o problema do gênero no ensino da leitura da publicidade · perfume em que a sibilante repetida...

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Anais II Simpósio Gênero e Políticas Públicas ISSN2177-8248 Universidade Estadual de Londrina, 18 e 19 de agosto de 2011. GT6- Gênero e Educação Coordenação: Wagner Roberto do Amaral O Problema do Gênero no Ensino da Leitura da Publicidade Adenil Alfeu Domingos “Mera ilusão auditiva, graças à qual ouvimos sempre tic-tac e nunca tac-tic. Depois disso, como acreditar nos relógios?... ou na gente? (Mário Quintana) Introdução Em colaboração com as políticas públicas de educação, este artigo pretende demonstrar aos educadores como o discurso da publicidade possui dois níveis distintos de narrativa; o primeiro é a narrativa de um herói que se serve de um produto para atingir seus objetivos na vida; o segundo é um nível mais profundo que desperta os instintos primordiais do consumidor que são: a) a busca do parceiro sexual ideal, para a perpetuação e aprimoramento da espécie; b) a fuga do predador, hoje, inimigo, rival ou concorrente; c) a busca da presa que, na era do consumismo em que vivemos, são os objetos fetichizados e à venda no mercado. Esses instintos escapam da consciência que se concentra na região periférica superior do cérebro, onde está a razão humana. Cabe à escola demonstrar aos alunos como esses discursos são veiculadores da ideologia da classe dominante e que, aprender a ler essa camada profunda, é um meio de estar consciente de persuasivas armadilhas linguísticas. Na verdade, de modo inconsciente, esses instintos permanecem em todos os discursos do homem, mas são facilmente identificáveis nos discurso da publicidade, como se comprova aqui com o corpus de textos ora analisados. Na publicidade atual, há uma ressignificação do corpo humano como objeto estético erotizado e mostrado apenas em uma perfeição hiper-real, até mesmo

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Anais II Simpósio Gênero e Políticas Públicas ISSN2177-8248

Universidade Estadual de Londrina, 18 e 19 de agosto de 2011.

GT6- Gênero e Educação – Coordenação: Wagner Roberto do Amaral

O Problema do Gênero no Ensino da Leitura da Publicidade

Adenil Alfeu Domingos

“Mera ilusão auditiva, graças à qual ouvimos sempre tic-tac e nunca tac-tic.

Depois disso, como acreditar nos relógios?... ou na gente? (Mário Quintana)

Introdução

Em colaboração com as políticas públicas de educação, este artigo

pretende demonstrar aos educadores como o discurso da publicidade possui dois níveis

distintos de narrativa; o primeiro é a narrativa de um herói que se serve de um produto

para atingir seus objetivos na vida; o segundo é um nível mais profundo que desperta os

instintos primordiais do consumidor que são: a) a busca do parceiro sexual ideal, para a

perpetuação e aprimoramento da espécie; b) a fuga do predador, hoje, inimigo, rival ou

concorrente; c) a busca da presa que, na era do consumismo em que vivemos, são os

objetos fetichizados e à venda no mercado. Esses instintos escapam da consciência que

se concentra na região periférica superior do cérebro, onde está a razão humana. Cabe à

escola demonstrar aos alunos como esses discursos são veiculadores da ideologia da

classe dominante e que, aprender a ler essa camada profunda, é um meio de estar

consciente de persuasivas armadilhas linguísticas. Na verdade, de modo inconsciente,

esses instintos permanecem em todos os discursos do homem, mas são facilmente

identificáveis nos discurso da publicidade, como se comprova aqui com o corpus de

textos ora analisados.

Na publicidade atual, há uma ressignificação do corpo humano como

objeto estético erotizado e mostrado apenas em uma perfeição hiper-real, até mesmo

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quando estilhaçado e focado em partes sexuais do mesmo, em close-up (fig.1)1. Toda

publicidade é uma narrativa, com uma cena fixa ou em sequencialidade, chamada,

modernamente de storytelling, por ser muito próxima das narrativas orais da

antiguidade, principalmente quando circuladas nas mídias on ou off-line. Por isso

mesmo, quando um storytelling demonstra sensualidade, ele dá voz a uma entidade

narradora, que tende a falar com voz quente, aveludada e sensual representando o

produto à venda. Com o objetivo de chegar às camadas profundas instintivas e emotivas

no cérebro, ele passou a explorar imagens de corpos perfeitos ou antropomorfizar

objetos com essa finalidade (fig 1 e 2); modernamente, usam figuras queer (fig. 3) , ou

seja, pessoas dispostas a romper com ordem heterossexual compulsória imposta pela

sociedade que ainda discrimina gays, lésbicas, bissexuais, ou transgenéricos, em que a

feminilidade se masculiniza e a masculinidade se afeminiza, como se o produto fosse

também a arma para esse rompimento. O princípio é criar polêmica, ficar no imaginário

coletivo, estar em todas as mídias on ou off-line.

Por isso mesmo, onde houver congresso sobre storytelling, tratando do

tema de recuperar o ato de contar histórias oralmente, como meio de impor ideologias,

lá estarão as grandes marcas – como a Coca-cola, Apple, Nike, Nokia entre outras. Elas

perceberam que a narrativa oral tem um poder muito mais profundo de envolver

emocionalmente a audiência do que qualquer explicação racional que se faça do produto

à venda. Na disputa pela atenção do Outro, o marketing descobre que vence essa batalha

quem tiver a melhor história para contar e os melhores meios de difundi-las. Assim se

dá o boom das narrativas persuasivas, na era da oralidade midiada, principalmente na

web 2.0, com as mídias sociais que atuam em rede com princípios virais2.

Denominamos-se esse tipo de narrativa como sendo da era da literatura do consumismo,

*Professor de Semiótica da Comunicação, graduação e pós graduação, do Curso de Comunicação em Jornalismo e

Relações Públicas da Faculdade Unesp - Universidade estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de Bauru 1 Os discursos publicitários, que servem como base para análise deste artigo, foram retirados do Google imagem ou

de revistas antigas e estão no final deste texto. Para vê-los, com mais facilidade, basta destacá-los e arrastar o mouse.

2 O Marketing viral tem como princípio contaminar o Outro (target= mercado alvo) para passar uma mensagem adiante, por meio das mídias sociais (twitter, Orkut, por exemplo) ou não, ou até mesmo boca a boca. A Heineken enviou porta copos destacáveis, pulseiras removíveis, semelhantes às usadas em áreas Vips de baladas, aplicativo super útil e funcional para iPhone que informava localidades próximas a você, onde pode ser encontrado cervejas da marca entre outros. Para se ter uma idéia, no seu lançamento, o aplicativo já obteve quase 5 mil downloads.

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com as histórias dos heróis do cotidiano que vencem na vida, tendo como arma um

objeto de consumo adquirido para esse fim. Sabemos que a alteridade é que constrói a

identidade e o herói desse tipo de discurso é imitado pelo consumidor que, ao adquirir o

mesmo objeto que o herói da narrativa publicitária possui, na crença que esse produto o

ajude a atingir seus objetivos de vida, como esse herói o fizera.

A classe de empresários que domina materialmente a sociedade atual

é, também, aquela que tem o poder de produzir ideologias para persuadir grandes

públicos, por meio da mída. Ela subsidia as mídias e os objetos à venda dos discursos

publicitários encontraram nas redes on e off-line um lugar cativo no fluxo contínuo de

narrativas da própria vida cotidiana. Assim, a classe dominante comanda também a

grande maioria das empresas de comunicação que compõem a sociedade atual, com

seus modos de falar e persuadir. Pode-se até admitir que elas dominem ainda a grande

maioria das instituições que compõem a sociedade, inclusive a escola. Por isso, a

importância de levar para a escola e discutir o discurso da publicidade.

Da Teoria

Para Levy-Strauss (2007: p.10), há certos elos perdidos na cadeia de

nossa evolução que deveríamos fazer um esforço para recuperá-los. É fato que o homem

nem sempre foi um ser cultural. Não se pode duvidar que ele tenha passado por uma era

em que tenha vivido de modo tão natural como os demais animais, como nos mostra o

evolucionismo. Os primeiros storytelling foram fábulas e mitos primordiais da

perplexidade do homem diante do desconhecido, narradas oralmente em torno de

fogueiras aos sujeitos de uma tribo. Hoje, as tribos se unem em torno da eletricidade,

mas com os mesmos ideias: contar histórias. As primeiras narrativas feitas pelos

homens, por certo, contavam façanhas das suas lutas ou alianças com os demais

animais, como resquícios da pré-história, anteriores ao aparecimento desse homem

cultural, que até hoje cria fábulas e mitos. Foi o aparecimento do homo narrans que dá

origem ao homem cultural, momento em que homens e animais deixam de dividir

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espaços, cumprindo ciclos de transformação, com o aparecimento e desaparecimento de

espécies na face da terra.

Para desenvolver a argumentação deste artigo, aliamos as idéias de

Strauss às do cérebro trino de McLean3 - réptil, emotivo, racional; depois, ligamos esses

pensamentos às tríades da semiótica do norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-

1914), para também nos servimos da tríade freudiana de pré-consciência, ego e

consciência. Peirce entendeu que nada há mente que não seja signo para a interação com

o Outro. Para ele, todo pensamento vem do mundo exterior, como estímulo, para criar,

de imediato, um novo objeto na mente, muito semelhante ao objeto observado que se

impôs à essa mente com sua plasticidade sensorial. O nosso entorno é a matéria prima

da mente, que, ao ser filtrado pelos nossos sentidos, aloja-se, na memória passiva, em

geral, sem passar pelo crivo do juízo perceptual. Por isso, as revistas são recheadas de

publicidade e a beira das estradas cobertas de outdoors, que aparentemente não se lê,

mas que ficam no nosso subconsciente, de modo icônico, ou seja, muito semelhante ao

apreendido. Um segundo grau operacional mais complexo do trabalho da mente é

relacionar signos por contiguidade, gerando índices (fig. 4)4. Só em um terceiro

instante, porém, esses signos são relacionados, em uma interpretação argumentativa em

que aparecem os porquês desses objetos observados, que se transformam em símbolos

culturais, eivados de valores ideológicos. Por isso, entendemos que a mente do homem

selvagem tinha como primazia sentir seu entorno de modo sensorial, sinestésico, com

signos mais naturais, enquanto o homem moderno relaciona-se com seu meio, pela

intermediação de signos inferenciais e abstrativos, convencionais e arbitrários,

colocando uma espécie de biombo ideológico tecido de signos culturais, entre o seu

corpo e o seu entorno.

As narrativas são transformações de estados e para tanto necessitam

de ações que se iniciam sempre na busca da satisfação de uma necessidade e terminam

3 A Teoria do cérebro trino: em 1990 Paul MacLean, mostra que os humanos têm cérebro dividido em três unidades funcionais diferentes em unidades a) cérebro réptil, responsável pelas funções vitais de sobrevivência, por comportamentos instintivos relacionados a sexo e marcação de território; b) cérebro límbico ou emocional responsáveis pela alegria e tristeza, já presentes na maioria dos mamíferos; c) a camada de superfície ou neocórtex, responsável pelo pensamento analítico, capaz de produzir linguagens, imagens, sons, já presentes nos golfinhos.

4 O gesto da modelo desse storytelling, remete seu público alvo a uma cena de cinema memorável de Marilyn Monroe; bem como o vermelho do mesmo lembra a bebida Campari. Nossa mente é associativa e basta mostrar uma parte do todo para que o cérebro a complete, segundo experiências passadas de vida.

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com a realização ou não desse desejo5. O objeto oferecido na publicidade é sempre um

passaporte para se chegar ao objeto do desejo, como, por exemplo, obter o prazer de

vencer as batalhas da vida e conquistar o parceiro ideal. Aliás, o homem não produziu

linguagens apenas para se comunicar, mas sim, como arma na luta pela sobrevivência.

Em suas fábulas, ele realiza todas as suas mais fantasiosas buscas, até mesmo as

impossíveis e consegue se projetar teleologicamente. Esse é o princípio fundamental do

discurso da publicidade. É desse modo que o narrador do discurso publicitário pode

antropomorfizar animais e objetos, ou zoomorfizar e/ou reificar (coisificar) (fig 5)6 um

ser humano, resgatando momentos ancestrais do homem na terra.

A produção do storytelling da publicidade envolve tecnologia de

ponta e linguagens em hibridismo feitas de verbal e não verbal. Embora a linguagem

verbal pareça ser a arma mais eficiente das técnicas de comunicação, a grande maioria

de nossos pensamentos é feito de signos não verbais. Por acreditar, por muito tempo,

quase que no exclusivo poder das palavras na mente, a escola só recentemente começa a

dar atenção, com mais contundência, à leitura do não verbal. Até mesmo a escrita,

sucedâneo do verbal, pode ser um não verbal, como aparece em uma publicidade de

perfume em que a sibilante repetida várias vezes, tem a intenção de reproduzir o som do

espargir do perfume (fig. 6). Com o advento das novas tecnologias e a facilidade de

produção e reprodução da imagem, aumenta o uso do não-verbal no storytelling

midiado, recuperando, assim, as possíveis aulas dadas pelos pintores das paredes das

cavernas ao interagir com seu público aliando verbal e não verbal, produzindo uma

linguagem mais universal e sintética. O princípio agora é atingir o maior número

possível de pessoas, em menor tempo de atenção da mesma, com o menor número

possível de signos.

Galimberti (2006) afirma que não é apenas a inteligência humana a

criadora da técnica, já que ela permitiu o desenvolvimento da inteligência humana,

usada na luta pela nossa sobrevivência. Para ele, a distinção entre homem e demais

5 “Sem dúvida os objetos desempenham um papel regulador na vida cotidiana, neles são abolidas muitas neuroses, anuladas muitas tensões e aflições, é isto que lhes dá uma „alma‟, é isto o que os torna „nossos‟ (Baudrillard, 2002: 98). BAUDRILLARD, J. O sistema dos objetos. Tradução Zulmira Tavares. São Paulo: Perspectiva, 2002. 6 Nessa imagem o corpo humano nãos só foi objetualizado, como sendo o próprio produto, como o objeto à venda foi antropomorfizado, em uma simbiose perfeita.O verbal também dança, sendo outra antropomorfização.

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seres, não é o poder racional e a inteligência do primeiro, mas sim, o que ele tem a

menos – pois o homem não dispõe de institutos que o orientem de forma direcionada,

plena e absoluta, na solução de suas necessidades. O homem criou técnicas de

interação7 como midiadoras do seu corpo com seu entorno, quando se sentiu na

iminência de rápida e fatal extinção e isso acelerou se modo de viver. A humanidade

construiu seu modo de agir e ser como hoje nos conhecemos, como consequência do

modo pensar acertos e erros. Ao se narrar, portanto, o homem se torna capaz de

sistematizar, não só seu entorno, mas também de se organizar e de se analisar

interiormente. O pragmatismo de Peirce (1965) assegura que o conceito que temos de

um objeto, não se dá pelo dicionário, mas sim, pela soma dos conceitos de todos os

efeitos concebíveis como decorrentes das implicações práticas do referido objeto na

vida.

As teorias da educação também mostram que, na criança, a memória,

a atenção e a conduta são regidas mais por processos biológicos e involuntários do que

conscientes. No processo educativo da linguagem recorre-se a instrumentos mediadores

que atuam no sentido de romper a conexão associativa direta entre dois estímulos, já

que um signo representante torna-se uma espécie de substituto do objeto representado.

A relação, orientada por mediadores culturais tem dois lados: um deles provoca um

salto qualitativo nas funções inicialmente regidas por processos biológicos, promovendo

uma completa modificação na evolução e na estrutura das funções psíquicas da criança

e o pensamento aprende a operacionalizar representantes convencionais e não objetos

reais, e desse também que se instala no outras idéias construídas como sendo verdades

inquestionáveis; o outro, se não incentivado e trabalhado sistematicamente, faz a criança

perder contatos com o sentir o mundo de modo sinestésico e isso pode impedir que ela

acione todos os seus sentidos no ato de ler, privilegiando apenas o sentido da

visualidade.

7 Sugerimos a leitura das idéias de Marshall McLuhan, principalmente de dois livro “os meios de comunicação como

extensões do homem”, da editora Cultrix,; e “o meio é a mensagem”, ed. Record. Ambos com várias edições.

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Todos os tipos de pensamento devem ser operacionalizados em sala de

aula. O homem místico/mítico dominou até meados do XVIII; depois disso, aparece o

homem do pensamento científico, afirmando que o pensamento primeiro foi ilusório e

que agora era preciso entender o mundo real da lógica, da matemática, do laboratório,

contradizendo o mundo sensorial (idem, p. 11). Entre o homem moderno do

pensamento científico e o homem do pensamento mítico, porém, a diferença é que

aquele acredita realmente que é possível explicar o universo a partir das suas partes - e

seu pensamento, assim, ficava limitado - enquanto o homem do mito via o mundo em

sua globalidade interativa de acordo com suas necessidades de sobrevivência. Levy-

Strauss, (idem), ao examinar diários de bordo dos navegadores da Idade Média,

assegurou que esses navegadores conseguiam ver a estrela Dalva até por volta do meio

dia. Com a existência da bússola, essa capacidade não precisou mais ser treinada e ela

se perdeu no tempo. A mente humana, apesar das diferenças culturais entre as diversas

frações da humanidade, tem sempre as mesmas capacidades (idem, p. 31)8, que

precisam ser treinadas para não desaparecerem.

Estamos, hoje, passando da antropocentria para a ciborguicentria, já

que a máquina também passou a memorizar e produzir discursos assim como o corpo

humano pode usar próteses. Mas só o pensamento científico ainda é o meio capaz de

demonstrar essa perda e fazer sua reconquista. Já inferimos aqui a existência de um

pensamento natural icônico/indicial, gerado por uma linguagem híbrida de grunhidos,

gestos, expressões faciais, mímicas, antes do pensamento mítico-narrativo. O homo-

sapiens sistematizou esse material, que no princípio era amorfo e cria os códigos, as

leis, as regras dos símbolos, a partir do seu uso cotidiano dando aos mesmos sentidos

convencionais e arbitrários, de modo tácito. No mundo mítico, o homem inteirava-se

com seu entorno por meio dos sentidos, cheirando, saboreando, tateando, vendo e

ouvindo de modo sensório; depois da criação dos signos simbólicos, aparece, por

emergência bottom-up e não top-down, complexos sistemas de signos das linguagens

8 Nas páginas 32/36 desse mesmo livro, Levy-Strauss trata do Mito Canadense da Arraia. Ele afirma que o pensamento mítico resolvia problemas de modo binário, na base de sim e não de modo semelhante ao do uso da linguagem do computador feita de 0, 1. Só entendemos o pensamento mítico em um “ tempo em que a cibernética e

os computadores apareceram no mundo científico, dando-nos o conhecimento das operações binárias, que já tinham sido postas em prática de uma maneira bastante diferente, com objetos ou seres concretos, pelo pensamento mítico.

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convencionais. Se o mito servia-se dos animais e objetos para explicar pensamentos; se

a fábula mostrou resquícios dessa maneira de narrar, a narrativa moderna da publicidade

vai se servir de todos esses recursos ancestrais com o intuito de persuadir. Como as

linguagens se tornaram arma para a sobrevivência da espécie, os objetos simbólicos,

ilusoriamente, passaram a ser substitutos dos signos sensórios, como é o caso de se

dizer que “o presidente está na capa da revista x” quando nela só existem tinta e papel.

A leitura do discurso publicitário, entendido aqui como a literatura da era do

consumismo, feito linguagens em sincretismo entre o verbal e o não-verbal, demonstra

como o mesmo trata do gênero ora cristalizando mais a ordem heterossexual

compulsória imposta; ora tentando romper essas amarras, como veremos adiante.

O problema do gênero na publicidade

Temos a ilusória crença que nosso cérebro é todo consciente e que

essa consciência comanda as ações de nossa linguagem e, assim, ele dirige todos os

nossos pensamentos. Não se pode perder de vista a naturalidade e evolução do modo de

pensar já que as idéias nascem em campo sensório, para depois serem avaliadas no

intelectivo, como juízos, deixando, então, de serem simples sensações. Cenas de

violência e agressão veiculadas na mídia atingem diretamente o cérebro réptil,

promovendo sensações de ameaça, medo à integridade física e o pânico permanente

entre lutar ou fugir, causa de grande audiência na mídia. Além disso, os noticiários de

guerra, as guerras fictícias da indústria do entretenimento, como os jogos eletrônicos,

provoca ansiedade, instiga a adrenalina, como lutas entre gangues. Quanto ao corpo,

esse cérebro é responsável pela obesidade e doenças depressivas que levam ao consumo

de drogas e bebidas são relacionadas ao cérebro réptil. O principal é que ele é

estimulado e solicitado diante da publicidade que expõe o corpo humano.

Pela teoria do Cérebro Trino de Paul MacLean, a primeira camada a

ser formada foi o cérebro réptil é responsável pelas funções vitais de sobrevivência e

comportamentos relativos às atividades sexuais e até mesmo da delimitação de

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território; a segunda é o chamado sistema límbico, responsável pelas emoções, onde se

situam todas as satisfações, todos os prazeres; ele é responsável pela ansiedade e

apreensão e ele está fora do nosso controle. Isso prova que somos mais dirigidos pelos

instintos do que pelo raciocínio. Essas duas camadas tendem a coincidir com as idéia de

“inconsciente”, “pré-consciência” de Freud (1973), ou seja, o “id” (reservatório das

pulsões do prazer, de satisfações imediatas). Para ele o ego evolui do id e tem partes

inconscientes e conscientes sendo regido pela presentidade e realidade. O superego

(censor das funções do ego, fonte de sentimento, culpa e medo de punição) coincide

com o neocórtex, local onde as percepções apreendidas passam pelo crivo do juízo

perceptual e são lidas e avaliadas. É esse o local das linguagens simbólicas e coincide e

onde se efetua nãos só a leitura crítica9, a interpretação racional de todo e qualquer

discurso, mas também, onde acontecem as inferências e abstrações em argumentos

racionais. O corpus de publicidades, escolhido para esse fim, mostra que a maioria dos

signos que apreendemos da leitura relâmpago que se faz de um discurso publicitário,

aloja-se no fundo do lago da memória e sobe à sua tona quando solicitado, na hora da

compra.

Essas constatações é que nos levaram a procurar entender como

publicidade que se envolveu com o problema do gênero10

. Percebemos que a grande

maioria dos discursos publicitários reproduz o princípio do patriarcado, legitimando a

superioridade masculina, (fig. 7/8) próprio do ideário comum, historicamente construído

e incrustado principalmente nas instituições, como as religiosas e militares, sendo o

gênero o primeiro modo de dar significações às relações de poder (cf. SCOTT 1995, p.

86) na sociedade. De modo indireto, essa ideologia aparece camuflada na sociedade em

regras e leis11

, como, por exemplo, o predomínio do masculino sobre o feminino na

9 Não se compra uma revista para ler publicidades, mas sim, para se informar. Os storytelling publicitários são

absorvidos en passant ao se folhear a mesma. As mensagens dessas publicidades são absorvidas de modo inconsciente, assim como são apreendidas as mensagens de placas, cartazes, outdoors e outros meios de informação que povoam estradas e cidades. 10 Para Lauretis, gênero seria um signo social, portanto, ideológico, capaz de dar “a representação de uma relação, a relação de pertencer a uma classe, um grupo, uma categoria. Gênero é a representação de uma relação [...] o gênero constrói uma relação entre uma entidade e outras entidades previamente constituídas como uma classe, uma relação de pertencer [...]. Assim, gênero representa não um indivíduo e sim uma relação, uma relação social; em outras palavras, representa um indivíduo por meio de uma classe (1994, p. 210). 11 Se o primeiro artigo da nossa constituição determina que todos são iguais perante a lei, “sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas”, estamos diante da prova mais cabal que as pessoas não são tratadas em igualdade, pois se elas o fossem, não haveria essa lei

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concordância gramatical, ou na idéia de que todos são iguais perante a lei na

constituição. Depois dos anos 60, com o ideário da contracultura, até as publicidades

modernas começam a romper o princípio do patriarcado, pois, ao ressignificar o corpo

humano, chamando atenção para o corpo sadio e belo, elas começam a afrouxar os nós

dos estereótipos sociais. Foi nos anos 70 que se iniciou a luta contra a idéia do gênero,

como produto ideologicamente construído, de modos diferentes em diferentes culturas.

O uso do termo gênero passou, então, a expressar um sistema de relações que incluem o

sexo, mas que transcende a simples diferença biológica. Descobre-se que o fator

biológico determina as reações inatas do indivíduo e é sobre essa base que se constitui

todo o sistema de reações adquiridas. Leontiev (1978) mostrou que a criança inicia sua

vida em um mundo repleto de objetos criados pelas gerações anteriores (bonecas para

meninas e carrinho para os meninos, por exemplo) que são direcionadores dos futuros

das crianças. Com propriedade, rejeitando a reflexicologia e o experimentalismo,

baseado em Marx, Vygotsky12

entendeu que o homem nasce apenas com as funções

psicológicas elementares prontas, como o reflexo e atenção involuntários, presentes em

todos os animais, mas que o aprendizado faria mudanças históricas na sociedade e na

vida material provocando mudanças na natureza humana e, desse modo, a mente se

desenvolveria, produzindo funções psicológicas superiores, a partir da interação com o

meio, como consciência, o planejamento e linguagem. Marx (1983, p. 71), por sua vez,

encontrou relações humanas por trás das relações mercadológicas e revelou a ilusão da

consciência humana, já que ela se origina na interação com os objetos, principalmente

na economia mercantil. Ele atribuiu aos objetos características que têm sua origem nas

relações sociais, no processo de produção dos objetos como mercadoria à venda e o

corpo perfeito tornou-se um objeto-fetiche, que deve ser semelhante ao ídolo como um

amuleto, algo enfeitiçado com origens misteriosas e inexplicáveis poderes.

Assim, o corpo se tornou uma mercadoria desejada, além de revelar

características sociais do próprio trabalho humano, como qualidades objetivas dos

próprios produtos de trabalho, juntando no mesmo objeto tanto propriedades naturais

12 “Quando passa a fazer uso de meios indiretos, como instrumentos e signos, e adquire as habilidades culturais necessárias, ela desenvolve a capacidade de refrear a satisfação imediata de seus impulsos e necessidades e de

retardar as reações imediatas a estímulos exteriores, e dá os primeiros passos na transição para o comportamento intelectual complexo” (Vygotsky, Luria, 1996)

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como sociais; o corpo fetichizado na publicidade não estabelece só a relação social dos

produtos com o trabalho total, como também demonstra a relação existente fora dele,

como corpos em relações entre si. Os anúncios de produtos, para atingir seus objetivos,

passaram a se servir do corpo como o mito da perfeita atração, e eles são exibidos

dentro dos storytelling sempre de modo convidativo e possuir o produto é o mesmo que

possuir o corpo em questão (fig.9). Como o imaginário coletivo, nesse instante, é de

fundamental importância, houve a fragmentação do corpo (ig. 10) idealizado que se

metamorfoseia ao sabor das suas condições financeiras do outro13

. Assim, prova-se

como o homem, ainda traz em si, vestígios de sua ancestralidade e que imagens e sons

são estimuladores das camadas mais primordiais do homem, de forma artificial. Ao ler o

texto publicitário, o sujeito se traveste do herói e entende que o objeto adquirido lhe dá

o poder desse herói e ele pode conquistar aquele parceiro sexual desejado.

À guisa de balanço geral.

Vimos aqui que a publicidade é um storytelling persuasivo. Seu

objetivo é vender emoções e que o objeto à venda da narrativa dada é a “espada

mágica”, como arma fetiche que dá ao sujeito que a possui a sensação de ser tornar

invencível. Não se trata mais do herói medieval que possuía um cavalo e armadura

poderosos, além de uma lança e um escudo, mas sim, do homem comum que deve

possuir um possante automóvel, uma roupa de grife, um cartão de crédito e um celular,

ou algo semelhante, para a conquista desse parceiro sexual.

O corpus de análise ora escolhido pretendeu demonstrar como esse

discurso é uma construção ideológica direcionada a públicos distintos, em que o gênero

tem sido considerado, como um dos elementos fundamentais. Procurou-se demonstrar

como o gênero pode ser definido por meio de publicidades que conservam ou não

estereótipos de classificação do homem, impondo crenças e hábitos ou desfazendo-os.

13 È interessante notar como certas escolhas de parceiros para acasalamento são semelhantes aos dos seres humanos. Há uma espécie de pingüim, por exemplo, que a fêmea se acasala com o macho que juntou mais pedrinhas. (fig. 11)

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Construindo modos de percepção de apreciação, de interesses e de gostos, mas sem

deixar de atingir as camadas mais inconscientes do homem. A publicidade é feita para

não ser lida racionalmente, mas sim, en passant, como os outdoors. Só a leitura crítica

pode desfazer as ideologias que elas trazem, e isso depende de aprendizagem que se

inicia no seio da família, passa pela escola e adentra toda a nossa vida. São discursos

silenciosos como esses que acabam criando até mesmo espécies de segregação, de

acordo com o sexo.

Não somos ilhas e nosso corpo jamais estará infenso as pressões

exteriores. De modo biológico e natural, nosso corpo desenvolveu um aparelho visual,

porque vive grande parte de sua vida na presença da luz. A energia que ocupa nosso

cérebro no instante em que percebemos nosso entorno e arquivamos as imagens

percebidas em nossa memória é uma transdução de sinais14

. Eles vêm do mundo

exterior, transforma-se em energia neuronal e se acoplam a nossa energia interior. A

energia dos sinais advindos dos discursos que percebemos em nosso entorno cicatrizam

nossa memória, atuam em todos os nossos órgãos e desse modo nosso entorno impõem

sua plasticidade à nossa mente. Assim, como quando ingerirmos uma fruta, a energia

nela existente torna-se energia biológica em nosso corpo, bem como a energia do nosso

corpo se transformam em energia para as raízes das árvores, completando um clico de

vida natural, somos afetados e afetamos o espaço em que habitamos, continuamente.

Todo discurso publicitário, portanto, vai atuar sobre o nosso corpo onde estão nossos

desejos, sensações, satisfações e insatisfações, todas as nossas necessidades e nada é

gratuito no universo. Só pensamos o que pensamos porque fomos levados a pensar

assim, embora o chamado livre-arbítrio possa fazer avaliações do que queremos ou não.

Depois de inserido em um determinado contexto social, o homem jamais poderá saltar

fora desse enredamento, mesmo quando desejar lutar contra o mesmo, já que essa ação é

apenas uma das possibilidades do próprio sistema.

14 Transdução de sinal é o processo pelo qual uma célula converte um sinal extracelular recebido em uma resposta

específica e pode acontecer de célula para célula, de célula como resposta ao ambiente, do ambiente para a célula e até intracelular chamada homeostase

Anais II Simpósio Gênero e Políticas Públicas ISSN2177-8248

Universidade Estadual de Londrina, 18 e 19 de agosto de 2011.

GT6- Gênero e Educação – Coordenação: Wagner Roberto do Amaral

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Relação de figuras citadas

Fig. 1 fig 2 fig.3 fig. 4 fig 5 fig. 6 fig.7

Fig. 8 fig. 9 fig 10 fig 11