
As lições aprendidas nos bancos escolares nem sempre acompanham o policial em suas
práticas. E eu pude perceber isso de perto seja em procedimentos mais básicos ou mais
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complexos. Existe dois saberes: o aprendido nos bancos escolares e o saber prático. De acordo
com os próprios policiais:
Pô, a verdade é que entre a teoria e a prática tem uma distância gigantesca. Não é tudo que se aprende nos cursos que a gente pratica nas ruas. É diferente.
E a coisa que a gente faz na rua, a gente não aprende nos cursos. A gente
aprende com os “mais antigos”. E a gente precisa fazer assim para ter moral. Se a gente cumprir só o escrito, não tem apreensão. (Cabo)
A fala do policial revela que existe uma distorção entre os ensinamentos postulados
pela Polícia e a prática de seus agentes. Sendo perceptível a existência de um “saber prático”
que segundo Caruso (2004) concretiza-se através de três atos cognitivos: “o movimento de
ouvir, ver e fazer”. Assim, para que o policial aprenda a ser policia é necessário que este
trabalhe na rua, se envolva com pessoas, faça apreensões e aguce os olfatos. Nota-se a
necessidade de repetir as práticas dos “mais antigos” para que se tenha “moral” que a meu ver
esta relacionada a um status de respeito atrelado a um sentimento de medo que os cidadãos
devem ter em relação a tal guarnição (equipe de serviço) e a partir desse “respeito com medo”
vindo das ruas, a guarnição possui “moral” para dialogar com seus superiores, a partir de
entendimentos comuns do que devem ser suas práticas.
O “ver além do alcance” trata-se de uma atribuição do policial que geralmente trabalha
nas ruas e significa olhar para o cidadão e ver se este é criminoso ou não como também significa
olhar um veículo e identificar, somente no olhar, se os documentos estão em dia.
Ver além do alcance é agir na intuição. Aquilo que os olhos não vêem, mas, a
gente sabe que está ali. Notar uma condição ou fato e usar a experiência profissional na formulação da suspeita ou não. (Sub tenente)
Um soldado atribui o ver além do alcance, ao fato do policial enxergar um flagrante ou
um delito antes do acontecimento e agir de forma preventiva, algo tipo faro. O que demanda um
elevado nível de adestramento técnico que o policial, em via de regra, não possui. Como destaca
Oberling (2011) o acúmulo de experiências individuais, particulares construídas caso a caso
passa a ser nesse ambiente carregado de imprevisibilidade, a base do saber policial. E, é nesse
sentido, que o saber passa a ser uma construção baseada na “experiência individual” do policial.
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1.3 Drogas questão de saúde ou segurança pública?
Nas últimas décadas, as políticas de controle do comércio e utilização de drogas
sofreram algumas transformações. Em vigor no Brasil desde outubro de 2006, a "nova lei de
drogas" como ficou conhecida a Lei 11.343/06 chama a atenção pela inexistência da
possibilidade de privação de liberdade do usuário de substância entorpecente, apesar de manter
os demais procedimentos (advertência verbal, prestação de serviço a comunidade, medida
educativa de comparecimento a programa ou curso educativo e, em ultimo caso, multa) e o uso
continuar sendo catalogado como crime.
Concomitante, salienta-se, no mesmo período a criação da Secretaria Nacional
Antidrogas (Senad) e o Conselho Nacional Antidrogas (Conad), que de forma conjunta formam
o Sistema Nacional Antidrogas. Como salienta OBERLING (2011):
Observando as gestões dos Presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula, apesar das mudanças institucionais, é possível afirmar uma predominância
dos investimentos e esforços para o controle do comércio, circulação e uso de
drogas a despeito das estratégias de saúde pública voltadas para o tratamento e
prevenção. As políticas de ambos os períodos, com suas devidas particularidades, basearam- se no “modelo repressivo dual”. A Lei 11.343, de
2006, é um exemplo à medida que prevê tratamentos penais diferenciados
para o tráfico e o consumo, aumentando a punição para o tráfico e modulando a punição para o uso.
Frente a essa “disputa” sobre de quem é a atribuição para as questões referentes aos
usuários de substância entorpecente, a proposta vinculada à saúde pública “venceu”, se for
levada em conta a observação de que a lei de 2006 tende a considerar o usuário como um
dependente químico que necessita de tratamento. Para tal o governo federal disponibiliza o
CAPSAd, como sendo um Programa de Atenção Comunitária Integrada ao usuário de álcool e
outras drogas. O Programa foi criado a partir de 2002 com o objetivo de “oferecer atendimento
a pacientes que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas, permitindo o planejamento
terapêutico dentro de uma perspectiva individualizada e também coletiva” (Carvalho, 2008).
Trata-se de uma política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e
outras Drogas estando articulado internamente com outros programas com enfoques municipais
como o Programa Saúde da Família, de forma que todos os postos de saúde municipais
vinculados a este programa atendam os dependentes.
Muito embora a lei nos permita interpretar a vitória de uma política de saúde pública
frente ao a outra que defendia que o usuário fosse tratado à luz do direito penal e punido com
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encarceramento, é possível observar que esta interpretação não foi necessariamente
compartilhada por aqueles que tratam da questão na esfera da segurança pública e da justiça
criminal.
Na minha prática policial e em especial no decorrer deste trabalho pude perceber um
descontentamento do policial militar no que diz respeito, na nova lei de drogas, ao fato do
usuário de substância entorpecente não ter sua liberdade cerceada. Essa condição causa uma
grande indignação e revolta nos policiais que, atrelando o usuário à criminalidade vê na lei um
desmerecimento de suas práticas policiais. Segundo o pensamento do policial, o usuário esta
ligado ao crime e quando a legislação não o penaliza com cerceamento de liberdade, este
acredita que seu serviço não esta tendo o devido reconhecimento por parte das autoridades. O
que fica explicito na declaração deste sub tenente:
Essa nova lei de drogas é uma vergonha. Ela desmerece nosso trabalho. Do que adianta pegar o vagabundo se o Delegado de polícia vai lá e solta porque a
lei não permite que ele fique agarrado? Viciado tem que ficar preso. Viciado é
quem financia o tráfico. Se não existisse o consumidor não existiria a oferta do
produto. E se não existisse o tráfico não existiria essa guerra que se tornou o Rio de Janeiro.
Vale ressaltar que o policial vislumbra somente a privação de liberdade como
penalidade de forma que qualquer outra sanção, não seria uma forma de punição.
1.4 Esculacho ao usuário?
Neste momento, cabe destacar que meu interesse enquanto pesquisadora se encontra na
abordagem do policial ao usuário de substâncias entorpecentes, sendo assim, as questões
pertinentes ao tráfico de drogas não cabem neste trabalho.
A forma como os policiais militares realizam as abordagens aos usuários de substancias
entorpecentes, sempre me chamou a atenção. Quando presenciava alguma abordagem onde o
usuário era equiparado a um criminoso, me indagava o porquê daquele procedimento e percebia
que por um lado, o policial por vezes precisava esculachar o usuário em uma tentativa de se
impor, assim mantinha certo distanciamento hierárquico o que permitia agir em conformidade
com práticas que podem, dependendo do contexto, serem permeadas pela ilegalidade.
Após o conhecimento da etnografia do antropólogo Lênin Pires (2011), nos trens da
Central do Brasil, consegui traçar um paralelo entre as práticas do comércio ambulante nos trens
e as abordagens aos usuários de substâncias entorpecentes, destacando o que seria esculacho na
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perspectiva apresentada no trabalho de campo do referido antropólogo.3 Conforme um dos
trechos do texto, para o ambulante:
Esculacho é humilhação. Não é tirar a mercadoria, pois isso a gente já esta acostumado. Mas tirar o que é nosso e ainda dar um tapa na cara de um
homem, isso sim é esculacho. E coisa que não se esquece e que a gente depois
tem que correr atrás para não perder o respeito.
O policial, em alguns casos, aborda partindo da premissa de que o abordado é um
criminoso e não um usuário e algumas abordagens findavam sem que o usuário tivesse seus
direitos e garantias fundamentais respeitados.
A abordagem policial por vezes faz uso da violência onde desrespeita o usuário
enquanto cidadão, e nesses casos os próprios policiais aplicam as “penas” aos usuários os
expondo publicamente. Segundo estes, frente à inércia do sistema judiciário, eles mesmos
julgam.
Como a gente conhece o Judiciário, a gente mesmo ao abordar o usuário, faz aquela “abordagem padrão PM”, dá porrada. A gente mesmo julga, a gente
mesmo executa. E antigamente quando o acesso a informação era menor, os
julgamentos eram cruciais. (Sargento)
O policial o esculacha, o que em conformidade com o professor Lênin Pires (2011),
está atrelada a uma categoria nativa que designa uma forma de expressar sentimentos de
desconsideração, desrespeito e ausência de reconhecimento.
Deste modo se a nova lei implica em outra forma de abordagem e tratamento, na prática
não há consenso entre aqueles responsáveis por tratar cotidianamente da questão na esfera da
segurança pública.
1.5 - O usuário como criminoso
Dos 150 policiais militares entrevistados, metade considera o usuário de substância
entorpecente um criminoso pelo fato de fazer uso de substância entorpecente que é catalogado
como crime, mas também porque relaciona o usuário de droga a provável autor de outras
ilicitudes. Este resultado me chamou atenção e me remeteu ao conceito de sujeição criminal
apresentado pelo sociólogo Michel Misse (2008). Para ele se trata de um operador analítico
3 A mesma relação já foi objeto de artigo publicado por Policarpo.
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através do qual são selecionados previamente os supostos sujeitos que irão compor um tipo
social cujo caráter é socialmente considerado “propenso a cometer um crime”. (Misse, 2008).
Assim, o policial em sua abordagem ao usuário de substância entorpecente além de ter a ciência
que o uso de drogas é capitulado como crime associa ao fato do usuário possa vir a cometer
outra ilicitude.
Tal prática policial vai ao encontro do que o antropólogo Kant de Lima (1995) considera
arbitragem policial no que diz respeito aos procedimentos ilegais adotados pelos policiais em
suas abordagens. O antropólogo afirma que os policiais fazem uso de procedimentos não
legalmente corretos para obterem um resultado esperado. Assim os próprios policiais se
encarregam de punir os infratores aplicando penalidades que variam desde agressão física ate
roubos. Ao fazê-lo, os policiais exercem todas as funções do sistema judiciário, e não somente
às funções da polícia: eles abordam, julgam, acusam e aplicam a penalidade. Por exemplo, não é
incomum um policial agredir um usuário a fim de descobrir onde este conseguiu a substância.
Assim os policiais fazem uso de meios ilícitos a fim de apresentar na delegacia uma ilicitude
praticada por terceiro (neste caso, um provável traficante).
Dos entrevistados, 50 consideram o usuário como um dependente químico, ou seja,
alguém que necessita de tratamento médico para tratar a dependência. E os policiais assim o
consideram por vislumbrar sua dependência química em relação a substancia entorpecente. Tais
profissionais salientaram a ineficiência do governo em tratar com os dependentes e consideram
que o uso de drogas é questão de saúde, não sendo relacionados à segurança pública. Contudo,
mesmo a lei de drogas não prevendo detenção para o usuário de substância entorpecente, poucos
policiais consideram o usuário um dependente químico e para corroborar sua posição
apresentam argumentos vários, como, por exemplo, o do livre arbítrio, afirmando que o cidadão
escolheu tal caminho, ou seja, que escolheu ser um usuário.
Um quantitativo de 25 policiais considera o usuário de substância entorpecente uma
pessoa comum, detentora de direitos e garantias constitucionais. Certa vez, no decorrer deste
trabalho, estava em um curso pela Polícia quando, em conversa com outros policiais, ouvi:
Certa vez, estava o parceiro e eu na viatura. Ai nos deparamos com um cara muito sujo. Por insistência do parceiro abordamos e encontramos um baseado
de maconha que custava 2 reais. O parceiro queria conduzir para a DP.
Quando perguntei a ao usuário o por que ele fazia uso de tal substância, ele disse: Eu trabalhei o dia inteiro no lixão de Gramacho, esta é a oportunidade
que tenho de, ao término do serviço, dá uma relaxada. (Cabo)
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O relato acima, nos revela aparentemente uma pessoa que não é viciada, mas que vê no
uso do entorpecente uma alternativa para “relaxar” após um dia de trabalho sob condições
desumanas, o que fez dividir a opinião dos policiais sobre que procedimento adotar: um
encaminhando para a delegacia, outro liberando o usuário.
Observei que os policiais com mais tempo na instituição possuem um olhar negativo
em relação ao usuário e que receberam a nova lei com resistência. “Essa nova lei é uma
sacanagem. Usuário é vagabundo. Não é doente. Ninguém nasce viciado. Se vicia por que
quer.” Essa declaração foi feita por um 1º Sargento com aproximadamente 25 anos de polícia e
retrata o inconformismo com a tendência da lei em tratar o usuário como um dependente
químico.
1.6 A abordagem padrão PM
No decorrer da pesquisa, foi perguntado aos policiais como procedem quando se
deparam com um cidadão fazendo uso de substância entorpecente e o resultado mostrou que 76
policiais conduzem para a delegacia, enquanto 31 conversam e orientam em relação aos
malefícios causados pelo uso de tais substâncias. Quarenta e três admitiram realizar uma
“abordagem padrão PM” e liberarem o usuário em seguida.
Como salienta Policarpo, Grillo e Veríssimo (2011) o abrandamento da pena a favor do
usuário pode servir como um argumento de negociação para os indivíduos flagrados em posse
de drogas. Sob esta perspectiva, o abrandamento em relação à punição aos usuários faz com que
os policiais permeiem suas atitudes entre a legalidade e a ilegalidade.
Por um lado, os policiais alegam que conduzem os usuários para a delegacia a fim de
fazer cumprir a lei tendo em vista que o consumo, posse e uso de substância entorpecente
continua sendo caracterizado como crime, paradoxalmente alguns afirmam não conduzir tendo
em vista que o usuário não ficará “agarrado”, ou seja, encarcerado.
E por fim, 25 entrevistados consideram os usuários como cidadãos comuns que optaram
por fazer uso de tais substâncias e são cientes de suas conseqüências, assim, acreditam que o
cidadão tem o direito de fazer suas escolhas mesmo.
Um total de 43 policiais confessou praticar a “abordagem padrão PM”. Tal abordagem
em nada se assemelha a abordagem padrão policial. A primeira refere-se a uma modalidade de
abordagem policial onde a violência é empregada a fim de se alcançar um fim e este pode ser
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uma informação ou a indicação de um lugar onde possam estar escondido pessoas procuradas,
armas, drogas ou carros roubados.
A segunda é apresentada nos bancos de formação como sendo a abordagem que
deveria ser realizada pelos policiais quando necessária seguida de regras e protocolos que na
prática, na maioria das vezes, não é observado. 4
Enquanto ouvia meus interlocutores falando sobre suas abordagens, muitas vezes
"ouvi" silêncios por parte deles. Ouvi silêncios algumas vezes ao confessarem tal prática, ouvi
silêncios na maneira de descreve- las. Os policiais acreditam que tal pratica muitas vezes é
necessária para a elucidação de alguns crimes e para o êxito de outras ocorrências. Mas como a
prática permeia o viés da ilegalidade atribuo esses silêncios ao sistema inquisitorial que se faz
presente na cultura jurídica e não diferente na Polícia Militar.
Como salienta Roberto Kant de Lima (2014) no sistema inquisitorial é feita a
denúncia, até anônima, efetuam se pesquisas sigilosas antes de qualquer acusação e sendo a
Polícia Militar uma instituição hierarquizada fundamentada na disciplina, caso eu atribuísse
nome às declarações de meus interlocutores a fim de revelar suas práticas, com certeza causaria
transtornos disciplinares para eles e para mim. Partindo desta premissa, entendo que muitos
frente às minhas questões, me responderam com silêncios.
Quando os interlocutores assumiram fazer a “abordagem padrão PM” de forma
intrínseca, assumiram que fazem uso de violência em suas abordagens assim desrespeitando as
condições de cidadão do usuário. Neste cenário, os policiais praticam uma violência
institucional a fim de manter uma ordem e zelar pela segurança que não foram abaladas com um
cidadão fazendo uso de substância entorpecente. Tal comportamento pode ser justificado em
decorrência das práticas desde o período da ditadura militar ou mesmo em uma sociedade mais
atual, que não se pautava nos direitos humanos em suas políticas.
Foi observado que a “abordagem padrão PM” é uma prática cotidiana no que diz
respeito aos usuários de substâncias entorpecentes e é chancelada ao êxito nas ocorrências.
Assim, as ocorrências somente são realizadas de forma positiva (com apreensões de drogas ou
armas, por exemplo) por que os resultados das práticas pautadas pela “ética policial” são
4 Direitos civis, Estado de Direito e “cultura policial”: a formação policial em questão – Roberto Kant de Lima
(2007)
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reconhecidas como produtoras de verdades dentro do sistema de segurança pública ou mesmo,
como já destacou Kant de Lima (2014), pelo sistema judiciário.
Dos 31 policiais que disseram não conduzir para a delegacia e confessaram que
conversam com os usuários no sentido de apresentar os malefícios que o uso das substâncias
acarreta para o corpo humano, estes dizem agir de forma “educadora” tendo em vista que
explicam, contam histórias e falam dos riscos da dependência. Quando eu os indaguei frente a
não condução para a delegacia, obtive como resposta, de um cabo do 19º batalhão: “Cabe a nós
educar. Criminoso é quem vendeu a droga para ele. Ele é uma vítima”
O não conduzir para a delegacia implica uma resolução no nível de Polícia Militar para
a problemática da utilização das substâncias entorpecentes, tendo em vista que após a
implantação da Lei 11.343/06 reduziu o número de registros de usuário. Em conformidade com
Policarpo (2015):
É notório que o número de casos de usuários de drogas que chegam aos
JECrim diminuiu depois da nova lei. Mas se o crime por uso de drogas continua na esfera do sistema de justiça criminal e o Judiciário não considera
mais importante administrá-lo, essa responsabilidade recai sobre a Polícia,
responsável pelos serviços de investigação e vigilância em nossa sociedade.
Desse modo, há, mesmo que indiretamente, o incentivo por parte do Judiciário para que crime por uso de drogas seja administrado institucionalmente,
embora extra-oficialmente, pela Polícia.
O autor ainda salienta que tal situação entre a legalidade e a ilegalidade legitima a
administração de drogas como um ilegalismo que, de acordo com Foucault (2004) como os
comportamentos que são aceitos de fato, mas não de direito.
1.7 Os policiais conhecem a nova lei de drogas?
No decorrer do trabalho, 97 policiais que atuam nas ruas diuturnamente, revelaram
desconhecer a nova lei de drogas implantada no ano de 2006. Esse resultado vai contra os
pilares de que o policial militar deve estar atualizado e informado no que diz respeito a sua
prática. Contudo, foi informado que exceto os policias militares que se formaram após a
implantação de referida lei, os demais afirmam não ter recebido nenhuma orientação da
instituição no sentido da alteração da lei.
Por outro lado, e comum a instituição promover cursos de atualização. Cabe observar
se a nova lei de drogas esta incluída nestes cursos ou se o policial recebeu a instrução e não deu
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a devida importância, o que não é raro, tendo em vista que grande parte das praças associarem
cursos com “punição ou sofrimento”.
Destes 97, 71 receberam informação através da instituição, mas, não necessariamente
formal. Alguns informaram que souberam através de colegas policiais, no momento em que se
depararam com a situação. E 26 informaram ter adquirido o conhecimento através do meio
acadêmico. Eu ingressei na polícia militar em 2003, antes da implantação da nova lei de drogas,
e até o presente momento não obtive nenhuma informação formal, seja em cursos ou
seminários, de como agir com o usuário de substância entorpecente.
2. FUNDAMENTAÇÂO TEÓRICA
O processo de formação do policial militar merece atenção especial por se tratar de um
processo pedagógico que será importante na atuação deste no cenário da segurança pública e
para dialogar com esse viés o antropólogo Roberto Kant de Lima (2007) foi citado, pois
defende que a formação dos policiais tem que incluir processos de socialização acadêmica e
profissional que os atualizem em termos dos procedimentos vigentes de construção da verdade
de administração de conflitos. Na prática policial militar, após a instituição da lei 11.343/06 que
entre algumas alterações impede o cerceamento de liberdade por parte do usuário e atribui ao
traficante pena “mais pesada”, foi observado que, além de alguns profissionais desconhecerem
a referida lei, muitos profissionais ao abordarem os usuários de substâncias entorpecentes não
respeitam seus direitos enquanto cidadão e o consideram propensos a cometer ilicitudes, o que
dialoga com os conceitos de esculacho5 postulado por Lênin Pires (2011) e suspeição criminal6
por Michel Misse (2008).
5 Refere-se a uma categoria nativa que designa uma forma de expressar sentimentos de desconsideração,
desrespeito e ausência de reconhecimento , sendo utilizado pelos policiais como uma tentativa de se impor, assim
mantendo certo distanciamento hierárquico o que permite agir em conformidade com práticas que podem,
dependendo do contexto, serem permeadas pela ilegalidade, o que se caracteriza como a “abordagem padrão
PM”uma modalidade de abordagem policial onde a violência é empregada a fim de se alcançar um fim específico.
6 Trata-se de um operador analítico através do qual são selecionados previamente os supostos sujeitos que irão
compor um tipo social cujo caráter é socialmente considerado “propenso a cometer um crime”assim o policial em
sua abordagem ao usuário de substância entorpecente associa o uso ao cometimento de uma possível ilicitude.
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No exercício de sua atividade policial, as práticas policiais nem sempre estão em
consonância com o que é postulado na Matriz Curricular Nacional, o que caracteriza um saber
prático que segundo Caruso (2004) caracteriza-se através de três atos cognitivos: o movimento
de ouvir, ver e fazer, permitindo que práticas que vão de encontro às preconizadas pela
instituição, sejam comuns.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho concluiu que além dos ensinamentos ofertados nos bancos escolares
existe um saber prático que permeia as práticas policiais militares fazendo com que estas nem
sempre ajam em consonância com os preceitos estabelecidos na Matriz Curricular Nacional da
Secretaria Nacional de Segurança Pública. Observou-se que a instituição Polícia Militar não dá
a devida atenção ao processo de formação das praças e desta forma compromete a sua imagem
institucional.
A falácia no processo de formação acrescido ao ethos característico da instituição, faz
com que os policiais, em sua parte, considerem o usuário de substância entorpecente um
criminoso e no momento de sua abordagem, ao realizarem a “abordagem padrão PM” o
desconsideram enquanto cidadão detentor de direitos constitucionais.
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