o prÍncipe feliz - rideel · muita gente sofre e passa necessidade. o príncipe feliz soltou mais...

32
Coleção Aventuras Grandiosas Oscar Wilde O PRÍNCIPE FELIZ Adaptação de Ana Carolina Vieira Rodriguez 2 a edição Principe Feliz.indd 1 30/05/11 10:26

Upload: others

Post on 21-Feb-2020

3 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

Coleção Aventuras Grandiosas

Oscar Wilde

O PRÍNCIPE FELIZ

Adaptação de Ana Carolina Vieira Rodriguez

2a edição

Principe Feliz.indd 1 30/05/11 10:26

Page 2: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

2

Capítulo 1

A ESTÁTUALá estava a estátua do Príncipe Feliz, bem no alto da cidade, no topo de

uma coluna. Ele tinha o corpo revestido de delicadas folhas do mais valioso ouro, os olhos eram formados por duas SAFIRAS RELUZENTES, e no alto de sua espada brilhava um enorme RUBI vermelho.

Todos que passavam pela estátua admiravam o Príncipe Feliz. Muita gente parava para olhá-lo e ficava horas examinando cada pedaço de suas VESTES douradas, comentando sobre sua beleza e riqueza.

Um dos CONSELHEIROS da cidade, que desejava ser reconhecido por APRECIAR a arte, falou diante do Príncipe:

— Ele é bonito como um CATA-VENTO! Mas, com medo de que as pessoas achassem que ele não era muito prático,

o que de fato não era, complementou:— Pena que não é muito útil...Uma mãe que passava pela estátua acompanhada do filho estava IMPACIENTE.

Já era noite e a criança insistia em pedir, olhando para o céu:— Mamãe, eu quero a lua, quero a lua para mim! Ela é tão linda!A mãe foi logo dizendo:— Não posso te dar a lua, querido. Ela está muito longe.O menino sentou-se diante da estátua e caiu em lágrimas, exigindo que a

mãe satisfizesse sua vontade. Ela desabafou:— Por que você não pode ser como o Príncipe Feliz? O garoto levantou a cabeça para os olhos de safira que o observavam. A

mãe continuou:

* SAFIRAS: pedras preciosas de cor azul* RELUZENTES: brilhantes, vivas* RUBI: pedra preciosa de cor vermelha* VESTES: vestimentas, roupas* CONSELHEIROS: membros de um conselho* APRECIAR: gostar, dar valor* CATA-VENTO: instrumento usado para medir a direção e a

velocidade do vento* IMPACIENTE: sem paciência, agitada, nervosa

Co

leçã

o A

vent

uras

Gra

ndio

sas

Principe Feliz.indd 2 12.03.10 10:11:41

Page 3: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

3

O P

rínc

ipe

Feliz

— O Príncipe Feliz nunca tem sonhos MIRABOLANTES com a lua, nem chora por qualquer motivo.

Um homem muito desanimado passou pela estátua e se sentou, admirando-a. Ficou ali durante muito tempo. Pensou na vida, em seus problemas, mas não conseguiu uma solução para eles. Antes de ir embora, disse em voz alta:

— Que bom que pelo menos existe alguém feliz no mundo...Crianças saíram da aula com seus uniformes vermelhos e aventais brancos,

e foram correndo para a estátua do Príncipe Feliz.— Parece um Anjo! — disse uma delas.— É mesmo, lindo como um Anjo — concordou outra.E todos ficaram lá, comentando sobre os aspectos ANGELICAIS do Príncipe.

O Professor de Matemática não gostou nada daquelas conversas, e perguntou, muito bravo:

— Como vocês sabem que ele se parece com um Anjo, se nunca viram um de perto?

As crianças se olharam, confusas, até que um garoto respondeu:— Vimos..., vimos sim.— Onde? — INTRIGOU-SE o Professor de Matemática.— Em nossos sonhos — concluiu o menino, fazendo a turma toda

concordar.O Professor franziu a testa e fez cara feia. Não considerava bom o hábito

de crianças sonharem.

Capítulo 2

A ANDORINHACerta noite, uma pequena Andorinha sobrevoou a cidade. Suas amigas

tinham voado para o Egito seis semanas antes, mas ela ficara, pois tinha se apaixonado por um lindo Bambu.

Ela o conhecera no comecinho da primavera, quando voava atrás de uma Mariposa amarela rio abaixo. Ao passar por aquela criatura elegante, sentiu-se tão atraída, que parou para conversar. Como gostava de ser direta, foi logo dizendo:

* MIRABOLANTES: espalhafatosos, surpreendentes* ANGELICAIS: relativos aos anjos, puros, perfeitos, imaculados* INTRIGOU-SE: ficou curioso e preocupado, desconfiado

Principe Feliz.indd 3 12.03.10 10:11:41

Page 4: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

4

* MANIFESTAR: exprimir, declarar, falar* CORRESPONDIDA: retribuída, receber algo igual, equivalente, em troca* REVERÊNCIA: mesura, saudação na qual o tronco é inclinado para a frente* ARQUEAVA: curvava formando um arco* INVEJA: desejo de ter o que é de outro* NATO: natural, de nascença* GALANTEIOS: corte, atenções de amor* BRISA: vento fraco e fresco

— Estou gostando de você. O Bambu demorou um pouco para se MANIFESTAR, então ela perguntou:— Posso ter esperanças de ser CORRESPONDIDA?O Bambu respondeu-lhe fazendo uma REVERÊNCIA. Feliz da vida, a

Andorinha voou em torno dele, tocou a água do rio com as asas, criando ondinhas prateadas. O Bambu, por sua vez, ARQUEAVA, tocando-lhe as penas à medida que o vento o levava para frente, para trás ou para os lados. Era essa a maneira que os dois tinham de namorar, um amor que durou o verão inteiro.

As outras andorinhas a incomodavam dizendo:— É ridícula a relação de vocês!— Por quê? — perguntou a Andorinha? — Vocês estão com INVEJA!— E como poderíamos ter inveja? Ele é pobre — acusou uma delas.— Além de tudo, ele tem parentes demais! — disse a outra.Quando o outono chegou, as andorinhas voaram para o Egito, deixando a

companheira apaixonada para trás. Depois que suas amigas se foram, a Andorinha se sentiu muito solitária. Para piorar, ela começou a se cansar do Bambu. Já não tinha por ele o mesmo amor de antes, do início da primavera.

— Ele quase não conversa... — observava, falando sozinha.Depois refletia mais um pouco em voz alta:— E é um paquerador NATO! Ele pensa que não o vi fazendo GALANTEIOS

para a BRISA? Ah, eu bem que prestei atenção nisso!E ela estava certa. O Bambu flertava com a Brisa quando ela passava. Fazia

reverências e balançava todo ao senti-la soprar. Continuando sua reflexão, a Andorinha disse a si mesma:

— É verdade que ele é caseiro, o que é uma qualidade, mas eu gosto tanto de viajar... Aquele que se casar comigo deve gostar de viagens também.

Finalmente, a Andorinha resolveu questionar o Bambu. — Você quer me acompanhar até o Egito? — perguntou.

Co

leçã

o A

vent

uras

Gra

ndio

sas

Principe Feliz.indd 4 12.03.10 10:11:42

Page 5: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

5

O P

rínc

ipe

Feliz

Mas o Bambu era apegado demais ao seu lar, e balançou-se de um lado para o outro, mostrando uma negativa clara.

— Você só estava de brincadeira comigo! — reclamou a Andorinha. — Queria apenas passar o tempo.

O Bambu ficou paradinho. Não sabia o que dizer.— Para mim chega! Estou indo para as pirâmides! Adeus! — exclamou a

Andorinha, partindo.Ela voou o dia todo e chegou à cidade, ainda bem distante das pirâmides

do Egito, quando anoiteceu. Olhou tudo em volta e pensou: “Onde vou passar a noite? Espero que a cidade tenha acomodações”. Quando viu a estátua do Príncipe Feliz em cima da coluna, bateu as asinhas, satisfeita.

— Vou dormir por aqui! — disse alto. — Este é um local muito bom, cheio de ar fresco.

Então a Andorinha se acomodou entre os pés do Príncipe Feliz.

Capítulo 3

A COSTUREIRA— Que maravilha! Tenho um quarto de ouro puro... — sussurrou a Andorinha

para si mesma, observando tudo em volta antes de ir dormir. Mas bem na hora em que ela colocava sua cabeça embaixo da asa, uma

gota de água bem grande despencou sobre ela. — Que coisa estranha! O céu está limpo, cheio de estrelas... Não há nuvens.

Como pode estar chovendo? — disse ela. — O clima aqui no Norte da Europa é um horror mesmo. O Bambu gostava de chuva, mas ele era um egoísta.

Mais uma gota caiu e a Andorinha ficou impaciente. — Para que serve uma estátua se não nos protege da chuva? Vou já arrumar

uma boa chaminé para me abrigar — reclamou, resolvendo partir. Assim que começou a abrir as asas para voar, caiu a terceira gota. A

Andorinha olhou para o alto e viu uma coisa incrível! Os olhos do Príncipe Feliz estavam carregados de água, e suas lágrimas escorriam pelo rosto dourado. Era tão bonito ver as faces da estátua iluminadas pela luz da lua, que a Andorinha sentiu uma forte COMPAIXÃO.

* COMPAIXÃO: pesar que sentimos pela dor de outra pessoa; piedade

Principe Feliz.indd 5 12.03.10 10:11:42

Page 6: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

6

* CORTESÃOS: homens da corte, serviçais da corte* SINÔNIMO: palavra que tem o mesmo significado de outra* MISERÁVEL: muito pobre, digno de compaixão* CASEBRE: cabana, casinha

— Quem é você? — perguntou ela.— Sou o Príncipe Feliz — respondeu a estátua.— Príncipe Feliz? — Sim.— Então por que está chorando? Molhou todas as minhas penas, sabia?

Agora estou encharcada!— Peço desculpas. Gostaria de conhecer minha história?— Pode contar. Estou ouvindo — disse ela.— Quando eu era vivo e meu coração era humano, nunca derramei uma

só lágrima. Na verdade, nem sabia o que era isso. Eu morava no Palácio de Sans-Souci, e lá não era permitida a entrada da Tristeza. Eu brincava o dia inteiro no jardim junto com meus amigos e, à noite, participava dos bailes dentro do salão principal. Está entendendo? — perguntou a estátua.

— Mais ou menos. E por que chora agora? — perguntou a Andorinha.— Vou explicar. Em volta do jardim do Palácio tinha um muro bem alto, mas eu

nunca me preocupei em saber o que havia do lado de fora. Tudo à minha volta era tão belo, tão maravilhoso... Eu tinha CORTESÃOS para me servir. Eles me chamavam de Príncipe Feliz, e acho que eu era mesmo feliz, se a Felicidade pode ser SINÔNIMO de prazer. Vivi e morri dessa maneira, mas, depois de morto, criaram esta estátua para mim, e a colocaram bem no topo desta colina. Daqui posso enxergar o quanto minha cidade é feia e MISERÁVEL. Muita gente sofre e passa necessidade.

O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou:— Apesar de meu coração agora ser de chumbo, não consigo fazer outra

coisa, a não ser chorar. — O quê? O coração não é de ouro? — disse baixinho, só para si, a

Andorinha. Ela não queria interromper o Príncipe, e também achou que seria deselegante fazer tal observação em voz alta.

A estátua continuou a falar em tom suave, com certa melodia:— Vejo lá adiante, bem longe, um CASEBRE. Fica em uma rua estreita. — E o que há nesta casa? — perguntou a Andorinha.— Pela janela aberta, vejo uma pobre mulher sentada à mesa. Está magra,

cansada, e tem as mãos machucadas por picadas de agulha, já que é costureira.

Co

leçã

o A

vent

uras

Gra

ndio

sas

Principe Feliz.indd 6 12.03.10 10:11:42

Page 7: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

7

O P

rínc

ipe

Feliz

— O que ela está fazendo agora?— Bordando flores de maracujá, mais conhecidas como flores da

paixão, em um vestido de cetim. — Não me diga! — exclamou a Andorinha, que gostava muito dessas

flores.— O vestido é para a dama de honra da Rainha usar no próximo baile

que haverá no Palácio. — E qual é o problema? Por que você chora quando vê esta mulher

trabalhando?— O problema é que, em um outro canto da casa, o filho da mulher

está deitado, doente e com febre. Escuto quando ele pede: “Mamãe, quero comer laranjas”, e a mãe responde que não tem dinheiro para comprar frutas. Na verdade, ela não pode comprar comida alguma, só tem água do rio para dar ao filho. O menino chora ao ouvir isso. E a mãe disfarça, mas chora também, escondida.

A Andorinha ficou em silêncio, sem saber o que pensar. O Príncipe então lhe pediu:

— Andorinha, Andorinha, pequena Andorinha, você não pode me fazer um favor? Arranque o rubi cravado no alto de minha espada e leve-o para a costureira e seu filho. Estou preso a este PEDESTAL, não consigo movimentar meus pés.

— Não posso, Príncipe Feliz — respondeu ela.— E por que não?— Preciso voar até o Egito. Minhas amigas já foram, e estão me esperando.

Neste exato momento elas devem estar sobrevoando o rio Nilo, beijando as flores de lótus... Logo irão dormir sobre a TUMBA de algum grande Rei. Você sabia que no Egito os reis são enterrados em SARCÓFAGOS, e são cobertos de enfeites e ADORNOS? Eles são enrolados em tecidos amarelos e EMBALSAMADOS com ervas e especiarias. No pescoço, levam colares de pedras preciosas, além de outras joias, que ficam junto com eles na morte.

* PEDESTAL: base que sustenta uma estátua (pode ser de pedra, madeira ou metal)

* TUMBA: sepultura* SARCÓFAGOS: caixões, ataúdes* ADORNOS: enfeites* EMBALSAMADOS: corpos que tiveram substâncias introduzidas para

evitar a decomposição

Principe Feliz.indd 7 12.03.10 10:11:42

Page 8: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

8

* MOINHO: máquina para moer cereais* AGILIDADE: habilidade, destreza, desenvoltura* DESRESPEITARAM: desacataram, faltaram com respeito* COMPADECEU: teve piedade, condoeu-se* ESCULPIDOS: modelados, formados, trabalhados* MÁRMORE: pedra calcária de diversos tons que pode ser usada em

esculturas e trabalhos de arquitetura

— Andorinha, Andorinha, pequena Andorinha, fique comigo esta noite. Seja minha mensageira! — pediu a estátua. — O menino está doente, e com tanta sede... A mãe está tão triste...

— Não gosto muito de meninos... — suspirou a Andorinha.— E por que não? — perguntou o Príncipe.— No verão, enquanto eu sobrevoava o rio, dois meninos insistiam em

me atirar pedras. Eram muito grosseiros aqueles meninos, filhos do dono do MOINHO. É claro que nunca me acertaram. Nós, andorinhas, voamos alto demais para nos deixar acertar por uma pedra. Além do mais, nasci em uma família conhecida pela AGILIDADE. De qualquer maneira, não gosto de meninos. Eles me DESRESPEITARAM.

O Príncipe Feliz fez uma cara tão triste, tão decepcionada, que a Andorinha se COMPADECEU. Ela chacoalhou as asas para tirar os pingos de água, olhou para ele e disse:

— Está bem, está bem... Faz um frio danado aqui, mas vou ficar com você esta noite. Pode contar comigo para ser sua mensageira.

— Obrigado! Muito obrigado, Andorinha! — agradeceu o Príncipe. A Andorinha então, com muito esforço, conseguiu arrancar o rubi da ponta

da espada do Príncipe Feliz, e saiu voando com ele no bico sobre todos os telhados coloridos da cidade.

Ela passou pela catedral, onde muitos anjos ESCULPIDOS em MÁRMORE branco enfeitavam a torre. Depois sobrevoou o Palácio, onde ouviu música e viu gente dançando através das janelas. Uma linda jovem saiu da festa e foi para a sacada junto com seu namorado. A Andorinha escutou quando o rapaz falou:

— As estrelas estão lindas, mas não tão lindas como você.A moça sorriu, e ele completou:— Eu te amo, e é maravilhoso o poder do amor!— Estou ansiosa para ver o vestido que vou usar no grande baile do

Estado — foi a resposta da jovem. — Mandei bordar flores da paixão em todo o

Co

leçã

o A

vent

uras

Gra

ndio

sas

Principe Feliz.indd 8 12.03.10 10:11:42

Page 9: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

9

O P

rínc

ipe

Feliz

comprimento da saia, mas tenho medo de que não fique pronto. As costureiras de hoje são tão preguiçosas...

A Andorinha continuou seu caminho. Sobrevoou o rio, onde se encantou com as lanternas PENDENDO do alto dos mastros dos navios, depois observou negociantes no GUETO pesando moedas em balanças de cobre. Por fim, chegou ao casebre da costureira. Viu que o menino se virava de um lado para o outro na cama, DELIRANDO de febre. A mãe, de tão exausta, adormecera.

A Andorinha entrou pela janela e deixou o rubi cair de seu bico sobre a mesa, ao lado do DEDAL. Depois foi para perto da cama do menino e o abanou com as asas. Fez isso perto de sua testa, que transpirava. O garoto disse:

— Ah! Que ventinho bom! Acho que estou melhorando. Sinto-me mais refrescado.

Dito isso, ele caiu em um sono profundo e relaxante. A Andorinha saiu da casa e voou de volta até o Príncipe Feliz. Lá chegando, contou a ele tudo o que fez, depois reparou:

— Que engraçado! Continua frio por aqui, mas eu agora sinto calor. — Isso é porque você fez uma boa ação — disse o Príncipe.A Andorinha ficou pensativa, até que adormeceu. Pensar sempre a fez

ter sono.

Capítulo 4

O JOVEM ESCRITORAssim que os primeiros raios da manhã brilharam no céu, a Andorinha voou

até o rio e tomou um belo banho. Um Professor de ORNITOLOGIA que passava por ali tomou um susto:

— Nossa! Uma andorinha por aqui no inverno! É incrível! — exclamou.

* PENDENDO: inclinando-se, pendurando-se* GUETO: em algumas cidades da Europa, bairro onde os judeus eram

obrigados a viver; também bairro onde vive parte da população segregada por pobreza ou questões raciais

* DELIRANDO: agindo como se estivesse fora de si* DEDAL: objeto usado na mão direita de quem costura para empurrar

a agulha* ORNITOLOGIA: área da zoologia que estuda as aves

Principe Feliz.indd 9 12.03.10 10:11:42

Page 10: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

10

Ele escreveu um longo texto sobre isso, que foi publicado no jornal da cidade. As pessoas comentavam na rua:

— Você leu o artigo do Professor?— Sim.— E o que achou?— Para falar a verdade, não entendi muito bem. Tem muitas palavras

difíceis — confessava a maioria. A linda Andorinha aproveitou o dia para conhecer o resto da

cidade.— Esta noite viajo para o Egito! — disse a si mesma, empolgada. Ela visitou todos os prédios públicos, os monumentos e telhados

antigos, depois ficou horas pousada no CAMPANÁRIO da catedral observando o movimento. A brisa leve a animava. Além disso, ela não deixou de notar os pardais, que cochichavam ao vê-la voar:

— Que linda estrangeirinha...A Andorinha achou tudo aquilo muito divertido. À noite, ela voltou

aos pés do Príncipe Feliz e perguntou:— Quer que eu leve algum recado ou encomenda para o Egito? Estou

de partida...O Príncipe suspirou e disse:— Andorinha, Andorinha, pequena Andorinha, você não ficaria comigo

mais uma noite?— Não posso, minhas amigas estão me esperando no Egito.Dos olhos de safira do Príncipe brotaram algumas lágrimas. A Andorinha

tentou explicar:— Amanhã minhas amigas devem voar até a segunda cachoeira. Lá os

HIPOPÓTAMOS se deitam para tomar sol ao lado do Deus Memnon, que se senta sobre um trono de GRANITO, observa as estrelas durante a noite inteira, e de manhã solta um canto de alegria. Depois passa o resto do tempo em silêncio.

O Príncipe escutava atentamente, e a Andorinha continuou:— Ao meio-dia em ponto os leões vão beber água nas margens da

cachoeira. É uma cena linda de se ver. Eles têm olhos verdes que parecem

* CAMPANÁRIO: torre de uma igreja onde ficam os sinos* HIPOPÓTAMOS: mamíferos grandes e de pele grossa que habitam

as margens dos rios da África* GRANITO: tipo de rocha

Co

leçã

o A

vent

uras

Gra

ndio

sas

Principe Feliz.indd 10 12.03.10 10:11:43

Page 11: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

11

O P

rínc

ipe

Feliz

pedras preciosas. E os RUGIDOS são poderosos, mais fortes e altos do que os URROS da cachoeira.

— Andorinha, Andorinha, pequena Andorinha, ajude-me mais uma vez — argumentou o Príncipe Feliz.

— O que houve? — perguntou ela.— Daqui do alto vejo um rapaz do outro lado da cidade. Ele mora em um

SÓTÃO, a janela se abre por cima. Ele está sentado a uma mesa, com a cabeça baixa, debruçado sobre os braços. Ao seu lado há um vaso de violetas murchas. Há também muitos papéis em sua volta.

— O que está acontecendo com ele? — perguntou a Andorinha.— Ele está tentando escrever uma peça de teatro para entregá-la ao diretor,

mas não consegue.— Por quê?— Acabou a lenha de seu fogão e ele não tem dinheiro para comprar. Para

piorar, não tem mais comida em sua cozinha. A fome e o frio o deixam fraco, assim ele não pode terminar a peça.

— O que quer que eu faça, leve para ele outro rubi? — Pobre de mim, não tenho mais rubis. — E o que podemos fazer então? — Pequena Andorinha, não tenho mais rubis, mas tenho olhos de safira. Estas

lindas pedras verdes são valiosíssimas; vieram da Índia há mais de mil anos. — Você não quer que eu...?— Isso mesmo, quero que arranque um dos meus olhos e o entregue para

o rapaz. Ele poderá vender a safira ao joalheiro e com o dinheiro comprar lenha e comida. Conseguirá escrever quando estiver aquecido e alimentado.

A Andorinha caiu no choro.— Não posso fazer isso, Príncipe — disse ela.— Andorinha, pequena Andorinha, faça o que lhe peço, por favor.Então a Andorinha, com muito esforço e PESAR, arrancou um dos olhos

do Príncipe e saiu voando com a safira no bico. Foi fácil encontrar o sótão, pois o Príncipe explicou que a janela abria por cima.

* RUGIDOS: sons emitidos pelos leões* URROS: gritos, berros* SÓTÃO: pequeno cômodo acima de uma casa, logo abaixo do

telhado* PESAR: dor, sofrimento, incômodo

Principe Feliz.indd 11 12.03.10 10:11:43

Page 12: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

12

Ela entrou, olhou tudo em volta e soltou a pedra. O rapaz não a viu, pois estava com o rosto afundado sobre os braços, mas sentiu um vento estranho e escutou a REVOADA. Quando levantou a cabeça, encontrou a safira sobre o ramo de violetas murchas.

— Que maravilha, eu devo ter um grande admirador, um verdadeiro fã! — exclamou o rapaz. — Só pode ser isso, do contrário não me presentearia com uma pedra destas!

A Andorinha ainda escutou ele dizer, antes de voar de volta ao Príncipe Feliz:

— Amanhã venderei a pedra e conseguirei terminar minha peça. Como estou contente!

Capítulo 5

A PEQUENA VENDEDORA DE FÓSFOROS

De manhã a Andorinha voou até o porto. Lá ela viu vários navios, pousou no mastro de um deles e observou os marinheiros trabalhando. Eles puxavam enormes caixas de dentro do porão do barco. Faziam uma força gigantesca e soltavam gritos de “Opa!” cada vez que levantavam uma delas. A Andorinha tentou chamar a atenção deles.

— Ei, vocês! Sabiam que hoje à noite vou para o Egito?Nenhum marinheiro deu bola para ela. Quando anoiteceu, a Andorinha

voou até o Príncipe Feliz e disse:— Vim me despedir. Sigo agora em minha viagem ao Egito.— Andorinha, Andorinha, pequena Andorinha, fique comigo mais uma

noite — pediu a estátua.— Não posso, é inverno por aqui e a neve está para chegar.O Príncipe ficou calado, mas ela continuou a se explicar:— Lá no Egito o sol brilha forte e quente sobre as palmeiras — disse. —

É uma beleza ver os crocodilos deitados na lama. Eles se sujam e se esfregam no barro para depois espiar tudo em volta. Minhas amigas devem estar agora mesmo construindo um ninho no templo de Baalbec. As pombas brancas e cor-de-rosa ficam cantando ao lado.

* REVOADA: voo de volta ao ponto de partida

Co

leçã

o A

vent

uras

Gra

ndio

sas

Principe Feliz.indd 12 12.03.10 10:11:43

Page 13: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

13

O P

rínc

ipe

Feliz

— Meu querido Príncipe, eu preciso ir, mas tenha certeza de que nunca me esquecerei de você. Quando voltar, na próxima primavera, trarei duas maravilhosas pedras preciosas para colocar no lugar das que você entregou à costureira e ao jovem escritor. O rubi será mais bonito e brilhante do que uma rosa vermelha, e a safira será tão azul quanto o mar.

— Nesta praça, logo abaixo de nós, vejo uma vendedora de fósforos — disse o Príncipe. — É criança ainda e não pára de chorar.

— O que aconteceu com ela? — perguntou a Andorinha.— Ela derrubou os fósforos em uma poça de água e agora todos ficaram

estragados, não servem para mais nada. A pobre menina não tem sapatos, meias, nem um gorro para protegê-la do frio, e sabe que vai apanhar do pai quando chegar em casa.

— Como podemos ajudá-la? — perguntou a Andorinha.— Quero que arranque meu outro olho e leve para ela. Ela poderá entregá-

-lo ao pai, que assim não baterá na filha.— Príncipe, não posso fazer isso. Você ficará cego se eu arrancar seu outro

olho. Vamos combinar o seguinte: ficarei com você mais esta noite, mas pense em outra maneira de ajudar a vendedora de fósforos.

— Andorinha, Andorinha, pequena Andorinha, por favor, faça o que estou lhe pedindo — implorou o Príncipe.

Ela REFLETIU um pouco e acabou CEDENDO. Quase chorando, conseguiu arrancar o outro olho do Príncipe e saiu voando com a outra safira no bico. Chegou bem pertinho da menina na rua e deixou cair a pedra em suas mãos. A garotinha enxugou as lágrimas e sorriu.

— Que lindo vidrinho! Vou mostrá-lo ao meu pai. Aposto que agora não me baterá mais — exclamou ela, e saiu correndo para casa.

A Andorinha voou para perto do Príncipe Feliz e disse:— Agora você ficou cego, por isso ficarei ao seu lado para sempre.— Não, Andorinha, você precisa voar para o Egito — PROTESTOU o Príncipe.— Esqueça o Egito. Vou ficar ao seu lado para sempre — disse ela,

adormecendo entre os pés do Príncipe.

☛ RESTAVA: sobrava, faltava☛ CONSOLÁ-LO: confortá-lo, acalmar seu sofrimento☛ REFLETIU: pensou☛ CEDENDO: rendendo-se, sucumbindo, concordando☛ PROTESTOU: reclamou

Principe Feliz.indd 13 15/06/11 16:34

Page 14: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

14

— Esqueça o Egito. Vou ficar ao seu lado para sempre — disse ela, adormecendo entre os pés do Príncipe.

Capítulo 6

AS FOLHAS DE OURONa manhã seguinte, para ENTRETER o Príncipe Feliz, que já não podia

enxergar, a Andorinha resolveu contar-lhe muitas histórias.— Vou lhe falar sobre as coisas que vi durante minhas viagens — disse ela.O Príncipe ficou escutando pacientemente, enquanto ela dizia coisas

como:— Nas margens do Rio Nilo há muitas aves vermelhas chamadas íbis. Elas

se colocam em fileiras e pescam peixes dourados com o bico. É desses peixes que elas se alimentam.

— E o que há no deserto? — perguntou o Príncipe.— No deserto existe a ESFINGE. Você já ouviu falar dela?— Esfinge? Não, nunca ouvi falar.— Pois ela é mais antiga do que nosso próprio mundo, e conhece tudo,

sabe do passado e do futuro. — Incrível! — disse o Príncipe.— No deserto também há muitos camelos. Eles armazenam água em suas

CORCUNDAS. Os mercadores caminham ao lado dos camelos.Logo a Andorinha mudou de assunto:— Em minhas viagens também conheci o Rei das Montanhas da Lua! Ele é

negro como ébano e tem um grande cristal, que é um talismã. Depois ela contou:— Vi também uma cobra verde que dorme sob uma palmeira e é alimentada

por vinte SACERDOTES. — E o que ela come? — perguntou o Príncipe.— Bolinhos de mel!

* ENTRETER: distrair* ESFINGE: monstro com corpo de leão e cabeça de homem que

guardava túmulos de faraós e santuários no Egito* CORCUNDAS: protuberâncias nas costas* SACERDOTES: pessoas que tratavam de religião na Antiguidade

Co

leçã

o A

vent

uras

Gra

ndio

sas

Principe Feliz.indd 14 12.03.10 10:11:43

Page 15: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

15

O P

rínc

ipe

Feliz

Por fim, a Andorinha falou sobre os PIGMEUS do Grande Lago:— Eles navegam em grandes folhas que nunca afundam, e o estranho é que

estão sempre guerreando contra as borboletas — disse ela.O Príncipe Feliz ficou pensativo, depois falou:— Andorinha, Andorinha, querida Andorinha, você tem tantas histórias

EXTRAORDINÁRIAS para contar, mas penso que extraordinário é o sofrimento pelo qual passa o povo. A miséria é o maior mal que existe.

Ela ficou quieta, então o Príncipe Feliz pediu:— Voe sobre a minha cidade, querida Andorinha, depois volte aqui e

me conte o que viu.Ela atendeu o apelo do Príncipe e saiu sobrevoando a cidade. A primeira

coisa que enxergou foi uma casa muito rica e luxuosa. Seus moradores se divertiam lá dentro, enquanto muitos MENDIGOS ficavam no portão esperando que alguém lhes desse um prato de comida.

Depois ela sobrevoou a parte pobre da cidade, entrou por becos e RUELAS. Lá havia muitas crianças com fome. Elas ficavam paradas, quase não se mexiam para não gastar energia, e assim sentirem o apetite aumentar. Tinham os olhos caídos e tristes.

Mais adiante viu uma ponte. Embaixo delas estavam dois meninos abraçados. Era a única forma de tentarem se manter aquecidos, já que não tinham casacos, nem cobertores.

— Estamos com tanta fome — disse um deles. — Vamos, saiam já daqui — gritou um guarda, ENXOTANDO-OS de lá.

— Isso não é dormitório de garotos.Os pobrezinhos saíram caminhando na chuva, ainda abraçados. A

Andorinha não aguentava mais ver tanto sofrimento. Ela voltou ao Príncipe e lhe contou sobre seu voo pela cidade.

— Todo o meu corpo é coberto por folhas de ouro — disse ele. — Quero que arranque uma por uma e as entregue aos pobres desta cidade, que é o meu lar. Os vivos sempre dão um jeito de ficar feliz com um pouco de ouro.

* PIGMEUS: anãos, pessoas de baixa estatura* EXTRAORDINÁRIAS: coisas fora do comum, espantosas, incríveis* MENDIGOS: pessoas muito pobres que vivem de esmolas* RUELAS: ruas bem pequenas* ENXOTANDO-OS: expulsando-os, mandando-os embora

Principe Feliz.indd 15 12.03.10 10:11:44

Page 16: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

16

Então a Andorinha obedeceu ao Príncipe. Ela arrancou todas as folhas de ouro com todo o cuidado até a estátua ficar cinza, com cor de chumbo, sem brilho algum. Depois saiu voando e distribuindo o ouro entre os menos favorecidos.

— Como estão as crianças agora? — quis saber o Príncipe.— Muito melhor! Elas agora brincam nas ruas — comemorou a Andorinha. — Que bom!— Escutei uma delas dizendo: “Que maravilha! Agora temos pão para

comer!” — completou a Andorinha.

Capítulo 7

O CORAÇÃO E A ANDORINHAO tempo então começou a esfriar para valer. A neve chegou, depois veio

a GEADA. As ruas ficaram brilhantes e escorregadias, parecendo ser feitas de prata. Longas pontas de gelo pendiam dos cantos das casas como se fossem facas de cristal. As crianças passavam usando casacos pesados e gorros vermelhos, e gostavam de deslizar no gelo.

A pequena Andorinha sentia frio, muito frio. Aquele não era um clima próprio para sua natureza. Ela pensou em voar para longe, para onde pudesse encontrar calor, mas desistiu, pois amava muito o Príncipe. A pobre ave se alimentava de migalhas que ia buscar nos fundos da padaria quando o padeiro não estava olhando, e procurava se aquecer batendo as asas.

Mesmo assim ela foi enfraquecendo, até que percebeu que ia morrer. Não tinha energia nem para pousar no ombro do Príncipe Feliz mais uma vez.

— Agora me despeço, querido Príncipe, adeus — disse ela. — Só lhe peço uma coisa: posso beijar suas mãos?

— Que bom que você vai para o Egito afinal. Ficou tempo demais por aqui. Mas quero que me beije os lábios, pois eu a amo — falou o Príncipe.

— Não é para o Egito que estou indo, mas sim para a Casa da Morte. A Morte é irmã do Sono, não é verdade? — disse a Andorinha.

Ela então beijou o Príncipe Feliz nos lábios e caiu morta aos seus pés. Nesse exato momento, ouviu-se um barulho dentro da estátua, como se algo se

* GEADA: orvalho que congela e forma uma superfície branca sobre a cidade

Co

leçã

o A

vent

uras

Gra

ndio

sas

Principe Feliz.indd 16 12.03.10 10:11:44

Page 17: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

17

O P

rínc

ipe

Feliz

quebrasse. Na verdade, o coração de chumbo do Príncipe Feliz rachou. A geada estava mesmo forte.

Na manhã seguinte, o Prefeito e seus Conselheiros davam uma volta pela cidade, quando passaram pela estátua.

— Meu Deus! Que coisa horrível está o Príncipe Feliz! — admirou-se o Prefeito.

— É mesmo, que horrível! — concordaram os Conselheiros, que tinham sempre a mesma opinião do Prefeito.

— O rubi caiu do alto da espada, os olhos de safira não existem mais e seu corpo perdeu as folhas de ouro. Está OPACO e sem vida, praticamente um mendigo! — exclamou o Prefeito.

— Não passa de um enorme mendigo! — ANUÍRAM os Conselheiros.— Além de tudo isso, há um pássaro morto aos seus pés — continuou

o Prefeito. — Vamos já LAVRAR um documento que proíba pássaros de morrerem aqui!

O Secretário da cidade anotou a ordem de seu superior e, dias depois, a estátua do Príncipe Feliz foi arrancada do pedestal. O Professor de Artes disse:

— Ela não serve para nada, já que não tem mais beleza.Uma enorme fornalha foi usada para derreter a estátua, e uma comissão se

formou para decidir o que seria feito com o metal. — Vamos fazer outra estátua. Uma com a minha imagem — sugeriu um dos

Conselheiros.— Sim, outra estátua, mas com a minha imagem — disse cada um dos outros

Conselheiros, que não chegaram a nenhum acordo ou conclusão. O responsável pelo serviço de FUNDIÇÃO da cidade achou uma coisa muito

estranha, e comentou com seus SUBORDINADOS:— Este coração de chumbo não derrete na fornalha. Vamos jogá-lo fora —

ordenou. E o coração do Príncipe foi atirado no mesmo lixo onde tinham jogado o corpo da Andorinha.

No céu, Deus pediu a um dos seus Anjos:

* OPACO: sem brilho* ANUÍRAM: concordaram* LAVRAR: redigir, escrever* FUNDIÇÃO: oficina que lida com metal fundido* SUBORDINADOS: subalternos, empregados, inferiores em nível

hierárquico dentro de uma empresa ou local de trabalho

Principe Feliz.indd 17 12.03.10 10:11:44

Page 18: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

18

— Vá até a cidade e me traga as duas coisas mais preciosas que encontrar.

O Anjo desceu até o monte de lixo e levou o coração e a Andorinha morta. Deus, muito satisfeito, disse:

— Você escolheu bem. No meu Jardim do Paraíso este pequeno pássaro cantará para sempre, e em minha Cidade de Ouro o Príncipe Feliz me LOUVARÁ.

* LOUVARÁ: aplaudirá, glorificará, enaltecerá, exaltará

Co

leçã

o A

vent

uras

Gra

ndio

sas

Principe Feliz.indd 18 12.03.10 10:11:44

Page 19: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

19

O P

rínc

ipe

Feliz

Roteiro de leitura

No primeiro capítulo, várias pessoas visitam a estátua do Príncipe Feliz. Quem eram elas? O que disseram diante da estátua?Como era a estátua? O que ela tinha de especial para enfeitá-la?O Professor de Matemática não gostava que crianças sonhassem. O que você acha disso? Você sonha? Costuma se lembrar de seus sonhos? Conte um de seus sonhos aos seus colegas de classe e escute os sonhos que seus colegas irão te contar. Há pontos em comum entre os sonhos? Por que a Andorinha não foi para o Egito com suas amigas? O que suas amigas acharam disso?Como era o namoro da Andorinha e do Bambu? Quanto tempo durou o relacionamento deles?Por que a Andorinha resolveu abandonar o Bambu? Você acha que ela tinha razão?Aos pés do Príncipe Feliz, a Andorinha achava que gotas de chuva pingavam sobre ela. O que eram os pingos, na verdade?Quem era o Príncipe Feliz, e o que sua estátua estava fazendo ali? Por que ele chorava?Durante a vida do Príncipe, a Felicidade era sinônimo de prazer. Qual a sua opinião sobre isso? O que é preciso na vida para ser feliz?O que o Príncipe Feliz deu à costureira e seu filho doente? Por que, depois de ser mensageira do Príncipe, a Andorinha parou de sentir frio? Você já ajudou alguém que precisasse? Como foi? Como você se sentiu?Por que o Professor de Ornitologia se espantou ao ver a Andorinha? Por que os pardais a chamavam de “estrangeirinha”? Pesquise por que os pássaros migram durante o ano para diversas regiões, depois faça um cartaz sobre isso com recortes de revista e textos explicativos para expor na escola.O que o Príncipe Feliz deu ao jovem escritor? Por que ele fez isso e por que a Andorinha relutou em ajudá-lo?O que o Príncipe Feliz deu à pequena vendedora de fósforos? Por que a Andorinha resolveu ficar com ele para sempre depois de ser sua mensageira pela terceira vez?

1)

2)3)

4)

5)

6)

7)

8)

9)

10)

11)

12)

13)

14)

15)

16)

Principe Feliz.indd 19 12.03.10 10:11:44

Page 20: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

20

O que a Andorinha descreve sobre o Egito? De qual das histórias de viagens da Andorinha você mais gostou? Por quê? No capítulo 6 o Príncipe diz: “A miséria é o maior mal que existe”. Você concorda com ele? A quem o Príncipe Feliz deu as folhas de ouro que revestiam seu corpo? Por quê?Por que Deus achava que as duas coisas mais preciosas que existiam eram a Andorinha morta e o coração rachado do Príncipe Feliz? Discuta com seus colegas e deem suas opiniões.

17)

18)

19)

20)

Co

leçã

o A

vent

uras

Gra

ndio

sas

Principe Feliz.indd 20 12.03.10 10:11:44

Page 21: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

O GIGANTE EGOÍSTA

Principe Feliz.indd 21 12.03.10 10:11:44

Page 22: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

22

* PORTENTOSAS: extraordinárias, assombrosas* À MERCÊ: sob o domínio* OGRO: criatura fantástica e comilona que assusta as crianças,

bicho papão* ABALO SÍSMICO: terremoto

Capítulo 1

O GRANDE INVERNOTodas as tardes, quando voltavam da escola, as crianças gostavam de

brincar no jardim do Gigante. Era uma área verde magnífica. Tinha um belo gramado muito verde, canteiros com flores multicoloridas e árvores centenárias. Eram dezenas de PORTENTOSAS árvores que fascinavam pelo tamanho dos troncos, pela força dos galhos, que pareciam enormes braços musculosos, e pela quantidade de folhas das copas.

As crianças brincavam de se esconder atrás dos caules, corriam entre os canteiros e subiam nos galhos com a habilidade feliz de pequenos macacos. Riam muito entre uma brincadeira e outra e adoravam observar os pássaros e ouvir o canto dos passarinhos, que também visitavam o jardim do Gigante.

O jardim tinha esse nome porque seu dono realmente era um gigante. Um homem muito alto e forte, cerca de quatro vezes maior do que as crianças. Ele havia cultivado as flores, plantado as árvores e cuidado da grama. O jardim era um de seus orgulhos, e ele não gostava que as crianças passassem por lá. Ficava irritado com os gritos, temia que elas estragassem os bancos de madeira ou as flores.

Mas, para a sorte da criançada, o Gigante dono do jardim tinha ido viajar e aquela linda praça de cores e sons estava À MERCÊ dos pequeninos moradores do bairro.

O Gigante tinha ido visitar seu grande amigo OGRO e ficou no país dos Ogros por sete anos. Durante todo esse tempo as crianças puderam brincar livremente, mas um dia o Gigante voltou. As crianças subiam e desciam das árvores, rindo enquanto o vento soprava seus cabelos, mas, de repente, a terra começou a tremer!

Elas se assustaram, achando que pudesse ser um ABALO SÍSMICO, e se assustaram ainda mais quando viram que o barulho e a trepidação do solo eram causados pelo Gigante que se aproximava!

— TUM! TUM! TUM! — era o som que os passos dos enormes pés faziam.E as crianças começaram a correr.

Co

leçã

o A

vent

uras

Gra

ndio

sas

Principe Feliz.indd 22 12.03.10 10:11:45

Page 23: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

23

O G

igan

te E

goís

ta

* RUDE: grossa, áspera, grave* LUFADAS: rajadas, sopros repentinos* INUSITADO: incomum, diferente, inesperado

— Mas o que é isso?! O que está acontecendo aqui? — perguntava o Gigante com sua RUDE voz de trovão.

A criançada corria e gritava, pulando as árvores e tentando escapar dali o mais rápido possível.

— Meu jardim é o meu jardim! O que é meu é meu! Só eu posso brincar aqui. Só eu posso entrar aqui! Fora daqui, seus pirralhos! Fora!

As palavras saíam da boca do Gigante acompanhadas de LUFADAS de vento quente. Era o hálito enfurecido do Gigante que punha as crianças para correr. Muitas tropeçaram durante a fuga, ralando os joelhos.

A cena toda durou menos de dois minutos e o Gigante ficou sozinho em seu jardim florido, cheio de árvores seculares, pássaros cantantes e coloridos. Então ele disse:

— Ah, mas que maravilha! Agora sim estou em paz e muito feliz. Aquelas crianças estavam me deixando louco.

Depois ele ergueu um muro muito alto em volta do jardim e colocou uma placa:

ENTRADA PROIBIDAINVASORES SERÃO

PROCESSADOS

Era um gigante muito egoísta!As crianças ficaram sem nenhum lugar para brincar. Elas tentaram brincar na

rua, mas era cheia de buracos, pedras, gente passando e perigos. Muitas mães não deixavam seus filhos se arriscarem numa situação daquelas, outras deixavam, mas ficavam com o coração na mão.

Quando passavam em frente ao muro, elas pensavam:— Fomos tão felizes dentro do jardim. Ele é tão bonito. Que pena que sua

beleza fique escondida.O tempo passou, veio o inverno e depois a primavera chegou. Com ela

algo muito INUSITADO aconteceu. Por todos os lugares os pássaros cantavam e as flores se abriam. A primavera enchia o mundo de cores, sons e cheiros, menos dentro do jardim, onde ainda era inverno.

Principe Feliz.indd 23 12.03.10 10:11:45

Page 24: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

Co

leçã

o A

vent

uras

Gra

ndio

sas

24

☛ ZUNINDO: deslocando-se com velocidade e produzindo um som agudo com seu movimento

☛ BANDA MARCIAL: grupo de músicos formado apenas por tambores e clarins

únicas pessoas que corriam e brincavam entre os galhos das árvores. A Neve cobria o chão com uma camada grossa e o Gelo encapava as árvores com uma camada de frio que de longe parecia prata. Cansados da solidão do jardim gelado, a Neve e o Gelo convidaram o Vento Frio para ficar com eles no antigo jardim florido. O Vento veio e gostou do local:

— Este lugar é demais! — gritava o Vento, enquanto corria dia e noite por entre as árvores ZUNINDO com fúria. — Vamos convidar o Senhor Granizo para passar por aqui! Ele vai adorar!

O Vento foi correndo chamar o amigo Granizo e, quando este chegou, o telhado da casa começou a sofrer. Todos os dias, por umas três horas seguidas, o Senhor Granizo despejava seu bombardeio de pedras de gelo sobre a casa e o jardim. O Vento, a Neve e o Gelo riam alegres, admirando a chuva de pedras.

Em alguns dias a casa do Gigante estava com quase todas as telhas quebradas ou rachadas. Vendo o estrago, o Senhor Granizo gargalhava, soltando um bafo frio de gelo e sacudindo seu terno cinza escuro.

Dentro de sua enorme casa, o Gigante não entendia mais nada:— Não sei por que este inverno se prolonga tanto! A primavera já deveria

ter começado! Por que tanta fúria do clima? Não vejo a hora de esse frio todo ir embora! — ele falava olhando pela janela o seu jardim tomado pelo branco.

Mas, naquele ano, nem a primavera nem o verão apareceram no jardim do Gigante. Apenas o inverno dominava a paisagem do lado de dentro do muro, onde a Neve dançava na companhia de seus amigos Gelo, Vento Frio e Senhor Granizo.

Capítulo 2

UMA GRANDE LIÇÃOQuando o outono chegou, o Gigante estava desesperado. O frio era tanto

que ele passava o dia inteiro enrolado em seus cobertores e com a lareira acesa. Foi no momento de maior angústia que o Gigante ouviu uma música bonita, vinda da rua. Era a BANDA MARCIAL do Rei que fazia evoluções na rua, ali, logo depois do alto muro do Gigante.

Curioso, ele esfregou a mão na janela embaçada e espiou. Há muito

Principe Feliz.indd 24 15/06/11 16:34

Page 25: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

25

O G

igan

te E

goís

ta

* BOQUIABERTO: de boca aberta, admirado, pasmo* ESPLENDOR: grandeza, brilho intenso* MIÚDO: pequeno* FAUNA: conjunto de espécies animais de uma região* FLORA: conjunto de espécies vegetais de uma região

Curioso, ele esfregou a mão na janela embaçada e espiou. Há muito tempo o Gigante só ouvia o vento, mas agora ele ouvia música e seus olhos viam crianças nos galhos das árvores. Durante todo o verão elas tinham feito um buraco no muro e agora se arrastavam e passavam por ele para ter acesso ao jardim. O Gigante não acreditava. Em cada árvore tinha um moleque e as árvores estavam muito felizes com a volta das crianças. Elas se sacudiram, deixando o gelo cair no chão para rapidamente começarem a florescer.

Era espantoso ver a mudança de cores e cheiros no jardim. Assustados, o Gelo e a Neve derreteram de medo, o Vento Frio soprou para longe, o Senhor Granizo parou de apedrejar a casa do Gigante e foi embora. O céu voltou a ficar azul no jardim do Gigante, e centenas de passarinhos das mais diversas cores voltaram a voar e pousar nos galhos das árvores. Muitos faziam seus ninhos ali, enquanto abelhas aterrissavam nas flores. Crianças corriam alegres!

Mas ainda havia o Gigante e, de dentro da casa, ele olhava aquela movimentação BOQUIABERTO. Pela janela ele observou que todas as árvores tinham recuperado o ESPLENDOR original, todas menos uma. Em um dos cantos do jardim, havia uma árvore ainda congelada. Era a única árvore sem crianças nos galhos. No seu tronco havia um garotinho tentando subir, mas ele era muito pequeno e não conseguia.

A árvore tentava baixar seus galhos o máximo que podia, mas o menino era muito MIÚDO e não conseguia subir. Triste, começou a chorar. Olhando a cena, foi fácil para o Gigante entender o que tinha acontecido em seu jardim.

— Todas essas crianças adoram essas árvores e elas adoram as crianças! — dizia o Gigante para si mesmo. — Mas eu fui muito egoísta e ergui um muro, separando as crianças da Natureza. Então as árvores ficaram tristes e se recusaram a receber a primavera e o verão, permanecendo cheias de neve e gelo.

Coçando o queixo, o Gigante continuava pensando:— Quando as crianças criaram coragem e entraram no jardim, as árvores se

livraram do frio e voltaram a ser felizes. Toda a FAUNA e toda a FLORA voltaram

Principe Feliz.indd 25 12.03.10 10:11:46

Page 26: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

26

* ECOSSISTEMA: conjunto de relações mútuas entre fauna e flora* POLINIZANDO: transportar o pólen de uma flor para outra,

facilitando a reprodução das flores* PAIRAR: mover-se vagarosamente* PÉ ANTE PÉ: devagar, silenciosamente, na ponta dos pés

a funcionar. Todo o ECOSSISTEMA voltou a ser o que era antes. Os pássaros, as abelhas, até as minhocas voltaram!

O Gigante tinha um sorriso no rosto, enquanto pensava em algumas trocas entre fauna e flora que davam equilíbrio para o meio ambiente. As minhocas deixavam a terra fértil, a terra fértil produzia flores bonitas, que atraíam abelhas. As abelhas iam de flor em flor, POLINIZANDO o jardim inteiro.

Segurando uma lágrima, o Gigante decidiu reparar seu erro. Ele acreditava que errar era algo normal e que consertar o erro era um dever dos Gigantes. Seu plano era simples, sair da casa, atravessar o jardim, colocar o garoto em cima da árvore e depois derrubar o muro. Ele tinha sido egoísta com as crianças e a primavera tinha-lhe dado uma lição sobre o egoísmo. Estava na hora de fazer tudo voltar ao normal.

Então abriu a porta da casa bem devagar, para não assustar as crianças, e deu dois passos leves no jardim, sem ser percebido, mas no terceiro passo uma criancinha o viu e começou a gritar. Logo dezenas de crianças gritavam e corriam sem parar, tentando fugir pela fresta que tinham feito no muro, mas a passagem era muito estreita para todas elas.

Sem as crianças o jardim congelou de novo, já que a Neve e o Vento Frio retornaram. O silêncio voltou a PAIRAR sobre o jardim. Todos haviam fugido, menos o garotinho que tentava subir na árvore. Ele não tinha visto nada, pois seus olhos estavam cheios de lágrimas, e não tinha escutado nada porque estava tão concentrado em subir na árvore, que não percebeu a correria dos outros.

Assim, o Gigante pôde chegar atrás dele, PÉ ANTE PÉ, e com o polegar e o indicador, pegou o menino pelas costas e o colocou num galho bem firme, no alto da árvore. O menino secou as lágrimas e viu a cidade lá do alto. Era linda!

No entanto, ele tomou um susto! Ao se virar, deu de cara com o Gigante. Mas, como estava feliz, o menino esticou os braços, suas mãos tocaram o rosto do Gigante, e ele beijou sua enorme bochecha. A árvore se descongelou e começou a florescer. Pássaros de todas as cores e tipos cantavam em seus galhos.

— Muito obrigado, senhor Gogante — disse o menino, agradecido pela ajuda para subir na árvore.

Co

leçã

o A

vent

uras

Gra

ndio

sas

Principe Feliz.indd 26 12.03.10 10:11:46

Page 27: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

27

O G

igan

te E

goís

ta

O Gigante riu e falou:— Meu nome é Gigante, mas você pode me chamar de Gogante se quiser.

Ah, e você não precisa me agradecer nada! Fui eu quem ganhou o maior presente hoje. Eu que tenho que agradecer a todos vocês.

As outras crianças que ainda estavam no jardim tentando passar pelo buraco apertado viram a cena e soltaram um “Ohhhh”. O Gigante não era mais egoísta e mau! A cena as encorajou a voltar a brincar, e logo todas as árvores foram voltando a ser verdes e o jardim, a ter flores.

Capítulo 3

O PEQUERRUCHOAs crianças passaram o resto da tarde brincando no jardim, enquanto o

Gigante destruía a placa de “entrada proibida”, derrubava o enorme muro que havia construído e levava o ENTULHO para bem longe. Quando ele terminou o trabalho, o sol já se punha no horizonte e as crianças deixavam o jardim, cansadas de tanto brincar:

— Estamos indo embora. Foi um dia muito legal — disse uma garotinha.— Muito obrigado, seu Gigante — agradeceu outra.O Gigante acenava contente, enquanto seus olhos procuravam pelo garoto que

havia ajudado a subir na árvore. O beijo que recebera na bochecha deixara aquele ser DESCOMUNAL muito emocionado, por isso tinha muito carinho pelo menino.

— Onde está o PEQUERRUCHO?— Que pequerrucho? — perguntou uma garota.— Aquele menino bem pequeno que eu ajudei a subir na árvore bem do

canto, lembram?— Sim, eu lembro dele. Já deve ter ido embora. Ele deve ser novo aqui

no bairro, ninguém nunca o tinha visto antes. Mas ele é muito corajoso, pelo que sei, foi ele o primeiro a entrar no jardim. Nós só o seguimos — respondeu o mais crescido dos meninos.

— Alguém o viu indo embora? — perguntou o Gigante.

* ENTULHO: restos de concreto, pedras, tijolo, madeira etc.* DESCOMUNAL: colossal, fora do comum, extraordinário* PEQUERRUCHO: muito pequeno

Principe Feliz.indd 27 12.03.10 10:11:46

Page 28: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

28

Ninguém havia visto. O Gigante então falou:— Garotada, durante muito tempo fui egoísta e MESQUINHO, não deixando

que vocês brincassem aqui, mas hoje mudei. Vocês são bem-vindos neste jardim, sempre que quiserem brincar aqui.

As crianças começaram a pular, assobiar e gritar, abraçadas:— Obaaaaa! Viva o Gigante!! — diziam.Depois que elas foram embora, o Gigante ainda ficou uns trinta minutos

varrendo o jardim. De vez em quando olhava para a rua, na esperança de ver o pequerrucho com seus pais. Aquele menino havia mudado sua vida para melhor e ele se sentia muito grato por isso.

Nas férias, as crianças brincavam por longas horas no jardim. Durante o período escolar, elas passavam pelo jardim após a aula. Mas o pequeno garoto nunca mais apareceu por lá, nem foi visto pelo bairro. O Gigante era muito amável com as crianças, e às vezes até brincava com elas deitando-se no chão, fingindo-se de montanha, de terremoto, carregando várias delas nas costas e colocando-as nos galhos mais altos das árvores.

Muitas vezes as crianças o ouviam dizer:— Onde será que o pequerrucho está agora, hein? Ou ainda:— Alguém por acaso viu o pequerrucho hoje?Mas as crianças balançavam a cabeça negativamente e continuavam

brincando.Assim, o tempo foi passando. O rosto do Gigante foi se enchendo de

grandes rugas, que pareciam rios sem água, e seus cabelos ficaram brancos. Quando estava bem velhinho, já não tinha forças para brincar com as crianças, que eram netas daquelas crianças que ele havia uma vez expulsado do jardim.

Mesmo sem poder brincar, o Gigante adorava sentar na varanda de sua casa e assistir a criançada correr, sorrir e conversar. Ele dizia que tinha centenas de flores em seu jardim, mas as crianças eram as flores mais lindas.

Em uma manhã de inverno, o Gigante estava tomando o seu café da manhã enquanto olhava pela janela. Com o passar dos anos, ele tinha aprendido a gostar do inverno de novo. Tinha entendido que o inverno é quando a primavera dorme e as flores descansam, e que sem esse descanso merecido o brilho, a luz, as cores e o cheiro da primavera não seriam tão bons.

Então, enquanto se aquecia com uma xícara de café, o velho e bom Gigante olhava a neve no jardim. Foi quando se viu obrigado a esfregar os olhos e depois a passar a manga do blusão na vidraça, para limpar a janela.

* MESQUINHO: que não é generoso, infeliz

Co

leçã

o A

vent

uras

Gra

ndio

sas

Principe Feliz.indd 28 12.03.10 10:11:46

Page 29: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

29

O G

igan

te E

goís

ta

— Estou vendo bem ou estou imaginando coisas? — perguntou-se.Para responder sua pergunta, ele abriu a porta e foi para o jardim. Sim, ainda

enxergava bem o velho Gigante. A antiga e grande árvore do canto, a árvore do menino, estava verdejante de tantas folhas e dourada de tantas frutas. Sem acreditar no que via, o Gigante reparou que, em frente à árvore que contrariava o inverno, estava o menino, o pequerrucho que há muitos anos tinha mudado sua vida.

— Mas como? — BALBUCIAVA o Gigante. — Tantos anos se passaram... Você já deveria ser um adulto!

O menino apenas sorria.O Gigante se aproximou dele e ficou de joelhos para que seus olhos

cansados ficassem mais perto do garoto.— Oi, Gogante — disse o menino, sorrindo. O Gigante sorriu com grandes lágrimas alegres no rosto. Mas, quando se

aproximou da criança, seu rosto ficou vermelho, seus olhos arregalados e sua mão se fechou com fúria, pronta para dar um soco:

— Quem foi que fez isso em você! — gritou o Gigante, apontando para as mãos do menino. — Quem foi que lhe feriu? É só você me dizer que eu vou lá e acabo com ele!

As palmas das pequenas mãos do menino estavam feridas, assim como seus pezinhos. Eram CHAGAS, que pareciam ter sido feitas por pregos.

— Vamos, meu pequenino amigo, conte quem lhe fez isso e eu pego minha espada enorme e arranco a cabeça do miserável!

— Não é preciso — disse o menino, com uma voz muito doce. — Essas feridas são feridas do amor.

— Quem é você? — perguntou o Gigante, com a voz trêmula, curvando-se um pouco.

A criança sorriu e disse:— Um dia você me deixou brincar em seu jardim, hoje eu vim para te buscar.

Você vai brincar no meu jardim, que é o Paraíso.Quando, ao final da tarde, depois da escola, as crianças passaram no jardim

para brincar, elas encontraram o corpo do Gigante deitado embaixo da árvore do menino. Ele estava morto, mas tinha o rosto PLÁCIDO. Muitas flores brancas caíam da árvore para cobri-lo.

* BALBUCIAVA: falava com a voz baixa, sem precisão na articulação das palavras

* CHAGAS: feridas abertas ou cicatriz deixada por algum ferimento* PLÁCIDO: calmo, sereno, tranquilo

Principe Feliz.indd 29 12.03.10 10:11:46

Page 30: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

30

Roteiro de leitura

Quem são os dois principais personagens da história?Por que o Gigante não queria que as crianças brincassem no jardim?A alegoria é uma forma de se expressar dando voz a objetos, animais ou fenômenos da Natureza. Quais são as personagens alegóricas desta história? Pensando também na história anterior, quais eram as personagens alegóricas de O Príncipe Feliz? O que fez o Gigante mudar de ideia?Quem era o pequeno menino? Que elementos do texto o ajudaram a chegar a uma resposta?Para o Gigante, o que é a primavera? Qual a sua brincadeira preferida? Você brinca dentro ou fora de casa?Qual era a brincadeira que as crianças da história mais gostavam?Você já plantou alguma árvore ou semente? Conte como, onde foi e o que aconteceu. Ela brotou?Quando você tem um brinquedo, um alimento ou algo que os outros não têm, como você age? Você guarda o que é seu só para você ou compartilha com os outros?Você já foi egoísta com alguém? Com quem? Como foi?E você já foi vítima do egoísmo de alguém? Conte sua experiência.O antônimo de egoísta é altruísta. Em sua vida, você tem ou teve momentos de altruísmo? O Gigante viveu dias terríveis devido à fúria do clima. Por que a primavera demorou para chegar à casa dele?Atualmente, em nosso planeta, o clima tem mudado rapidamente devido ao aquecimento global. Pesquise quais são as causas do aquecimento global.Pesquise também o que você pode fazer para diminuir o aquecimento global.Qual o trecho da história que você mais gostou? Por quê?Você gostou do final? Se você fosse o escritor, como terminaria essa história? Reescreva o final em uma redação de até trinta linhas e, se quiser, cole na contracapa de seu livro.Forme uma dupla e escolha uma passagem de uma das histórias, O Gigante Egoísta ou O Príncipe Feliz para representar para a classe.Com quem você acha que se parece mais, com o Gigante ou com o Príncipe? Por quê?

1)2)3)

4)5)

6)7)8)9)

10)

11)12)13)

14)

15)

16)

17)18)

19)

20)

Co

leçã

o A

vent

uras

Gra

ndio

sas

Principe Feliz.indd 30 12.03.10 10:11:46

Page 31: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

31

O G

igan

te E

goís

ta

O PRÍNCIPE FELIZ / O GIGANTE EGOÍSTA

Oscar Wilde

BIOgRAfIA DO AuTOR

Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde nasceu em 16 de outubro de 1854 em Dublin, na Irlanda. O jovem, que mais tarde se tornaria uma referência na literatura inglesa do século XIX, começou a estudar língua e literatura grega em Dublin. Elogiado e premiado nessa área, conseguiu uma bolsa de estudos para estudar em Oxford no ano de 1874, onde também se destacou e ganhou prêmios, um deles em 1878, por seu poema “Ravenna”. Durante o tempo de estudo, Wilde fundou o movimento Estético, que combatia a arte vitoriana e pregava o conceito da “arte pela arte”, uma atitude moral com brilho novo, sem apego a tradições.

Depois de se formar, Wilde viajou para a Itália e a Grécia, indo em seguida morar em Londres no ano de 1879. Publicou nessa época seus primeiros textos clássicos. Aos poucos sua produção literária foi crescendo e Wilde se tornou uma figura importante nos meios sociais e literários de Londres. Publicou dois livros de contos: O fantasma de Canterville (1887) e O príncipe feliz e outras histórias (1888), além do único romance, O retrato de Dorian Gray (1891). Alguns livros marcaram sua carreira como dramaturgo: O leque de Lady Windermere (1892), Uma mulher sem importância (1893) e A importância de ser prudente (1895).

Oscar Wilde era conhecido não só por seu trabalho, mas também por sua aparência física. Muito alto e de personalidade forte, vestia-se de maneira avessa aos costumes da moda, usando roupas coloridas e excêntricas durante festas e eventos sociais. Rejeitava a aristocracia e por isso gostava de chocar e ter liberdade de ser quem ele quisesse, sem regras e conveniências.

Embora tenha se casado com Constance Lloyd, também irlandesa, e tido dois filhos, havia rumores em Londres de que Oscar Wilde fosse homossexual. No ano de 1895, enfrentou uma disputa jurídica com o Marquês de Queensbury, que o acusou de manter relações com seu filho, Lord Alfred Douglas. Revelada a identidade de seu amante, Oscar Wilde foi condenado a dois anos de trabalhos forçados por homossexualismo. Durante esse período, escreveu um de seus poemas mais marcantes, publicado em 1898, “A balada de cárcere de Reading”, no qual escreve a vida na prisão, e um texto em forma de carta a Lord Alfred, chamado De profundis. Morreu em Paris em 30 de novembro de 1900. Estava pobre e sozinho, abandonado pela família e os amigos, principalmente esquecido do grande público.

Principe Feliz.indd 31 12.03.10 10:11:47

Page 32: O PRÍNCIPE FELIZ - Rideel · Muita gente sofre e passa necessidade. O Príncipe Feliz soltou mais duas lágrimas, depois completou: — Apesar de meu coração agora ser de chumbo,

Principe Feliz.indd 32 06/06/11 17:20