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Editoração EletrônicaEstúdio Garamond / Luiz Oliveira
CapaEstúdio Garamond / Anderson Leal
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
M42pMaya, Ivone da Silva RamosO povo de papel : a sátira política na literatura de cordel / Ivone da Silva Ramos Maya. - Rio de Janeiro : Garamond, 2012. 184p. : 14x21 cmInclui bibliografiaISBN 978-85-7617-248-21. Barros, Leandro Gomes de 1865-1918 - Poesia. 2. Literatura de cordel brasileira. 3. Poesia política. 4. Política e literatura. I. Título.12-0600. CDD: 398.5 CDU: 398.51
A poesia é comércio de um mistério.
Anônimo popular
Inácio estava cansado, dormira mal a
noite, depois de haver andado muito na
véspera; estirou-se na rede, pegou em
um dos folhetos, a Princesa Magalona, e
começou a ler.
Machado de Assis, Uns Braços
Com medo ninguém escreve.
Clarice Lispector
À Adayl Stewart, que mora agora só no pensamento ou então no firmamento, Aninha e Nívea Floresta Lima: três “pilares” do Bem em minha vida;
Às Silvias (Gandelman, Powell, Goldenstein): minha gratidão pela espontânea solidariedade;
A João Pedro, Julia e Paulo Vinicius, os três Mayas: um galo sozinho, não tece uma manhã; ele precisará sempre de outros galos...
Ao Helcio Porto Magalhães: pela escuta atenta
Perfil
“Não foi príncipe dos poetas do asfalto, mas foi, no julgamento do
povo, rei da poesia do sertão, e do Brasil em estado puro. Leandro
foi o grande consolador e animador de seus compatrícios, aos quais
servia sonho e sátira, passando em revista acontecimentos fabulosos e
cenas do dia-a-dia, falando-lhes tanto do boi misterioso, filho da vaca
feiticeira, que não era outro senão o demo, como do real e presente
Antônio Silvino, êmulo de Lampião.”
Carlos Drummond de Andrade, mencionando a eleição de Olavo
Bilac, como príncipe dos poetas brasileiros, por um colegiado
de escritores em 1913, em concurso promovido pela revista
Fon-Fon do Rio de Janeiro. Concorda com o povo, no entanto,
que atribui a Leandro Gomes de Barros, o poeta paraibano
fundador da Literatura de Cordel impressa, o título indiscutível
de rei da poesia...
Sumário
Prefácio ................................................................................................................................ 13
APresentAção ................................................................................................................ 17
PoemAs selecionAdos .....................................................................21
introdução .........................................................................................27
capítulo i - o PoetA, o Ator PolÍtico e os temPos mudAdosI.1. O povo inexistente e os equívocos da implantação da República, 33I.2. O povo de papel, 40I.3. Leandro, o que “fala”: a passagem do poeta para ator político, 45I. 4. A nostalgia dos tempos passados: a época ideal, 49I. 5. Os tempos mudados ou depois da República tudo nos causa terror, 54
capítulo ii - os “PilAres” dA PrimeirA rePúblicAII.1 Eleições: “e a urna do governo cheia de graça”, 59
II.1.1 A exegese do termo, 60II.1.2 O termo permanece: os atores mudam, 75II.1.3 O termo se mantém: os atores se digladiam, 84
II.2 Impostos: “o brasileiro se torce mais do que um parafuso”, 89II.2.1 A doença, a desonra, a dívida, 100II.2.2 A sagração da alegoria, 113
II.3. Carestia e corrupção: “Só conhecemos agora política, fome e imposto”, 121
capítulo iii - nos bAstidores dA PolÍticA: o cozinheiro, o sAnto e o militAr
III.1. A política municipal, estadual e federal: “Um diz: eu quero é assim/ Diz outro: eu quero é assado”, 140
III.2 Do Padim ao General, 153
derrAdeiro ePÍlogo? 161
dAr A leAndro o que é de leAndro... 173
bibliogrAfiA, 179
Índice remissiVo, 183
Prefácio | 13
A críticA SertAnejA dAS PráticAS PolíticAS dA PrimeirA rePúblicA
Isabel Lustosa
Se alguém perguntar a mim,
Qual a minha opinião:
Eu digo peguem o Estado,
E vão com ele ao facão,
Lasquem ele pelo meio,
Cada um tire um quinhão.
Meus votos é que tudo ganhe,
E eu não tenha prejuízo,
Porém falar de um ou outro,
Isso não! Que eu tenho juízo:
Ninguém me dá de comer,
No dia que eu estiver liso.
Talvez os versos acima sintetizem bem a visão que Leandro Gomes de
Barros tinha do lugar do povo na política. A atitude sábia daquele que
já aprendeu que seu voto não tem valor e que sua opinião não interessa
a ninguém. Sabe ainda que em briga de cachorro grande o pobre não
deve se meter, pois acaba sempre perdendo. Assediado pelo candidato
na véspera do pleito, que promete o céu e a terra, ele é imediatamente
abandonado no dia seguinte.
A notável visão crítica desse poeta sobre a realidade política e social do
povo nordestino é o tema desse livro de Ivone da Silva Ramos Maya que nos
proporciona verdadeira revelação de um olhar especialíssimo, a partir de
ângulo muito particular da vida do país nos primeiros anos da República.
Pois o poeta sertanejo escreve diretamente do meio do povo e transmite de
forma crítica a realidade do país para o seu público leitor/ouvinte.
Se há muito de humor e até mesmo um certo cinismo em sua poesia,
ela consegue alcançar momentos de pura beleza quando descreve, com
14 | O povo de papel
as cores singelas que o verso popular lhe proporciona, o sofrimento do
sertanejo durante as frequentes secas. Não se pode negar a beleza de
versos como os que dizem: Seca a terra, as folhas caem/ Morre o gado, sai
o povo/O vento varre a campina,/Rebenta a seca de novo;/Cinco, seis mil
emigrantes/Flagelados, retirantes/Vagam mendigando o pão./Acabam-se os
animais/Ficando limpo os currais/Onde houve a criação./[...] /Alteia o dia,
o sol cresce/ deixando a terra abrasada/E tudo à fome morrendo/Amargos
prantos descendo/Como uma grande enxurrada.
Mas não é tanto a poesia, como o potencial de informações e de
compreensão sobre a política brasileira daquele momento, o tema deste
trabalho que se detém sobre a obra do primeiro grande poeta de cordel,
o paraibano Leandro Gomes de Barros. Nascido em 1865 e falecido em
1918, no Recife, sua obra acompanha a transição que marcou a passagem
da Monarquia para a República.
O livro de Ivone Maya baseia-se em pesquisa feita no acervo da
Fundação Casa de Rui Barbosa, privilegiando, na vasta obra do poeta,
aqueles folhetos que ele dedicou aos temas políticos e sociais do país.
Sua intenção é demonstrar que, ao contrário do que reza a tradição
historiográfica, não foi total o “emudecimento” do povo no contexto da
Primeira República. Na voz rústica do poeta sertanejo esboçou-se, senão
um protesto, pelo menos a revelação de que aquele povo tinha consciência
do fosso profundo que o separava de suas elites e da irremediável injustiça
de sua situação.
O poeta idealiza o tempo da Monarquia, associando à República
queda na qualidade de vida do povo, quando um “lençol de miséria
cobriu o mundo em geral”. O exagero das descrições desse passado ideal é
equivalente ao escárnio com que os poderosos o tratam no novo sistema.
Exemplar desse desengano é o contraste entre a visita que o Conde D´Eu
fizera a Recife e a que faria, dezessete anos depois, o presidente Afonso
Penna. A descrição que Leandro faz dessa última visita, com a enorme
expectativa do povo e a subsequente decepção, é um momento impagável
da literatura de cordel. A presença inglesa, tendo em vista os acordos
do governo em torno da construção da via férrea, é satirizada. Em vez
Prefácio | 15
de dar atenção ao povo que fora à estação recebê-lo soltando foguetes,
o presidente se fez escoltar por dois ingleses que pretendiam “ganhar
Brasil desta vez”. Concluindo: Mim é estrangeiro/ Sabe andar sutil/Mim
compra Brasil/E vende brasileiro.
Como revela Ivone Maya, a poesia de Leandro Gomes de Barros é
fonte de informação sobre o funcionamento do sistema representativo,
o federalismo, as eleições, os impostos e a carestia. Descrevendo
coronéis, chefes do cangaço e membros das oligarquias locais, bem
como as relações entre os poderes municipal, estadual e federal, ele
proporcionava a seus contemporâneos conhecimentos importantes
para o despertar de um sentido de cidadania, ainda que marcado por
uma nota de ceticismo.
Por outro lado, momentos cruciais da história do país, especialmente
a segunda década do século XX, com a “Política de salvações”, no
governo Hermes da Fonseca; a atuação política do Padre Cícero no
contexto da queda da oligarquia Accioli e a eleição do general Dantas
Barreto, em Pernambuco, marcando o fim do reinado de Rosa e Silva,
formam um conjunto impressionante de documentos sobre aquele
tempo e aquele lugar. Como diz Ivone Maya, a obra de Leandro Gomes
de Barros proporciona um painel bastante eficaz para “o entendimento
das relações de poder e dos fatos que realmente compunham a história
daquele período.”
Neste painel, a surpresa está por conta da atuação política do
cangaceiro Antonio Silvino, antecessor de Lampião no poder e nas
práticas. A ponto de, bem antes daquele que também um dia se arvorou
“governador do sertão”, Silvino ter enviado telegrama ao governador da
Paraíba afirmando seu poder sobre o Estado: Telegrafei ao governo/E ele
lá recebeu,/Mandei-lhe dizer doutor,/Cuide lá no que for seu/A capital lhe
pertence/Porém o estado é meu. O envolvimento direto do cangaceiro
no processo eleitoral, fazendo campanha para a oposição, é episódio
que merecia um estudo específico. Depois de dizer que De Pombal até
Campina, Não houve um só eleitor/ Que eu não fosse a casa dele/ Pedir-
lhe com muito amor/Que votasse em Rego Barros/Para ser governador”, o
16 | O povo de papel
cangaceiro se queixa que o governo atual/ Julga que a oposição/Não tem
direito ao Brasil/Pertence a outra nação.
Acossado pela seca, pelos impostos, pelo sorteio militar, pelos
candidatos, o sertanejo não tem perspectiva de melhora. Talvez venha
daí o entusiasmo quase místico com que Leandro Gomes de Barros
festeja em sua poesia a queda do poder de Rosa e Silva e sua substituição
por Dantas Barreto, em 1911: Um nome que nunca mais/ Se apagará na
história/ Traça, não come o papel/Onde se escreve essa glória,/Toda raça
bronzeada,/Guardará como memória. A raça bronzeada festejava um
general que vinha substituir o dândi Rosa e Silva, homem refinado que
estava no poder desde 1896 e que desprezava tanto sua terra e seu povo
que nem desembarcava do navio quando vinha ao Recife despachar com
seus secretários. Morava no Rio mas estava sempre em Paris, e só vinha
a Pernambuco de passagem.
Entusiasmo que, certamente, depois daria lugar ao mesmo desengano
anterior. E é este que dá o tom da leitura que o poeta faz do Brasil e de
seu destino. Certamente, a grande contribuição deste livro de Ivone
Maya é a revelação desse olhar sertanejo, desencantado e irônico sobre
seu lugar na história em um momento que, pela tradição, se acreditava
que o povo apenas assistia bestializado a história passar.
Suspira Brasil ! suspira!
Tens razão de suspirar,
Já vi-te rir no prazer,
Hoje te vejo chorar,
Qual uma barca sem norte,
Vendo os vai-vem da sorte
Esperando naufragar.