o princ pio miseric rdia

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1 CENTRO UNIVERSITÁRIO SÃO CAMILO O PRINCÍPIO MISERICÓRDIA: um estudo sobre a contribuição teológica de Jon Sobrino para a Bioética na América Latina ROGÉRIO JOLINS MARTINS SÃO PAULO, 2008

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Espiritualidade

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    CENTRO UNIVERSITRIO SO CAMILO

    O PRINCPIO MISERICRDIA: um estudo sobre a contribuio teolgica de

    Jon Sobrino para a Biotica na Amrica Latina

    ROGRIO JOLINS MARTINS

    SO PAULO, 2008

  • 2

    ROGRIO JOLINS MARTINS

    O PRINCPIO MISERICRDIA: um estudo sobre a contribuio teolgica de Jon Sobrino para a

    Biotica na Amrica Latina

    Dissertao apresentada ao curso de Mestrado em Biotica do Centro Universitrio So Camilo, orientada pelo prof. Dr. Mrcio Fabri dos Anjos, como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Mestre.

    SO PAULO, 2008

  • 3

    ROGRIO JOLINS MARTINS

    O PRINCPIO MISERICRDIA: um estudo sobre a contribuio teolgica de Jon Sobrino para a

    Biotica na Amrica Latina

    Orientador: ____________________________

    Co-orientador: _________________________

  • 4

    La misericordia no es suficiente, pero es absolutamente necesaria en un mundo que hace todo lo posible por ocultar el sufrimiento y evitar que lo humano se defina

    desde la reaccin a ese sufrimiento. La respuesta al dolor de los pobres es una exigencia tica,

    pero es adems una prctica salvfica para quienes se solidarizan con los pobres. Quienes hacen eso recobran con frecuencia el sentido profundo de su propia vida, que lo

    crean perdido; recobran la dignidad de ser hombres integrndose de alguna forma en el dolor y

    sufrimiento de los pobres; reciben de los pobres, de forma insospechada, ojos nuevos para ver la verdad ltima de

    las cosas, e nuevos nimos para recorrer caminos desconocidos e peligrosos...

    La raz, entonces, de la solidariedad est en aquello que desencadena corresponsabilidad humana, que hace de esa corresponsabilidad una exigencia tica ineludible, y del

    ejercicio de esa corresponsabilidad algo bueno, plenificante y salvfico. Jon Sobrino

  • 5

    Dedicatria

    A Jon Sobrino que atravs do seu testemunho humilde de fidelidade e

    comprometimento com os pobres situa o seguimento de Jesus de Nazar, o Cristo, no cenrio atual da Amrica Latina, caracterizado pela extrema pobreza, gritante

    desigualdade social e embrutecimento nas relaes. Seu imperativo a necessidade de transformao em todos os nveis, os quais precisam ser repensados, constantemente, a

    partir da misericrdia que deve ser historizada de acordo com quem o ferido no caminho. A atualidade do seu pensamento, com a originalidade do princpio

    misericrdia, mostra o horizonte que d possibilidade de intercmbios com outros saberes. Sobrino ajuda a redescobrir a face humana de Jesus,

    cheia de ternura para com os pobres, ao mostrar que extra pauperes nulla salus, ou seja, que as relaes saudveis

    passam, necessariamente,

    por inserir as motivaes do pobre como critrio nas tomadas de decises. Aos pequenos, desse modo, Sobrino devolveu vida e esperana,

    e atravs dele os pobres encontram voz.

  • 6

    Agradecimento

    Ao Deus de Jesus de Nazar que me inspira no comprometimento em meio aos meus irmos crucificados na Amrica Latina.

    Ao prof. Dr. Pe. Mrcio Fabri dos Anjos pela pacincia, dedicao, estmulo e competncia na orientao deste estudo.

    Ao prof. Dr. Pe. Lo Pessini pela co-orientao deste trabalho em suas apreciaes.

    Aos membros das bancas de qualificao e defesa por aceitar o convite de colaborao crtica e empenho para o enriquecimento deste estudo.

    Ao Centro Universitrio So Camilo, na pessoa de seu reitor Prof. Pe. Christian de Paul de Barchifontaine, aos religiosos camilianos, professores, funcionrios e colegas de

    estudos por possibilitar as reflexes sobre o tema. Diocese de Colatina, na pessoa de Dom Dcio, pelo financiamento e apoio

    dispensados na realizao deste estudo. parquia Sagrado Corao de Jesus por disponibilizar tempo para leituras e

    reflexes.

    minha famlia por saber que est to longe e to prxima que somente o afeto filial pode perceber.

    todos que empreenderem na leitura deste trabalho...

  • 7

    ndice

    Introduo................................................................................................................... 11 I Biotica e princpios .............................................................................................. 14

    1.1 Sobre o termo princpio ........................................................................ 15 1.2 - Princpios e Fundamentos...................................................................... 18

    1.3 - A relevncia dos princpios no surgimento da Biotica ................................ 23 1.4 O paradigma principialista na Biotica........................................................ 28

    1.5 Alguns limites do principialismo ................................................................ 30 1.6 - A contribuio de outras tendncias na Biotica .......................................... 37 1.7 - O paradigma latino americano na Biotica................................................... 41

    II O princpio misericrdia ...................................................................................... 47 2.1 - Biografia e Pensamento de Jon Sobrino........................................................... 48 2.2 - Amrica Latina: um continente de realidades vulnerveis e povos crucificados56

    2.2.1 - A opresso como fenmeno histrico ....................................................... 60 2.2.2 - Pretenses colonizadoras no presente da Amrica Latina.......................... 65 2.2.3 - Em busca das causas da opresso ............................................................. 69 2.2.3.1 - O mercado............................................................................................. 70 2.2.3.2 - Mercado e idolatria................................................................................ 72 2.2.3.3 - O dolo e as vtimas ............................................................................... 72 2.2.3.4 - As vtimas e a lei ................................................................................... 73

    2.3 - O princpio misericrdia: uma experincia fundante ....................................... 76 2.3.1 - Anlise semntica do termo misericrdia ................................................. 81 2.3.2 - Aspectos da fundamentao teolgica do princpio misericrdia .............. 84 2.3.3 - A efetividade do princpio misericrdia ................................................... 89 2.3.3.1 - A misericrdia na vida pessoal .............................................................. 92 2.3.3.2 - A misericrdia na vida social................................................................. 93

    III Contribuio do princpio misericrdia biotica latino-americana .................... 96 3.1 - Biotica e novas perspectivas .......................................................................... 97 3.2 - Biotica e Teologia: reflexes, conflitos e contribuies ............................... 102

  • 8

    3.3 Algumas expresses bsicas do princpio misericrdia ................................. 109 3.3.1 - Responsabilidade.................................................................................... 110 3.3.1.1 - A co-responsabilidade das Igrejas na ao misericordiosa.................... 115 3.3.2 - Solidariedade.......................................................................................... 118

    3.3.3 - Perdo.................................................................................................... 123 3.3.4 - Cooperao ............................................................................................ 127

    3.3.4.1 - A cooperao acadmica ..................................................................... 131 3.3.4.2 - A cooperao na tecnologia ................................................................. 134 3.3.5 - Esperana............................................................................................... 139

    Reflexes finais ........................................................................................................ 149 Referncia Bibliogrfica ........................................................................................... 156

    Livros de Jon Sobrino: ...................................................................................... 156 Artigos, captulos de livro e outros escritos de Sobrino:..................................... 156 Artigos sobre Jon Sobrino: ................................................................................ 157 Bibliografia de apoio:........................................................................................ 158 Jornal: ............................................................................................................... 164 Pesquisa/Internet ............................................................................................... 164

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    Resumo

    Com o presente estudo quer-se verificar em que o substrato do pensamento teolgico de Jon Sobrino, em torno do princpio misericrdia, pode contribuir para a Biotica em contexto latino americano. A importncia de princpios para biotica uma moldura em que se desenha este estudo; e a experincia de vida soma densidade de

    reflexo teolgica em chave de libertao deste autor, justificam o investimento desta pesquisa conceitual bibliogrfica. Em um primeiro momento se considera a questo dos

    princpios em biotica, suas funes e limites, onde se insere o tema em questo. Em um segundo passo se recolhem pontos relevantes da experincia de vida deste autor e especificamente os aportes tericos que constroem seus conceitos e propostas em

    termos de princpio misericrdia. Entre os elementos-chave de seu pensamento esto a anlise de realidade social por ele assumida, capaz de evidenciar estruturas sociais injustas que geram sofrimento e morte para grandes segmentos da populao; a misericrdia entendida como capacidade de perceber as inequidades, de interagir com suas vtimas e de reagir em vista de transformao. Os resultados deste estudo mostram

    como o princpio misericrdia parte de uma espiritualidade que refora atitudes pessoais com efetiva incidncia nas relaes sociais, e sugere iniciativas de solidariedade e corresponsabilidade nos diversos mbitos das organizaes, incluindo os espaos acadmicos e da pesquisa cientfica. Embora proveniente de um pensamento cristo, para os diversos grupos tericos ou prticos, crentes ou ateus, o princpio misericrdia refora, no mnimo, uma grande convocatria responsabilidade tica. E certamente representa a proposta de um dinamismo espiritual para a biotica,

    especialmente quando em nossos dias cresce o consenso de que esta no pode prescindir de uma vigorosa espiritualidade.

    Palavras-chave: biotica, princpio misericrdia, pobres e biotica, inequidade.

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    Abstract

    In the present study one wants to verify in which substrate of the theological thought of Jon Sobrino, concerning the principle of mercy, can contribute to the Bioethics in the

    Latin American context. The importance of principles for bioethics is a frame in which one designs this study; and life experience adds up to the density of theological reflection on a key-type authors liberation, which justify the investment of this conceptual literature research . At first it considers the question of bioethic principles,

    their functions and limits, where the current theme is inserted. In a second step one gathers relevant points of the life experience of this author and specifically the

    theoretical contributions that build up his concepts and proposals with respect to the principle of mercy. Among the key elements of his thinking are the analysis of social

    reality that he assumed, which is able to highlight unfair social structures that generate suffering and death for large segments of the population; mercy is understood as the

    capacity to perceive the inequities, to interact with their victims and to react with respect to transformation. The results of this study show how the principle of mercy

    initiates out of spirituality that reinforces personal attitudes with effective impact on social relations, and suggests initiatives of solidarity and co-responsibility in various

    areas of the organizations, which include the areas of academic and scientific research. Although from a Christian thought, for the various theoretical or practical groups, believers or non-believers, the principle of mercy strengthens, at least, a summons to the great ethical responsibility. And certainly the proposal represents a spiritual

    dynamism for bioethics, especially in our days when a consensus that this cannot be divorced from a robust spirituality is growing.

    Keywords: bioethics, principle mercy, poor and bioethics, inequity.

  • 11

    Introduo

    A abordagem do tema O PRINCPIO MISERICRDIA: um estudo sobre a contribuio teolgica de Jon Sobrino para a Biotica na Amrica Latina instigante por levar a uma abertura de horizonte na relao entre Teologia e Biotica. Com o tema

    quer-se verificar em que o substrato do pensamento teolgico de Jon Sobrino, em torno do princpio misericrdia, pode contribuir para a Biotica em contexto latino americano. No decorrer da reflexo ser possvel notar os intercmbios, as relaes e pontes, de caminhos convergentes e tambm distintos onde se poder detectar a chave de contribuio que pretende o tema.

    A motivao para discorrer sobre o assunto parte da convergncia existente entre os dilemas de uma biotica inserida nas situaes da populao que vive na Amrica Latina e uma teologia com o carter de libertao ao se deixarem interpelar por uma

    realidade de opresso que compromete os anseios e a vida no somente de indivduos, mas de povos inteiros submersos sob o peso da violncia original do empobrecimento e

    suas razes.

    Um estudo sobre o princpio misericrdia na reflexo Biotica evoca naturalmente a biotica principialista norte americana. Isso se deve grande evidncia que assume o paradigma principialista no contexto da Biotica. Seguramente esta no foi a pretenso

    de Jon Sobrino como se poder verificar no desenvolvimento da reflexo. Entende-se, at mesmo pelas criticas j feitas biotica principialista, que estipular quantidades de princpios na linguagem revela-se hoje uma modalidade inadequada para tratar a temtica da biotica. Deve-se pensar tambm que o excesso de princpios pode levar a um esvaziamento de sentido do termo. Ao contrrio, o estudo sobre o princpio misericrdia pode servir para superar uma viso reducionista que se critica na proposta do principialismo.

    Muitas obras de Jon Sobrino foram consultadas para ajudar na compreenso do princpio sobriniano e seu possvel dilogo com a biotica na Amrica Latina. Contudo, a estrutura deste trabalho se inspirou fundamentalmente na obra El principio- misericordia. Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. Este livro de Sobrino, publicado em 1992, composto de dez captulos inter-dependentes e um eplogo, em que aborda a necessidade de se reagir com misericrdia em meio a tantos sofrimentos

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    provocados. Procura enfatizar a responsabilidade de fazer descer da cruz uma multido de povos crucificados e no somente de um indivduo, por meio do servio, do perdo, da esperana, da solidariedade, do amor, da cooperao, da graa.

    Sobrino fala da libertao dos pobres a partir do discurso epistemolgico de uma

    teologia conhecida por discernir o clamor da grande massa silenciada, da qual ele membro co-fundador. Com a proposta da misericrdia ele enfatiza no somente a

    necessidade de curar os feridos, mas tambm salv-los e libert-los que o que corresponde meta do ser humano, ou seja, dignificar a vida humana para mostrar o que o ser humano.

    A linguagem teolgica crist, de onde se situa o princpio misericrdia, pode revelar um limite para um dilogo com a pluralidade de morais modernas no contexto da biotica, mas pode tambm, atenta a esta percepo, surpreender e trazer sua grande

    contribuio, dado que o espao biotico interdisciplinar. O principio misericrdia impulsiona no somente para a reflexo, mas para a responsabilidade de agir ao se descobrir o verdadeiro sentido do que significa ser humano.

    Dentro deste quadro, assumimos como objetivos nesta pesquisa analisar possveis contribuies do pensamento de Jon Sobrino para a Biotica latino-americana e em que medida o princpio misericrdia pode se tornar referncia para a Biotica na Amrica Latina em vista de uma maior compreenso tica sobre o modo de viver de expressiva parte da populao no Continente. A reflexo de Jon Sobrino, particularmente em torno do princpio misericrdia, mostra que indispensvel fazer escolhas humanitrias que presidam a prpria anlise dos fatos. Sem estas, a interpretao e anlise ficam comprometidas e as situaes de injustia se tornam facilmente persistentes. Desta forma, o pensamento de Jon Sobrino pode ser transformado em contribuio substancial para a Biotica, particularmente em tempos de individualismo e diante da histrica realidade latino-americana de situaes estruturais de injustia.

    Tal pesquisa requer naturalmente um mtodo analtico-conceitual, com suas exigncias no que se refere ao princpio misericrdia, formulado pela teologia de Jon Sobrino e sua aplicabilidade em biotica. O procedimento metodolgico aparece na

    estrutura dos captulos que compem esta dissertao. O primeiro captulo procura fazer uma reviso do conceito princpio como

    categoria tica e desenvolver tal conceito elucidando sua insero na epistemologia da biotica, ao mesmo tempo em que se consideram algumas opinies crticas que cercam

    este tema.

  • 13

    O segundo captulo procura apontar a misericrdia como princpio e fora estruturante a se exercer em meio multido crucificada na Amrica Latina. O princpio misericrdia, na concepo sobriniana, significa a atitude bsica de Jesus em meio aos cados, feridos, maltratados, subjugados e sofridos. Este captulo inicia mostrando a experincia de vida de Jon Sobrino, que padeceu e ainda participa das durezas do viver, em meio a essa grande multido de povos dizimados no Continente. Em seguida analisa

    as estruturas que provocam as iniqidades e indignidades s quais denunciam o princpio misericrdia. Tal condio de sofrimento, o autor a atribui ao peso de uma estrutura poltico-econmica malfica e antimisericordiosa que exige sangue das vtimas para continuar se perpetuando. Por fim, num terceiro momento procura apontar o ser

    humano como razo ou fundamento de reativao para exerccio do princpio misericrdia.

    Situado o modus vivendi do Continente como preocupao fundamental do princpio misericrdia, o terceiro captulo aborda a contribuio que este quer oferecer biotica latino americana. Sua contribuio visa ampliar os horizontes em vista de superar o mysterium iniquitatis, como realidade provocada e fenmeno historicamente

    persistente, que deve ser feita com a mediao de um dilogo multi-disciplinar em vista da sobrevivncia e do respeito condio do ser humano. Aps um breve intercmbio

    de conceitos, preocupaes e anlises entre o saber teolgico e cientfico, o estudo prope algumas expresses bsicas como valores que devem internalizar o indivduo e s estruturas sociais como possibilidade de curar as feridas e efetivar a misericrdia fazendo descer da cruz os povos. As expresses bsicas vinculadas ao princpio misericrdia contemplam a justia enriquecida pela solidariedade, que pretende ser ainda mais abrangente indo busca da santidade primordial para se opor iniqidade e crueldade a imposta. Esta uma relao profcua que o princpio misericrdia quer estabelecer com a biotica de rosto latino americano.

    Deve-se por fim reconhecer nesta introduo que o tema em estudo bem mais

    amplo seja pela paradoxalidade e complexidade dos temas sociais que o envolvem seja pela amplitude e limites que configuram o dilogo entre-saberes a seu respeito.

    Contudo, mesmo que esta pesquisa no tenha podido alcanar tal abrangncia, parece poder trazer para este quadro uma contribuio especfica: um princpio capaz de potencializar a biotica no contexto da Amrica Latina a considerar mais adequadamente as vtimas, os pobres e sofredores, estigmatizados pela pobreza,

    indiferena, hipocrisia, explorao, violncia.

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    I Biotica e princpios

    A categoria princpio assume uma funo bsica neste estudo, como fundamento e guia de orientao para reflexo acerca do tema que se quer estudar. Trata-se do contexto de sofrimento devido s indignidades vividas no continente latino americano, a ser eticamente enfrentado. A interrogao sobre fundamentos ticos extremamente importante para se poder definir com preciso o lugar e o objeto sobre os quais se querem refletir. Princpio o ponto de partida ou alicerce a partir de onde se procura efetivar e deter no processo de conhecimento de uma realidade singular. como o substrato a partir de onde a reflexo se tece. Jon Sobrino ao propor o princpio misericrdia o faz no intuito de garantir essa base fundante donde o conhecimento deve partir para efetivar a superao das situaes persistentes e seus traumas.

    O primeiro captulo procura de incio, apontar a etimologia do termo princpio, sua insero e sua compreenso no percurso histrico da reflexo filosfica. Dada relevncia do termo para a compreenso deste estudo procurou-se abordar o seu fundamento e clarear o seu sentido. A categoria dos princpios tem forte relao com a biotica, por serem adotados por esta, e constituir um eixo de anlise desde o seu

    surgimento, sendo consideradas inicialmente como anlogas. O principialismo, como ficou conhecido, por suas posies intransigentes diante da resoluo de problemas

    diversos, comeou a sofrer crticas de pensadores aos redores do mundo pelos limites de anlise contextual. Assim, o paradigma que elucidou os princpios, levava em considerao um contexto, uma poca e uma situao especfica: a realidade clnica e a pesquisa em seres humanos.

    Uma crtica que se faz, com mais ou com menos contundncia, parte do pensamento elaborado a partir da realidade latino americana, por entender que os

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    princpios a serem evidenciados no Continente devero levar em conta os seus reais problemas, como as indignidades e situaes de morte e misria alarmantes vividas por sua populao.

    1.1 Sobre o termo princpio Talvez seja oportuno estar recordando, para aprofundamento e clareza desse

    estudo, a etimologia do termo princpio e melhor situar a reflexo que se prope. um atributo muito usado para caracterizar ou evidenciar alguma realidade, e por isso carece mais preciso.

    Semanticamente o termo princpio corresponde ao termo grego arkh, para significar origem, incio, comeo, ato de principiar, razo fundamental, base, teoria, preceito, opinio, modo de ver, elemento predominante na composio de um corpo orgnico, regras fundamentais gerais, momento ou local em que algo tem origem e

    assim por diante. No plural, princpios significam proposies diretoras de uma cincia, s quais todo o desenvolvimento posterior dessa cincia deve estar subordinado. No latim diz-se, principium, no plural, principia para designar a mesma realidade1.

    Na literatura filosfica o seu uso remonta ao incio da sistematizao da filosofia grega, com Anaximandro, afirmam Giovanni Reale e Dario Antiseri, quando acreditava

    que tudo tem princpio numa coisa chamada a-peiron, que algo infinito em sentido quantitativo no tempo e no espao e no sentido qualitativo ao entender as dimenses internas. Sustentava que o princpio (arch) o infinito e o indefinido do qual provm todas as coisas que existem. O a-peiron - aquilo que privado de limites pode ser

    compreendido como algo que no surgiu nunca, embora seja algo que exista. Para ele todos os ciclos da criao, evoluo e destruio eram fenmenos naturais que ocorriam

    a partir do ponto em que a matria abandonava e se separava do a-peiron. O a-peiron era essa realidade primordial e final de todas as coisas, que continha toda a natureza do divino em si prprio2.

    Cabe sinalizar, antes de prosseguir, que algumas outras culturas primitivas

    tambm usavam o sentido que tem o termo princpio com terminologias diferentes. o caso da cultura semita que, com toda amplitude de significado, em muito parece com o

    sentido dado compreenso grega. Falava-se da gnese para significar principio: ...

    1 CABRALII, Emmanuelis Pinni et RAMALII, Joseph Antonii. Magnum Lexicon Novissimum Latinum et

    Lusitanum. Parisiis: s/editora, 1873. Cf. tambm ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de Filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2003. 2 REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. Histria da Filosofia. So Paulo: Paulus, 1990, p. 31-34, vol. 1.

  • 16

    no princpio Deus criou... (Gn 1,1). Referia-se ao primeira que pudesse ser vislumbrada ou imaginada pelo homem, um nascimento, uma origem ou algum tempo antes que o universo passasse a existir.

    No vamos nos deter em assunto da antropologia cultural, mas isso pode sugerir

    que estabelecer critrios de vivncia no tempo e no espao parece ser uma necessidade humana. Assim buscam-se as causas primrias, elegem-se critrios orientadores de

    parmetros e decises que do carter de ltima razo para objetivar verdades que fazem ou no parte exclusiva do mundo do ser.

    O conceito princpio inserido na reflexo filosfica foi usado por Plato no sentido de fundamentar um raciocnio que representasse uma premissa maior de uma

    demonstrao. Para ele o princpio supremo se caracterizava como o Bem, o Uno ou o Belo. Tudo est fundado nesse princpio original donde procede a totalidade da

    Idia. D a impresso de um princpio que certo em si mesmo, ainda que indemonstrvel. Esse princpio no suscetvel de absolutamente nenhuma prova e no pode ser remetido a nenhuma proposio superior. Ele a fundao de toda certeza. Todas as outras proposies tero apenas uma certeza mediata e derivada dela; ela tem

    de ser imediatamente certa3. Num salto histrico, para Kant a afirmao de que o princpio um conhecimento

    universal serve de premissa para o raciocnio de carter meramente abstrato, com seu imperativo, Procede como se a mxima de tua ao devesse ser erigida, por tua vontade, em lei universal da natureza4. Esse imperativo moral denota uma abstrao e um formalismo vazio, que visa obrigao por obrigao, pouco se importando com as realidades concretas, podendo gerar problemas e dificuldades ao desenvolver uma doutrina imanente dos deveres. Um princpio que no possui especificidade suficiente deve ser considerado vazio e ineficaz. O sistema kantiano influenciou fortemente o pensamento Ocidental, com resqucios at nossos dias.

    O filsofo alemo Hans Jonas ao perceber a necessidade de situar o discurso moral

    na vida concreta dos cidados atuais prope a reformulao do imperativo kantiano do seguinte modo: Aja de modo a que os efeitos da tua ao sejam compatveis com a permanncia de uma autntica vida humana sobre a terra ou em sua forma negativa

    3 PLATO. A Repblica. Traduo de CORVISIERI, Enrico. So Paulo: Nova Cultural, 1997, Coleo

    Os Pensadores. Cf. tambm REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. Histria da Filosofia. So Paulo: Paulus, 1990, p. 134-145, vol. 1. 4 KANT, Immanuel. Fundamentao da metafsica dos costumes. So Paulo: Companhia Editora

    Nacional, 1964, p. 83.

  • 17

    Aja de modo a que os efeitos da tua ao no sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida5. O que Jonas est propondo um paradigma tico responsvel, na condio de princpio, que reflita as reais condies do homem e do cosmos diante das ameaas do presente.

    Frente s concepes diversas de pensamentos no mundo plural a corrente filosfica positivista no sculo XX elevou alguns princpios categoria de lei positiva,

    promulgando alguns como substratos estratificados de algumas carta magnas, no qual se assentam os alicerces que sustentam os ordenamentos jurdicos destes novos sistemas constitudos nesse tempo. Ao identificar nos anos 70 os princpios orientadores da pesquisa biomdica, acabaram sendo inseridos na reflexo biotica que hora o admite

    como necessidade e em alguns momentos o questiona por mais flexibilidade. Percebe-se, no tempo presente, a necessidade dos princpios na reflexo tica e

    biotica ao fundar e estipular valor moral para viver como indivduo e comunidade de forma setorizada, e no mais com o carter de universalidade, mesmo diante da realidade cultural globalizada e homogeneizadora que se apresenta. Os professores Franklin, Segre e Selli notam que a situao especfica na qual a opo da tica

    aplicada surge como alternativa tica universalista se define como a impossibilidade histrica desta ltima6. Com a perda da universalidade religiosa, numa sociedade

    pluricultural, nos quais convivem simultaneamente valores agnsticos, crentes e ateus

    todos amparados sobre a liberdade de conscincia e convivendo sob diferentes cdigos morais.

    nessa direo que a tica quer pensar e refletir os valores estreitando-os com os fatos concretos da vida. Diante da exigncia de estabelecer regras de condutas em contextos particulares Franklin et alli afirma ser uma caracterstica marcante da biotica: a relao humana vivida no regime da singularidade o eixo em torno do qual gira a conduta7. Para esses autores, nas situaes de fato, os princpios se mostram abstratos e as regras, imprecisas. Isso porque a dignidade, humanidade, subjetividade, liberdade no so princpios nem regras, so modos indefinidamente abertos de viver a relao humana8.

    5 JONAS, Hans. O princpio responsabilidade. Traduo de LISBOA, Marijane e MONTEZ, Luiz

    Barros. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO, 2006, p. 47. 6 SILVA, Franklin Leopoldo e et alli. Da tica profissional para a biotica. In: ANJOS, Mrcio Fabri dos

    e SIQUEIRA, Jos Eduardo de (Orgs.). Biotica no Brasil: tendncias e perspectivas. Aparecida-SP: Idias e Letras/Sociedade Brasileira de Biotica, 2007, p. 59. 7 Ibidem p. 63.

    8 Ibidem p. 63.

  • 18

    Neste caso, quando se pensa em princpios para caracterizar o ponto de partida de uma reflexo na biotica, deve-se levar em considerao a situao especfica para definir o procedimento e o valor a aplic-lo. Conforme Franklin o recurso tico a ser aplicado ai dever seguir o caminho de instituio de regras estritamente vinculadas

    considerao objetiva da atividade a ser eticamente normatizada9, com cuidado de no cair no risco de estabelecer regras to objetivas quanto as condutas que elas deveriam regular.

    Nota-se, portanto, o carter abstrato dos princpios com intuito de viabilizar acontecimentos concretos. Na vida concreta, diferentemente da terica, estabelecer as fronteiras entre princpios e regras no parecem muito fceis por no serem muito

    definidas e se mesclarem como base de conduta. Neste caso, convm ter clara a distino entre eles para a reflexo biotica e sua funo. Isso ajuda para uma melhor compreenso e o espao determinado para cada um.

    1.2 - Princpios e Fundamentos Possui muita relevncia neste estudo verificar o fundamento do conceito princpio,

    sua funo, diferenciao existente entre princpios e regras, bem como a construo de paradigmas ticos que se formalizam a partir de princpios. Essa breve anlise ajudar visualizar melhor o que se pretende com o termo peculiar.

    Os princpios, em si mesmos, pretendem uma validade universal, sobre os quais se constroem acordos e consensos que devem guiar e estabelecer parmetros de convivncia. O princpio , por essncia,

    mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposio fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o esprito e servindo de critrio para sua exata compreenso e inteligncia, exatamente por definir a lgica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tnica e lhe d sentido harmnico10.

    Os princpios expressam um valor ou uma diretriz, sem descrever uma situao

    jurdica, nem se reportar a um fato particular, exigindo, porm, a realizao de algo, da melhor maneira possvel, observadas as possibilidades mesmo jurdicas. Conforme Diniz E Guilhem, Na histria da filosofia moral, os princpios assumiram o papel de guias para a ao, resumindo e circunscrevendo o campo de atuao de uma determinada teoria que, por sua vez, orientaria o agente moral no processo de tomada de

    9 Ibidem p. 59.

    10 MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. So Paulo: Ed. RT, 1980,

    p. 230.

  • 19

    decises11. Seu fundamento no tem validade dentica, mas expressa um imperativo ou um dever moral baseado nos valores comuns. So teorias morais que derivam dos princpios originrios e fundantes e so defendidas por eles.

    A funo para qual so extrados e empregados os princpios aparentemente a

    mesma cumprida por todas as normas, isto , a funo de regular um caso12. Possuem, entretanto, um maior grau de abstrao que as regras e irradia-se por diferentes partes,

    dando unidade e harmonia ao sistema normativo. Tereza Rodrigues Vieira esclarece a dificuldade em relacionar normas com o discurso da biotica, ao se indagar:

    possvel conciliar, por meio de normas, os diferentes pensamentos originados nas reflexes bioticas? Elaborar leis resolve o problema da pluralidade de opinies? O que fazer quando as leis existentes so insuficientes? (...) Tudo o que tico legal e vice-versa? A aplicao da norma pode produzir resultado injusto?13.

    No entender de Jos Renato Nalini, apud Tereza Rodrigues Vieira, a tica uma disciplina normativa, no por criar normas, mas por descobri-las e elucid-las.

    Mostrando s pessoas os valores e princpios que devam nortear sua existncia, a tica aprimora e desenvolve seu sentido moral e influencia a conduta14. A tica no se revela

    por um cdigo formal, mas o ponto de partida para a criao de normas. E qual seria a diferena entre regras e princpios? H uma hierarquia que se possa

    conceber entre eles? A resposta para essas questes no simples. Assim se poderiam elucidar algumas distines apontadas por Ronald Dworkin15:

    1) enquanto o princpio apresenta uma razo que aponta para uma direo, ao mesmo tempo, porm, no exige uma deciso especfica naquele mesmo sentido apontado;

    2) os princpios tm uma dimenso de peso ou importncia. Se duas regras esto em conflito, uma no poder ser vlida; j os princpios, sero aplicados aqueles que tiverem maior peso ou importncia naquela circunstncia;

    3) os princpios possuem nitidamente um elevado grau de abstrao, possibilitando assim uma abrangncia maior do que a regra; ao passo que quanto ao grau de

    11 DINIZ, Dbora e GUILHEM, Dirce. O que Biotica. So Paulo: Brasiliense, 2002, p. 37.

    12 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurdico. Braslia: Unb, 1996, p. 159.

    13 VIEIRA, Tereza Rodrigues et alli. Biotica e construo da normatividade. In: ANJOS, Mrcio Fabri

    dos e SIQUEIRA, Jos Eduardo de (Orgs.). Biotica no Brasil: tendncias e Perspectivas. Aparecida-SP: Idias e Letras, 2007, p. 71. 14

    Ibidem p. 72. 15

    DWORKIN, Ronald. Is Law a system of rules?. In: DWORKIN, Ronald (Org.). The philosophy of law. Oxford-UK: Oxford University Press, 1977, p. 45.

  • 20

    determinao, as regras ao contrrio dos princpios so as que possuem maior determinao e logo, so restritivas na sua abrangncia;

    4) os princpios so axiomas que derivam do juzo de justia, equidade e de direito, so expresso dos anseios da sociedade e possuem indiscutivelmente uma

    posio proeminente, por sua importncia estruturante. J as regras ou aes legais so contedos de execuo e funcionalidade;

    5) os princpios consistem em verdadeiros fundamentos, com base na funo argumentativa que faz at vislumbrar a ratio legis no intuito de ajudar a ordenar ou normatizar. As regras em muito so impostas com a legitimidade daqueles cujos valores transparecem nos princpios;

    6) Reitera-se, no entanto, que os princpios tm convivncia conflitual, ao passo que as regras tm convivncia antinmica. Os conflitos de princpios perduram

    enquanto durar o processo. As solues dos conflitos so, portanto, diferentes. Enquanto para as normas e regras a soluo se d no plano da validade, no conflito de princpios conjugam-se validade e peso, ou seja, a soluo dos princpios se d por meio de juzo de validade, mas de concordncia prtica e de ponderao. Considerando que os

    princpios envolvem valores, dever o intrprete-aplicador, no caso concreto, optar pelo que melhor tratamento der ao caso.

    A ateno que Tom L. Beauchamp e James F. Childress do aos princpios relevante. So colaboradores reconhecidos no desenvolvimento da biotica, autores da obra clssica Principles of biomedical ethics, e mostram essa relao de regras e princpios num grfico com diferentes nveis de experincias, passando da mais concreta para a mais terica indutiva - ou passando da mais terica para a mais particular dedutiva. As setas indicam a justificao de casos mais particulares em direo s justificaes mais tericas16:

    4 Teoria tica

    3 Princpios

    2 Regras

    1 Julgamentos particulares

    16 BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princpios de tica biomdica. Traduo de

    PUDENZI, Luciana. So Paulo: Loyola, 2002, p. 31.

  • 21

    O discurso tico construdo a partir dos princpios deve-se muito do ponto que se parte. A partir de um grfico como esse, vrios modelos ticos podem ser construdos. Numa ordem decrescente poder-se-ia dizer que um discurso que prioriza mais a teoria

    tica tende enfatizar as normas mais gerais, com julgamentos morais feitos por deduo, a partir de um esquema terico e preceitos normativos. Esse tipo de argumento

    ocasionalmente usado na tica, e os dedutivistas sustentam que ele o melhor modelo de justificao17. O julgamento moral se d como aplicao de uma regra, de um princpio, um ideal, um direito, uma norma, etc. Diz-se, portanto, que a forma dedutiva uma aplicao de cima para baixo de preceitos gerais uma expresso que motivou

    o uso da expresso tica aplicada18. Esse modelo de raciocnio no funciona para justificar os casos morais mais complexos.

    Numa anlise que se faz a partir de baixo para cima, e, portanto, indutiva toma-se os casos individuais ou particulares como ponto de partida, para se chegar s generalizaes e obter a deliberao e os julgamentos. O indutivismo sustenta que devemos usar, como pontos de partida para a generalizao at as normas (como os princpios e as regras), os consensos e as prticas sociais existentes, e enfatiza o papel dos julgamentos particulares e contextuais como uma parte da evoluo de nossa vida moral19.

    Nesse impasse Beauchamp e Childress propem o coerentismo como alternativa de dilogo e intercmbio, que no funciona nem de baixo para cima nem de cima para baixo; ele se move em ambas as direes20. Assim eles sugerem que todos os sistemas morais apresentam algum grau de indeterminabilidade e incoerncia, revelando que eles no tm o poder de eliminar vrios conflitos contingentes entre princpios e regras21. O equilbrio reflexivo, terminologia empregada por John Rawls, para dizer que uma teoria na tica comea propriamente com os nossos juzos ponderados, ocorre quando

    17 Ibidem p. 30.

    18 Ibidem p. 30. FERRER diz que as normas gerais deixam uma ampla magem de indeterminao. Para

    serem teis para a vida moral, necessrio que se possa descer do plano do geral ao especfico. Os princpios gerais precisam ser traduzidos em normas particulares concretas e dotados de contedo concreto. Ressalta que esse processo de concretizar o princpio recebe o nome de especificao. Especificao o processo pelo qual reduzimos a indeterminao das normas abstratas e as dotamos de contedos aptos para guiar as aes concretas. FERRER, Jorge Jos e LVAREZ, Juan Carlos. Para fundamentar a biotica. Teorias e paradigmas tericos na biotica contempornea. Traduo de MOREIRA, Orlando Soares. So Paulo: Loyola, 2005, p. 142. 19

    Ibidem p. 33. 20

    Ibidem p. 36. 21

    Ibidem p. 38.

  • 22

    se avaliam as qualidades e as fraquezas de todos os princpios e juzos morais plausveis e das teorias de fundo relevantes22. Desse modo, afirma Beauchamp e Childress que o nico modelo relevante para a teoria moral aquele que mais se aproxime da plena coerncia23. A melhor explicao em face da coerncia inabalvel que o sistema

    capturou o que h de correto, virtuoso etc. se esse resultado aquilo em que consiste a verdade moral, ento a rede de coerncia capturou a verdade24. Para esses autores a

    frmula da justificao da abordagem tica correta se encontra na coerncia. A coerncia adquire em seu conceito prima facie ( primeira vista) uma hierarquia

    ordenada e no-absoluta entre os princpios, regras e direitos. Especificam que algumas normas so praticamente absolutas, nem necessitando de ponderao, como no caso de

    proibies a crueldades, torturas, o ato de causar dor e sofrimento, regras contra o assassinato e outras que so absolutas em virtudes da objetividade do fato e da falta de sentido delas. Mas a relevncia desses conceitos no to fcil quando inseridos na realidade, pois s podemos atingir uma coerncia frgil, usando relatos mais ou menos confiveis. Trata-se de um processo de ponderao, e melhor equilbrio diante da obscuridade, da dvida, de uma situao que comprime entre o certo e o errado25.

    Em sntese, a eleio de princpios, que podem se transformar em regras ou no, so necessrios para o mnimo ordenamento comum. Ambos esto inseridos em

    contextos sociais, fazendo parte do senso moral de um grupo26. Poder-se-ia concordar com Ronald Dworkin que ambos, princpios e normas, apontam para decises particulares sobre obrigaes ticas ou jurdicas numa particular circunstncia. Mas se diferenciam no carter da direo que apontam. As regras so aplicveis na forma do tudo ou nada. Por sua vez, os princpios, embora muito se paream com as regras, no indicam uma conseqncia legal27. Tom Beauchamp e James Childress afirmam que Essa limitao no um defeito nos princpios; ela , antes parte da vida moral na qual

    22 Ibidem p. 38

    23 Ibidem p. 38

    24 Ibidem p. 48.

    25 Ibidem p. 50.

    26 ENGELHARDT Jr., H. Tristram. Fundamentos da Biotica. Traduo de CESCHIN, Jos A. So

    Paulo: Loyola, 2004. 27

    DWORKIN, Ronald. Is Law a system of rules?. In DWORKIN, Ronald (Org.). The philosophy of law. Oxford-UK: Oxford University Press, 1977, p. 45. Para Beauchamp e Childress preciso distinguir tambm os princpios e as regras do corpo de normas coerente e sistemtico que inclui as teorias. BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princpios de tica biomdica. Traduo de PUDENZI, Luciana. So Paulo: Loyola, 2002, p. 55.

  • 23

    se espera que assumamos a responsabilidade pela forma como empregamos os princpios para auxiliar em nossos julgamentos sobre casos particulares28.

    1.3 - A relevncia dos princpios no surgimento da Biotica Poder-se-ia perguntar a partir de agora pela relevncia em estabelecer princpios

    na biotica, sendo que eles nos orientam para certas formas de comportamento; porm, por si mesmos, eles no resolvem conflitos de princpios29. Aqui se entra na

    complexidade dos juzos ponderados para se estabelecer uma moralidade comum, um tema muito bem trabalhado por Engelhardt em, sua obra clssica, Fundamentos da Biotica. Os princpios morais adquirem relevncia e centralidade no discurso da biotica somente sendo feitos por juzos ponderados e por coerncia com posies de defesa argumentada30.

    A simultaneidade do aparecimento do neologismo Biotica, de Potter, em 197031, e os acontecimentos em pesquisas envolvendo seres humanos nas dcadas de 60 e 70, levaram, consequentemente, a estabelecer princpios que, a priori, deveriam apenas nortear as pesquisas biomdicas, a se inserirem na reflexo biotica, e s vezes at se

    confundindo com toda a Biotica32. De certo, os princpios, em primeiro momento, no foram identificados para a biotica e sim para a tica referente s pesquisas biomdicas,

    e acabaram encontrando rpida adeso dos pesquisadores da biotica diante dos problemas morais situados que brotaram das atrocidades e crueldades praticadas no campo biomdico referente pesquisa em seres humanos. A insero dos princpios na biotica ressalta Franklin et alli, se deve ao desmoronamento dos valores universais da

    vida tica que levou necessidade premente de estabelecer princpios norteadores da conduta e parmetros que contribussem para assegurar dignidade humana como valor

    28 BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princpios de tica biomdica. Traduo de

    PUDENZI, Luciana. So Paulo: Loyola, 2002, p. 55. 29

    Ibidem; p. 49. 30

    ENGELHARDT Jr., H. Tristram. Fundamentos da Biotica. Traduo de CESCHIN, Jos A. So Paulo: Loyola, 2004. 31

    POTTER, Van Rensselaer. Bioethics: bridge to the future. Englewood Cliffs-New Jersey: Carl P. Swanson editor, 1971, p. 02. 32

    HOSSNE, William Saad. Biotica princpios ou referenciais?. Revista O Mundo da Sade. out/dez 2006, p. 673-676. Os bioetcistas de modo geral reconhecem que ter havido uma identificao entre o principialismo e toda a Biotica no perodo do seu surgimento, dada quase simultaneidade de origem de ambas.

  • 24

    e aes33. Nesse caso a deontologia apareceu como opo natural de vinculao entre regras e condutas que se do aparentemente em termos objetivos34.

    Conforme Franklin a biotica a princpio uma tentativa de restaurao de valores, que viessem deter o processo de barbrie, por meio de normatizao da

    conduta35 diante do desenvolvimento cientfico no sculo XX, mais notadamente a partir da Segunda Grande Guerra Mundial, quando se viu a necessidade de elaborar

    documentos de amparo pesquisa, mas, sobretudo no sentido de evitar abusos cometidos por essa contra a dignidade da pessoa, sujeito de pesquisa. Nos experimentos dos campos de concentrao da Segunda Guerra e na instalao, bem como na formulao do Cdigo de Nuremberg, em 1946-1947; na Declarao Universal de Direitos Humanos, em 1948; na Declarao de Helsinque em suas cinco edies, sendo a primeira em 1964; na Declarao Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos do Homem e, mais precisamente, no Relatrio Belmont, publicado em 1974, que alguns bioeticistas dizem estar fundamentalmente um documento principialista, onde o paradigma principialista da Biotica encontra sua raiz36.

    Pessini e Barchifontaine, em seu livro Problemas Atuais de Biotica, aproveitando

    ponderaes de Albert Jonsen, apontam como determinantes alguns acontecimentos histricos para a evidncia dos princpios na Biotica37. O primeiro acontecimento foi a

    questo de decidir o dilema em torno da dilise logo durante o incio de suas experincias, conforme artigo da jornalista Shana Alexander, publicado pela revista Life intitulado Eles decidem quem vive e quem morre, de 09 de novembro de 1962.

    Um segundo impulso est vinculado denncia feita pelo professor anestesista da Escola Mdica de Harvard, Henry Beecher, ao publicar seu artigo no New England Journal of Medicine, em 1966, com o ttulo Ethics and clinical research (tica e pesquisa clnica), procedimentos antiticos usados na experimentao em seres humanos. Tais pesquisas eram realizadas com recursos provenientes de instituies

    33 SILVA, Franklin Leopoldo e et alli. Da tica profissional para a biotica. In: ANJOS, Mrcio Fabri dos

    e SIQUEIRA, Jos Eduardo de (Orgs.). Biotica no Brasil: tendncias e perspectivas. Aparecida-SP: Idias e Letras/Sociedade Brasileira de Biotica, 2007, p. 58. 34

    Ibidem p. 60. 35

    Ibidem p. 58. 36

    ZUBEN, Newton Aquiles von. As investigaes cientficas e a experimentao humana: aspectos bioticos. Revista Bioethikos. Centro Universitrio So Camilo, janeiro/junho de 2007, Vol. 1, N 1, p. 12-23. Cf. Tambm SILVA, Franklin Leopoldo e et alli. Da tica profissional para a biotica. In: ANJOS, Mrcio Fabri dos e SIQUEIRA, Jos Eduardo de (Orgs.). Biotica no Brasil: tendncias e perspectivas. Aparecida-SP: Idias e Letras/Sociedade Brasileira de Biotica, 2007, p. 86. 37

    PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Biotica. So Paulo: Ed. So Camilo, 2000, p. 19-24, 5 ed.

  • 25

    governamentais e companhias de medicamentos em que os alvos de pesquisa eram os chamados cidados de segunda classe38, ou seja, internos em hospitais de caridade, adultos com deficincias mentais, crianas com retardos mentais, idosos, pacientes psiquitricos, recm-nascidos, presidirios e todas as pessoas incapazes de assumir uma

    postura moralmente ativa diante do pesquisador e do experimento39. Os casos mais conhecidos na literatura so: o de inoculao intencional do vrus da hepatite em

    crianas retardadas mentais, em pesquisa realizada entre 1950 e 1970, no hospital estatal de Willowbrook NY; o de injeo de clulas cancerosas vivas em 22 idosos doentes, sem comunic-los que as clulas eram cancergenas, realizada no Hospital Israelita de doenas crnicas de Nova York, em 1963; e ao estudo para avaliar a histria natural da sfilis iniciado em 1932 na cidade de Tukesgee, no Alabama, com 408 indivduos negros sifiltico de baixo poder econmico mantidos sem tratamento.

    O terceiro impulso para a reflexo biotica est vinculado ao avano da pesquisa em transplantes. Em 1967, Christian Barnard transplantou um corao humano de uma pessoa morta ou moribunda para um paciente com doena terminal de corao. O mundo ficou maravilhado, mas alguns se perguntaram a respeito da origem do rgo40.

    O primeiro transplante cardaco trouxe o questionamento tico: estaria o doador morto ou no; o corao havia sido retirado respeitando ou no os desejos do doador quando vivo. Somente em 1968 houve a definio de morte enceflica pelo grupo da Harvard.

    Devido a essas situaes nas pesquisas em seres humanos e na relao mdico-paciente alguns autores, como William Saad Hossne41 e outros, notificam as razes fundamentais que motivaram eleio dos princpios na Biotica. A partir dessa ebulio de acontecimentos uma nova tica, com uma viso mais crtica, comea a se formar. O livro, Problemas Morais na Medicina, organizado pelo filsofo Samuel Gorovitz, apud Diniz e Guilhem, traz em sua introduo referncias ruptura com o tradicionalismo da tica mdica, ou seja, a falncia da tica beira do leito hospitalar. Conforme Diniz e Guilhem, Gorovitz propunha que o postulado comumente aceito

    pelo senso comum de que o especialista em decises mdicas tambm especialista em

    38 BEECHER, Henry. Ethics and Clinical research. The New England Journal of Medicine. v. 274, n 24,

    june, 16, 1996, p. 1354-1360. In DINIZ, Dbora e GUILHEM, Dirce. O que Biotica. So Paulo: Brasiliense, 2002, p. 15. 39

    Ibidem. 40

    PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Biotica. So Paulo: Ed. So Camilo, 2000, p. 23, 5 ed. 41

    HOSSNE, William Saad; Biotica princpios ou referenciais?. Revista O Mundo da Sade, out/dez 2006, p. 673-676.

  • 26

    decises ticas deveria ser questionado, tornando possvel que outros atores sociais participassem do processo de deciso tica42.

    A idia, no entanto, de estabelecer critrios para elaborao de pesquisas j era perceptvel no Cdigo de Nuremberg, decretado devido s experimentaes em seres

    humanos realizadas por mdicos nazistas nos campos de concentrao, quando definia clara e objetivamente princpios para experimentao com seres humanos: O consentimento voluntrio do sujeito humano absolutamente essencial, l-se j no primeiro artigo43. No artigo nmero nove ele supe que a pessoa entenda a natureza da experimentao, seus objetivos e os riscos eventuais e que tenha a capacidade de decidir livremente sobre sua participao44. Desde ento, o Cdigo tornou-se ponto

    focal de primeira relevncia para a questo do consentimento esclarecido. Tal consentimento representava a manifestao clara em favor do respeito e da dignidade da

    pessoa humana45.

    Nota-se, posteriormente, no Relatrio Belmont, a manifestao do princpio da autonomia inspirado no conceito consentimento esclarecido. H nos artigos 1 e 2 do Relatrio Belmont indcio de preocupao com o princpio da beneficncia, segundo o

    qual a pesquisa deve visar o bem do paciente e do sujeito da pesquisa e de todos os membros da sociedade, numa relao com o velho Juramento de Hipcrates Aplicarei

    os regimes para o bem dos doentes, segundo o meu saber e a minha razo...46. Pode-se, definitivamente dizer que, no Relatrio Belmont, elaborado pela

    Comisso Nacional Para a Proteo dos Seres Humanos da Pesquisa Biomdica e Comportamental, em 1978, os princpios se destacaram como normas morais a partir dos evidentes fatos comprovados de abusos em pesquisas realizadas nos USA, mesmo com a orientao de uma srie de documentos de nvel internacionais anteriormente publicados47.

    42 DINIZ, Dbora e GUILHEM, Dirce. O que Biotica. So Paulo: Brasiliense, 2002, p. 24.

    43 CDIGO DE NUREMBERG. Tribunal Internacional de Nuremberg. 1947, Art. 1.

    44 ZUBEN, Newton Aquiles von. As investigaes cientficas e a experimentao humana: aspectos

    bioticos. Revista Bioethikos. Centro Universitrio So Camilo, janeiro/junho de 2007, Vol. 1, N 1, p. 12-23. 45

    Ibidem. 46

    PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Biotica. So Paulo: Ed. So Camilo, 2000, p. 437, 5 ed. 47

    ZUBEN, Newton Aquiles von. As investigaes cientficas e a experimentao humana: aspectos bioticos. Revista Bioethikos. Centro Universitrio So Camilo, janeiro/junho de 2007, Vol. 1, N 1, p. 12-23. Conforme Pessini e Barchifontaine O relatrio Belmont foi o documento fundamental que respondeu necessidade dos responsveis da elaborao de normas pblicas, de uma declarao simples e clara, de bases ticas para regulamentar a pesquisa PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Biotica. So Paulo: Ed. So Camilo, 2000, p. 48, 5 ed.

  • 27

    Todo o processo inescrupuloso de pesquisa exposto acima e o efervescente emergir de documentos com o objetivo de regulamentao se deu num curto espao de tempo, ou seja, entre as dcadas de 60 e 70, perodo de surgimento da Biotica. Foi em reao a tantos escndalos implicando diretamente aos EUA, que o governo americano,

    via Congresso, constituiu em 1974 a referida Comisso Nacional Para a Proteo dos Seres Humanos da Pesquisa Biomdica e Comportamental, com o objetivo de que identificassem os princpios ticos bsicos que deveriam nortear a experimentao em seres humanos nas cincias do comportamento e na biomedicina48. Essa Comisso priorizou inicialmente a pesquisa envolvendo fetos humanos, questo considerada mais urgente, e deixaram a tarefa de definir os princpios ticos para mais tarde, quando j trabalhando sobre eles e medida que as questes especficas avanavam solicitaram tambm a participao de filsofos e telogos para contribuir na identificao dos

    princpios ticos bsicos49. A Comisso, encarregada de elaborar o documento com os princpios ticos

    fundamentais que deviam sustentar as pesquisas biomdicas e dar diretrizes para a soluo de problemas ticos provenientes de pesquisas envolvendo seres humanos,

    durou quatro anos quando, em 1978, publicou o Relatrio Belmont. Essa Comisso dispunha dos documentos publicados anteriormente como Nuremberg, a Declarao

    Universal de Direitos Humanos e Helsinque entre outros, mas os considerou de difcil operacionalizao, isto , suas regras so com freqncia inadequadas em casos de situaes complexas50.

    A principal contribuio dessa Comisso foi, sem dvida, explicitar de modo claro e sucinto os princpios fundamentais de tica que serviriam de base para as recomendaes e orientaes de conduta nas pesquisas. Esses princpios se tornaram a principal fonte de orientao para as avaliaes crticas da pesquisa cientfica envolvendo sujeitos humanos. Contudo, esses princpios, conforme Zuben, no podem sempre ser aplicados de modo incontestvel para resolver problemas particulares de

    tica. O objetivo, segundo ele, visa fornecer uma estrutura analtica tendo como

    48 PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Biotica. So Paulo:

    Ed. So Camilo. 2000, p. 44, 5 ed. 49

    Ibidem p. 45. 50

    Ibidem.

  • 28

    finalidade orientar a resoluo de problemas de tica resultantes de pesquisas que envolvem seres humanos51.

    Os trs princpios fundamentais identificados pelo Relatrio Belmont foram: o respeito pessoa, beneficncia e justia. A Comisso props o mtodo baseado na aceitao dos trs princpios morais que deveriam prover as bases sobre as quais formular, criticar e interpretar regras especficas. A razo para a escolha dos trs

    princpios deve-se ao fato de estarem profundamente enraizados nas tradies morais da civilizao ocidental, implicados em muitos cdigos e normas a respeito de experimentao humana que tinham sido publicados anteriormente52.

    1.4 O paradigma principialista na Biotica Falar sobre princpios na Biotica requer alguns comentrios acerca do paradigma

    principialista, devido forte influncia do mesmo, sendo que alguns ainda costumam relacion-las como anlogas. A teoria principialista, termo genrico pelo qual ficou

    conhecida, constituiu-se numa teoria dominante para a disciplina que estava apenas

    comeando, tornando-se por duas dcadas quase uma fuso do paradigma com a disciplina53.

    As discusses principialistas da Biotica, com fundamento no Relatrio Belmont, tomou impulso com a publicao da obra de Tom Beauchamp e James Childress, Principles of Biomedical Ethics, em que sugerem a aplicao do sistema de princpios na clnica-assistencial, livrando os princpios do velho enfoque prprio dos cdigos e

    juramentos. Este livro consolida o principialismo porque oferece uma anlise sistemtica dos princpios morais que devem ser aplicados aos conflitos biomdicos. Os

    dois autores defendiam a idia de que os conflitos morais poderiam ser mediados pela referncia a algumas ferramentas morais, os chamados princpios ticos. Pessini considera que Essa obra transformou-se na principal fundamentao terica do novo campo da tica biomdica54. Foi uma obra publicada em 1979, um ano aps a

    51 ZUBEN, Newton Aquiles von. As investigaes cientficas e a experimentao humana: aspectos

    bioticos. Revista Bioethikos. Centro Universitrio So Camilo, janeiro/junho de 2007, Vol. 1, N 1, p. 12-23. 52

    PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Biotica. So Paulo: Ed. So Camilo. 2000, p. 45, 5 ed. 53

    HOSSNE, William Saad. Biotica princpios ou referenciais?. Revista O Mundo da Sade, out/dez 2006, p. 673-676. 54

    PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Biotica. So Paulo: Ed. So Camilo. 2000, p. 47, 5 ed.

  • 29

    publicao do Relatrio Belmont, por Childress e Beauchamp, sendo este ltimo um dos colaboradores na Comisso e pode se beneficiar das discusses que surgiram nela.

    Dos trs princpios o respeito pessoa, beneficncia e justia, pode-se dizer que por pessoa autnoma, o Relatrio entendia o indivduo capaz de deliberar sobre

    seus objetivos pessoais e agir sob a orientao dessa deliberao55. Zuben notifica que o conceito de autonomia usado pela Comisso no o kantiano, o homem como ser

    autolegislador, mas outra muito mais emprica, segundo o qual uma ao se torna autnoma quando passou pelo trmite do consentimento informado. Desse princpio derivam procedimentos prticos que so a exigncia do consentimento informado e o outro o de como tomar decises de substituio, quando uma pessoa incompetente

    ou incapacitada56. O princpio da beneficncia usado no Relatrio rejeita a idia clssica de

    beneficncia como caridade e diz consider-la de forma mais radical, como uma obrigao no sentido de no causar dano e maximizar os benefcios minimizando os riscos.

    Surge outra indagao que se l expressa no Relatrio Belmont: Quem deve colher as vantagens da pesquisa e quem deve arcar com os riscos?57. Entra em cena o princpio da justia. O conceito de justia segundo Zuben quer proporcionar uma reflexo acerca da equidade distributiva. Por justia entende-se a imparcialidade na distribuio dos riscos e benefcios58. A imparcialidade na distribuio , para Pessini, incoerente, uma vez que os indivduos no so tratados igualmente.

    Dos trs princpios bsicos identificados pelo Relatrio Belmont, Beauchamp e Childress os retrabalharam transformando-os em quatro, propondo que o princpio beneficncia tinha implcito nele um outro princpio, a no-maleficncia, primum non nocere, j contemplada no juramento hipocrtico quando o mdico haveria de jurar nunca predicar ou fazer mal a quem quer que seja. Os quatro princpios que posteriormente passaram a orientar o paradigma principialista consistem em59:

    55 Ibidem p. 46.

    56 ZUBEN, Newton Aquiles von. As investigaes cientficas e a experimentao humana: aspectos

    bioticos. Revista Bioethikos. Centro Universitrio So Camilo, janeiro/junho de 2007, Vol. 1, N 1, p. 12-23. 57

    Ibidem. 58

    PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Biotica. So Paulo: Ed. So Camilo. 2000, p. 46, 5 ed. 59

    BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princpios de tica biomdica. Traduo de PUDENZI, Luciana. So Paulo: Loyola, 2002, p. 55.

  • 30

    1) O respeito pela autonomia (uma norma sobre o respeito pela capacidade de tomar decises de pessoas autnomas);

    2) A no-maleficncia (uma norma que previne que se provoquem danos); 3) A beneficncia (um grupo de normas para proporcionar benefcios e para

    ponderar benefcios contra riscos e os custos); 4) A justia (um grupo de normas para distribuir os benefcios, os riscos e os

    custos de forma justa). Alm dos quatro princpios Childress e Beauchamp sugerem tambm vrios tipos

    de regras para especificar os princpios e orientar a ao. Assim dizem Childress e Beauchamp:

    A concluso de que quatro grupos de princpios morais (num outro esquema eles poderiam ser desenvolvidos como direitos, virtudes ou valores) so centrais tica biomdica uma concluso qual chegamos por meio de nossa busca de juzos ponderados e por coerncia, e no uma posio que possui uma defesa argumentada60.

    Desse modo pode-se ver: chamam de regras substantivas as regras de veracidade, sigilo, privacidade, fidelidade e vrias regras referentes distribuio e ao racionamento da assistncia sade, omisso de socorro, ao suicdio assistido e ao consentimento informado. Defendem tambm regras sobre autoridade, ou seja, regras sobre quem pode e deve executar aes. Por fim, as regras de procedimentos que definem os procedimentos a serem seguidos. Para eles Os direitos, as virtudes e as

    respostas emocionais tm, em alguns contextos, uma importncia moral maior que os

    princpios e as regras61. Para exemplificar dizem uma tica da virtude nos ajuda a ver porque as escolhas nos permite tambm avaliar o carter moral de uma pessoa de uma forma mais rica do que pode nos permitir uma tica de princpios e regras62.

    1.5 Alguns limites do principialismo Sem nenhuma pretenso ufanista e com respeito ao esforo pela relevante

    contribuio do principialismo, quer-se agora apontar alguns limites deste paradigma contidos em algumas literaturas da biotica. A teoria dos princpios no obstante sua importncia e sua utilidade se tornou insuficiente medida que a biotica, ao

    contemplar e aprofundar mais a realidade, percebeu a necessidade de ampliar a sua discusso inserindo algumas problemticas, at ento no pensadas no campo

    60 Ibidem.

    61 Ibidem p. 57.

    62 Ibidem.

  • 31

    biomdico, como as situaes scio-ambientais. medida que surgem novas questes e ou situaes, buscam-se novos mecanismos de compreenso63. Verifica-se com isso que o professor William Saad Hossne sugere at mesmo a substituio do termo princpio por referenciais ao entender que aps a evoluo ou amadurecimento da Biotica,

    novos conflitos e assuntos pertinentes emergiram de diversos contextos. Ele justifica que no se trata de uma mera substituio de termos, mas da superao do ncleo

    duro da biotica principialista64. A insuficincia da teoria dos quatro princpios em Biotica fica patente quando

    aplicada a outros campos da Biotica como, por exemplo, no campo das cincias da vida, do meio ambiente e dos fenmenos sociais como vulnerabilidade, dignidade

    humana, precauo, responsabilidade, solidariedade e tantos outros em tempos atuais65. Para William Saad Hossne mesmo sendo relevantes, a teoria dos princpios no mais

    suficiente para o equacionamento de todas as questes e problemticas que surgem no campo da tica biomdica, enquanto componente da Biotica66.

    Tambm no se pode taxar a teoria principialista de reducionista sem mais. H de se verificar sempre o lugar, o contexto e o para que ela surgiu. Reducionista pode ser

    caracterizada a pretenso daqueles que, hoje, desejam tomar a parte pelo todo, ou seja, o paradigma como a disciplina67. A incoerncia dessa pretenso a mesma, quando num

    mundo pluricultural, sugere universalizar um paradigma que na sua origem cultural valoriza a tica individual. Sabe-se que a teoria dos quatro princpios acentua o princpio da autonomia em detrimento dos demais. Esse princpio aponta na verdade dois valores de cunho fundamental para a cultura liberal anglo-sax: a liberdade individual e a competncia.

    63 FERRER faz um apanhado das tendncias presentes na biotica contempornea propondo uma

    avaliao crtica a cada uma delas. Sobre o principialismo Cf. FERRER, Jorge Jos e LVAREZ, Juan Carlos. Para fundamentar a biotica. Teorias e paradigmas tericos na biotica contempornea. Traduo de MOREIRA, Orlando Soares. So Paulo, Loyola, 2005, p. 119-158. 64

    HOSSNE, William Saad. Biotica princpios ou referenciais?. Revista O Mundo da Sade, out/dez 2006, p. 673-676. 65

    Ibidem. 66Ibidem. 67

    HOSSNE, William Saad. Biotica princpios ou referenciais?. Revista O Mundo da Sade, out/dez 2006, p. 673-676. Cf. tambm DINIZ, Dbora e GUILHEM, Dirce. O que Biotica. So Paulo: Brasiliense, 2002, p. 34. LEONE, Salvino e PRIVITERA, Salvatore. Biotica. In: LEONE, Salvino et alli (Orgs.). Dicionrio de Biotica. Traduo de ROCHA, A. Maia da. Aparecida-SP: Santurio, 2001, p. 87-96. O Dicionrio de Biotica aponta que em uma forma de saber essencialmente interdisciplinar e dialgica, como a Biotica, a atitude integralista de defesa apologtica nega a possibilidade de abertura, de comparao e de reviso das suas posies, no necessariamente para as abandonar ou para mudar de idias, mas, frequentemente, para as encontrar a um nvel superior, enriquecidas pelos contributos de uma s e serena dialtica.

  • 32

    Uma das crticas filosficas da teoria principialista encontra-se no idealismo, que propiciou na sua rpida aceitao e difuso entre os pesquisadores da biotica, mas que determinou tambm sua fragilidade. O indivduo idealizado por princpios da tica biomdica um ser humano sem contrapartida no mundo real. Em nome da construo

    de um modelo terico passvel de universalizao, a teoria principialista pressups um indivduo livre dos constrangimentos sociais, esquecendo que em contexto de

    desigualdade social no possvel o exerccio pleno da liberdade. O idealismo universalizante da teoria principialista tornou-se sinnimo de uma tcnica tica. A chamada frmula mgica dos quatro princpios ticos converteu-se numa espcie de receita ou mantra capaz de encaixar ou mediar grandes partes dos conflitos morais.

    Seu suposto esprito transcultural imperialista fazia seus seguidores defenderem que os valores ticos serviam para toda humanidade. E foi exatamente essa concepo que

    levou o paradigma principialista falncia de modelo nico68. Detalhando, brevemente, o pressuposto bsico do princpio da autonomia se funda

    numa sociedade democrtica e em igualdade de condies entre os indivduos, para que assim os diferentes morais possam coexistir. Desse modo, Diniz e Guilhem critica

    dizendo que aqui se encontra o n da discusso imposto pelas teorias crticas na biotica como pressuposto de que no possvel falar de autonomia como princpio

    mediador para os conflitos morais em contextos de profunda desigualdade social69. Essas autoras ressaltam que, antes de apelar para princpios ticos sublimes, a tarefa da biotica deveria ser a anlise, a discusso e o desenvolvimento de mecanismo ticos de interveno perante todos os tipos de desigualdade social70. Tratando-se de uma construo ideal de sociedade, vrios entraves morais poderiam colocar em cheque o princpio da autonomia, como por exemplo, o comportamento de se dar conta at que ponto um indivduo poderia exercer autonomia plena numa sociedade? Como seria o

    68 DINIZ, Dbora e GUILHEM, Dirce. O que Biotica. So Paulo: Brasiliense, 2002, p. 32-33. O

    Congresso de Biotica Estados Unidos-Japo, realizado em 1994, na cidade de Tquio, foi marcado por um importante debate, registrado no livro Biotica Japonesa e Ocidental: estudos de diversidade moral, organizado pelo filsofo japons Kazumasa Hoshino. Discutiu-se sobre a inadequao do termo consentimento livre e esclarecido, nos moldes ocidentais realidade japonesa. No Congresso explorou-se o tema do conflito entre moralidades que a aplicao acrtica da teoria principialista provocava ao redor do mundo. Foi de posse da constatao dessas diferenas morais entre a humanidade que Kazumasa lanou uma de suas idias crticas em relao biotica que, ainda hoje, a marca de seu pensamento: ...h muitas diferenas raciais, nacionais, sociais, culturais e religiosas, sutis ou no, entre o Japo e os Estados Unidos. Tais diferenas podem explicar as dificuldades que os japoneses e outras culturas tm em aceitar muitos dos princpios ocidentais da biotica. Na verdade pode-se at mesmo considerar antitica a imposio da biotica ocidental s mais diferentes sociedades... Ibidem p. 42-43. 69

    Ibidem p. 59. 70

    Ibidem p. 59.

  • 33

    nvel de tolerncia de seus convivas? A existncia da noo moral de respeito autonomia significa que a autodeterminao do agente moral no deve causar danos ou sofrimentos a outras pessoas: sobretudo quelas consideradas vulnerveis.

    A dificuldade, portanto, se apresenta na fronteira tnue entre a proteo e a

    autoridade, pois em nome da proteo dos vulnerveis, poder-se-ia justificar, por exemplo, o silenciamento de certas opes discordantes. No sem razo que o

    conceito de paternalismo, sobretudo no campo mdico, fortemente debatido. Entra-se nesse caso a idia do consentimento livre esclarecido, que Lepargneur tenta rebat-lo71. O prprio Beauchamp e Childress reconheciam que a validez de um consentimento livre e esclarecido estava condicionada competncia do indivduo em decidir, o domnio

    das informaes necessrias, as diferentes possibilidades teraputicas e assim por diante. Diante de uma situao de vulnerabilidade os pr-requisitos que atestam a

    validez de um consentimento livre e esclarecido no so para todos, apenas contempla uma minoria de indivduos privilegiados socialmente72.

    Relacionado aos limites mal-definidos dos princpios, a beneficncia e a no-maleficncia esto em torno da fronteira entre os prprios deveres de um e outro: como

    o caso da suspenso de tratamentos extraordinrios para pacientes com morte fsica iminente, o tratamento de recm-nascidos com srias limitaes fsicas, o aborto de

    crianas com anomalias fetais grave, o processo de deciso de pessoas incompetentes, etc. Pode-se dizer que a fragilidade dos princpios no derivada da insuficincia de sua prpria teoria, mas decorre da impossibilidade de se encontrar sadas ideais e universais para situaes concretas, situadas.

    bom atentar para a complexidade dos fatos que pode exigir mais do que uma abordagem para sua melhor compreenso. A Biotica como reflexo tica aplicada deve se dar conta das diferentes circunstncias, mesmo com relao aos diversos casos clnicos para os quais o paradigma principialista pretende ser referncia. Ao dialogar com as diferentes percepes sobre determinado caso ajuda a ampliar os horizontes, o que pode servir para maior credibilidade da abordagem, tirando assim a reflexo de seu aspecto simplista e reducionista.

    Sendo assim no de estranhar que os prprios autores de Princpios de tica biomdica, Beauchamp e Childress, reconhecem os limites que pode haver em suas

    71 LEPARGNEUR, Hubert. Fora e Fraqueza dos Princpios da Biotica. Revista Biotica (Conselho

    Federal de Medicina), vol. 4, n 2, 1996, p. 131-143. 72

    Sua teoria sobre o individualismo liberal. BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princpios de tica biomdica. Traduo de PUDENZI, Luciana. So Paulo: Loyola, 2002, p. 88-97.

  • 34

    propostas73. Na referida obra cuidaram de, antes mesmo de desenvolver a especificidade de cada princpio relatar um pouco sobre os diversos tipos de teoria tica, dedicando o segundo captulo a essa abordagem. O captulo oito aponta tambm uma abertura para possibilidade de outras contribuies, advindas, sobretudo das vertentes casusticas e

    virtudes. Esses limites so, portanto, notveis e os prprios autores, como bons cientistas, fizeram o que muitos crticos posteriormente viriam a fazer. Assim

    mencionam na concluso da obra: Neste captulo final fomos alm dos princpios, regras, obrigaes e direitos. Virtudes, ideais e aspiraes por excelncia moral apiam e enriquecem o esquema moral desenvolvido nos captulos anteriores. Os ideais transcendem as obrigaes e os direitos e muitas virtudes levam as pessoas a agir de acordo com princpios e normas bem como de acordo com seus ideais. (...) Ao concluir este livro, devemos ressaltar que diversas concepes da tica do carter exibem um padro de convergncia similar e que os apelos aos princpios so muitas vezes intercalados com apelos s virtudes. (...) Quase todas as grandes teorias ticas convergem para a concluso de que o mais importante elemento da vida moral de uma pessoa um carter desenvolvido que proporcione a motivao e a fora interiores para fazer o que certo e bom74.

    Pessini e Barchifontaine afirmam, no entanto, que outros pensadores chegaram a

    sugerir o principialismo como norma tica mundial para pesquisa em seres humanos. Mas esta no reflete hoje uma opinio unnime, apesar de estar presente na cabea e nos escritos de pessoas at mesmo que vivem fora dos EUA, considerado o bero deste

    paradigma75. Isso se deve segurana moral e as certezas que os princpios oferecem num ambiente de incertezas, mediante a necessidade de uma tomada de deciso seja em caso clnico, em comits de reflexo ou em outras circunstncias exigentes. A fonte de abusos do principialismo est na necessidade humana de segurana moral e de certezas num mundo de incertezas76.

    A clareza e definio objetiva dos princpios diante das adversidades deram aceitabilidade, bem como credibilidade, a este paradigma no campo da investigao mdica, ainda no incio da Biotica. Um excesso de confiana no principialismo acabou

    73 Esforo de auto-crtica dos autores sobre sua teoria principialista pode ser encontrado no debate com

    ANJOS, Mrcio Fabri dos. Bioethics in a Liberationist Key. In: E.R.DuBose; R.Hamel; L.J.OConnell (Orgs.). A Matter of Principles? Ferment in U.S.Bioethics. Valley Forge-PA: Trinity Press International, 1994, p.130-147 74

    BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princpios de tica biomdica. Traduo de PUDENZI, Luciana. So Paulo: Loyola, 2002, p. 541-542. Cf. tambm PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Biotica. So Paulo: Ed. So Camilo, 2000, p. 49, 5 ed. 75

    PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Biotica. So Paulo: Ed. So Camilo. 2000, p. 51, 5 ed. 76

    Ibidem p. 48.

  • 35

    dominando por bastante tempo a reflexo cerca da biotica. Segundo Lo Pessini, o principialismo chegou a se tornar abusivo diante da segurana moral que oferecia77. Torna-se uma atitude absolutista quando se toma uma alternativa como nico caminho. Abusos de princpios ocorrem quando se modelam as circunstncias para aplicar um

    princpio preferido e acaba-se caindo no ismo, e no mais percebendo que existem limites no procedimento principialista considerado infalvel na resoluo dos conflitos

    ticos78.

    Outra crtica mais detalhada ao principialismo pode-se notar no que diz Hubert Lepargneur: Estes princpios no cobrem a soluo de toda pendncia que se apresenta no quadro da biotica79. Assim ele d um exemplo:

    O princpio da autonomia do doente pode tornar-se terrvel arma contra seu prprio bem, porque a deciso, geralmente, vale conforme o grau de esclarecimento e informao do sujeito que decide. A maioria dos pacientes comuns no pode nem sequer decidir, se houver qualquer alternativa de peso, o que seja uma dvida at mesmo para o mdico. Neste caso um princpio pode ser uma causa suficiente, raramente para viver. No se trata de endeusar a autonomia individual nem de desvalorizar sua necessidade. Cabe ao mdico ou sua equipe avaliar o que convm recolher da manifestao da autonomia atual do paciente80.

    visando algumas complexidades que Lepargneur recomenda, para alm de uma avaliao restrita, a necessidade de ampliar o dilogo e enxergar a contribuio de outros paradigmas, que no seu artigo Fora e Fraqueza dos Princpios da Biotica

    sugere a prudncia como referencial que pertence a outro paradigma, o das virtudes, proposto por Edmund Pellegrino na Biotica.

    Na esteira dessa concepo crtica, que apresenta a necessidade de ampliar a reflexo, uma determinada cultura tende a abordar seus problemas sempre a partir do

    veis que lhes so prprios. assim que podemos considerar a crtica feita pelo bioeticista espanhol, Diego Grcia, apud Pessini & Barchifontaine, ao dizer que no possvel resolver os problemas de consentimento sem abordar as questes de

    fundamentao81. Continuando, diz que os fundamentos e procedimentos so na verdade duas faces da mesma moeda, inseparveis. Pobre procedimento que no est

    bem fundamentado e pobre fundamento que no tem como resultado um procedimento

    77 Ibidem p. 48.

    78 Ibidem p. 50.

    79 LEPARGNEUR, Hubert. Fora e Fraqueza dos Princpios da Biotica. Revista Biotica (Conselho

    Federal de Medicina), vol. 4, n 2, 1996, p. 131-143. 80

    Ibidem. 81

    PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Biotica. So Paulo: Ed. So Camilo. 2000, p. 51, 5 ed.

  • 36

    gil e correto82. Neste caso, nada mais til que uma boa fundamentao dos princpios e nada mais fundamental do que um bom procedimento. No sendo assim, os princpios se tornam meramente instrumentos.

    Conforme Pessini e Barchifontaine h tambm no principialismo uma forte

    influncia do pragmatismo como corrente predominante no pensamento norte americano que tende a priorizar os procedimentos em detrimento dos fundamentos. Isso

    porque existe nos EUA uma forte influncia do pensamento de John Dewey, considerado o pai do pragmatismo, que viveu da segunda metade do sculo XIX primeira metade do sculo XX. O pragmatismo se desenvolveu como corolrio do empirismo de Francis Bacon e Hume, do utilitarismo de Jeremy Bentham, Stuart Mill e

    Dewey, e que posteriormente avanou para o positivismo lgico. Na concepo de Dewey a tica e as outras disciplinas humanistas progrediam muito pouco porque

    empregavam metodologias ultrapassadas. Assim empreendeu em aplicar os mtodos da cincia na resoluo de problemas ticos. Dewey elaborou uma tica objetiva, utilizando o mtodo cientfico na filosofia. Dessa viso polarizada Diego Grcia, sem desmerecer a colaborao e a contribuio do paradigma norte-americano, sobretudo a

    sua viabilidade e capacidade em desempenhar normas ticas dentro de uma cultura pluralista com enfoque individualista, apresenta a percepo da viso europia na forma

    de abordar os dilemas ticos83. Uma crtica apontada ao principialismo a partir do pensamento biotico europeu

    uma percepo tambm do norte-americano James Drane ao dizer que a tica europia mais terica ao se preocupar com questes voltadas para fundamentao, de consistncia filosfica que privilegia a dimenso social do ser humano, com prioridade para o sentido de justia e equidade, ao passo que a perspectiva anglo-sax mais individualista e privilegia os direitos individuais e a autonomia da pessoa. A biotica europia prioriza o fundamento do agir humano e a norte americana desenvolve normas de ao, como conjunto de regras, para caracterizar uma moral84.

    Uma crtica que despontou a partir dos pases perifricos na ltima dcada do sculo XX est relacionada insuficincia do modelo norte americano, em analisar

    adequadamente e enfrentar os macro-problemas ticos que estes sofrem. Pesquisa

    82 Ibidem p. 51

    83 Ibidem p. 52.

    84 Ibidem p. 53.

  • 37

    organizada pelo Instituto LatinPanel85 aponta que o processo de globalizao econmica, longe de reduzir, aprofundou ainda mais as desigualdades verificadas entre as naes ricas, do norte, e as naes pobres, do sul. Essa percepo crtica social na Biotica teve colaborao efetiva, sobretudo a partir do Sexto Congresso Mundial de

    Biotica, em 2002, quando se procurou mostrar agenda da biotica internacional os reais e mais evidentes problemas vividos pelos pases pobres.

    Com essas crticas, abre-se para a biotica a possibilidade de vozes discordantes com relao universalidade dos princpios difundidos desde o Kennedy Institut of ethics at Georgetown University. Apesar de sua reconhecida praticidade e utilidade para o estudo de situaes clnicas e em investigaes, sabidamente insuficiente para a

    anlise contextualizada de conflitos advindos de adequaes culturais que exigem tambm outros critrios de avaliao.

    1.6 - A contribuio de outras tendncias na Biotica No decurso de amadurecimento da Biotica algumas outras tendncias, para alm

    da principialista, foram tomando corpo e se tornando claras, at mesmo pela

    necessidade de considerar a diversidade como um pilar que caracteriza o estatuto epistemolgico da disciplina. As correntes que expomos a seguir pretendem mostrar o

    alargamento que se faz necessrio na reflexo biotica, numa tentativa de contemplar com mais amplitude a complexidade qual representa a realidade. Uma breve abordagem de outras tendncias ajudar, inclusive, a estar situando, a problemtica dos princpios sem pretenses absolutistas ou fechadas. Cada tendncia, mesmo com os

    limites e as fragilidades que conferem cada uma, procura acrescentar ou mesmo clarear um enfoque no trabalhado pelo paradigma dos princpios. Seguem-se algumas

    caractersticas fundamentais de apenas alguns paradigmas mais conhecidos: O Paradigma das Virtudes foi inserido na Biotica por Edmund Pellegrino e David

    Thomasman na obra For the patients good por fora do carter prprio do pensamento europeu. Como fundamento para esse paradigma seus autores procuram embasar-se na

    tica das virtudes aristotlica. Este modelo d nfase s atitudes que presidem eticamente a ao, e ao mesmo tempo tendo como pano de fundo um ethos social

    85 INSTITUTO LATINPANEL. Ricos esto mais ricos. JORNAL O ESTADO DE S. PAULO, 9-11-

    2007. o que aponta tambm o RELATRIO da ONU. Globalizao no reduz desigualdade e pobreza no mundo. http://www1.folha.uol.com.br/ folha/mundo/ult94u104540.shtml; acessado em 10-02-2007. Cf. tambm a entrevista com CATTANI, Antnio. Desigualdades e direitos hoje. http://www.unisinos.br; acessado dia 08-11-07.

  • 38

    pragmatista e utilitarista, prope-se a boa formao do carter e da personalidade tica86, particularmente dos profissionais da sade, sem, contudo, deixar de integrar o paciente ao seu processo de deciso.

    A Casustica outro paradigma, com um mtodo muito usado pelos jesutas, que tende a acentuar a importncia dos casos e suas particularidades de onde podem ser tiradas as caractersticas paradigmticas para se fazerem analogias com outros casos87.

    Pessini e Barchifontaine afirmam que este um modelo apresentado na Biotica por Albert Jonsen e Stephen Toulmin no livro The abuse of casuistry, no qual preconiza uma anlise de caso a caso, num plano analgico. Este modelo prope que cada caso deve ser examinado em suas caractersticas paradigmticas, estabelecendo comparaes

    e analogias com outros casos. Segundo Toulmin, a expresso casustica refere-se anlise direta de casos particulares em medicina clnica. A ateno a esses casos

    particulares constitui-se no corao da tica clnica88. H o modelo chamado Liberal que enfatiza como valor central a autonomia do

    indivduo. Pessini e Barchifontaine afirmam que esse paradigma encontra sua origem em Thomas Hobbes, John Locke e Adam Smith; e um forte expoente dessa corrente na

    Biotica Tristam Engelhardt com sua obra Fundamentos da Biotica89. Seu pensamento inspirado na tradio poltico-filosfica do liberalismo anglo-saxo e est

    baseado na busca pelos direitos humanos e a afirmao do indivduo sobre seu prprio corpo e sobre todas as decises que envolvam a vida. Valoriza a conscincia de si como forte constitutivo da pessoa e em seu argumento nada impede que o indivduo possa eticamente negociar seus prprios rgos e seu sangue90.

    A vertente Contratualista, conforme Pessini e Barchifontaine, apresentada por Robert Veatch em A theory of medical ethics, considera a complexidade das relaes sociais de hoje e evidencia como ponto de partida as insuficincias de fundo da tica hipocrtica. Defende um triplo contato: entre o mdico e os pacientes, entre os mdicos e a sociedade, e um contato mais amplo com os princpios orientadores da

    86 ANJOS, Mrcio Fabri dos. Biotica: Abrangncia e Dinamismo. Revista Espaos, 04 de fevereiro de

    1996, p. 131-143. 87

    Ibidem. 88

    PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Biotica. So Paulo: Ed. So Camilo. 2000, p. 36, 5 ed. 89

    Ibidem p. 35. 90

    ANJOS, Mrcio Fabri dos. Biotica: Abrangncia e Dinamismo. Revista Espaos, 04 de fevereiro de 1996, p. 131-143.

  • 39

    relao mdico-paciente91. E para regular essas relaes propem obedecer a princpios fundamentais como o da beneficncia, a proibio de matar, o de dizer a verdade e outros.

    O Paradigma do Direito Natural, ou naturalista, descrito por John Finnis em Natural law and natural rights, com recurso lei natural, procura estabelecer bens fundamentais em si mesmos: o conhecimento, a vida, a vida esttica, a racionalidade

    prtica, e outros bens que constituam a dignidade do ser pessoa. Este modelo de anlise leva em conta o ser humano em sua integralidade bem como o integra na sociedade92.

    O Paradigma Hermenutico ou Fenomenolgico d nfase condio interpretativa do ser humano, ou seja, enfatiza a necessidade de reconhecer que toda experincia est sujeita interpretao. Acentua a necessidade de se perguntar e responder sobre o sentido das realidades implicadas na vida, na sade, na relao

    mdico-paciente como diferentes sujeitos de interpretao, o papel que tm as religies na hermenutica e outros93. Para Pessini o modelo hermenutico no valoriza muito o carter bipolar da experincia humana ao sublinhar a necessidade de aceitao da alteridade que deve ser assimilada num dilogo respeitoso. J a fenomenologia coloca a

    subjetividade entre parnteses numa tentativa de penetrar na situao em si mesma. Ambas apontam para a superficialidade do modelo principialista, pois a experincia

    humana no pode ser facilmente capturada e dirigida por uma moral baseada na simples imposio de regras e princpios abstratos94.

    O Paradigma Narrativo lembra que as pessoas adquirem identidade e intimidade ao contar e seguir histrias, assim como culturas inteiras define seus valores e seu sentido de pertena por meio do mito e do pico. O eticista encontra uma dimenso narrativa em cada situao que depara. A narrativa torna-se uma parte inseparvel da vida. A capacidade de fazer histria e elaborar sentidos que vo para alm dos meros fatos, tornam o modelo narrativo um antdoto ao abstracionismo principialista95.

    O Paradigma Feminista ou de gnero decorrente da crescente tomada de

    conscincia de toda a sociedade com relao necessidade de mudana de um posicionamento de aes concretas visando acabar com a perniciosa discriminao de

    gnero. As anlises partem de polmicas em que mulheres so representantes de grupos

    91 PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de