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O POVO DE PAPEL A SÁTIRA POLÍTICA NA LITERATURA DE CORDEL Ivone da Silva Ramos Maya

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O POVO DE PAPEL a sátira política na literatura de cordel

Ivone da Silva Ramos Maya

conselho editorial

Bertha K. BeckerCandido MendesCristovam Buarque Ignacy SachsJurandir Freire CostaLadislau DowborPierre Salama

O POVO DE PAPEL a sátira política na literatura de cordel

Ivone da Silva Ramos Maya

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, por qual-quer meio, seja total ou parcial, constitui violação da Lei nº 9.610/98.

Copyright © 2011, Ivone da Silva Ramos Maya

Direitos cedidos para esta edição àEditora Garamond Ltda.

Rua da Estrela, 79 - 3º andar - Rio CompridoRio de Janeiro - Brasil - 20.251-021

Tel: (21) [email protected]

RevisãoCarmem Cacciacarro

Editoração EletrônicaEstúdio Garamond / Luiz Oliveira

CapaEstúdio Garamond / Anderson Leal

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

M42pMaya, Ivone da Silva RamosO povo de papel : a sátira política na literatura de cordel / Ivone da Silva Ramos Maya. - Rio de Janeiro : Garamond, 2012. 184p. : 14x21 cmInclui bibliografiaISBN 978-85-7617-248-21. Barros, Leandro Gomes de 1865-1918 - Poesia. 2. Literatura de cordel brasileira. 3. Poesia política. 4. Política e literatura. I. Título.12-0600. CDD: 398.5 CDU: 398.51

A poesia é comércio de um mistério.

Anônimo popular

Inácio estava cansado, dormira mal a

noite, depois de haver andado muito na

véspera; estirou-se na rede, pegou em

um dos folhetos, a Princesa Magalona, e

começou a ler.

Machado de Assis, Uns Braços

Com medo ninguém escreve.

Clarice Lispector

À Adayl Stewart, que mora agora só no pensamento ou então no firmamento, Aninha e Nívea Floresta Lima: três “pilares” do Bem em minha vida;

Às Silvias (Gandelman, Powell, Goldenstein): minha gratidão pela espontânea solidariedade;

A João Pedro, Julia e Paulo Vinicius, os três Mayas: um galo sozinho, não tece uma manhã; ele precisará sempre de outros galos...

Ao Helcio Porto Magalhães: pela escuta atenta

Perfil

“Não foi príncipe dos poetas do asfalto, mas foi, no julgamento do

povo, rei da poesia do sertão, e do Brasil em estado puro. Leandro

foi o grande consolador e animador de seus compatrícios, aos quais

servia sonho e sátira, passando em revista acontecimentos fabulosos e

cenas do dia-a-dia, falando-lhes tanto do boi misterioso, filho da vaca

feiticeira, que não era outro senão o demo, como do real e presente

Antônio Silvino, êmulo de Lampião.”

Carlos Drummond de Andrade, mencionando a eleição de Olavo

Bilac, como príncipe dos poetas brasileiros, por um colegiado

de escritores em 1913, em concurso promovido pela revista

Fon-Fon do Rio de Janeiro. Concorda com o povo, no entanto,

que atribui a Leandro Gomes de Barros, o poeta paraibano

fundador da Literatura de Cordel impressa, o título indiscutível

de rei da poesia...

Sumário

Prefácio ................................................................................................................................ 13

APresentAção ................................................................................................................ 17

PoemAs selecionAdos .....................................................................21

introdução .........................................................................................27

capítulo i - o PoetA, o Ator PolÍtico e os temPos mudAdosI.1. O povo inexistente e os equívocos da implantação da República, 33I.2. O povo de papel, 40I.3. Leandro, o que “fala”: a passagem do poeta para ator político, 45I. 4. A nostalgia dos tempos passados: a época ideal, 49I. 5. Os tempos mudados ou depois da República tudo nos causa terror, 54

capítulo ii - os “PilAres” dA PrimeirA rePúblicAII.1 Eleições: “e a urna do governo cheia de graça”, 59

II.1.1 A exegese do termo, 60II.1.2 O termo permanece: os atores mudam, 75II.1.3 O termo se mantém: os atores se digladiam, 84

II.2 Impostos: “o brasileiro se torce mais do que um parafuso”, 89II.2.1 A doença, a desonra, a dívida, 100II.2.2 A sagração da alegoria, 113

II.3. Carestia e corrupção: “Só conhecemos agora política, fome e imposto”, 121

capítulo iii - nos bAstidores dA PolÍticA: o cozinheiro, o sAnto e o militAr

III.1. A política municipal, estadual e federal: “Um diz: eu quero é assim/ Diz outro: eu quero é assado”, 140

III.2 Do Padim ao General, 153

derrAdeiro ePÍlogo? 161

dAr A leAndro o que é de leAndro... 173

bibliogrAfiA, 179

Índice remissiVo, 183

Prefácio | 13

A críticA SertAnejA dAS PráticAS PolíticAS dA PrimeirA rePúblicA

Isabel Lustosa

Se alguém perguntar a mim,

Qual a minha opinião:

Eu digo peguem o Estado,

E vão com ele ao facão,

Lasquem ele pelo meio,

Cada um tire um quinhão.

Meus votos é que tudo ganhe,

E eu não tenha prejuízo,

Porém falar de um ou outro,

Isso não! Que eu tenho juízo:

Ninguém me dá de comer,

No dia que eu estiver liso.

Talvez os versos acima sintetizem bem a visão que Leandro Gomes de

Barros tinha do lugar do povo na política. A atitude sábia daquele que

já aprendeu que seu voto não tem valor e que sua opinião não interessa

a ninguém. Sabe ainda que em briga de cachorro grande o pobre não

deve se meter, pois acaba sempre perdendo. Assediado pelo candidato

na véspera do pleito, que promete o céu e a terra, ele é imediatamente

abandonado no dia seguinte.

A notável visão crítica desse poeta sobre a realidade política e social do

povo nordestino é o tema desse livro de Ivone da Silva Ramos Maya que nos

proporciona verdadeira revelação de um olhar especialíssimo, a partir de

ângulo muito particular da vida do país nos primeiros anos da República.

Pois o poeta sertanejo escreve diretamente do meio do povo e transmite de

forma crítica a realidade do país para o seu público leitor/ouvinte.

Se há muito de humor e até mesmo um certo cinismo em sua poesia,

ela consegue alcançar momentos de pura beleza quando descreve, com

14 | O povo de papel

as cores singelas que o verso popular lhe proporciona, o sofrimento do

sertanejo durante as frequentes secas. Não se pode negar a beleza de

versos como os que dizem: Seca a terra, as folhas caem/ Morre o gado, sai

o povo/O vento varre a campina,/Rebenta a seca de novo;/Cinco, seis mil

emigrantes/Flagelados, retirantes/Vagam mendigando o pão./Acabam-se os

animais/Ficando limpo os currais/Onde houve a criação./[...] /Alteia o dia,

o sol cresce/ deixando a terra abrasada/E tudo à fome morrendo/Amargos

prantos descendo/Como uma grande enxurrada.

Mas não é tanto a poesia, como o potencial de informações e de

compreensão sobre a política brasileira daquele momento, o tema deste

trabalho que se detém sobre a obra do primeiro grande poeta de cordel,

o paraibano Leandro Gomes de Barros. Nascido em 1865 e falecido em

1918, no Recife, sua obra acompanha a transição que marcou a passagem

da Monarquia para a República.

O livro de Ivone Maya baseia-se em pesquisa feita no acervo da

Fundação Casa de Rui Barbosa, privilegiando, na vasta obra do poeta,

aqueles folhetos que ele dedicou aos temas políticos e sociais do país.

Sua intenção é demonstrar que, ao contrário do que reza a tradição

historiográfica, não foi total o “emudecimento” do povo no contexto da

Primeira República. Na voz rústica do poeta sertanejo esboçou-se, senão

um protesto, pelo menos a revelação de que aquele povo tinha consciência

do fosso profundo que o separava de suas elites e da irremediável injustiça

de sua situação.

O poeta idealiza o tempo da Monarquia, associando à República

queda na qualidade de vida do povo, quando um “lençol de miséria

cobriu o mundo em geral”. O exagero das descrições desse passado ideal é

equivalente ao escárnio com que os poderosos o tratam no novo sistema.

Exemplar desse desengano é o contraste entre a visita que o Conde D´Eu

fizera a Recife e a que faria, dezessete anos depois, o presidente Afonso

Penna. A descrição que Leandro faz dessa última visita, com a enorme

expectativa do povo e a subsequente decepção, é um momento impagável

da literatura de cordel. A presença inglesa, tendo em vista os acordos

do governo em torno da construção da via férrea, é satirizada. Em vez

Prefácio | 15

de dar atenção ao povo que fora à estação recebê-lo soltando foguetes,

o presidente se fez escoltar por dois ingleses que pretendiam “ganhar

Brasil desta vez”. Concluindo: Mim é estrangeiro/ Sabe andar sutil/Mim

compra Brasil/E vende brasileiro.

Como revela Ivone Maya, a poesia de Leandro Gomes de Barros é

fonte de informação sobre o funcionamento do sistema representativo,

o federalismo, as eleições, os impostos e a carestia. Descrevendo

coronéis, chefes do cangaço e membros das oligarquias locais, bem

como as relações entre os poderes municipal, estadual e federal, ele

proporcionava a seus contemporâneos conhecimentos importantes

para o despertar de um sentido de cidadania, ainda que marcado por

uma nota de ceticismo.

Por outro lado, momentos cruciais da história do país, especialmente

a segunda década do século XX, com a “Política de salvações”, no

governo Hermes da Fonseca; a atuação política do Padre Cícero no

contexto da queda da oligarquia Accioli e a eleição do general Dantas

Barreto, em Pernambuco, marcando o fim do reinado de Rosa e Silva,

formam um conjunto impressionante de documentos sobre aquele

tempo e aquele lugar. Como diz Ivone Maya, a obra de Leandro Gomes

de Barros proporciona um painel bastante eficaz para “o entendimento

das relações de poder e dos fatos que realmente compunham a história

daquele período.”

Neste painel, a surpresa está por conta da atuação política do

cangaceiro Antonio Silvino, antecessor de Lampião no poder e nas

práticas. A ponto de, bem antes daquele que também um dia se arvorou

“governador do sertão”, Silvino ter enviado telegrama ao governador da

Paraíba afirmando seu poder sobre o Estado: Telegrafei ao governo/E ele

lá recebeu,/Mandei-lhe dizer doutor,/Cuide lá no que for seu/A capital lhe

pertence/Porém o estado é meu. O envolvimento direto do cangaceiro

no processo eleitoral, fazendo campanha para a oposição, é episódio

que merecia um estudo específico. Depois de dizer que De Pombal até

Campina, Não houve um só eleitor/ Que eu não fosse a casa dele/ Pedir-

lhe com muito amor/Que votasse em Rego Barros/Para ser governador”, o

16 | O povo de papel

cangaceiro se queixa que o governo atual/ Julga que a oposição/Não tem

direito ao Brasil/Pertence a outra nação.

Acossado pela seca, pelos impostos, pelo sorteio militar, pelos

candidatos, o sertanejo não tem perspectiva de melhora. Talvez venha

daí o entusiasmo quase místico com que Leandro Gomes de Barros

festeja em sua poesia a queda do poder de Rosa e Silva e sua substituição

por Dantas Barreto, em 1911: Um nome que nunca mais/ Se apagará na

história/ Traça, não come o papel/Onde se escreve essa glória,/Toda raça

bronzeada,/Guardará como memória. A raça bronzeada festejava um

general que vinha substituir o dândi Rosa e Silva, homem refinado que

estava no poder desde 1896 e que desprezava tanto sua terra e seu povo

que nem desembarcava do navio quando vinha ao Recife despachar com

seus secretários. Morava no Rio mas estava sempre em Paris, e só vinha

a Pernambuco de passagem.

Entusiasmo que, certamente, depois daria lugar ao mesmo desengano

anterior. E é este que dá o tom da leitura que o poeta faz do Brasil e de

seu destino. Certamente, a grande contribuição deste livro de Ivone

Maya é a revelação desse olhar sertanejo, desencantado e irônico sobre

seu lugar na história em um momento que, pela tradição, se acreditava

que o povo apenas assistia bestializado a história passar.

Suspira Brasil ! suspira!

Tens razão de suspirar,

Já vi-te rir no prazer,

Hoje te vejo chorar,

Qual uma barca sem norte,

Vendo os vai-vem da sorte

Esperando naufragar.