o presente texto trata da análise comparativa dos contos felicidade clandestina

5
O presente texto trata da análise comparativa dos contos Felicidade Clandestina, da autora Clarice Lispector, e O Viajante Clandestino, do Mia Couto. Foram analisados os seguintes aspectos em ambos os contos, os narradores, as crianças, as mães, e a felicidade. OS NARRADORES No conto O Viajante Clandestino, temos um narrador personagem, que às vezes se apresenta em terceira pessoa, como no trecho “do meu assento eu podia ver a tristeza desembrulhando líquidas missangas no seu rosto”, e em outros momentos em primeira pessoa, como em “saímos da sala para o avião”. O narrador ainda utiliza em alguns momentos o discurso indireto “Até que a mãe debitou suas ordens. Ele que recolhesse a fantasia, aquele lugar era pertença exclusiva dos adultos”. No conto de Clarice Felicidade Clandestina, temos também um narrador personagem-protagonista “No dia seguinte fui a sua casa, literalmente correndo. Ela não morava em um sobrado como eu, e sim numa casa”, e a narração sempre é feita em terceira pessoa. O interessante deste conto é que diversas vezes o narrador “imagina” o que as pessoas estão pensando ou sentindo, mas nunca fala com precisão, “Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas...”, usando constantemente a palavra “devia”, para expressar sua opinião

Upload: carine-albuquerque

Post on 29-Jun-2015

736 views

Category:

Documents


14 download

TRANSCRIPT

Page 1: O presente texto trata da análise comparativa dos contos Felicidade clandestina

O presente texto trata da análise comparativa dos contos Felicidade

Clandestina, da autora Clarice Lispector, e O Viajante Clandestino, do Mia Couto.

Foram analisados os seguintes aspectos em ambos os contos, os narradores, as

crianças, as mães, e a felicidade.

OS NARRADORES

No conto O Viajante Clandestino, temos um narrador personagem, que

às vezes se apresenta em terceira pessoa, como no trecho “do meu assento eu

podia ver a tristeza desembrulhando líquidas missangas no seu rosto”, e em outros

momentos em primeira pessoa, como em “saímos da sala para o avião”. O narrador

ainda utiliza em alguns momentos o discurso indireto “Até que a mãe debitou suas

ordens. Ele que recolhesse a fantasia, aquele lugar era pertença exclusiva dos

adultos”.

No conto de Clarice Felicidade Clandestina, temos também um

narrador personagem-protagonista “No dia seguinte fui a sua casa, literalmente

correndo. Ela não morava em um sobrado como eu, e sim numa casa”, e a narração

sempre é feita em terceira pessoa. O interessante deste conto é que diversas vezes

o narrador “imagina” o que as pessoas estão pensando ou sentindo, mas nunca fala

com precisão, “Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos

imperdoavelmente bonitinhas...”, usando constantemente a palavra “devia”, para

expressar sua opinião sobre o que estaria se passando na cabeça das outras

personagens.

Page 2: O presente texto trata da análise comparativa dos contos Felicidade clandestina

AS CRIANÇAS

A criança em O Viajante Clandestino é um menino imaginativo,

inocente, infantil, e não demonstra nenhum sentimento ruim em relação ao mundo,

seus conceitos ainda não foram submetidos às convenções sociais, ele age como se

“o mundo fosse seu enorme brinquedo”. O menino brinca de forma natural com o

nome das coisas, fazendo relações completamente aceitáveis em relação a isso,

como “arvião” poderia ser facilmente o nome de avião, afinal ele sempre está no ar.

O autor nos apresenta através da criança um modo de vida que

perdemos ao longo do tempo ao nos tornarmos adultos, o que fica claro no trecho

“Seria aquele menino a fractura por onde, naquela toda frieza, espreitava a

humanidade?”. É interessante que o menino no fim do conto, se atenha ao sapo que

está na pista, porque ele não o vê como uma criatura que causa medo e nojo como

a maioria dos adultos, mas para aquele menino o sapo era como um bichinho

qualquer, um bichinho até muito engraçado, que tinha a boca maior que o próprio

corpo.

Em Felicidade Clandestina temos dois personagens infantis, um deles

é uma criança ingênua e criativa, capaz de caminhar pelas ruas a saltitar sem se

importar nenhum pouco com os pensamentos alheios, a menina de loiros cabelos de

Clarice Lispector, ela mesma segundo alguns autores. A menina tem um doce ar

infantil, se deixa enganar e ainda assim guarda a esperança no dia seguinte, mas

ela também possui um teor levemente adulto, já que ela não vive as emoções com

intensidade, como as outras crianças que sempre têm pressa, a menina Clarice,

prolonga ao máximo que pode sua felicidade, é cautelosa. Afinal por que voltaria

todos os dias na casa da filha do livreiro, se sabe o que a filha do livreiro pretende

“Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para sofrer, às vezes adivinho”,

porque sonhar e ter a esperança de ter o livro a cada dia era melhor do que

definitivamente não tê-lo, era talvez, melhor do que tê-lo.

Há ainda no texto de Clarice há outro modelo infantil, um modelo

contrario aos outros dois, a autora nos mostra uma criança cruel, sádica, mas ao

mesmo tempo nos explica porque dessa crueldade, “era gorda, baixa, sardenta e de

Page 3: O presente texto trata da análise comparativa dos contos Felicidade clandestina

cabelos excessivamente crespos” enquanto as outras meninas eram

“imperdoavelmente bonitinhas”. Ela maltratava as outras meninas, talvez porque

fosse diferente, talvez as meninas tivessem o que ela queria, mas ela tinha o que a

menina Clarice queria, e sabia o que fazer para maltratá-la e até certo ponto torturá-

la, esperando que isso talvez a fizesse sentir-se melhor.

AS MÃES

Em O Viajante Clandestino a mãe do menino está sempre o corrigindo,

o limitando, ainda que a única intenção dela seja de que o menino veja o mundo

pelos olhos dos adultos, como fica claro no trecho “Ele que recolhesse a fantasia,

aquele lugar era pertença exclusiva dos adultos”. Em ambos os contos as mãe se

chocam ao verem como seus filhos realmente são, porém são sobre diferentes

aspectos que esses choques acontecem. Neste conto a mãe se horroriza ao ouvir

do filho “Mãe, eu posso levar o sapo?” não por que o filho tenha feito algo realmente

ruim, mas por que isso a envergonhava diante dos outros passageiros fugia a regras

sociais. No fim a mãe vence, “o menino vai murcho como acento circunflexo” ao

avião. O porquê de a mãe agir assim? Talvez ela só esteja tentando fazer seu papel

na sociedade, fazer com que o filho se torne adulto, ainda que isso o faça perder

toda a sua naturalidade, e até certo ponto liberdade.

A mãe em Felicidade Clandestina não está tão presente na história

como no conto anterior, mas a mãe também tem uma enorme surpresa com a filha.

Do mesmo modo que no conto anterior, a mãe só esta fazendo o seu papel, educar

sua filha, e ao ver a maneira como sua filha enganou a outra menina, de o quanto

ela foi cruel, afinal o livro nunca havia saído da casa, sua filha nem sequer o leu, o

pior para a mãe “devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha”.

Page 4: O presente texto trata da análise comparativa dos contos Felicidade clandestina

A FELICIDADE

Em Felicidade Clandestina, a felicidade da protagonista nunca é vivida

em toda sua plenitude, como ela mesma diz “A felicidade sempre iria ser clandestina

para mim”, a personagem principal sente uma felicidade em esperar pelo livro, em

voltar a cada dia a casa da filha do livreiro, e quando finalmente tem a chance de ter

“pelo tempo que quisesse” seu tão sonhado livro, prolongava o prazer de lê-lo, talvez

porque consumar a leitura fosse o começo do fim, ela terminaria um dia, mais cedo

ou mais tarde, e por conseqüência teria de devolvê-lo.

A felicidade em O Viajante Clandestino está presente em quase todo

conto, o menino protagonista é uma criança naturalmente feliz. Feliz em seus mais

simples atos, desde imitar um avião, até em sonhar em ser “passaporteiro”. Ele vive

as emoções como uma criança, com uma intensidade que só vemos em crianças,

chora ao ser obrigado a deixar seu sapo pra trás e se alegra novamente ao vê-lo no

ato final. Mas sua felicidade também é clandestina assim como no conto de Clarice,

porque o sapo está ali no avião perto dele, mas se ele tentar usufruir dessa

felicidade, ela poderá acabar, já que dificilmente deixariam um sapo solto em um

avião.