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O PORCO-DO-MATO NA MITOLOGIA DOS CINTA LARGA, SURUÍ PAITER E OUTROS POVOS VIZINHOS Aila V. Bolzan Relatório Final - Iniciação Científica (bolsa CNPq), PUCSP Orientação de Dorothea V. Passetti. Julho de 2009 Prêmio Menção Honrosa Iniciação Científica – Antropologia, CIÊNCIAS HUMANAS Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica - PUCSP O interesse pela questão surgiu primeiramente com o projeto de pesquisa “O porco-do-mato e o tucum – objetos, mitos e ritos entre os índios Cinta Larga e Suruí Paiter” de minha orientadora Dorothea Passetti, desenvolvido a partir do manuseio e observação dos objetos Cinta Larga, pertencentes à coleção 1 doada por Carmen Junqueira ao acervo do Museu da Cultura da PUC-SP, local onde faço estágio há dois anos, e conseqüentemente desenvolvi uma relação de proximidade com este material. Com a leitura do projeto me interessei em pesquisar uma das propostas apresentadas, que visa entender a relação existente entre a tradição oral e a cultura material da etnia Cinta Larga. Algumas flechas Cinta Larga possuem um trançado de pêlos de caititu em sua haste, além disto, conforme observação de Passetti, a queixada e o caititu (ou genericamente o porco-do-mato) são animais prediletos a serem caçados e comidos por estes indígenas. A flecha é produzida exclusivamente pelos homens, que também fazem 1 A coleção é composta de 141 objetos: 2 diademas plumários; 20 flechas; 4 arcos; 1 adereço para a cabeça, de pele de onça; 1 lambrete de resina com estojo; 2 cintas de entrecasca de arvore; 7 cestos; 2 potes de cerâmica; 7 fusos; 1 rede de algodão; 1 adorno ritual de palha; 1 tipóia de algodão; 4 pares de munhequeiras tecidas; 1 munhequeira pequena; 3 pares de braçadeiras, 41 colares de tamanho vaiado e de diversos tipos; 3 pares de pulseiras, 1 amuleto de ouvido de paca; 14 rolos de fungo usados como amarrilhos; 1 pente de madeira; 2 casas de marimbondo; 1 favo de mel; 1 cogumelo defumador, 3 machados de pedra (2 com cabo de madeira); 1 borduna; 1 par de obejetos para produzir fogo; 15 flautas transversais, ainda, dois cadernos contendo desenhos e gratujas em hidrocor, 400 fotos preto & branco de autoria de Jesco Von Putkamer e 120 fotos coloridas de Carmem Junqueira .

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O PORCO-DO-MATO NA MITOLOGIA DOS

CINTA LARGA, SURUÍ PAITER E OUTROS POVOS VIZINHOS

Aila V. Bolzan

Relatório Final - Iniciação Científica (bolsa CNPq), PUCSP

Orientação de Dorothea V. Passetti. Julho de 2009

Prêmio Menção Honrosa Iniciação Científica – Antropologia, CIÊNCIAS HUMANAS

Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica - PUCSP

O interesse pela questão surgiu primeiramente com o projeto de pesquisa “O

porco-do-mato e o tucum – objetos, mitos e ritos entre os índios Cinta Larga e Suruí

Paiter” de minha orientadora Dorothea Passetti, desenvolvido a partir do manuseio e

observação dos objetos Cinta Larga, pertencentes à coleção1 doada por Carmen

Junqueira ao acervo do Museu da Cultura da PUC-SP, local onde faço estágio há dois

anos, e conseqüentemente desenvolvi uma relação de proximidade com este material.

Com a leitura do projeto me interessei em pesquisar uma das propostas

apresentadas, que visa entender a relação existente entre a tradição oral e a cultura

material da etnia Cinta Larga.

Algumas flechas Cinta Larga possuem um trançado de pêlos de caititu em sua

haste, além disto, conforme observação de Passetti, a queixada e o caititu (ou

genericamente o porco-do-mato) são animais prediletos a serem caçados e comidos por

estes indígenas. A flecha é produzida exclusivamente pelos homens, que também fazem

1 A coleção é composta de 141 objetos: 2 diademas plumários; 20 flechas; 4 arcos; 1 adereço para a cabeça, de pele de onça; 1 lambrete de resina com estojo; 2 cintas de entrecasca de arvore; 7 cestos; 2 potes de cerâmica; 7 fusos; 1 rede de algodão; 1 adorno ritual de palha; 1 tipóia de algodão; 4 pares de munhequeiras tecidas; 1 munhequeira pequena; 3 pares de braçadeiras, 41 colares de tamanho vaiado e de diversos tipos; 3 pares de pulseiras, 1 amuleto de ouvido de paca; 14 rolos de fungo usados como amarrilhos; 1 pente de madeira; 2 casas de marimbondo; 1 favo de mel; 1 cogumelo defumador, 3 machados de pedra (2 com cabo de madeira); 1 borduna; 1 par de obejetos para produzir fogo; 15 flautas transversais, ainda, dois cadernos contendo desenhos e gratujas em hidrocor, 400 fotos preto & branco de autoria de Jesco Von Putkamer e 120 fotos coloridas de Carmem Junqueira .

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o trançado para adorná-la. Além de indumentária, ela é arma de caça e guerra e também

um objeto cerimonial trocado em casamentos e festas.

O objetivo desta pesquisa é investigar, nas publicações dos poucos autores que

trabalharam com a etnia, a presença do animal em suas diversas aparições,

principalmente na mitologia, visando este trançado. A obra mais importante de relatos

mitológicos Cinta Larga é Mantere Ma Kwé Tinhin – histórias de maloca antigamente

(1988) narrados por Pichuvy Cinta Larga e organizados por Ana Leonel Queiroz, Ivete

Lara Camargos Walty e Leda Lima Leonel. O livro se divide em duas partes: “Os

Mitos” e “Outras histórias”, relativas ao período após o contanto com o branco. A parte

dos mitos é composta por vinte e seis narrativas em torno de oitenta páginas, com

participação de todos os personagens da floresta, incluindo vivos e não vivos.

Além dos Cinta Larga, os índios Suruí Paiter, vizinhos a eles, pertencem ao

mesmo tronco lingüístico, que é Tupi-Mondé. No passado eram grupos inimigos que se

enfrentavam em guerras sangrentas, mas atualmente mantém relações amigáveis. Há

importantes semelhanças entre as duas etnias, dentre elas a língua e a flecha, que

também possui o trançado com pêlos de caititu, porém com diferenças significativas que

serão apresentadas adiante.

Os Suruí Paiter também foram alvo deste trabalho, através da leitura minuciosa

das obras de Betty Mindlin, antropóloga que durante anos realizou pesquisas entre os

povos indígenas da região e publicou diversos livros de mitologia com narrativas dos

Suruí Paiter, Macurap, Tupari, Ajuru, Jabuti, Arikapu e Aruá. Dentre eles, talvez os

mais interessantes para esta reflexão, são aqueles dos Suruí, por apresentarem

semelhanças aos Cinta Larga. Com a leitura deste material, pude estabelecer algumas

comparações entre os dois grupos, relevantes para a pesquisa.

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Os estudos antropológicos sobre os índios Cinta Larga, realizados por

pesquisadores da PUC-SP, se desenvolveram inicialmente com Carmen Junqueira, a

partir de 1979 (JUNQUEIRA, 2002:6). Estes estudos resultaram em relatórios e artigos

publicados, e também em Sexo e Desigualdade entre os Kamaiurá e Cinta Larga

(2002). João Dal Poz, antropólogo de outra instituição, também dedicou seus estudos a

este grupo, sua dissertação de mestrado e na tese de doutorado, apresenta as relações

observadas ao longo dos anos de trabalho com eles.

A bibliografia Cinta Larga é relativamente escassa, uma vez que a etnia foi

contatada recentemente, a partir dos anos 70. Além da leitura das publicações de ambos

os autores citados acima, vale ressaltar a importância do acervo fotográfico de Jesco

Von Putkamer, que acompanhou os primeiros contatos com os povos na região do Mato

Grosso e Rondônia. O Museu da Cultura possui uma coleção de reproduções deste

registro: 400 fotos preto & branco além de 120 fotos coloridas de Carmen Junqueira.

A respeito dos índios Suruí Paiter, Betty Mindlin realizou seus estudos

concomitantemente aos de Carmen Junqueira sobre os Cinta Larga, como parte do

Programa Polonoroeste2, e deu atenção especial à mitologia Suruí.

Carmen Junqueira, que me guiou pela aventura indígena, fazia pesquisa

etnológica sobre os Cinta Larga de Serra Morena. Fizemos quase todas as

viagens ao mesmo tempo – eu indo para os Suruí e ela para Serra Morena

– e o companheirismo dessas andanças teve tanto encanto quanto estar

entre os índios. Na volta trocávamos o que íamos descortinando sobre o

mundo tribal e íamos juntas, avaliando a situação dramática dos índios

(MINDLIN, 1985:14).

2 O Programa Polonoroeste se iniciou a partir de 1982 com recursos do Governo brasileiro e do Banco Mundial. O objetivo central era pavimentar a estrada BR-364 (Cuiabá-PortoVelho) na região compreendida entre os estados de Mato Grosso e Rondônia. Neste período desenvolveram-se projetos de análise sobre as mudanças enfrentadas pelas populações locais em conseqüência da política de integração regional, além do mais, foram feitos estudos de avaliação de impacto ambiental, programas de assistência sanitária e de proteção aos índios da região.

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Estes estudos resultaram na tese de doutorado de Mindlin intitulada Nós Paiter

os Suruí de Rondônia (1985), orientada por Carmen Junqueira na PUC-SP.

Posteriormente este material foi transformado em livro compilando um estudo

etnográfico extenso sobre estes indígenas. Além deste livro foi utilizada a publicação

mitológica Vozes da origem: Betty Mindlin e narradores Suruí Paiter (1996).

É importante, de certa maneira, dar continuidade aos estudos anteriormente

realizados sobre as etnias aqui problematizadas. Com abordagem distinta, este trabalho

reafirma a importância destas culturas, uma vez que a investigação da mitologia

registrada e a conservação dos objetos tradicionais são de fundamental importância para

o registro e resgate das tradições indígenas, significativamente dissolvidas no decorrer

das suas histórias recentes.

Mitos e lendas parecem permanecer vivos por um período mais longo que os

objetos materiais e os adornos corporais, cada vez mais em desuso. Para Mindlin

(2001) enquanto houver alguém que domine a língua tradicional, os mitos continuarão

sendo narrados, e cabe aos antropólogos e colaboradores encorajar possíveis

publicações.

Em matéria publicada recentemente pelo Jornal Folha de S. Paulo, no caderno

Mais, foi divulgado que, pela primeira vez no Brasil, o IBGE (Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística) levantará oficialmente o número de línguas faladas no território.

Estima-se que sejam faladas 220 línguas, sendo 190 indígenas. Manuela Carneiro da

Cunha, em matéria especial para a Folha, comenta o levantamento que será realizado

ano que vem, e afirma que há um grande divisor de águas na maneira de se perceberem

os índios, sendo que até recentemente entendia-se que os índios eram como resquícios

do passado e destinados a desaparecer física e culturalmente. Nesta matéria, a

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antropóloga traça um panorama geral da história da política indigenista brasileira, desde

a colonização até os dias atuais, e a maneira como os índios foram inúmeras vezes,

incorporadas à margem da sociedade brasileira.

No mesmo caderno publicado no dia 12 de junho, Luiza Bandeira, repórter

enviada à fazenda de Mâncio Lima (AC), divisa com o Peru, relata um pouco a situação

dos Poianaua, índios que atualmente se encontram em esforço conjunto para recuperar

um idioma que foi proibido há quase cem anos. Os esforços dos Poianaua reafirmam a

importância da língua indígena para a sobrevivência do grupo. Mesmo assim, os

resultados ainda são limitados, pois apenas três pessoas idosas conhecem o idioma,

sendo que apenas uma mulher o fala fluentemente. Em 2002, após a demarcação da

terra indígena Poianaua, a FUNAI passou a reconhecer a escola local, adotando um

modelo de ensino que valoriza a cultura indígena. Segundo Jósimo Constante, indígena

Poiaunaua, a língua é complexa e segue uma lógica complicada. “Esta complicação é

reflexo de um sistema lingüístico que traduz uma forma diferente de enxergar o mundo.

São essas riquezas, escondidas na diversidade das línguas, que desaparecem quando

morrem os idiomas”. (BANDEIRA, 2009: 10)

* * *

Os índios Cinta Larga e Suruí-Paiter, são habitantes do Parque Aripuanã criado

em 1969, situado entre os estados do Mato Grosso e Rondônia. Passaram a ser

estudados somente a partir dos anos 1970, vivendo as conseqüências culturais e

políticas do contato e pacificação pelos subseqüentes órgãos do Estado para este fim

(SPI e FUNAI). Na região, também vivem outras etnias pertencentes ao tronco Tupi e a

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família Mondé, ou seja, falam a língua Tupi-Mondé. São eles: os Cinta Larga, Suruí

Paiter, Aruá, Gavião e Zoró.

Os Cinta Larga e os Suruí-Paiter, falam a mesma língua e vivem próximos.

Mindlin (1985) observou que a população Suruí apresenta importantes diferenças

físicas, além de outras, em relação aos grupos habitantes do Parque.

Com mitologia e traços culturais parecidos, há diferenças físicas grandes

entre os grupos – embora talvez não entre os Cinta Larga e os Gavião.

Os Suruí são menores, mais magros e escuros que os Cinta Larga; os

Zoró são claros e de traços muito finos. Todos furam o lábio inferior

para inserir um tembetá de resina e muitos ainda usam essa prática. (...)

Os Suruí e os Zoró tem tatuagens no rosto (MINDLIN, 1985:25)

Ambos os grupos, exaltam a caça como atividade principal e como fonte de

alimento predileto. Segundo Junqueira, para os Cinta Larga “A caça é a atividade que

mais apreciam, principalmente se puder ser feita com espingarda” (JUNQUEIRA:

1984:221). As duas etnias também desenvolvem atividade agrícola com certa variedade

de produtos. A dieta Cinta Larga inclui, principalmente, a mandioca, o cará e o milho

“As tarefas agrícolas não atraem muito os Cinta Larga, embora os produtos da roça

sejam importantes na sua dieta” (idem, ibidem: 219). Os Suruí além dos três vegetais

elencados acima, também cultivam o inhame e a batata, dedicam-se mais à roça do que

a etnia vizinha. Geralmente as mulheres se responsabilizam pela roça, mesmo quando

acompanhadas dos homens “A derrubada é realizada exclusivamente por homens e

contrasta com o plantio, no qual a divisão do trabalho não é marcada com clareza (...)

havendo homem presente, a mulher não pega na enxada, mas, eventualmente, planta”

(idem, ibidem: 220).

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Colher é trabalho de mulher, principalmente as batatas e os inhames. Os

homens apenas apontam os melhores lugares e esperam conversando (...)

vez ou outra os homens ajudam a colher e um homem sozinho, com a

mulher em reclusão (com nenê novo, por exemplo) vai buscar a própria

comida, se não houver alguém que o faça (MINDLIN, 1985:39).

Os homens saem à caça e confeccionam objetos utilizados nas atividades

consideradas masculinas; como arcos e flechas, além de construírem casas e

acampamentos. Tanto homens quanto mulheres saem juntos à mata para coletar frutos,

mel, plantas e possíveis fontes de alimento, além de buscar material para o artesanato.

Quando há comida na aldeia, é aquela trazida da roça, da caça, da pesca e da produção

da roça, revelando que se trata de culturas que não armazenam provisões.

Uma das principais diferenças entre as duas etnias, Cinta Larga e Suruí Paiter,

consiste na forma que dividem suas tarefas. Entres os Suruí há uma divisão que separa a

aldeia em duas metades.

O que orienta a divisão entre o mato e a aldeia é a existência das duas

linhagens Gamep3. Para pertencer a um dos lados, um homem deve ter um

cunhado no outro. As mulheres casadas com homens do lado “metare”

são, em tese, irmãs ou pertencem à linhagem Gamep do lado aldeia –

“íwai” (...) Os homens e suas mulheres “metare” fabricam presentes para

dar ao cunhado e a mulher da metade da comida “íwai”, enquanto estes

fornecem o alimento (MINDLIN, 1985:48). 3 Os Suruí é se subdividem em quatro grupos patrilineares: os Gamep, Gamir, Makor e Kaban (entrelaçado aos Gamep, os Kaban são descendentes de uma mulher roubada aos Cinta Larga).

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Uma metade é denominada (“íwai”) da roça, a outra “metare” (do mato). Todo

ano, os da roça promovem uma festa oferecendo a makaloba, bebida fermentada

produzida a partir do milho, cará ou mandioca, cultivados na roça. A bebida é ingerida

em abundância e vomitada fora da casa. Em troca da festa oferecida pelos “íwai’, os do

mato retribuem com colares, panelas, enfeites, cocares e flechas, confeccionados no

mato. No ano seguinte, essas metades se invertem.

Ligado à troca de bens (alimentos por objetos) a divisão mato/aldeia existe

também como resultado dos casamentos e da troca de mulheres. Sem um

cunhado no lado oposto, um homem tem que se retirar do “metare” e parar

de fabricar artesanato. (...) Em largos traços, é essa a divisão

“metare/ìwai”. Aí se manifestam a troca das mulheres, as trocas das festas

Mapimaí (de comida por objetos e trabalho) e a cooperação no trabalho,

orientada para ocasiões especiais, as festas com derrubadas no mato

(idem, ibidem:48-50).

Para Mindlin, as metades são importantes na manutenção das atividades

econômicas, para o casamento, festas, rituais e moradia. A autora afirma que esta é uma

oposição aparentemente rara: mulheres, trabalho e bens são trocados entre os dois lados,

entre duas linhagens “A oposição mato/roça parece rara. Investigando superficialmente

a bibliografia sobre as tribos brasileiras, ela aparece, por exemplo, nos Xicrin, em que

uma metade definida por certos círculos de idade vai para o mato caçar e tem trocas

intensas com o outro, encarregado da roça” (idem, ibidem: 47).

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Os índios Cinta Larga não utilizam este tipo de divisão em duas metades

mato/aldeia a partir das linhagens patrilineares, mas promovem festas semelhantes,

muitas vezes para celebrar a construção de uma nova casa ou para anunciar uma guerra,

onde o anfitrião oferece a bebida e a comida em troca dos objetos trazidos pelos

convidados, em sua maioria, provenientes de outras aldeias Cinta Larga. Segundo relato

de Dal Poz (1991), a chicha é muito consumida durante os dias de festa, sendo

considerada também um dos elementos centrais do evento4. A bebida é feita por

mulheres que passaram meses cultivando o produto da roça, seja mandioca, cará ou

milho. O vegetal é escolhido a critério do convidado; ele é quem decide do que será

feita a bebida. Para os anfitriões, os convidados assumem o papel do “outro”, observa o

autor ao comparar este comportamento ao dos Suruí, que deixam clara essa relação ao

descreverem os convidados como “não parente”, associados sempre ao Metare

(acampamento próximo à aldeia onde fazem artesanato) fora da maloca (1991).

Para a festa, é preciso capturar um filhote de queixada, animal

por excelência destinando ao sacrifício ritual. Caititu, macaco,

arara, quati, mutum, jacamim e outros, servem igualmente de

vítima. Aprisionado durante uma caçada, ou recebido como

presente, o animal também vai receber um nome, derivado de

algum sinal ou comportamento característico. Em regra, o animal

vai ser criado pela esposa do zápiway ou por sua filha

(DAL POZ, 1991: 199 - 200).

4 Os Cinta Larga denominam a festa de maneira genérica pelo termo íwa (tomar chicha).

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A menina com o seu porco-do-mato domesticado. Grupo de Serra Morena (RO). Foto: Jesco Von Puttkamer, 1976

Nesta etnia, homens são caçadores e mulheres são agricultoras e cozinheiras,

mas essa divisão não é tão exata na prática. Conforme observação de Junqueira em Sexo

e Desigualdade entre os Kamaiurá e Cinta Larga (2002) as mulheres sempre

desempenham papel secundário, os homens estão sempre à frente das atividades,

literalmente quando saem à mata ou desempenham tarefas cotidianas.

Tal como grande parte das outras etnias indígenas, os Cinta Larga e Suruí são

caçadores. Dal Poz (1993) e Junqueira (1985) afirmam que a caça é a atividade mais

interessante aos Cinta Larga “a ela se dedicam assiduamente e é um dos assuntos

preferidos na conversa entre os homens (DAL POZ, 1991:125)”, através da fala

cerimonial berewá, exclusiva do gênero masculino, onde narram suas aventuras e

andanças heróicas de caça e guerra.

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Diferentemente da caça aos outros animais, que é solitária, a caça ao queixada

exige cooperação de vários caçadores

(...) abro um parênteses para a caça ao queixada, que exige cooperação de

vários caçadores, situando-se como exceção dentre as técnicas habituais.

Ao perceber um bando de porcos nas proximidades, todos os homens da

aldeia, se mobilizam para, ou combinam para sair na manhã seguinte em

sua perseguição uma exceção às técnicas habituais, pois a caça geralmente

é atividade solitária. (...) Os mais abatidos, certamente numerosos, são

variedades de macacos e aves, como jacus, jacutinga e mutum. Queixada,

caititu e anta, porém, são os animais mais apreciados. E como reparou

Junqueira (1981:37), é a gordura o principal indicativo para o paladar

(DAL POZ, 1991:125).

A imagem dos homens Cinta Larga, aparece na bibliografia e nas fotografias,

sempre vinculada ao ideal masculino de homem guerreiro e caçador, exibindo força

física e a boa destreza no manejo das armas.

Os homens possuem uma indumentária variada: a cinta de

entrecasca de árvore, chapéus de pele de onça são usados em

situações formais, como pode ser visto nas fotografias que

retratam a chegada, pela primeira vez, de uma comitiva Cinta

Larga ao posto da FUNAI. Em outras situações, também

cerimoniais, os homens usam diademas plumários no lugar da

pele de onça, além dos arcos e flechas sempre presentes nesta

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indumentária, como se fosse necessário estar sempre armado

(PASSETTI, 2005: 3).

Parque indígena Serra Morena (RO), guerreiro C. Larga. Foto: Jesco Von Puttkamer, 1976.

Dal Poz descreve os objetos de guerra Cinta Larga, especialmente a flecha e o arco:

Os arcos (matpé), de seção oval, medem cerca de 2,0 metros, e são

fabricados do caule da pupunheira (jobát). As flechas (jáp), em

média com 1,8 metros, consistem de uma haste de taquara onde se

encaixa uma ponta com formato de faca, obtida de um tipo de

taboca, e na extremidade inferior, aletas de penas de gavião ou

mutum. (...) Há flechas de vários tipos, para aves, macacos,

animais de grande porte e pesca, mas sempre elaborados

cuidadosamente. Esses mesmos tipos são usados na guerra.

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Algumas flechas têm uma parte da haste feita de madeira (ipép),

dentada, e adornada com pêlos de caititu (jápsík), cujos motivos

são losangos (DAL POZ, 1991:58).

Fabricação de flecha, homem Cinta Larga. Foto: Carmen Junqueira, Serra Morena (RO) 1979.

Observando as fotos de Jesco Von Putkamer e manuseando a coleção de objetos Cinta

Larga, presentes no Museu da Cultura, Passetti descreve as flechas da seguinte

maneira:

Elas possuem haste de taquara, com emplumação radial de

uma pena de gavião atada, e suas pontas são fabricadas com

um tipo de taboca, destacáveis, com formas diversas. Muitas

delas apresentam a metade superior da haste feita de paxiúba,

segundo verificação pessoal de Junqueira, madeira também

escura como as dos arcos. As flechas cerimoniais, ofertadas

pelo genro ao sogro como presentes em casamento, podem ter

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esta parte serrilhada. (...) Elas ainda recebem adorno de um

delicado mosaico de cerca de 10 cm na haste, antes da ponta –

um mosaico trançado na própria flecha, com pelos longos do

animal, formando motivos geométricos variados em preto e

branco, resultando num efeito visual brilhante que pode

enganar à primeira vista, sugerindo matéria-prima sintética.

(...) O arremate das flechas é feito com fios finos de algodão

em tons pastel quentes enrolados na haste e, em algumas

flechas, nota-se um quase imperceptível acabamento em

plumas aparadas rente, no lado inferior do mosaico

(PASSETI, 2007: 4-5)

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A partir da descrição de Mindlin sobre os objetos Suruí e, olhando atentamente as

fotografias, podemos visualizar que a flecha desta etnia também possui um trançado de

pêlos de caititu, porém com outros motivos gráficos se comparado à flecha Cinta Larga.

Além da presença do trançado, uma parte da flecha Suruí é pintada com tinta preta e

adornada com linha tingida de urucum, conforme descrição de Mindlin:

Há pouca taquara, encontrada apenas muito longe. São enfeitadas com

pêlos de porco-do-mato, com algodão pintado de urucum ou com

desenho de jenipapo, sendo usada uma resina escura. O autor é sempre

identificado por qualquer pessoa. Cada flecha tem uma forma, um

desenho, uma finalidade – para matar animais diferentes, gente, peixe.

Os desenhos serão associados à linhagem, representam figuras, tem

marca de quem fabricou? Não foi possível descobrir. Antigamente e

certo que usavam veneno – qual seria? (MINDLIN, 1985:69).

O que mais impressiona a autora é como os índios se reconhecem nos seus

objetos, a nossos olhos quase idênticos. Entre os Suruí Paiter, uma resina preta é

utilizada para fazer um desenho na flecha, segundo Mindlin, designando a qual

linhagem a pessoa pertence:

Todos sabem quem fez um cesto, uma flecha, mesmo que se trate de um

objeto de outra aldeia quando visto na sede do Parque. Com a maior

simplicidade, uma lição do que significa o trabalho concreto, cada

pessoa ligada à própria arte. (...) Cada flecha tem uma forma, um

desenho, uma finalidade – para matar animais diferentes, gente, peixe.

Os desenhos serão associados à linhagem, representam figuras, tem

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marca de quem fabricou? Não foi possível descobrir. Antigamente e

certo que usavam veneno – qual seria? (MINDLIN, 1985:69).

Mitologia

Para iniciar a reflexão sobre a importância do porco-do-mato aos índios Cinta

Larga e Suruí Paiter, visando entender a existência do trançado de pêlos de caititu

presente na flecha, há um mito central que se repete em versões semelhantes entre os

Cinta Larga, explicitando a proximidade simbólica da etnia ao animal. Ele foi também

encontrado entre os Aruá, que narra uma história segundo a qual os homens saíram para

fazer a primeira guerra, mas só encontraram porcos e mataram todos.

Apoiada em versões registradas por Dal Poz (1991:354) e narrado por Pichuvy

Cinta Larga (1988:45-47) resumo o mito da seguinte maneira:

Mito Cinta Larga

Histórias de Pawo

resumo: Quando os Cinta Larga foram fazer primeira guerra,

encontraram apenas porcos do mato e mataram todos eles. Um dos

índios não conseguiu matar nenhum, segundo o narrador por que

estava triste devido ao ciúme que sentia de sua mulher. Diante disso,

ninguém deu o pedaço de carne a ele. Chateado com a situação, saiu

para andar sozinho no mato à procura de uma cotia para caçar e

comer. Durante a caçada encontrou Pawo, o dono dos porcos, que

perguntou ao índio se ele havia comido carne de porco e o motivo pelo

qual estava triste. Ele respondeu que ninguém lhe deu caça devido ao

ciúme que sentia da mulher. Pawo pediu que abrisse a boca para

conferir se havia restos de porco, e confirmou a versão do índio, ao ver

cabelo de cotia entre seus dentes. Então, o dono dos porcos, decidiu

ajudar o índio arrumar uma caça, por ele não ter comido a carne e ter

dito a verdade. Ao retornar no acampamento, o índio levou um Nambu

(pássaro) dado por Pawo. Contou ao seu irmão que havia encontrado o

dono do mato que lhe ajudou por não ter matado os porcos, mas seu

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irmão não acreditou alegando que apenas o pajé consegue ver Pawo.

Chateado novamente, Pawo combinou com o índio que transformaria

todo seu pessoal em porcos para substituir aqueles que eram dele.

Pediu também ao índio, para fazer uma marca branca no cabelo do

rosto da mulher que lhe causou ciúme, assim o índio poderia

reconhecê-la e matá-la depois que todos virassem porcos. Pawo,

então, pegou coco de babaçu para colocar o dente do pessoal

enquanto dormiam. O único índio que permaneceu matou sua mulher

ao ver a marca branca no rosto do animal, e todo mês de agosto e

setembro os porcos chegam à roça para comer macaxeira.

 

Assim que índio queria fazer primeira guerra. Depois que ele foi

virar porco!... aí não deu para fazer guerra. É assim que é

história de Cinta Larga de antigamente, é assim... (CINTA

LARGA, 1991: 45).

Este é um mito inserido nas histórias de Pawo, o dono do mato, e também

utilizado na dissertação de mestrado e na tesde de doutorado de João Dal Poz, em uma

versão similar denominada Bebéti, o dono do porco, narrada por Zé Lopes Kabân,

morador de Serra Morena.

A relação entre o porco-do-mato e os homens Cinta Larga é estreita e de grande

relevância. No mito, os homens saíram para fazer a primeira guerra, mas só encontraram

porcos e mataram todos. Dal Poz (1991) em sua dissertação de mestrado apresenta

possíveis hipóteses sobre o significado simbólico do porco para uma grande festa

promovida anualmente (descrita na introdução acima) em que ao final um animal é

sacrificado, tradicionalmente uma queixada.

Uma das denominações para a festa, diante de outras existentes, é bébé aka

(matar porco) por metonímia, a parte pelo todo, pois a festa é um conjunto de eventos,

que seguem um determinado programa ritual: beber chicha, dançar e matar a vítima

animal, apesar de nem todas as festas, ao final, fazerem o sacrifício da vítima. Segundo

Pichuvy, a festa também está muito associada à guerra “quando ele mandar fazer guerra,

ele mandar fazer festa grande” (CINTA LARGA, 1988:116). Esta frase faz referência ao

zápiway, o dono da casa, que também ao fazer uma maloca nova, produz uma festa.

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O autor compreende o ritual como uma metáfora canibal que há entre o dono da

festa e o alimento que ele oferece. “Os Cinta Larga qualificam da mesma maneira a

carne humana e a carne de caça: kakit [gostoso], kâmdak [gordo] e “macia”, é o que

dizem” (DAL POZ, 1991: 276). A caça e o inimigo são basicamente sinônimos, à

medida que nos cantos berewá, invocados pelos guerreiros Cinta Larga, cantados em

festas e guerras, a caça é um tema recorrente, evoca a guerra unificando o aliado,

chamam também em outras situações o inimigo pelo nome da caça.

Esses homens guerreiros, em determinadas ocasiões como a festa que antecede

a guerra, não se referem ao inimigo de maneira direta; utilizam-se de formas pejorativas

para designá-lo, como por exemplo, porcos, macacos e outros animais. Essa maneira de

tratar o adversário, para Dal Poz, explicita uma relação de equivalência entre animais a

serem caçados e inimigos a serem combatidos. Caça e inimigo podem ser vistos como

sinônimos para os homens Cinta Larga, tanto na guerra quanto na festa.

(...) o canto antecipa a tática dos guerreiros, mas sob a condição

de não anunciar o nome dos inimigos ou que vai “atacar gente”.

Os cantores dizem então que vai “matar porco”, “matar macaco”,

que saem para “uma caçada” (...) (DAL POZ, 1991: 226).

Em Moqueca de Maridos (1997), Mindlin publicou um mito Aruá em uma

versão similar ao mito contado por Pichuvy sobre o dono dos porcos. Os Aruá também

vivem em Rondônia e pertencem ao mesmo tronco lingüístico dos Cinta Larga e do

Suruí Paiter, Tupi-Mondé

Mito Aruá

O dono dos porcos

resumo: Os homens matavam qualquer ser vivo que encontrassem. Durante

uma viagem de cinco dias, alguns homens construíram uma pascana (um

tipo de acampamento) para repousarem durante o longo trajeto da viagem.

Próximo à pascana no mato, os homens encontraram um bando de

queixadas, uma vara de porcos. O cacique disse: -

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Vamos matar todos para vingarmos as antas, do que elas fizeram com

nossas mulheres.

Eles cercaram e meteram flecha em todos os porcos, só um pequeninho

que conseguiu escapar. Dentre esses caçadores, apenas um não pôde

matar e nem comer o porco, pois sua mulher (que também namorou a anta)

estava com nenê pequeno, sujeita a dieta. O pai da moça disse a seu

genro:

-Vai matar nambu-galinha para comer, este você pode.

Então o moço saiu à procura do nambu. Já escurecendo, apareceu o

dono dos porcos que perguntou ao rapaz o que ele estava procurando, e

ele respondeu que era nambu-galinha. O dono dos porcos perguntou

novamente:

-Você matou meus porcos, meu neto?

O caçador explicou que não podia porque estava com nenê novo e

que não havia mexido com seus porcos.

O único porquinho que tinha escapado estava no colo do dono dos

porcos, além de ter em seus braços todos os tipos de pássaros nambu,

oferecendo todos ao rapaz. Ele aceitou. O dono dos animais deu as

instruções ao rapaz de como preparar a caça:

-Você pela, moqueia, pede para sua mulher assar, depois de

assado chama os teus parentes para comer. Aconselha os teus para

dormirem com você na sua pascana, pois irei matar aqueles que mataram

meus porcos para ficarem no lugar deles.

O moço obedeceu ao dono dos porcos, fez tudo direitinho, só seus

parentes que não quiseram comer nambu, alegando que estavam de

barriga cheia. O rapaz, então, seguiu sem os parentes para fazer sua

pascana fora do grupo. Durante a noite, o dono dos porcos adormeceu os

homens como num encanto, de barriga para baixo. Os porcos caçados

ainda estavam no moquém. Pingou um sernambi nas costas dos homens,

começando pelo pai do rapaz, que logo gritou e grunhiu como um porco

pulando da rede. O “feiticeiro” pingou o sernambi em todos os homens,

todos foram se transformando na caça, era um estrondo. Os homens,

virados em porcos, comeram todos os porcos que estavam nos moquéns,

a própria caça que tinham apanhado na véspera. De gente restou apenas o

casal e o nenê afastados em outra pascana, que subiram num coqueiro

para se protegerem.

A partir deste dia o dono dos porcos passou a chamar o rapaz de

neto, com carinho, pediu a ele que fizesse muito flecha e ordenou que

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quando cruzasse os porcos matasse poucos, apenas dois ou três.

Ensinou-lhe como devia caçar, usando um cipó forte cobrindo e

protegendo os caçadores dos ataques dos porcos. Só haviam restado os

três, o rapaz voltou para aldeia e teve mais uma menina, que passou a ser a

mulher do irmão. Desta relação incestuosa nasceram cinco filhos e filhas, e

a população aos poucos foi aumento, o pai sempre ensinando como fazer

flecha para caçarem. Voltaram para o lugar onde os homens tinham virado

porcos. Cobertos com o cipó especial, o caçador e sua família estavam

protegidos do ataque dos animais. Disseram ao dono dos porcos que

estavam prontos, e aos poucos ele foi soltando os porcos, que comiam um

dos seus, do seu próprio bando. Quando a pessoa pedia para o dono “esse

é meu!”, os porcos paravam de comer uns aos outros; cada pessoa podia

então flechar o seu porco. Fizeram quatro expedições semelhantes a essa,

só que na quarta vez um teimoso os acompanhou, não soube usar o cipó

corretamente, os porcos vieram o atacaram e comeram todos. O dono dos

porcos disse que havia ensinado corretamente como caçar os porcos, mas

daquele dia em diante os homens iriam sofrer para matar a caça, por causa

do teimoso.

Em Vozes de Origem (1996) a autora reproduz um mito narrado por Dikboba

Suruí sobre as árvores, que antigamente eram gente, e hoje são plantas usadas para

extrair tintas e resinas utilizadas na pintura da flecha Suruí. Seguem abaixo os dois

mitos resumidos:

Mito Suruí

O caçador Panema ou Galowa, a luz com estrondo

resumo: O mito narra a história de um homem com azar na caça, ele

não conseguia matar nenhum bicho. Certo dia uma árvore que

antigamente era gente, Moradei, contou a Panemá que conseguia caçar

muito bem porque passou a perna em suas flechas e assim elas

passaram a ter a mesma sorte que ele. O homem viu outro homem

borkaa, que antigamente era gente e hoje é planta que dá resina preta

que se passa na flecha, caçando e matando muitos macacos. Hoje a

resina borkaa preta também dá muita sorte na caça. Gereió e Morad-

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hoba também eram gentes, hoje são plantas usadas para esfregar no

corpo, utilizadas para se ter sorte na caça. As plantas, que eram gente,

ajudaram o homem azarado a ter sorte. A partir daí, com a flechada ele

pegou um tucano e não errou mais nenhum tiro. Em seguida ele pegou

um bando de macacos. Então fez uma troca com as plantas que

forneceram os elementos da sorte adquirida, levaria sua esposa para

eles a namorarem. Ao retornar para o acampamento, ninguém

acreditou no caçador que trazia consigo vários macacos caçados.

Adormeceu preocupado, com medo que sua mulher contasse

a alguém o que tinha acontecido. E não viu que sua perna estava

encostando no moquém, em pouco tempo, tinha queimado toda.

Os outros acordaram e assustaram-se:

-Ele queimou a perna ao assar os macacos! Por que será que

se deixou queimar assim, sem perceber?- e ficaram com medo dele.

Até os irmãos diziam que era melhor fugirem, ou o caçador podia

resolver comer todo mundo.

Decidiram esconder-se em cima do tapiri do acampamento

onde estavam, no telhado de palha, deixando o caçador sozinho. Este

logo acrodou:

-Que aconteceu com minha perna, como fui me queimar

assim? E estes sem- vegonhas dos meus parentes, nem me

avisaram, nem me acordaram, e me abandonaram todo queimado...

Agora vou ter que virar alguma outra coisa, não posso mais ser gente.

Estava tão enfurecido, que comeu a carne toda nos fogos de

cada jirau, para não deixar mais nada para os outros.

- E agora, agora é hora de eu virar alguma coisa que assuste

os homens, que lhes faça mal! No que eu posso virar? Posso virar o

pawagab, o passarinho que pia com sinal de guerra... (MINDLIN,

2007:33)

O caçador não sabia em que poderia se transformar para

assustar os homens. Pensou em se transformar em taboca, com a qual

se produz a ponta da flecha, que quando o vento faz barulho na haste

as pessoas acham que uma guerra está para estourar,

conseqüentemente deverão brigar e sentir medo. Pensando melhor,

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decidiu então, se transformar em galowa, a luz que cai com estrondo e

aterroriza os homens. O rapaz foi embora para o céu e se transformou

em trovão.

Será possível estabelecer uma relação entre a resina preta borkaa, que se passa

nas flechas para dar sorte na caça e o trançado de pêlos de caititu? O trançado cumpre

função semelhante à resina preta? Na mitologia são fatores externos que decidem se os

homens caçam ou não.

Se compararmos o mito Cinta Larga e Aruá sobre o dono dos porcos

reproduzidos anteriormente, ao mito Suruí sobre o caçador Panema, será possível

estabelecer relações interessantes quanto à semelhança das duas etnias vizinhas.

Lévi-Strauss observa em Antropologia Estrutural dois, ao comparar as duas

tribos vizinhas presentes no mito Gesta de Asdiwal, que ao mesmo tempo em que

vizinhos se assemelham, também se diferenciam. Esta diferenciação torna-se útil ao

equilíbrio das necessidades humanas.

Afinal de contas, se os costumes dos povos vizinhos manifestam relações

de simetria, não se deve buscar a causa apenas em algumas leis misteriosas

da natureza do espírito. Esta perfeição geométrica também resume, no

modo presente, os esforços, mais ou menos conscientes, porem inúmeros,

acumulados pela historia, e que visam todos o mesmo objetivo: atingir um

limiar, sem duvida o mais útil para as sociedades humanas, no qual se

instaure um justo equilíbrio entre sua unidade e sua diversidade; e que

mantenha a balança igual entre a comunicação, favorável às iluminações

recíprocas, e a ausência de comunicação, também salutar, pois as flores

frágeis da diferença tem necessidade de penumbra para subsistir

(LÉVI-STRAUSS, 1989: 260).

Nas versões Cinta Larga e Aruá, os homens estão com azar na caça. Geralmente

os mitos indicam que o azar na caça ocorre devido a fatores externos, como por

exemplo, a traição da esposa ou até mesmo durante o período que o marido está sujeito

a dieta. Por terem nenê novo, nos primeiros meses, estes homens não podem comer

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determinados tipos de alimentos, não participam de caçadas, tampouco de guerras. No

mito sobre o caçador Panema, não está claro o porquê de o homem sofrer azar na caça,

mas tanto no mito Cinta Larga quanto no Aruá, os caçadores estão azarados em

conseqüência de impedimentos para manterem relações sexuais com suas mulheres.

O guerreiro Cinta Larga encontra Pawo, que o ajuda lhe dando um nambu, uma

caça, pois ele é o dono dos porcos, dono do mato, aquele que fornece sorte aos

caçadores, decidindo qual animal pode ser morto ou não. Na versão Suruí, o azarado

encontra árvores e plantas que antigamente eram gente, são donos dos elementos que,

utilizados na flecha, fornecem a sorte almejada por ele. Para tudo há uma troca a ser

estabelecida, entre o índio Cinta Larga e Pawo, a troca é matar todos os seus e os

tornarem porcos no lugar daqueles que foram mortos. No caso Suruí, a troca é dar sua

mulher para as plantas namorarem, talvez garantindo o fim do azar para sempre. Todos

os parentes duvidam da sorte adquirida ou do encontro repentino com esses seres da

floresta. De maneira distinta, os dois homens vingam-se de seus parentes, seja sob a

forma de canibal, vento ou trovão, seja transformando todos em porcos ou roubando a

mandioca da roça quando chega o mês de agosto.

Em Mitológicas 1 – o cru e o cozido, Lévi-Strauss apresenta cinco mitos em

versões muito semelhantes à Cinta Larga e Aruá. São narrativas de etnias diferentes,

sobre a origem dos porcos-do-mato, e o que mais impressiona nestas versões é o fato de

que os homens são sempre transformados em porcos por motivo de vingança: seja por

terem roubado a caça de um rapaz, desejo de experimentar carne de porco ou pela

traição da mulher. Considerando que a carne de porco é muito apreciada entre os

indígenas, além de exigir destreza no manejo das armas para caçá-los, aquele que for

transformando em porcos será por si só um inimigo a ser combatido, muitas vezes

pertencente à mesma etnia do vingador, porém inimigo.

* * *

Outros dois mitos, desta vez sobre namoro escondido, se reproduzem de forma

semelhante entre as duas etnias. Estas narrativas reafirmam a simetria mencionada

anteriormente. Vale ressaltar que uma das condições necessárias à conquista das

mulheres, para um homem, é saber caçar os alimentos mais apreciados e a queixada

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(porco-do-mato) está entre eles. Além da caça, a roça também pode ser determinante na

conquista.

O primeiro mito, Sunkip o filho do Mutum, pertence às narrativas de Pichuvy

Cinta Larga. O segundo, Primeiras Mulheres, foi contado por diversos narradores

Suruí em versões variadas, recolhidas por Mindlin entre os anos de 1979 a 1992.

Mito Cinta Larga

Sunkip – Filho de Mutum

resumo:  Uma mulher decidiu namorar coruja durante uma festa na

maloca. Enquanto todos dançavam, ela ficou espiando a coruja. Paxit5,

passarinho azul, chegou, dançou e tomou chicha. A mulher se

aproximou e tomou metade da chicha (bebida fermentada a partir do

milho, cará ou mandioca) de Paxit, dizendo que gostava muito dele.

Paxit não acreditou e argumentou que ela tinha um noivo, a coruja. A

mulher respondeu que não queria mais saber de coruja e saiu atrás

dele, dizendo que se ele fosse embora da festa, ela iria junto. Sem

coruja perceber, a mulher combinou com Paxit dele sair deixando

sinais no decorrer do caminho até sua casa, ela sairia depois,

seguindo as pistas. Uma das pistas era sua pena, indicando o início do

caminho correto para casa do amante.

Ao iniciar o caminho a mulher se deparou com duas opções,

uma com a pena de Paxit e outra com a pena de coruja. Andou e

chegou a casa de coruja que estava sentado em cima da maloca

esperando a mulher. A mãe de coruja pediu que ele fosse em busca de

alimento para dar de comer a sua mulher. Ela então saiu e caçou um

rato para que ela comesse. A mulher não quis comer o rato, dizendo

que seu pai lhe mandou que não o fizesse. O marido lhe ofereceu

milho, mas sua roça não era suficiente, então, juntos, saíram em busca

de mel. Acharam mel em cima da árvore, a mulher comentou que iria à

busca de uma vasilha, mas fugiu de coruja. Ao retornar à maloca,

perguntou sobre a mulher à sua mãe, dizendo que a tinha perdido. Sua

mãe recomendou que fosse através do caminho de Paxit em busca da

mulher.

5 Saíra azul, o filho da onça.

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Durante a fuga, a mulher muito esperta, pediu aos animais que não

dissessem sobre seu paradeiro ao seu marido, e se escondeu no

pescoço de socó, um pássaro comedor de peixe. Quando o coruja

encontrou socó, desconfiado com o volume, perguntou a ele o que

tinha na garganta, mas socó lhe respondeu que estava com dor de

dente. Depois de coruja continuar a busca, a mulher continuou a fuga e

durante o trajeto encontrou mutum, que permitiu que ela se

escondesse debaixo de sua asa, pois estava com medo do coruja.

Então o coruja chegou e perguntou novamente sobre a mulher. Mutum

respondeu que não tinha visto, que estava ali apenas fazendo

trançando pêlos de caititu na flecha. Desconfiado, o coruja perguntou

o que mutum tinha embaixo da asa. Mutum ficou bravo com ele e pediu

para que não mexesse ali, pois estava com dor. A mulher continuou

escondida lá, e é por isso, segundo o narrador, as mulheres se

escondem quando vêem namorado ou marido. Quando o coruja foi

embora, mutum disse a ela para dormir tranqüila debaixo de sua asa,

pois o coruja não estava mais lá. Daí mutum “transou” a mulher e a

engravidou e ela foi embora gestante para casa de Paxit, o passarinho

azul.

Mito Suruí

Primeiras Mulheres

resumo:Antigamente não havia mulheres no mundo, apenas um homem

sozinho, Iapeb. Ele resolveu namorar uma árvore que de tanto namorar

engravidou do rapaz. Antes de viajar o rapaz avisou sua mãe que caso

ouvisse um barulho na floresta, para sair e ver o que era.

À noite a arvore explodiu uma criança que começou a chorar,

logo depois ouviu-se um segundo estouro, era mais uma criança

chorando. A avó foi à mata pegar as crianças passando a cuidar delas.

As meninas cresceram e tornaram-se moças, uma chamava-se Kabeud

e a outra Samsam.

Certo dia Iapeb, o pai das mocinhas, mandou preparar bebida

em sua maloca para promover uma grande festa, um iatir. Pintou de

jenipapo os convidados e mandou chamar o pessoal de outras aldeias

para a festa. No dia da festa o pai chamou as filhas e contou a elas que

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sua mãe não era gente e sim uma árvore, e que tudo aconteceu num

sonho.

As meninas se pintaram, beberam e dançaram durante a festa.

Entre os visitantes estava um pássaro, Pexir, e Makoba, uma coruja.

Makoba dançava se exibido para as moças gostarem dele, mas elas só

queriam Pexir. As moças riam de coruja, mas mesmo assim o pai dizia

a Makoba que as moças o achavam muito sedutor.

Quando a festa acabou, todos se despediram e as duas

mulheres combinaram com Pexir de ele deixar uma pena no caminho

indicando o trajeto de sua maloca. Makoba, muito esperto, trocou a sua

pena com a de Pexir, indicando a direção de sua maloca. Coruja pediu

a mãe para preparar carne para as meninas quando elas chegassem a

sua casa. As duas foram parar na casa de coruja. Quando viram a

carne oferecida pela mãe de Makoba, as moças disseram que aquilo

não era carne nenhuma, pois se tratava de um rato. Além da carne, a

coruja ofereceu mel, que também foi rejeitado pelas moças por não se

tratar de mel de abelha, mas sim lágrima que a coruja tirou dos seus

próprios olhos. Quando Makoba quis namorar as mulheres, Samsam o

enganou pondo os dedos em V para ele enfiar o pênis, fingindo que

abrira as pernas, mas sua irmã Kabeud namorou de verdade. Quando o

coruja decidiu sair para apanhar castanhas, as mocinhas aproveitaram

e fugiram.

Durante a fuga, elas encontraram Oiô, uma rolinha vermelha de

pescoço azul, e pediram para ficar com ele. O rolinha escondeu as

meninas em sua boca. Makoba estava à procura das duas, e perguntou

a Oiô se havia visto as garotas, o coruja desconfiado perguntou à

rolinha porque ele estava com a boca inchada. Ele respondeu que era

por estar sentindo dor de dente. Oiô empurrou a coruja, pegou as

meninas e as levou para sua maloca. Ofereceu, em sua casa, peixe

como alimento, mas uma das irmãs, desconfiada, afirmou que se

tratava de minhoca. Bravas com o pássaro mentiroso, fugiram

novamente no dia seguinte.

No caminho encontraram a garça, Makabe, que havia

escondido as moças em seu cesto de peixes. Oiô perguntou à ave se

ela viu as meninas, ela disse que não, a moça o empurrou e ele se

transformou em pássaro. A história se repetiu, as moças ficaram uma

noite com a garça que quis namorá-las, uma pôs o dedo em V, a outra

namorou de verdade.

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No dia seguinte, fugiram e encontraram o Veado, Makabe, que

estava com muito milho em sua roça. As duas comeram todo milho e

se ofereceram para ficar com ele, ele aceitou. Depois do milho o veado

saiu para caçar e levar de comer para elas, mas ao invés de caçar

arrancou carne de sua própria perna e levou para sua mãe cozinhar. As

meninas desconfiaram novamente, indagando como o veado havia

conseguindo tanta carne, ainda mais sem osso. Foram investigar e

descobriram a origem da caça. Fugiram novamente.

Então finalmente encontraram Amôa, o jabuti. Deixou as duas

e saiu para caçar e dar de comer a elas. Quando Amôa retornou,

perguntou aos macacos que estavam com as meninas:

- Quem esta comendo minhas mulheres?

A história se repetiu de forma semelhante às outras situações.

Desta vez, na ultima fuga, elas encontraram a onça que tinha muitas

cabeças de porco em seu cesto de lixo, as duas encantadas com a

quantidade de caça resolveram casar-se com o onça. Ambas tiveram

nenê e a proteção da sogra, uma sogra voraz. Porém a sogra comeu

uma das irmãs, a outra para vingar-se a matou, e cuidou do sobrinho e

do próprio filho sozinha.

Na primeira versão a origem da moça está oculta. Na segunda são duas

mocinhas, ao contrário da primeira. Há uma disputa da coruja com outro animal. A

coruja é o marido que o pai gostaria de casar as filhas, mas, na verdade, elas desejam

transgredir com o pássaro Pexir ou Paxit, saindo na mata à procura dos pretendentes.

Rato é alimento proibido, tanto aos Suruí quanto aos Cinta Larga. Desprezam o

primeiro amante, por oferecer o seu alimento habitual. Ao final, valorizam os homens

que de certa maneira possuem os melhores alimentos, geralmente oferecidos pelos

pretendentes e preparados pela sogra. Aparecem porcos nos dois mitos: no primeiro é o

caso do Mutum trançando os pêlos de caititu nas flechas, no segundo, que é uma

narrativa Suruí, a onça Amôa está cheia de cabeças de porco em seu cesto.

Conforme descrição de Dal Poz, para confecção de instrumentos de caça e

guerra, os homens Cinta Larga

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(...) despendem inúmeras tardes em suas “oficinas”, pequenos

acampamentos a cerca de duzentos metros da maloca, no frescor da floresta,

onde sós ou em conjunto confeccionam arcos e flechas. Objetos preciosos, os

caçadores tudo fazem para recuperar as flechas quando disparam, tomando

precauções ao mirar ou trepando, no que são hábeis, nas mais altas árvores

(1991:127).

No mito acima (Sunkip – Filho de Mutum, p.26), contado por Pichuvy, isto se

evidencia no momento em que a mulher, andando na floresta, encontra seu suposto

amante trançando os cabelos de porco-do-mato em sua flecha, sozinho. Caçar é

atividade exclusivamente masculina e individual. Os meninos desde criança andam com

seus “arquinhos” e flechas, já em busca de calangos e borboletas, algo que comprova a

importância dos instrumentos de caça e guerra para a cultura Cinta Larga. De maneira

semelhante, Mindlin afirma que na metade “metare”, no mato, são confeccionados os

artesanatos Suruí, local também repleto de caça segundo a autora.

Encontrei também, nas narrativas de Pichuvy, o porquê da utilização, por

exemplo, da taboca na confecção da flecha Cinta Larga, associada à mulher. O mito

resumido abaixo evidencia esta relação:

Mito Cinta Larga

Njap - flecha

resumo: O mito conta que foi a mulher quem inventou fazer flecha de

taboca (um tipo de bambu utilizado como ponta para a flecha). Uma mulher

mandou seu marido ir caçar, pois estava com muita vontade de comer carne. O

marido saiu à caça e a mulher ficou a espera para ver qual tipo de carne ele

traria. Quando ele retornou trouxe só um passarinho, tipo um nambu, a mulher

indagou:

-Cadê bicho? Cê matou ninguém...

Aí índio respondeu pra ela:

-Eu não achei nada bicho. Eu num achei nada. Matei só

um nambuzinho para você comer. (CINTA LARGA, 1988:51)

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Mesmo assim a mulher assou o nambu e comeu, mas ficou chorando,

afinal queria uma caça maior. O marido então disse a ela que no dia seguinte os

dois sairiam juntos para caçar. Logo cedo ele foi caçar, e quando viu rastro de

porco no mato, disse à sua mulher:

- Olha, você vai espantar porco aqui - espantar né?- pra

ele vem pra encontrar porco. Aí mulher foi. Ela foi e vê o

porco. Espantar porco, né? Aí porcão veio com ela, mulher.

Aí porco correu, correu, né? Aí homem flechou um porco. Aí

mulher mordeu na costa de porco, né? – na bunda de porco.

Aí homem não vê mais mulher. Aí quando não vê mais

mulher, homem foi procurar. Aí ele viu a taboca-taboca de

ponta de flexa. Aí homem fala:

- Essa taboca... pra que essa taboca? Eu nunca vi essa

taboca! Quando o homem falou, mulher apareceu:

-Eu tava perdida! – a mulher falou – Eu tava perdida!

Aí o homem respondeu:

- Eu tava procurando você. Onde você tava?

Aí mulher falou:

-Essa taboca, eu inventei para você matar bicho.

Ele falou:

-Ié?...Tá bom.

-Essa taboca, - ela falou – essa flecha, pra você não

precisar mais alisar pedaço de árvore, né? (CINTA LARGA,

1988: 52)

Pichuvy explica que seu avô lhe contou que antes da mulher inventar a ponta de

flecha, feita de taboca, os homens precisavam alisar pedaços de árvore. Após essa

invenção, apareceram muitas flechas, em todos os cantos, pois foi a mulher quem fez

assim.

A taboca deve ficar embaixo do sol para secar, esquentar e assim ficar branca e

dura. Não pode colocá-la em água fervendo, isso desperta vontade de comer carne. “Só

isso da história de mulher. Tá bom?” (idem, ibdem).

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Neste mito, Njap, quem morde a bunda do porco não é sua mulher-esposa, mas

sim a mulher-flecha, que espanta o porco e faz com que ele corra. Há aqui uma relação

de simbiose entre a mulher e a flecha. Quando o caçador dá conta que perdeu sua flecha,

entra em desespero, afinal a flecha é o instrumento inseparável desse homem guerreiro,

assim como a mulher que desempenha suas tarefas essenciais à manutenção da vida do

grupo. Observado por Dal Poz (1991) a ponta da flecha com sangue é o maior símbolo

de sucesso na caça ou na guerra para o homem Cinta Larga, uma maneira de se orgulhar

de sua destreza no manejo do arco. O autor também relaciona o fato de não poder

colocá-la em água fervendo ao costume de reclusão das mulheres Cinta Larga durante a

menstruação. Elas não podem ter nenhum tipo de contato com a água, não é interessante

que tomem banho ou desempenhem tarefas cotidianas, e devem permanecer por dois

dias, ou mais, no canto da casa sem contato.

Antropofagia, inimigos e objetos

Observando a relação das culturas Cinta Larga e Aruá com o porco-do-mato,

podemos perceber, de certa forma, que comparações podem ser estabelecidas quanto à

ingestão da carne de porco e a prática de antropofagia. Isto se torna claro à medida que

os homens no mito da versão Aruá, após serem transformados em porcos, comem seus

próprios semelhantes, devorando a caça que estava no moquém. Esta comparação

estabelecida poderá ser bem exemplificada com o mito Cinta Larga abaixo, relatado por

Pichuvy e parcialmente resumido por mim:

Mito Cinta Larga

Bebé – Porco

resumo: Um índio saiu para caçar no mato, mas arrancou pedaço da

sua própria carne e virou o bicho. Nasceu cabelo de porco no pedaço

da carne que ele arrancou. Chegou a sua casa e falou assim:

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- Eu matei porco! Agora vocês cozinhar porco.

A mulher dele cozinha a carne... Pessoal dele não sabe que é

pedaço carne dele, né?

E outra vez foi caçar. Quando carne acabou, ele vai caçar de

novo, Aí trouxe carne, né? Aí mulher perguntou:

-Cade cabeça do porco?

Aí ela falou assim:

-Você não traz cabeça de bicho!... (CINTA LARGA, 1981:85)

Ele saiu novamente para caçar e fez a mesma coisa, arrancou pedaço

de sua própria carne. O marido não sabia que seu sogro estava

escondido vendo ele arrancar um pedaço de carne em vez de caçar

porco. O sogro voltou para a maloca e sua filha lhe perguntou se tinha

visto seu marido. O pai respondeu que não, mas ela insistiu e ele

acabou entregando o genro. Contou a sua filha sobre a farsa do marido

em substituir a caça do porco por sua própria carne arrancada. Ao

chegar em casa com a carne nas costas, o marido disse:

- Eu trouxe o porco de novo. Eu trouxe o porco de novo...

Aí mulher respondeu:

-Esse é pedaço de teu carne! Quando ela falou que “esse é

pedaço de teu carne”, ele voando – passarinho, né? – ele foi embora.

(idem, ibidem)

Então passarinho é o homem que arrancava pedaço. O

narrador diz que é aquele que canta a noite no mato, que assobia

parecido com grito de gente, o pã pã mep6.

A carne humana tanto se assemelha à de porco que no mito denominado Bebé, o

caçador preguiçoso arranca de sua própria pele para dar de comer a sua mulher,

disfarçadamente, até aparecem pêlos sob o pedaço para não haver nenhum tipo de

desconfiança. Ao sair para caçar porcos, o homem caça a si próprio diante da

semelhança de sabores.

6 Pássaro de hábitos noturnos

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Dal Poz em Dádivas e Dividas na Amazônia- parentesco, economia e ritual nos

Cinta Larga (2002), apresenta uma passagem interessante sobre o mito Bebeti o dono-

dos- porcos7, na qual é possível perceber uma relação do porco com a antropofagia

guerreira:

O mito Bebeti, o dono-dos- porcos, assim, descreve o processo de cisão de uma

unidade de germanos, em razão do abuso alimentar – caçadores bem sucedidos que

comem excessivamente, e não repartem sequer com o irmão que nada caçou. Aqueles

transformam-se em porcos, este em caçador. Ou seja, no horizonte das obrigações

recíprocas desdobra-se a ameaça canibal pendente, o prenúncio da devoração dos

adversários feitos presas alimentares (DAL POZ, 2002:181).

Aqui se observa uma coincidência com o final do mito Aruá O dono dos porcos,

pois nas duas narrativas o herói passa a ser caçador de porcos.

Segundo observação de Dal Poz, no ato canibal, o que se come é sempre o outro.

Este discurso demarca as fronteiras de maneira clara, não só em relação às dimensões

sociais e políticas, mas outras dimensões, como por exemplo, a cultura e a natureza, os

homens e os animais, os vivos e os mortos e, inclusive, os sujeitos e os objetos, estes,

fundamentais para esta análise.

A partir do mito sobre a origem dos homens, Gora, o reino animal, por sua

vez, remeteria precisamente ao exterior da sociedade e, em particular, ao

próprio campo dos inimigos. Ainda nos tempos míticos, os animais foram

criados para alimentar os homens, a partir de uma série de metamorfoses

impostas a uma parte da humanidade original. O demiurgo convertera

homens em espécies animais, para prover uma criança que desejava “comer

carne”. (...) Bebeti o dono-dos-porcos, assim castigou caçadores, que

mataram uma grande quantidade de animais, mas negaram a carne ao irmão

azarado, transformando-os em queixadas (idem, ibidem: 196).

O autor afirma ainda, que o tema da animalização, segundo um princípio de

equivalência simbólica entre a caça e a guerra, distingue os inimigos por uma relação

7 Este mito, narrado por Zé Paulo Kabân, possui diferenças em relação ao mito Histórias de Pawo narrado por Pichuvy Cinta Larga. Ao final o único homem que resta torna-se caçador de porcos.

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alimentar, a predação canibal. Nas festas guerreiras os cantores não pronunciam o nome

do inimigo, apenas os indicam como animais a serem caçados.

O tema da animalização, devo insistir, sugere enquanto solução para as

situações de ausência ou recusa de reciprocidade, segundo um princípio de

equivalência simbólica entre comestibilidade e hostilidade ou, em outros

termos, entre a caça e a guerra. Destarte, os inimigos são distinguidos por

uma relação alimentar, predação canibal, e com isto consignados

simbolicamente ao domínio da animalidade. Nas festas guerreiras, que são

uma espécie de ilustração ritual dessa assertiva, os cantores jamais

pronunciavam o etnônimo dos adversários, indicando-os tão-somente como

animais a caçar. Isto faz da caça uma nítida metáfora para a guerra, um

espaço transitivo no qual os inimigos são colocados em relação: a guerra é

caça, e os inimigos estão ali na posição de animais. Temos aqui, outra vez,

um código alimentar, uma chave de leitura para a distinção crucial entre a

sociedade cinta-larga e seus exteriores. (idem, ibidem: 196)

Porco, flecha e antropofagia guerreira formam uma tríade da cultura Cinta

Larga. No mito sobre o dono do mato, o homem Cinta Larga tornado inimigo, é de fato

o porco, ou o porco é o seu inverso? Adornar a flecha com o trançado de pêlos de caititu

faz com que esta flecha seja fortemente caracterizada por este homem guerreiro-

antropófago-caçador. Se na origem todos se transformaram em porcos; na festa simulam

um ataque ao queixada para substituir o inimigo atacado; apreciam a carne de porco

sendo a mais valorizada em relação às demais, entendo que esta relação não deve ser

descartada, mas sim levada em consideração.

Os pêlos de caititu que são usados para enfeitar a flecha das duas etnias, além de

outros elementos que compõem os objetos indígenas Tupi-Mondé, cumprem de alguma

maneira, papel significativo. Talvez, de forma precipitada, podemos considerar que

estes pêlos presente na flecha Cinta Larga representem o inimigo a ser combatido, por

meio do mecanismo de equivalência simbólica entre a caça e a guerra. Afinal,

originalmente, os inimigos míticos, da mesma etnia, foram transformados em porcos,

daí a importância em caracterizar a flecha, fortemente identificada ao gênero masculino,

com este inimigo a ser combatido.

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Referências ao porco-do-mato,

queixada e caititu

Mitológicas 1 – O cru e o cozido

Referências dos mitos

(M1) Bororo: o xibae e iari, “as araras e seu ninho” – faz referência a um objeto mágico, um chocalho feito com unhas de caititu, utilizado por um rapaz para ter sorte nas difíceis provas colocadas a ele, como castigo por ter namorado a mãe. (M8) Kayapó-Kubenkranken: origem do fogo - um caçador abandonado pelo cunhado, durante uma caçada, permanece em cima de uma arvore sem ter como descer. Uma onça carregando um caititu nas costas, passa pela arvore onde estava o rapaz. A onça ajuda o rapaz, levando-o à sua própria casa. Durante o trajeto a onça coloca o rapaz nas costas do caititu que ela havia caçado. A onça ensina o rapaz a usar o arco e flecha e também fazer fogo para cozer os alimentos. Certo dia o rapaz foge e retorna à sua aldeia contando aos seus familiares sobre os aprendizados adquiridos. Os familiares querem possuir as mesmas coisas da onça e seguem até a casa dela disfarçados de animais, com objetivo de pegar as técnicas da onça. Dentre os animais, um caititu se encarrega de pegar o algodão fiado. “O pecari, geralmente distinto do caititu em nossos mitos, é certamente o queixada que tem a boca branca (...). O caititu é, portanto, o porco-do-mato. (...) A segunda espécie é menor que a primeira, solitária ou pouco gregária, a primeira vive em bandos” (LEVI-STRAUSS, 1991: 79). (M14) Ofaié-xavante: a esposa da onça – durante uma expedição de mulheres ao mato para apanhar lenha, uma delas avista uma carcaça de queixada deixada por uma onça. A moça manifesta interesse em tornar-se filha da onça, pois a onça sabe caçar muito bem e possui muita carne boa. A onça aparece e acolhe a moça, lhe ensinando caçar e dando as melhores carnes a ela. Cansada da moça, após algum tempo, a onça pede a ela que retorne a sua aldeia. A moça retorna a aldeia mostrando muita destreza na caça. (M15) Tenetehara: a origem dos porcos-do-mato – Tupã enfurecido com alguns parentes por terem maltratado seu afilhado, pede ao afilhado que junte penas e as amontoe em volta da aldeia destes parentes. O rapaz queima as penas, e cercados pelas chamas, os parentes correm de um lado para o outro, pouco a pouco grunhindo como caititus e porco-do-mato. Aqueles parentes transformados em animais, que conseguiram fugir para a floresta, foram os antepassados dos atuais porcos-do-mato. Tupã faz de seu afilhado o senhor dos porcos.

Páginas: 42, 73, 75, 78, 79, 86, 88-91, 97-98, 99, 101, 103-105, 108-110, 119, 125, 129–131, 159, 198, 201, 203, 207, 252, 288, 298.

(M16) Mundurukú: origem dos porcos-do-mato – é uma narrativa semelhante à anterior. Por vingança os homens são transformados em

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porcos. Aparece no mito que único animal de pêlos conhecido no passado, era o caititu, e também o único animal que os homens caçavam, exceto um caçador chamado Karusakaibe, que caçava o pássaro inhambu (nambu), e trocava os pássaros com os caititus caçados por outros homens. (M18) Kayapó-Kubenkranken: origem dos porcos-do-mato – nesta narrativa, também semelhante à anterior, ao contrario de caititus, os homens por vingança, são transformados em queixadas. (M21) Bororo: origem dos porcos-do-mato – ao contrario das narrativas anteriores, são mulheres que se vingam de seus maridos transformando-os em porcos. (M25) Kariri: origem dos porcos-do-mato e do tabaco – nos tempos do demiurgo, os homens lhe pediram para experimentar porcos-do-mato que ainda não existiam. O avô (que era o demiurgo) transformou todas as crianças com menos de dez anos em porquinhos, e fez com que todos os porquinhos subissem ao céu por meio de uma grande arvore. Os homens mais velhos subiram aos céus e caçaram todos os porquinhos. De volta à aldeia, os homens fizeram um banquete com a carne dos filhos transformados em porcos.

(M125) Kayapó: origem da chuva e da tempestade – a narrativa contem uma passagem sobre um caçador, que ao chegar ao local da caçada, imita os barulhos dos porcos como forma de atraí-los.

Referências ao porco-do-mato,

queixada e caititu

Mitológicas 2 – Do mel as cinzas

Referências dos mitos

(M238) Warrau: A flecha partida – este mito tem uma referência interessante ao porco-do-mato. Um homem pouco hábil na caça, sentado na mata, recebe a visita de animais que colocam a língua para fora e lambem seus pés, para lhe dar boa sorte quando quisesse caçar a espécie a qual o animal pertencia, incluindo o porco-do-mato.

Páginas:

17-21, 24-26, 36-40, 99, 158, 173, 177, 239-40, 287, 289, 314, 320-22, 325, 327, 330, 335, 342,

(M 274) Arawak: O jaguar transformado em mulher – o mito conta a história de um homem que era um exímio caçador, não tinha quem o igualasse na caça aos porcos-do-mato. Em contrapartida o jaguar não caçava mais que dois porcos, então o jaguar resolveu transformar-se em mulher para se casar com este homem e descobrir seus segredos de caça.

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Na página 287, Lévi-Strauss relata sua participação em uma caçada na companhia dos Tupi-Kawahib do Rio Machado, no Brasil. O autor observou que para chamar a caça, incluindo o porco-do-mato, “batia-se no chão com uma vara em intervalos regulares: “pum... pum... pum...”. Afirma que os lavradores no Brasil dão a este procedimento o nome de caça de batuque.

374, 414-18, 424.

(M303) Tacana: A educação dos rapazes e das moças – este é um mito extenso, sobre a história de três homens que ao se perderem na floresta com seus filhos, encontram porcos-do-mato. Os filhos transformam-se neste animal. O sogro de um dos heróis, faminto e perdido, come seu próprio braço esquerdo. Um ser da floresta, semelhante ao dono dos animais, censurou-o por isso com o castigo de nunca mais poder voltar junto aos humanos, transformado em tamanduá-bandeira e vagando sem destino pela terra. O mesmo ser, dono dos animais, denominado Chibute, aconselha os caçadores a sempre enterrarem o fígado do porco-do-mato no local que ele foi abatido, e também oferecer ao dono dos porcos em oferenda, uma bolsinha tecida e enfeitada com motivos simbólicos, afim de que ele não afaste seu rebanho, mas o deixe vir aos lugares salíferos onde os caçadores matarão muitos animais. Para o sucesso na caça, a entidade recomenda ainda os preceitos que o bom caçador deve seguir e transmitir aos seus dependentes, entre eles não comer miolo de porco-do-mato.

Nos volumes 3, A origem dos modos à mesa, e 4, L´homme nu, não há mitos relativos ao porco-do-mato.

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12.7.2009.

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